Cheryl St John TEMPO DE RECOMECAR


Tempo de Recomeçar

Cheryl St. John

0x01 graphic

Clássicos Históricos nº 179

Publicado originalmente em: 1999

Título original: The doctor's wife

Copyright para a língua portuguesa: 2000

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Digitalização: Palas Atenéia

Revisão: Valéria Gouveia

Como podia ela dizer sim?

Kansas, América do Norte, 1879

Pessoas como Ellie Parrish não recebiam propostas de casamento de alguém como o dr. Caleb Chaney. Ainda que essa proposta fosse a resposta às suas preces, um homem tão decente e gentil como Caleb não merecia uma mulher cujo passado era uma mentira.

Caleb Chaney podia ver que Ellie Parrish era uma mulher com uma alma atormentada. Porém, também podia ver uma mulher com um coração grande o bastante para amar seu bebê como se o tivesse gerado e capaz de ensinar o próprio Caleb a amar outra vez.


PRÓLOGO

Florence, Kansas, 1879

Uma lua pálida testemunhava os passos vaci­lantes da garota através da escuridão da meia-noite. Os galhos das árvores frondosas arranhavam-lhe o rosto e os braços nus, o vestido esfarrapado de nada servindo para protegê-la dos rigores da natureza. Apertando o pequeno embrulho cuidadosamente junto do peito, ela lutava para conter os tremores dos membros exaustos e vencer a fadiga que amea­çava impedi-la de chegar ao seu destino sem ser descoberta.

Outro espasmo de dor rasgou-lhe o ventre, fazendo-a cair de joelhos. Por alguns instantes uma nuvem negra obscureceu sua visão ou, talvez, houvesse desmaiado. O fato é que um tempo considerável se passou até que conseguisse enxergar com clareza suficiente para sair do bosque e entrar na cidade adormecida. Depressa, correu para o beco deserto.

Um gato miou, assustando-a. Mantendo o embrulho acon­chegado entre os braços, apressou-se. Por fim, avistou a casa que procurava. Nenhuma luz iluminava as janelas altas, seus ocupantes tendo, há muito, ido dormir.

Dividida entre a atitude que deveria tomar e o forte instinto maternal, a garota hesitou, erguendo os olhos para o céu numa prece silenciosa.

O recém-nascido moveu-se junto ao seu seio, uma criaturinha inocente, indefesa, necessitada de cuidados e proteção, coisas que jamais poderia lhe oferecer. O movimento débil cortou-lhe a alma, mas também a impeliu a seguir adiante.

Próxima a dar o passo final, de repente a precariedade de seu plano audacioso a atingiu com a força de um raio. E se ninguém fosse até a porta? E se um cachorro, ou um animal selvagem, alcançasse o bebê primeiro, ainda sujo de seu sangue?

Apesar da exaustão física e emocional, o medo sustentou-a, impulsionando-a a agir. Havia maiores chances de sobrevivên­cia ali do que no lugar de onde viera. Ao pisar acidentalmente numa pedra, a garota abaixou-se para apanhá-la, testando o tamanho e o peso.

Aspirando o perfume da criança uma vez mais, ela a colocou, resoluta, sobre o piso de madeira da varanda ampla, a uma distância segura da porta.

Então, sem olhar para trás, correu para o beco ermo, refugiando-se nas sombras. Ofegante, o coração a ponto de explodir, obrigou-se a manter a calma. Precisava de força, determinação, coragem, para ir até o fim. Agarrando-se a um resto de energia, mirou uma das janelas e lançou a pedra com absoluta precisão, uma precisão nascida do desespero.

O barulho de vidro estilhaçado rompeu o frágil silêncio da noite.

A garota sentiu a visão turvar e cerrou os punhos, negan­do-se a desfalecer.

Uma luz amarelada brilhou dentro da casa.

Poucos minutos se passaram, embora parecessem durar uma eternidade.

Com um ruído seco, a porta da casa se abriu. Um homem alto, empunhando um rifle, deu um passo a frente, vasculhando os arredores com olhos atentos. Depois ficou imóvel.

Cauteloso, remexeu no embrulho abandonado na varanda com o cano da arma. A garota observava a cena a distância, o corpo inteiro sacudido por tremores incontroláveis.

Ajoelhando-se, o homem gritou algo, palavras indistinguíveis, mas cheias de surpresa. Logo uma mulher aparecia ao seu lado, o robe colocado às pressas sobre a camisola.

Assim que a mulher tomou o recém-nascido nos braços, uma expressão radiante no rosto bondoso, a garota voltou a respirar. Virando-se, saiu correndo para dentro da noite, a lua pálida a única testemunha do ato que deixaria, para sempre, uma cicatriz profunda em sua alma.


CAPÍTULO I

Newton, Kansas, 1885

A locomotiva apitou urgente e longamente, arrancando os passageiros de seu estupor. Logo o trem parava com um solavanco, transformando viajantes cansados era poços de energia. Criadores de gado, vaqueiros, ho­mens de negócios, mulheres e crianças não demoraram a juntar seus pertences e se preparar para saltar do vagão.

Elianna Parrish segurou a alça de sua pequena e gasta maleta, aguardando aquela gente impaciente se mover. Não tinha nenhuma pressa. Após três dias de licença, só deveria retornar ao trabalho no Hotel Arcade na manhã do dia seguinte.

A sensação de enorme melancolia que sempre a acompa­nhava ao regressar de uma visita aos dois irmãos mais novos a envolveu como um manto claustrofóbico, quase a impedindo de respirar. Embora viajasse sempre que possível para vê-los, morria de saudade. Os Heath, donos de uma pequena fazenda nas cercanias de Florence, mal toleravam suas visitas e ainda se gabavam de gostar dos meninos.

Ellie, porém, sabia não ser assim. Durante o último ano, seus irmãos haviam sido obrigados a trabalhar como escravos, em troca de um prato de comida e de um canto no celeiro para dormir. Infelizmente suas esperanças de resgatá-los dali num futuro próximo eram tão tênues quanto a fumaça da locomotiva. Se não conseguira poupar dinheiro suficiente para alugar uma casinha, como pensar em sustentar Benjamin e Flynn?

Por quê, pelo menos uma única vez em suas vidinhas melancólicas, os garotos não podiam ter um lar decente? Ambos mereciam a chance de conhecer a segurança de um lar e de uma família antes de se tornarem adultos.

Assim como ela.

Passageiros afobados empurraram Ellie sem muita delicadeza, ansiosos para descer. Resignada, ela aguardou que todos saíssem do vagão antes de fazer o mesmo. O sol forte e o vento seco a fizeram fechar os olhos por um breve instante e segurar a saia com as mãos para que os tornozelos não ficassem expostos.

Várias pessoas ocupavam a plataforma, observando os re­cém-chegados com curiosidade e atenção. Ellie não tardou a identificar os ladrões costumeiros entre os sujeitos honestos. Procurando evitar dissabores, deu um passo atrás. De súbito um homem moreno, de estatura mediana e vestindo roupas empoeiradas, cortou-lhe a passagem.

— Veio apreciar a cidade a cidade ao entardecer, senhorita?

— Com licença — ela falou firme, ansiosa para se desvencilhar do obstáculo.

— Uma coisinha linda como você deveria ter um acompanhante.

— Eu apreciaria muito se o senhor saísse do meu caminho — devolveu altiva.

— Ah, então trata-se de uma dama decidida. — O desco­nhecido sorriu debochado. — Pois não tardará a desejar ter sido mais simpática comigo.

Esforçando-se para manter a calma, Ellie novamente deu um passo atrás, porém acabou tropeçando. Um latido esganiçado a fez perceber haver pisado na cauda de um cachorrinho. O animal, histérico, acabou pulando no colo da dona, que o segurava pela coleira. A mulher, gorducha e vestida de acordo com a última moda, perdeu o equilíbrio. Logo os três caíam da plataforma.

Aterrissando sobre o braço esquerdo dobrado, Ellie deixou escapar um grito de dor.

Meia dúzia de homens e um carregador correram até o local do pequeno acidente.

Sentando-se e abanando-se com um leque de penas, a gor­ducha aconchegou o cachorrinho junto ao peito generoso, fa­lando num tom de voz meloso:

— Meu docinho de coco, você está bem? Não se machucou? O animal respondeu lambendo o rosto da dona freneticamente.

Se o braço de Ellie não doesse tanto, ela teria rido diante da cena patética. Com muita dificuldade, conseguiu levantar-se. Um desconforto imenso a fez empalidecer.

— Você está ferida, senhorita? — um dos cavalheiros inda­gou, preocupado.

— Meu braço.

— Talvez esteja quebrado. É melhor a levarmos para o médico. Ao tentar andar, Ellie sentiu-se à beira de um desmaio.

— Fique aqui — o estranho determinou. — Vou buscar mi­nha charrete.

Ela teve forças apenas para assentir com a cabeça antes de sentar-se num banco de madeira sob o sol inclemente enquanto outras pessoas auxiliavam a senhora gorducha a subir os degraus da plataforma. Não adiantava nem olhar ao redor. Sem dúvida o sujeito que provocara toda a confusão já havia desaparecido.

O calor intenso fazia seu braço latejar ainda mais. Banhada em suor, fechou os olhos para conter lágrimas de frustração e dor.

Depois do que pareceu uma eternidade, o bom samaritano retornou e, com muito cuidado, ajudou-a a se acomodar na charrete, onde já se encontravam uma mulher e um garotinho.

A ida até a casa do dr. Thorton, todavia, revelou-se perda de tempo. Um aviso na porta mandava aqueles que, por acaso, o procurassem, voltar mais tarde.

Ninguém se espantou. Era de conhecimento geral que o velho médico preferia passar grande parte dos dias, e das noites também, no saloon, bebendo uísque e jogando pôquer.

— Vamos levá-la para o dr. Chaney, Clive.

— Você confia no jovem médico? — o cavalheiro indagou a Ellie, não muito certo sobre a sugestão da esposa.

Trabalhando no Hotel Arcade há seis meses, Ellie já ouvira toda sorte de comentários sobre o novo médico de Newton. Não somente a idade, mas também os métodos modernos de trata­mento, pareciam despertar desconfiança no povo. Segundo fofocas locais, ele tinha sido incapaz de salvar a vida da própria mulher.

— Estudar na Harvard Universidade deve ter custado uma fortuna ao homem, Clive. Com certeza lhe ensinaram a con­sertar ossos quebrados.

Algum médico era melhor do que nenhum. Aliás, qualquer médico era melhor do que um médico bêbado, Ellie pensou. A dor terrível fazia cada minuto durar um século. Não agüentaria muito mais sem atendimento adequado.

— Eu… eu concordo com sua esposa, senhor.

Minutos depois, o cavalheiro parava a charrete junto à calçada. Uma placa de madeira indicava que o consultório ficava sobre a loja da srta. Eva Kirkpatrick, costureira. Vagarosamente, Ellie subiu a escada, cerrando os dentes para não gemer de dor.

Sua cabeça pareceu ficar leve de repente, a visão obscureceu. O estranho a amparou antes que caísse no chão.

O braço latejava e a cabeça também.

Zonza, Ellie entreabriu os olhos. Entardecia. Um lampião fora colocado ao lado da cama, a luz tênue derramando-se sobre os cabelos escuros do homem mergulhado na leitura de um livro grosso.

— Olá — ele falou com um sorriso amigável, fechando o livro e pondo-o sobre a mesa. — Como está se sentindo?

— A secura de minha boca é tanta, que tenho a impressão de haver comido areia — Ellie retrucou, virando a cabeça para não enfrentar aquele olhar direto.

Ele riu, o som profundo quase a fazendo querer sorrir.

— Um copo de água fresca será bem-vindo então. Consegue sentar-se?

Antes que pudesse objetar, o médico passou um braço forte às suas costas e ajudou-a a sentar-se. A proximidade de seus corpos era tal, que Ellie pôde sentir o cheiro da goma usada na camisa branca, impecavelmente limpa, e o perfume dos cabelos escuros. Dominada por uma sensação estranha, desejou afastar-se, embora não fosse possível.

Como um membro inútil, seu braço engessado estava agora apoia­do numa tipóia. As mangas da blusa e do casaco tinham sido cortadas de maneira irremediável. Talvez não valesse a pena gastar dinheiro consertando-as. Afinal, precisava poupar cada centavo.

— Fui obrigado a cortá-las para tratar de seu braço. Percebendo haver deixado transparecer parte do que a preo­cupava, Ellie observou o resto das roupas.

— Minha saia e sapatos empoeirados sujaram o lençol.

— Não tem importância. Vamos, beba.

Somente então, ela se deu conta de onde se encontrava. O aposento pequeno comportava cama, mesa de exame, armários com remédios e aparelhagens diversas. Uma cortina, quando puxada, separava a cama do resto do ambiente. A aflição inicial, ex­perimentada ao acordar, começava a ganhar proporções enormes.

— Você estava desmaiada — o médico explicou, percebendo seu desconforto. — Não quis deixá-la na mesa pois tive receio de que, ao recobrar a consciência, acabasse perdendo o equi­líbrio e caindo. Agora beba isso.

Sedenta, Ellie tomou até a última gota de água, passando a ponta da língua nos lábios ressecados para umedecê-los. De­pois levou as mãos ao rosto, notando que a fuligem, conse­qüência das longas horas passadas no trem, fora lavada.

— Tomei a liberdade de limpar suas faces e mãos — ele esclareceu.

Bastou pensar naquele homem a tocando sem que tivesse conhecimento para enrubescer fortemente.

— Limpeza é importante para a saúde — o médico completou.

— Sim, eu sei. — Quando começara a trabalhar no restau­rante do hotel, recebera muitas informações sobre a necessi­dade do mais absoluto asseio.

— Trata-se de uma fratura simples. Clive Sanders me contou sobre o incidente na estação.

— Quem?

— O homem que a acudiu.

— Ah, sim.

— Por sorte Clive a trouxe até aqui antes que seu braço inchasse muito. De outra forma, eu seria obrigado a esperar alguns dias para engessá-lo.

— Terei que agradecer ao sr. Sanders então. Quanto tempo ficarei assim? — A perspectiva de enfrentar um período, por menor que fosse, naquele estado de semi-invalidez era assustadora.

— Engessada? Várias semanas. Mas prometo-lhe que seu braço ficará perfeito.

— Não é possível. Devo retomar meu trabalho amanhã de manhã.

— Receio que isso seja impossível.

— Oh, Deus.

— Você tem alguém a quem recorrer? Pais? Marido?

— Não.

— Onde você mora? Como voltará para casa?

— Moro no dormitório atrás do hotel.

— Farei com que chegue lá em segurança.

As refeições e o quarto de Ellie eram fornecidos como parte do salário. O que aconteceria se não pudesse trabalhar? Possuía uma pequena poupança, esse dinheiro estando reservado para prover os irmãos quando os trouxesse de Florence. Se gastasse a quantia já irrisória em hospedagem, não lhe sobraria nada.

Por um momento Ellie fechou os olhos, munindo-se de de­terminação. Não gastaria um centavo do dinheiro guardado e tampouco perderia o emprego. Os meninos dependiam dela para ter um lugar decente onde viver. Se preciso fosse, traba­lharia com um único braço.

Cautelosa, preparou-se para se levantar.

— Quanto lhe devo?

Os olhos castanhos a fitaram pensativos.

— Um dólar deverá cobrir as despesas.

— Virei acertar amanhã.

— Não tenha pressa. Você pode me pagar quando quiser.

— Amanhã mesmo.

— Está bem, senhorita…

— Parrish — ela completou desviando o olhar, o nome in­ventado para conseguir o emprego ainda soando estranho aos seus ouvidos. — Elianna Parrish.

— Clive deixou sua mala aqui, srta. Parrish. Vou carregá-la até o dormitório do hotel. Ou posso ir buscar minha charrete, se você não se acha capaz de andar.

— Posso andar. Claro que posso andar. — Porém, ao levan­tar-se da cama, suas pernas pareciam pesar uma tonelada e o braço latejava desesperadamente.

— Vou lhe prescrever algo para a dor. — O médico, repa­rando na expressão aflita da paciente, abriu o armário, retirou um frasco pequenino e o guardou no bolso da camisa branca. — Servirá para ajudá-la a dormir esta noite. Tome apenas uma colher de chá diluída num copo d'água a cada seis horas.

Ao descer a escada do consultório, Ellie apoiou-se no corrimão de madeira, orgulhosa por não gemer alto. Os quadris doíam tanto quanto o braço e outra pessoa mais frágil não teria suportado o esforço.

A figura alta, elegante e viril do dr. Chaney caminhando ao seu lado a fazia experimentar uma emoção desconcertante. Se aquele homem bonito e respeitável soubesse quem era ela de fato e de onde viera, com certeza não iria querer ser visto na sua companhia. Mas ninguém em Newton conhecia sua verdadeira identidade e pretendia manter as coisas assim.

Durante o breve trajeto até o hotel, ela fingiu ser uma jovem dama como outra qualquer em Kansas e esse homem simpático e gentil, um amigo.

Como seria ter um amigo como o dr. Chaney? Alguém que estivera na universidade, viajara bastante e se dedicava a uma profissão importante. Alguém inteligente, compassivo e de sorriso fácil.

Ao chegarem à porta do dormitório, Ellie sufocou os pensa­mentos agradáveis, sabendo-os vãos.

— Obrigada por tudo, doutor. Irei lhe pagar amanhã, depois de passar no banco.

— Posso levar sua mala para cima?

— Apenas até a sala de estar. Não é permitida a entrada de homens no dormitório feminino.

— Certo.

Chaney a seguiu por um corredor estreito até uma saleta onde várias jovens entretinham-se lendo ou jogando cartas.

— O que aconteceu ao seu braço? — Goldie Krenshaw, companheira de quarto de Ellie, perguntou, aproximando-se imediatamente.

A visão do braço engessado e a presença do médico jovem e bonito foi o suficiente para atrair a atenção de todas as moças. Logo uma pequena multidão rodeava Ellie, bombardeando-a com perguntas.

Diplomaticamente, Chaney desculpou-se e afastou-se do burburinho. Vendo-o retirar-se, Ellie foi tomada por uma esquisita sensação de perda. Ninguém, exceto a sra. Conner, uma professora de Florence, a tinha tratado de maneira tão gentil e… respeitosa.

Dos poucos cidadãos de Florence que a conheciam, metade costumava torcer o nariz à sua passagem, enquanto a outra me­tade sentia pena dela. Pois sempre preferira o escárnio à piedade.

Os murmúrios animados das companheiras fez Ellie perce­ber que o médico havia voltado. Com o coração aos pulos, fitou-o.

— Quase ia me esquecendo de lhe dar o remédio. — Chaney tirou o frasco do bolso.

— Obrigada.

— Lembre-se, a cada seis horas.

— Eu me lembrarei.

— Até logo, então.

— Até logo.

Suas colegas de trabalho, contudo, nunca lhe lançavam olha­res piedosos. Era aceita como uma igual. Como as outras, es­forçara-se muito para chegar onde estava. Ninguém passava de ajudante de cozinha à garçonete do salão principal se não demonstrasse qualidades pessoais. O Hotel Arcade empregava homens e mulheres de todo o país, adotando normas rígidas na escolha de seus funcionários. Ellie conseguira o emprego usando nome falso e apresentando referências fictícias forne­cidas por um cavalheiro de Florence, que conhecia sua mãe. Por sorte, a esposa e vizinhos desse cavalheiro desconheciam certos aspectos de sua conduta, o que o forçara a colaborar.

Goldie carregou a mala de Ellie até o quarto e ajudou-a a trocar a roupa de viagem por uma camisola de flanela. Depois que a amiga saiu, Ellie tomou o remédio que o médico lhe receitara e deitou-se. A longa viagem e o acidente na estação a tinham deixado exausta.

Com muita dificuldade, conseguiu achar uma posição que poupasse um pouco o braço engessado. Então, como sempre fazia antes de adormecer, seus pensamentos voltaram-se para Benjamin e Flynn e para a vida que teriam quando, finalmente, tornassem a se reunir. Estava disposta a qualquer coisa para dar um lar aos irmãos. Há tempos os coitadinhos não sabiam o que era viver cercados de amor e segurança. Pretendia mudar isso. Os meninos mereciam uma nova chance. Ela merecia.

Cuidara dos irmãos desde sempre. Trocara-os quando bebês, acalentara-os no meio da noite, consolara-os nos momentos de tristeza. Desenvolvera uma minúscula plantação de tabaco e vendera charutos aos freqüentadores do saloon para comprar comida e sapatos para os irmãos. Eles eram parte de sua alma e martirizava-a não poder tê-los ao seu lado.

Benjamin completara quinze anos no último inverno. Logo seria um homem. A primeira coisa que notara quando haviam se encontrado na estação de Florence, fora que o irmão estivera vestindo a calça e a camisa que lhe dera de presente. Poupar dinheiro e prover as necessidades dos meninos de certa forma atenuava o sofrimento provocado pela separação.

Depois que os assistentes sociais descobriram os três vivendo numa velha cabana abandonada, obrigaram os garotos a ir morar com os Heath. Benjamin, então com quatorze anos, tor­nara-se reservado, distante.

Ellie não tivera oportunidade de conversar com o irmão a sós na época. Talvez ele se sentisse tão indefeso quanto ela própria. Todavia Benjamin era ainda muito jovem para pro­teger Flynn, em caso de necessidade.

Aos nove anos, Flynn adorava animais, era bonito e risonho, embora quase nunca houvesse motivos para rir.

Naquela mesma manhã, quando tomara o trem na estação de Florence e se despedira dos irmãos, a tristeza apertara-lhe o coração com mão de ferro.

Porém, se quisesse sobreviver e manter a sanidade, precisava se agarrar às lembranças felizes, apesar de serem tão poucas.

Havia muitas recordações sórdidas à espreita para permitir que as agradáveis desbotassem com o tempo.

Recordações sórdidas. Recordações vergonhosas. Imagens tão terríveis, sinistras e opressivas que não se atrevia a re­lembrá-las. Somente durante o sono, quando não tinha controle sobre a própria consciência, era que elas vinham à tona.

Segredos que ninguém, a não ser Ellie, conhecia.

E desejava não conhecê-los.

— Como vai seu lindo filho, Caleb?

— Nate está ótimo, obrigado.

— É uma pena que sua esposa tenha morrido tão jovem. Uma coisinha bonita ela era. É triste pensar que o menino vai crescer sem mãe.

Caleb auscultou o coração de Mabel Connely pela terceira vez em poucos dias, tentando ignorar os pensamentos depres­sivos que aquela senhora corpulenta sempre despertava nas suas idas ao consultório. Das janelas amplas de sua casa, Mabel Connely controlava cada passo dos moradores de Newton e não perdia uma única oportunidade de se meter onde não era chamada, dando palpites e fomentando fofocas.

Ele não precisava que alguém o lembrasse de como sua situação era delicada e exigia solução rápida. Há semanas se esforçava para encontrar uma maneira de conciliar os cuidados com Nate e as exigências da profissão.

Mabel cheirava a bacon e ovos que, sem dúvida, comera no almoço. Uma combinação fatal.

— Seu coração me parece bem, sra. Connely.

— Pois garanto-lhe que não. Ele bate feito um tambor quan­do termino de pendurar a roupa lavada no varal. Sou obrigada a me sentar nos degraus da varanda até recuperar o fôlego. A escada de seu consultório, por exemplo, quase é o bastante para me levar à sepultura. — Ela tirou um leque da bolsa, o odor forte de naftalina enchendo o ar, e começou a abanar o rosto redondo e o pescoço largo. — Qualquer médico que valesse a água que bebe montaria o consultório no térreo.

Aparentando tranqüilidade, Caleb cruzou os braços e fitou a paciente. Suspeitava de que a sra. Connely só passara a procurá-lo porque não estava ouvindo o que desejava da boca do dr. Thornton. Com certeza acabaria perdendo-a depois de emitir sua opinião.

— Então a senhora acredita que a atividade física esteja sobrecarregando seu coração?

— Isso mesmo! Ontem eu comuniquei ao meu marido que irei precisar de ajuda no serviço doméstico.

— Não creio que auxílio no trabalho seja a solução.

— Por que não, homem de Deus?

— Não é o desempenho de atividades físicas o que sobrecarrega o coração e sim os quilos extras armazenados no seu corpo.

— Mas que infâmia! — Mabel abanava o leque freneticamente agora.

— A senhora terá que comer menos, perder peso. Caminhe. Abandone as tortas e os bolos de que tanto gosta.

— Minha mãe era uma mulher grande, Caleb Chaney. Per­tenço a uma família de ossatura larga.

Vermelha de indignação, Mabel Connely levantou-se da mesa de exames.

— Sua mãe não morreu jovem?

— Sim, com quarenta e nove anos. Que Deus a tenha.

— Mais um motivo para a senhora se cuidar agora, antes que seja tarde demais.

— Que idéia ridícula!

— De forma alguma. Vários fatores relativos à saúde nos são legados por nossos pais. Obesidade e coração fraco entre eles.

— Sua impertinência já ultrapassou todos os limites, meu rapaz. Tenha um bom dia.

— Volte se desejar discutir a dieta.

Bufando de raiva, Mabel abriu a porta do consultório no momento exato em que Elianna Parrish se preparava para bater. Gruindo e resmungando, a outra pôs-se a descer a escada.

— Uma paciente insatisfeita — ele explicou, fitando os olhos meigos e tristes. Não entendia por que sentia-se tentado a oferecer conforto e proteção a uma quase desconhecida.

— Oh.

Ellie fechou a porta e ficou imóvel, a saia simples, marrom, e a blusa branca evidenciando os contornos do corpo esguio.

Não percebera o quanto ela era delicada ao examiná-la no dia anterior. Sem dúvida porque a enxergara como paciente.

Hoje, contudo, estava sendo muito mais difícil vê-la apenas dessa maneira. Talvez porque a tivesse acompanhado até o lugar onde morava. Talvez porque aquela figura suave e fe­minina houvesse se infiltrado em seus sonhos durante a noite. Talvez porque a paciente anterior fora Mabel Connely.

— Como está o braço, srta. Parrish?

— Meus dedos estão inchados e escuros — ela respondeu, dando um passo a frente e estendendo a mão esquerda.

Uma fragrância deliciosa inundou as narinas de Caleb. Um perfume sutil e perturbador.

— Você consegue mexê-los? — indagou preocupado.

Embora tocasse os dedos femininos gentilmente, para exa­miná-los, ela retirou a mão depressa, lágrimas súbitas inun­dando os olhos luminosos.

— Desculpe-me. Eu a machuquei?

Negando com um aceno de cabeça, Ellie abriu a bolsa e retirou uma moeda de prata.

— Aqui está o dólar que lhe devo.

— Vou lhe dar o recibo. — Caleb guardou o dinheiro numa gaveta e escreveu algo num pedaço de papel.

— Obrigada. Obrigada também por cuidar do meu braço.

— De nada. O remédio contra a dor ajudou-a a dormir?

— Sim.

Percebendo que Ellie evitava fitá-lo a qualquer custo, Caleb não se conteve.

— Você pode me dizer o que há de errado? Alguns momentos de silêncio.

— O sr. Webb, gerente do hotel, não quer me deixar tra­balhar até que o gesso seja retirado.

— Uma atitude sensata. Você não tem condições de carregar bandejas para lá e para cá horas a fio.

— Meu patrão apenas tem medo que eu vá atrapalhar o bom andamento do serviço. Não me permite nem sequer ajudar na cozinha.

— Sinto muito. — Caleb não sabia o que mais poderia dizer.

— Poderei ficar somente duas semanas de licença médica. Depois disso, terei que pagar minhas refeições e o alojamento. Ou então encontrar outro lugar para morar.

— Ontem à noite você me disse já não ter pais vivos. Porém não existe nenhum membro de sua família a quem pedir auxílio?

— Não.

De repente a moeda de prata pesou na consciência de Caleb. Todavia não tinha dúvidas de que a ofenderia se tentasse de­volver o dinheiro.

— Conheço a maior parte das famílias de Newton e dos donos das fazendas nos arredores da cidade. Talvez possamos descobrir alguém que a possa acolher durante umas poucas semanas.

— Você acha que poderei tirar o gesso breve?

— Não. Em especial por causa da natureza de seu trabalho. É preciso tempo para o osso fraturado se solidificar.

Pela primeira vez, Ellie o fitou diretamente e a vulnerabi­lidade estampada no rosto bonito o surpreendeu. Entretanto o orgulho a mantinha ereta, de cabeça erguida.

— Não quero caridade. Se você encontrar alguém disposto a me acolher, trabalharei para essa pessoa. Faço qualquer coi­sa, executo qualquer tarefa. Basta me ensinarem.

— Estou certo que sim.

— Sou forte e meu braço logo estará melhor. Nunca fico doente e me recupero rápido.

— Não é preciso tentar me convencer, srta. Parrish. Ela corou.

Caleb queria ignorar a dor impressa nos olhos violeta, mas não se sentia capaz.

— Começarei a indagar sobre um trabalho hoje mesmo.

— Obrigada, dr. Chaney.

O som de passos rápidos subindo a escada fez Ellie sair do caminho no instante em que um rapazinho abria a porta do consultório, ofegante.

— Doutor! Tem um incêndio na casa dos Bowman! Venha depressa!


CAPÍTULO II

Caleb verificou se havia ungüentos e bandagens na maleta, pegou o chapéu e desceu a escada correndo atrás do rapaz, cuja carroça os aguardava na rua.

Robert Bowman morrera em conseqüência de uma gripe forte no último inverno. Joanna Bowman ficara sozinha na fazenda e Caleb não podia deixar de experimentar uma certa afinidade com aquela mulher de aparência frágil, pois ambos tinham perdido seus companheiros. Apenas algumas semanas atrás, fizera o parto do Joanna, que dera a luz a um menino morto. Quanto mais sofrimento poderia ela suportar?

As pessoas andavam dizendo que Joanna deveria logo ar­rumar um homem para cuidar da fazenda, ou então arranjar emprego na cidade. Ao visitá-la pela última vez, levara-lhe alguns mantimentos.

Somente quando estavam próximos à Fazenda Bowman, foi que Caleb se deu conta de não ter se despedido da srta. Parrish antes de sair voando do consultório. Só esperava que sua falta de boas maneiras fosse desculpada.

Uma fumaça escura era tudo o que sobrara da casa esturricada, o ar pesado cheirando a cinzas e fuligem. Feita de madeira velha e ressecada, a construção devia ter sido consu­mida pelo fogo em questão de minutos.

Os poucos vizinhos, atraídos pela fumaça, estavam agora reunidos ao redor de uma figura assustadoramente inerte no chão. Uma sensação de alarme inundou Caleb. Antes mesmo que o veículo parasse, ele saltou da carroça e correu para o local do acidente.

Joanna jazia inconsciente sob um cobertor, as sobrancelhas e cílios chamuscados, o rosto e as mãos vermelhos e cheios de bolhas, as roupas enegrecidas.

Caleb abaixou-se para auscultá-la, grato por ouvir as batidas do coração, embora fracas. Aparentemente as queimaduras não eram tão graves, porém o estado dos pulmões podia ser fatal.

— Quem chegou aqui primeiro? — indagou, erguendo a ca­beça por um breve instante.

— Meu marido e eu — Sylvia Quinn respondeu, a voz trêmula. — Elmer viu sinal de fumaça quando saía para arar o campo. Viemos o mais rápido possível e já a encontramos aqui fora.

— A sra. Bowman estava consciente? Tossiu muito?

— Sim. Teve um acesso de tosse horrível, a coitadinha. Como se não conseguisse respirar. Eu não sabia o que fazer para ajudá-la.

— Ela vai morrer? — uma das outras mulheres indagou, chorando baixinho.

Virando Joanna de bruços, Caleb esmurrou as costas frágeis com força até ouvi-la tossir e expectorar um muco negro. Depois colocou-a deitada no cobertor e espalhou ungüento sobre as regiões queimadas, cobrindo-as de leve com uma camada fina de gaze. Durante todo o tempo, esforçava-se para se distanciar da paciente, para não se lembrar daquele rosto desfeito pela dor no dia em que o marido morrera, ou diante do corpinho imóvel do filho recém-nascido. Envolver-se emocionalmente o impediria de manter a cabeça fria para executar seu trabalho e tomar as decisões necessárias.

— A sra. Bowman não me parece bem, sra. Douglas — ele falou afinal. — Vou levá-la para a cidade comigo. —: Era o melhor a ser feito, apesar de seu pequeno consultório pouco oferecer em termos de conforto para alguém em estado crítico.

Com a ajuda de Elmer Quinn, colocou a pobre mulher na carroça, lutando contra a apreensão crescente. E se Joanna não se recuperasse?

A preocupação era evidente nos olhos das pessoas ao seu redor, todos antigos vizinhos e amigos dos Bowman. Um a um, eles foram se afastando resignados e tomando o caminho de casa.

Durante o trajeto para a cidade, Caleb procurou proteger o rosto de Joanna do sol. Sempre quisera ser médico. Pedira para si a responsabilidade de cuidar da saúde e do bem-estar da comunidade.

Aquela mulher dependia dele e faria o melhor possível para ajudá-la a se recuperar. A questão é que nunca tivera um caso de queimaduras de terceiro grau. Tinha dúvidas de que exis­tisse um tratamento capaz de salvá-la.

Se Joanna morresse, aumentaria a desconfiança dos mora­dores de Newton quanto à sua perícia. Todavia não era um milagreiro. Contudo precisava provar a si mesmo e ao povo da cidade ser bom profissional.

Mas e se não conseguisse salvá-la?

Depois de acomodar Joanna na cama do consultório, Caleb tratou as queimaduras metodicamente, sabendo que o verdadeiro problema não era esse. A fumaça e o calor inalados tinham cau­sado danos irreversíveis aos pulmões e não havia nada a fazer.

Graças a Deus a pobre mulher continuava inconsciente, mesmo quando lhe batia nas costas para forçá-la a expelir o muco negro.

Com certeza passaria a noite ali, ao lado da paciente. Não pensara em comer, em beber, em mais coisa alguma desde que assumira os cuidados de Joanna e o ruído súbito de passos no corredor acabou trazendo-o de volta à realidade.

Quando a porta foi aberta, uma mulher elegante, de cabelos grisalhos, entrou, trazendo nos braços uma criança.

— Mãe! — Caleb exclamou surpreso, notando o pai logo atrás.

— Quando você não apareceu na fazenda para buscar Nate, ficamos preocupados.

— Sinto muito. Houve um incêndio. Joanna Bowman está aqui. Estive tratando das queimaduras e tentando deixá-la confortável.

— Oh, que coisa horrível!

Caleb tomou o filho de três meses no colo.

— Olá, rapazinho. Sentiu falta do papai?

O bebê sorriu, os olhos azuis, grandes e risonhos lembrando-o da esposa morta.

— Temos o jantar dos fazendeiros esta noite — seu pai comentou, a mão já apoiada na maçaneta da porta. — E ama­nhã iremos para Florence, visitar Patrícia. Nós o avisamos de nossos compromissos ontem.

— É verdade. E, até tudo isso acontecer, não havia problema nenhum para mim.

— Bem, é tarde demais para mudarmos de planos agora. Somente então lhe ocorreu que os pais pretendiam deixar Nate com ele.

— Esperem um minuto.

— O que foi, querido? — sua mãe indagou, virando-se.

Não, não era justo. Desde a morte de Leila, seus pais cui­davam de Nate todos os dias, permitindo-lhe ter tempo livre para estar no consultório. Sendo um casal de meia-idade, com os filhos já crescidos, não era justo privá-los de uma vida pró­pria, visitando quem quisessem, no momento que escolhessem. Não seria certo impor-lhes a responsabilidade de criar o neto.

Seus pais sonharam vê-lo à frente da fazenda, porém, tudo o que sempre quisera, fora ser capaz de curar pessoas. Esco­lhera uma profissão que exigia tempo e energia inesgotáveis e devia aceitar as conseqüências.

Patrícia, sua irmã, se oferecera para adotar Nate. Embora soubesse que o garoto precisava de mãe, ele era a única coisa que lhe restara de Leila e o amava profundamente. Jamais poderia abrir mão do filho. Daria um jeito de conciliar a carreira e a educação do menino, não importando quão difícil fosse.

— Divirtam-se — Caleb falou, esforçando-se para soar convincente.

Três horas, quatro fraldas e uma mamadeira regurgitada de­pois, ele colocou a criança adormecida sobre o catre improvisado num canto do consultório e checou Joanna. Febril e imóvel, quase parecia não respirar. Persistente, trocou os curativos e forçou um pouco de água por entre os lábios ressecados.

Assim começou a noite mais longa que Caleb já enfrentara em toda sua vida.

Na tarde do dia seguinte, Ellie subiu a escada do consultório do dr. Chaney. Passara a manhã inteira ouvindo comentários sobre o estado crítico da paciente que o jovem médico acolhera. Havia até quem fizesse apostas sobre quanto tempo a pobre mulher iria durar! Com certeza o dr. Chaney ainda não tivera oportunidade de verificar a existência de um emprego que lhe conviesse e assim achara melhor procurá-lo pessoalmente. Tal­vez ele estivesse precisando de ajuda hoje.

Após bater na porta, aguardou alguns instantes. O médico surgiu a sua frente com a barba por fazer e vestindo as mesmas roupas do dia anterior, os cabelos desalinhados acentuando a aparência de extremo cansaço.

Todavia, o que mais a surpreendeu, foi o bebê aninhado entre os braços fortes. Impossível disfarçar a curiosidade.

Durante vários segundos, Ellie limitou-se a fitar ora o médico alto e moreno, ora a criança de rostinho redondo e rosado.

— Sra. Parrish, seu braço está bom?

— Continua quebrado. Porém não piorou nada. — Ela olhou ao redor, notando que a cortina fora puxada ao redor da cama para oferecer um pouco de privacidade à enferma.

— Como está sua paciente?

— Nada bem — Caleb suspirou e passou a mão pelos cabelos escuros, o gesto simples revelando o quanto a situa­ção o angustiava.

— Sinto muito.

— Peço-lhe desculpas por sair correndo daqui ontem. Somente horas depois me dei conta de não ter me despedido de você.

— Havia outras coisas mais sérias com as quais se preocu­par. Para ser franca, não fiquei nem um pouco incomodada.

Caleb nada respondeu, sem dúvida perguntando-se a razão de sua visita.

— Vim lhe oferecer ajuda.

Será que dissera a coisa errada?, Ellie perguntou-se, per­cebendo a expressão curiosa do médico. Não tivera intenção de ofendê-lo.

— Soube de sua paciente. Como não posso trabalhar no hotel e não tenho nada para fazer, achei que talvez… — Oh, Deus, ir até ali fora uma tolice. Melhor dar a conversa por encerrada. — Desculpe-me o incômodo. Não sei o que eu estava pensando.

— Não, espere! Preciso de ajuda, sim.

O olhar de Ellie envolveu o bebê longamente. Os cabelos ralos, a boca rosada, o nariz pequenino, os olhos pesados de sono. Uma visão perturbadora.

— Esqueci de contratar alguém para cuidar de Nate enquanto meus pais estão fora da cidade. Você sabe algo sobre bebês?

Os olhos da criança se fecharam, os cílios escuros pousados sobre a pele alva, as mãozinhas relaxadas apoiadas no peito do pai. Contra a vontade, Ellie lembrou-se de outros bebês, lembrou-se de choros angustiados, de soluços contidos, da sen­sação sufocante de fazer parte de algo indescritível… do terror de se saber impotente diante do destino.

Uma onda de vergonha a engolfou com tal fúria, que ela temeu perder o controle e cair em prantos. A dor enorme que temia não conseguir manter enterrada explodiu em seu coração, roubando-lhe o fôlego.

No mesmo instante abaixou o olhar e obrigou-se a controlar as emoções. Jamais poderia permitir que alguém vislumbrasse seu fardo. Um fardo tão pesado e tenebroso que lhe roubava qualquer esperança de redenção.

— Srta. Parrish?

Tinha um objetivo na vida, era uma pessoa forte, não uma tola dada a histerismos ou ataques de arrependimento.

— Srta. Parrish?

O sobrenome "Parrish" era um lembrete contínuo de sua opção de ser quem não era.

— Por favor, me chame de Ellie.

— Ellie…

Seu nome verdadeiro naqueles lábios a fez estremecer sem que entendesse a razão.

— Você poderia cuidar de Nate durante alguns dias? Talvez algumas semanas?

Apreensiva, ela tentou imaginar aonde o médico queria che­gar com essa proposta inesperada.

— Não dormi a noite anterior. Joanna necessita de minha total atenção agora. E Nate… Bem, não posso negligenciar nenhum dos dois.

Sem saber o que dizer, Ellie apenas meneou a cabeça.

— Estou disposto a lhe pagar por seus serviços, enquanto você não puder voltar para o trabalho no hotel. Não é preciso ter muita experiência para aprender a trocar e alimentar um bebê. Se surgir alguma dificuldade, estarei pronto a ajudá-la.

Experiência? Possuía experiência suficiente para uma vida inteira. Por isso planejara não voltar a cuidar de bebês. Jamais.

— Ele não é pesado. Você dará conta com um braço só. Poderia cuidar de bebês com um braço só e ainda de olhos vendados, Ellie pensou amarga.

— Não sei, dr. Chaney.

— Eu lhe pagarei. Mais ainda do que você ganhava no Arcade. Ao trabalhar para mim até que seu braço fique bom, terá condições de voltar para o hotel depois.

Exatamente a oportunidade de que necessitava. Porém não o emprego que imaginara. Ellie cometeu o erro crucial de se permitir fitar o bebê outra vez. Tão indefeso. Tão pequenino e, ao mesmo tempo, tão exigente. O dr. Chaney não lhe faria essa proposta se a conhecesse de fato. Se conhecesse sua família. Se soubesse sobre um outro bebê, indefeso, sozinho no mundo.

Cansado, Caleb sentou-se, aconchegando o filho nos braços para fazê-lo dormir. A ternura daquele gesto tocou o coração de Ellie. Nunca ela, ou os irmãos, haviam conhecido a preo­cupação de um adulto com seu bem-estar.

— Será que estou esperando muito? E demais pedir-lhe que tome conta do filho de um estranho?

— Não — Ellie respondeu firme, ignorando o sinal de alarme interior. — Posso cuidar do bebê. Só não sei como farei para lavar as fraldas e as roupas.

— Pagarei uma outra pessoa para lavá-las.

— Oh.

— Também alugarei um quarto para você na pensão da cidade, visto não lhe ser permitido permanecer no dormitório do hotel enquanto estiver sem trabalhar. Todas as coisas de Nate estão na minha casa e mantenho uma cabra no celeiro, cujo leite é usado no preparo das mamadeiras. Você pode ficar com ele em casa durante o dia. E provável que seja obrigada a dormir lá algumas noites, até que Joanna… até que essa situação se resolva.

Ellie concordou com um aceno de cabeça, temendo estragar a boa sorte. Não apenas ficaria livre de pagar alojamento, como conseguiria juntar um dinheiro extra! Impossível recusar tal proposta. Assim, tomou a única decisão sensata em vista das circunstâncias.

— Tomarei conta do menino até que meu braço fique bom e eu possa voltar ao emprego no hotel.

Nate franziu a testa e pôs-se a sugar a mãozinha avidamente.

— Veja, ele está com fome outra vez — disse o médico levantando-se. — Vou até a pensão da sra. Ned alugar um quarto. Sei que trata-se de um lugar limpo. Você tem muitos pertences a transportar até lá?

— Não.

— Muito bem, aqui está a mamadeira. Sentindo-se despreparada para ser deixada sozinha com Nate tão cedo, Ellie levantou-se também, embora hesitante. Só esperava que a aparente irritação do bebê fosse devida à fome, não uma indicação de personalidade difícil.

Onde fora se meter, meu Deus? Nem sequer queria ter seus próprios filhos. Cuidar de uma criança desconhecida com cer­teza iria esgotá-la.

— Posso ir até o dormitório do hotel e arrumar minha ba­gagem— sugeriu.

— Você cuidará disso depois de ter alimentado Nate e eu estar de volta — Caleb retrucou prontamente. — Por que não faz uma lista daquilo que precisa? Passarei no armazém e mandarei que entreguem as compras em casa.

Nunca Ellie encontrara um homem como o dr. Chaney. Sim, ele tinha os modos educados que se espera encontrar num médico, mas não era só. O temperamento gentil e afável o tornava diferente de todos aqueles que conhecera em sua li­mitada, triste e expressiva experiência.

Por fim, ela recebeu Nate nos braços. Imediatamente o bebê se aconchegou em seu peito, as feições pequeninas transbordantes de inocência. Nada no mundo se comparava ao cheirinho delicioso de um bebê. Contra a vontade, contra tudo o que prometera a si mesma e se dissera acreditar, algo em sua alma se suavizou, o instinto materno sufocado desabrochando diante da criança que agora aninhava junto ao coração. Lágrimas súbitas vieram-lhe aos olhos e precisou conter-se para não chorar.

Piscando várias vezes, acompanhou o médico até a porta, lutando contra a sensação de pânico.

— Logo estarei de volta com a chave de seu quarto. Duvido que Joanna se mexa, ou emita sons. Dei-lhe um remédio para que descanse tão confortavelmente quanto possível.

Dr. Chaney não tardaria a regressar. Tudo o que precisava fazer até então era dar uma mamadeira ao menino. Demons­trando uma confiança muito maior do que de fato sentia, ela fitou o bebê.

Na verdade não receava ser incapaz de atender às necessi­dades de Nate. Longe disso. Nem por um instante questionara sua capacidade de se responsabilizar pelo bem-estar do garotinho. Aquela criança iria florescer sob seus cuidados. A única coisa em risco era ela própria. Talvez, se reforçasse os elos da armadura ao redor das emoções, conseguisse chegar ao fim dessa prova ilesa.

Desafiando o bom senso, Ellie abaixou o rosto e beijou a cabecinha do bebê, o perfume único despertando lembranças que julgara adormecidas, o sofrimento eterno cravando as gar­ras em sua alma.

Oh, Deus, o que havia feito?


CAPÍTULO III

Como o médico previra, o estado de Joanna Bowman permaneceu inalterado. Rodeada pelo silêncio, Ellie esquentou a mamadeira de Nate e depois de o enrolar num cobertor, alimentou-o.

Embora se tratasse do bebê mais saudável e robusto que já segurara no colo e alimentara, ele era, ainda assim, indefeso, vulnerável, completamente dependente do amor e dos cuidados de alguém. Aquela dependência absoluta a assustava, pois a fazia pensar nas coisas terríveis que testemunhara e vivenciara. Coisas que nenhuma criança deveria presenciar. Coisas que nenhum adulto deveria ver.

Impossível não comparar as bochechas redondas e o corpinho roliço de Nate com a magreza doentia de seus irmãos, quando bebês. Ressentimentos do passado outra vez tentaram vir à tona, porém tratou de esmagá-los com a autodisciplina imposta ao longo dos anos.

Nate podia ser bem alimentado e usar roupas bonitas, mas perdera a mãe.

— Sinto muito por sua mãe, garotinho — Ellie murmurou, o coração apertado. — Se a sra. Chaney estivesse viva, fico me perguntando se o teria amado. Se teria cantado canções de ninar para fazê-lo dormir?

O garoto largou o bico da mamadeira e sorriu, estendendo as mãozinhas rosadas até tocá-la no rosto.

De repente ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas.

Lembrava-se de Benjamin quando bebê… Flynn… Houvera uma irmã também. A menina nascera depois de Benjamin e costumava colocá-la para dormir ao seu lado, sobre uma pilha de trapos no chão. Um inverno muito frio e a escassez absoluta de alimentos, os fizera adoecer. A menina não tivera forças para sobreviver.

Na época, revoltara-se com toda aquela miséria, indagando-se por que Deus permitia que pessoas más tivessem filhos, quando não os desejavam e os maltratavam sistematicamente.

Recordava-se das noites intermináveis, ouvindo o estômago dos irmãos roncar de fome enquanto ela tentava ignorar a própria fraqueza provocada pela falta de comida. Ali, aconche­gada em seus braços, estava agora uma criança que jamais iria conhecer a penúria ou negligência. Invejava Nate e se regozijava por ele.

Dr. Chaney chegou afinal, esbaforido e parecendo mais can­sado do que nunca. Depois de cumprimentá-la, depositou uma chave sobre a mesa.

— Seu quarto é logo no segundo andar. Você sabe onde fica a pensão da sra. Ned?

— Não.

— Defronte ao parque, na rua Broadway.

— Não se preocupe, saberei encontrá-la.

— Precisaremos arranjar alguém para ajudá-la a levar suas coisas até lá. Como está Joanna?

— A pobre coitada não emitiu nenhum som. Permaneceu imóvel o tempo inteiro.

— E por causa dos sedativos. — Ele checou a paciente. — Fiz tudo o que era possível. Agora só nos resta aguardar. Bem, daqui a pouco estará escuro. Suponho que devamos pensar em jantar.

— Dr. Chaney…

— Caleb, por favor.

Ellie levantou-se com o bebê no colo e aproximou-se da cama onde jazia Joanna, assustadoramente pálida e silenciosa.

— Por que não vou na frente e levo Nate para casa? Posso tomar conta do menino até você se sentir tranqüilo o suficiente para deixar a paciente sozinha. Será uma coisa a menos a preo­cupá-lo. Prometo-lhe que seu filho estará em segurança comigo.

Percebendo como o médico a observava, o vinco na testa in­dicando profunda concentração, Ellie experimentou uma pontada de medo. Teria o dr. Chaney mudado de idéia a seu respeito?

— Você já comeu? — ele indagou de súbito.

As palavras inesperadas a surpreenderam. Não era possível que alguém, já tão cheio de problemas, se preocupasse com seu bem-estar.

— Posso comer algo no caminho e pedir que lhe tragam o jantar aqui.

— Obrigado. Seria um alívio para mim não ter que pensar em nada a não ser nos cuidados com minha paciente. Não sei quando poderei voltar para casa. Dependerá das condições de Joanna. Contudo, o que você necessitar comprar, bastará passar no armazém, onde tenho conta. Um rapaz faz entrega de gelo toda manhã e a despensa está cheia. — Caleb fez uma pausa e fitou o filho, pensativo. — A propósito, você sabe ordenhar cabra?

— Darei um jeito. — Já ordenhara vacas e cabras na calada da noite, roubando leite para alimentar os irmãos.

Ele tirou uma chave do bolso e a uniu à outra, que deixara sobre a mesa, amarrando-as com uma tirinha de couro.

— Suba a rua Principal até a esquina com a Sétima. Minha casa é a terceira à esquerda. A sra. McKinley é uma vizinha antiga e a ajudará no que for preciso.

Ao lhe entregar as chaves, os dedos do médico roçaram a palma de sua mão, fazendo-a estremecer e afastar-se.

— Obrigado, Ellie.

— De nada — ela murmurou desconfortável, abaixando o olhar. Depois de lhe entregar uma sacola com as coisas do filho,

Caleb segurou Nate no colo, abraçou-o e beijou-o.

A visão daquele homem alto e forte, acariciando o bebê com tamanha ternura, perturbou-a profundamente, sem que Ellie soubesse bem por quê. Nunca vira homem algum demonstrar afeição por uma criança antes. E na sua triste experiência, o único tratamento que recebera dos representantes do sexo masculino variara sempre entre a indiferença e a crueldade.

Ao erguer a cabeça e fitar Caleb, ela sentiu-se corar, o co­ração batendo descompassado. Tomando o garotinho nos bra­ços, virou-se depressa e saiu quase correndo.

Uma onda de alívio a inundou ao chegar à rua. Seu plano de fugir da presença do médico dera resultado. Durante meses, trabalhara sob as ordens do gerente do hotel e também ao lado de vários ajudantes de cozinha, todavia nunca se sentira fisicamente próxima de nenhum deles e tampouco fora obrigada a suportá-los sem que houvesse outras mulheres por perto.

— Vamos encomendar o jantar de seu pai e então encontrar sua casa — ela falou para Nate, apressando o passo.

Depois de passar no Arcade e pedir que uma refeição subs­tanciosa fosse entregue no consultório do dr. Chaney, Ellie seguiu adiante.

A terceira casa na rua Sétima era uma bela construção de dois andares, janelas e portas pintadas de verde claro e paredes muito brancas. Rosas vermelhas e perfumadas enfeitavam os jardins bem cuidados. Será que aquela casa enorme realmente pertencia ao jovem médico?

Devagar, subiu os degraus da varanda, nenhum detalhe es­capando ao seu olhar atento. Ao colocar a chave na fechadura, a porta se abriu silenciosamente, um odor delicioso de cera e especiarias dando-lhe boas-vindas.

Hesitante, Ellie parou no vestíbulo, sentindo-se deslocada. Nunca estivera numa casa tão elegante e grandiosa. Tinha a impressão de que acabara de entrar num castelo.

Sobre uma escrivaninha, num canto à direita, havia meia dúzia de envelopes endereçados ao dr. Chaney. Portanto, estava no lugar certo.

Encantada, arriscou mais alguns passos, descobrindo um cômodo espaçoso e arejado cujas paredes estavam repletas de livros distribuídos numa infinidade de prateleiras. Já visitara uma biblioteca pública em Florence, porém nunca lhe passara pela cabeça que alguém pudesse possuir tantos livros.

Talvez, depois de realizar suas tarefas domésticas, o dr. Chaney lhe desse permissão de ler alguns daqueles livros maravilhosos.

Na cozinha, ela encantou-se com o fogão de ferro. Todavia o que mais a deslumbrou foi a bomba de água sobre a pia. A única bomba de água que já vira no interior de uma construção fora no hotel. Que luxo! Caleb Chaney devia ser muito rico!

Um armário pesado, com dobradiças de ferro, foi a próxima coisa a lhe chamar a atenção. Ao abri-lo, um ar frio bafejou-lhe as faces. Nas diversas prateleiras, encontrou um pequeno su­primento de leite e manteiga incrivelmente frescos. Impressio­nada, tornou a fechar a porta.

Ainda com Nate no colo, inspecionou a despensa farta antes de subir a escada que conduzia ao pavimento superior.

Não foi difícil descobrir o quarto de Caleb. Apenas uma cama por fazer, mesinha-de-cabeceira, cômoda, armário e ta­pete grosso cobrindo o chão. Num canto, o berço do filho.

— Por Deus, Nate, você deve dormir como um príncipe — Ellie murmurou, reparando na madeira entalhada do berço e nos lençóis delicadamente bordados. Colocando a criança sobre o colchão macio, esticou as costas e os braços doloridos. — Acho melhor encontrar roupas secas para trocá-lo.

Bastou uma vistoria rápida nas gavetas da cômoda para achar uma infinidade de roupinhas cheirosas e bem passadas.

— Você também se veste como um príncipe. Príncipe Nate. Seu nome é Nathan? Nathaniel? Aposto que é Nathaniel.

Trocar a fralda molhada e as roupas do bebê com uma única mão não foi lá assim tão fácil, mas deu conta do recado. En­tretanto, sentiu-se grata quando o menininho adormeceu. Pôde aproveitar o tempo livre para explorar o resto da casa e lavar a louça empilhada na pia da cozinha. Ao terminar de arrumar tudo, Nate já estava acordado e chorando de fome.

Depois de alimentá-lo, Ellie rumou para a varanda e sen­tou-se numa cadeira de balanço, com o bebê no colo. Era de­licioso aspirar o perfume das flores e ouvir o canto dos pássaros naquele final de tarde.

No Arcade, as moças deveriam estar terminando de arrumar as mesas para o jantar sob o olhar crítico do gerente enquanto o movimento na cozinha ia entrando num ritmo frenético. No dia anterior, quebrar o braço fora a pior coisa que poderia ter lhe acontecido. Naquele momento, o incidente lhe parecia uma bênção. De outra forma, quando teria condições de descansar e aproveitar o ar da noite?

Talvez a situação não fosse tão terrível quanto imaginara a princípio. Desde que mantivesse distância do homem que a empregara, tudo acabaria bem. Ela e Nate iriam se entender perfeitamente.

Mais cansado e desencorajado do que jamais estivera, Caleb resolveu os últimos detalhes com o agente funerário que viera buscar o corpo de Joanna.

Três dias. E durante esse tempo realmente não alimentara nenhuma esperança. No fundo do coração, sempre soubera que médico algum poderia salvá-la devido ao estado precário dos pulmões. Entretanto temera a morte de Joanna. Não apenas por causa do desperdício de uma vida, mas também porque receava a reação do povo da cidade.

Dr. Chaney perdera outra paciente.

Já sozinho no consultório, desinfetou todos os instrumentos, limpou a mesa de exames, trocou os lençóis da cama e carregou a pilha de roupa suja até a lavanderia.

Exausto, rumou para casa, experimentando um misto de arrependimento e frustração. Os médicos não podiam salvar todos os pacientes. Pessoas morriam, era um fato da vida. Não fora o modo como a tratara que acabara por matá-la. Pelo contrário. Conseguira suavizar o sofrimento intenso de uma enferma sem chances de recuperação. Entretanto a certeza de que agira de maneira correta não lhe trazia conforto.

Como se não bastasse o peso da morte de Joanna na cons­ciência, ainda se sentia culpado por haver negligenciado o filho. Há três dias não via Nate.

Ao se aproximar de casa, Caleb notou que a varanda fora lavada recentemente. Da porta entreaberta, emanava um chei­ro apetitoso de pão fresco. No mesmo instante seu estômago roncou de fome.

Uma sensação estranha o envolveu. Durante meses voltara para aquela casa vazia após um longo dia de trabalho. Pela primeira vez, em muito tempo, tinha a impressão de que re­tornava ao lar, não a uma construção desabitada.

Ao entrar no vestíbulo, escutou sons vindos da cozinha.

— Olá — ele falou, parando na soleira da porta.

— Dr. Chaney! — Ellie exclamou surpresa, virando-se para fitá-lo.

Nate estava sentado no cadeirão e Ellie, em cima de um banco, ocupava-se em limpar as prateleiras superiores do armário.

Ao ver o pai, o bebê sorriu e bateu as mãozinhas no prato de madeira.

No mesmo instante Caleb o tomou nos braços, beijando-o nos cabelos e aspirando o perfume do corpinho saudável, la­mentando o tempo que haviam ficado separados. Pela milésima vez, a idéia de que o filho crescia, dia após dia, sem mãe o atormentou ferozmente.

— Sua paciente? — Ellie indagou, descendo do banco devagar.

— Morreu esta tarde — ele respondeu baixinho. Logo toda a cidade iria saber.

— Sinto muito.

— Sim. Eu também.

— Fiz uma receita de pães. Temos presunto.

— Parece-me ótimo. — Caleb tornou a beijar o filho antes de colocá-lo de volta no cadeirão. Depois, retirou o presunto do armário.

— Deixe-me ajudá-lo — ela se ofereceu, levando o pão até a mesa.

— Qual de nós dois tem um par de braços em bom estado? Ellie afastou-se, porém continuou observando-o servir-se.

Era estranho tê-la ali, na sua casa, na sua cozinha. Todavia tratava-se de uma presença confortadora, em especial porque se sentia exausto e Nate não ficaria sozinho enquanto descan­sasse. O menino dava a impressão de estar bem alimentado e feliz. Sem dúvida a srta. Parrish vinha se saindo bem no desempenho da tarefa para a qual a contratara.

— Você teve algum problema nesses últimos dias? — Caleb perguntou, dando uma mordida no sanduíche que acabara de preparar.

— De fato, não.

— E conseguiu ordenhar a cabra com uma só mão?

— Sim.

Aquela combinação de força e vulnerabilidade o intrigava. Devia ter sido duro trabalhar com um braço engessado.

— A casa parece mais limpa do que dias atrás. Mas a exe­cução de tarefas domésticas não faz parte de nosso trato.

— Nate é uma criança fácil de lidar. Tive mais tempo livre do que estou acostumada.

— Há quanto tempo você está no Arcade?

— Alguns meses.

— E o que fazia antes disso?

— Eu… ah, trabalhava em Florence.

— Fazendo o quê?

— As mesmas coisas que faço agora.

Será que ela trabalhara num hotel em Florence?, Caleb se perguntou, preparando um segundo sanduíche.

— Você gostaria de tomar um banho?

Então suas roupas amarrotadas e aparência malcuidada não tinham passado despercebidas ao olhar penetrante de Ellie. Devia estar causando uma péssima impressão.

— Seria maravilhoso. Imediatamente ela pôs-se a bombear água.

— Você não pode fazer isso — Caleb argumentou levantando-se.

— Posso sim, é só ter cuidado para não forçar o braço engessado. Percebendo a determinação na voz feminina, ele tornou a sentar-se enquanto Ellie colocava a água para esquentar. À medida que os baldes iam se enchendo, Caleb os levava até uma pequena varanda fechada, nos fundos da casa, onde ficava a banheira de metal.

— Acho que já tenho água suficiente, obrigado.

— Vou dar um passeio com Nate enquanto você toma seu banho.

Evitando aproximar-se do médico, Ellie tirou o avental, apa­nhou o bebê no colo e saiu depressa.

Sozinho, Caleb muniu-se de toalha e sabonete, despiu-se e mergulhou o corpo exausto na água tépida, tentando se con­centrar apenas em relaxar os músculos sem pensar nos acon­tecimentos dos dias recentes. Fizera o melhor possível para salvar a vida de Joanna e teria que se contentar com isso. Não havia nada mais que ele, ou outro médico qualquer, pu­desse ter feito. Pena que dar o melhor de si não fora o bastante.

Empurrando o belo carrinho de bebê sob os últimos raios de sol daquela tarde prazerosa, Ellie não cessava de se recri­minar pela falta de perspicácia. Nunca lhe passara pela cabeça que o médico não teria oportunidade de deixar o consultório para alimentar-se, ou descansar. Não considerara essa possibilidade e agora se arrependia de não haver agido com um mínimo de bom senso. Deveria ter ordenado que alguém do hotel levasse as refeições do dr. Chaney regularmente. Deveria ter pensando em lhe mandar roupas limpas.

Nate adormeceu no carrinho e ao sentir a brisa se tornando mais fria, Ellie decidiu fazer o caminho de volta. A casa estava silenciosa.

O médico, com certeza, fora deitar-se, vencido pela exaustão. Logo na sua primeira noite ali dentro, Ellie tomara a liberdade de transportar o berço do bebê para seu próprio quarto. Portanto Caleb Chaney poderia dormir tranqüilo, sem ser incomodado.

Inicialmente, trataria de esvaziar a banheira. Já fizera isso algumas vezes, depois de se banhar, e se sabia capaz de ma­nejar os baldes cheios com uma única mão. Deixando o carrinho no vestíbulo, onde Nate continuava dormindo a sono solto, voou para a varanda.

A visão inesperada quase a fez perder o fôlego. O médico adormecera na banheira, os cabelos escuros molhados e revol­tos, o peito e os ombros nus acima do nível da água.

Vermelha como um pimentão, correu para a cozinha e encos­tou-se na parede para recuperar o equilíbrio, o coração disparado. Zonza, respirou fundo, considerando qual atitude tomar.

Não podia deixá-lo ali, imerso na água agora gelada, ex­pondo-se ao perigo de contrair uma gripe. Também não con­seguiria enfrentar o resto da noite, e executar suas tarefas, sabendo haver um homem nu na banheira. Precisava fazer algo, disso não tinha dúvida. Mas o quê?

— Dr. Chaney? — chamou baixinho, a voz presa na garganta. Nenhuma resposta. — Dr. Chaney? — insistiu mais alto.

— Hum? Que foi? — Caleb murmurou sonolento.

— Senhor, acho melhor sair da banheira e se secar. Está ficando tarde.

Ao ouvir ruídos de um corpo se erguendo e água caindo para fora da banheira, Ellie, dominada por um calor estranho e inexplicável, disparou para o vestíbulo, apanhou o carrinho de Nate e se fechou dentro da biblioteca.

Por Deus! Surpreendera o médico no banho! Será que ele acabaria desconfiando do fato? Como teria coragem de encará-lo outra vez, como se nada tivesse acontecido?

Esforçando-se para sufocar o pânico e desviar o rumo dos pen­samentos, Ellie olhou ao redor, reparando nas prateleiras repletas de livros. Ainda não tivera chance de ler um único exemplar.

Apanhando um volume ao acaso, sentou-se no sofá, deter­minada a entregar-se à leitura até conseguir se recompor.

Entretanto, logo na primeira página, deparou-se com o de­senho do peito e dos braços musculosos de um homem nu. Embora houvesse legenda, sentia-se incapaz de fixar a atenção nas palavras, pois a figura parecia representar o corpo de Caleb Chaney, a pele bronzeada cobrindo músculos bem torneados.

Aflita, fechou o livro, só então reparando no título: Anatomia Humana.

Às pressas, devolveu o volume à prateleira, a imagem mas­culina, porém, para sempre impressa em sua mente. Cobrindo o rosto com as mãos, fechou os olhos por um instante, como se para apagar a visão perturbadora. Concentração, impôs a si mesma.

Desta vez, fez questão de examinar os títulos cuidadosa­mente antes de escolher um livro que lhe parecesse inofensivo o bastante. Ajeitando-se no sofá, iniciou a leitura.

Não havia figuras e a história girava em torno de um homem que empreendera uma viagem de navio pelo mundo. Após al­gum tempo, como já estava escuro, Ellie acendeu o lampião e continuou a ler, absorvida pela narrativa vivida e envolvente. Somente horas depois se deu conta de que era noite fechada.

O médico já esvaziara a banheira e não se encontrava nas imediações da cozinha. Com certeza fora deitar-se. Procurando não pensar em nada que dissesse respeito a Caleb Chaney, ela alimentou Nate, trocou-o e colocou-o no berço. Então vestiu a camisola.

Como não havia chave na porta, agiu da mesma forma que nas noites anteriores, apoiando uma cadeira sob a maçaneta para imobilizá-la.

Então deitou-se e puxou os lençóis até o pescoço. Uma cama. Lençóis. Refeições regulares. Água, sabão e livros. Tantas coi­sas que jamais tivera como garantidas. Sem dúvida compen­savam a ansiedade provocada pela presença de um homem sob, o mesmo teto. Não era verdade?

Pelo menos só teria que agüentar essa noite dividindo o espaço com o médico. A partir de amanhã, passaria a dormir no quarto da pensão. Tudo estava sob controle. Além do mais, não havia nada a temer. Caleb Chaney a contratara para cuidar de Nate e não representava nenhuma ameaça.

O bebê acordou durante a madrugada, como nos dias anterio­res. Ellie o levou para a cozinha e o deitou sobre o tapete espesso enquanto acendia o lampião e colocava leite para esquentar.

— Sinto muito — murmurou baixinho, vendo Nate resmun­gar irritado. — Prometo que irei pegá-lo no colo assim que a mamadeira estiver pronta.

— Eu o seguro.

O coração dela veio à boca, tamanho o susto. Virando-se, deu de cara com o patrão.

— Desculpe-me. Não era minha intenção assustá-la. Vestindo um roupão azul-marinho, que lhe chegava até os pés, Caleb tomou o filho nos braços e sentou-se à mesa.

— Vamos, continue. Prepare a mamadeira enquanto eu man­tenho Nate sossegado.

Com dedos trêmulos, Ellie terminou a tarefa, consciente de que olhos penetrantes seguiam cada um de seus movimentos.

— Você quer que eu o segure agora? — indagou num fio de voz, evitando fitar a figura alta e intensamente viril.

— Não. Eu mesmo o alimentarei. Você pode voltar para cama.

— Mas o berço está no meu quarto.

— Nate dormirá comigo o resto da noite.

Ellie caminhava até a porta, esforçando-se para aparentar calma, quando Caleb falou:

— Obrigado. E não apenas por hoje, mas por todos os dias desde o incêndio.

— Eu… eu não fiz muita coisa.

— Você me deu paz de espírito no que se refere ao meu filho. E isso representa muito para mim.

— Bem… — O que devia dizer agora? Não se lembrava quando fora a última vez que alguém a agradecera. — De nada — res­pondeu afinal, tendo a impressão de que era ela quem deveria agradecer. Estivera à beira de enfrentar, novamente, a fome e o despejo quando Caleb lhe oferecera uma solução.

— Amanhã conversaremos — ele emendou com um sorriso. Oh, céus, conversariam sobre o quê?, Ellie se perguntou subindo a escada correndo e se fechando no quarto. Nervosa, apoiou a cadeira sob a maçaneta e sentou-se na beirada da cama. Ao olhar o berço vazio, descobriu estar sentindo falta de Nate.

Durante vários minutos, tentou se lembrar quantos anos tinha exatamente. Sem dúvida já possuía idade o bastante para conduzir a própria vida e manter uma conversa civilizada com um homem. Não era mais a criança indefesa de antes. Não era uma menina sem meios de se defender.

Era adulta. E como adulta, podia trabalhar, prover suas necessidades e fazer as escolhas que lhe conviessem. Aliás, fizera muitas escolhas nos últimos anos. Escolhera não se dei­xar escravizar por homem algum. Decidira não trazer mais nenhuma criança a esse mundo marcado pela crueldade. Resolvera ganhar a vida com dignidade e honestidade, encon­trando meios de providenciar um lar para os irmãos. Deter­minara tudo isso tempos atrás e nada, nem ninguém, a faria alterar a rota que traçara para si.

Se o destino a obrigara a tomar um atalho, por causa do braço quebrado, era sua obrigação transformar o imprevisto em vantagem.

Dr. Chaney estava lhe pagando um salário muito superior ao que costumava receber no Arcade. E tratava-se de um tra­balho infinitamente mais fácil. Além de tudo, não precisava dividir o quarto com ninguém.

Com certeza iria poupar grande parte de seus ganhos, o que a aproximaria da realização do sonho antigo, o de oferecer um lar decente aos irmãos.

O que não podia se permitir era agir de maneira impulsiva, confiando naquele homem gentil e respondendo a quaisquer perguntas inocentes sobre seu passado. Seria muito fácil passar a sentir-se confortável ali, a deixar que a semente da esperança brotasse dentro da alma. Na verdade, sua única esperança de um futuro melhor consistia em manter os segredos bem guardados e cuidar para que as barreiras erguidas ao redor do coração jamais fossem transpostas.

Seu futuro, e o de seus irmãos, dependia disso.


CAPÍTULO IV

Ellie acordou de repente. Raios de sol atravessavam a cortina de renda e se derramavam sobre a cama, inundando-a de luz. Inquieta, levantou-se rapidamente e certificou-se de que a cadeira continuava sob a ma­çaneta antes de lavar-se com a água morna do jarro. Precisava enfrentar seu patrão naquela manhã, depois de tê-lo visto no banho na noite anterior.

Esforçando-se para conter o nervosismo, vestiu uma saia azul-marinho, blusa branca e então as botas de couro preto. Gostava de admirar o brilho do couro. Agradava-a pensar que, enfim, usava um par de calçados que não pertencera a ninguém antes. Graças ao trabalho no hotel, pudera comprar roupas das quais não se envergonhava.

Até os treze anos, usara uma espécie de macacão de algodão sob os vestidos rotos. Quando o macacão ficara pequeno demais, sua mãe, com imensa má vontade, lhe cedera uma anágua e uma túnica.

Às vezes as senhoras encarregadas dos serviços sociais da igreja distribuíam roupas velhas, porém ninguém parecia se lembrar de meias. Assim, usara meias masculinas quase que a vida inteira.

Tivera um vestido novinho certa vez, todavia não podia se lembrar disso sem que os pesadelos voltassem a atormentá-la.

Com dificuldade, por causa do gesso, Ellie conseguiu amarrar o cadarço das botas, odiando-se por permitir que lembranças amargas a afetassem quando já havia perdido a hora. Não valia a pena remoer o passado.

Diante do espelho, prendeu os cabelos num coque severo, ob­servando a imagem refletida de uma jovem mulher. A nova Ellie.

Uma impostora.

A verdadeira Ellie, porém, continuava a existir. Ainda tão assustada e solitária quanto antes. Mas sem aquela fragilidade extrema. Não tornaria a ser frágil jamais.

Depois de tirar a cadeira de sob a maçaneta, ela desceu a escada, um cheiro delicioso de café fresco emanando da cozinha.

Caleb estava sentado à mesa, um prato e uma xícara vazios à sua frente.

— Bom dia, Ellie.

Nate parecia feliz no cadeirão, o rostinho quase todo lam­buzado de mel.

— Bom dia.

— Meu filho e eu já comemos. Há bolinhos no forno, além de panquecas. Por favor, sirva-se.

Ela corou. A conversa soava tão normal. Será possível que aquele homem ainda não se dera conta de que fora visto na banheira, inteiramente nu? Procurando manter o clima de nor­malidade, Ellie sentou-se à mesa, fitando-o de soslaio. Poderia esquecer o que vira. Sempre fora boa em apagar lembranças.

A campainha soou, o som musical e desconhecido assustan­do-a. Apreensiva, colocou o garfo de lado, sem saber como agir.

— Eu irei atender — Caleb a informou, levantando-se. Atender o quê?, ela se perguntou, observando-o sair da co­zinha apressado e se dirigir ao vestíbulo.

Segundos depois retornava, acompanhado de um casal distinto.

Um homem alto, de cabelos grisalhos, precedia a mulher elegantemente vestida e bonita em plena maturidade.

Esforçando-se para mostrar-se serena, Ellie cruzou as mãos sobre o colo.

O casal permaneceu em silêncio, estudando-a sem disfarçar a curiosidade. Embora soubesse estar usando roupas de boa qualidade e ter uma aparência cuidada, ela não pôde evitar a sensação de vergonha e a certeza de que sua presença era inconveniente. Esses sentimentos antigos, ainda tão fortes, nunca se mantinham muito longe da superfície.

— Ellie, estes são meus pais. Mãe, pai, esta é Ellie Parrish, a nova babá de Nate.

— Prazer em conhecê-los — ela retrucou, ficando de pé e sentindo-se totalmente deslocada.

— Então você encontrou alguém para tomar conta de Nate? — a sra. Chaney indagou ao filho, examinando Ellie de alto a baixo. — Estranhei quando não o vi aparecer na fazenda por mais de uma semana.

— Eu estava ocupado com minha paciente, mãe. Lembra-se de Joanna Bowman? Vítima de um incêndio?

— Sim. Ouvimos dizer que a pobre coitada morreu — o ca­valheiro comentou, lançando um olhar compassivo para Caleb.

A senhora altiva acercou-se da cadeira onde estava o neto.

— Olá, querido. Você sentiu falta da vovó? Meu Deus, o que é isso na cabeça do menino?

— Apenas um pouquinho de mel, mãe.

Ellie correu em busca de um pano com o qual limpar os cabelos da criança, mas a sra. Chaney a precedeu.

— Eu mesma farei isso.

Parecia-lhe óbvio que aquela mulher a julgava incapaz de cuidar do neto. Ou talvez indigna.

— Srta. Parrish, ainda não a vi tocar em seu café da manhã — Caleb observou, tratando-a de maneira mais formal diante dos pais. — Por favor, sente-se e coma.

Mantendo o olhar abaixado, ela retomou seu lugar à mesa e apanhou o garfo.

O médico serviu café aos pais enquanto os três conversavam sobre Nate e sobre o tempo.

— De onde você é, srta. Parrish? — a mãe de Caleb final­mente perguntou.

— Eu trabalhava no Hotel Arcade até recentemente, quando quebrei o braço — Ellie respondeu, levando uma garfada à boca.

— Entendo. — Todavia o tom de voz revelava o contrário.

— Seus pais moram nas redondezas?

A panqueca tinha o gosto de terra. Com dificuldade, conse­guiu engolir.

— Não. Meus pais já não estão vivos.

Pelo menos agora dizia a verdade. Sua mãe morrera há algum tempo e seu pai talvez já estivesse morto também. De qualquer forma não fazia a menor diferença, pois nunca che­gara a conhecê-lo. Se ele se parecesse com o pai de Benjamin, ou de Flynn, ou com qualquer outro dos visitantes noturnos de sua mãe, sentia-se feliz por jamais tê-lo visto.

— Oh, sinto muito. — Apesar de considerar a resposta in­satisfatória, a sra. Chaney era polida demais para insistir no assunto. Assim, concentrou as atenções no neto enquanto o marido e o filho conversavam.

Quando teve certeza de que não estava sendo observada, Ellie estudou o casal. A sra. Chaney riu de algo que o marido disse e tocou-o no braço, num gesto familiar. Ele sorriu e a envolveu num olhar que Ellie não soube como interpretar.

Bem que reparara vários casais, no restaurante do Arcade, tocando-se daquele jeito. Sempre se perguntara se não se tra­tava de algo superficial, se na privacidade de seus lares eles não brigavam e praguejavam. E se por acaso o sr. Chaney discordava de uma opinião da esposa, ela não parecia ter medo. Limitava-se a rir e cutucá-lo no peito. Ele era um homem grande. Tão alto e encorpado quanto o filho. Perfeitamente capaz de subjugar qualquer mulher e machucá-la.

Ellie sentiu o ar fugir-lhe dos pulmões e obrigou-se a respirar devagar.

O pai de Caleb não dava a impressão de estar zangado. De fato, fitava a esposa com tanto carinho que era impossível não perceber o afeto que os ligava.

Atordoada, Ellie abaixou os olhos e tentou ordenar os pensa­mentos. Sempre tivera o hábito de manter os sentimentos neutros. Melhor assim, se pretendia sobreviver num mundo hostil.

— Você virá jantar conosco hoje, filho? — a sra. Chaney indagou. — A srta. Parrish poderia vir também.

— Oh, não, não, eu… — Ellie hesitou aflita, dando graças aos céus quando Caleb veio em seu auxílio.

— Na verdade a srta. Parrish precisa se instalar na pensão.

— Então, no domingo. Não há desculpa para não irem al­moçar na fazenda no próximo domingo.

— Claro, mãe. O que eu faria num domingo se não fosse visitá-los? Você me acompanhará, srta. Parrish. Sem dúvida vai adorar. Minha mãe tem uma ótima cozinheira.

Céus, aquela mulher empregava uma cozinheira?

— Combinado, filho. Estaremos esperando-os.

Antes de sair da cozinha, o sr. Chaney despediu-se educa­damente de Ellie com um aceno de cabeça. Caleb levou os pais até a porta, deixando-a sós.

O que iria fazer, meu Deus? Não tinha a menor idéia de como se comportar na casa de alguém. Um de seus vestidos de trabalho seria adequado?

— Vocês dois tenham um bom dia — Caleb falou, retornando à cozinha para beijar o filho antes de sair para o consultório. — Estarei de volta às cinco horas, a menos que surja uma emergência.

Ellie concordou em silêncio, observando-o afastar-se.

Como estava na hora do banho de Nate, esquentou água e encheu uma bacia esmaltada, apreciando a felicidade do menininho que não se cansava de bater as mãos e os pés. Seus pen­samentos, contudo, permaneciam fixos no bendito almoço. Depois de colocar o bebê no berço, para o cochilo habitual, lembrou-se subitamente de um livro de culinária que lhe fora doado por uma das senhoras pertencentes à igreja episcopal de Florence. Recor­dava-se da existência de um capítulo sobre boas maneiras.

Sim, muitas vezes ficara encarregada de pôr as mesas no Arcade, porém jamais fizera qualquer refeição no salão desti­nado aos hóspedes. Será que os Chaney costumavam dobrar os guardanapos da mesma forma elaborada que a tinham en­sinado no hotel?

Com o livro nas mãos, Ellie acomodou-se na cozinha e o abriu no capítulo desejado:

"Nada é mais deplorável do que desconhecer as regras de etiqueta à mesa."

Oh, claro que aquela gente rica iria perceber sua falta de traquejo. Não queria, não teria coragem de comparecer ao almoço!

"Princípios fundamentados nos bons costumes abran­gem cada detalhe e aqueles acostumados a freqüentar a sociedade provavelmente nem percebem que estão se adequando a um padrão especial, imitando, inconscien­temente, as pessoas com quem se associam."

Ela podia fazer isso. Podia imitar aqueles ao seu redor.

"A mesa é a pedra fundamental das boas maneiras, onde qualquer erro é um crime. Em almoços ou jantares em que haja convidados, os cavalheiros devem ajudar as damas a sentarem-se antes de tomar seus próprios lugares."

Havia visto os homens no Arcade agirem assim com as esposas.

"Quando sentados, o corpo deve permanecer a uns trinta centímetros da mesa."

Ellie sentou-se ereta na cadeira e ajustou o corpo nessa medida.

"O guardanapo então é desdobrado, porém não inteiramente, e colocado sobre o colo. Mesmo vestindo uma roupa muito ele­gante, não há desculpa para que a pessoa amarre o guardanapo ao redor do pescoço."

Iria lhe fazer bem aprender tudo isso. Poderia ensinar Benjamin e Flynn quando finalmente morassem juntos.

Durante todo o dia, ela aproveitou cada momento livre para ler, memorizar e praticar a rotina de uma refeição imaginária à mesa. Também vasculhou a biblioteca de Caleb em busca de um livro de etiqueta, mas nada encontrou. Rindo, pergun­tou-se por que um médico rico e educado iria precisar de algo assim? Talvez levasse Nate para um passeio até a biblioteca pública no dia seguinte.

Caleb chegou em casa na hora combinada. Ellie, seguindo as instruções contidas no livro de receitas, lhe havia preparado um jantar leve, a base de frango e legumes.

Ele notou a mesa posta.

— Eu não a contratei para cozinhar para mim, srta. Parrish. Não espero uma refeição pronta sempre que chegar em casa.

— Estou aqui. Há comida na despensa. Não me deu tra­balho algum.

— Você gosta de cozinhar?

Nunca pensara a respeito. Sempre fora obrigada a lutar para conseguir cada migalha a ser consumida por ela e os irmãos. Cozinhar, portanto, havia sido apenas o ato de transformar sobras em algo comestível. Uma questão de simples sobrevivência.

Ali, cozinhar era… agradável.

— Sim, gosto — respondeu afinal.

— Sorte minha. Sorte maior ainda porque você é boa no que faz.

Corando, ela o serviu e permaneceu de pé, ao lado da mesa.

— Não vai jantar comigo?

— Comi mais cedo. — E era verdade. De fato, ficara en­cantada ao saborear a comida que fora capaz de aprontar usan­do ingredientes fartos e de primeira qualidade.

— Não é preciso fazer as refeições sozinha, como se fosse uma empregada.

— Sou uma empregada.

— Mas aqui estamos só nós dois. Poderíamos muito bem fazer as refeições juntos.

— Se é o que você quer.

— Sim, é.

— Se me der licença agora, vou arrumar minhas coisas.

— Deixe-as na varanda. Pedi ao filho dos Jenkin para trazer a carroça e levar seus pertences até a pensão.

Durante os últimos dias, ela não tivera tempo de ir ao hotel buscar o resto da bagagem.

— Obrigada pela gentileza, mas antes preciso passar no Arcade.

— Não tem importância. Nate e eu a acompanharemos até que se instale na pensão.

— Não é necessário se incomodar.

— Você não nos quer ao seu lado?

Ela não sabia como se comportar junto dele. Não sabia para onde olhar, ou o que dizer. A presença do médico a fazia sen­tir-se desconfortável, porém não havia como admiti-lo aberta­mente. Não que se importasse em tê-lo por perto… apenas ficava nervosa e receava falar a coisa errada. Por nada deste mundo poderia trair suas origens.

— Não, isto é, sim — murmurou, temendo insultar o homem que a tratava sempre de forma tão gentil.

— Hum… o frango está ótimo — Caleb elogiou, levando outra garfada à boca.

Depressa, Ellie correu para o quarto, não desejando ser mo­tivo de atraso. Quando o rapaz surgiu com a carroça, já o aguardava na varanda, os pertences guardados dentro de duas sacolas pequenas.

Chegando ao dormitório do hotel, Ellie deixou Caleb, Nate e J.J. Jenkins aguardando-a na saleta e subiu para empacotar o resto de suas poucas posses. Goldie a recebeu com um abraço afetuoso.

Ela suportou o abraço e sorriu de leve.

— Senti sua falta, querida. Como você tem se saído com o filho do médico?

— Estamos nos dando bem. O bebê é um encanto e pouco trabalho me dá.

— Como está seu braço?

— Uma total chateação. Não é que doa, mas tenho vontade de arrancar o gesso para poder me movimentar livremente. Tam­bém o calor do fogão faz o braço cocar de maneira desesperada.

— Para onde você está levando suas coisas?

— O médico alugou um quarto para mim na pensão da sra. Ned.

— E mesmo? Meu primo já se hospedou lá durante alguns meses e disse tratar-se de um lugar limpo e tranqüilo. Tenho certeza de que irá gostar. Deixe-me ajudá-la a dobrar os vestidos.

Decidida, Goldie arrumou a pequena pilha de roupas que a amiga colocara sobre a cama e guardou-as numa sacola. Logo as duas desciam a escada juntas.

Um pequeno grupo de moças havia rodeado o médico, com a desculpa de brincar com o bebê. J.J., cercado de mulheres por todos os lados, estava vermelho feito um pimentão. Mal notou a presença de Ellie, agarrou a sacola com as roupas e fugiu dali.

Todavia Caleb precisou de um pouco mais de tempo para se livrar educadamente do assédio feminino.

A pensão da sra. Ned era asseada e bem cuidada. Usando a chave que o dr. Chaney lhe dera, Ellie abriu a porta do quarto, no terceiro andar.

O espaço retangular comportava cama, cômoda e escrivaninha. O teto baixo quase impedia que a pessoa ficasse inteiramente ereta, exceto junto à única janela. Uma cadeira de balanço, tapetes espessos e uma manta de lã sobre a cama, entretanto, tornavam o aposento pequeno confortável e aconchegante.

— Você acha que este quarto está bom? — Caleb indagou preocupado, pondo as sacolas ao lado da cama.

Uma cama com lençóis limpos e todo aquele espaço apenas para ela mesma. O que poderia não estar bom?

— É perfeito — respondeu sincera.

— Será uma breve caminhada até minha casa todas as manhãs. Um dos motivos pelos quais achei a localização da pensão ideal.

— Vou apreciar o passeio.

— Se você precisar de alguma coisa mais…

— Obrigada, não preciso de nada.

Durante alguns segundos Caleb limitou-se a fitá-la, buscan­do descobrir nos olhos violeta a confirmação daquela afirmativa. O comportamento da srta. Parrish era, no mínimo, estranho. As palavras dela tencionavam passar a impressão de confiança e independência, porém a expressão do olhar, tristonha e ame­drontada, exprimia uma mensagem completamente diferente. De um lado, desejava poder entender a dor por trás do autocontrole férreo e da conduta corajosa. Por outro, temia tratar-se de algo que não fosse capaz de ajudá-la a resolver.

Sentia-se como se estivesse desertando-a, ao deixá-la ali sozi­nha. Não teria querido que sua irmã, ou esposa, permanecesse só numa pensão, por mais respeitável que fosse o local. Contudo, não seria correto ter Ellie em casa e tampouco tivera tempo de entrar em entendimento com alguma família da cidade para que a acolhessem. Ela estaria segura ali. Não havia outra escolha. Entretanto, precisou lançar mão de toda sua autodisciplina para despedir-se.

— Procure poupar o braço engessado — avisou-a.

— É o que o farei.

No dormitório do hotel, Ellie pelo menos tinha companhia feminina, Caleb pensou, ainda inseguro sobre a situação.

— A sra. Ned está no térreo, caso você queira lhe fazer perguntas, ou tenha dúvidas.

— Ficarei bem. Vejo-o amanhã de manhã.

— Sim. — Ele saiu, fechando a porta atrás de si e fitando o rostinho sério de Nate. — Você também está tendo dificuldade em deixá-la para trás, filho?

Enquanto atravessava o corredor, Caleb lançava olhares para as outras portas, imaginando quem estaria por trás delas. No Arcade, apenas mulheres ocupavam o dormitório, mas ali havia homens também e Ellie não podia contar com ninguém para protegê-la.

Porém conhecia a sra. Ned há anos, argumentou em silêncio, procurando se tranqüilizar. Sem dúvida somente cidadãos res­peitáveis eram aceitos como pensionistas.

É que Ellie parecia tão vulnerável e tão só no mundo. Quando vira quão pouco possuía de seu, a julgara ainda mais frágil. Contudo, bens materiais jamais haviam sido indicadores do valor de uma pessoa e essa escassez de pertences não tinha a menor importância.

A força silenciosa e a determinação daquela mulher o im­pressionavam muito. Mas o véu de tristeza que parecia envol­vê-la sempre o perturbava. Por que alguém tão jovem era tão incrivelmente triste? Desconfiava tratar-se de algo antigo, mas não podia imaginar a fonte.

Vira-a sorrir apenas uma vez, quando estivera com Nate nos braços. Elianna Parrish o intrigava e o atraía de uma maneira que não conseguia entender. Talvez fosse apenas seu instinto de médico, que o fazia desejar confortar e curar.

Entretanto o instinto lhe dizia que o conforto e a cura de que Ellie necessitava iam além daquilo para o qual fora treinado.

Ellie arrumou as gavetas e ajeitou o quarto no qual passaria a viver. Seria obrigada a gastar parte do salário mandando lavar a roupa fora. No Arcade, todas as funcionárias utilizavam a lavanderia do hotel, sem ônus extra.

Sentindo necessidade de lavar-se antes de dormir, ela apa­nhou o jarro sobre a cômoda e foi até a cozinha. Uma chaleira enorme, cheia de água quente, estava sobre o fogão. Depois de encher o jarro, retornou ao quarto depressa. Então trancou a porta, dando duas voltas na chave.

Com gestos rápidos, lavou-se, vestiu a camisola, apagou o lam­pião, abriu a cortina e deitou-se. Sons diversos davam a impressão de atravessar as paredes e ouvia-se vozes indistintas a distância.

O luar se derramava sobre a cama, a luz pálida reconfortando-a. Iria se acostumar àquele lugar, assim como se acostumara ao dormitório do hotel. Pelo menos ali estava abençoadamente só.

Tudo iria dar certo. O médico fazia questão de lhe pagar um ótimo salário e o trabalho para o qual fora contratada não podia ser mais fácil. Não teria que lidar com fregueses e possuía um único patrão a quem prestar contas. Um patrão gentil e generoso.

Inquieta, Ellie lutou contra a sensação de desconforto. Aque­le emprego era bom demais para ser verdade.

Todavia ela já não era a mesma pessoa de antes. Já não era jovem e indefesa. Sabia tomar decisões em relação aos rumos da própria vida e traçar o futuro que lhe agradasse. Preservava sua independência e liberdade acima de tudo.

Mas o dr. Chaney era um homem, aquela irritante vozinha interior a provocou. O que ele iria querer em troca?


CAPÍTULO V

O ribombar de um trovão arrancou Ellie da cama. Seu primeiro pensamento foi checar a porta. Aflita, testou a fechadura. Segura. Estava a salvo. Com o coração aos pulos, procurou se recompor.

A cor cinzenta do céu tornava difícil precisar a hora, porém calculou já haver passado das seis. Acendendo o lampião, la­vou-se e vestiu-se.

Ao pé da escada, uma senhora sorridente e de cabelos gri­salhos a cumprimentou.

— Srta. Parrish. Que prazer conhecê-la! Sou a sra. Ned.

— Olá — ela respondeu, sorrindo hesitante.

— Seu quarto lhe agrada? Garanti ao jovem médico que você ficaria confortável.

— Sim. O quarto é muito bom.

— Ótimo. Bem, venha tomar café e conhecer os outros pensionistas.

Do ponto de vista de Ellie, entrar numa sala cheia de es­tranhos era a mesma coisa de se atirar nua num ninho de cobras. Nunca soubera o que dizer, ou o que fazer, na presença de terceiros e sempre temera que alguém a reconhecesse e se lembrasse de sua antiga vida em Florence.

Respirando fundo, armou-se de coragem para enfrentar o de­safio. Se conseguira vencer a insegurança para trabalhar no hotel, também seria capaz de se ajustar a uma situação inesperada.

Tensa, entrou numa sala onde meia dúzia de pessoas con­versavam à mesa. No mesmo instante cada uma delas virou-se para fitá-la. Os quatro homens levantaram-se e Ellie desejou que não o tivessem feito.

Parecendo muito satisfeita, a sra. Ned apresentou os pre­sentes de acordo com a ordem em que se encontravam sentados.

— Esses são os srs. Hershey e Davis, a srta. Shaw, sr. Cassidy, sr. Montgomery e sra. Henderson. Senhoras e senhores, esta é nossa nova pensionista, srta. Parrish. Sente-se ali, querida.

Sabendo não ser possível escapar, Ellie tomou o lugar que lhe foi indicado. Agora as perguntas iriam começar. Resignada, aguardou o ataque.

— Parece que você teve um acidente — comentou o sr. Davis, um sujeito baixo e de rosto avermelhado.

— Sim. Sofri uma queda na estação.

A sra. Henderson, mulher pequenina cujos cabelos negros ostentavam uma mecha branca, murmurou penalizada:

— Que coisa horrível.

— Você está em Newton há muito tempo? — indagou a srta. Shaw.

Ellie esquivou-se das perguntas o quanto pôde e comeu pou­quíssimo sem sentir gosto de nada. Então desculpou-se, dizendo que precisava ir trabalhar.

— Onde está seu guarda-chuva, querida? — a sra. Ned quis saber, vendo-a aproximar-se do vestíbulo.

— Perdi-o.

— Pois leve o meu. Está no cabide, perto da porta. Agradecendo a oferta, Ellie saiu para a varanda sem parar para apanhar o guarda-chuva. Relâmpagos cortavam o céu escuro e o barulho dos trovões parecia assustar o cavalo parado ali por perto. A voz que acalmou o animal soou familiar aos seus ouvidos. Sob a chuva forte, Ellie reconheceu as feições do rapazinho que a ajudara na mudança, no dia anterior.

— Espere, srta. Parrish! — J.J. a chamou. — O médico me mandou vir buscá-la! — Abrindo o guarda-chuva, ele correu para alcançá-la antes de vê-la abandonar o refúgio da varanda.

— É mesmo? — Surpresa, Ellie ergueu a barra do vestido e caminhou até a carroça, acomodando-se, grata, sob a lona seca.

— Sim. Estou esperando-a há uma boa meia hora porque o doutor queria ter certeza de que eu não iria perdê-la de vista. "Não a deixe andar na chuva", ele falou. Quando chove, costumo levá-lo até o consultório. Ainda bem que ontem o dr. Chaney me pediu para vir buscá-la primeiro.

Nada assim jamais lhe acontecera antes e Ellie não sabia o que pensar sobre a atitude de Caleb. Que ele se mostrasse preocupado em relação ao seu bem-estar a emocionava de forma inexplicável. Notando a sra. Ned acenar, parada no meio da varanda, ela retribuiu o gesto, corando até a raiz dos cabelos.

Todavia não foi a umidade do ar o que a envolveu numa onda súbita de calor. Sentia-se como uma princesa em sua elegante carruagem. Ellie vasculhou a memória em busca da lembrança de uma ocasião qualquer em que alguém fizera algo para poupá-la. Para tornar sua vida mais fácil. Para agradá-la.

Houvera apenas uma oportunidade. O dia em que a sra. Conner lhe dera o lindo vestido azul de presente. Esmagando o pensamento, ela se concentrou no passeio.

Dali a alguns minutos, J.J. parava diante da casa de Caleb.

— Tome, leve o guarda-chuva — o rapaz insistiu. Sabendo que não adiantaria recusar o oferecimento, Ellie abriu o guarda-chuva e correu para a varanda. Depois de secar bem os pés no tapete grosso, entrou em casa.

Caleb descia os degraus da escada aos galopes, trazendo o filho nos braços. O menininho ria tanto que era um prazer observá-lo.

— Você viu só, Ellie?

— Sim.

— Aqui vamos nós outra vez. — Para seu espanto, Caleb tornou a subir a escada e a descer os degraus, galopando.

Nate ria sem parar, os olhinhos brilhantes de felicidade. Fascinada, Ellie acompanhava a cena. Será que aquele outro bebê encontrara alguém capaz de amá-lo tanto quanto Caleb amava o filho? Esperava, com todas as suas forças, que sim.

— Poderíamos passar o dia inteiro brincando, mas preciso trabalhar — ele falou, entregando-lhe o bebê. — A propósito, Nate já tomou a mamadeira.

— Dr. Chaney?

— Sim?

Agora que o médico a fitava, sentia-se terrivelmente descon­fortável. Ele era diferente de todos os homens que conhecera.

— Obrigada por mandar J.J. me apanhar.

— De nada. A propósito, pensei que você passaria a me chamar de Caleb.

Sem saber o que responder, ela desviou o olhar.

— Se isso a incomoda, continue me chamando de dr. Chaney mesmo — ele murmurou impaciente, apanhando a maleta e o chapéu. Antes de sair, inclinou-se e beijou a cabecinha do filho.

Tendo-o tão perto de si, ainda que por breves momentos, Ellie sentiu a cabeça girar. Em silêncio, observou-o caminhar até a varada, abrir o guarda-chuva e rumar para a carroça que o aguardava.

Confusa, ela permaneceu imóvel, sentimentos estranhos cau­sando um turbilhão em seu interior. Sendo homem, Caleb re­presentava tudo o que aprendera a temer e odiar. Como patrão, provara-se atencioso e generoso em todas as circunstâncias. E como pai, era muito mais amoroso do que imaginara possível um homem ser. Ele realmente adorava o filho.

Aconchegado ao seu peito, Nate fitou-a, os olhos luminosos refletindo alegria e pureza. Até então, a existência no mundo de pais carinhosos não passara de um conceito difícil de ser com­preendido e aceito. Mas agora descobrira tratar-se de algo real.

E essa realidade abalava seu entendimento prévio do mundo. A bondade de Caleb acentuava a sordidez de sua própria vida, salientava cada uma de suas muitas deficiências. Saber que ele existia era tão doloroso quanto extraordinário e tornava difícil sua determinação de nunca sentir nada.

Caleb a fazia sentir coisas. Coisas profundas, perturbadoras e inexprimíveis.

Um trovão soou ao longe. Nate abriu os olhos, curioso. Com aquele mau tempo, seria obrigada a desistir da ida à biblioteca pública. Teria que reler o livro de culinária. Faltavam apenas dois dias até domingo, quando iria almoçar com a família de Caleb.

Ellie apreciou os dois dias que se seguiram. Em ambos, preparou o jantar do médico segundo receitas encontradas no livro de culinária. Porém, ainda sem coragem de sentar-se à mesa com ele, sempre comia mais cedo. E tão logo o servia, corria de volta para a pensão.

Esse arranjo a deixava com maior tempo livre para si, algo muito diferente do hotel, onde costumava trabalhar até o meio da noite. Com a permissão de Caleb, tomara alguns livros emprestados e ficava até altas horas entretida com a leitura.

No domingo pela manhã os sinos da igreja tocaram e, da janela de seu quarto, Ellie observou os cidadãos de Newton se dirigirem ao culto religioso. Nunca estivera numa igreja em toda sua vida e não conseguia se imaginar entre aquela gente respeitável, numa casa de oração. Os únicos fiéis com os quais tivera contato haviam sido os moradores de Florence, que sempre a haviam considerado uma criatura inferior, digna de desprezo, ou piedade.

Assim, esteve a manhã inteira na cozinha deserta da sra. Ned, passando saias e blusas.

Horas depois, sentada na varanda, aguardava, apreensiva, a chegada do médico.

— Vai dar um passeio?

Era a srta. Shaw quem acabara de sentar-se ao seu lado, colocando um material de bordado sobre o colo.

— Sim. Irei almoçar com a família do dr. Chaney.

— Foi ele quem fez isso com seu braço?

A pergunta sobressaltou-a. Que será que a srta. Shaw qui­sera dizer? Será que acreditava ter sido Caleb quem a machu­cara? Então o bom senso prevaleceu.

— Oh, você está querendo saber se foi o dr. Chaney quem engessou meu braço? Sim.

— Pois não se surpreenda se as pessoas tiverem dúvidas quanto ao resultado final do tratamento. Caleb Chaney não possui muitos simpatizantes em Newton.

Uma onda de raiva fez ferver o sangue de Ellie.

— Que coisa ridícula. Ele é capaz e competente. Imaginar o contrário é pura tolice.

— Infelizmente muita gente nesta cidade pode ser classificada de tola. E o fato da esposa dele ter morrido ao dar a luz não ajuda nada. Outras três pessoas que Chaney tratou morreram de gripe durante o inverno e tem também a tal da viúva Bowman.

— Joanna Bowman morreu devido ao incêndio, não por causa do tratamento a que foi submetida.

A srta. Shaw, magra e pequenina, de trinta e tantos anos, ergueu a mão.

— Você e eu sabemos disso. Mas fico me perguntando se o resto da cidade consegue enxergar o óbvio.

A mulher colocou linha na agulha e preparou-se para reto­mar o bordado.

Durante alguns segundos Ellie a observou, imaginando por que a srta. Shaw morava numa pensão e como ocuparia seus dias. Entretanto, apesar da curiosidade natural, não fez ne­nhuma pergunta. Respeitava a privacidade acima de tudo.

— O que você está bordando?

— Uma almofada.

— Nunca vi nada tão bonito — ela exclamou admirada, reparando nos pássaros coloridos, tão perfeitos e cheios de vida.

— São pontos simples. Não se trata de um desenho muito elaborado.

— Bem, pois é lindo.

— Na verdade, não preciso de outra almofada. Meu quarto está cheio delas. Porém o trabalho manual me ajuda a passar o tempo.

A solidão da outra era quase palpável, Ellie pensou. Por que a srta. Shaw não havia se casado? Mulheres solteiras eram pouco comuns no Kansas.

O som de cascos de cavalo a fez virar-se. Caleb acabara de parar a charrete defronte da pensão.

— Boa tarde, srta. Shaw — ele falou polidamente, tocando a aba do chapéu.

— Boa tarde, dr. Chaney. Está um belo dia para um passeio.

— É verdade. — Caleb ajudou Ellie a subir apontando para Nate, que dormia acomodado num cesto, na carroceria do veí­culo. Logo os três se afastavam, Ellie acenando, hesitante, para a srta. Shaw.

— Ela é uma de suas clientes?

— Já se consultou comigo duas vezes. Por que a pergunta?

— Apenas curiosidade. Haverá muita gente na fazenda, para o almoço?

— É difícil saber. Minha irmã e a família com certeza. Fre­qüentemente o pastor também almoça na casa de meus pais aos domingos.

Atenta, Ellie observava os arredores, reparando nos detalhes da estrada que conduzia ao campo. Apesar do calor do dia, Caleb não enrolara as mangas da camisa impecável, as mãos grandes e bronzeadas segurando as rédeas com firmeza.

— Você costuma visitar seus pacientes durante a semana?

— Alguns. Ainda continuo empenhado em construir uma clientela.

— Eu o considero um ótimo médico.

— Quisera que mais pessoas pensassem assim também.

— Irão pensar. Caleb sorriu, fitando-a. Tímida, ela retribuiu o sorriso.

— Todas essas terras pertencem aos Chaney — ele comentou depois de percorridos vários quilômetros.

— Tudo isso? — Admirada, Ellie constatou a existência de rebanhos enormes pastando a perder de vista.

— Sim. Meu pai me queria ao lado dele, trabalhando na fazenda, preparando-me para assumir o controle um dia. De­sapontei-o ao me tornar médico.

— Você não queria ser fazendeiro?

— É uma bela profissão. Mas desde que me entendo por gente, eu queria ajudar as pessoas. Queria aprender a curá-las. Pus a venda um touro e vários cavalos árabes que me perten­ciam para custear os estudos. Meu pai não ficou muito feliz quando soube da história. Porém, ao perceber que nada me faria voltar atrás, acabou comprando os animais. Depois de minha partida para Harvard, meu pai foi obrigado a contratar um capataz, o que diminuiu um pouco os lucros.

Ellie limitava-se a ouvi-lo atentamente, observando os con­tornos do perfil másculo contra o céu sem nuvens.

— O fato é que compreendo os sentimentos de meu pai. Ele está ficando velho. Deseja ter alguém para assumir a admi­nistração da fazenda e continuar a obra a qual se dedicou a vida inteira. Sou o único filho homem. Às vezes fico me per­guntando se fiz a coisa certa. Talvez eu devesse tê-lo escutado e me poupado das despesas e do trabalho vão.

— Mas veja quantas pessoas você tem ajudado.

— Não tantas assim.

— Você me ajudou.

— Quase qualquer peão pode consertar um braço quebrado. O tom de voz apático a abalou. Onde estava a autoconfiança que o médico sempre projetara? Como pensar, ainda que por um minuto, que seu trabalho não tinha valor?

— Lá está a casa — ele falou, sem lhe dar tempo de elaborar uma resposta.

Ao leste de estábulos imensos, imaculadamente brancos, er­guia-se uma construção imponente de dois andares, plantada no meio de um jardim e rodeada de pinheiros altos. Logo a charrete parava à sombra de um velho e frondoso carvalho.

— Minha mãe vai me passar um sermão por fazê-la entrar pela porta dos fundos. — Caleb tomou o filho nos braços e marchou para a parte de trás da casa.

— Então talvez não devêssemos aborrecê-la.

— O quê? E perder o divertimento? De jeito nenhum. Indecisa, Ellie o seguiu.

— Vamos, entre.

Com o coração batendo descompassado, ela lutou contra o impulso de fugir dali. Temia não saber se comportar, enver­gonhando a si e ao patrão. Vacilante, deu um passo adiante.

Da cozinha enorme desprendiam-se aromas de dar água na boca.

— Caleb! Você devia ter feito a srta. Parrish entrar pela porta da frente! — sua mãe exclamou, correndo para recebê-los. — Oh, senhorita, peço-lhe desculpas pela falta de boas maneiras de meu filho. Parece até que este menino foi criado no meio do mato.

— Eu… Não tem importância.

— Vamos ver como está Nathaniel! — uma outra mulher falou, aproximando-se do bebê.

— Ellie, esta é Mildred. — Caleb beijou a velha senhora no rosto. — Minha segunda mãe.

— Trabalho para a sra. Chaney — Mildred explicou, os olhos verdes e cabelos vermelhos a fazendo parecer ainda vi­gorosa, apesar da idade. — Prazer em conhecê-la, senhorita.

— Prazer em conhecê-la — Ellie repetiu, julgando serem essas as palavras adequadas porque Mildred sorriu.

Olhando pela janela, a mãe de Caleb percebeu a chegada de alguém. Depressa, dirigiu-se à varanda.

Uma garotinha loira, de uns cinco anos, atirou-se nos braços abertos da avó.

— Mas você está linda hoje, Lucy!

— Mamãe fez este vestido novo para mim. Usei-o para ir à igreja e agora vim lhe mostrar. — A menina girou, exibindo a saia rodada. — Tio Caleb! — ela gritou feliz, notando a aproximação do tio e correndo para encontrá-lo.

— Lucy, Lucy — a mãe da garota a repreendeu. — Uma dama move-se devagar e graciosamente.

Entregando Nate a Ellie, Caleb abaixou-se e tomou a menina no colo, abraçando-a com força. Lucy beijou-o no rosto.

— O melhor beijo que ganhei a semana inteira — ele co­mentou com uma piscadela.

A garotinha riu.

— Lucy, Patrícia, Denzil, esta é a srta. Ellie Parrish, a nova babá de Nate. Ellie, esta é minha irmã, Patrícia, o marido dela, Denzil, e minha linda sobrinha, Lucy.

— Prazer em conhecê-los — Ellie tornou a dizer.

— Encantada — replicou a bela loira, irmã de Caleb. Tra­jando um vestido verde listrado, com corpete branco, ela trans­pirava simpatia.

— Prazer em conhecê-la — disse o cavalheiro alto, tão ele­gantemente vestido quanto Caleb.

— Lucy, como você deve cumprimentar a srta. Parrish? — Patrícia indagou à filha.

— Como vai, srta. Parrish? — a garotinha murmurou tímida, pondo o dedo na boca.

A lição de boas maneiras à criança deixou Ellie numa posição embaraçosa. Sem ter idéia da resposta apropriada a dar, sen­tiu-se enrubescer.

— Seus olhos são iguais aos do seu tio — falou sem pensar. Sem dúvida a observação a agradou, pois Lucy tirou o dedo da boca e sorriu, fitando o tio com adoração.

— É mesmo?!

— Onde está seu avô? — Caleb perguntou à sobrinha, beijando-a e colocando-a no chão.

— Provavelmente se esgueirou num dos estábulos, para apre­ciar o novo potro — disse a mãe de Caleb. — Lucy, querida, por que você não vai avisar ao vovô que o almoço está quase pronto?

A garotinha saiu da sala aos pulos, sob os olhares vigilantes do pai. Patrícia removeu o chapéu, revelando cabelos sedosos presos num coque e, abrindo uma gaveta, retirou um avental. Logo o amarrava ao redor da cintura estreita. Percebendo que todos se encontravam num ambiente que lhes era inteiramente familiar, Ellie sentiu-se deslocada naquele ambiente.

E quando Mildred lhe tomou Nate dos braços e o colocou numa cadeira alta, sentiu-se perdida, sem ter o que fazer.

— Posso ajudá-las em algo? — perguntou insegura.

— Você é nossa convidada — a sra. Chaney retrucou firme, descartando a idéia de imediato. — Além de tudo, está com o braço engessado.

No mesmo instante Ellie ficou vermelha. Cometera seu pri­meiro erro.

— Obviamente a srta. Parrish não é uma inválida — Caleb contemporizou. — Afinal, toma conta de Nate todos os dias e ainda prepara minhas refeições sem ajuda de ninguém.

Patrícia olhou do irmão para Ellie, uma expressão compreen­siva no rosto. Então tornou a abrir a gaveta e retirou outro avental dobrado.

— Vamos, senhorita, deixe-me ajudá-la a colocar o avental — Caleb se ofereceu. — Estenda o braço engessado.

Ellie obedeceu às instruções, sufocando um momento de pânico diante da proximidade dos corpos de ambos. Mas logo Caleb ter­minava de amarrar o avental às suas costas e se afastava.

— O que posso fazer? — ela perguntou ansiosa.

— Que tal pôr a mesa? — sugeriu a sra. Chaney. Fizera questão de ler o capítulo sobre a maneira correta de colocar a mesa e praticara várias vezes na casa de Caleb, uti­lizando a louça e os talheres do médico.

— Em que armário ficam guardados os pratos?

— Não vamos almoçar nesta saleta — disse Patrícia, conduzindo-a pelo corredor —, mas aqui.

— Oh, céus… — Ellie prendeu a respiração. Jamais vira uma sala de jantar tão esplêndida. Uma mesa enorme, de quase três metros de comprimento, dominava o ambiente, cercada de cadeiras acolchoadas e de espaldar alto. Num canto, uma cristaleira imponente exibia pratos e travessas de porcelana cor de marfim, as bordas douradas.

— Os talheres estão nas gavetas — Patrícia explicou. — A toalha e guardanapos ficam deste lado. Em geral, costumamos colocar lugares para dez pessoas. Se formos um número menor à mesa, não tem importância.

Intimidada pela decoração luxuosa e pelo requinte que a cercava, Ellie sentiu os joelhos vergarem. E se deixasse cair um daqueles pratos? E se derramasse algo na toalha enquanto estivesse comendo?

— O que aconteceu com seu braço?

Ellie abriu a toalha de linho sobre a mesa, apreciando o tecido bordado.

— Levei um tombo na plataforma da estação.

— Que coisa terrível! Você é natural de Newton? .

— Não — ela respondeu, pensando que deveria ter lavado as mãos antes de tocar na tolha imaculadamente branca. E se a sujasse? — Nasci em Florence.

— E mesmo? É onde moro. Mudei-me para lá ao me casar com Denzil, há uns seis anos. Em que parte da cidade você morava?

— Hum… Na zona rural.

— Parrish. Não consigo me lembrar de ter conhecido alguém com esse sobrenome.

A beira do pânico, Ellie fechou os olhos por um instante, o silêncio que se seguiu parecendo sufocá-la com um peso esmagador. E se Patrícia, ao voltar para casa, fizesse indagações a seu respeito? Mas não, não havia motivos para preocupar-se. Afinal, inventara o sobrenome Parrish. Além de tudo, muitas famílias viviam nos arredores da cidade, indo ao centro apenas ocasionalmente para comprar mantimentos. Sendo párias, ela e os irmãos pouco tinham freqüentado a escola, passando a maior parte do tempo à margem da sociedade. Ao tornar a abrir os olhos, descobriu que a irmã de Caleb não lhe prestava atenção, ocupada com outras tarefas.

Vendo Patrícia retirar os pratos do armário, Ellie apressou-se a dispô-los sobre a mesa, em intervalos regulares. Então abriu a gaveta que a outra indicara e, depois de contar dez guardanapos, distribuiu-os.

Fez o mesmo com os talheres, contando garfos, facas e colheres antes de os colocar de acordo com as instruções contidas no tal livro de culinária.

A primeira experiência de Ellie em vislumbrar grandes quan­tidades de comida, deliciosamente preparada e servida com re­quinte, fora no Hotel Arcade. Todavia nunca cessara de espantá-la que pessoas gastassem tanto tempo e dinheiro na elaboração de pratos sofisticados. Talvez porque houvesse passado anos a fio atrás de sobras para manter a si e aos irmãos vivos.

Enquanto os membros da família começavam a se reunir na sala de jantar, as mulheres se encarregavam de dispor as várias travessas sobre a mesa. Arroz, cordeiro assado, batata doce e vegetais variados.

Notando toda aquela comida deliciosa, servida em travessas de porcelana, Ellie lembrou-se das refeições simples que pre­parara e servira a Caleb com tanto orgulho. O que será que ele pensara de suas tentativas patéticas de apresentar algo decente? Humilhava-a imaginar.

— Boa tarde, srta. Parrish — cumprimentou-a seu anfitrião, aproximando-se da cabeceira da mesa.

— Olá — ela respondeu, o coração disparando diante da figura alta e distinta, tão semelhante ao filho.

Dali a instantes Caleb surgia com Nate nos braços. Após acomodá-lo na cadeira alta, colocada ao lado do lugar onde pretendia sentar-se, chamou Ellie para perto de si.

— Ellie, este é o reverendo Beecher. — O pai de Caleb continuou as apresentações. — O nosso capataz, Hayden, e o irmão, Soapy.

Soapy parecia o único a sentir-se tão desconfortável quanto Ellie. O rapaz murmurou algo no ouvido do irmão e Hayden falou alto:

— Soapy disse que é um prazer conhecê-la.

Caleb sorriu e tocou o braço de Ellie, incitando-a a mover-se. Por um segundo ela teve consciência apenas daqueles dedos fortes roçando sua pele. Então viu-o puxar a cadeira e soube que deveria sentar-se. Denzil ajudou Patrícia e a filha a tomarem seus lugares, o mesmo fazendo o sr. Chaney em relação à esposa.

Nervosa, Ellie reparou se mantinha o corpo à distância cor­reta da mesa, segundo as informações contidas no bendito livro de culinária.

— Vi um sapo ontem à noite, tio Caleb — Lucy falou ani­mada. — Ele estava pulando nos degraus da varanda.

— Você se assustou?

— Não. Era apenas um filhotinho. Acho que estava procu­rando a mãe.

— Aposto que era isso mesmo.

— Mamãe, preciso mesmo comer batata doce?

— Apenas uma pequena porção, querida, para ser educada.

— Vendo a menina começar a emburrar, Patrícia a repreendeu.

— Lucille, comporte-se direitinho.

Ter que encorajar uma criança a comer estava além da ex­periência de Ellie. Conhecera somente crianças famintas, que devoravam qualquer coisa que lhes aparecesse pela frente.

— Tenho cinco anos — a menina falou orgulhosa, erguendo a mão direita para enfatizar o comentário.

Ellie sorriu, reparando no à vontade óbvio daquela garotinha cercada pela família. Lucy não apresentava nenhum sinal de ter sido negligenciada, ou sofrido abusos. Tampouco mostra­va-se assustadiça, temerosa.

Anos atrás, Ellie vagara pela noite fria em busca de um lar para uma menininha. Tantas e tantas vezes se perguntara qual teria sido o destino daquela criança. Tantas e tantas vezes desejara poder ver, por si própria, se havia feito a coisa certa. Porém nunca se permitira verificar.

As razões para ter saído completamente da vida daquela menina eram complicadas. E dolorosas.

Precisava acreditar que a garotinha encontrara um lar e uma família como a de Lucy, que se sentia segura e protegida entre pessoas que a amavam e zelavam por seu bem-estar. Qualquer outra possibilidade era impensável.

— Você está achando a comida de seu agrado, srta. Parrish?

— indagou a mãe de Caleb.

— Oh, sim. — Somente então Ellie se deu conta de que ainda não havia tocado em nada que pusera no prato. Com dedos trêmulos, segurou o garfo.

— Caleb, seu tolo, você não cortou a carne para Ellie! Não vê que é impossível fazê-lo com uma mão só? — Sem esperar que o irmão tomasse a iniciativa, Patrícia puxou o prato da convidada para perto de si e cortou a carne em pedacinhos.

— Acho que estou tão acostumado a ver Ellie dando conta de tudo sozinha que acabei me esquecendo de lhe oferecer ajuda — ele retrucou com um sorriso. — Desculpe-me, Ellie. Da próxima vez, me dê um puxão de orelha.

— Hayden e Soapy vão buscar gelo mais tarde — anunciou o sr. Chaney. — Assim poderemos fazer sorvete.

Lucy balançou-se de um lado para o outro da cadeira, incapaz de conter a alegria.

— Adoro sorvete!

— Comporte-se à mesa, Lucille. Coma toda a batata ou não ganhará sorvete.

Percebendo o tom de voz sério da mãe, a menina sossegou. Logo Mildred aparecia com uma pequena travessa de pães quentinhos. Depois de colocá-la sobre a mesa, saiu da sala.

— Mildred não faz as refeições na companhia de sua família?

— Ellie sussurrou a Caleb.

— Não. Mildred trabalha para minha mãe.

— Eu também trabalho para você e como à sua mesa.

— Mas você não é minha cozinheira.

— Hayden e Soapy estão almoçando com a família — ela ponderou, sabendo que suas perguntas revelavam a mais total ignorância sobre o assunto.

— Capatazes sempre fazem as refeições na casa grande. Soapy é aceito porque nunca sai de perto do irmão.

— Já comi toda a batata doce, mamãe — Lucy anunciou, uma expressão travessa no rosto. — Agora vou querer sorvete.

— Muito bem — Patrícia respondeu, sem perceber que fora Caleb quem comera a porção de batatas da menina.

Ellie sorriu, percebendo os olhares divertidos trocados entre tio e sobrinha.

Começava a relaxar afinal. De alguma maneira, conseguira chegar ao fim da refeição sem derramar nada, ou cometer uma gafe. De fato, adorara saborear os pratos deliciosos, preparados com tanto capricho.

— Agora vamos descansar um pouco — a sra. Chaney falou, tomando a iniciativa de levantar-se.

As mulheres se acomodaram na enorme varanda enquanto Mildred tirava a mesa e lavava a louça. Acostumada a servir no hotel, Ellie sentia-se culpada por não estar ajudando a empregada. Todavia, seu oferecimento de auxílio não fora aceito pela anfitriã.

— Obrigada por me convidar para o almoço, sra. Chaney — ela falou, ajeitando Nate no colo.

— Por favor, me chame de Laura. Fiquei feliz que você tenha vindo, pois não a vi na nossa igreja. Qual templo você freqüenta?

—Ainda não estive na igreja depois que me mudei para Newton.

Era verdade. Também nunca estivera numa igreja antes de se mudar para Newton, todavia não pretendia admiti-lo. — Vocês freqüentam a igreja episcopal?

— Oh, não, querida. Nossa família sempre foi presbiteriana.

— Oh.

Ao virar-se, Ellie notou que Patrícia a observava. Teria dito algo terrível?

— Suponho que você seja a solução dos problemas de Caleb — a outra afirmou simplesmente.

— Como assim?

— Estive pressionando-o para me entregar Nate. — Os olhos de Patrícia se encheram de lágrimas. — Claro que iria criá-lo como se fosse meu próprio filho. É importante que uma criança cresça num lar estruturado. Que tenha pai e mãe para cuidar dela.

— Caleb ama demais o filho.

— Sim, eu sei. Em parte, agi como agi por puro egoísmo. A confissão honesta surpreendeu-a. Sem dúvida Patrícia queria muito essa criança. Lucy já estava com cinco anos e ainda não ganhara um irmãozinho. Não era natural uma jovem mulher ficar tanto tempo sem engravidar, quando ansiava por um bebê.

Em silêncio, Ellie observou Caleb, conversando no jardim com o pai. Sim, ela também sabia como era difícil abrir mão de um filho e sentia-se feliz que Caleb possuísse meios de manter o seu junto de si. Fazia-lhe bem à alma poder ajudá-lo a cumprir sua missão de pai.

Mas e depois que seu braço sarasse? O que aconteceria quan­do retomasse o trabalho no hotel?

Aconchegado ao seu peito, Nate dormia profundamente. E se não voltasse para o hotel? E se pudesse continuar como babá? Oh, não deveria nem se permitir contemplar essa pos­sibilidade, por mais tentadora que lhe parecesse.

Havia outras prioridades a considerar. Precisava ter uma casa onde acolher Benjamin e Flynn, uma casa que fosse sua.

Olhando ao redor, as terras férteis a se perderem no horizonte, o gado saudável pastando preguiçosamente, ela não con­seguia nem sequer imaginar o quanto custava sustentar uma propriedade de tal porte.

No momento, seu sonho de reunir-se aos irmãos parecia impossível. Todo seu dinheiro guardado, por exemplo, não daria para comprar a comida que fora servida no almoço. Como poderia, algum dia, comprar uma casa, alimentar e vestir os meninos?

Talvez nunca fosse capaz de atingir seu objetivo. Talvez estivesse apenas se iludindo ao alimentar esperanças de tirar os irmãos da fazenda dos Heath e lhes dar a vida que ambos mereciam.

Se isso fosse verdade, não sabia se teria forças para seguir em frente, para continuar tentando.

Mas o que estava fazendo agora, a não ser se apegando a uma criança da qual teria que abrir mão?

Seu coração já havia sido partido e pisoteado. Outra desilusão e não se recuperaria jamais. Restava-lhe resistir ao afeto que Nate lhe inspirava. Ou fazia isso, ou descobria uma forma i de tornar permanente a situação em que se encontrava.


CAPÍTULO VI

Quando Nate acordou, Laura pediu para segurá-lo e Ellie aproveitou para dar um passeio e esticar as pernas. Lucy a seguiu, fazendo uma infinidade de perguntas enquanto dizia procurar trevos de quatro folhas.

As duas se sentaram à sombra de uma árvore e Ellie trançou uma guirlanda de flores para a menina usar ao redor do pescoço. Lucy, com os cabelos soltos, o rostinho rosado e sorriso doce era a própria imagem da pureza e felicidade. Sem que pudesse evitar, uma dor profunda cortou-lhe a alma. A dor da perda.

Também dera a luz a uma criança como aquela. Sua garotinha talvez tivesse os cabelos escuros iguais aos seus. Mas fora difícil enxergar direito por causa da escuridão da noite. Era tão jovem, então. Tão cheia de medo, tão só. Pensara apenas em salvar o bebê de uma vida cruel como a sua e a dos irmãos. Quisera poupá-la da fome e dos abusos, as únicas coisas que jamais conhecera.

Assim, valera-se de um resto de forças para se aventurar pela noite fria e deixar a criança à porta da casa de um jovem casal que perdera o próprio filho recentemente.

Em momento algum Ellie se sentira arrependida. Tomara a atitude correta.

Porém o sofrimento nunca cessara, ou conseguira calar as perguntas que ecoavam em sua mente. Todavia sempre fora mestra em enterrar a dor. Mas estar com aquela garota en­cantadora trazia de volta a agonia vivida, revolvendo mágoas antigas, reabrindo feridas mal cicatrizadas.

Sua filha deveria ser um ano mais velha do que Lucy. Todos esses anos haviam passado sem que tivesse coragem de se certificar, de descobrir se fizera a coisa certa. Precisava acre­ditar que sim.

A angústia interior era tamanha que o simples ato de res­pirar tornou-se subitamente difícil. E quando Lucy lhe sorriu, lágrimas amargas vieram-lhe aos olhos.

— Você está triste, Ellie? — a menina perguntou, mostrando-se preocupada.

— Não. É que a claridade excessiva às vezes me incomoda. A garota olhou para o céu, notando os raios de sol filtrados entre os galhos da árvore.

— Fico imaginando para onde o sol vai à noite.

— Acho que você aprenderá isso na escola.

— Então serei mais inteligente e esperta, não é? Ellie concordou com um sorriso.

— Esta pedra não parece um dente de lobo?

Será que, algum dia, tivera uma imaginação tão vivida? Será que algum dia tivera infância, Ellie pensou, pondo-se a trançar outra guirlanda de flores para alegria de Lucy. Dali a algum tempo Patrícia veio chamá-las para ver o sorvete sendo feito.

Caleb e Soapy se revezavam girando a manivela dentro do balde de madeira. O sr. Chaney adicionou sal e creme de leite. Logo a mistura se tornava branca e leve.

Em intervalos regulares Soapy sussurrava algo no ouvido de Hayden para que o irmão transmitisse a mensagem aos demais.

— Soapy não fala? — Ellie indagou a Laura num impulso.

— Nunca vi esse homem conversar desde que começou a trabalhar na fazenda, sete anos atrás. Talvez ele fale quando não há nenhuma mulher presente. Quem sabe?

Em silêncio, Ellie estudou o agrupamento de pessoas com in­teresse, sua atenção fixando-se na maneira como Matthew, pai de Caleb, interagia com a família. Embora ele e o filho aparen­temente divergissem sobre a carreira deste, Matthew tratava Caleb sempre com gentileza e respeito. Aquele homem alto, de aparência severa, segurava Nate com extrema delicadeza, acariciando os cabelos do bebê com evidente ternura e beijando-o na testa vezes sem conta. Também era óbvio o amor que nutria pela neta, não perdendo oportunidade de abraçá-la, ou de lhe fazer um agrado.

Ellie aceitou a tigela de sorvete que Patrícia lhe entregou, saboreando a massa cremosa com gosto de baunilha. Ao tomar a primeira colherada, surpreendeu-se ao sentir os dentes doerem devido à temperatura frígida do alimento. A segunda co­lherada derreteu em sua boca.

— Gostou? — Caleb indagou aproximando-se.

— É delicioso! Eu não sabia que seria tão gelado.

— Bem, é sorvete.

— Eu sei — ela respondeu corando.

— Você nunca tinha tomado sorvete antes?

— Não.

— Da próxima vez vou pedir a Mildred para fazer uma torta de maçã. Com sorvete, não há coisa melhor!

Da próxima vez. Hesitante, Ellie sorriu. Teria forças para se expor novamente à dor provocada pelas lembranças que a presença de Lucy despertava? Poderia testemunhar a felicidade de Matthew e Laura, rodeados de filhos e netos, e pensar que nunca soubera ser possível viver assim?

Sim, poderia. Se Caleb a convidasse, voltaria à fazenda sem vacilar um instante. Talvez fosse uma doença, essa necessidade de se torturar expondo-se àquilo que sempre faltara em sua patética existência.

Mas sentia-se viva ali. Mais viva do que jamais se sentira. Mais aceita. Mais semelhante às pessoas cujas vidas apenas observara e imaginara. E se machucava a alma sentir-se viva… que assim fosse.

Porém, bem no fundo do coração, lutava contra o sentimento de culpa. Estava certo divertir-se, tomar sorvete, enquanto Benjamin e Flynn eram obrigados a trabalhar feito escravos?

Não, não era certo culpar-se. Estava fazendo todo o possível para, um dia, tirar os irmãos daquela vida miserável. Estava ganhando mais dinheiro trabalhando para Caleb do que conse­guira juntar durante os meses em que se empregara no hotel. Portanto, caminhava em direção ao objetivo que traçara para si.

Existiam momentos de dúvidas, em que temia nunca ter dinheiro bastante para sustentar os irmãos, porém procurava não ceder ao medo e à insegurança.

A mão de Caleb tocou seu braço trazendo-a de volta à realidade. Sem que pudesse evitar, o breve contato físico a fez estremecer. Com o coração aos pulos, resistiu ao impulso de afastar-se.

— Levarei sua tigela para a cozinha — ele falou, a inflexão da voz revelando que o oferecimento já havia sido feito antes.

— Oh, desculpe-me, acho que não o ouvi.

— Você está cansada, ou podemos ficar um pouco mais? O reverendo Beecher costuma nos ler alguma coisa durante suas visitas. Ele tem um jeito para contar histórias que nos prende até o final. Às vezes Patty toca piano.

— Eu gostaria de ficar.

— Seu braço está doendo?

— Não.

— Ok, venha, então.

Seguindo-o, Ellie passou pela cozinha antes de chegarem a uma sala mobiliada com várias cadeiras e sofás, além de inú­meros porta-retratos sobre a mesa. Num canto, um belo piano.

— Quem são estas pessoas? :— ela perguntou, admirando as fotografias.

— Minha família. Veja, Patty e eu quando bebês. Esse re­trato é de meus pais, no dia do casamento.

— Oh. — Ellie inclinou-se para estudar os rostos serenos e felizes do jovem casal. Aqueles dois tinham se casado tempos atrás e vivido todos esses anos juntos, criando os filhos e cui­dando da fazenda. Pensar no que isso significava, imaginar a solidariedade embutida nesse tipo de relacionamento, a levava a uma única conclusão: sua vida fora muito pior do que su­pusera. — Que extraordinário contemplar a imagem de seus pais na juventude! — comentou, endireitando os ombros. — E Nate poderá saber como você era quando bebê. Na verdade, vocês dois são muitos parecidos.

— Você não tem retratos de família? Imediatamente Ellie se deu conta de que cometera um erro.

— Não — respondeu, afastando-se e sentando-se no sofá. Para seu alívio, Caleb não insistiu no assunto.

O reverendo escolheu uma história de Charles Dickens, a mesma que ela lera poucas semanas atrás. Todavia a inter­pretação do pastor tornava o enredo muito mais interessante, os personagens parecendo ganhar vida.

As reações de Ellie fascinavam Caleb. Qualquer coisa, a menor que fosse, a maravilhava. Como alguém podia ser tão ingênua em relação aos acontecimentos mais simples e banais? Embora tentasse manter a curiosidade e a admiração escon­didas, acabava traindo-se sem que percebesse.

A expressão do rosto bonito enquanto ouvia a narrativa do reverendo Beecher era igualzinha a de Lucy, ambas revelando um encantamento infantil.

Quando os olhares de ambos se encontraram, Caleb sorriu. Tímida, ela retribuiu o sorriso, enrubescendo de maneira deliciosa.

Nate começou a ficar inquieto no colo de Laura e Ellie ime­diatamente o tomou nos braços, aconchegando-o junto ao peito e ninando-o.

Confortado, o bebê logo se aquietou, os olhos pesados de sono. O menino estendeu a mãozinha no ar e ela beijou cada um dos dedos pequeninos.

Uma dor inesperada inundou o peito de Caleb diante daquela cena marcada pela ternura maternal. Tentou imaginar a esposa no lugar de Ellie, acariciando e ninando o filho de ambos, porém não foi capaz. Leila passara a gravidez inteira reclamando, de­sesperada por causa das mudanças ocorridas no corpo e odiando as roupas largas que era obrigada a usar. Chorara meses a fio, querendo convencê-lo a se mudarem para o litoral, onde fizera amigos durante a época em que Caleb cursara Harvard.

Leila sempre adorara festas, teatro e toda sorte de diverti­mentos. Implorara ao marido para aceitar a oferta de emprego que lhe fora feita por um renomado cirurgião da costa leste. Porém Caleb sentira falta da família enquanto estivera dis­tante, sentira falta da serenidade daquela região vigorosa onde havia crescido. Os peões e fazendeiros eram quem desejava ajudar. Nas cidades grandes existiam médicos em excesso. Aquela gente do interior, sim, necessitava de seus serviços, embora muitos ainda não tivessem reconhecido o fato. Nunca conseguira fazer Leila entender seus anseios.

O desagrado que ela nutria por Kansas e pela gravidez, que julgava inconveniente, o tinham desapontado. Casara-se com uma jovem linda e feliz, a quem acreditara amar. Alimentara tantas esperanças sobre o futuro de ambos. Talvez, se houvesse cedido e aceitado um emprego em Massachusetts, ou Pennsylvania, po­deria ter poupado Leila de sua infelicidade e conseqüente morte.

A culpa ameaçou consumi-lo por dentro, como sempre acontecia ao lembrar-se da esposa. O fato de se sentir feliz ali, em Newton, parecia errado. Deveria estar arrependido de ter voltado para casa. Deveria se ressentir do lugar que lhe roubara a mulher. Mas não.

O reverendo Beecher terminou a história. Laura e Patrícia serviram café e biscoitos. Lucy se esgueirou para brincar lá fora.

Denzil e Matthew acomodaram-se defronte do tabuleiro de xadrez, prontos para iniciar uma partida.

Caleb tomou o assento deixado vago pela sobrinha ao lado de Ellie e se ofereceu para segurar o filho adormecido.

Ao depositar o bebê no colo de Caleb, ela roçou a mão aci­dentalmente no braço forte e bronzeado do médico. No mesmo instante ficou rígida e tornou a sentar-se, as costas muito eretas indicando tensão.

Aquele nervosismo o intrigava. Estaria Ellie atraída por ele?

Uma possibilidade atraente, Caleb pensou, mordiscando o biscoito de aveia que tirara do prato.

— Você sabe fazer biscoitos de aveia? — perguntou.

— Poderia fazê-los, se tivesse a receita.

— Já os fez alguma vez?

— Não.

— Você já havia comido cordeiro assado antes do almoço de hoje?

— Servi este prato no Arcade.

— Porém nunca o tinha provado?

— Não. — Ellie desviou o olhar. — Imagino que as refeições que eu tenho lhe preparado não sejam do tipo a que você está acostumado.

— Adoro as refeições que você me prepara. Embora não seja obrigada a cozinhar para mim, é gentil em fazê-lo. Aprecio o gesto, especialmente depois de um longo dia de trabalho.

— Contudo você está habituado a pratos mais sofisticados.

— Apenas porque algo é sofisticado não quer dizer que seja melhor. Acho que você cozinha muito bem.

— Verdade? — As palavras soaram tão excitadas como se houvessem sido ditas por Lucy.

Ele acenou com a cabeça e sorriu.

Patrícia sentou-se ao piano e pôs-se a tocar, as notas me­lodiosas ecoando pela sala silenciosa.

Caleb deslizou os dedos pelos cabelos ralos do filho, deixando a música apagar os pensamentos desagradáveis sobre a esposa.

Algum tempo depois, notou que Ellie o observava acariciar Nate. Os olhos de ambos se encontraram por um breve momento.

Ela enrubesceu e desviou o olhar.

Que será que Ellie estivera pensando para corar daquela ma­neira? Ela dava a impressão de ser bastante sensível à sua pro­ximidade. Existiria algo? Uma atração magnética entre os dois?

Tudo a respeito de Ellie o agradava. A suavidade, a beleza delicada, a força silenciosa e a calma dignidade. Vê-la com Nate o tocava profundamente. Tratava-se da pessoa certa para criar seu filho. Encaixava-se em sua família de forma perfeita.

Uma sensação estranha o inquietou. Que idéia era aquela?

Desassossegado, Caleb fitou o braço engessado de Ellie. Sen­do uma mulher jovem e saudável, a fratura logo iria consolidar.

E Ellie voltaria para o trabalho no hotel.

De repente, em meio à música etérea, ele soube que não podia permitir que isso acontecesse. Ela era a melhor coisa que lhe acontecera em muito, muito tempo.

Poderia oferecer-lhe um emprego permanente de babá.

Todavia, lembrando-se de Mildred, a quem amava como a uma mãe, percebeu que continuava a considerar a velha se­nhora uma empregada. Não era essa a família que sonhara para Nate. Ou para si.

Sua outra opção seria casar-se com Ellie.

De súbito ele se deu conta de que aquele pensamento estivera em seu subconsciente há dias. Casamento seria a solução ideal. O que dizer para convencê-la? Seu trabalho como médico não estava indo exatamente de vento em popa. Teria que percorrer um longo caminho antes de conquistar a confiança dos mora­dores de Newton. Porém possuía uma casa decente e devido aos investimentos financeiros acertados que fizera tinha meios de sustentá-la adequadamente.

Quando Patrícia terminou de tocar, Nate acordou. Ellie es­quentou a mamadeira do bebê e Caleb alimentou o filho, ainda tentando descobrir um jeito de abordar o assunto do casamento. Como a tarde ia chegando ao fim, eles decidiram voltar à cidade.

O reverendo Beecher, não possuindo um veículo próprio, acomodou-se na charrete de Caleb, Ellie sentada na carroceria levando Nate no colo. Caleb parou primeiro na igreja para deixar o pastor antes de tomar o caminho da pensão.

Ao ver Ellie preparar-se para descer, segurou-a pelo braço, impedindo-a de mover-se. Dificilmente aquela era a situação ideal para propor casamento. Todavia duvidava muito de que uma situação perfeita surgisse nos próximos dias.

— Ellie, estive pensando em algo.

— Sim?

— Gostaria que você pensasse na possibilidade de se casar comigo.

Chocada, ela arregalou os olhos e limitou-se a fitá-lo, sur­presa demais para emitir qualquer som.

— Nate precisa de uma mãe — Caleb falou, sentindo-se desajeitado. — Eu preciso de uma esposa. Sei que isso pode lhe parecer egoísmo. Mas tenho rendimentos adequados e com certeza minha situação profissional tende a melhorar. Possuo um lar para lhe oferecer. — O que mais, realmente, possuía para oferecer a ela? — Você não seria obrigada a voltar a trabalhar no hotel e disporia de tempo livre para se dedicar aos seus próprios interesses. Talvez bordado, ou…

Uma brisa forte soprou e Ellie empurrou os fios de cabelos rebeldes para trás distraidamente, os olhos fixos num ponto distante, mas Caleb sabia que ela nada enxergava. Sem dúvida a chocara com aquela conversa inesperada e não fora capaz de lhe oferecer o suficiente para convencê-la.

— Daqui a algum tempo creio que terei condições de con­tratar os serviços de uma empregada. Você não ficará sobre­carregada com o trabalho doméstico.

Por fim ela virou-se para encará-lo.

— Apenas pense no que eu lhe disse — Caleb completou, desgostoso consigo mesmo. Estragara tudo. Na sua ansiedade, metera os pés pelas mãos. — Promete que o fará?

Em silêncio, Ellie aquiesceu.

— Vejo-a amanhã de manhã, então.

Ele observou-a descer da charrete e subir os degraus da varanda. Bem, não perdera nada pedindo-a em casamento. As únicas respostas possíveis seriam sim, ou não. Por que, então, lhe parecia imperativo que Ellie o aceitasse para marido? Que não o rejeitasse? Todavia sua proposta não soara muito convincente nem aos próprios ouvidos. Que mais poderia ter dito?

Ellie sempre lhe dera a impressão de ser uma mulher prá­tica, portanto todos os seus argumentos haviam sido de con­teúdo prático. Mas quem sabe não se enganara redondamente sobre a melhor maneira de abordá-la? Talvez Ellie se sensibi­lizasse mais às demonstrações de romance. O sensato, então, seria começar do zero, cortejando-a.

Caleb passou o resto da noite duvidando da habilidade com que conduzira a situação e imaginando uma forma de voltar atrás e conseguir uma chance de convencê-la a aceitá-lo como marido.

A cabeça de Ellie, já atordoada devido às novas experiências daquele dia, estava agora em ebulição. As palavras surpreen­dentes de Caleb pareciam impressas em sua mente. Gostaria que você pensasse na possibilidade de se casar comigo. Não conseguiria pensar em outra coisa pelo resto de sua vida. O resto de sua triste, patética e miserável vida.

Dr. Caleb Chaney, homem íntegro, nascido de uma família respeitável e formado numa das universidades mais concei­tuadas do mundo, tinha lhe pedido em casamento.

Mesmo se vivesse cem anos, jamais poderia se esquecer da voz profunda dizendo o impossível: Gostaria que você pensasse na possibilidade de se casar comigo.

Claro que não poderia fazê-lo.

Ele não lhe teria pedido a mão se soubesse quem era ela de fato, quem havia sido sua mãe e onde fora criada. Ele nem sequer permitiria que tocasse Nate se conhecesse seu segredo vergonhoso.

Depois de cumprimentar a srta. Shaw e o sr. Davis, que conversavam na varanda, Ellie foi até a cozinha, esquentou uma chaleira grande de água e buscou refúgio no quarto.

Então despiu-se, escovou os cabelos e banhou-se. A luz tênue do lampião, percebeu sua imagem refletida da cintura para cima no velho espelho sobre a cômoda. Pela primeira vez, em muito tempo, permitiu-se olhar. Os cabelos escuros e brilhantes caíam em ondas suaves sobre as costas. Seu rosto não poderia ser descrito como feio, pelo contrário. Os seios firmes e bem-proporcionados realçavam a cintura estreita. Seria por causa de seus atributos físicos que Caleb a pedira em casamento? Teria feito algo para encorajá-lo nesse sentido?

Ser atraente aos olhos de um homem era algo nocivo, não uma vantagem. Com movimentos rápidos ela se secou. Não sendo cega, ou ignorante, sabia muito bem o que perdera. Teria sido uma boa mãe e esposa.

Porém sua mãe fizera questão de arruinar-lhe as chances de felicidade e realização pessoal sem se importar a mínima. Nunca homem algum iria querê-la, quando soubesse a verdade. Todavia não seria justo culpá-los, quando mal conseguia encarar a si mesma.

Ellie vestiu a camisola branca de algodão e a abotoou até o pescoço. Vivera com esse segredo tempo demais. Olhando para ela, ninguém poderia adivinhar. Caleb não sabia. A família dele não sabia. Ninguém, em toda a cidade de Newton, o sabia.

E se aceitasse a proposta de Caleb? E se ambos se casassem? Pela primeira vez, vislumbraria um pouco de segurança. Teria um lar. Seus irmãos teriam um lar.

Todos os três passariam a morar naquela linda casa, farta e cheia de livros.

Com o coração apertado, Ellie apagou o lampião, aproxi­mou-se da janela e abriu-a. Debruçando-se sobre o peitoril, vasculhou a escuridão, identificando umas poucas luzes aqui e ali, mas sabendo muito bem que, por mais que tentasse, não seria capaz de enxergar a casa do médico.

A brisa morna do verão roçou-lhe as faces e soprou a camisola contra sua pele úmida de suor. Fechando os olhos, aspirou o perfume inebriante da noite.

E quanto a sacrificar sua liberdade? No momento estava no controle da própria vida.

Uma vida patética e destituída de sentido, era verdade.

Entretanto nunca se permitiria voltar a ser vulnerável outra vez. Também os aspectos físicos do casamento eram impensá­veis. Jamais suportaria aquela provação.

Mas e Flynn? E Benjamin? Seu único objetivo sempre fora descobrir uma maneira de oferecer um lar aos irmãos.

Há semanas não os via e ansiava saber se os meninos en­contravam-se bem, alimentados e confortáveis. Todavia apenas um milagre os faria felizes.

Olhando para o céu, Ellie estudou as estrelas em busca de um sinal. Talvez, talvez existisse uma possibilidade de acomo­dar as necessidades de todos.

Sem fechar a janela, deitou-se, a mente fervilhando.

Certa de que não era a hora apropriada para discutir o assunto do casamento com Caleb, Ellie deixou-o sair para o consultório e dedicou-se às tarefas domésticas.

Todavia tudo ao seu redor parecia mudado. Olhava a casa e os móveis com novos olhos. Aquela bela construção poderia ser o lar de sua família se Caleb continuasse desejando tê-la para esposa após ouvir suas condições.

Antes que esquentasse muito, ela levou Nate para um passeio pelo quintal, imaginando como seria plantar uma pequena horta, onde cultivaria tomates, alface e cenouras. Também gostaria de ter um jardim coalhado de flores coloridas. Narcisos, amores-perfeitos e gerânios. Depois de levar Nate para dentro e colocá-lo para dormir, lembrou-se de um livro sobre jardinagem que vira na biblioteca. Animada, apanhou-o e acomodou-se no sofá.

Aos poucos, o cansaço e o calor da tarde venceram-na. Fe­chando os olhos, adormeceu, os últimos pensamentos voltados para Benjamin e Flynn. Que será que os dois estariam fazendo? Sentia tanta saudade…

Assim que Nate acordou do cochilo, Ellie entregou-se aos preparativos do jantar, amassando pãezinhos para servir com o frango ensopado que Caleb parecia apreciar tanto. Também faria arroz fresco como acompanhamento e torta de pêssego para sobremesa.

O médico chegou em casa um pouco mais tarde do que o horário habitual,

— Desculpe o atraso — ele falou, entrando na cozinha. — Fui chamado para atender Mabel Connely uma hora atrás e levei algum tempo para convencê-la de que não está sofrendo do coração.

— A sra. Connely está doente?

— Não, está gorda. E prefere ignorar meus conselhos. Ape­nas quando perder peso é que passará a se movimentar com maior agilidade, sem cansar-se facilmente. Qualquer dia des­ses, o coração dela não agüentará e… — Caleb parou no meio da frase, notando a mesa posta com dois lugares. — Você vai ficar para jantar? — indagou surpreso.

Ela corou até a raiz dos cabelos.

— Se não for lhe causar problemas. Achei que poderíamos conversar.

— Sobre?

Não era assim que planejara a cena, Ellie pensou nervosa.

— Sobre aquilo que você me pediu para considerar.

— Não se trata de nenhuma decisão precipitada, não é mes­mo? Talvez você devesse refletir um pouco mais antes de me recusar. Sei que não nos conhecemos muito bem, porém…

— Por que você não se senta? O jantar está quase pronto e já irei servi-lo.

Caleb sentou-se. Ellie não disse uma palavra enquanto ti­rava os pãezinhos do forno e despejava o frango ensopado numa travessa.

Uma vez posta a comida na mesa, aguardou ao lado da cadeira.

Imediatamente Caleb levantou-se e puxou a cadeira, aju­dando-a a acomodar-se.

— Adoro este frango ensopado — ele comentou, depois das primeiras garfadas.

Ellie permaneceu em silêncio, até vê-lo colocar o garfo de lado.

— Que foi? Não está bom?

— Está ótimo. Delicioso. Apenas me diga sua decisão. Trêmula, ela levou o guardanapo aos lábios e o recolocou de volta sobre o colo. Não fora capaz de comer quase nada, tão grande a agitação interior.

— Pensei muito sobre aquele assunto.

— Sobre nós nos casarmos?

. — Sim. Nate precisa de uma mãe, você disse.

— Sei que não foi uma proposta muito romântica.

— É uma terra dura esta em que vivemos e as situações em que nós dois nos encontramos tampouco é fácil. Sobrevi­vência jamais foi algo muito romântico.

Observando-a atento, Caleb esperou.

— Existe uma coisa da qual eu também preciso.

— O que é?

— Preciso de um lar para meus irmãos. Dou-lhe minha palavra de honra que serei uma boa mãe para Nate. — Há anos decidira jamais ter filhos, pois a responsabilidade de criar os irmãos já lhe pesava bastante nos ombros. Entretanto se seu compromisso com o médico servisse para alegrar as tristes vidinhas deles, então casaria-se de bom grado. — Nate será tratado como se fosse meu próprio filho e, em troca, meus irmãos passariam a morar conosco.

Durante alguns minutos Caleb considerou a idéia, olhando ora para Nate, ora para Ellie. Não podia negar que sem ela nunca conseguiria conciliar os cuidados com o bebê e as exi­gências da carreira. Por sua vez, ele era a chance de Ellie realizar o sonho de dar um lar aos irmãos.

— Eles não são crianças pequenas, certo?

— Flynn tem nove anos e Benjamin, quinze. No momento estão trabalhando numa fazenda sem receber salário. Os dois poderiam trabalhar aqui, mas precisam ir à escola. Estudar é tudo o que sempre desejei para meus irmãos.

— Creio que posso concordar com isso.

— Você também tem que me prometer jamais espancá-los.

— Nunca bati numa criança em toda minha vida — ele respondeu, uma expressão séria no rosto. — Nate talvez poderá precisar de umas palmadas quando for mais velho, porém não sou do tipo que bate em crianças.

— Tem mais uma coisa. Nós dois não dormiremos no mesmo quarto. — Depressa, Ellie abaixou o olhar, o rosto em fogo. Mas era melhor esclarecer tudo. Não seria correto enganá-lo, deixando-o alimentar esperanças vãs.

Um silêncio interminável caiu sobre ambos. Por fim Ellie viu-se obrigada a erguer a cabeça e fitá-lo. Sabia o que Caleb pensava. Ele era homem e como tal desejava praticar aquele ato repulsivo. Provavelmente já estava imaginando quantas outras mulheres encontraria disponíveis na cidade, já que a esposa o recusava. Ellie conhecia esse tipo de mulher muito bem.

— E quanto a termos filhos?

Ela já havia dado a luz a uma criança e nunca teria coragem de enfrentar outra gravidez, mas Caleb jamais o saberia. Em­bora ele não merecesse a raiva e o ressentimento que a quei­mavam por dentro, a situação permanecia a mesma.

— Eu não quero ter filhos.

— Você poderá mudar de idéia algum dia.

— Se eu fosse você, não apostaria nisso.

Caleb retesou os músculos do rosto, mas ao fitar Nate sua expressão relaxou.

— Alguma outra condição? — indagou apenas.

— É só.

— Está bem. Falarei com o reverendo Beecher amanhã mes­mo. Você quer planejar a cerimônia?

— Quero apenas ir buscar meus irmãos.

— Será a primeira coisa que faremos no sábado.

— A adoção terá que ser legal.

— Procurarei um advogado e os papéis da adoção serão preparados. Para nós dois assinarmos.

Então ela adotaria Nate? Fitando o bebê, que comia um pedaço de pão, Ellie pediu a Deus que estivesse fazendo a coisa certa. Para o bem de todos.

No dia seguinte, sozinho no consultório, Caleb depositou os instrumentos cirúrgicos num pe­queno vasilhame com água fervente, para esterelizá-los, pensando, pela milésima vez, sobre o que estava a ponto de fazer. Ela podia mudar de idéia.

Analisara essa parte do trato à exaustão. Sem dúvida Ellie mudaria de idéia. Já fora casado com uma mulher que apre­ciava a possibilidade de ser mãe, mas não a realidade do fato. Leila tampouco parecera gostar da intimidade física, porém nunca o tinha recusado.

Se, por qualquer motivo, Ellie realmente não quisesse filhos, ele com certeza saberia evitá-los. Afinal, era médico! Não seria difícil explicar à esposa os métodos simples de impedir uma gravidez. Claro que gostaria de ter mais filhos porém, no mo­mento, sua maior preocupação referia-se a Nate.

A todo custo, deveria encontrar um modo de manter Nate consigo e não ser obrigado a entregá-lo a Patrícia e Denzil. Haveria de conseguir levar aquele casamento de fachada adian­te, se Ellie insistisse para que fosse assim. Ficaria com Nate. E ela realizaria o sonho de oferecer um lar aos irmãos. Quem sabe Ellie não acabaria mudando de idéia depois de conhecê-lo melhor? Contava com a chance conquistar-lhe a confiança e apagar a solidão que a envolvia como uma sombra escura.

Por volta da hora do almoço, Caleb decidiu visitar o reve­rendo Beecher, passando antes na Padaria Hintz's para com­prar uma torta de pêssego. O velho pastor tinha um fraco por esse doce e os olhos bondosos brilharam de satisfação diante da iguaria suculenta.

— Tem mesmo certeza do que quer, filho? — ele indagou, ao saber das intenções do médico.

— Certeza absoluta. Ellie é a resposta às minhas preces.

— Deus escreve certo por linhas tortas — o reverendo assentiu. Planos foram feitos para uma cerimônia simples no sábado seguinte, à tarde. Caleb decidiu convidar a população da cidade através de um aviso colocado no correio e no armazém. No caminho de volta para o consultório, parou no Restaurante Isaac's e encomendou um lanche farto a ser servido após o casamento. Também retornou à Padaria Hintz's e ordenou um bolo especial, coberto de glacê branco.

Seus pais aceitaram bem a notícia quando, naquela mesma noite, comunicou-lhes a decisão tomada. Sua mãe não chorou, ou ameaçou desmaiar, e seu pai não tentou dissuadi-lo da idéia. Entretanto ambos o fitaram com uma expressão piedosa, dando a entender que consideravam sua atitude fruto do desespero.

E não iria culpá-los de pensar assim, quando era verdade. Todavia teriam que aprender a aceitar o fato. Afinal, nem todo casamento podia ser perfeito como o deles.

O sábado amanheceu quente e abafado na pequena cidade de Newton. Caleb deu banho em Nate e se barbeou antes de vestir-se. Então os dois tomaram o caminho da pensão.

Trajando saia azul-marinho e blusa branca, um pequeno chapéu sobre os cabelos escuros, Ellie aguardava-os nervosa, andando de um lado para o outro da varanda.

Antes mesmo de a carroça parar, ela apanhou uma sacola e correu ansiosa, não dando nem sequer tempo a Caleb de ajudá-la a subir.

— Bom dia — ele a cumprimentou.

— Bom dia.

Ambos trocaram um breve olhar e Ellie abaixou a cabeça, ajeitando a sacola na carroceria.

— Levaremos suas coisas para casa amanhã, se não tiver problema.

— Problema nenhum. Trouxe comigo apenas uma muda de roupa e alguns objetos pessoais.

Ellie tirou Nate do cesto e o segurou no colo para que o bebê pudesse ver o cenário e sentir a brisa.

— Vocês dois vão ficar muito queimados sob este sol forte. — Nunca antes Caleb conhecera uma dama capaz de viajar sem levar uma sombrinha consigo. A mulher com quem iria se casar dentro de poucas horas lhe parecia pouco convencional e às vezes tinha a impressão de que ela acabara de chegar de um país estrangeiro. — Aqui, use isso.

Aceitando o guarda-chuva preto, Ellie o abriu para prote­ger-se e ao bebê. Quanto mais se aproximavam de Florence, mais inquieta ela ficava.

— Agora você terá que me mostrar o caminho para a fazenda, pois já saímos do perímetro da cidade — Caleb falou depois de meia hora do mais absoluto silêncio, o suor lhe escorrendo pela testa.

Um rapazinho, às margens da estrada, capinava sob o sol ardente. Ao notar a aproximação da carroça, o menino ergueu a cabeça.

Um sorriso brilhante iluminou o rosto feminino. Ellie fez menção de levantar-se enquanto o veículo ainda se movia.

Temendo vê-la perder o equilíbrio e cair, Caleb a puxou pelo braço, obrigando-a a sentar-se novamente.

— É ele! É Benjamin! Benjamin! — ela gritou excitada, abanando a mão.

O rapaz largou a enxada e, mancando, aproximou-se da carroça. Vestindo somente uma velha calça rasgada, Benjamin exibia nos ombros magros uma variedade de bolhas, prove­nientes de queimaduras.

— Ellie? — a voz baixa revelava espanto. Entregando Nate a Caleb, Ellie desceu da carroça e envolveu o irmão num abraço desajeitado. Benjamin retribuiu o gesto, o chapéu de palha gasto caindo no chão e revelando olhos incrivelmente azuis.

— O que aconteceu com seu braço?

— Eu caí. Este é o dr. Chaney, quem consertou a fratura.

— Você vai ficar bem?

— Estou bem. Daqui a uma, ou duas semanas, irei tirar o gesso. Ben, vim até aqui para buscá-lo. O dr. Chaney e eu vamos nos casar. Você e Flynn passarão a morar conosco. Definitivamente.

Desconfiado, o garoto lançou um olhar para Caleb.

— É verdade? — indagou áspero.

— Sim. Sua irmã já se decidiu.

— Ele não a está obrigando a se casar, não é?

— Não. O dr. Chaney é um homem bom. Você verá.

— Aposto que sim.

— Onde está seu irmão? — ela perguntou, tocando-o de leve no braço.

— Debulhando milho, a última vez em que o vi. Atrás do celeiro.

— Venha, vamos contar-lhe a novidade.

Apanhando o chapéu, Benjamin saiu apressado atrás da irmã, dando a impressão de sentir dor nos pés a cada passo.

Caleb conduziu a carroça na mesma direção.

De pé numa pequena varanda, uma mulher o observava atenta. Duas meninas brincavam à sombra de uma árvore, cada qual segurando uma boneca de pano. Ao perceberem a chegada do estranho, as meninas levantaram-se e correram para a varanda. Mãe e filhas usavam vestidos limpos, aventais imaculadamente brancos e sapatos de couro marrom. De ca­belos bem penteados, mãos e rosto lavados, tinham uma apa­rência cuidada.

Como só havia sombra ao lado do celeiro, Caleb deixou os cavalos pastarem ali por perto, dando-lhes água do balde.

Ao terminar de cuidar dos animais, Ellie já havia encontrado o irmão mais novo e agora se aproximava da carroça sem dis­farçar o contentamento. O garotinho também estava sem ca­misa, Caleb reparou. Uma tolice andar desprotegido sob um sol abrasador. Não era à toa que a pele do nariz e ombros do menino estava vermelha e descascada.

— Esse é o médico? — Flynn indagou, com sua vozinha infantil.

— Sim. Caleb, este é meu irmão mais novo. Caleb ajeitou Nate no colo e estendeu a mão.

A criança deu um passo atrás e se agarrou à saia da irmã.

— Dr. Chaney quer apenas apertar sua mão. E algo que homens educados fazem, ao serem apresentados.

Estranho que uma coisa tão simples precisasse de explicação, Caleb pensou curioso.

Ainda hesitante, Flynn estendeu a mão. O médico apertou-a.

— E este é Benjamin—Ellie completou, mostrando o rapazinho. Novamente Caleb estendeu a mão.

Fitando-o com olhos azuis gelados, Ben ignorou o gesto.

Bastou alguns minutos para Caleb se dar conta de que aque­les três em nada se pareciam fisicamente. Ninguém os imagi­naria irmãos.

— O que está acontecendo aqui? — esbravejou um homem atarracado, aparecendo do lado oposto do celeiro.

Quando Flynn virou-se, Caleb percebeu manchas arroxeadas na altura das costelas. O garotinho estava tão queimado pelo sol e tão empoeirado, que a princípio não percebera do que se tratava. Porém era médico e seus olhos treinados acabaram por levá-lo a uma única conclusão.

— Flynn, o que aconteceu com você? — perguntou firme.

— Nada — a criança respondeu, tentando se esconder atrás da irmã.

— Você está machucado. Deixe-me ver. — Ignorando os pro­testos tímidos do menino, aproximou-se e examinou as costas magras. Muitos ferimentos, em estágios variados de cicatrização, marcavam a pele sensível.

Sem dúvida alguém andara espancando Flynn, pois aqueles machucados não eram típicos de uma queda.

— Quem fez isso com você?

O garotinho limitou-se abaixou a cabeça, o rosto ingênuo destituído de expressão.

Fitando Ellie, Caleb notou como ela se esforçava para não chorar, para conter um sentimento que ele abominava: medo.

Então virou-se para Benjamin, em busca de explicação. Em silêncio, o rapazinho dirigiu o olhar carregado de ódio para o homem que se acercara do pequeno grupo. Seu comportamento beligerante era toda a resposta de que Caleb precisava.

— O que você está fazendo aqui? — o homem interrogou Ellie num tom brusco. — Só a esperávamos daqui a duas semanas.

— Vim buscar meus irmãos, sr. Heath. — Apesar da voz trêmula, ela manteve a cabeça erguida.

— Perdeu seu tempo. O juizado de menores me entregou estes meninos e ninguém me avisou de que seriam levados embora.

— Temos os papéis legais. Vou me casar com este homem e ele irá adotar meus irmãos.

— Vocês têm provas? Trouxeram um juiz naquela car­roça chique?

— Temos provas suficientes de que você não serve como guardião — Caleb falou irado, incapaz de se manter alheio à discussão. Gentilmente, deslizou os dedos pelos ferimentos nas costas de Flynn. — Essa não é a maneira de se tratar crianças.

— O garoto é desajeitado. Vive caindo.

— Ele não caiu.

— Você caiu, menino? — Heath perguntou a Flynn.

O pobrezinho concordou com um aceno, ainda de cabeça baixa.

— Por que você está mancando? — Caleb indagou a Benjamin.

— Devo ter pisado em algo.

— Deixe-me ver.

— Vá para o inferno.

— Benjamin — Ellie o interpelou autoritária. — Tire suas botas agora mesmo.

Depois de um momento de hesitação, o rapazinho sentou-se no chão e tirou as botas surradas.

Entregando Nate a Ellie, Caleb ajoelhou-se para examinar os pés sujos de Ben. As solas, calcanhares e dedos estavam cobertas de bolhas vermelhas e infeccionadas.

Uma fúria animalesca, como jamais experimentara antes, pareceu sufocá-lo diante das evidências de maus-tratos. Du­rante alguns segundos, fechou os olhos para recuperar o con­trole das emoções.

Devagar, levantou-se afinal, fitando Heath fixamente. Em toda sua vida, nunca tivera ímpetos de surrar um ser humano, mas agora o desejo era tão forte que quase não conseguia conter-se.

Com certeza não teria dificuldades em derrubar Heath. Era mais alto, mais jovem… Consumido pela urgência de fazer o outro sofrer, cerrou os punhos, pronto para partir para o ataque.

Entretanto hesitou. Aqueles garotos já haviam sido expostos a violência demais, já haviam sofrido na carne os efeitos da opressão. Comportar-se como Heath seria proclamar a inexis­tência de outra forma de agir. Aos olhos das crianças, acabaria se tornando igual a quem desprezavam. E, de repente, parecia-lhe importante conquistar-lhes a confiança.

Mentalmente, Caleb contou até dez. Depois até vinte, gotas de suor escorrendo-lhe pela testa. Inspirando fundo, relaxou os punhos. Apenas então se permitiu olhar para Ellie.

Foi o absoluto terror estampado no rosto bonito o que acabou por lhe restaurar a calma.

— É óbvio que essas crianças têm sido tratadas com extrema crueldade — começou firme. — Flynn tem ferimentos diversos em estágios variados de cicatrização. Tais machucados não são conseqüência de um único incidente, ou acidente. Os pés de Benjamin necessitam cuidados médicos urgentes. O uso de sapatos apertados e a ausência de meias provocaram bolhas infeccionadas.

Porque não queria assustar o menino, não mencionou a pos­sibilidade da perda de alguns dos dedos, caso a infecção se espalhasse.

— Os dois têm sido expostos ao calor e ao sol sem roupas adequadas. Aposto que não são alimentados corretamente. Am­bos estão abaixo do peso e sofrem de exaustão. Seus animais não parecem ser tão maltratados quanto esses garotos, senhor.

— O que você pensa que é? Médico? — o outro devolveu com um rosnado.

— De fato, é exatamente o que sou. Vou levar estes meninos comigo e ainda relatarei ao juizado de menores as condições em que os encontrei aqui.

— Você não tem nenhum direito! Saia das minhas terras agora!

— Mesmo se os papéis de adoção não estivessem em ordem, eu teria direitos legais de arrancá-los de suas mãos. Você jamais voltará a maltratar outra criança, Heath. Seus dias de surrar e explorar órfãos estão acabados.

Caleb caminhou até a varanda, onde as meninas continua­vam grudadas na barra da saia da mãe. Julgando pela apa­rência saudável e bem nutrida de ambas, concluía tratar-se das filhas de Heath.

A comparação entre as duas e os meninos órfãos cortava-lhe a alma. Podia imaginar a angústia mental de Ben e Flynn, vendo as garotas sendo alimentadas e paparicadas enquanto eles se matavam de trabalhar e mal tinham o que comer.

Enojado, Caleb retornou para junto de Ellie, que tremia sem parar. Tomando-lhe Nate dos braços, pediu que conduzisse os irmãos até a carroça.

— Se vocês têm algo que desejam levar consigo, vão buscar — avisou aos meninos. — Farei com que Heath fique exata­mente aqui até que estejam de volta.

— Quero as roupas que Ellie me deu de presente — Benjamin anunciou.

— Não, Ben, vamos embora. — A voz de Flynn não passava de um murmúrio aflito.

— Quero aquelas roupas.

— Vá buscá-las, Benjamin. — Parado diante de Heath, Caleb o desafiou com o olhar a esboçar um único gesto, mas sabendo de antemão que um covarde nunca agride alguém de seu pró­prio tamanho.

Dali a instantes Ben regressava. Ao abaixar-se para reco­locar as botas, Caleb o mandou abandoná-las e subir na carroça.

— Você não vai se safar assim tão fácil! — o fazendeiro o ameaçou, vendo-o preparar-se para partir.

Ignorando-o, Caleb ajudou Flynn e Ellie a se acomodarem no veículo antes de entregar Nate à noiva. Então tomou a estrada.

Enquanto se afastavam da fazenda, Ellie sentiu o coração recomeçar a bater normalmente. Houvera momentos em que temera não ser capaz de suportar a crescente tensão nervosa. Caleb estivera furioso e pensara que algo terrível acabaria acontecendo. Imaginara-o perdendo o controle, berrando e agre­dindo aquele homem odioso.

A reação dele a surpreendera por completo. Mantendo-se calmo, controlara uma situação explosiva.

Culpa e dor atravessaram o peito de Ellie, obrigando-a a morder o lábio para não chorar. Se ao menos tivesse sabido o que estava acontecendo na fazenda. Por que seus irmãos não lhe contaram nada? E o que poderia ter feito, se soubesse a verdade? Teria sido obrigada a tirá-los de lá e fugir do juizado de menores porque já havia tentado tê-los sob sua custódia legal e seu pedido fora negado.

Os ferimentos nas costas de Flynn eram como punhais tres­passando seu coração. O coitadinho já suportara tanto sofri­mento em sua curta vida. Benjamin também. E imaginá-los famintos e feridos, sem ninguém para amá-los. Oh, Deus, era tudo tão injusto… tão injusto…

Nate adormecera e seu braço doía por causa do peso.

— Flynn, você pode me ajudar a colocar o bebê no cesto?

— Onde você arranjou esse bebê, Ellie? — o garoto pergun­tou, auxiliando-a a mover o cesto.

— O nome dele é Nate. Trata-se do filhinho do dr. Chaney.

— O dr. Chaney vai mesmo nos adotar?

— Sim — Caleb retrucou, virando a cabeça para fitar o menino. — E você pode me chamar de Caleb.

— Se Ben e eu formos adotados, então seremos irmãos de Nate?

— Claro que sim.

Flynn sorriu, o prazer genuíno da criança trazendo lágrimas aos olhos de Ellie.

— Para onde estamos indo agora?

— Caleb tem uma linda casa, em Newton. Vocês vão poder ir à escola.

— Escola é para bebês — Benjamin comentou ríspido. Ellie fitou Caleb porém ele permaneceu em silêncio, a aten­ção aparentemente focalizada na estrada.

— Eu quero ir para a escola. — A voz de Flynn soou so­nhadora e esperançosa.

— Você irá — ela prometeu ao irmão.

Ao chegarem a Newton, a primeira providência de Caleb foi parar defronte da loja de roupas, anunciando que todos deveriam descer.

Como se anestesiada, Ellie observou-o conversar com o dono da loja, que no mesmo instante pôs-se a medir os meninos e selecionar várias peças das prateleiras, colocando-as sobre o balcão. Dando-se por satisfeito, o homenzinho careca postou-se diante de Ellie.

— Creio ter alguns vestidos que lhe servirão.

— Oh, não estou precisando de vestidos.

— Escolha alguma coisa para usar hoje — Caleb falou gen­tilmente às suas costas. Pelo visto o médico esperava vê-la usando um traje bonito na cerimônia de casamento.

Sem esperar um segundo, Joseph Gerson selecionou três modelos que julgava ideais.

— Vou precisar que a costura seja aberta numa das mangas para acomodar o gesso — Ellie murmurou atordoada, esco­lhendo um modelo rosa-claro com corpete branco e saia rodada.

— Minha esposa cuidará disso em questão de minutos.

— A srta. Parrish levará os três vestidos — Caleb interveio. — Além de um par de sapatos de festa. Quero algo bonito e delicado.

O rosto do sr. Gerson se iluminou, animado.

— Tenho o par perfeito. Por que não se senta para experi­mentá-los, senhorita?

Tímida, Ellie sentou-se e tirou as botas de couro preto. Eram calçados simples mas de boa qualidade. Sentira-se orgulhosa quando os comprara com o primeiro salário que recebera no hotel. Depois de colocar os sapatos de festa, admirou-os, en­cantada com a delicadeza do trabalho.

— Vamos levar este par — Caleb determinou. — Mande-me a conta, Gerson.

Todas aquelas roupas deveriam ter custado uma fortuna! Nervosa, Ellie segurou Nate com força enquanto dizia:

— Eu… eu vou reembolsá-lo depois. O médico sorriu-lhe, cortês.

—Vocês são minha família agora. São minha responsabilidade.

— Mas…

— Dinheiro não é problema. Sou dono de parte da fazenda e recebo uma soma confortável todo mês. Também possuo uma pequena criação de cavalos de raça.

Pasma, Ellie retornou à carroça, mal notando o calor en­quanto Caleb conduzia o veículo até a casa.

— É aqui? — Flynn desceu e fitou a construção enorme sem esconder o assombro. Parecia estar diante de um castelo.

— Acho que temos tempo de tomar banho, — Caleb consultou o relógio de bolso. — Ellie, você me ajuda a esquentar água?

Ela havia se banhado logo cedo ao acordar e, no momento, sentia necessidade apenas de lavar as mãos e o rosto. Mas entendera a mensagem de Caleb. Os meninos precisavam de um belo banho.

— Sirva um lanche às crianças antes do banho — ele sugeriu, quando os dois ficaram a sós na cozinha. — Apenas não os deixe comer muito por enquanto. Também evite servir-lhes coisas picantes ou gordurosas. O estômago leva algum tempo para se acostumar a receber uma quantia maior de alimentos.

Embora soubesse que os irmãos encontravam-se subnutri­dos, irritava-a ouvir o assunto ser mencionado, ainda que de forma delicada.

Nate acordou e começou a chorar de fome. Caleb pôs-se a esquentar água deixando para Ellie a tarefa de alimentar o bebê. Depois de atender Nate, ela preparou pequenas porções de pão e frutas para os garotos. Flynn comeu tudo e correu para explorar o resto da casa e o quintal sem disfarçar o entusiasmo. Benjamin, entretanto, não se moveu do lugar, fazendo ques­tão de não parecer impressionado.

— Quem vai tomar banho primeiro? — Caleb perguntou. Flynn se ofereceu e, apesar dos protestos da irmã, insistiu em se banhar sozinho. Atenta, Ellie o avisou para não se es­quecer de lavar os cabelos, atrás das orelhas e sob as unhas. Após Benjamin ter se banhado também, os dois sentaram-se na cozinha e Caleb pôde enfim passar um ungüento nas quei­maduras de sol espalhadas pelas costas, ombros, pescoço e rosto das crianças.

— Beba isto — Caleb disse a Benjamin.

— Não sou obrigado a aceitar nada de você, se não quiser — o rapazinho retrucou desafiante.

— E verdade. Porém, como médico, aconselho-o a aceitá-lo. Assim, a dor será menor enquanto eu estiver tratando de seus pés.

— O que é?

— Láudano. Uma pequena dose. Se eu pretendesse enve­nená-lo, não teria me dado ao trabalho de ir até Florence bus­cá-lo, não é?

Relutante, Benjamin tomou o medicamento. Caleb aguardou alguns instantes, para que o remédio começasse a fazer efeito, e então desinfetou as bolhas enormes e infeccionadas. Depois passou ungüento nos pés do menino e os envolveu em leves bandagens.

Atentos, Ellie e Flynn acompanhavam todo o processo. Era evidente o extremo cuidado do médico para não ferir Ben. Ob­servando os movimentos gentis, Ellie lembrou-se do desvelo com que ele tratara da sra. Bowman. Caleb se importava ver­dadeiramente com cada um de seus pacientes e essa preocupação revelava-se em cada gesto, cada olhar. Confortava-a sa­ber que os irmãos encontravam-se bem cuidados.

— Eu prefiro que você evite andar durante vários dias — ele falou, terminando de enfaixar os pés do garoto. — Todavia, como sei que não gostaria de perder o casamento de sua irmã, irei liberá-lo até após a festa. Depois quero que faça repouso.

Vendo os irmãos limpos, os cabelos ainda úmidos e cheirosos, Ellie experimentou uma enorme sensação de gratidão ao fitar Caleb. Queria agradecer-lhe. Entretanto nunca poderia pagar esse débito. Roupas e sapatos eram coisas materiais, mas a chance de uma nova vida não tinha preço. E fora isso que Caleb oferecera a todos eles.

— Quero que vocês dois saibam que poderão comer tudo o que desejarem, na quantidade que quiserem e sempre que sen­tirem fome — ele falou, lavando as mãos e enxugando-as numa toalha. Porém nesses primeiros dias é necessário que sejam parcimoniosos para não adoecerem. Compreendido?

Flynn concordou com um aceno de cabeça e Ben o ignorou.

— Acho melhor nós nos arrumarmos agora — Caleb sugeriu, fechando a maleta de couro e levantando-se.

Ellie apanhou os embrulhos com as compras e correu para o quarto que usara até poucos dias atrás, Flynn seguiu-a como uma sombra, ansioso para ajudá-la. Não foi fácil convencer o menininho a esperá-la do lado de fora. Depois de lavar o rosto e as mãos, penteou os cabelos cuidadosamente, a cabeça fervilhando de per­guntas. Então se deu conta de que o vestido comprado para a cerimônia possuía uma fileira de botõezinhos nas costas.

— Preciso de ajuda — falou, abrindo a porta do quarto e sorrindo ao ver que Flynn continuava de plantão.

— Vai ser uma espécie de contos de fadas, não é? — o garotinho perguntou, terminando de abotoar o vestido e sen­tando-se na cama.

— O que será um conto de fadas?

— Você se casando com o médico e nós todos morando nesta casa bonita. Olhei na despensa e as prateleiras estão cheias de comida. Tem comida para durar o inverno inteiro!

Emocionada, Ellie puxou o irmão para junto de si e abraçou-o com força. Fitando o rostinho tão puro e amado, prometeu:

— Ninguém, nunca mais, tornará a machucá-lo, meu querido. Juro-lhe. Você vai comer até se fartar todos os dias de sua vida.

— Vou dormir num desses quartos? Não vi nenhum celeiro lá fora.

— Você e Ben dividirão um quarto, mas dormirão em camas separadas. Caleb foi até a loja de móveis ontem e mandou que entregassem duas camas. Ainda não tive tempo de arrumar o quarto, porém logo o farei.

— Eu sempre quis um travesseiro de plumas, Ellie. Lem­bro-me de que você tinha um e costumávamos dividi-lo, mas algo acabou acontecendo com ele.

Bêbada, a mãe de ambos havia atirado o travesseiro no quintal num acesso de raiva. O cachorro logo o despedaçara, as penas sendo espalhadas pelo vento frio de novembro.

— Você terá seu próprio travesseiro, prometo.

Ela estava fazendo muitas promessas, colocando esperanças demais no acordo que fizera com o médico. Cumprir essas pro­messas todas dependeria de Caleb Chaney. Outra vez Ellie sentiu-se completamente vulnerável, um sentimento que pen­sara nunca mais tornar a experimentar.


CAPÍTULO VIII

Ben apareceu vestindo as roupas que a irmã lhe dera de presente, não as que Caleb escolhera. Ellie começou a objetar, porém o noivo a silenciou, dizendo:

— Que irmãos bonitos você tem.

Apesar de notar o evidente desdém com que Benjamin o tratava, o médico parecia não se importar. Com um sorriso satisfeito, conduziu-os até a igreja.

Ellie jamais assistira a um casamento e não sabia o que esperar. Mas certamente não imaginara que tantas pessoas fossem comparecer à cerimônia, todas usando roupas elegantes e chapéus de bom gosto. Tampouco estivera numa igreja antes e tudo ali dentro tinha o poder de fasciná-la, desde as pinturas nas paredes até os candelabros altos, de cobre maciço.

Pelo menos o reverendo Beecher era uma figura familiar, apesar da vestimenta estranha: túnica preta e estola branca, com algumas cruzes bordadas em fio dourado. Enfrentá-lo não a apavorava tanto quanto o encontro com o sr. Heath a tinha assustado, no início daquela manhã.

A roupa de Caleb também era especial para a ocasião e sem dúvida fora feita sob medida. O terno preto e a camisa branca acentuavam sua alta estatura, os ombros largos e o ar de absoluta masculinidade. Impossível não notar também a qualidade do te­cido, um pequeno lembrete da prosperidade de quem o usava. Por um momento Ellie ressentiu-se dos motivos que a tinham feito chegar àquele extremo. Logo no primeiro dia em que cami­nhara ao lado de Caleb Chaney, imaginara-se amiga dele, fingira ser alguém de quem o médico sentisse orgulho.

E ali estava, valendo-se de um nome falso para casar-se com um homem a quem respeitava em busca de um pouco de estabilidade, algo que nunca conhecera na vida. Ele continuava a ser tão íntegro, gentil e honrado como o julgara, mais até, à medida que o conhecia melhor. Se houvesse alimentado dú­vidas sobre a verdadeira natureza de Caleb, elas tinham sido dissipadas naquela manhã, ao vê-lo enfrentar Heath com fir­meza, mas sem se permitir perder o controle.

Tomara a decisão certa para os irmãos. Bastava observá-los sentados no primeiro banco, impecavelmente vestidos e pen­teados, para que seu coração se enchesse de alegria.

Assim que a pequena multidão dentro da igreja sossegou, a cerimônia teve início. Em questão de minutos, Ellie repetiu os votos que o pastor leu de um livreto e Caleb fez o mesmo. Então o reverendo Beecher tomou sua mão e a entregou a Caleb. Ellie quase perdeu o fôlego ao ver o anel de esmeraldas e brilhantes que o noivo colocava em seu dedo anular. Com as bênçãos divinas, foram proclamados marido e mulher.

Fitando-a fixamente, Caleb inclinou-se. Entretanto, em vez de beijá-la, apenas tocou-a de leve no rosto, com a ponta dos dedos. Depois, lhe ofereceu o braço. Com o coração aos pulos, Ellie apoiou a mão no braço forte e se deixou conduzir para fora da igreja sob uma chuva de aplausos.

Um mar de pessoas se acercou do casal para parabenizá-los. Atordoada, Ellie reconheceu os pais e a irmã de Caleb, além dos donos de algumas lojas. Sua surpresa maior, todavia, foi a presença de Goldie Krenshaw.

— Estou tão feliz por você! — exclamou a garçonete, abraçando-a.

— Obrigada. Como estão as coisas no dormitório do hotel?

— Na mesma. Exceto que a notícia de seu casamento pro­vocou um rebuliço esta semana.

— Como você soube que eu ia me casar?

— Vi o convite colocado no correio. Como tratava-se de um convite público e eu tinha a tarde livre, pensei em vir.

— Sua presença me deu enorme prazer, acredite-me. Minutos depois, Caleb a fazia subir na charrete.

— Os meninos? — Ellie perguntou, preocupada com Nate e os irmãos.

— Meus pais os levarão para casa.

Casa. Tinham uma casa. Enfim. A idéia de um lar a emo­cionava tanto, que por pouco não caiu em prantos. Seu sonho realmente iria se tornar realidade?

— Você está bem? — Caleb indagou, parando a charrete diante da casa e ajudando-a a descer.

— Oh, tem uma pessoa lá dentro — ela murmurou espantada, percebendo a porta entreaberta e um vulto perto da janela.

— Sim. — Vendo-a hesitar, Caleb completou: — Está tudo bem. É uma surpresa.

Confusa, ela se deixou conduzir, o aroma delicioso de comida quentinha inundando-lhe o olfato. Na sala de jantar, a mesa estava coberta com uma toalha branca de linho e exibia iguarias finas: pãezinhos diversos, tortas salgadas de carne e frango, enroladinhos de presunto. Numa outra mesa, colocada num canto, um bolo imenso de três camadas, coberto de glacê branco, e uma tigela de vidro com um líquido semelhante a limonada dentro. A concha de prata, encostada na borda da tigela, deveria ser usada para despejar a limonada em copinhos de vidro.

— O que é tudo isso?

— É costume celebrar as núpcias — Caleb explicou, erguendo a sobrancelha, o sorriso inicial dando lugar a uma certa preo­cupação. — Por quê? Você não gostou?

— Sim. Gostei muito. Eu só não sabia de nada.

— Se você soubesse não seria surpresa.

Nenhuma das surpresas na vida de Ellie havia sido agra­dável até então. Maldito livro de etiquetas que não mencionara nada sobre comemorações de especiais. Sentia que fizera papel de tola e fora indelicada. Agora não havia como consertar o estrago. Restava-lhe apenas agradecer.

— Obrigada.

— Você é um enigma, Ellie.

Os convidados começaram a chegar. Logo vizinhos, amigos e parentes monopolizavam a atenção do casal. As sras. Ned e Henderson foram umas das primeiras a aparecer, acompanha­das da srta. Shaw. Pelo visto o povo de Newton fazia de um casamento um grande evento. Todos pareciam saber como agir. Depois de encher seus pratos, espalhavam-se pelas salas e até pelos jardins, conversando animadamente enquanto comiam.

— Seu vestido é muito bonito — Patrícia comentou. — O gesso não atrapalha na hora de se arrumar?

— Desfiz as costuras da manga esquerda. Caleb comprou esta roupa para mim hoje de manhã, mas a esposa do dono da loja fez as alterações necessárias.

— É um belo anel também.

A jóia parecia pesar no seu dedo e com o braço na tipóia, o brilho das pedras preciosas se sobressaía ainda mais, atraindo olhares e despertando comentários.

— Seus irmãos são sem dúvida bonitos, porém terrivelmente tímidos. Ainda não os ouvi dizer uma única palavra.

— Onde você os viu pela última vez?

— Lá fora. Lucy adorou seu irmão mais jovem. Minha filha é uma menina muito atirada.

Ellie considerava Lucy absolutamente encantadora e gosta­ria que Ben e Flynn demonstrassem um pouco da autoconfiança da garota. Talvez ela fosse uma boa influência para os dois.

— Acho que vou procurá-los. Eles não conhecem ninguém. Os garotos estavam sentados à sombra de uma árvore, no quintal. Ben e Flynn já haviam tirado os sapatos e enrolado as mangas da camisa. Lucy entretinha-se desamarrando as botinhas de couro com a intenção de tirá-las também.

— Veja, Ellie! — a menina gritou sorrindo. — Estamos re­frescando nossos pés.

Benjamin mantinha os olhos fixos na rua, como se estivesse entediado.

— Lucy disse que agora você é tia dela — Flynn apressou-se a dizer.

— Imagino que sim. — Ellie acomodou-se na grama, perto das crianças.

— Mas você continua sendo nossa irmã, o que é muito melhor. Lucy havia tirado as meias brancas e agora mexia os dedos, rindo sem parar.

— É divertido.

Os pés dela eram tão brancos e delicados quanto os de Nate, os dedos pequeninos e rosados. Provavelmente pés que jamais haviam tomado sol, ou roçado a grama. Quando Benjamin a olhou, Ellie soube no que o irmão pensava, na comparação inevitável entre estilos de vida opostos. O rapazinho tirara os sapatos e agora descansava, conforme Caleb o instruíra. Mesmo usando sapatos confortáveis, Ben deveria ter sofrido uma ver­dadeira tortura nas últimas horas.

Tocando-o de leve no ombro, Ellie indagou baixinho:

— Você está bem?

— Sim.

— Comeu alguma coisa?

— Não.

— Pois eu comi — Flynn anunciou orgulhoso. — Caleb me serviu. Mas Ben disse que não queria entrar em casa, com toda aquela gente.

— Então eu vou buscar algo. — Dentro de poucos minutos, Ellie retornava ao jardim com um prato cuidadosamente pre­parado. — Não consegui trazer a bebida também. Flynn, vá apanhar um copo de limonada para seu irmão.

O garotinho apressou-se a obedecer.

Ben aceitou o prato sem hesitar, deliciando-se com a comida saborosa.

— Quando fui visitá-los na fazenda, a sra. Heath preparou um almoço e todos nós comemos juntos na cozinha. Porém não era sempre assim, era?

— Não. Nunca. Flynn e eu comíamos no celeiro, em geral feijão frio e um pedaço de carne de porco salgada. Às vezes as meninas nos levavam biscoitos, ou nacos de pão fresco. Uma delas até nos trouxe uma fatia de torta de maçã. Acho que a sra. Heath sabia o que se passava, porém tinha medo dele.

— Por que você não me contou? — Ellie falava com dificul­dade, lutando para conter as lágrimas.

— Serviria apenas para fazê-la sentir-se pior. Eu não queria vê-la preocupada conosco. Você já enfrentava seus próprios problemas e não havia nenhuma atitude que pudesse tomar.

Aquela era a primeira vez, em vários meses, que Ben de fato conversava com ela, não se limitando a monossílabos.

— As coisas vão ser muito melhores daqui em diante — Ellie o assegurou. — Você tem que ir à escola. E preciso apren­der a ler, escrever, fazer contas, se quiser um futuro melhor.

— Saí da escola antes de terminar a primeira série. Se voltar, não passarei de um grande estúpido. Não posso ir.

— Pode sim. E pode aprender rapidamente tudo o que per­deu. Irei ajudá-lo.

— Não.

Lucy intrometeu-se na conversa.

— Eu logo estarei indo para a escola. Você pode se sentar perto de mim.

Corando fortemente e fingindo não tê-la ouvido, Ben desviou o olhar.

— Ele não gosta de mim — a menininha sussurrou junto ao ouvido de Ellie.

— Gosta sim. Ben apenas precisa de um pouco de tempo para se abrir com as pessoas.

Naquele momento Flynn chegou, sorridente, equilibrando dois copos de limonada.

— Trouxe um pouco de limonada para Lucy também. Sendo pequena, deve ser difícil para ela carregar um copo sem derramar uma gota.

— Obrigada. — Os modos polidos da garota teriam agradado a Patrícia, apesar de que os pés descalços e o vestido sujo de grama logo mereceriam uma reprimenda. Virando-se para Ellie, Lucy cochichou: — Mas Flynn gosta de mim.

Ellie riu e pôs-se a escutar a conversa entre Lucy e Flynn , enquanto observava os convidados se espalharem pelo jardim. Estivera em todo canto, exceto junto do marido e os presentes começavam a lançar-lhe olhares curiosos.

— Acho melhor eu voltar lá para dentro — falou, levantando-se e recolhendo prato e copos.

— Você não deveria estar fazendo isso no dia de seu casamento. — Uma mulher loura e bonita retirou as coisas das mãos de Ellie. Sorrindo, apresentou-se: — Sou Eva Kirkpatrick.

— A costureira que possui uma loja sob o consultório de Caleb?

— Acertou. Todavia não confecciono somente vestidos. Fui eu quem fiz todo o enxoval do pequeno Nate.

— As roupas e os lençóis são maravilhosos! Os bordados perfeitos!

— Obrigada. Entretanto trabalho quase em tempo integral apenas para a sra. Connely. Aquela mulher não pára de en­gordar e está sempre precisando de vestidos e aventais novos.

Ellie lembrou-se da senhora obesa que vira saindo do consultório de Caleb.

— Eu não lhe trouxe um presente de casamento hoje. Gostaria que você fosse até a loja e me deixasse tirar suas medidas para lhe fazer algo especial. Poderíamos escolher juntas um tecido e a cor que realçasse seus olhos e cabelos. Será meu presente de casamento.

Por um momento Ellie hesitou, sem saber o que responder. Somente uma única vez, em toda sua vida, tivera um vestido feito sob medida e agora possuía tantas roupas bonitas. Sor­rindo de leve, concordou.

— Está bem.

— Ótimo. Passe na loja assim que tiver um tempinho livre. Farei chá e conversaremos.

Já na sala, Ellie serviu-se de limonada, o olhar à procura de Nate. O bebê dormia no colo da avó. Sentada numa poltrona, Laura Chaney se abanava com um leque de plumas. Ao ver a nora, chamou-a.

— Sei que está um tanto quente aqui dentro, mas sente-se perto de mim. Caleb diz que seus irmãos são sua única família.

— É verdade.

— Seus pais já morreram?

— Sim.

Olhando ao redor, para se certificar de que não havia nin­guém nas proximidades, Laura aproveitou a ocasião.

— Sei que talvez seja um pouco tarde para aquela conversinha entre mãe e filha, todavia fico me perguntando se você não precisa de uma pessoa mais velha com quem se abrir.

Confusa, Ellie limitou-se a fitar a sogra.

— Caleb já foi casado antes e seria natural se você alimentasse certas dúvidas, certos temores, especialmente sendo tão jovem.

— Bem. — O que dizer à mãe de Caleb? Sem dúvida ela devia saber tratar-se de um arranjo de conveniência entre am­bas as partes. Afinal, os dois só se conheciam há poucas se­manas. — Creio que fizemos a escolha certa.

— Meu filho não teria se comprometido se não acreditasse estar tomando a atitude correta. Não há nenhuma outra ma­neira de tocar no assunto a não ser sendo absolutamente franca. Você tem alguma pergunta, ou dúvidas, sobre o que acontece no leito conjugal? Lembro-me de que eu estava um feixe de nervos, sem saber o que esperar da minha noite de núpcias. Quase desmaiei nos braços do pobre Matthew quando os con­vidados partiram e nos deixaram a sós. Pois tenha certeza de que não se trata de algo tão terrível quanto, provavelmente, você foi levada a crer. Na verdade, o relacionamento físico pode sustentar um casamento, quando muitos outros problemas surgem. Recordo-me…

A sogra continuou a falar, porém Ellie já não a escutava. Não era possível que ambas estivessem discutindo o mesmo assunto.

Então não se tratava de algo tão terrível quanto fora levada a crer? Laura Chaney não fazia idéia do que dizia. Ellie apren­dera sobre sexo muito cedo. Sua mãe sempre recebera homens em casa, a qualquer hora do dia ou da noite, sem se importar se os filhos estivessem presentes. Certa vez batera na cabeça de um bêbado com um pedaço de madeira e o arrastara até o riacho, onde o deixara inconsciente.

Fazia parte de sua rotina limpar a mãe depois de ataques brutais dos fregueses. Também trouxera Flynn e sua outra irmã a esse mundo miserável, tendo apenas um balde de água suja para lavá-los e trapos para os enrolar. Sozinha, enterrara a me­nina, morta meses depois de nascer devido à fome e à doença.

Oh, sim, sabia muito bem o que acontecia entre um homem e uma mulher. E a verdade era muito mais horrível do que aquela senhora educada poderia imaginar. Não queria se en­tregar ao ato abominável. Jamais. Não tinha idéia ao que a mãe de Caleb estava se referindo. Todavia, com certeza, não podia ser a mesma coisa que presenciara.

— Bem, obrigada — murmurou afinal, percebendo as boas intenções da outra.

Um súbito rebuliço do lado de fora chamou-lhe a atenção. Ellie levantou-se e foi até a janela, puxando a cortina para enxergar o que se passava. Um homem alto e bem vestido estava parado no meio do jardim, os convidados ao redor.

Algumas mulheres cochichavam entre si e vários dos homens ouviam atentamente as palavras do recém-chegado. Ao notar Caleb na varanda, Ellie foi ao encontro do marido.

Fez-se um silêncio repentino à sua chegada.

— Bem, bem, bem, então esta é a nova sra. Chaney? — O desconhecido deu um passo a frente, erguendo a mão para proteger os olhos do sol. — Outra esposa para você, doutor? E pretende matá-la também?

Um murmúrio de assombro percorreu a pequena multidão. As palavras odiosas chocaram Ellie.

— Quem é ele, Caleb? — perguntou baixinho.

— Meu ex-sogro.

— É uma mulher bonita. Jovem. — O homem começou a subir os degraus da varanda.

Caleb adiantou-se, impedindo-o de continuar.

— Não creio que este seja o lugar ou a hora para você expressar suas dúvidas quanto à minha capacidade profissional.

— Não quer que sua noivinha comece a se preocupar? Não se aflija — o outro falou, dirigindo o olhar para Ellie mas ainda tendo dificuldade de enxergá-la por causa do sol forte. — Desde que você não fique doente, ou tente ter um bebê. Caso tal aconteça, aceite meu conselho e procure outro médico para tratar-se. Este aqui deixou a própria esposa morrer.

Aquela voz debochada lhe soou assustadoramente familiar e Ellie sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. Dando um passo a frente, observou atenta o rosto do homem que acusava Caleb de forma injusta e desprezível.

O sol ardente do fim da tarde castigava os presentes impiedosamente, porém ninguém procurou refúgio dentro da casa, todos acompanhando atentos o desenrolar da cena. De súbito, o piso da varanda pareceu se mexer sob seus pés e Ellie vacilou, a limonada que tomara minutos atrás azedando em seu estô­mago. A boca tinha o gosto de bile.

Ela o reconheceu um minuto antes de ser reconhecida. Aque­le canalha envelhecera um pouco sim, embora os cabelos con­tinuassem escuros. Quem não conhecesse sua natureza torpe poderia até julgá-lo atraente.

— Que surpresa agradável — ele falou, balançando a cabeça de um lado para o outro e sorrindo cinicamente. — A pequena Ellie toda crescida e vestida como uma mulher virtuosa.

Ellie tentou dizer algo, porém seus lábios ressecados não foram capazes de emitir nenhum som e o zumbido repentino nos ouvidos quase a impedia de pensar.

— Seu gosto por mulheres piorou muito, Chaney.

— Vocês dois se conhecem? — Caleb perguntou à esposa, confuso.

— Oh, Ellie e eu nos conhecemos há um longo tempo, não é verdade, querida?

Inspirando fundo, Ellie desejou que o chão se abrisse e a tra­gasse. Queria desaparecer, sumir dali, e nunca mais ser vista.

— Eu costumava avistá-la quando ia a Florence, em viagem de negócios.

Preocupado, Caleb estudou o rosto desfeito da esposa e ela soube que devia estar mortalmente pálida. Todos os seus me­dos, todo o nojo que sentia de si mesma, todo o ódio que guar­dara dentro de si, haviam acabado de vir à tona, mais intensos do que nunca.

Jamais temera alguém como havia temido esse homem. Ja­mais odiara alguém como o tinha odiado. Desejara jamais tor­nar a pôr os olhos nele. No homem que a tinha estuprado.


CAPÍTULO IX

Se existia um Deus, e Ellie duvidava dessa pos­sibilidade naquele momento mais do que nun­ca, então Ele deveria em algum lugar do além decidindo na sorte que outra tortura iria lhe impingir. Caleb desceu os degraus da varanda.

— Se você quiser comer algo, Winston, sirva-se à vontade. A mesa está posta na sala. Também o considero bem-vindo se desejar juntar-se aos outros convidados. Porém aconselho-o a não estragar o dia do meu casamento repetindo exaustivamente sua opinião a respeito do meu caráter e de minha capacidade profissional.

— Não creio que eu me arriscaria a experimentar a comida. Uma das senhoras engasgou. Ellie sentiu o sangue ferver.

Será possível que aquela gente estúpida julgaria Caleb capaz de envenená-los?

— Mas eu gostaria de beijar a noiva. — Winston subiu o primeiro degrau, um sorriso irônico nos lábios finos.

— Não! — Por fim Ellie recuperou a voz. — Não — repetiu com maior firmeza, virando-se e correndo para dentro da casa.

Seu coração pulsava descontrolado, a cabeça girava, lem­branças arrepiantes, que julgara amortecidas, vindo à tona com pavorosa clareza. Trancando-se no banheiro, vomitou até quase o estômago sair pela boca, os músculos do tórax doloridos por causa da tensão. Tremendo incontrolavelmente, foi até a cozinha, onde duas mulheres lavavam a louça, encheu um jarro de água e subiu para o quarto, derramando metade do líquido no trajeto porque as mãos recusavam-se a manterem-se firmes.

Depois de fechar a porta e colocar uma cadeira sob a ma­çaneta, lavou o rosto e a boca.

Winston Parker. O próprio nome evocava vileza.

Nunca contara a ninguém o que aquele homem lhe fizera. Não havia ninguém a quem contar. E, de qualquer maneira, ninguém teria se importado. A pessoa que deveria tê-la protegido soubera de tudo desde o início e não dera a mínima. Bem que tentara esquecer, todavia não era possível apagar da memória a crueldade sofrida. As cicatrizes permaneciam em sua alma.

Ainda se contasse a alguém agora, não iriam acreditá-la. Seria sua palavra contra a dele. A palavra da filha de uma prostituta contra a de um respeitável banqueiro. De quem as pessoas tomariam partido não havia a menor dúvida. Como poderia permanecer ali? Como poderia morar naquela cidade, dormir à noite e acordar pela manhã sabendo que o infame respirava o mesmo ar? Não poderia suportar se Caleb, ou a família dele, descobrisse a verdade.

Uma batida na porta a assustou.

— Ellie?

A voz de Caleb. A voz da razão e da sanidade. Levando a mão ao peito, tentou controlar as batidas desenfreadas do coração.

— Sim?

— Você está bem?

Olhando-se rapidamente no espelho, antes de atender a por­ta, Ellie viu refletida a imagem de uma mulher pálida e an­gustiada. Retirando a cadeira de sob a maçaneta, esforçou-se para parecer calma.

— Você está doente? — A preocupação no rosto masculino era evidente.

— Acho que é o calor.

Caleb tomou o pulso da esposa entre os dedos, verificando os batimentos cardíacos.

— Talvez. Você deve estar exausta, depois dos acontecimen­tos desse longo dia. É melhor descansar. Nossos convidados estão começando a ir embora.

Apesar do pavor, Ellie se sentia na obrigação de manter as aparências.

— O que devemos fazer?

— Se você prefere descansar, posso fazer as honras da casa sozinho.

— "Ele" já foi embora?

— Sim.

— Então nos despediremos dos convidados juntos e depois irei me deitar.

Todavia Caleb permaneceu imóvel.

— Sinto muito sobre Winston.

Por um instante Ellie entrou em pânico, temendo que o marido estivesse se referindo ao passado. Mas logo se deu conta de que tratava-se do incidente na varanda.

— Não se desculpe por ele.

— Eu queria que este dia fosse perfeito. Para você.

Ela nunca havia conhecido ninguém como Caleb em toda sua vida. Nunca imaginara que alguém como ele pudesse existir neste mundo nojento. Nunca seria capaz de encará-lo nova­mente, se a verdade a seu respeito fosse conhecida.

— Foi um dia perfeito. Obrigada.

— E o anel? Gostou? Se não, é possível trocá-lo por outro de seu agrado.

— Oh, não é necessário trocá-lo. Gostei demais, é lindo! Porém eu não esperava nada tão… tão… — Ellie ergueu o braço engessado e contemplou a mão onde faiscavam esmeral­das e brilhantes. Nunca sonhara possuir algo tão belo.

— Simbólico? — Caleb sugeriu, vendo-a hesitar.

— Não.

— Permanente?

— Não, bem, sim. Mas é tão… majestoso.

— Se você gostou, é tudo o que importa.

— Gostei muito.

— Ótimo. Vamos nos despedir dos convidados. Deixando que Caleb a guiasse, Ellie desceu a escada. Ainda abalada, porém com um sorriso no rosto, agradeceu a presença de cada uma das pessoas e os votos de felicidade.

Era uma impostora sim, todavia representava seu papel com habilidade crescente. Ao longo dos anos, aprendera vários tru­ques para conservar a sanidade, bloqueando lembranças in­sustentáveis e fingindo tranqüilidade. Somente um dia como o de hoje para trazê-la de volta à dura realidade.

Mas não, não iria desperdiçar a rara oportunidade que o destino lhe dera, um presente inesperado, de inestimável valor. Permitiria que aquele homem a pressionasse a ponto de perder tudo o que conseguira obter para sua família?

Winston Parker não podia magoá-la agora. Ele fazia parte do passado e desde que o mantivesse lá, estaria segura. Estaria a salvo sendo a esposa de Caleb Chaney, abrigada no lar que o médico lhe oferecera. Ali era seu refúgio e iria agarrar-se a isso com unhas e dentes.

Winston pode contar a Caleb quem é você. Pode revelar aos pais e amigos de Caleb a verdadeira natureza da pessoa com quem ele se casou.

Desesperada, Ellie resistiu ao impulso de levar as mãos aos ouvidos para abafar a voz interna. Não queria jamais enver­gonhar o marido e a família dele. Não suportaria que os cida­dãos de Newton acusassem Caleb de ter se casado com a escória de Florence, com a filha de uma prostituta.

Ele já enfrentava problemas suficientes tentando fazer com que os moradores da cidade confiassem em sua capacidade profissional. Por enquanto, o povo gostava dele e o respeitava como pessoa, não como médico. Se aquela gente soubesse a verdade a seu respeito, deixaria de estimar Caleb. Não podia aceitar que tal coisa acontecesse. Encontraria uma maneira de guardar o segredo vergonhoso.

Todos os convidados haviam se retirado e as empregadas do restaurante, tendo lavado a louça, agora se preparavam para partir também, satisfeitas com a gorjeta que o doutor lhes dera pelos serviços prestados. Ellie convenceu Benjamin a tomar uma colher de láudano, dissolvido num copo d'água, e o acomodou no quarto que deveria partilhar com Flynn.

— Foi um dia muito comprido — ela falou. — Descanse agora.

Benjamin fitou-a sério, o olhar expressando uma melancolia muito além de seus anos. Ellie não tinha idéia do quanto o irmão sabia sobre Winston Parker, pois os dois jamais haviam falado sobre isso. Se o menino não sabia de coisa nenhuma, e pedia a Deus que assim fosse, então não iria levantar suspeitas tocando no assunto. E se soubesse, nada do que dissessem poderia alterar o que acontecera.

Certamente Benjamin desconfiara de que um bebê crescia em seu ventre. Afinal, não se tratava de uma condição que se pudesse esconder. Mas apesar de sabê-la grávida, ele nunca lhe indagara sobre a criança, ou sobre qual fora o destino do bebê após o parto. Ela tampouco contara algo por medo de que a mãe descobrisse o paradeiro da criança ou, pior, Winston. Quanto menos Benjamin soubesse, melhor. A ignorância iria protegê-lo e também a Flynn.

Fitando-o agora, Ellie não percebia nenhuma esperança na­queles olhos tristes e isso a assustava. Embora desde muito nova ela sempre houvesse se sentido cansada, desiludida, no íntimo acalentara um fiapo de esperança de que a situação poderia se tornar mais sustentável. Acreditara que se fizesse tudo certo e trabalhasse duro, algum dia, de alguma forma, ela e os meninos teriam a vida que mereciam.

Entretanto, a atitude sombria de Ben mostrava que ele não partilhava essa mesma visão. Pelo menos não ainda.

— A vida será boa aqui — assegurou-o. — Odeio como você foi obrigado a crescer, como nós três fomos obrigados a crescer. Não era normal. As outras pessoas vivem assim. — Ellie mos­trou a cama, os lençóis imaculados, as cortinas nas janelas, o papel de parede. — E agora viveremos como os outros.

— Você se vendeu em troca disso tudo.

Apesar de sentir o coração se apertar, ela negou a acusação dolorosa.

— Eu não me vendi! — retrucou veemente. — Serei apenas a mãe de Nate.

— Ele é um homem. E você sabe o que os homens querem. Por que Ben tinha que estragar tudo? Seus próprios medos convergiam para esse mesmo ponto, embora houvesse tentado su­focá-los, agarrando-se à crença de que Caleb era sincero e íntegro.

— O dr. Chaney não é assim. Não é.

Sob o olhar frio do irmão, Ellie levantou-se.

— Descanse agora. Vou lhe trazer um pouco de leite ou chá mais tarde. Qual você prefere?

— Não faz diferença.

— Está bem então. — Dando-lhe as costas, ela saiu do quarto.

Caleb despejou a água da banheira num arbusto, atrás da casa.

— Você com certeza tem muitos amigos — Flynn falou apro­ximando-se. O garotinho tinha se trocado e vestia agora camisa de algodão e calça de brim.

— Talvez. Mas creio que "conhecidos" seja a melhor palavra.

— O que são conhecidos?

— Aquelas pessoas que você conhece porém não considera necessariamente amigas. Conheço muita gente. E poucos têm se provado amigos de fato.

— Como se pode saber a diferença?

Sentando-se num degrau da varanda, Caleb ponderou a pergunta.

— Amigos o desculpam, quando você comete um erro. Es­cutam-no, se deseja desabafar. Acreditam no melhor a seu res­peito e confiam em você. Tampouco o julgam — finalizou, dei­xando a conversa em aberto, caso o menino quisesse estender o assunto.

— Parece com Ellie, não é? — Flynn comentou sorrindo. Ele estivera falando de modo geral e tentando oferecer sua amizade ao garoto, mas agora que Flynn mencionara como a irmã se encaixava no perfil, concluía que a descrição de fato se assemelhava a Ellie.

— Sim, parece.

Banhado pela luz do entardecer, Flynn tinha estampados no rosto a inocência e ingenuidade que todas as crianças de sua idade deveriam ter.

— Acho melhor passarmos um pouco de pomada no seu nariz antes de você ir se deitar. — Também precisava checar os pés de Benjamin. Entrando na cozinha, Caleb tirou um pequeno pote da maleta e aplicou uma leve camada do ungüento contra queimaduras no nariz do menino.

— Posso ficar sentado na varanda um pouco mais? Vi um gatinho se esconder atrás das árvores e talvez ele volte a aparecer.

— Está bem. Mas não tente chegar perto de um animal desconhecido.

— Oh, não o farei. Só quero vê-lo.

Caleb subiu a escada e bateu na porta do quarto.

— O quê?

Ignorando a resposta malcriada de Benjamin, entrou.

— Vim examinar seus pés antes de você dormir.

— Meu sono é muito leve e durmo pouco.

— Verdade? — Apoiando os pés do rapazinho sobre uma almofada, ele, delicadamente, retirou os curativos.

— Se você a machucar, eu o mato.

A ferocidade contida na voz juvenil e o brilho raivoso do olhar era tal, que Caleb surpreendeu-se.

— Por que diabos eu machucaria sua irmã?

— Porque você é um homem e é isso o que os homens fazem.

Por um momento Caleb não disse nada, o comentário inespe­rado fazendo-o pensar. Será que fora necessário apenas um ho­mem irado para alimentar em Benjamin esse ressentimento ter­rível? Em virtude da experiência vivida na fazenda dos Heath, ele acreditaria mesmo que todos os machos costumavam espancar mulheres e crianças? Podia entender o ódio contra um determi­nado homem em razão de suas ações. Mas não conseguia com­preender a presunção de que todos os homens eram iguais.

As reações de Flynn e Ben revelavam-se muito diferentes e Caleb sentia-se grato por o garotinho não guardar dentro de si tamanho rancor.

— Alguns homens o fazem. Não posso negá-lo. Porém não todos. E, com certeza, eu não. Nunca machucaria sua irmã. Ou você. Ou Flynn. Dou minha palavra de honra. Vocês são minha família agora. Ellie é minha esposa e logo vocês serão meus filhos. Legalmente.

A expressão hostil do rapazinho deixava claro que aquelas palavras não signficavam nada.

— Você acha que as pessoas não surram os próprios filhos?

— Seu pai lhe batia?

Ben cerrou os lábios e olhou para a parede.

— Você já é quase um homem. Costuma bater em mulheres?

— Ellie é minha irmã! — ele gritou encolerizado, fitando Caleb.

— Mas você disse que parentesco não faz a menor diferença. Quem sabe outras mulheres? Pretende espancar sua esposa?

— Não vou me casar.

— Lucy, então? Planeja sová-la em breve?

— Trate de fechar esta sua matraca — Benjamin devolveu amargo. — Você se julga tão esperto e inteligente porque é rico, porque pode comprar as pessoas com seu dinheiro. Pois bem, ninguém pode me comprar, nem me dizer o que fazer. Você tampouco pode mandar em Ellie. E se algum dia a ma­chucar, prometo que não apenas o surrarei. Vou pegar um revólver e estourar seus miolos!

Naquele preciso instante Caleb não teve dúvidas de que o menino seria capaz de cumprir a ameaça. Havia tanto ódio corroendo-o por dentro que chegava a ser assustador.

Todavia, no momento seguinte, Ben abaixou o olhar, os lá­bios trêmulos. Provavelmente a intensidade dos sentimentos negativos guardados em seu íntimo também o apavorava.

Caleb sabia como tratar e curar os pés de Ben. Aliás, a melhora fora tanta após a primeira fase do tratamento, que acreditava ser possível salvar-lhe os dedos. O diagnóstico fora simples e o tratamento dentro de sua capacidade de execução.

Entretanto não sabia como tratar e curar a alma do rapaz. O diagnóstico um mero exercício de adivinhação. Abuso. Aban­dono. Os sintomas dessa miséria tinham contaminado o coração de Ben e não havia sido ensinado a Caleb como medicar os males do espírito e cauterizar as feridas emocionais.

Tivera a mesma impressão a respeito de Ellie logo que a conhecera. Como os três irmãos tinham sido tão profundamente machucados? O que acontecera para traumatizar toda uma família?

— Seus dedos parecem muito melhor — ele falou, notando o outro virar o rosto para a parede. — Você se recupera depressa.

— Fui obrigado a ser assim.

Por um segundo Caleb ficou imóvel. Então refez os curativos e levantou-se.

— Boa noite, Benjamin. Mandarei Flynn subir agora.

Ele não esperava resposta e não obteve nenhuma. Saindo do quarto, fechou a porta atrás de si, odiando a sensação de impotência que o consumia. Desejava ganhar a confiança do rapaz, mas sabia que levaria tempo até conseguir conquistá-la.

Depois de chamar Flynn, Caleb trancou a casa e subiu a escada. Ellie o aguardava no corredor.

— Nate adormeceu há uma hora — ela o informou, apon­tando para o quarto do marido, onde ficava o berço.

— Boa noite, Caleb — disse Flynn.

— Boa noite, filho.

— Você vai me pôr na cama, Ellie?

— Eu não perderia esta oportunidade por nada — ela res­pondeu sorrindo, despedindo-se de Caleb com um aceno de cabeça e acompanhando o irmão.

Ben parecia adormecido sob os lençóis brancos, uma expres­são impenetrável no rosto.

Enquanto Flynn vestia o pijama, Ellie dobrou as roupas do menino e as guardou no armário.

— Caleb vai me deixar montar um de seus cavalos. E falou que iremos pescar qualquer dia desses. Ele conhece um lugar ótimo.

Acariciando os cabelos macios da criança, Ellie o cobriu com a manta.

— Não será ótimo?

Protegera Flynn a vida inteira, até que o arrancaram de seus braços e o mandaram para a fazenda dos Heath. Falhara em seu papel de irmã. Mas aquela terrível experiência não havia arruinado a fé que o garotinho parecia ter nas pessoas e agradecia a Deus por isso. Flynn confiava em Caleb e gostava da família do médico. Continuava sendo um menino inocente e ela faria tudo o que estivesse ao seu alcance para compensá-lo dos maus-tratos sofridos em tão poucos anos de vida.

Benjamin, por outro lado, havia visto e experimentado so­frimentos bem maiores do que os de Flynn. Por isso seu coração endurecera e ele se revestira daquela armadura belingerante. Porém o espírito não se alquebrara e ainda existia chances de recuperação.

Benjamin era um lutador. Sobrevivera a duras penas, quan­do outros teriam sucumbido.

Notando que Flynn adormecera, Ellie beijou-o na testa, apa­gou o lampião e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.

Ao deparar-se com Caleb aguardando-a no corredor, sentiu-se presa de horrível apreensão. Haviam feito um acordo.

— Obrigada, Caleb. Por tudo.

— Vai levar algum tempo, você sabe.

— Tempo?

— Para seus irmãos se ajustarem a essa nova vida. Para aprenderem a confiar.

— Eu sei.

— Teremos que ser pacientes.

O marido estava se referindo a Benjamin e ambos sabiam disso. De pé no meio do corredor, prontos para ocuparem quartos separados na noite de núpcias, sentiam-se bastante desajeitados.

— Obrigada por não ficar zangado com ele.

— Creio que Benjamin já tem ódio suficiente guardado no coração e não precisa de novas fontes de atrito. Pelo menos tive a oportunidade de conhecer Heath antes e pude entender o garoto um pouco melhor.

— Sim. — Seu marido era um homem compreensivo, disso não tinha dúvidas. Todavia não o julgava capaz de aceitar o resto da sórdida história, se a conhecesse.

— Bom descanso — Caleb falou afastando-se.

Exausta, Ellie correu para o quarto, vestiu a camisola e se preparou para deitar-se. Depois de tudo o que enfrentara na­quele longo dia, esperava poder dormir. Dormir e esquecer.

Por causa do calor e umidade, o braço engessado cocava terrivelmente. Tentando ignorar o desconforto, deitou-se. O sono chegou depressa.

Sons abafados a despertaram. Conversas sussurradas. O abrir de uma garrafa. Sons familiares. Pedia a Deus que os irmãos não acordassem.

Ellie enterrou a cabeça sob o braço e procurou acomodar o corpo magro sobre os trapos que lhe serviam de cama.

A mão de alguém a segurou no ombro, obrigando-a a abrir os olhos. Através do velho cobertor, usado como cortina para separar o cubículo onde costumava dormir com os irmãos da área habitada pela mãe, percebia-se uma réstia de luz. Ou usavam aquele cobertor para protegerem-se do frio, ou como um véu patético na tentativa de obter privacidade.

A figura debruçada sobre ela, contudo, não era a da mãe e sim a de um dos muitos fregueses nojentos habituados a fre­qüentar a cama de Delia Foster.

— O que você quer? — Ellie murmurou, livrando-se da mão asquerosa.

— Venha comigo. Sua mãe caiu lá fora e preciso de ajuda para carregá-la.

Vestindo um suéter roto, acompanhou o desconhecido, an­dando na ponta dos pés descalços para não acordar Benjamin e Flynn. Certificando-se de que a mãe não se encontrava na cabana, saiu para dentro da noite.

— Onde está ela? — indagou, olhando ao redor.

— Ali adiante.

— Não posso vê-la.

— Acompanhe-me.

Havia uma carruagem a alguns metros do casebre. Sua mãe estaria lá dentro? Onde será que ela fora, se raramente saía com fregueses, especialmente em se tratando de um sujeito vestido como um cavalheiro? Certos tipos de homens jamais tolerariam ser vistos na companhia de uma mulher como Delia Foster.

Ellie espiou o interior escuro da carruagem, uma sensação súbita de pânico fazendo-a arrepiar. Será que a mãe estava morta? Ou seria algum tipo de truque? Teria ficado na cabana se não temesse que aquele estranho acordasse os meninos dian­te de sua recusa em acompanhá-lo. Os pobrezinhos já haviam visto e ouvido o suficiente.

— Não vejo nada.

Mãos fortes a agarraram pelo pescoço, apertando-o.

— Entre.

— Não! Não, eu…

— Não foi um pedido e sim uma ordem.

Embora tentasse resistir, o sujeito a atirou sobre o assento da carruagem violentamente. Tampando-lhe a boca com uma das mãos, para impedi-la de gritar, segurou-a pelas nádegas com a outra, imobilizando-a.

Desesperada, Ellie mal podia respirar. Não sabia o que era pior, se o pânico crescente, ou a falta de ar. Mas talvez fosse melhor assim. Talvez morresse.

O homem retirou uma das mãos, para tocá-la nos seios, e ela gritou, arranhando-o no rosto, no pescoço, numa fúria cega e vã.

Um punho a atingiu no queixo, silenciando-a por um momento. Logo suas poucas roupas eram rasgadas e a pele exposta.

— Fique quieta, vagabunda. Paguei um bom dinheiro para ser o primeiro e pretendo fazer valer cada centavo.

As mãos rudes lhe trouxeram mais dor física do que Ellie jamais conhecera. Zonza, lutou, resistiu, sentindo na boca o gosto de sangue e medo. Porém não era forte o bastante para vencê-lo. Não era forte o bastante para obrigá-lo a parar.

Não havia ninguém para ajudá-la. E ninguém que se importasse.

Com a garganta apertada, Ellie quis gritar.

A dor era muita, rompendo-lhe a carne, rasgando-a por dentro.

Finalmente um grito aflito explodiu em seu peito e a escu­ridão se desfez. Ainda possuía um resto de forças e não iria deixar que aquele homem continuasse seviciando-a.

Atordoada, esmurrou o peito largo com os punhos fechados.

— Pelo amor de Deus, Ellie, pare de lutar. Não vou machucá-la. O torpor em que se encontrava desvaneceu, lançando-a do pesadelo de volta à realidade. Abrindo os olhos, com o coração aos pulos, fitou Caleb.

Aparentemente ele havia trazido um lampião e o colocado sobre a cômoda, a luz pálida iluminando o peito e os braços musculosos.

Horrorizada, Ellie se deu conta de que estivera esmurrando o marido.

— Oh, Caleb, desculpe-me, sinto muito — murmurou num fio de voz. O pesadelo, tão familiar, fora particularmente vivido aquela noite. Sem dúvida rever o responsável por sua desgraça reacendera a chama do terror.

— O que pôde lhe causar tanto pavor? — Caleb indagou fitando-a preocupado. — Que foi que lhe aconteceu?

Um rosnado animalesco invadiu o quarto. Ellie mal percebeu Benjamin avançar sobre Caleb, trazendo um objeto metálico nas mãos.

Num reflexo, Caleb ergueu o braço sobre o rosto para aparar o golpe, impedindo que o cabide de metal o atingisse em cheio.

— Benjamin, pare com isso! — Ellie gritou enquanto os dois rolavam pelo chão. Porém Caleb não atacava o menino, apenas se defendia dos golpes e procurava imobilizá-lo.

— Eu lhe disse para não machucá-la! — O rapazinho estava vermelho de ódio, os olhos injetados. — Eu o avisei!

— Não a machuquei. — Caleb tomou-lhe o cabide das mãos e o atirou num canto. — Ouça-me por um momento.

— Ben, ele não me feriu. — Ellie quis se aproximar do irmão, mas ele se recusava a escutá-la, a raiva tornando-o surdo aos apelos da razão.

— Eu o avisei que o mataria, seu filho da mãe! Desesperada, Ellie começou a soluçar.

De repente, Flynn surgiu à porta, segurando Nate no colo. O bebê chorava. Vendo a cena, o menininho explodiu em lágrimas.

Ben chorava agora também, mas não de dor, de ódio. Imprensando-o contra o chão, Caleb o segurava pelos pulsos, man­tendo-o imóvel.

Ajoelhando-se no chão, Ellie tomou o rosto do irmão entre as mãos.

— Oh, Ben, meu querido, você é tão corajoso. Eu te amo. Você sabe disso, não sabe?

— Perdoe-me um instante, porém esse seu querido menino acabou de tentar me esmagar o crânio — Caleb falou ofegante, ainda mantendo o rapazinho imobilizado.

— Caleb não estava tentando me machucar — ela continuou, ignorando o comentário do marido. — Eu tive um pesadelo e devo ter gritado. Você já me ouviu gritando no meio da noite e sabe como pode ser aterrorizante. Caleb veio ver se eu estava bem.

Benjamin relaxou o corpo e cessou de lutar. Todavia Nate e Flynn continuavam a soluçar perto da porta.

— Ele não me machucou — Ellie tornou a dizer. Desconfiado, os olhos de Ben procuraram os do médico, Caleb respirou fundo, o braço doendo por causa do golpe recebido, os joelhos esfolados devido à queda. Já tivera noites melhores.

— Solte-me — Ben pediu afinal.

— Por favor — Ellie implorou a Caleb com o olhar.

Ele não queria recomeçar a lutar com aquele rapazinho sel­vagem, mas tampouco desejava humilhá-lo, ou desapontar a esposa. Assim, soltou-lhe os pulsos e sentou-se no chão.

Ellie abraçou-se a Ben, chorando baixinho enquanto o aca­riciava nos cabelos.

Confiante de que o pior havia passado, Caleb fez sinal para que Flynn lhe trouxesse Nate.

Depressa, o garotinho entregou-lhe o bebê, que ainda cho­rava, fitando ora os irmãos, ora Caleb, o rosto infantil expres­sando temor e confusão.

— Obrigado por cuidar de Nate — Caleb falou, acalmando o bebê.

— Ouvi toda aquela gritaria e o escutei chorando. Eu não sabia o que fazer.

— Você fez a coisa certa, Flynn. Por que não volta para cama agora? Ellie irá lhe desejar boa-noite daqui a um minuto.

O menininho concordou com um aceno de cabeça e saiu do quarto, embora hesitante.

Tive um pesadelo e devo ter gritado, ela dissera. Você já me ouviu e sabe como pode ser aterrorizante. Caleb tentou juntar todos os fragmentos de informação e formar uma imagem que pudesse entender. Agora sabia que não foram apenas os mal­trates sofridos nas mãos de Heath o que tornara Benjamin amargo e desconfiado.

E a aflição de Ellie a cada vez que a tocavam também o tinha intrigado desde o começo. Ela havia sido machucada de tal maneira, que vivia sendo atormentada por um pesadelo recorrente. Alguém os tinha surrado.

A mãe? O pai? Nessas alturas dos acontecimentos, não tinha nem mesmo certeza de que desejava sabê-lo. Talvez fosse me­lhor continuar ignorante.

Nate estava quente e suado, porém logo o bebê fechava os olhos e se aquietava, exausto. Levantando-se devagar, Caleb o carregou para o quarto e o depositou no berço.

Então lavou o rosto e as mãos com a água do jarro e voltou para o quarto de Ellie.

Contudo, a esposa não se encontrava lá. Os lençóis conti­nuavam jogados num lado da cama e o cabide permanecia no chão. Quando se preparava para sair, Caleb notou a cadeira quebrada, a maçaneta partida, frutos de sua ânsia de resga­tá-la. As implicações das evidências atingiram-no com a força de um raio. Ellie havia colocado a cadeira sob a maçaneta. Por que julgara necessário fazê-lo?

Ele se dirigiu ao quarto dos meninos. Através da porta entreaberta, espiou lá dentro.

O luar que penetrava pela janela iluminava a figura adormecida de Flynn. Na outra cama, Ellie acariciava os cabelos de Benjamin, murmurando palavras doces e apaziguadoras. Caleb deu um passo atrás, sentindo-se um intruso dentro da própria casa.

Descendo a escada, acendeu o lampião da cozinha e serviu-se de um copo de leite. Então abriu a porta dos fundos e sentou-se num degrau da varanda. O gato que Flynn mencionara miou dentro da escuridão. Caleb derrubou um pouco de leite num pires e esperou que o animalzinho se aproximasse.

Mal havia pegado no sono quando os gritos de Ellie o tinham acordado. Percebera imediatamente que a esposa sonhava e tentara acordá-la, tocando-a gentilmente no ombro.

O pânico e o medo que seu toque inocente despertara nela o surpreenderam.

O ataque de Ben, saído do meio do nada, também o havia pego de surpresa.

Caleb colocou o copo de leite no chão e abaixou a cabeça, subitamente drenado de toda energia. Poderia compreender e conviver com todos eles, não poderia?

Um ruído às suas costas o fez virar-se. A esposa, vestindo uma camisola branca fechada até o pescoço, aproximou-se.

— Você está bem?

— Sim.

Ellie sentou-se a alguma distância, porém perto o bastante para que o perfume dos cabelos escuros o inebriasse.

— Eu sinto muito, Caleb. De verdade.

— Quem foi, Ellie? Quem foi que a machucou de maneira tão cruel?


CAPÍTULO X

Feriu-me? — Ellie não sabia de onde tirara forças para falar, tamanho o assombro.

— Sim. Você. Ben. Alguém machucou ambos, levou-a a ter medo das pessoas..

Caleb era um homem compassivo. Inteligente. Não fora pre­ciso muito tempo até se dar conta de que existia algo de muito errado com a mulher e os meninos. Já começava a se arrepender de havê-la tomado para esposa?

Um pesado silêncio se estendeu por vários minutos. Ouvia-se apenas o sussurro da brisa balançando os galhos das árvores.

— Foi seu pai? — Uma suposição natural, perfeitamente lógica. — Seu pai os espancava?

Presumindo que ela tivesse tido um pai e que um pai pudesse maltratar os filhos, então tratava-se de uma explicação acei­tável. E, com certeza, soaria menos terrível, ou vergonhosa.

— Quanto a Flynn. Você o protegia. — Não se tratava de uma pergunta.

— Sim. — Pelo menos essa parte era verdade.

— Não posso fingir saber como deve ter sido duro para todos vocês.

Claro que não. O dr. Chaney viera de uma família devotada, amorosa. Nunca fora obrigado a imaginar quem seria o próprio pai. Ou de onde tiraria alguma coisa para comer.

— Era sobre isso seu sonho? Sobre estar sendo surrada?

— Sim. — As mentiras vinham facilmente, depois da pri­meira dezena.

— Sinto muito, Ellie.

— Não se preocupe.

Caleb tomou a mão da esposa entre as suas, num gesto gentil e protetor.

Por um segundo ela fitou os dedos longos e fortes, lembrando-se da facilidade com que o marido dominara Ben, imprensando-o contra o chão.

— Ninguém jamais tornará a machucá-la — ele falou, a voz baixa vibrando de sinceridade. — Entendo agora porque você me fez prometer não bater nos meninos. Eu nunca o teria feito, mesmo se não tivesse prometido nada. Sabe disso, não sabe?

Bem no fundo de si, Ellie acreditava nas palavras de Caleb. Porém quem podia adivinhar do que uma pessoa era capaz quando realmente furiosa? Ou bêbada? As pessoas costumavam agir de maneira completamente diferente quando embriagadas. Então, as promessas não significavam nada.

— Você sabe disso, não sabe? — Caleb insistiu.

— Eu… acho que sim.

Consciente de que o marido estava sem camisa, Ellie man­teve os olhos fixos num ponto distante, a respiração suspensa. E ao perceber que ele lhe acariciava a mão, sentiu o coração vir à boca. Certa vez, no Arcade, notara um casal de mãos dadas sob a mesa e aquela demonstração de intimidade a embaraçara tanto, que não soubera como agir.

Mas agora, com as mãos do marido engolfando as suas, percebia tratar-se de algo bastante agradável. Algo capaz de lhe transmitir uma sensação de paz e segurança.

Ofegante, permitiu-se lançar um olhar furtivo para o perfil másculo, imerso nas sombras. Caleb observava as mãos entre­laçadas de ambos, enquanto deslizava um dedo na direção do pulso delicado da esposa, numa carícia sutil.

Embora a noite estivesse quente e abafada, Ellie estremeceu. Uma coruja piou dentro da escuridão.

— O seu perfume é gostoso — ele falou, apanhando-a de surpresa.

— É sabonete comum.

— Posso sentir o cheiro de seus cabelos do lugar onde estou.

— Pode?

— Hum-hum.

— Eu os lavei hoje cedo.

— Aposto que são macios também.

— Oh, não sei. São apenas cabelos.

— Importa-se se eu aspirar o perfume?

— Eu… Acho que não me importo.

Caleb inclinou-se devagar, o peito nu roçando o ombro ar­redondado. Devagar, aproximou-se do pescoço alvo e aspirou sofregamente o odor delicioso dos cabelos escuros.

Numa reação instintiva, Ellie arqueou as costas, arrepios fortes percorrendo-a por inteiro quando os lábios masculinos a tocaram de leve na nuca.

Hipnotizando-a com o olhar, Caleb a atraiu para si. Mas quando estavam a ponto de se beijarem, ela ficou tensa de repente e o empurrou.

Cruzando os braços sobre o peito, Ellie fechou-se na arma­dura dentro da qual aprendera a se esconder.

— Ouça, há maneiras de evitar gravidez. Podemos tomar precauções, se não quisermos filhos.

Chocada com o rumo dos pensamentos do marido, ela le­vantou-se, ainda zonza.

Levantando-se também, Caleb a obrigou a fitá-lo.

— Respeito seu desejo de não ter filhos. De verdade. Então era esse o objetivo da ternura demonstrada por Caleb?

Um subterfúgio para levá-la para a cama?

— Se é assim, respeite também meu desejo de não dormirmos juntos. Fizemos um trato.

— Pensei que era devido à sua decisão de não ter filhos.

— Em parte, sim. Porém não inteiramente. Você me deu sua palavra.

— Recusa-se a me aceitar em sua cama mesmo se eu lhe prometer que não ficará grávida?

— Isso mesmo. Você entendeu bem. Achei ter deixado tudo bem claro desde o início.

— Está claro agora.

A noite já ia pelo meio. O melhor era tentarem dormir. Correndo, Ellie subiu a escada e fechou a porta do quarto, notando a cadeira quebrada num canto. De que adiantara co­locá-la sob a maçaneta? Caleb não tivera dificuldade em se livrar do obstáculo.

Pela primeira vez percebia o quanto estava vulnerável, à mercê do homem com quem se casara. Nada, nem uma porta trancada, nem um cadeado, o impediria de entrar em seu quarto e tomar o que desejava, caso decidisse exercer os direitos de marido. Apenas uma palavra empenhada a separava do ato vergonhoso. Nunca, em toda sua vida, Ellie depositara tantas esperanças numa promessa.

Resolvera tirar uns dias de folga, Caleb comunicou à esposa na manhã seguinte, enquanto a observava preparar o desjejum.

— Está tudo bem? — ela indagou incerta.

— Sim. — Caleb colocou Nate na cadeira alta. — Cheguei à conclusão de que seria bom para nós. Como família. Onde estão os meninos?

— Creio que lá fora.

Caleb abriu a porta dos fundos e os chamou.

— Hora de comer, garotos!

Logo aparecia Benjamin, carregando um balde cheio de leite.

— Ordenhei a cabra — o rapazinho anunciou, evitando fitá-lo. — Limparei tudo mais tarde.

— Obrigado. — Caleb apanhou balde, agindo como se nada houvesse acontecido na noite anterior.

— Onde você quer que meus irmãos comam? — Ellie perguntou.

— Basta sentarem-se à mesa.

Os meninos acomodaram-se, lançando olhares cautelosos para o dono da casa.

Flynn, entretanto, mal viu o prato de mingau à frente, apa­nhou uma colher e pôs-se a comer, sem esperar que esfriasse.

Depois de polvilhar o mingau com açúcar, que retirara do armário, Caleb colocou o açucareiro no centro da mesa, notando que os garotos o observavam, fascinados.

Nunca nenhum dos dois havia experimentado açúcar antes e não tinham idéia do que se tratava.

— Algo errado? — ele indagou, percebendo a expressão in­trigada das crianças.

— Não, nada. — Depois de servir-se de açúcar, Ellie passou-o aos irmãos, que se apressaram a imitá-la.

Um sorriso feliz iluminou o rostinho de Flynn. Benjamin es­vaziou o prato em dois tempos e recostou-se na cadeira, satisfeito.

Ao terminar de comer, Caleb limpou os lábios com um guardanapo.

Os três o imitaram.

— Vou passar no armazém, preparar um cesto de piquenique e nós todos iremos pescar — anunciou, os olhos fixos nos garotos.

— Oba! — Flynn gritou entusiasmado, levantando-se tão depressa que acabou derrubando a cadeira no chão. Imedia­tamente o menininho fitou Caleb, alarmado.

Ninguém disse coisa alguma durante vários segundos.

— Usem roupas confortáveis, que possam sujar — Caleb continuou tranqüilo, reparando no alívio de Flynn. — Estarei de volta dentro de pouco tempo. Estejam prontos. Quanto a você, Benjamin, deixe para limpar a área onde fica a cabra na volta.

Tão logo Caleb saiu, Flynn subiu para o quarto, ansioso para se trocar. Ellie permaneceu na cozinha, alimentando Nate enquanto Benjamin a observava, pensativo.

— Que foi que ele disse sobre ontem à noite? — o rapazinho perguntou, os olhos baixos.

— Ele sabe que Heath os espancava. Indagou se nosso pai também nos surrava. Respondi que sim.

— Se nós tivéssemos tido um pai, sem dúvida viveríamos apanhando — Ben concordou com um aceno de cabeça, com­preendendo a hesitação da irmã em admitir que fora a própria mãe, e um sem número de fregueses, quem os tinham mal­tratado e feito passar forme.

— Caleb não pode descobrir a verdade — Ellie murmurou ansiosa. — Teremos sempre um lar aqui, desde que ele não saiba de nossa origem.

— Sossegue, não direi nada.

— E Flynn?

— Eu me encarregarei de convencê-lo a não abrir a boca. Flynn ficará quieto porque está adorando essa casa.

— Gosto daqui também.

Os olhos azuis de Ben revelavam conflito interior. Nunca seria capaz de admitir que gostava de algo por medo de que lhe fosse tirado. Entretanto não havia como negar o óbvio. Aquela era a melhor situação em que os três já haviam se encontrado. Jamais iria estragá-la propositadamente.

Como prometera, Caleb não tardou a voltar. Da cesta de pi­quenique, colocada num canto da carroça, emanava um cheirinho delicioso de quitutes. Os meninos se acomodaram no banco de atrás, juntamente com as varas de pescaria e a maleta do médico. Ellie sentou-se ao lado do marido, segurando Nate no colo.

Durante vários minutos, o pequeno grupo seguiu na direção sudoeste, acompanhando os trilhos do trem. Então Caleb tomou a estradinha que margeava o riacho, penetrando numa área plana, cercada de árvores frondosas.

Os meninos saltaram do veículo tão logo os cavalos estan­caram. Animado, Flynn correu para explorar os bancos de areia junto às margens do riacho. Caleb estendeu algumas mantas à sombra e enquanto retirava uma pá e uma lata da carroça, o garotinho retornou, ansioso para ajudá-lo.

— Pode deixar que eu me encarrego de pegar as minhocas — Flynn se ofereceu, sentindo-se importante.

Recostada no tronco de uma árvore, Ellie observava o trio à distância. Flynn não saía de perto de Caleb, falando sem parar, o rosto iluminado de alegria. Juntos, eles lançaram o anzol na água e agacharam-se para esperar que algum peixe mordesse a isca.

Benjamin, por outro lado, escolhera ficar sozinho, num tre­cho mais afastado. Provavelmente não desejava que a exube­rância do irmão menor assustasse os peixes. Mas não se tratava apenas disso. O fato era que o isolamento do rapazinho, embora auto-imposto, a preocupava.

O apito distante de um trem a fez lembrar-se de que não precisaria, nunca mais, enfrentar uma longa e desconfortável viagem para visitar os irmãos. Compenetrada, prometeu a si mesma não tomar como garantida, nem por um momento, a sorte com que fora bafejada pelo destino. Esforçaria-se para merecer a felicidade de ter se reunido aos irmãos.

Apoiando os braços nos joelhos, Caleb respondia paciente­mente as perguntas de Flynn. Algumas das respostas, ele es­timulava o próprio garoto a dá-las, rindo das idéias criativas, nascidas da imaginação infantil. Assim, a origem dos peixes, e o mundo em que habitavam, ganhou uma versão muito mais divertida. Cedendo aos pedidos insistentes do menino, Caleb também tirou as botas e as meias.

— Nunca tive ninguém com quem pescar antes, a não ser Ben — Flynn falou esticando as pernas até imergir os pés na água tépida. — E ele sempre me obrigava a ficar quieto. Meu falatório não o deixa cansado?

— Não, mas se eu quiser um pouco de silêncio pedirei a você que fique quieto, está bem?

— Certo. Também nunca fiz um piquenique antes. Ben e eu comíamos ao ar livre na fazenda dos Heath, porém não sabíamos que o nome disso era "piquenique."

E provavelmente não era, Caleb pensou melancólico, lembrando-se do estado subnutrido das crianças.

— Deve ter sido duro quando, após a morte de sua mãe, vocês foram mandados para a fazenda dos Heath.

Flynn deu de ombros, desinteressado.

— Eles morreram na mesma época? — Nunca Ellie lhe con­tara como os pais tinham morrido. — De alguma doença?

— Na mesma época? Quem?

— Seu pai e sua mãe.

— Ela apenas morreu. Eu não tive pai.

— Todo mundo tem um pai — Caleb esclareceu. — Provavel­mente você não se lembra dele porque o perdeu há muito tempo.

— Todo mundo tem mesmo um pai?

— Sim. E de onde vêm os bebês. De um pai e de uma mãe.

— Eu pensava que às vezes era preciso somente uma mãe — Flynn explicou muito sério.

Caleb considerou a possibilidade de estender o assunto, mas achou melhor não entrar em maiores detalhes. Olhando Benjamin lançar o anzol, ele se perguntou por que Flynn não con­seguia recordar a existência do pai, quando Ellie admitira pro­teger o irmão caçula dos abusos sofridos por ela e Ben. Talvez o garotinho houvesse preferido apagar as lembranças de um passado doloroso.

— Olhe só aquilo! — Flynn gritou, apontando para um pás­saro de plumagem azulada, com listras vermelhas nas laterais, que acabara de mergulhar e voltar à superfície com um peixe preso no bico pontiagudo.

— E um pássaro da família dos alcedinídeos. A julgar pela plumagem, trata-se de uma fêmea.

— Você acha que ela está indo alimentar os filhotes no ninho?

— Essa época do ano é um pouco tardia para que os pássaros tenham filhotes pequenos. Já devem estar todos crescidos agora.

Além da passarinha, Benjamin foi o único a conseguir pescar alguma coisa. Quatro trutas grandes estavam prontas para serem levadas para casa.

O piquenique constou de frango frito, pães de batata, frutas variadas e leite fresco. Depois de sua terceira coxa de frango e uma quantidade considerável de pãezinhos de batata, Flynn passou a mão na barriga e recostou no tronco da árvore, feliz da vida.

— Você se lembra de quando Ben roubou aquela galinha do velho Higgins, Ellie? Você disse que a galinha era tão velha e dura que…

— Ben comprou aquela galinha — a irmã o corrigiu.

— Não, não comprou. Nós…

— Comprou, sim. Ben comprou a galinha. — Ellie fitou-o fixamente.

Confuso, Flynn olhou para a irmã, então para Caleb.

— É verdade — falou afinal. — Ele comprou a galinha. Eu tinha me esquecido.

Um silêncio desconfortável caiu sobre o pequeno grupo. Ellie levantou-se e começar a guardar os pratos e a embalar a comida que sobrara.

Minutos depois, a aproximação de um cavaleiro chamou-lhes a atenção. J.J. Jenkins parecia aflito.

— Doutor! — o rapazinho gritou, desmontando e correndo na direção do médico.

— Que foi? Aconteceu algo?

— Vi o bilhete que você deixou na porta do consultório e vim procurá-lo. A filha de Tyrone Douglas está tendo bebê e a sra. Douglas não quer que o dr. Thornton faça o parto. Assim, me mandaram chamá-lo. Também pediram que se apresse, pois a coitada está sofrendo muito.

— Vamos. — Caleb guardou as varas de pescar e os peixes enquanto Ellie reunia as crianças e se acomodava no banco, segurando Nate no colo. Durante um certo tempo, J.J. galopou ao lado da carroça, saindo depois em disparada para avisar aos Douglas que o médico encontrava-se a caminho.

— Essa mulher é uma de suas pacientes?

— Não. — Caleb entregou as rédeas à esposa para calçar as meias e botas. — O marido a abandonou grávida e ouvi dizer que ela voltou a morar com os pais. Os Douglas têm uma pequena fazenda. Tyrone nunca escondeu sua opinião ne­gativa sobre médicos que aprendem a profissão em faculdades, em vez de começarem como aprendizes, ou praticando num campo de batalha. A esposa e a filha devem ter tido muito trabalho para convencê-lo a me chamar.

Depois de devolver as rédeas ao marido, Ellie abriu a som­brinha para proteger Nate do sol forte. O bebê estava inquieto, choramingando e recusando-se a dormir. Flynn pediu para se­gurá-lo e o manteve no colo até chegarem à fazenda dos Dou­glas. J.J. os aguardava sentado sob uma árvore.

— Minha filha está no quarto — Tyrone informou ao médico, aparecendo na varanda.

— Benjamin, procure manter os pés em repouso — Caleb o instruiu, apanhando a maleta.

O rapazinho concordou com um aceno de cabeça.

— Flynn, você toma conta de Nate? Talvez ele adormeça no cesto.

— Pode deixar. Acho que Nate gosta de mim.

Virando-se para esposa, Caleb falou:

— É provável que Clella não seja de muita ajuda, conside­rando a preocupação natural com o estado da filha. Talvez eu precise de você.

Ellie engoliu em seco, sufocando a apreensão diante do que seria obrigada a enfrentar. Caleb, porém, estava confiando na sua capacidade de auxiliá-lo e não iria desapontá-lo por nada deste mundo.

Sem dizer uma palavra, acompanhou-o até a casa. O interior, embora um tanto escuro, estava limpo e arrumado. Não foi difícil escutar o som da voz das mulheres, vindo do quarto.

Se tivesse escolha, ela fugiria dali. O sofrimento na hora do parto lhe era tão familiar quanto assustador. Todavia, ape­sar de apavorada, manteve-se junto do marido.

Uma mulher jovem jazia deitada na cama, os cabelos aver­melhados emplastrados de suor. Um lençol branco e fino cobria o abdômen dilatado.

— Oh, Caleb — Clella Douglas murmurou aflita. — Minha filha está ficando exausta e o bebê não vem!

— Leva algum tempo para se ter um bebê — ele respondeu com a calma que lhe era peculiar. — Deixe-me examiná-la. — Olhando ao redor, perguntou: — Você já providenciou água quente e sabão?

— Ainda não.

— Então, traga-me água, sabão e toalhas. Alguns lençóis limpos também.

Clella Douglas correu para atender ao pedido do médico.

— Quando as contrações começaram? — ele indagou à jovem sobre a cama.

— Ontem à noite. Mas só ficaram piores hoje de manhã. Acho que não vou conseguir agüentar. — Lágrimas grossas começaram a escorrer pelo rosto cansado.

— Rachel, essa é minha esposa, Ellie.

— Olá — ela murmurou, os olhos azuis parecendo ainda maiores devido ao sofrimento.

— Conheço Rachel desde que éramos pequenos e freqüen­távamos a escola. — Caleb deu as costas à paciente para abrir a maleta. — Essa situação, provavelmente, parece um pouco desconfortável, não é?

— Não — Rachel negou, balançando a cabeça. — Vi-o cui­dando de animais e você também já fez partos antes, não é?

— Sim.

Uma contração forte fez Rachel retesar todos os músculos do corpo e segurar os lençóis com mãos crispadas, as veias saltadas do pescoço parecendo a ponto de estourarem.

Ellie prendeu a respiração, só conseguindo soltá-la quando a contração passou e Rachel deitou a cabeça no travesseiro, aliviada.

Naquele instante Clella retornou com um jarro de água, sabão e toalhas. Após lavar as mãos, Caleb instruiu Ellie e Clella para que fizessem o mesmo. Então pediu por mais água limpa.

— Vou checar o bebê agora, ver em que posição se encontra — ele falou gentilmente. — …Quero que você relaxe. Ellie, passe uma toalha úmida no rosto e nos braços de Rachel. Dei­xe-a confortável.

Com dedos trêmulos, Ellie atendeu ao pedido do marido, sorrindo encorajadora para Rachel quando os olhos de ambas se encontraram.

Caleb abaixou o lençol e ergueu a camisola da paciente, des­lizando as mãos sobre o abdômen contraído, num exame minucioso.

— Agora vou verificar onde está a cabeça do bebê — ele a informou, tornando a cobri-la com o lençol, mas expondo a parte inferior do corpo enquanto a fazia dobrar os joelhos.

Com o olhar fixo em Rachel, Ellie partilhava cada momento de dor e angústia da jovem mulher. Por que será que o marido a tinha abandonado? Não seria fácil criar um filho sozinha. Entretanto ela parecia ter pais que a apoiavam, pessoas amo­rosas e preocupadas.

— Creio que o bebê irá precisar de um pouco de ajuda para ficar na posição correta — Caleb concluiu. — A cabeça está mal encaixada, o que impede o nascimento. Antes da próxima contração, quero que você fique de quatro, Rachel, apoiada nas mãos e nos joelhos.

— O quê? — Clella gritou, aparecendo na porta do quarto.

— Nessa posição, o bebê terá mais espaço para se virar. Ajude-a, Ellie.

Com o auxílio da esposa, Caleb ajudou Rachel a ficar na posição adequada. Vendo-a estremecer de fadiga e ansiedade, ele a confortou com palavras doces mas firmes.

— Mais umas poucas contrações e o bebê nascerá — encora­jou-a, fazendo sinal para Ellie banhar o rosto pálido da paciente.

— Não posso. Estou muito cansada — Rachel murmurou soluçando.

— Sei que você está cansada. E poderá descansar tanto tempo quanto quiser depois de colocar esse bebê para fora. Você é a única que pode fazê-lo.

— Oh, aquele John Allen! — ela gritou. — Se ele estivesse aqui, eu lhe arrancaria os olhos! — Uma outra contração a obrigou a calar-se por alguns segundos. — Ele me convenceu de que me amava e que teríamos uma vida maravilhosa juntos. Agora olhe para mim! Estou morrendo e ele está por aí, só Deus sabe onde!

— Você não está morrendo — Caleb a corrigiu com segu­rança. — Porém tem permissão para insultá-lo se isso a faz sentir-se melhor.

— John Allen é um verme sujo e podre.

— Verme é forte. — Caleb tocou-a no ventre, sentindo os contornos da cabeça do bebê. — Porém não creio que esse insulto irá ferir os sentimentos de Allen.

— Ele é um imprestável, a escória da humanidade! — Rachel desabafou ofegante.

— Melhor. Ajude-a a pensar em algo, Ellie.

Ellie sussurrou algumas outras ofensas junto ao ouvido de Rachel, que repetiu-as entre risos e lágrimas de dor. Atordoada, Clella levou as mãos ao peito, sem saber o que fazer.

Os xingamentos de Rachel terminaram com gemido desesperado.

— Rachel, deite-se de costas. Ellie, ajude-a. Na próxima con­tração, você vai prender a respiração e então empurrar com força.

— Não posso, Caleb.

— Sim, pode.

— Não, não vou conseguir. Não posso fazer mais nada. Estou muito cansada.

— Você pode. — Feliz por estar ali naquele momento, apoian­do uma jovem assustada, Ellie subiu na cama e acomodou-se atrás de Rachel, sustentando-a entre os braços. Ter um médico e uma outra mulher presente tinha que tornar essa experiência menos aterrorizante. — Vou segurar você e você vai fazer força.

Rachel soluçou.

— Empurre! — Ellie a encorajou.

Por longos segundos, Rachel fez força, até o corpo inteiro começar a tremer.

— Calma agora — Caleb a instruiu, a atenção voltada para a cabeça do bebê, que começava a apontar. — Espere a próxima contração. Agora! Empurre!

Depois de mais duas contrações, Caleb segurava uma criaturinha rosada entre as mãos fortes.

— É um menino!


CAPÍTULO XI

Depois de examiná-lo, retirar o muco da boca e do nariz e cortar o cordão umbilical, Caleb entregou o recém-nascido a Clella. Com lágrimas de felicidade escorrendo pelo rosto sereno, a avó banhou o bebê enquanto Caleb terminava de atender Rachel.

— Oh, minha filha, ele é lindo! Parece-se com você, no dia de seu nascimento.

Por fim Rachel pôde acalentar o bebê junto ao peito.

— Oh, Deus, é uma criança perfeita — ela murmurou maravilhada.

— É sim. — Caleb lavou e secou as mãos, um sorriso terno iluminando as feições viris. Talvez ele estivesse se lembrando do nascimento do próprio filho. Ellie podia imaginar quão hor­rível deveria ter sido perder a jovem e bela esposa.

Essa experiência também despertara lembranças dolorosas, coisas que preferiria manter apagadas da memória. Ela fitou o bebê, um sofrimento atroz despedaçando-lhe a alma. Rachel logo iria esquecer as dores do parto, agora que possuía um filho precioso a quem amar, de quem cuidar. O leite em seus seios não secaria sem que uma criança o sugasse. Seu corpo iria se curar do trauma enquanto assistia o bebê desenvolver-se. Mesmo sem um homem ao seu lado, Rachel seria feliz por ter o filho consigo. E os pais a ajudariam a criá-lo.

Isso acontecia quando um bebê era amado e aceito, quando um bebê tinha uma família.

Ellie não se ressentia de Rachel, ou da criança. Entristecia-a que John Allen fosse um verme imprestável, um canalha capaz de abandonar a esposa grávida. Todavia os Douglas dariam as boas-vindas a esse neto e o criariam com amor.

A sensação de vazio que suportara durante toda sua vida ressurgira com o aparecimento inesperado de Winston. Feridas antigas e mal cicatrizadas foram reabertas ao conhecer a fa­mília de Caleb e compará-la aos seus pobres irmãos, desam­parados pela sorte desde o nascimento. Essa última experiência, então, à cabeceira de Rachel, a deixara emocionalmente exausta. O horror de dar a luz sozinha e o medo do que poderia ter acontecido se sua mãe houvesse posto as mãos no bebê nunca se mantiveram longe da superfície.

O que acontecera à criança que gerara em seu ventre? En­quanto Caleb arrumava as coisas para partir e Tyrone entrava no quarto para conhecer o neto, tornou-se repentinamente claro para Ellie que jamais saberia se sua filha era amada e pro­tegida. E por causa disso, nunca teria paz.

Com o coração doendo, saiu do quarto. J.J. e Benjamin es­tavam sentados na varanda e Flynn encontrara um cachorro para brincar. Rindo, o garotinho lançava um graveto bem longe e batia palmas ao ver o cão correr para buscá-lo.

— A sra. Rachel está bem? — J.J. indagou.

— Ótima. Assim como o bebê.

— Então, é melhor eu ir para casa. Minha mãe estava com febre pela manhã.

— Talvez Caleb devesse ir vê-la — Ellie sugeriu.

— Será que o doutor faria isso?

— Claro que sim. Eu mesma falarei com ele.

J.J. montou e depois de se despedir de Benjamin, partiu a galope.

— J.J. me disse que tem muitos meninos mais velhos na escola por causa do período que são obrigados a faltar, quando trabalham no plantio e na colheita — Ben informou à irmã.

— Você está pensando que talvez não seja uma má idéia ir à escola?

— Talvez. J.J. falou que pode até me ajudar, se eu achar necessário algumas horas extras de estudo para acompanhar a turma.

— Creio que é uma boa solução — Ellie respondeu, não querendo demonstrar entusiasmo demais por medo de vê-lo desistir. Sempre deixara claro o quanto considerava o estudo importante, mas não podia impor sua vontade a um menino de quinze anos.

— Veja, Ellie! — Flynn gritou entusiasmado, mostrando o cachorro que o seguia por toda parte.

Embora sorrisse para Flynn e conversasse com Ben, seus pensamentos estavam fixos nos eventos das últimas semanas, que acabaram por reacender angústias antigas. Sempre se con­siderara segura sobre a atitude que tomara em relação à crian­ça que pusera no mundo.

Mas agora sua alma parecia implorar alguma prova de que agira corretamente. E isso era impossível. Ir atrás de provas destruiria tudo o que obtivera para si e os irmãos. Enfim os três estavam experimentando um pouco de estabilidade. Não podia se arriscar a perder o que conquistara. Não o faria. Nem agora. Nem nunca.

Ellie contou a Caleb sobre a mãe de J.J. e depois de deixar a família em casa, o médico foi fazer uma visita aos Jenkins.

Ao examinar a paciente, ele constatou a existência de man­chas avermelhadas na região do abdômen. A pobre mulher ardia em febre e tossia muito.

Os sintomas não o agradavam nem um pouco e apontavam para possibilidades variadas, todas elas perigosas.

— Você vomitou?

— Sim.

Caleb sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. A preocupação tornou-se ainda mais séria ao notar a língua inchada e arroxeada da sra. Jenkins.

— Você esteve em contato com alguém que apresentasse esses mesmos sintomas?

— Sim. Os filhos de minha irmã estavam doentes. É coisa séria?

Apesar de não querer apavorá-la, era seu dever fazer um diagnóstico rápido e preciso para evitar que uma epidemia tomasse conta da cidade.

— Com quem mais você manteve contato?

— Com minha família.

— Onde esteve ultimamente?

— No armazém e na casa de minha irmã. O que você acha que eu tenho, Caleb?

— Vou pedir ao dr. Thorton para vir vê-la porque ele tem mais experiência do que eu, portanto será bom ouvir uma se­gunda opinião. Enquanto isso, não quero que ninguém mais entre nesta casa. Vou examinar seu marido e seu filho e mandar que fiquem no celeiro até que a fase pior passe.

— Está bem — ela concordou, não questionando a decisão do médico.

— Descanse agora e não se preocupe com nada. Decidiremos qual o melhor tratamento para deixá-la bem o quanto antes.

Caleb lavou as mãos tão logo saiu do quarto.

— J.J., venha cá. — O exame minucioso não detectou ne­nhum sinal da doença. — Você esteve tossindo?

— Não.

— Quero que você vá atrás do dr. Thorton e o traga aqui. Não chegue perto de ninguém. Mantenha-se o mais longe pos­sível das pessoas, pois trata-se de uma doença infecciosa.

— Eu me sinto bem.

— Sei que sim. Mas faça como estou lhe mandando. É importante.

— Certo.

— Depois vá à casa de sua tia. Diga-lhe para trazer as crianças doentes para cá. Será mais fácil tratá-los se estiverem todos juntos.

Enquanto aguardava a volta do rapazinho, Caleb sentou-se à cabeceira de Kate, rezando para que J.J. não encontrasse o velho médico bêbado, caído sobre o balcão do saloon. A voz da experiência precisava ser ouvida e Thornton já atendera e tratara mais pessoas do que Caleb em sua curta carreira. Uma segunda opinião quanto ao diagnóstico o ajudaria a salvar vidas preciosas.

O velho Thornton cheirava a charuto, porém não parecia bêbado ao entrar na casa dos Jenkins.

Depois de examinar o pescoço e as axilas de Kate, ele puxou Caleb para fora do quarto.

— Escarlatina — sentenciou.

Uma mistura de alívio e pavor inundou o peito de Caleb. Apesar de muitas vezes fatal em adultos, a escarlatina causava menos mortes do que varíola. Se conseguisse evitar certas com­plicações, as chances de salvar os pacientes cresciam bastante.

— Temos que colocar em quarentena todos aqueles que es­tiveram expostos ao contágio.

— Não se trata de difteria, ou febre tifóide — o velho médico resmungou.

— Continua sendo uma doença contagiosa. E você tem que lavar as mãos antes e depois de examinar cada um dos pacientes.

— Asneira. Tenho praticado medicina desde antes de você nascer e não vou permitir que um fedelho, recém-saído da faculdade, venha me dizer como tratar os pacientes.

— Sei de sua grande experiência, senhor, e lhe dou o devido respeito. Por esse exato motivo o mandei chamar. Todavia, descobertas recentes nesta última década, têm mostrado que muitas doenças se espalhavam através de germes. Quando a quarentena e a assepsia são incorporadas ao tratamento, os resultados são mais positivos.

Thornton mordiscou as unhas e Caleb aguardou alguns se­gundos, antes de continuar.

— O que temos a perder? Se eu estiver errado, tudo o que podemos fazer é dizer que eu estava errado. Entretanto, se eu estiver certo, evitaremos que a doença se espalhe e salva­remos vidas.

— Não há como evitar uma epidemia, depois que o primeiro caso aparece. Vi famílias inteiras sucumbirem na década de quarenta.

— Podemos evitar sim. Se eu estiver errado, pessoas mor­rerão de qualquer maneira. Mas se estiver certo, salvaremos algumas vidas. Não há muita escolha.

O velho médico continuou impassível, parado diante da janela.

— As pessoas confiam em você — Caleb insistiu. — O povo desta cidade não confia em mim. Se você os mandarem ter cuidados especiais com a higiene, irão escutá-lo. Estou pedin­do-lhe que me ajude. Por favor.

Por fim Thornton o fitou, uma expressão cansada porém benevolente no rosto.

— Vivi o auge da minha profissão tempos atrás e meu re­lacionamento com a bebida não é nenhum segredo. Mas você tem razão, algumas dessas pessoas ainda confiam em mim. Posso não confiar em você e posso não gostar da idéia, todavia você é o futuro desta cidade… a menos que desista.

— Não vou desistir — Caleb respondeu, mais convicto do que nunca.

— Imaginei que não fosse. Ok, faremos do seu jeito — o velho médico concedeu, apanhando o jarro de água e lavando as mãos.

A cooperação de Thornton deu novo alento e esperança a Caleb. Podendo contar com esse apoio, seriam capazes de evitar que a doença se espalhasse pela cidade.

— Primeiro teremos que descobrir com quem Kate esteve em contato e colocá-los de quarentena. E também as pessoas que estiveram perto de J.J., pois o garoto pode servir de agente transmissor. Oh, Deus, vai ser uma lista e tanto! — Ele lem­brou-se dos Douglas e do bebê recém-nascido com um aperto no coração.

E sua própria família. J.J. estivera com os meninos a tarde inteira. De repente, tudo o que Caleb queria era poder voltar para casa e se certificar de que todos encontravam-se seguros. A ameaça de uma epidemia nunca lhe parecera tão real.

— O quanto antes tomarmos as medidas necessárias, me­lhor. Irei à fazenda dos Douglas e depois à minha casa, exa­minar os meninos. Fique aqui e cuide da irmã de Kate e das crianças até que eu esteja de volta.

Ellie sabia que a situação era muito mais séria do que Caleb deixava transparecer. Embora o marido tentasse não assustá-los, seria impossível não perceber os sinais de perigo. Todos deveriam permanecer dentro de casa. Mercadorias deveriam ser entregues e deixadas no portão até serem colhidas por um membro da família.

— Prometa-me que você não sairá daqui — ele pediu, os dois sozinhos na varanda, longe dos olhos e dos ouvidos das crianças.

— Prometo-lhe. Você não tem que se preocupar com os me­ninos. Cuidarei deles.

— E não permita pessoa alguma entrar nesta casa. A ameaça tem duas faces. As pessoas podem contaminá-la, ou você a elas.

— Ninguém entrará aqui.

— Eu não a deixaria sozinha, se não fosse obrigado. — Os olhos castanhos exprimiam pesar e preocupação.

— Seus pacientes precisam de você — Ellie falou, querendo tranqüilizá-lo. Se não tivesse paz de espírito, Caleb não seria capaz de se concentrar no trabalho. — Foi para isso que você freqüentou a universidade. Para ajudar as pessoas. — Sur­preendendo a si mesma, ela o tocou de leve no braço, sentindo o volume dos músculos tensos. — Você é um bom médico. Tem o conhecimento e a habilidade necessária para curar as pessoas.

— É Deus quem cura. Eu apenas aplico o tratamento.

— Então vá fazer seu trabalho. Estaremos esperando-o. Quando os dois se fitaram, Ellie soube haver algo mais que devia ter dito, ou feito, porém não conseguia imaginar o quê.

— Obrigado — ele falou simplesmente.

Como o marido a agradecia, se era ela quem lhe devia tudo?

Caleb inclinou-se devagar e, segurando-a pelos ombros, bei­jou-a de leve na boca.

Ellie ficou tão surpresa, que não esboçou a menor reação, a respiração suspensa, o coração acelerado. Tudo cessara de existir, a não ser a breve pressão dos lábios sensuais contra os seus.

Sem pressa, Caleb rompeu o contato, envolvendo-a num olhar ardente.

Trêmula, ela se afastou e vendo-o sorrir, enrubesceu.

Sem dizer nada, Caleb apanhou a maleta, desceu os degraus da varanda e partiu.

A sensação que a dominava era algo inexplicável, misto de medo, ansiedade, euforia.

Horas depois da partida do marido, ainda se lembrava do toque gentil daquela boca na sua e as possíveis implicações do breve contato. Beijar era algo totalmente fora de sua com­preensão e experiência.

Se Caleb tivera a intenção de confortá-la com o gesto, fa­lhara. Se pretendera perturbá-la, fora bem-sucedido. Em seu íntimo, fervilhavam agora impulsos desconhecidos.

Ela alimentou os três meninos, leu uma história em voz alta e permitiu que Ben e Flynn se sentassem no quintal para brincar com o gato, que se tornara uma presença constante nos arredores.

Anoiteceu. Os meninos foram se deitar. Ellie sentou-se à escrivaninha e procurou se entreter com a leitura de um livro. A srta. Shaw tinha lhes mandado a almofada com os pássaros.

Horas depois, parecendo exausto, Caleb chegou.

— Você está com fome?

— Não. Apenas cansado.

Ellie levou uma chaleira de água quente até o quarto do marido e despejou-a no jarro.

— Posso lhe trazer alguma coisa mais? — ofereceu-se.

— Não, obrigado.

Vendo-o sentar-se na cama para tirar as botas, correu para ajudá-lo. Ao erguer os olhos, surpreendeu-o observando-a. A lembrança do beijo a fez corar desconfortavelmente

— Mudei o berço de Nate para meu quarto, pelo menos por enquanto. Espero que não se oponha.

— Foi uma atitude atenciosa de sua parte. Ele está bem? Vocês todos estão bem?

— As crianças estão ótimas. — Evitando fitá-lo, ela levan­tou-se e rumou para a porta. — Boa noite, então.

— Boa noite.

Sozinha no quarto, Ellie certificou-se de que o bebê dormia tranqüilo antes de trocar-se e apagar o lampião. Exausta, não tardou a adormecer.

Sons de movimento no corredor acabaram por acordá-la. Ainda continuava escuro lá fora, porém Caleb já estava pronto para sair. Vestindo-se depressa, correu para a cozinha.

— Você vai tomar café antes de ir trabalhar — ela falou decidida. — Em questão de minutos terei algo pronto.

Enquanto a esposa preparava uma refeição leve, Caleb abriu a porta dos fundos e aspirou o ar fresco das primeiras horas da manhã.

Ellie serviu-lhe uma xícara de café forte, acompanhado de bolinhos de milho, assados na noite anterior.

— Uma das primas de J.J. inspira cuidados. Depois da me­lhora inicial, o estado geral da menina se agravou. Dr. Thornton passou parte da noite assistindo-a.

— Fico satisfeita que você tenha vindo para casa descansar um pouco. É necessário cuidar de si para poder ajudar os outros.

— Eu sei. Mas é difícil deixar meus pacientes, quando se mostram tão assustados.

Uma batida na porta da frente surpreendeu-os. Caleb apressou-se a levantar e se dirigir ao corredor, Ellie seguindo-o de perto.

— É Luke Swensen, o merceeiro — ele informou à esposa, limitando-se a entreabrir a porta.

— Preciso lhe dizer — o homem começou.

— Afaste-se da porta e então fale.

— Minha mulher está doente.

— Fique em casa com ela — Caleb ordenou. — Não abra o armazém hoje. Eu deveria tê-lo mandado fechar a loja ontem mesmo, depois de saber que Kate Jenkins esteve lá.

— Tenho que abrir a loja. Todos os meus fregueses irão fazer compras.

— Você foi exposto à doença, Luke. Qualquer um que entrar no armazém corre o risco de se contaminar.

— Não estou doente. Você vai ver minha esposa ou não?

— Irei sim. E você não abrirá o armazém. Vá direto para casa e permaneça lá.

O merceeiro foi embora resmungando.

— Preciso ir ao consultório apanhar mais medicamentos. Determinada, Ellie tirou o avental.

— Vou ajudá-lo.

— Não. Existe o perigo de contágio.

— Já estive com J.J. e com você.

Sobrecarregado de trabalho, com dezenas de pessoas exi­gindo cuidados imediatos, Caleb ainda assim queria poupá-la. Aquecia-lhe a alma sentir-se protegida.

— Você não pode fazer tudo sozinho. J.J., que normalmente o ajudava nas pequenas tarefas, encontra-se de quarentena. Você precisa de auxílio e eu sou a escolha lógica.

Os ombros do marido se curvaram por um momento, como se carregassem todo o peso do mundo. Pareceu-lhe natural estender a mão e tocá-lo no braço.

— Tire esse gesso e me dê a lista dos medicamentos dos quais precisa.

— Eu…

— Fiquei com o gesso o tempo necessário para que a fratura se consolidasse. Meu braço está ótimo agora.

— É verdade.

— E me explique como chegar à casa dos Swensen. Irei encontrá-lo lá levando os remédios. Vou acordar os meninos e dizer-lhes que cuidarão de Nate hoje. Tudo dará certo.

— Obrigado, Ellie — ele agradeceu, tomando a mão da es­posa entre as suas.

Tocar era algo natural para Caleb. Afinal, sendo médico, tocava nas pessoas todos os dias. Entretanto tal comportamento lhe era tão estranho quanto perturbador. Não estava acostumada a ser tocada de maneira agradável e não sabia como reagir.

Voltando para a cozinha, Caleb tirou uma serra da maleta e cortou o gesso com cuidado. Uma dor súbita e intensa a fez vacilar enquanto se via livre da tala.

— É normal doer um pouquinho logo que o gesso é retirado, pois o osso perde o apoio costumeiro.

Desgostosa, ela fitou a pele branca e flácida. O membro nem sequer se parecia com seu próprio braço.

— Irá nascer uma pele nova — ele a assegurou. — Apenas use o bom senso e não levante nada pesado, ou tente forçar o braço antes da hora.

Depois que o marido partiu, Ellie finalmente conseguiu se concentrar para iniciar as tarefas do dia. Quando por fim ter­minava de arrumar-se e explicar aos irmãos o que deveriam fazer, o sol já se levantara.

Não foi difícil encontrar a residência do merceeiro.

A sra. Swensen, vermelha por causa da febre, aceitou o tratamento indicado e os conselhos do médico com tranqüili­dade, tendo, todavia, que se esforçar para convencer o marido teimoso a não abrir a loja.

Caleb informou Luke sobre a maneira correta de cuidar da esposa, avisando-o de que deveria lavar as mãos freqüentemente, assim como ele fizera ao terminar de examinar a paciente.

— Se ao menos conseguíssemos com que mais pessoas com­preendessem a importância de evitar o contato físico — Caleb murmurou desalentado, ajudando Ellie a subir na carroça.

— E se imprimíssemos panfletos e os distribuíssemos? — ela pensou alto. — Ou colocássemos um anúncio no jornal?

— Você é um gênio! — Animado, ele conduziu o veículo até o escritório do jornal.

Sem descer, Caleb conversou com o tipógrafo e pediu que lhe mandassem a conta. Então tomou o caminho da casa dos Jenkins.

— Todos nesta cidade pensam que sou um charlatão — desabafou.

— Pois eu não.

Os olhos escuros a fitaram por um longo instante, pensativos, e o sorriso que subitamente iluminou o rosto viril valia mais do que mil palavras.

Kate Jenkins apresentava uma melhora considerável e foi capaz de tomar um pouco da canja preparada por Ellie en­quanto a irmã, exausta, dormia. Dr. Thornton aproveitou a chance de ir para casa descansar também. Sentado à cabeceira da prima de J.J., Caleb banhava o rostinho febril com um pano úmido e, de vez em quando, auscultava-lhe o coração.

A garotinha devia ter a idade de Lucy. Franzina, os cabelos escuros presos em duas trancas, ela delirara, chorando e cha­mando pela mãe. Caleb procurava acalmá-la, murmurando pa­lavras doces e se esforçando para mantê-la confortável.

O estado delicado da menina, a luta que o corpo magro travava contra a morte, era algo assustador, porém Caleb com­portava-se como um profissional. Ellie tentava seguir o exemplo do marido, demonstrando calma e confiança, mas estava a pon­to de desabar por dentro.

— Qual é o nome dela? — indagou, puxando uma cadeira para sentar-se ao lado de Caleb.

— Suzanne.

Como o marido conseguia agir assim, Ellie se perguntou, vendo-o tomar o pulso frágil. Ele conhecia Kate, e a grande maioria dos moradores da cidade, desde a infância. Contudo costumava tratar os estranhos com o mesmo zelo dedicado aos amigos. Fora com ternura que a atendera e cuidara de seu braço fraturado. Até Benjamin, que fazia questão de adotar um comportamento hostil, recebia gentilezas em troca.

Caleb doava-se muito aos seus semelhantes.

Por inúmeros motivos, admirava-o com uma reverência que ia além da apreciação, ou do respeito. Observá-lo no exercício de sua profissão a afetava profundamente. E saber-se casada com aquele homem a assombrava.

Se ao menos merecesse ser esposa de Caleb Chaney.

Ou sua amiga.

Quando o dr. Thornton regressou à casa dos Jenkins, no final da tarde, J.J. tossia e tinha dor de garganta. Ellie colocou-o na cama, sob uma pilha de cobertores, e Caleb lhe ministrou uma dose da antitoxina.

Caleb só se decidiu a ir para casa quando o cansaço quase o impedia de raciocinar. Depois de verificarem se os meninos esta­vam bem, marido e mulher comeram uma refeição fria e subiram para seus quartos separados. Ellie passou pomada de glicerina no braço, para aliviar a coceira da pele descascada, e deitou-se.

Poucas horas depois acordou, escutando alguém tossir. Num átimo, pulou da cama e parou no meio do corredor, os ouvidos atentos. Outra vez o mesmo ruído, vindo do quarto dos meninos. Aterrorizada, voou para o quarto de Caleb, pensamentos ter­ríveis quase a impedindo de respirar.

— Que aconteceu? — o marido perguntou, sentando-se na cama e passando as mãos pelos cabelos revoltos.

— Um dos garotos está doente!

Vestindo-se apressadamente, Caleb correu atrás de Ellie. Era Flynn. De olhos fechados, debatendo-se, o garoto ardia em febre.

— Oh, Deus — Ellie soluçou retorcendo as mãos.

— Vá buscar água — Caleb a instruiu sem perder a calma. — Você sabe o que fazer.

O movimento acabou despertando Benjamin.

— Alguma coisa errada? — o rapazinho quis saber, esfre­gando os olhos e sentando-se.

— Vai ficar tudo bem. Você está tossindo, ou sente dor de garganta, Ben? — Caleb indagou.

— Não.

— De qualquer maneira, vou lhe dar a antitoxina. E a você também, Ellie. Nate terá que tomá-la — o médico comentou quase que para si mesmo, o rosto sério revelando preocupação. — Só não tenho certeza quanto à dosagem. Vá buscar água, Ellie.

Com o coração cheio de medo, agora que sua própria família estava exposta aos perigos da doença, ela obedeceu. Se não fosse a calma e eficiência de Caleb, teria desmoronado em mil pedaços. Ele sabia o que fazer e tomaria conta de todos. Pre­cisava apenas manter-se confiante e ajudá-lo. O marido já an­dava tão cansado.

Depois de encher uma bacia e uma chaleira com água, ela retornou ao quarto.

— Não me sinto bem, Ellie — Flynn murmurou, a pele ao redor da boca muito branca em comparação às faces.

Percebendo os mesmos sintomas que constatara em Kate e Suzanne, ela reprimiu o pânico e acariciou os cabelos enchar­cados de suor do menino.

— Sei que não, querido. Mas Caleb vai cuidar de você e logo se sentirá melhor.

Acreditava nisso. Com todas as suas forças.

Um choro súbito ecoou pelo corredor. Dividida entre o impulso de ficar ao lado do irmão e atender ao bebê, Ellie prometeu a Flynn voltar dentro de um minuto e correu para o outro quarto.

— Que foi, pequenininho? Nós o acordamos?

Porém ao trocar a fralda molhada de Nate, sentiu que o corpinho macio ardia em febre, manchas avermelhadas já se espalhando pelo abdômen.

Oh, Deus, não Nate!

Tomando-o no colo, voltou para junto do marido.

— Nate está doente também! — explodiu, incapaz de es­conder o desespero da voz.

Mascarando os sentimentos sob o manto da eficiência, Caleb tomou as rédeas da situação.

— Por favor, Benjamin, traga o berço de Nate para cá. E é melhor você ir dormir na minha cama depois.

Em poucos minutos Ben regressava com o berço.

— Não vou conseguir dormir agora. Prefiro ajudar. Emocionada, Ellie trocou um olhar com Caleb. Benjamin estivera exposto ao contágio como todos eles e as chances eram grandes de que viesse a desenvolver a doença. Todavia, o rapaz queria ajudá-los e, sem dúvida, precisavam de auxílio.

— Está bem — Caleb decidiu. — Você pode ficar encarregado de trazer água. Não é bom para Ellie forçar muito o braço esquerdo.

Com lágrimas nos olhos, Ellie depositou Nate no berço e despiu-o. O corpinho arredondado estava coberto de manchas e o choro sofrido cortava-lhe a alma. A ameaça de perder um de seus entes queridos para aquela doença terrível assustava-a tremendamente.

Febres altas e doenças semelhantes à escarlatina podiam deixar toda sorte de seqüelas, mesmo se os pacientes sobrevi­vessem. Ouvira falar de pessoas que haviam ficado surdas.

Com certeza Caleb sabia disso tudo também, mas ele traba­lhava sem adicionar medo à sua crescente ansiedade.

Durante dois dias eles lutaram contra a febre. Caleb saía de casa apenas para visitar a sra. Swensen e os Jenkins, trazendo notícias encorajadoras sobre a total recuperação de Kate e a me­lhora de Suzanne. J.J., todavia, ainda encontrava-se febril.

A extrema dificuldade para respirar de Flynn apavorava Ellie. Não havia nada que pudesse fazer a não ser segurá-lo nos braços e rezar, enquanto testemunhava o esforço sobre-humano do menino para encher os pulmões de ar. Embora as manchas na pele já tivessem desaparecido, como acontecera com as de Nate, Flynn não conseguia se livrar da febre, nem das dificuldades respiratórias.

Drenada de toda a energia, Ellie sentou-se à cabeceira do irmão, tomando a mãozinha ardente entre as suas.

Não podia perder aquele menino querido, que nunca conhe­cera conforto e segurança, mas que merecia desfrutar de ambos mais do que qualquer outra pessoa. Era impensável encarar a possibilidade de perdê-lo. Não agora, quando todas as coisas prometidas estavam ao alcance de Flynn.

Lembrava-se do que Caleb dissera, sobre a cura vir de Deus. Nunca tivera muita fé na intervenção de Deus a seu favor, porém o marido se mostrava tão seguro quanto a misericórdia divina! Flynn era jovem e inocente. Merecia uma chance. Sem dúvida sua existência não iria chegar ao fim quando apenas começava a descobrir o lado bom da vida.

— Meus pés estão frios — Flynn murmurou. — Preciso arranjar umas botas. Um par como aquele da vitrine. Ellie vai vender muitos charutos essa noite. Vai vender tantos que poderá comprar um par de botas para mim.

O menininho delirava. Ellie lançou um olhar para Caleb, que cochilava na cama de Benjamin, e ergueu uma prece ao Deus em quem o marido tanto confiava. Talvez, por causa de Caleb, Ele a atendesse.

Já enfrentara coisas que ninguém deveria enfrentar. Sobre­vivera da maneira que lhe fora possível. Mas não se acreditava capaz de suportar a perda de um irmão.

Atordoada, com a garganta seca, Ellie serviu-se de um copo d'água. Sentia-se exausta e a noite estava tão quente! Se ao menos conseguisse dormir um pouco. Porém Caleb precisava de alguns minutos de descanso e ela deveria manter Flynn e Nate frescos.

Sua cabeça doía tanto, que foi obrigada a fechar os olhos por um momento.

— Ellie?

A voz do marido parecia vir de muito longe. Não fazia idéia de quanto tempo transcorrera, ou onde se achava. Ao erguer as pálpebras, a luz do lampião feriu-lhe os olhos. Tentou engolir, mas a garganta estava em fogo.

— Ellie. — Desta vez a voz profunda soou tão perto, que seu corpo inteiro estremeceu. Amava essa voz.

Amava as palavras gentis e a preocupação contida no olhar sério. Amava o modo como ele sabia deixar as pessoas à vontade e a maneira como tomava controle de uma situação.

Amava o modo como a fazia sentir-se, ao tocá-la. Amava o cheiro dele, misto de loção de banho e masculinidade.

Sim. Amava Caleb Chaney.


CAPÍTULO XII

O sonho voltou naquela noite… e na seguinte… e na outra. Ellie não encontrava forças para acordar e afastar o terrível pesadelo. As mãos a confundiam.

As mãos sempre a tinham torturado. Mas, em alguns dos sonhos, eram gentis. Num instante a voz sarcástica soava cheia de rancor e as mãos maltratavam-lhe o corpo. No outro, a voz a apaziguava, as mãos a acariciavam.

Sua cabeça latejava devido ao caos, as alterações incessantes de cenário enlouqueciam-na.

Ela chorava.

Ela dormia.

E implorava piedade.

Caleb pensara ter enfrentado o pior quando Flynn e Nate adoeceram. Tudo o que quisera então fora tomar o filho nos braços e segurá-lo apertado. Todavia vencera o pânico com determinação férrea. Flynn precisava de seus cuidados tam­bém, assim como muitos outros. Vira-se obrigado a ignorar as dúvidas, todas as possibilidades que o atormentavam e con­centrar-se em fazer o que estivesse em seu alcance para ajudar seus pacientes a se recuperarem.

Ele sabia quais seqüelas essa doença podia deixar. Mesmo sobreviventes corriam sérios riscos de ficar surdos, ou ter pro­blemas respiratórios permanentes. Dera o melhor de si para evitar que a epidemia se espalhasse e conseguira salvar vidas. Sempre pregara assepsia, esterilização de instrumentos, ati­tudes racionais. Agora toda a teoria em que acreditava estava sendo testada na prática, no seio de sua própria família. Se estivesse errado, não tinha apenas a profissão a perder.

Com poucas, ou nenhuma hora de sono, Caleb sentia os dias passarem como se estivesse num limbo. Quando Nate e Flynn mostraram melhora, pensara que talvez, talvez, come­çava a enxergar a luz no fim do túnel. Sem febre, os meninos descansavam confortavelmente, a respiração normalizada, a audição perfeita.

Entretanto não tivera tempo de sentir-se grato aos céus.

Deveria ter estado preparado para o fato de Ellie adoecer. Afinal, preparara-se para o aumento do número de casos. Era médico, não tolo.

Ellie era forte. Como qualquer um, tivera medo, porém não cedera aos temores. Fora seu braço direito durante o período mais negro da crise. Agora jazia indefesa, sofrendo, e ele era o único que podia ajudá-la. Portanto, não lhe cabia ceder ao medo também.

Ignorando o terror cego que ameaçava devorá-lo, Caleb buscou apoio em seus instintos e no treinamento profissional recebido.

Benjamin passava horas sentado no corredor, do lado de fora do quarto, os joelhos puxados contra o peito, o olhar parado. O garoto já havia trazido tanta água, que Caleb o mandara parar. Além de cuidar de Flynn, Ben também assumira as tarefas ro­tineiras envolvendo Nate, alimentando-o e trocando-o. Nunca Ca­leb imaginara que alguém tão jovem pudesse ser de tanta valia.

Agora, com os trabalhos do dia terminados e Flynn e Nate dormindo, Ben cochilava sentado do lado de fora do quarto da irmã.

Inquieta, Ellie virava a cabeça de um lado para o outro do travesseiro, as roupas empapadas de suor. Ele deveria pedir a Ben para ajudá-lo, todavia temia assustá-lo ainda mais, ou embaraçá-lo.

— Perdoe-me — Caleb murmurou, desabotoando a blusa da esposa até a cintura antes de tirá-la. Logo a livrava da saia e das meias. Tivera mais sucesso em fazer baixar a febre quan­do banhava o tórax do paciente. Assim, desculpando-se nova­mente, removeu a combinação branca. Ellie era uma paciente, ele, um médico. Não iria tratá-la de maneira diferente apenas por ser sua esposa. Uma esposa cujo corpo continuava sendo um completo mistério.

Com um pano molhado, Caleb banhou o rosto, pescoço e braços da mulher. Depois virou-a de bruços para umedecer as costas e os ombros antes de trocar os lençóis da cama por outros secos.

— Estarei fazendo isso freqüentemente — ele falou em voz alta —, portanto é melhor me acostumar. — Com extrema delicadeza, tornou a virá-la de costas e deslizou o pano ensopado sobre o peito de Ellie, esforçando-se para vê-la só como paciente. A pele branca parecia afogueada sob a luz do lampião, os seios eram lindos e delicados.

Tolice de sua parte sentir-se tão culpado por notar a beleza da esposa. Afinal, não haviam se casado? Entretanto desejava, de todo coração, estar vendo o corpo dela primeira vez em circunstâncias diferentes. Cedendo ao impulso, entregou-se à contemplação. Como o nariz era bem-feito e os cílios espessos! Dos lábios carnudos, já experimentara o gosto suave.

Os seios arfavam devido à respiração difícil e seu olhar foi atraído pelos mamilos róseos. De repente, uma linha fina, quase translúcida, chamou-lhe a atenção. Intrigado, inclinou-se para observar melhor a região do peito, sabendo o que iria encontrar.

Devagar, abaixou o lençol até os quadris da esposa. Várias estrias rosadas cobriam o abdômen rígido.

O choque deixou-o anestesiado. Atônito, sentou-se na beirada da cama.

Ellie teria dado a luz a um filho?

A suspeita atingiu-o com a força de um raio. Poderia sua esposa, essa mesma esposa que nunca tocara, ter concebido uma criança? Teria outro homem, além dele, a visto nua? Teria outro homem a acariciado, amado e plantando em seu ventre a semente de um filho?

Uma sensação estranha, jamais experimentada antes, su­focou-o, fazendo cerrar os dentes para não gritar. Se chegara à conclusão correta, onde estaria esse homem agora?

Vendo-a com olhos diferentes, Caleb tornou a banhá-la e apanhando as roupas e lençóis molhados jogou-os num canto. A raiva de se saber traído ameaçava vir à tona, porém lutou para ignorá-la.

Por que isso o afetava tanto? Afinal, Ellie não lhe mentira sobre o passado, pois não lhe fizera nenhuma pergunta. Talvez ela houvesse sido casada. Ou então simplesmente cometido um erro, deixando que algum canalha a seduzisse. Se a esposa tivera um filho, o que acontecera à criança?

Ellie fora tão enfática na sua recusa em engravidar, em não partilhar o leito conjugal. Tal recusa doía agora mais do que nunca. Por que havia sido rejeitado? Teria amado alguém no passado e recusava-se a se contentar com um substituto?

Sua mente fervilhava, tentando encontrar uma lógica capaz de explicar o que temia ter acontecido. Mas quando? Flynn? Não, Ellie não tinha idade para ter concebido Flynn.

Delirante por causa da febre, ela gemeu baixinho e Caleb banhou a testa ardente. Quando essa mulher se tornara tão adorável aos seus olhos? Quando os segredos de seu passado tinham ganho tamanha importância?

Importava-se porque Ellie era sua esposa agora e casara-se com ela tencionando ser fiel e honrá-la até que a morte os separasse. Importava-se porque as emoções que Ellie desper­tava em sua alma eram muito mais profundas do que aquelas despertadas por sua primeira mulher.

— Está tudo bem — ele a acalmou, vendo-a debater-se. — Apenas descanse.

— Tem uma torta esfriando na mesa da cozinha. — Ellie delirava. — Cubra-a para evitar as moscas.

— Não se preocupe, vou cobri-la.

— A porta está trancada?

— Sim, está.

Ela relaxou um momento, encostando a cabeça no traves­seiro. Depois tornou a agitar-se.

— Alguém lave os cabelos de Nate. Estão sujos de mel e Laura pensará que não sou uma boa mãe.

Uma boa mãe. Talvez o bebê de Ellie houvesse morrido. Talvez por essa razão não suportasse a idéia de ter outro, te­mendo o mesmo fim. Agora compreendia o olhar desesperado que a esposa lançara ao bebê de Rachel. Interpretara a reação intensa como mera emoção diante do milagre da vida. Não se tratava apenas disso.

Teria Ellie assistido ao nascimento da criança com os olhos de alguém que já passara pela mesma provação e então perdido o filho?

Durante toda a noite e na manhã seguinte, Caleb banhou o corpo da esposa delirante e a fez tomar doses de antitoxina. Os pesadelos que a assombravam, pareciam ainda piores, pois a via contorcer-se e se debater, implorando para que não a machucassem.

Apenas nos momentos de profunda fadiga duvidava de sua capacidade de salvá-la. Flynn e Nate haviam melhorado e Ben não mostrava sinais de ter contraído a doença. Os outros pa­cientes também se recuperaram, mesmo Suzanne, cuja febre fora quase tão forte quanto a de Ellie.

Ninguém, sob seus cuidados, morrera. Muito diferente da ocasião em que não conseguira salvar a própria esposa.

Winston Parker lhe perguntara se pretendia matar outra mulher. Durante as horas intermináveis daquele longo dia, Caleb estudara o rosto delicado de Ellie e checara o pulso alterado vezes sem conta, sabendo que nas suas mãos estava o destino de uma pessoa que se tornara importante para sua felicidade. Maldito Winston, por fazê-lo duvidar de si mesmo!

Angustiado, redobrou os esforços para fazer a febre ceder.

Tarde da noite, a campainha soou e Ben conduziu o dr. Thornton até o quarto.

— Como está sua esposa? — o velho médico perguntou.

— A febre não cede. E as solas dos pés estão descascando. Isso acontece com todos os pacientes?

— Sim, quando a doença se manifesta de forma particular­mente violenta. A menininha perdeu camadas inteiras de pele nos dedos.

— Ninguém morreu?

— Ninguém.

Caleb suspirou aliviado.

— E tivemos apenas mais um único caso. A esposa de Clive Sanders.

— Ela está bem?

— Vou visitá-la agora. A sra. Sanders esteve no armazém no mesmo dia em que Kate Jenkins passou por lá.

— Mas não podemos considerar a epidemia sob controle até que se passe mais uma semana, pois o vírus tem um período de cinco dias de incubação.

Embora as roupas de Thornton estivessem um pouco sujas e amassadas, as mãos pareciam limpas.

— Imagino que você não será obrigado a admitir que estava errado. A situação poderia ter sido muito pior se não tivéssemos agido à sua maneira.

Estivera certo, sim. Evitara o aparecimento de mais casos e algumas mortes. Essa, talvez, fosse a única gratificação que lhe restasse.

O velho médico fitou Ellie durante alguns minutos.

— É difícil acreditar que um organismo minúsculo, impos­sível de ser visto, possa ser tão perigoso a ponto de ameaçar a vida das pessoas.

— Algumas bactérias podem ser vistas com o microscópio. A primeira vez que eu as vi foi no laboratório da universidade.

— Você tem um microscópio?

— Sim.

— Importa-se se eu vier dar uma olhada qualquer dia desses?

— Não me importo nem um pouco.

Thornton despediu-se e Benjamin o acompanhou até a porta.

A noite que se seguiu foi uma das mais longas que Caleb já enfrentara. Tinha tantas perguntas. Tantas dúvidas. Fizera tudo ao seu alcance para salvar Ellie e não suportaria perdê-la. Tampouco se permitia imaginar o que diriam se a esposa mor­resse sob seus cuidados.

Enquanto a observava entrar e sair de estados delirantes, ele não parava de pensar em outro homem tocando-a. A idéia o martirizava. Dividido entre a dor e a aflição, rezava para que a mulher se recuperasse.

No dia seguinte, a febre cedeu e a tosse sumiu. Caleb ves­tiu-lhe uma camisola limpa, trocou os lençóis e deixou-a dormir, um sono profundo e restaurador.

Então estendeu um catre, ao lado da cama da esposa, e deitou-se, procurando relaxar. Apesar de aliviado, sentia-se per­turbado por uma nova e estranha emoção. Se a conhecera há tão pouco tempo, por que a idéia de Ellie ter tido um filho o incomodava tanto?

O fato é que não sabia quase nada a respeito do passado da mulher porque não fora merecedor de confiança. Será que ela pretendera contar-lhe algum dia? Deveria ter feito pergun­tas? Deveria ter sido insistente?

Vencido pela exaustão, Caleb acabou adormecendo.

Ellie acordou no meio da noite e sentou-se na cama. Um lampião aceso sobre a cômoda iluminava o quarto.

— Caleb?

— Ellie! — Ele sentou-se e passou as mãos pelos cabelos.

— Flynn e Nate estão bem?

— Sim.

— A família de J.J.?

— Todos se recuperaram. Até Suzanne. O único caso agora é a esposa de Clive Sanders.

— A senhora simpática que pediu ao marido para me levar ao seu consultório, quando quebrei o braço?

— Essa mesma.

— Precisamos ajudá-la — Ellie falou, afastando os lençóis com a intenção de se levantar.

— Você deve descansar e recuperar as forças antes de pensar em sair da cama. O dr. Thornton está cuidando da sra. Sanders.

— Você confia nele?

— Nesse caso, sim.

Observando a aparência exausta do marido, as olheiras pro­fundas sob os olhos castanhos, Ellie pensou em dizer algo, mas acabou adormecendo.

Tornou a acordar na manhã seguinte. Caleb já não se en­contrava no quarto. Os últimos dias lhe pareciam um misto de pesadelos, dor intensa e desconforto.

Todavia, Caleb não saíra de seu lado. Disso tinha certeza. Fora a voz dele que a acalmara, que a amparara quando tudo se tornara assustador.

Quantos dias teriam passado desde que adoecera? Tinha um gosto horrível na boca e seus cabelos estavam sujos. Vestia uma camisola limpa. Portanto Caleb a trocara enquanto esti­vera inconsciente, concluiu mortificada.

— Ellie! — Benjamin a chamou da porta do quarto, os olhos risonhos e felizes.

— Ben! Você não ficou doente?

— Não. — O rapazinho ajoelhou-se ao lado da cama da irmã, fitando-a maravilhado.

— Flynn está melhor?

— Sim. Caleb cuidou dele e de você o tempo inteiro. — O tom cínico, sempre presente na voz de Ben ao mencionar o médico, desaparecera por completo. Sem dúvida um profundo sentimento de gratidão substituíra a desconfiança inicial.

— Eu gostaria muito de tomar um banho agora e lavar meus cabelos.

— Trarei a banheira. Flynn me ajudará a esquentar a água.

— Espere, onde está Caleb? E quem está cuidando de Nate?

— Caleb foi visitar a esposa do sr. Sanders. E a sra. Jenkins está tomando conta de Nate.

Ellie levou alguns minutos para absorver a informação.

— Kate Jenkins? A mãe de J.J.?

— Sim. Ela apareceu hoje, pela manhã. J.J. também me­lhorou. A sra. Jenkins soube que você estava doente e quis ajudar. Por isso está aqui.

A bondade da outra trouxe lágrimas aos olhos de Ellie. Os meninos carregaram a banheira e os baldes de água. Ver Flynn plenamente recuperado a fez recomeçar a chorar.

— Você está doente de novo? — o garotinho indagou preocupado.

— Não, meu querido. Apenas feliz de sabê-lo curado.

— Fico feliz que você também tenha sarado. Caleb ficou conosco o tempo todo. Não me lembro de nada dos dias em que estive doente, mas me lembro de tudo o que aconteceu enquanto você esteve. Ben e eu cuidamos de Nate. Caleb disse que fizemos um bom trabalho. Às vezes Nate chorava e nós não sabíamos o motivo, pois já o tínhamos trocado e alimentado. Caleb explicou que o bebê chorava porque sentia sua falta.

— Caleb falou isso?

— Sim.

— Agora traga outro balde de água e me deixe sozinha para tomar meu banho, está bem?

Dez minutos depois, submersa na água tépida, Ellie entre­gou-se ao contentamento de se lavar. Era maravilhoso estar com os cabelos limpos, cheirosos, a pele sem o ranço provocado pela doença.

Ao entrar na cozinha, vestida e penteada, sentia-se renas­cida. Kate a recebeu com um sorriso de boas-vindas.

— Fico satisfeita de vê-la tão bem — ela exclamou, retri­buindo o sorriso da sra. Jenkins.

— Todos nós passamos maus pedaços, não é?

Sentado na cadeira alta, Nate bateu as mãozinhas na bandeja de madeira e sorriu para Ellie, inclinando o corpo para frente como se pedisse para ser pego no colo. Depressa, Ellie tomou-o nos braços e abraçou-o com força antes de beijá-lo na testa.

— Eu tive tanto medo pelas crianças.

— Todos na cidade estão chamando Caleb de herói — Kate contou orgulhosa. — Parece que o dr. Thornton explicou ao jornal como Caleb o fez adotar um novo estilo de tratamento. Hoje também foi publicado um novo artigo, avisando às pessoas para se manterem dentro de casa até que se passem cinco dias sem um novo caso. Claro que o jornal continua a circular.

— Aposto que Luke Swenson está uma fera porque ainda não pode abrir o armazém.

— Oh, ele descobriu uma maneira de contornar a crise. Colocou uma lousa e giz na porta da loja. As pessoas escrevem os pedidos e aparecem mais tarde para apanhá-los.

— E a sra. Swenson está bem?

— Ótima. Vou ficar com você o resto do dia. Sei como a gente se sente enfraquecida no início da recuperação é, segundo Caleb, seu caso foi grave. Vou cuidar do bebê e cozinhar. Por­tanto, quero que vá descansar.

— E gentil de sua parte, obrigada — Ellie murmurou, sa­bendo que ainda não se encontrava forte o bastante para as­sumir os cuidados com as crianças e as tarefas domésticas.

— Você não hesitou em vir à minha casa quando precisei de ajuda, arriscando-se a contrair a doença apenas para ajudar minha família. Caleb me explicou que só podemos pegar escarlatina uma vez. Assim, estou a salvo. Você, sim, merece minha gratidão.

— Acho que vou ficar aqui na cozinha um pouco, fazendo-lhe companhia.

Benjamin e J.J. apareceram na porta dos fundos.

— Sobrou algum pãozinho de canela, mãe? — J.J. perguntou.

— Sim. Estão num prato sobre a mesa. Mas deixem alguns para Ellie.

— Que bom que você se recuperou, J.J..

— Digo-lhe o mesmo, sra. Chaney.

Os meninos sentaram-se à mesa e serviram-se de pãezinhos enquanto Kate enchia dois copos de leite.

— Vamos pescar hoje de tarde — disse J.J.. — Talvez tra­gamos alguns peixes para o jantar.

— Antes você deve perguntar se Ellie está de acordo, filho. Ellie estava tão feliz de ver o irmão com um amigo que podia apenas concordar. Assim como ela, Benjamin nunca fora aceito pela comunidade de Florence e tampouco tivera oportu­nidade de se distrair com as coisas comuns aos garotos de sua idade. Ben vivera exclusivamente ao lado de Ellie e Flynn até que o juizado de menores os separara.

Era agradável, e também de certa forma doloroso, vê-lo cres­cendo e estabelecendo uma nova vida. Sempre sonhara esse futuro para o irmão. Os Jenkins eram um exemplo de família sólida e amorosa. Seria perfeito para Ben conviver com esse tipo de pessoas.

— Onde está Flynn? — ela indagou.

— Lá fora, construindo um forte com gravetos. Flynn ainda é uma criança. Por favor, não me mande levá-lo.

— Não era isso o que eu pretendia dizer. Só queria saber do paradeiro de Flynn.

— Obrigado.

Os rapazinhos terminaram de comer e saíram correndo.

— Seus irmãos são ótimos meninos — Kate comentou, lim­pando as mãos sujas de farinha num guardanapo.

— Obrigada. Considero J.J. um jovem especial também. Ele, sem dúvida, é de muita ajuda para Caleb.

— Aquele menino tem grandes planos. — Kate sentou-se à mesa e serviu-se de uma xícara de café. — Ele está determinado a juntar dinheiro para ir à universidade. Meu marido e eu não temos condições financeiras de mandá-lo estudar fora, po­rém J.J. trabalha tanto que não tenho dúvidas sobre a realização desse sonho.

— Concordo com você. — Desde que viera para Newton e, especialmente, desde que conhecera Caleb, Ellie começara a acreditar que os sonhos podiam se tornar realidade.

Havia descoberto algo assustador na noite em que caíra doente. A percepção repentina fora alavancada pela febre e fadiga, porém agora, em plena posse da razão, analisava os sentimentos e se dava conta de que nada mudara.

Caleb se tornara uma figura importante em sua vida. Desde que o conhecera, aprendera que ele não era a única pessoa boa no mundo. Existiam outras. Todavia ele seria sempre o primeiro ser humano decente com quem se deparara.

Experimentava algo mais além de simples apreciação.

Desde o primeiro momento acreditara que sua associação com Caleb evitaria que os outros a desprezassem e amenizaria o senso de ridículo que a consumia por dentro. Entretanto a bondade do médico tinham servido apenas para acentuar sua falta de valor pessoal, sua falta de qualidades.

Amá-lo a fizera enxergar, com maior clareza, a impossibi­lidade de o relacionamento de ambos dar certo.

Ela não era quem Caleb merecia.

Um miado forte a fez levantar-se. Um gatinho branco estava sentado na varanda dos fundos, balançando o rabo cheio de expectativas. Num impulso, Ellie tomou o animalzinho nos bra­ços e acariciou o pêlo macio.

Fora uma tola ao pensar que poderia escapar ao inevitável, ao aspecto físico do casamento. Que tipo de casamento visua­lizara? Imaginara Caleb indo atrás de outra mulher em busca de prazeres e, ao mesmo tempo, duvidava de que ele o fizesse. Só porque outros homens agiam assim, não significava que Caleb os imitasse.

Também ainda não conseguira entender do quê sua sogra estivera lhe falando no dia do casamento. Desde que os conhe­cera, os gestos afetuosos trocados entre Matthew e Laura a tinham perturbado. Porém, por mais que tentasse, não conse­guia conjurar uma imagem mental de Matthew bufando em cima de Laura e ela apreciando o fato.

Na verdade, preferia não pensar nisso.

Mas precisava.

Ela tentou evitar que imagens semelhantes envolvendo a irmã de Caleb e Kate Jenkins lhe viessem à mente. Será que mulheres boas participavam do ato sexual com vontade e prazer?

Deveria ser assim, ou não haveria muitas crianças pelo mundo.

Fechando os olhos, Ellie lembrou-se do beijo de Caleb, terno e reverente.

Só porque Winston a forçara e a machucara, não significava que o marido a trataria da mesma maneira. Ele era bom e gentil, não um animal.

Agora que aceitava seus sentimentos por Caleb, sentia ne­cessidade de compreendê-los.

Tinha que compreendê-los, se desejava manter uma família unida e realizar seu sonho.

Na semana seguinte, tornou-se evidente que o surto da doen­ça passara sem que se tornasse uma epidemia. Caleb, inega­velmente, se transformara no herói da cidade. Todas as ma­nhãs, ao chegar para trabalhar, havia uma fila de pacientes à sua espera e para dar conta de tudo, ele acabara contratando Benjamin como assistente.

Ben se encarregava de esterilizar os instrumentos, limpar o consultório, manter os medicamentos e fichas dos pacientes em ordem.

— Hoje é dia de pagamento — Caleb falou no final da se­mana, entregando-lhe duas moedas de prata.

O garoto ficou boquiaberto, tamanha a surpresa.

— Assim que as aulas começarem, seus estudos deverão vir em primeiro lugar. Mas creio que você conseguirá dar conta de ambas as coisas.

— Conseguirei sim. — Ben revirou as moedas na mão. — Nunca tive tanto dinheiro antes. Sinto-me como se tivesse de entregá-lo a Ellie, para a compra de mantimentos. — Pelo tom de voz, parecia que o rapazinho pensava alto.

— O dinheiro é seu. Você trabalhou para merecê-lo. — Não era incomum crianças trabalharem para ajudar a família, mas Caleb tinha condições de sustentar todos. — Ellie tem tudo de que necessita.

O menino o fitou, os olhos azuis já tendo perdido a frieza extrema, porém ainda guardando um resto de desconfiança, além de uma enorme vulnerabilidade.

— Prometi a você que não machucaria sua irmã — ele falou, desejando saber o que se escondia por trás daquela descon­fiança. — Quero cuidar dela também.

— Há maneiras diferentes de machucar alguém. Ellie ainda está ferida. Mas não foi nada que você lhe tivesse feito. .

Pela primeira vez Caleb sentiu que um canal de comunicação fora aberto entre os dois, que o muro da rejeição começava a ruir.

— O que posso fazer para ajudar?

— Não sei — Ben murmurou, abaixando o olhar.

— Se eu soubesse o que dizer, ou fazer, para ajudá-la, eu o faria agora mesmo, neste exato minuto.

— Algumas coisas não podem ser consertadas. Não como o braço quebrado de Ellie, ou os pontos que você deu no corte da mão de um paciente. Certos ferimentos o tempo se encarrega de curar, não é?

Caleb concordou com um aceno.

— Mas as feridas de minha irmã reabrem todos os dias. Cauteloso, o médico manteve a boca fechada, não querendo que uma palavra impensada destruísse a confiança nascente. Assim, limitou-se a acenar com a cabeça.

— É necessário que as feridas cessem de reabrir para co­meçarem a sarar.

Talvez não tivesse uma outra oportunidade melhor para esclarecer o assunto. Por isso, Caleb arriscou.

— Por acaso essas feridas têm algo a ver com um bebê?

Os olhos de Ben revelavam pânico. O rapaz engoliu em seco várias vezes, uma expressão resignada lentamente tomando conta de seu rosto. Não acreditava que Caleb podia ajudar a irmã? Ou pensava que ele ira surrá-la, quando descobrisse a verdade?

— Não posso conversar sobre isso com você — Ben mur­murou depois de um longo silêncio. — Ellie confia em mim.

— Compreendo. — A última coisa que Caleb desejava era causar atrito entre os irmãos. Porém estava cansado de ima­ginar possibilidades, explicações. Precisava saber o que se pas­sara de fato para se livrar daquela obsessão. — Ellie pode confiar em mim também.

Se Ben não fora capaz de confiar no próprio pai, como pe­dir-lhe que tivesse fé num estranho? Afinal, suas vidas mal haviam acabado de se cruzarem.

— Uma pessoa tem que merecer confiança, não é?

— Não desista — Ben limitou-se a responder.

— Não pretendo desistir. Obrigado pelo conselho.

O garoto guardou as moedas no bolso e sorriu de leve.

A visão de Caleb e Benjamin andando lado a lado na rua, a caminho de casa, aqueceu a alma de Ellie e trouxe-lhe lá­grimas aos olhos.

Ao vê-la na varanda, segurando o bebê no colo, Ben correu para encontrá-la.

— Como foi seu dia hoje?

— Recebi meu pagamento. — Orgulhoso, o rapazinho mos­trou-lhe as duas moedas de prata.

— Lembro-me de como me senti quando recebi meu primeiro salário no Arcade. — Ela sorriu. — Mal pude esperar para comprar algo especial para você e Flynn.

— Você nos trouxe balas de hortelã e meias de algodão com seu primeiro salário… Depois nos deu roupas novas. Ainda acho aquelas roupas as mais bonitas de todas.

Caleb subiu os degraus da varanda.

— Seu irmão é o melhor assistente que já tive.

— Ele é o único assistente que você já teve.

Rindo, os três entraram em casa, um cheirinho delicioso de pão fresco inundando-lhes as narinas. O coração de Ellie se encheu de contentamento e esperança. Suas tarefas diárias eram tão prazerosas que não podiam ser chamadas de trabalho. Tudo que a cercava era bonito, a comida farta. Ben e Flynn riam com freqüência e se alimentavam bem, perfeitamente adaptados à nova rotina. Nate se desenvolvia a olhos vistos e o amava tanto quanto amava os irmãos. Contudo era a presença de Caleb o que aumentava seu prazer.

A cada dia descobria motivos para admirar o homem com quem se casara.

Amava-o de fato.

Não apenas porque o admirava, ou respeitava. Sim, ele era gentil e generoso, entretanto, tais qualidades não teriam bas­tado para desencadear esse sentimento tão intenso.

Ainda não conseguira entender o que se passara em sua alma e tampouco fora capaz de compreender a razão de amá-lo. Mas uma centelha estranha ardia em seu interior quando Caleb lhe sorria, ou o surpreendia fitando-a, ou quando as mãos de ambos se roçavam acidentalmente.

Com freqüência pensava no beijo que haviam trocado, re­cordava-se da doçura do gesto e ansiava para que isso tornasse a acontecer. Como uma semana já transcorrera sem que outros moradores de Newton demonstrassem sintomas de escarlatina, a clientela de Caleb só fazia aumentar. Toda noite ele chegava em casa cansado, porém satisfeito, e passava horas na com­panhia do filho, da esposa e dos garotos.

No domingo seguinte, compareceram todos à igreja, como uma família. Ellie foi cercada de atenção e elogios pela parti­cipação que tivera durante a pior fase da doença, quando a cidade se viu às portas de uma epidemia.

— Eu realmente não fiz grande coisa — ela falou a uma mulher que se aproximara enquanto o casal conversava com o pastor.

— Clella Douglas disse que você ajudou durante o nasci­mento do bebê. E Kate Jenkins afirma que você cuidou da família dela como se fosse a sua própria.

— Eu apenas queria auxiliar Caleb. Ele saiba o que fazer e me limitei a seguir instruções.

— Talvez você gostaria de vir tomar chá conosco qualquer dia desses — convidou-a Mabel Connely, abanando o rosto redondo com o leque. — As senhoras de Newton costumam se reunir durante a tarde.

— Eu… eu… — A surpresa era tanta, que Ellie não sabia o que responder. — Eu tenho as crianças para olhar.

— As aulas começarão dentro de uma semana — Caleb comentou ao se afastarem do burburinho. — Poderíamos en­contrar alguém para cuidar de Nate durante uma ou duas horas, enquanto você se reúne com as senhoras para o chá.

— Eu não saberia que roupa vestir. — Demorara um século para escolher uma saia azul-marinho e uma blusa branca que julgasse adequadas à cerimônia religiosa. Ao chegar à igreja, notara os vestidos elaborados das mulheres presentes e se sen­tira desconfortável, totalmente deslocada. — Também não sa­beria sobre o que conversar.

— Com Mabel presente, você terá apenas que ouvir. Durante o trajeto até a fazenda dos Chaney, onde iriam almoçar, Ellie procurou apreciar a paisagem e relaxar, mas um certo nervosismo persistia.

Passara os últimos dois dias treinando os irmãos nos deta­lhes da etiqueta à mesa. Obrigara-os a lidar com guardanapos, talheres e copos, servindo-lhes refeições imaginárias até que se sentissem à vontade e confiantes.

Patrícia, irmã de Caleb, já se encontrava na fazenda e Matthew e Denzil distraíam-se com um jogo de ferraduras. Os dois homens fizeram uma pausa para receber os recém-chegados.

— Vocês se lembram de Benjamin e Flynn, não é? — Caleb indagou apontando os garotos.

— Claro que sim. — Ouvi dizer que você andou bastante doente, menininho — Matthew falou, dirigindo-se a Flynn. En­tão virou-se para Ellie. — E você também.

— E Nate — ela completou.

O velho fazendeiro tomou o neto nos braços e o apertou, os olhos marejados de lágrimas.

— Ainda bem que seu pai foi à faculdade e aprendeu tantas coisas importantes.

O bebê balbuciou algo ininteligível e estendeu a mãozinha para agarrar o nariz do avô.

Caleb fitou o pai, reconhecendo aceitação nos olhos casta­nhos. Por mais que desejasse ter o filho à frente dos negócios, Matthew aprendera a aceitar a decisão de Caleb e agora sen­tia-se orgulhoso de sua capacidade profissional.

Num impulso, Ellie tocou o braço do marido, os músculos firmes incendiando-lhe os sentidos. Tocá-lo dava-lhe vontade de se aconchegar, de colar seu corpo junto ao dele, de inalar o perfume másculo. Às vezes desejava que Caleb a abraçasse e não a soltasse jamais.

— Vocês são bons em lançar ferraduras? — Matthew per­guntou aos meninos.

— Não sei. — Flynn retrucou baixinho. — Nunca experimentei. Matthew devolveu o bebê para Caleb e Ellie soltou o braço do marido, embora relutante.

— Bem, vamos ver se esses braços têm força. Hesitante, Ben lançou um olhar para a irmã.

Ela o encorajou com um aceno de cabeça e logo os três se afastavam, seguidos de perto por Denzil.

— Os garotos ficarão bem — Caleb a tranqüilizou. — Vamos descobrir o que teremos para o almoço.

Ao entrarem na cozinha, Mildred logo se apossou de Nate e Laura abraçou Caleb fortemente. Assistindo a cena, Ellie teve a impressão de que o coração ia explodir de angústia. A mãe de Caleb o amava e podia demonstrá-lo.

— Seu gesso foi retirado! — Laura exclamou, soltando o filho afinal e fitando a nora com lágrimas nos olhos. — Fiquei ater­rorizada quando soube que você e as crianças estavam doentes.

— Foi mesmo apavorante.

Laura abraçou-a cheia de carinho. Ellie costumava abraçar os irmãos desde que eram pequeninos, porém nunca uma mu­lher a segurara assim. No início, sentiu-se desajeitada, sem saber como reagir. Todavia, ao lembrar-se de como ficara magoada quando Benjamin ignorara sua demonstração de afeto na fazenda dos Heath, retribuiu o gesto.

O abraço de Laura era embutido de um sentimento tão pro­fundamente maternal, que Ellie experimentou uma emoção in­tensa e algo novo desabrochou em sua alma.

— Fico feliz que você esteja bem, minha querida — a velha senhora murmurou, tocando-a no rosto de leve.

Era difícil imaginar alguém lhe dando tanta importância, al­guém se preocupando com seu bem-estar. Mas se Caleb possuía uma natureza gentil e generosa, devia tê-la herdado dos pais.

Patrícia jogou um avental para Ellie, um sorriso brincalhão no rosto. Sem dúvida, as mulheres da família Chaney já não a intimidavam.

Os garotos tiveram uma atuação esplêndida à mesa. Nin­guém teria adivinhado tratarem-se de crianças sem nenhum traquejo. Ellie mal podia disfarçar a felicidade, sabendo o quan­to os dois estavam se divertindo.

Os Chaney aceitavam Ben e Flynn no seio de sua família sem reservas. E quando Laura colocou a mão no ombro de Benjamin e lhe dirigiu a palavra suavemente, o rapazinho sor­riu com tamanho orgulho e gratidão, que Ellie se emocionou.

Flynn, que até a semana anterior estava decidido a ser mé­dico, agora proclamava a intenção de tornar-se fazendeiro e bombardeava o pai de Caleb com perguntas intermináveis sobre vacas e cavalos.

Ao retornar da cozinha, para onde ajudara Patrícia a levar pratos e travessas após a refeição, Ellie surpreendeu Matthew e Laura abraçados.

A visão tanto a embaraçou quanto fascinou. Sem saber que atitude tomar, ficou imóvel. Patrícia, contudo, parecia acostu­mada a demonstrações de afeto, pois brincou:

— Vocês dois outra vez! Não se cansam de namorar? Matthew brindou a filha com uma piscadela.

— Hayden e Soapy estão selando cavalos. Caleb, Denzil e eu vamos levar Benjamin e Flynn para ver o gado. Vocês, damas, tenham uma boa tarde.

— Espero que Denzil ainda me ame como papai a ama quando formos avós — Patrícia comentou com um suspiro tão logo o pai saiu da sala.

— É só manter aquele fogo ardendo e ele a amará sempre.

Cúmplices, mãe e filha riram. Ellie as seguiu até a varanda imaginando se Laura tivera a "tal" conversa com Patrícia antes do casamento. Talvez com maiores detalhes, porque a filha estivera desejando escutar. Patrícia mencionava o que aconte­cia entre um homem e uma mulher como se não fosse um ato vergonhoso. Bem no fundo, Ellie supunha que a situação à qual estivera exposta durante tantos anos não era a natural. Nada, na maneira como fora criada, lhe mostrara a vida como -deveria ser.

Nate adormeceu no colo de Laura e Patrícia, pacientemente, entregou-se a um bordado em ponto de cruz. Lucy trouxe um livro e pediu a Ellie que lhe contasse uma história.

Observando Laura, tão serena com o neto nos braços, Ellie lamentou tudo o que lhe fora roubado no momento em que abrira mão da filha. Ansiava por mais dias como os de hoje, embora experimentasse um misto de dor e prazer.

Também tivera uma irmã, pensou, fitando o perfil de Patrícia, debruçada sobre o bordado. E essa havia sido outra perda.

Estar perto de Matthew ainda a deixava um tanto descon­fortável, mas exultava diante da atenção que o fazendeiro de­dicava aos meninos. Ele era tão gentil e generoso quanto Caleb e o fato de Ben e Flynn terem a oportunidade de crescer no meio dos Chaney lhe parecia bom demais para ser verdade.

Não podia permitir que acontecesse algo capaz de privá-los do amor e afeição que os rodeava agora. Precisava fazer tudo ao seu alcance para se manter unida a essa família. Precisava, de alguma forma, assegurar sua posição e a dos irmãos.

De repente o esboço de uma idéia a fez sentar-se muito ereta na cadeira.

Talvez soubesse como.

Os conselhos que Laura lhe dera no dia do casamento e a troca de palavras significativas entre a sogra e a cunhada eram um ponto de partida. Estivera tão atordoada naquele dia, que não quisera ouvir, porém Laura dissera que o relacionamento físico podia sustentar um casamento.

Caleb era um homem saudável, portanto com desejos car­nais. Não adiantava querer fingir para si mesma tentando se convencer de que o marido não se parecia com os outros nesse aspecto. Ela podia considerar o ato sexual nojento, porém muita gente o julgava natural. Caleb entre eles. Além do mais, gostava do marido. Chegara a admitir que o amava.

Se era isso o necessário para solidificar seu casamento, então se submeteria à provação. Só esperava que o ato físico não alte­rasse a maneira como se sentia em relação a Caleb. Teria que manter as duas coisas separadas em sua mente. Entregar-se sem permitir que o sexo destruísse os sentimentos de amor.

Seria capaz de fazê-lo? Poderia deixar que o marido a tocasse intimamente? Era uma mulher forte, determinada. Uma vez tomada a decisão, não voltaria atrás e representaria seu papel até as últimas conseqüências. Além de tudo, Caleb era atencioso e gentil. O oposto de sua experiência anterior.

A felicidade dos meninos ao voltarem da cavalgada apenas reforçou sua decisão. Ainda não tinha muita certeza de como tomaria a iniciativa, mas encontraria um jeito. Era o que pre­cisava ser feito e ela sempre se considerara uma sobrevivente.

Uma semana depois, contudo, ainda não havia imaginado uma forma de pôr o plano em prática. Os dias passavam de forma agradável, os irmãos se desenvolvendo e ganhando con­fiança à medida que se ajustavam à nova vida.

A rotina de Caleb resumia-se a trabalho e casa. Ansiosa, ela o observava atentamente, na esperança de que um sinal invisível lhe dissesse como agir. Sendo um homem de palavra, o marido respeitava o acordo feito antes do casamento e agora cabia-lhe tomar a iniciativa.

No sábado, depois de alimentar Nate e colocá-lo no berço, Ellie serviu o jantar aos meninos e mandou-os deitarem-se. Então banhou-se.

Sozinha na penumbra do quarto, sentada junto à janela aberta, aguardava as crianças adormecerem, os ouvidos atentos aos passos de Caleb no corredor.

Por fim o silêncio caiu sobre a casa.

Nervosa ao extremo, tornou a lavar o rosto e as mãos antes de rumar para o quarto do marido.

Durante minutos intermináveis permaneceu parada no meio do corredor, armando-se de coragem para bater na porta.

— Alguma coisa errada? — Caleb indagou ao vê-la.

— Não, nada. Você estava dormindo?

— Não.

Insegura sobre o que dizer, Ellie mordeu os lábios. Mas lembrando-se de que Nate dormia e que seria preferível não correr o risco de acordá-lo, sugeriu:

— Talvez devêssemos conversar no meu quarto. Assim não acordaremos Nate.

Era bem provável que o marido estivesse achando seu com­portamento estranho, totalmente fora do habitual.

— Entre — falou, abrindo a porta do quarto e estendendo a mão para reforçar o convite.

Caleb deu um passo adiante, observando-a fechar a porta atrás de ambos. Em silêncio, sem esboçar nenhum gesto, ele se limitou a fitá-la no meio da penumbra.

Nem por um momento Ellie alimentou dúvidas sobre o que iria acontecer, ou cogitou a possibilidade de voltar atrás. Ape­nas não estava certa sobre a maneira de iniciar o processo de consumação do ato.

— Mudei de idéia — declarou afinal.

— Sobre o quê?

— Sobre o fato de dormirmos juntos. Durante alguns minutos Caleb não disse nada.

— O que a levou a isso?

Não esperara que o marido lhe fizesse perguntas e não sabia como se explicar.

— Bem, você me beijou.

— E aquele beijo a fez mudar de idéia?

— Pensei que você desejasse.

— Os meus desejos nunca foram levados em consideração. Era você quem não queria. Claro que me pergunto a razão dessa mudança.

— E importante para um casamento, não é?

— Acho que sim.

Depois de mais um silêncio prolongado, Caleb indagou:

— Você mudou de idéia sobre ter um bebê também? Embaraçada, Ellie corou fortemente. Continuava não dese­jando filhos.

— Não — murmurou.

— Você não quer ter filhos então?

— Não. Não quero filhos.

— Você quer fazer amor, mas deseja que eu tome precauções. Seria isso mesmo o que desejava? Sentia-se tão nervosa que as mãos tremiam e o peito arfava.

— Sim — falou num fio de voz.

Caleb deu um passo a frente e tocou-a de leve nos braços.

— Tem certeza?

Estava certa de que queria permanecer nesta casa, que se transformara num lar para si e os irmãos. Estava certa de que não gostaria de ver Ben ou Flynn magoados se os arran­casse dali. Tampouco poderia suportar perder Caleb, o homem que se tornara a coisa mais importante de sua vida.

— Sim — reafirmou.

— Volto em um instante.

Quando o marido saiu do quarto, Ellie precisou se sentar na cama para não cair, os joelhos teimando em vergarem-se.

Porém não teve nem tempo de imaginar onde Caleb poderia ter ido, pois em segundos o escutava retornar e fechar a porta, isolando-os do resto do mundo.

— Você quer se deitar? — ele perguntou, fechando a porta e aproximando-se da cama.

Tensa, Ellie deitou-se de costas e apoiou a cabeça no tra­vesseiro. Vendo-o tirar a camisa e jogá-la no chão, experimentou um certo desaponto diante da ânsia do marido. Mas talvez essa disposição a favorecesse.

O luar iluminava os ombros e braços musculosos de Caleb, sinais evidentes de grande força física. Todavia estava certa de que ele jamais usaria dessa força para ferir alguém, pois em nenhuma circunstância se mostrava capaz de perder o controle.

Na fazenda dos Heath, o vira resolver a situação valendo-se de palavras, sem apelar para a violência.

Também, quando Ben o atacara, limitara-se a se defender, tendo o cuidado de não ferir o rapazinho no processo.

Assim, ela não tinha nada a temer. Exceto perdê-lo.

Engolindo em seco, permaneceu rígida, apesar de se esforçar para relaxar.

— Você não quer tirar isso? — Caleb perguntou, referindo-se à camisola que o impedia de acariciá-la em outros lugares além dos ombros.

Na verdade não queria tirar nada. A idéia de expor o próprio corpo a apavorava, fazendo-a querer fugir. Porém suportaria o que fosse necessário.

Com dedos trêmulos, começou a desabotoar a camisola. De repente, Caleb inclinou-se e beijou-a na base do pescoço. O calor dos lábios sensuais, movendo-se lentamente em direção aos seus seios, a fez gemer baixinho.

— Você é tão linda — ele murmurou, acariciando-a ao redor do mamilo com a ponta da língua.

— Caleb?

— Sim?

— Você vai me beijar outra vez?

Sorrindo, ele pressionou o corpo da mulher contra o seu, o contato das peles nuas deixando-a arrepiada de prazer. En­tretanto, embora estivesse adorando a sensação despertada pe­las mãos e boca de Caleb, o pânico a espreitava. Gostaria de ter acendido o lampião para que pudesse ver o rosto debruçado sobre o seu.

Não, não se tratava de uma figura sem face, de uma criatura sem nome que a possuía no meio da noite. Esse era Caleb. O homem com quem se casara. O homem a quem queria agradar mais do que tudo.

Aflita, estendeu a mão e tocou-o na testa, nos cabelos, nos olhos, buscando coragem nos traços familiares.

— Fale comigo. — Precisava ouvir aquela voz outra vez. A voz capaz de acalmá-la e calar seus medos.

— Decida-se, esposa — ele brincou. — Você quer que eu a beije, ou que converse com você.

— As duas coisas.

— Está bem.

Os lábios carnudos tocaram-na gentis. Suaves. Ternos. Lá­bios que pronunciavam apenas palavras doces.

Lânguida, Ellie se permitiu entregar-se às sensações des­pertadas pelo beijo. O prazer era tão intenso que a surpreendeu.

— Quer que eu diga alguma coisa em particular agora? — ele perguntou, afastando-se alguns centímetros.

— Agora não. — Puxando-o pelos cabelos, tomou a iniciativa de beijá-lo.

Enquanto a beijava, Caleb a acariciava nos seios e massageava os mamilos eretos num ritmo crescente até vê-la arquear as costas, num oferecimento silencioso.

Oh, sim, Ellie pensou, agarrando-se ao marido com sofre-guidão. Podia fazer isso! Os toques dele destruíam seus temores com tanta facilidade! Seria capaz de ir até o fim.

Deslizando a mão sob o tecido fino da camisola, Caleb a acariciou nos quadris, no ventre, na parte interna das coxas. Escutando-a arquejar, inclinou a cabeça e sugou um dos ma­milos avidamente, enlouquecendo-a de desejo.

Excitada, Ellie correspondia aos beijos do marido com sel­vagem abandono. Não queria raciocinar, não queria pensar no dia de amanhã. Queria apenas sentir e sorver até a última gota as delícias da paixão.

Depois de beijá-la uma última vez na boca, Caleb levantou-se para tirar a calça.

Então ergueu a camisola da esposa e, gentilmente, a fez entreabrir as pernas.

Ellie sentiu o coração disparar, reconhecendo o que estava para acontecer. O pânico a dominou por completo. Não, isso não estava certo. Não era o que desejava. Queria que o marido parasse. Queria afastá-lo de si.

Numa reação instintiva, ergueu as mãos para defender-se, pressionando o peito largo quase com desespero.

Tempo e espaço já não existiam. Subjugada pelo pavor, Ellie foi esmagada pelas lembranças do pesadelo eterno. Estava pri­sioneira de alguém cujas mãos exploravam sua carne tenra. A intrusão indesejada causava-lhe o mais absoluto terror.

Não podia respirar, não podia gritar, faltava-lhe ar nos pulmões.

Ele a estava machucando.

Oh, Deus, precisava fugir, escapar do abuso.


CAPÍTULO XIV

As percepções de Caleb se alteraram brusca­mente. A mulher que estivera se contorcendo de prazer sob seu toque, apenas um momento atrás, agora se tornara um animal selvagem. Não acreditava ter feito algo capaz de feri-la, ou assustá-la. Mas, ainda assim, ela soluçava e tentava resistir-lhe. Confuso, tentou acalmá-la e confortá-la, tocando-a gentilmente.

Chocado, sentiu-a puxar seus cabelos, como se quisesse o escalpelar.

Gritando de dor, ele rolou para o lado, afastando-se dos punhos que procuravam atingi-lo.

— Por Deus, mulher! Se você não estava gostando de alguma coisa, bastava ter me dito. Não era preciso chegar a esses extremos.

— Oh, Caleb, desculpe-me. — Desorientada, Ellie cobriu-se com o lençol. — Eu não tinha intenção, eu não pretendia… Oh, sinto muito!

Ele massageou o couro cabeludo, que latejava tanto quanto outra parte de seu corpo. A mudança repentina do clima emo­cional em que ambos pareciam envolvidos o pegara de surpresa e ainda lutava para entender o que se passara. Depois de encontrar uma posição mais ou menos confortável, acomodou-se e fitou a figura chorosa.

— Você se importaria de me dizer o que acabou de acon­tecer aqui?

— Ouça, lamento muito. Desculpe-me.

— Já estabelecemos o fato de que você sente muito. Agora quer fazer o favor de me dizer o que aconteceu?

— Você está zangado.

A voz de Ellie deixava transparecer uma pontada de medo. Não eram poucas as pessoas que a tinham tratado rudemente antes. Sabia que a esposa fora magoada no passado e não queria despertar nela o pavor que outros haviam provocado.

— Não estou zangado — respondeu tranqüilo, querendo fazê-la acreditar na sua sinceridade. — Na minha excitação cres­cente, acabei compreendendo-a mal. Sinto muito. Perdoe-me.

— Não.

— O quê?

— Não. Você não tem do que se desculpar.

Alguma coisa acontecera durante as carícias preliminares e ele não se dera conta. Talvez Ellie estivera tentando pedir-lhe para ir mais devagar e, na sua insensibilidade, pressionara-a como um bruto.

— Não prestei atenção nas suas necessidades. A culpa foi minha e peço-lhe que me perdoe. Tivemos um mau começo, mas tudo bem.

Lágrimas silenciosas escorreram pelo rosto da esposa, abalando-o profundamente. Que idiota insensível fora! Na sua an­siedade de levá-la para cama, nem questionara a súbita mu­dança de atitude. Talvez Ellie não estivesse tão preparada quanto imaginara. "Mudei de idéia", ouvira-a dizer quando to­cara no assunto. "Pensei que você quisesse fazê-lo." Oh, ele queria sim… mas e ela? "É importante para o casamento."

Nunca, em nenhum momento, ela dissera que o desejava.

Parecia-lhe óbvio que a esposa tivera fortes motivos, além de não querer engravidar, para se recusar a consumar o casamento.

Talvez suas suspeitas fossem corretas. Talvez ela amasse tanto outro homem que seu toque lhe provocava repulsa.

— Ellie, você já amou outro homem?

— O quê?

— Existiu uma outra pessoa na sua vida? Existe uma outra pessoa? Um homem a quem ama de tal maneira que não se sente capaz de se entregar a mim?

— Não, Caleb — ela murmurou. — Não.

Deveria insistir nas perguntas? Deveria indagar se suas suspeitas sobre a existência de um bebê tinham fundamento? Ou seria pressioná-la além da conta? Ellie não lhe dissera nada. Se o quisesse a par de seu passado, teria confiado nele.

— Por que você foi me procurar no meu quarto essa noite? Por que me trouxe aqui?

— Você sabe por quê.

— Você queria ter… relações. — Mesmo aos seus ouvidos, o termo soou cru.

— Sim.

— Embora não com a finalidade de gerar um bebê.

— Não.

— Então por quê?

Ellie passou as mãos pelos cabelos e endireitou as costas, fitando-o firmemente.

— Quero fazê-lo feliz. Quero muito.

Ele não disse nada, pensando, absorvendo as palavras e reações da esposa.

— Nunca conheci ninguém como você. Você é bom. Gentil. Gosta das pessoas. Ama crianças. Você deu um lar aos meus irmãos. Deu tanta coisa a todos nós. Tanta! Jamais poderei pagá-lo por isso.

Por fim as coisas começaram a fazer sentido na mente con­turbada de Caleb. Quase se levantou e saiu do quarto antes que a esposa pudesse dizer algo mais, porém, precisava saber de tudo, mesmo se o conhecimento servisse apenas para au­mentar sua mágoa.

— Ninguém mencionou pagamento. Você é a mãe de Nate agora. Foi esse o acordo. Isso — ele apontou a própria nudez e a cama desarrumada —, não fazia parte do acordo.

— Eu sei. E que… não parecia suficiente da minha parte. Você fez muito mais. Já deu tanto a todos nós.

Aquele "nós" o atingiu fundo. E embora mantivesse a voz calma, havia no tom controlado um certo amargor que beirava à agressividade.

— Então você decidiu que deveria me dar algo em troca, em nome de todos vocês. Somente prostitutas pagam suas dí­vidas com seus corpos.

Ellie ficou rígida, a respiração ofegante, a expressão do rosto torturada.

— Você achou que poderia deitar-se na cama e me deixar fazer o que quisesse apesar de não sentir nada por mim. Pois estava errada. — Caleb levantou-se e apanhou a calça jogada no chão. Completamente em controle de si, vestiu-se. — Não deu certo e agora você sabe que não é capaz de fazê-lo.

— Não, não é assim como você está falando — ela conseguiu murmurar afinal, trêmula, hesitante. — Por favor, Caleb, não faça minha atitude parecer algo barato, vulgar. Não é o que você está pensando.

— Então como é? Explique, ajude-me a entender. Encostando-se na cabeceira da cama, Ellie ergueu os olhos marejados.

— Podemos tentar outra vez — sugeriu num fio de voz.

— Não costumo me impor a mulheres que não me querem. O leito nupcial não é um altar de sacrifícios. Que tipo de homem você me julga ser?

— Eu o acho uma pessoa maravilhosa. Por favor, não fique zangado.

Por um instante Caleb calou-se, tentando lidar com os pró­prios sentimentos feridos. Sentia-se tão confuso que o melhor seria não dizer nada.

— Às vezes fico zangado. Portanto, não sou uma pessoa tão maravilhosa assim. Na verdade, estou furioso agora.

— Sinto muito.

Ele caminhou para a porta antes que, na sua irritação, dis­sesse coisas das quais se arrependesse mais tarde.

— Caleb, por favor, espere.

Sem se dignar a responder, ou virar-se para fitá-la, ele saiu e fechou a porta do quarto secamente.

Ellie passou os braços ao redor do corpo e chorou. Pelo ma­rido. Por si mesma. Por não poder ser a mulher que desejava.

Oh, Deus, se pudesse sufocar a dor. Se pudesse esmagar os sentimentos que a atormentavam e esquecê-los para sempre! Seria algum dia mais forte para recomeçar? Seria capaz de viver a vida em toda plenitude? Capaz de se entregar às emo­ções como as pessoas normais?

Se permitisse a si mesma sentir, descobriria que as palavras de Caleb a tinham ferido mais profundamente do que deixara transparecer. Se permitisse a si mesma sentir, veria o quanto precisava ser aceita e amada pelo marido. E saberia que aquele amor estava destinado a ser mais um de seus segredos para sempre enterrados.

Magoara Caleb levando-o a pensar que o rejeitava. Se fosse um ser humano com um pouco de coragem, iria procurá-lo agora mesmo, pondo um fim naquele sofrimento mútuo.

Enfurecera-o ao levá-lo a acreditar que pretendia pagar-lhe. Gente como Caleb não desejava pagamento. Desejava amor.

E ela o amava, oh, sim, amava-o mais do que tudo no mundo. Porém amá-lo ainda não bastava. Confessar seus sentimentos não mudaria o que lhe acontecera quando estavam para unir seus corpos.

Simplesmente não tinha controle sobre o pânico que a as­solara e jamais encontraria palavras para explicar sua angústia ao marido. A menos que lhe contasse a verdade. E não tinha coragem de fazê-lo, pois, se o fizesse, iria perdê-lo.

Continuava só e vazia por dentro. Feriria o homem a quem só quisera agradar. Seu comportamento tolo tornara as coisas ainda piores.

Na manhã seguinte, Caleb se comportou como se nada hou­vesse acontecido. Sentado à mesa para o café da manhã, ser­viu-se de pão, manteiga e geléia, agradecendo educadamente quando a esposa colocou à sua frente um copo de leite fresco. Por sorte ela se levantara cedo e tivera tempo de fazer compressas de água fria nos olhos, para diminuir o inchaço.

Mas se alguém notou sua aparência abatida, ninguém fez comentários. Depois de comerem, Caleb e Benjamin se prepa­ram para partir.

— Até logo, Ellie. — O rapazinho beijou-a no rosto, afetuoso.

Caleb inclinou-se para beijar Nate e Ellie experimentou uma tristeza profunda ao se sentir ignorada pelo marido. Gostaria de poder voltar atrás e mudar o que acontecera na noite an­terior. Mas era impossível apagar os erros cometidos. Se assim fosse, sua vida não teria chegado ao ponto em que chegara.

Gostaria de ter coragem de tomar a iniciativa e abraçar Caleb ali, na frente de todos, revelando o amor que lhe dedicava. Queria que existissem palavras capazes de consertar o estrago que causara.

O fato de Caleb sair para o consultório sem se despedir a magoou tremendamente. Estranho que se sentisse assim. Afi­nal, já não enfrentara coisas piores? Por que um homem tão gentil possuía o poder de feri-la em lugares onde a violência nunca a tinha alcançado?

O amor também fazia doer a alma.

Dali para frente, Caleb adotou um comportamento extrema­mente polido e a vida seguiu como antes. Porém existia uma tensão constante entre os dois e evitavam até mesmo fitarem-se.

No dia em que as aulas começaram, Caleb e ela acompa­nharam os garotos até à escola. Mais um de seus sonhos se tornando realidade. Entretanto não se sentia tão feliz como imaginara. Enquanto existisse essa situação mal resolvida com o marido, nada lhe daria prazer.

— Por favor, deixe-me nas imediações da rua principal — ela pediu, ao subirem na charrete. — Tenho algumas compras a fazer.

— Você não trouxe o carrinho de Nate e ele já está muito pesado. Não quer ir para casa primeiro e voltar mais tarde para fazer as compras?

— Não é preciso. Mandarei entregar os mantimentos. Assim, só terei que carregar Nate.

Caleb inclinou-se para beijar o filho e, mais uma vez, despediu-se secamente da esposa, dizendo que pacientes o aguardavam no consultório.

— Até logo então — ela falou, aceitando a mão que o marido lhe oferecia para ajudá-la a descer da charrete.

Sufocando o desapontamento, Ellie ajeitou o bebê no colo e pôs-se a andar. O verão estava chegando ao fim e logo os meninos iriam precisar de agasalhos. Talvez devesse fazer uma visita a Eva Kirkpatrick e descobrir se não sairia mais em conta comprar o tecido e encomendar os casacos, em vez de adquiri-los prontos. Eva lhe prometera um vestido como presente de ca­samento e poderia resolver as duas coisas de uma só vez.

Sem pressa, Ellie visitou várias lojas, selecionando mantimen­tos e fazendo os pedidos. Estava aprendendo a conhecer o mercado, descobrindo quais mercadores vendiam seus produtos mais ba­ratos e quais queriam lucrar a todo custo. A liberdade de comprar comida, de comprar qualquer coisa que quisesse, ainda continuava lhe provocando uma sensação única. Nunca tivera dinheiro para gastar, sem que fosse obrigada a contar cada centavo, e jamais seria perdulária, pois conhecera a penúria.

No final da manhã, Ellie visitou o armazém de Luke Swensen. Já escolhera alguns vidros de frutas em calda, ótimas para recheio de tortas, e agora selecionava temperos e especiarias.

— Minha esposa disse que quando eu a visse por aqui, fazendo compras, deveria lhe oferecer um saco de laranjas e alguns utensílios de cozinha como presente. Também pensei que Caleb apreciaria um estojo para barba.

— Estou certa que sim. É muita gentileza de sua parte.

— Creio que minha mulher e eu temos um débito que jamais seremos capazes de pagar — o homem falou, saindo de trás do balcão. — Parece que pagar a conta apresentada pelo médico em dinheiro não é suficiente para demonstrar gratidão a al­guém que lhe salvou a vida.

Ellie sabia muito bem como o outro se sentia. Só esperava que o marido não considerasse os presentes do sr. Swensen um insulto, como considerara sua oferta de partilharem a mesma cama.

Todas as pessoas com quem conversara nas últimas semanas haviam elogiado a atuação profissional de Caleb com igual entusiasmo. Ele provara seu valor de forma inquestionável e fora aceito pela comunidade que sempre desejara ajudar. Sem dúvida, Caleb merecia ter seu sonho realizado.

— Por favor, você pode mandar as laranjas e o estojo de barba para minha casa, juntamente com os outros mantimentos? Direi ao meu marido que são presentes seus e de sua esposa.

— Se precisar de algo mais, é só mandar alguém vir me falar.

— Obrigada.

Como a loja da costureira ficava a alguns quarteirões dali, teria que correr, se quisesse chegar em casa a tempo de começar a preparar o jantar. Apressada, despediu-se de Luke Swensen, ajeitou Nate sobre os quadris e saiu do armazém.

Uma sensação incômoda a percorreu subitamente de alto a baixo. Ao erguer a cabeça, notou um homem caminhando na sua direção. Ele usava roupa escura e chapéu puxado sobre os olhos para protegê-lo do sol, porém o reconheceu de imediato.

Winston Parker parou à sua frente, bloqueando-lhe a pas­sagem e tocando a aba do chapéu num gesto de debochada polidez.

— Sra. Chaney. — A maneira como o banqueiro pronunciou aquelas duas únicas palavras as fez soarem obscenas.

Ellie tentou cortar caminho, mas foi impedida. Oh, Deus, não queria fitar o rosto odioso. Não queria respirar o mesmo ar que aquele ser monstruoso. Pânico, medo, vergonha. Sen­timentos conhecidos que ameaçavam dominá-la outra vez.

Apertando Nate junto do peito, moveu-se rapidamente e entrou na primeira loja que viu pela frente. Tensa, olhou ao redor. Tra­tava-se de uma alfaiataria e embora a campainha da porta hou­vesse soado à sua passagem, ninguém surgiu para atendê-la.

Logo o impensável aconteceu.

A poucos centímetros de si, estava o homem a quem detes­tava e temia com todas as suas forças. Numa reação instintiva e protetora, abraçou Nate.

— Simpático de sua parte descobrir um lugar onde pudés­semos nos encontrar a sós.

Desesperada, Ellie lançou um olhar pela loja deserta e som­bria. Com certeza o dono não tardaria a aparecer. Não era possível que essa criatura repulsiva tentasse lhe fazer algo em plena luz do dia e num lugar público.

Nate choramingou e somente então ela se deu conta de que o estava apertando muito forte.

Por um momento, a atenção de Winston voltou-se para o bebê.

— Ouvi dizer que ele esteve doente.

Quando Winston estendeu a mão para tocar o menino, Ellie deu um passo atrás, lutando para conter a sensação de náuseas.

— Ora, vamos, tenho todo o direito de ver meu neto.

Por um instante, ela pensou que iria vomitar. Aquela pessoa horrível não merecia nenhum direito. Especialmente em relação a uma criança inocente.

— Você fique longe de nós.

— Não, creio que não. — Um sorriso cínico brincou nos lábios finos. — Creio que passaremos a nos ver muito freqüen­temente. Na verdade, pretendo fazer certos arranjos para nós dois. Você e eu. Farei com que seja informada de quando e onde me encontrar.

— Você deve estar louco se pensa que irei encontrá-lo.

— Absolutamente. Você irá ao meu encontro sim, porque não tem outra escolha. Posso exigir que vá encontrar-se comigo a qualquer hora do dia, ou da noite, conforme me for conve­niente, e você não dirá uma única palavra.

— Engano seu. Contarei a Caleb que pessoa horrível você é.

— Não, não fará nada.

— Farei!

— Você lhe contará, então, que seu sobrenome é Foster? E que sua mãe era uma prostituta? Claro que posso me encarregar de esclarecer esses detalhes eu mesmo, se a coragem lhe faltar. Em quem Caleb acreditará? Em você, uma prostituta? Ou em mim, o pai da mulher respeitável a quem ele amava?

Ela odiava esse homem com todas as fibras de seu ser. Como ousava ele chamá-la daquele nome horrível, depois do que lhe tinha feito?

— Farei com que seja informada de quando a quero ver. E você irá ao meu encontro. — Colocando o chapéu, Winston sorriu-lhe e saiu da loja.

Minutos depois, o alfaiate entrava.

— Olá. Em que posso servi-la? Você deve ter visto meu bilhete colocado do lado de fora, dizendo que eu logo estaria de volta.

Com dificuldade, Ellie conseguiu recompor-se.

— Não, não. Eu só precisava escapar do sol por alguns minutos. O velhote a observou curioso. Não era um dia tão quente assim. Afinal, o outono se aproximava.

— Posso lhe trazer um copo d'água?

— Não, obrigada. — Aproximando-se da porta, Ellie procu­rou sinais de Winston antes de se aventurar pela rua deserta.

Mas o maldito sabia onde ela morava.

Segurando Nate, correu até as pernas já não suportarem o esforço. Ofegante, seguiu em frente, lançando olhares aflitos ao seu redor.

Queria poder se refugiar no consultório de Caleb, mas era impossível em vista de tudo o que acontecera entre os dois recentemente. O marido estranharia sua visita durante o ho­rário de trabalho.

Ao chegar nas proximidades de casa, estava à beira da histeria.

Aquele ser odioso, o avô da criança que segurava no colo e a quem amava como a um filho, tinha a capacidade de rou­bar-lhe tudo o que lutara tão desesperadamente para conseguir. E o preço que o canalha lhe exigia para poupá-lo era o único que jamais poderia pagar.

Winston tornaria a estuprá-la. Ele acreditava poder tê-la a qualquer momento porque não a julgava capaz de abrir a boca.

Sim, ela não diria nada a ninguém.

Mas tampouco se deixaria estuprar.

O que fazer?

Benjamin e Flynn eram sua primeira fonte de preocupação. Não podia fugir, desaparecer de um momento para o outro. Também prometera ser a mãe de Nate.

Sua vizinha, a sra. McKinley, estava varrendo os degraus da varanda e acenou com a mão ao vê-la passar. Porém Ellie nem sequer correspondeu ao cumprimento. Queria apenas che­gar em casa, trancar as portas e se sentir segura.

Quase sem fôlego, parou no meio da cozinha, o coração a ponto de explodir. Porque Nate parecia muito agitado, obrigou-se a se acalmar e preparar uma mamadeira. Mas suas mãos ainda tre­miam tanto que receou derramar todo o leito no chão.

Depois de trocar o bebê, alimentou-o e colocou-o no berço para a soneca habitual.

Entretanto o aroma familiar do quarto de Caleb não a con­fortou. Durante uma hora, enquanto velava o sono de Nate, Ellie contemplou todas as maneiras possíveis de contar a ver­dade ao marido. Nunca dissera nenhuma daquelas palavras em voz alta nem para si mesma. Não conseguia admiti-las. De fato não passava de uma covarde.

De repente a campainha tocou, arrancando-a da espécie de letargia em que caíra. Olhando pela janela, descobriu tratar-se do rapaz que fazia as entregas do armazém.

Ao terminar de arrumar os mantimentos na despensa, ini­ciou os preparativos do jantar.

Nate acordou e os meninos chegaram da escola, ansiosos para partilhar os detalhes do primeiro dia de aula. Ellie precisou se esforçar para ouvi-los, odiando que cada momento feliz de sua vida continuasse a ser estragado por aquele homem detestável.

Seus irmãos fizeram um lanche rápido, leite e bolinhos de aveia. Logo Ben saía para ajudar Caleb no consultório enquanto Flynn ia para o quintal, procurar o gatinho.

Ellie foi deixada sozinha com seus pensamentos até Caleb e Ben retornarem do trabalho. Todos jantaram e conversaram, exceto ela, que até se esqueceu de comer.

— Você não está se sentindo bem? — Caleb perguntou-lhe depois que os meninos pediram licença para se retirar e foram descansar na varanda.

— Estou bem.

Ele serviu-se de outra xícara de café e tornou a sentar-se.

— Estive pensando que deveríamos comprar uma mesa grande, cadeiras e aparador para a sala de jantar. Minha esposa morreu poucas semanas depois de eu comprar essa casa. Nunca comprei móveis, a não ser o essencial. Mas acho que seria bom termos o resto da casa mobiliada. Qual a sua opinião? Você poderia escolher o papel de parede e também um belo aparelho de jantar.

Silenciosa, Ellie manteve os olhos fixos no prato, perguntando-se que diferença faria isso tudo. Pensara que um lar, comida farta e escola para os irmãos fosse tornar a vida melhor. Todavia tratavam-se apenas de mudanças exteriores e o que estava errado em seu interior continuava sem solução.

— Ellie — Caleb chamou gentilmente. — Temos que tra­balhar para superar essa situação desconfortável que existe entre nós. Pelo menos éramos amigos antes. Agora… bem, não quero perder nossa amizade. Sei que parte da culpa é minha.

— Você não tem a menor culpa de nada — ela respondeu enfática. O marido não era o homem que arruinara sua vida. — Jamais volte a dizer uma coisa dessas. Não me enlouqueça dizendo uma coisa dessas. — Levantando-se da mesa, Ellie pôs-se a lavar a louça.

Ele a observou durante vários minutos. Então tomou Nate no colo e saiu da cozinha.

De olhos fechados, as mãos cheias de água e sabão, Ellie de­sejou, com toda sua alma, que Winston Parker estivesse morto.


CAPÍTULO XV

Dias se passaram com os dois se comunicando através de frases curtas, apenas as palavras necessárias para trocar informações, ou fazer planos. Os meninos começaram a olhá-los de maneira estranha e Caleb, percebendo o que se passava, tentava ao máximo manter a atmosfera natural. No sábado, ele levou as três crianças para pescar com o objetivo de proporcionar à esposa algumas horas sozinha. Tal­vez ela andasse sofrendo muita pressão. Sempre a julgara uma mulher quieta, reservada, porém, nos últimos tempos, a achava excessivamente retraída e às vezes agitada.

Como médico, preocupava-se com esses sinais de instabili­dade emocional.

Como homem, que passara a amá-la de todo coração, odia­va-se por não ser capaz de ajudá-la a superar essa fase difícil. Não havia remédios para as dores da alma, se o paciente se recusava a se abrir.

No domingo, todos compareceram à igreja, como de costume. Os pais de Caleb estavam lá e Laura fez questão de segurar o neto no colo durante o culto.

— Por que não mandamos os garotos almoçarem na fazenda hoje? — ele sugeriu ao saírem da igreja. — Poderíamos par­tilhar uma refeição sozinhos, no Arcade ou no restaurante do Isaac. Assim você não teria que cozinhar e descansaria dos afazeres domésticos.

A expressão no rosto de Ellie revelava que a possibilidade de passar uma tarde sem as crianças a agradava. Mas será que não detestaria a companhia do marido?

— É isso o que você quer?

A esposa estava sempre perguntando o que ele queria, como se sua vontade e interesses próprios não tivessem importância. Tamanha passividade indicava algum problema.

— Sim — Caleb respondeu.

— Está bem, então. Mandaremos os meninos para a fazenda.

— Falarei com meus pais. Talvez eles se encarreguem de trazê-los de volta. Assim não teremos que ir buscá-los no final da tarde.

Caleb encontrou os pais conversando animadamente com os Douglas.

Rachel mostrou-lhe o filho, embrulhado numa manta bor­dada, mal cabendo em si de contentamento.

— É um bebê bonito — ele falou. — Como se chama?

— John Mark. — O peito de Rachel inflava de orgulho.

— E um bom nome. Um nome sólido.

— Dr. Chaney? — Ela o segurou pelo braço e o afastou do grupo por alguns minutos. — Quero dizer-lhe que não estava sendo sincera quando falei todas aquelas coisas horríveis sobre o pai de meu filho. John Allen é um homem honesto. Sinto tanta falta dele que peço a Deus, todos os dias, para trazê-lo de volta para mim. Uma criança precisa de ambos os pais para crescer feliz.

— Espero que isso aconteça, Rachel. Por que você não vai mostrar o bebê a Ellie? Minha esposa ficará surpresa ao ver como seu filho cresceu em tão poucas semanas.

Tão logo percebeu que Rachel se afastava, Benjamin apro­ximou-se da irmã, que parecia não querer conversar com nin­guém, mantendo-se sempre à margem dos grupos.

— Algum problema se eu for com os Chaney para a fazenda?

— Você não quer ir, Ben?

— Quero sim. Eu só desejava ter certeza de que você ficará bem.

A preocupação do rapazinho a enterneceu. Sem dúvida o irmão notara seu abatimento nos últimos dias e temia deixá-la.

— Estarei com Caleb — assegurou-o. — Portanto, ficarei bem. Ben sorriu-lhe e saiu correndo ao encontro dos Chaney, animado com a possibilidade de passar um dia inteiro perambulando pela fazenda e se deliciando com os quitutes preparados por Mildred.

Ao chegarem ao restaurante do Hotel Arcade os dois foram imediatamente conduzidos a uma mesa, os presentes inclinando a cabeça num gesto de deferência para com o médico. Ao avistar a amiga, Goldie se apressou a ir cumprimentá-la.

— Você tirou o gesso!

— Sim, há algumas semanas. Meu braço está ótimo.

— Que sorte você ter tido aquele acidente, não é, Ellie? — Goldie piscou um olho para Caleb.

— A sorte foi minha — o médico respondeu galante, sorrindo para a esposa.

— Acho melhor eu deixar os dois pombinhos a sós e cuidar de meu serviço, ou o sr. Webb me mandará de volta para a cozinha.

— O que você gostaria de comer? — Caleb perguntou solícito. Ellie consultou o cardápio.

— Sempre quis experimentar a salada de lagosta. Uma garçonete chamada Irmã apareceu para anotar os pe­didos, o olhar cheio de admiração pousado em Ellie.

— Minha esposa escolheu salada de lagosta e eu vou querer peru recheado e aspargos. Também gostaríamos de uma porção de queijo Roquefort e bolachas salgadas como aperitivo.

A garçonete afastou-se respeitosamente.

Impossível não admirar a calma e eficiência com que Caleb enfrentava qualquer situação, sua habilidade de se adaptar aos mais diversos lugares e ocasiões. Mas ele pertencia à alta classe. Ela, sim, deveria estar servindo as mesas. Não estava à altura de ser esposa de Caleb e nunca estaria. Fora tolice tentar ignorar suas origens.

Os dois conversaram sobre a pescaria do dia anterior e sobre a celebração na igreja, pela manhã, comentando o belo sermão feito pelo reverendo. Os pedidos chegaram e Ellie pensou que nunca, em toda sua vida, comera algo tão delicioso.

Também nunca havia comido num restaurante antes e a experiência estava sendo única. Todavia, por mais que tentasse relaxar e tornar aqueles momentos agradáveis para Caleb, uma espada pairava sobre sua cabeça. Sentia-se condenada e Winston Parker era seu algoz. Estava apenas ganhando um pouco de tempo, antes da condenação final.

Ele tinha o poder de destruí-la. E a Caleb também. Se Parker revelasse o segredo sobre seu passado, Caleb perderia o respeito da comunidade. Não havia sido fácil para o marido conquistar a confiança do povo de Newton. E agora, a própria esposa seria responsável por sua queda.

Depois de pagar a conta, Caleb a levou para um passeio de charrete pelos arredores da cidade. A paisagem, começando a mostrar os primeiros sinais da chegada do outono, não podia ser mais bela. Entretanto Ellie mal enxergava a exuberância da natureza, sentindo-se à beira do abismo.

Ao voltarem para casa, encontraram um bilhete debaixo da porta, pedindo que Caleb fosse atender um fazendeiro doente com urgência.

— Desculpe-me deixá-la agora. Eu havia planejado passar­mos o resto do dia juntos.

— Não se preocupe comigo, é seu trabalho. Vá ver o sr. Arnold. Sozinha, Ellie trocou o vestido por um conjunto de saia e blusa, acendeu o lampião e tentou se concentrar na leitura de um livro. Ao entardecer, os Chaney chegaram, trazendo os meninos.

Ela lhes serviu café, acompanhado de bolo, e os três adultos sentaram-se à mesa da cozinha para conversar.

— Obrigada por tudo, Laura — Ellie falou sincera, sabendo que a sogra aceitara seus irmãos com o coração aberto.

Laura abraçou-a antes de partir, com ternura maternal.

— De nada, minha querida. Marido e mulher precisam de algum tempo a sós de vez em quando, não é? Pena que Caleb tenha sido chamado para atender um caso urgente.

Depois que os sogros partiram, Ellie preparou o banho dos irmãos enquanto Flynn tagarelava sem parar sobre os eventos do dia. Em outras circunstâncias, teria amado a tagarelice do garotinho, agora tão mais seguro de si.

Nate tomou a mamadeira e não tardou a dormir. Inespera­damente, a campainha tocou.

— Sra. Chaney?

— Sim.

O menino entregou-lhe uma folha de papel dobrada e saiu correndo. Ellie fechou a porta e leu a nota.

"Encontre-se comigo na encruzilhada perto do riacho. Dez horas da noite. Não se atrase."

Seus joelhos vergaram-se.

Como o infame podia pensar que ela o obedeceria?

Não podia ir. Preferia morrer a permitir que aquele homem tornasse a tocá-la. Ellie amassou a folha de papel, lutando para conter a náusea. Deveria ter morrido na primeira vez. Assim, seus infortúnios não afetariam a vida das pessoas a quem amava.

— Você está bem?

Recompondo-se, virou-se para encarar o irmão, que acabara de descer a escada.

— Sim, estou ótima.

— Quem tocou a campainha? Alguém conhecido?

— Apenas um garoto com um bilhete. Fui convidada para um chá com as senhoras de Newton. Parece que as damas da cidade costumam se reunir duas vezes por semana para tomar chá e bordar.

— Você vai?

— Veremos. Depende dos acontecimentos dos próximos dias.

— Será que Caleb está precisando de ajuda para cuidar do sr. Arnold? Há quantas horas ele já saiu?

— Estou certa de que Caleb tem tudo sob controle. Amanhã você tem aula logo cedo. Por que não vai se deitar? É preciso estar descansado para aprender.

Ben desejou-lhe boa-noite foi para o quarto, apesar de relutante.

Ellie correu para ver as horas no relógio da sala de estar. Nove e vinte. Não iria nunca ao encontro daquele monstro. Não seria estúpida a ponto de colocar-se numa situação de perigo. Winston não teria coragem de procurá-la em casa. Assim, estaria a salvo enquanto permanecesse dentro dessas quatro paredes.

Ansiosa, apanhou um pano e começou a limpar os móveis numa tentativa de esgotar a energia nervosa. Precisava fazer algo, ou enlouqueceria.

Por fim a crise de gastrite de Zeb Arnold passou. Após me­dicá-lo, Caleb saiu para dentro da noite, estranhando não en­contrar seu cavalo, cujas rédeas amarrara no tronco de uma árvore ao lado da varanda. Por fim descobriu o animal, pas­tando às margens da estrada. Mas antes que pudesse montá-lo, escutou sons estranhos às suas costas. Ao virar-se, teve tempo apenas de perceber uma figura alta antes de levar uma pancada na cabeça e desmaiar.

Às dez e meia, como Caleb ainda não houvesse chegado, Ellie deixou um lampião aceso no vestíbulo e subiu a escada, pensando no ódio que Winston estaria sentindo por sua ousadia em não obedecê-lo. A retaliação com certeza seria fatal.

Ao entrar no quarto, fechou a porta, tirou os sapatos e dei­tou-se, sem, no entanto, trocar-se. De qualquer maneira, para que vestir a camisola, se não conseguiria dormir?

A cabeça de Caleb latejava. Devagar, abriu os olhos e sentou-se na grama. Que diabos teria acontecido? Com dificuldade, ficou de pé e assobiou. Logo seu cavalo respondia ao chamado, relinchando e aproximando-se a galope. Ao passar a mão na cabeça, notou um galo enorme e um pouco de sangue. Felizmente o fe­rimento não devia ser grande e não havia risco iminente de hemorragia. Seu único objetivo agora era chegar em casa.

Apesar da tensão, Ellie conseguiu cochilar. Sons vindos da cozinha acabaram por acordá-la quando a noite ia alto.

Certa de que o marido chegara, acendeu um lampião e desceu a escada, confiante de que tudo estava bem.

— Caleb? — chamou baixinho, entrando na cozinha.

— Ele se encontra indisposto no momento.

A voz familiar fez seu sangue gelar nas veias. Mesmo se vivesse cem anos, não iria se esquecer do tom odioso. Porém, o mais chocante aconteceu quando o canalha acendeu uma lamparina e iluminou o rosto pálido de Benjamin. Winston tinha uma arma apontada contra a cabeça do garoto.

Ellie não foi capaz de respirar, o impacto da cena roubando-lhe o fôlego.

Então, saindo do estado de torpor, deu um passo a frente.

— O que você está fazendo? — indagou angustiada.

— Parece que foi você quem se esqueceu de nosso encontro. Vim até aqui refrescar-lhe a memória. Afinal, não é educado desmarcar um compromisso.

— Solte-o.

— Irei soltá-lo no momento em que você sair desta casa comigo.

— Você deve estar louco. O banqueiro riu.

— Onde está Caleb?

— Ele sofreu um acidente na estrada.

Horrorizada, Ellie vacilou, as pernas incapazes de sustentar o peso do corpo.

— O que você fez com meu marido?

— Não se preocupe. Eu não mataria o pai de meu neto. Bem, digamos que Caleb foi… temporariamente detido.

— Se você machucar minha irmã, eu o matarei, seu filho da mãe! — Benjamin gritou, a voz estrangulada de emoção.

— Estou com muito medo — Winston debochou. — Agora vamos, Ellie. Saia por aquela porta. Estou ficando cansado de esperar.

— Para onde vamos?

— Minha carruagem. Você deve se lembrar de minha ado­rável carruagem, tão aconchegante e espaçosa.

Vagarosamente, sem deixar de fitá-la, Winston começou a puxar o gatilho, pressionando o cano da arma contra a têmpora esquerda de Benjamin.

— Está bem — ela falou. — Abaixe essa arma. — Talvez, no caminho entre a casa e a carruagem, tivesse uma chance de lutar e escapar.

— Não vá, Ellie! — Ben implorou. — Não vá! Deixe que ele atire em mim. O barulho atrairá a atenção das pessoas. Um vizinho virá nos ajudar.

Como se fosse capaz de permitir que alguém tocasse num fio de cabelo dos irmãos!

Não era grande a distância até a porta dos fundos. Decidida, cobriu o espaço com passadas rápidas.

— Não! — o rapazinho tornou a gritar angustiado.

— Você fez sua escolha, certo? — Winston afastou-se do garoto, embora ainda o mantivesse sob a mira do revólver. — Agora acompanhe-me até a rua e não me dê trabalho, ou sua família sofrerá as conseqüências.

Ellie saiu, o banqueiro segurando-a pelo braço depois de trancar as portas para impedir que Benjamin os seguisse. Era como se o passado estivesse se repetindo, ela pensou atordoada. Tinha quatorze anos de idade então, e estava desesperada para esconder o bebê que acabara de dar à luz. Será que tornaria a ficar grávida? Talvez desta vez tivesse sorte e morresse.

Queria morrer. Jamais poderia encarar a si mesma depois que essa noite de horror terminasse.

O canalha havia deixado a carruagem numa ruazinha escura.

Ele abriu a porta.

O interior escuro, pronto para a engolir, cheirava a podridão. Que outra escolha lhe restava? Conhecia a força daquele ho­mem monstruoso. Conhecia seu poder e influência na sociedade.

Ben estivera pronto para morrer em seu lugar, sacrificando-se para poupá-la.

Não, não havia chegado tão longe para desistir agora, sem lutar. Enquanto tivesse um sopro de vida, uma gota de sangue, resistiria ao ataque covarde. Se Winston lhe desse um tiro, alguém ouviria e libertaria Ben. Depois sairiam à procura de Caleb.

Se entrasse naquela carruagem, nunca seria capaz de ven­cê-lo. Sua única chance estava ali fora.

Antes que pudesse mudar de idéia, Ellie agarrou a porta do veículo e lançou-a para trás com força, parte da madeira atingindo Winston no joelho.

Seu primeiro chute o atingiu na canela. Cerrando as mãos, o golpeou na face. Mas Winston reagiu, esmurrando-a no quei­xo. Zonza, ela caiu no chão, um gosto de sangue na boca.

— Entre na carruagem — ele rosnou, ameaçando-a com a arma.

— Atire em mim. Nada aconteceu.

Lembrando-se da reação de Caleb, quando lhe puxara os cabelos, Ellie enterrou os dedos nos cabelos de seu agressor e puxou-os com toda a força de que era capaz.

O homem gritou de dor e moveu o braço involuntariamente, o revólver se deslocando da têmpora de Ellie.

Naquele instante, Ben surgiu do meio do nada e pulou sobre Winston, os dois rolando no chão. Com o pedaço de pau que trazia nas mãos, o rapazinho atingiu o banqueiro na cabeça, atordoando-o. Porém, ainda assim, o canalha manteve a arma apontada para o garoto e começou a puxar o gatilho.

Desesperada, Ellie socou Winston com os punhos nus, lá­grimas de raiva e frustração ameaçando cegá-la. O revólver voou para longe. Winston lançou-se sobre a arma, pronto para apanhá-la, uma expressão assassina no rosto.

De repente, um estampido.

Os cavalos relincharam e ergueram as patas dianteiras no ar que rescendia a pólvora.

— Ben!

Uma figura esguia se levantou, trêmula, assustada. O outro homem não se mexeu.

— Eu não tinha intenção — Ben murmurou, a respiração alterada.

Devagar, Ellie também se levantou enquanto luzes come­çavam a ser acesas nas casas ali por perto.

— Juro que não queria matá-lo!

— Talvez ele não esteja morto.

— Eu disse que iria matá-lo, mas não falei a sério.

Ellie passou um braço ao redor dos ombros estreitos do irmão.

— Sei que você não queria matá-lo. Eu mesma desejei vê-lo morto milhares de vezes. Sossegue agora.

Soltando o garoto, ela se ajoelhou junto do corpo imóvel, quase esperando que o cadáver estendesse a mão e a agarrasse. Trêmula, tocou-o na base no pescoço. Então procurou sentir-lhe o pulso, como vira Caleb fazer freqüentemente.

— Acho que ele está morto.

— Ah, diabos — Ben gemeu baixinho.

— Ellie! — A voz familiar parecia vir do beco. — Ben! — Logo Caleb saía de dentro da escuridão.

Graças a Deus seu marido estava bem.

— Pelos céus, Ellie, o que aconteceu aqui? — O médico ajoelhou-se para examinar o homem caído.

— Eu atirei nele. Matei-o.

— Winston? — Caleb não foi capaz de conter o assombro. Ben balançou o revólver diante do rosto de Caleb e então jogou-o no interior da carruagem.

— Veja quem estava segurando a arma. Eu atirei. Não era minha intenção. Mas ele teria matado um de nós. Agarrei o revólver antes que o covarde o fizesse. A arma disparou. Não pretendia matá-lo.

Alguém apareceu na varanda da casa mais próxima, segu­rando um rifle.

— O que está acontecendo aqui?

Logo surgiam outras pessoas nas imediações do incidente e apesar de manterem uma certa distância, não disfar­çavam a curiosidade.

Novamente Caleb examinou o homem caído. Então virou-se para a esposa.

— Ellie, conte-me o que aconteceu.

Ela não podia dizer nada. Não podia sentir nada.

— Esse covarde mandou um bilhete para Ellie, mandando-a encontrar-se com ele hoje à noite. —Ben colocou a mão no bolso e retirou um pedaço de papel amassado. — Minha irmã não foi.

Caleb apanhou o papel das mãos do rapazinho e acendeu um dos lampiões da carruagem para ler o bilhete.

O coração de Ellie batia tanto que dava a impressão de que iria sair pela boca. Oh, Deus, preferia ser chicoteada a ver a expressão confusa e triste do rosto do marido.

— Por que Winston Parker lhe pediria uma coisa dessas? Por que a julgaria capaz de aceitar encontrar-se com ele num lugar isolado, no meio da noite?

Anestesiada, ela balançou a cabeça.

— Ellie?

— Esse monstro achava que minha irmã faria qualquer coisa que ele pedisse. Winston Parker sabia que Ellie temia ouvi-lo contar a verdade sobre ela. Sobre nós.

— O que ele sabia sobre vocês?

— Ben — Ellie murmurou, apelando para o bom senso do irmão.

— Ele costumava visitar nossa mãe.

— Ben!

— Winston conhecia seus pais? — Caleb indagou surpreso, colocando o pedaço de papel no bolso.

— Não nossos pais. Mas a mulher que nos deu a luz.

— Ben! — Ellie ergueu a voz, avisando-o de que era melhor parar por ali.

— Nossa mãe era uma prostituta. Ele sabia disso, pois cos­tumava usá-la com freqüência.

— Oh, Ben. — Era um gemido agora, uma súplica deses­perada. — Não, por favor, não.

— Conte a Caleb — Ben a impeliu, ignorando os protestos da irmã.

— Não. Nunca.

— Conte-lhe a verdade, ou eu o farei.

— Não, Ben. Por favor!

— É a única maneira, você não vê?

— Não. Iremos embora daqui. Iremos para qualquer outro lugar.

— Eu não quero ir para outro lugar. Quero ficar aqui. Con­te-lhe a verdade.

Os pés dela pareciam ter criado raízes no chão. Não podia mover-se. Não podia tapar a boca do irmão e impedir-lhe de abrir as portas do passado.

— Winston Parker estuprou Ellie.

O grito desesperado ecoou apenas dentro de sua cabeça, porque a noite continuou silenciosa. Ellie, porém, tinha a sen­sação de que seu peito ia explodir.

O olhar aflito de Caleb envolveu a esposa.

— Oh, meu Deus! Benjamin, ajude-me a levá-la para casa.

— Não aconteceu essa noite — o garoto esclareceu, tocando o braço do médico para fazê-lo parar. — Aconteceu há muito tempo. Quando minha irmã era uma menina.

Surpreso, Caleb olhou de um para o outro, uma expressão impenetrável no rosto.

— É verdade, Ellie?

Toda a vergonha e degradação daquela noite horrenda e dos anos que se seguiram vieram à tona com uma agudeza torturante. Era como se houvesse voltado no tempo e estivesse revivendo o pesadelo que jamais conseguira esquecer. O fato de Caleb saber a verdade a humilhava tanto quanto o ato em si. Não podia suportar o olhar angustiado do marido. Não podia suportar o peso da desonra.

Ignorando as pessoas que os observavam a distância, Ellie cobriu o rosto com as mãos e fugiu.


CAPÍTULO XVI

Todas as peças do quebra-cabeça se encaixaram. Caleb desejara descobrir a razão da profunda tristeza nos olhos de Ellie e a causa do medo que a subjugava. Desejara saber a verdade para ter como ajudá-la. Mas isso… Deveria ter imaginado. Entretanto a esposa soubera dissimu­lar. As evasivas, o passado envolto em sombras, a menção de Flynn à inexistência de um pai e a tentativa desastrosa de fazerem amor haviam sido indícios suficientes para levá-lo a uma única conclusão.

A compreensão vivida dos fatos causava-lhe tanto dor quanto raiva. Ele fitou o beco escuro por onde a esposa desaparecera, pedindo a Deus forças e sabedoria para conduzir aquela situação.

— Devemos ir atrás dela? — um homem perguntou.

— Não — Caleb respondeu. — Houve um acidente aqui.

— É você, dr. Chaney?

— Sim.

— Precisa de ajuda, doutor? — Algumas pessoas começaram a se aproximar.

— Quem foi baleado?

— Winston Parker. Eu queria que alguém me ajudasse a pôr o corpo na carruagem.

— Ele está morto?

— Receio que sim.

— Quem o baleou?

— Prefiro conversar com o xerife primeiro.

Ben afastou-se enquanto dois dos presentes ajudavam Caleb a colocar o corpo de Winston dentro do veículo.

Então o médico virou-se para o garoto e, gentilmente, man­dou-o ir para casa.

— Eu não pretendia atirar nele. — A voz juvenil revelava medo e desconfiança.

— Sei que não. Você estava protegendo sua irmã e fez o que qualquer outro homem teria feito.

— Tentei apanhar a arma e ela disparou.

— Quero que vá para casa e fique de olho em sua irmã. Impeça-a de tomar qualquer atitude tola, como fugir, por exem­plo. Tranque-a na despensa, se necessário.

— Eu não poderia fazer isso.

— Então a mantenha em casa até que eu esteja de volta. Nervoso, Benjamin lançou um olhar para a carruagem negra.

— Para onde você vai levá-lo?

— Para o xerife. Explicarei o que aconteceu. O xerife vai querer conversar com você e Ellie.

— Teremos que contar sobre o passado de Ellie? Caleb alimentava a mesma preocupação.

— Talvez seja suficiente dizer que Winston a atacou hoje à noite. Algo me diz que foi o próprio Winston quem me atingiu na cabeça e me largou inconsciente na estrada, perto da fazendo de Arnold. Vá encontrar-se com sua irmã agora, Ben. Eu lido com essa gente.

Deitada na cama, envolvida pela mais completa escuridão, Ellie sentia-se drenada de toda energia. Já não tinha forças nem para chorar. Tentara levantar-se, porém Ben a impedira delicadamente.

— Ele nunca mais poderá voltar a feri-la — o menino mur­murou, procurando consolá-la.

— É verdade — Ellie concordou apenas para sossegá-lo. Winston a ferira por toda a eternidade.

— Eu era muito pequeno para ajudá-la daquela vez. Ouvi-a chorando e bati na porta da cabana com toda força. Tentei abri-la.

Apesar da letargia em que caíra, ela encontrou forças para erguer a mão e tocá-lo no rosto, o gesto carregado de ternura.

— Oh, meu querido menino, eu tinha esperanças que você não soubesse.

— Eu não sabia, não com certeza absoluta até ficar mais velho. Pedi a ela que fosse ajudá-la. Ela se negou.

— Eu sei. Winston teria machucado você, se o visse por perto. Não se culpe. Você era tão pequeno. Um menininho que não deveria ter sido obrigado a conhecer a sordidez tão cedo. Embora se acreditasse sem lágrimas, Ellie recomeçou a cho­rar. Pranto derramado por seu adorado Benjamin.

— Você deveria ter tido uma mãe para amá-lo, um pai para sustentar a casa, oferecer-lhe conforto.

— Você foi nossa mãe. E nos sustentou.

— Você deveria ter tido uma casa aconchegante, uma cama onde dormir.

— Tenho tudo isso agora.

Ellie acariciou os cabelos do irmão.

— Sim, sim, você tem.

Mas continuaria a tê-los, depois dessa noite?

— Você me odeia agora, por que contei a Caleb?

— Não. Eu te amo.

— Eu também te amo.

— Vá dormir, está tarde.

— Caleb me mandou tomar conta de você.

— Estou bem, não se preocupe.

Benjamin saiu do quarto e Ellie fechou os olhos por um mo­mento, procurando relaxar. De algum modo, sentia-se até aliviada que seu segredo fora exposto. Guardá-lo havia sido sempre um fardo difícil de carregar. Mas agora todas as suas dúvidas e in­seguranças vinham à tona. O que lhe aconteceria, e aos irmãos? O que Caleb faria e como reagiria diante da verdade? Os minutos se arrastavam. Nunca uma espera lhe parecera tão longa.

Depois de entregar o corpo de Winston e explicar a situação ao xerife, Caleb correu para casa. Encontrou Ben ainda aguardando-o na cozinha, a cabeça apoiada nas mãos. Os restos da cadeira que ele descobrira quebrada ao voltar da fazenda de Arnold agora achavam-se amontoados num canto.

— É seu sangue? — O rapazinho perguntou intrigado, no­tando manchas na camisa do médico.

Caleb desabotoou a camisa e tirou-a.

— Provavelmente. Estou satisfeito de encontrá-lo acordado. Assim você pode dar uma olhada nesse galo na minha cabeça. Parece que já parou de sangrar, mas será necessária uma lim­peza no corte.

Ben levantou-se e Caleb ocupou a cadeira vaga. Logo o ra­pazinho limpava o pequeno ferimento com água e sabão.

— Eu estava indo ver se você precisava de ajuda na fazenda do sr. Arnold, porém Ellie me mandou dormir. Tive certeza de que havia algo errado quando Ellie recebeu aquele maldito bilhete. Acabei achando-o no bolso de um avental. Quando o li, soube que Winston o mandara. Resolvi ir atrás de você, mas ao sair de casa, "ele" estava lá, no jardim. Ameaçando-me com a arma, me obrigou a voltar para a cozinha e me amarrou na cadeira.

— Sim?

— Joguei-me contra o fogão até conseguir me libertar. Des­culpe-me ter quebrado a cadeira.

— Não seja ridículo. Você foi corajoso. Salvou Ellie. Ben explodiu em soluços.

— Não pude ajudá-la na última vez.

Ò médico levantou-se e abraçou o garoto, incapaz de pensar no que aquela criança e a irmã haviam passado.

— Quantos anos você tinha na época?

— Oito talvez.

Então tudo acontecera uns sete anos atrás? Ellie teria ape­nas quatorze. Não podia se permitir imaginar tal coisa. Se para ele tratava-se de algo impensável, o que não teria sido para Ellie sofrer tamanha violência? E escondê-la?

— Você era muito pequeno para ajudá-la. Mas o fez esta noite. Estou orgulhoso de sua atitude.

— Ela irá me odiar porque lhe contei a verdade.

— Sua irmã jamais poderia odiá-lo. Você e Flynn significam tudo para ela. Você fez a coisa certa.

— Eu não quero ir embora daqui.

— Tudo dará certo.

— Eles vão me pôr na cadeia?

— Não — Caleb assegurou, rezando para que estivesse certo. — Nada irá acontecer a nenhum de vocês dois.

Ben limpou o rosto na manga da camisa.

— Ellie adormeceu? Não tentou fugir?

— Ela não nos abandonaria. Convencia-a a ficar na cama e descansar. Minha irmã chorou tanto. Eu costumava ouvi-la chorar muito e ficava assustado. Ainda fico.

— Talvez agora que a verdade veio à tona e Winston está morto, ela possa secar essas lágrimas.

— Espero que sim — o rapazinho respondeu inseguro.

— Eu também. Agora, deixe-me cuidar dos cortes no seu rosto e dos ferimentos nas mãos. Depois quero que vá dormir. Você acha que terá condições de ir à aula amanhã?

— Não quero faltar.

— Então o levarei até a escola após falarmos com o xerife. Obrigado por tomar conta de Ellie. E por cuidar do machucado na minha cabeça. Você tem um toque gentil.

Obviamente satisfeito com o elogio, Ben desejou boa-noite e subiu a escada.

Caleb sentia-se privado de toda energia agora. Porém, mais do que nunca, era imprescindível que conversasse com a esposa.

Uma presença no quarto a acordou. De alguma maneira acabara cochilando.

— Ellie?

Ela abriu os olhos e deparou-se com o marido parado perto da porta, um lampião nas mãos. Imediatamente virou-se para o outro lado, tentando esconder o rosto.

— Eles vão colocar Ben na cadeia?

— Não. — Caleb sentou-se na cama, ao lado da mulher. — Expliquei o que aconteceu ao xerife. Parece que Winston já fora acusado de abuso sexual várias vezes nos últimos anos, mas não haviam provas. Ele negava ter atacado as moças em questão e, como nunca existiam testemunhas, era a palavra dele contra a das garotas. Desta vez Ben e eu somos testemunhas.

Winston estuprara outras? Jamais considerara essa possibilidade.

— Mas você não testemunhou nada.

— Levei uma pancada na cabeça e vi estrelas. Estou con­vencido de que o autor da agressão tenha sido Winston.

Sentando-se na cama, Ellie virou-se para o marido.

— Ele disse ter feito algo para mantê-lo longe de casa. Você está bem?

— Sim. Apenas um galo e um pequeno corte na cabeça. Quando vira o marido surgir no beco escuro experimentara emoções conflitantes. Alívio e alegria ao vê-lo bem e pavor diante do que iria acontecer.

Caleb notou o rasgo na manga do vestido da esposa, na altura do cotovelo.

— Posso dar uma olhada?

O toque suave das mãos masculinas servia apenas para entristecê-la. Se ao menos ele nunca tivesse descoberto a ver­dade, talvez houvesse uma chance de serem felizes juntos. Ago­ra Caleb a estava tratando com a mesma gentileza que sempre dedicava aos outros pacientes porque não se sentia no papel de marido e sim de médico.

— Esse ferimento precisa ser limpo e desinfetado.

— Meus pés também — Ellie murmurou, observando os pés sujos.

— Voltarei logo. — Dali a instantes Caleb regressava com o jarro de água e sua maleta. — Terminei de cuidar dos ma­chucados de Ben há pouco.

— Meu irmão está ferido?

— Apenas alguns arranhões e hematomas. Nada muito sério. Como ele conseguiu se safar daquela cadeira é um mistério. Ben é seu herói.

— Ele ainda é um menino.

— Um rapazinho corajoso que a ama muito. Por que você não tira essas roupas e veste a camisola? Assim poderei cuidar do cotovelo.

Caleb aguardou do lado de fora do quarto até que a esposa o chamasse.

Ela parecia tão pequenina, tão jovem e ingênua. Os olhos grandes estavam inchados e vermelhos de tanto chorar. Deli­cadamente, Caleb limpou o machucado e aplicou uma camada de pomada. Depois colocou a bacia com água no chão e man­dou-a imergir os pés. Com extremo cuidado, lavou-os, passou uma camada do ungüento e os envolveu em gaze.

— Agora deite-se.

Como uma menininha, Ellie obedeceu, puxando os lençóis até o pescoço.

Ele depositou o lampião sobre a cômoda e tornou a sentar-se. Precisavam conversar sobre o assunto. Agora que sabia a ver­dade, a esposa não tinha mais nada a esconder.

— Tudo passou a fazer sentido para mim — Caleb falou.

— Você não sabe nem da metade da história.

— Por que não me conta?

Um longo instante se passou antes que a voz quase sumida de Ellie rompesse o pesado silêncio.

— Meu sobrenome é Foster. Todos em Florence conhecem esse nome.

— Você inventou "Parrish" para conseguir trabalho?

— Ninguém teria me empregado de outra maneira.

— As pessoas podem ser muito preconceituosas, injustas até.

— Morávamos numa cabana, nos arredores da cidade. Havia apenas um quarto. Tínhamos um fogão. Eu costumava roubar madeira das pilhas de outras pessoas para nos mantermos aque­cidos. E também jornais velhos, que conseguia tirar do lixo.

Querendo compreender a tragédia da esposa, Caleb procu­rava tecer imagens mentais dessa vida dura, tão distante de sua própria realidade.

— Quase nunca tínhamos o que comer. Às vezes ela ficava sóbria durante um único dia e nos comprava alimentos. Mas, em geral, comprava somente uísque. Eu era obrigada a roubar ver­duras das hortas alheias durante a noite para alimentar meus irmãos. Quando entrei na adolescência, comecei uma pequena plantação de tabaco e de alguns vegetais. Aprendi a enrolar cha­rutos e os vendia do lado de fora dos saloons todas as noites.

— Você cuidava de seus irmãos sozinha?

— Alguém tinha que fazê-lo. Eram bebês tão bonzinhos. Espertos e bonitos. Não tão desenvolvidos quanto Nate. Eu jamais pude alimentá-los da maneira correta.

Enquanto ouvia o desenrolar da história, Caleb sentiu o coração se apertar de dor. Quase sentia-se culpado por sua própria infância. Crescera cercado de fartura. Nunca conhecera nenhum tipo de privação.

— Tivemos uma irmã durante um curto período de tempo. Ela morreu logo, pois era muito franzina e doente. Costumava vomitar o pouco que eu conseguia fazê-la ingerir. Não possuía­mos camas, ou cobertas. Dormíamos no chão, sobre trapos e jornais. Ela dormia perto do fogão. E quando os homens che­gavam, era ali que os recebia. Assim, mantínhamo-nos o mais longe possível.

Caleb perguntou-se que tipo de homem freqüentava um lu­gar assim. Um lugar onde havia crianças famintas e com frio. Onde a mãe usava o dinheiro para comprar uísque. Homens como Winston Parker, ele compreendeu com um choque.

— A primeira vez em que dormi numa cama foi quando comecei a trabalhar no hotel. Não freqüentamos muito a escola. Eu até que freqüentei as aulas durante alguns anos, enquanto os professores não eram cruéis. As outras crianças já eram más o bastante, mas quando os professores começaram a nos discriminar, não pude suportar. Não quis que meus irmãos se tornassem alvos de crueldades. Roubei livros e os ensinei a ler e fazer contas em casa. Nossas roupas eram doações. Usei roupas íntimas de meninos durante quase toda minha vida. Nunca tive nenhuma peça nova até que uma professora, a sra. Conner, chegou à escola.

Ellie calou-se por um momento, mais confortável agora, po­rém ainda incapaz de fitar o marido.

— Pensei que aquela mulher era a pessoa mais maravilhosa do mundo. E era. A sra. Conner ficava depois das aulas para me ajudar com as lições. Certa vez ela foi nos visitar e minha mãe praticamente a expulsou da cabana. A sra. Conner nunca mencionou o fato e continuou a me tratar com bondade. Um dia, convidou-me para ir à sua casa. Claro que tive que levar os meninos. Depois de nos alimentar, ela tirou minhas medidas.

Na semana seguinte, deu-me um presente. O vestido mais lindo que eu já havia visto.

A voz de Ellie soou muito baixa, cheia de emoção.

— Nunca contei a ninguém sobre o vestido. Nunca contei nada disso.

— Tudo bem — Caleb a tranqüilizou. Apesar de querer abraçá-la, limitou-se a tocá-la de leve no braço, confortando-a. — Continue.

— O vestido era azul, com mangas e golas brancas. Uma bela roupa que me foi dada por uma senhora gentil e generosa.

Apenas o vesti para ir à escola uma vez. As crianças riram. Disseram que nunca tinham visto lixo embrulhado em papel de presente. Depois da aula, saíram correndo atrás de mim, rindo e me chamando de lixo enfeitado. Era assim que nos chamavam. A família lixo.

— Oh, Ellie! — Caleb sentiu a dor da esposa como se fosse a sua própria.

— Nunca mais tornei a usá-lo na escola. — Agora que se decidira a ir até o fim, as palavras saíam em torrentes de sua boca, como água que estivera represada durante tempo demais.

— Escondi a caixa e só usava o vestido quando ia à cidade, vender os charutos. Foi onde ele me viu.

— Winston?

— Sim. A sra. Conner morreu por causa de uma bala perdida, durante um assalto ao banco. Quando eu soube, chorei sem parar e decidi não voltar à escola.

— Lembro-me de ler no jornal sobre o assalto e a morte da professora. O que você quis dizer sobre Winston tê-la visto usando o vestido?

— Ele foi à nossa cabana, naquela carruagem chique, e pagou minha mãe. Como sempre. — Por fim Ellie virou-se e fitou o marido de frente. — Mas daquela vez ela recebeu o dinheiro por me vender.

Caleb absorveu as palavras lentamente, até compreender-lhes o significado. O horror era tamanho que custava a aceitar a verdade.

— Ele me atraiu para fora da cabana com uma mentira e me obrigou a entrar na carruagem. Então… cobrou cada centavo gasto. Disse que eu havia usado o vestido para atrair-lhe a atenção, que eu pedira pelo que estava me acontecendo.

Enfim as peças do quebra-cabeça se encaixavam. A mãe de Ellie fora tão culpada quanto Winston, talvez mais. Aceitara dinheiro para que um homem violentasse a própria filha. Algo inconcebível. Porém acontecera. E Ellie, além de vítima, tivera que viver com as conseqüências.

— E o bebê? Os olhos da esposa se arregalaram, surpresos.

— Como…

— Quando você esteve doente, vi seu corpo e compreendi. Lágrimas grossas deslizaram pelo rosto pálido. Ela tentou afastar-se, mas Caleb segurou-a pelos ombros, impedindo-a de mover-se.

— A vergonha não é sua, querida. Você era uma criança. Foi forçada. Não tinha ninguém que pudesse protegê-la.

Gentilmente, Caleb abraçou-a, apertando-a contra o peito cheio de ternura e compaixão.

— A princípio não entendi o que se passava. Pensei que es­tivesse doente. Então o bebê começou a crescer dentro de mim. Minha mãe percebeu e nos amaldiçoou, ameaçando-nos de todas as maneiras. Fiz o máximo para me manter afastada dela.

Ela me odiava e aos meninos. Sempre tive medo do que pudesse acontecer a um de nós. Eu a odiava. Odiava a mim mesma, a minha vida. Padecia de pesadelos diários, sonhos horríveis. Caleb ouvia e a acariciava no ombro, no braço.

— Nunca tive certeza do quanto Ben sabia dessa história. Ele era muito novo e Plynn não tinha mais do que uns dois anos na época. Entretanto Ben sabia muito mais do que eu podia imaginar. Ele tentou me ajudar naquela noite, mas só me confessou isso hoje. Também deduziu a verdade sobre o bebê.

— Como você deu a luz ao bebê?

— Quando as contrações começaram, me escondi na floresta durante um dia inteiro e uma noite. Tinha medo de morrer e se tal acontecesse, não queria que Ben testemunhasse o fato. Porém eu temia mais ainda o que ela faria com o bebê, pois não cansava de nos ameaçar.

— Então você esteve só durante todo o parto?

— Eu havia ajudado minha mãe durante o nascimento dos meus irmãos e sabia como proceder, cortando o cordão umbilical e tudo. Mas não tinha idéia de que fosse doer tanto.

Por um momento Caleb lembrou-se da primeira esposa, que morrera mesmo com sua assistência e o auxílio de todas as téc­nicas médicas. O feito de Ellie era extraordinário. Se algo tivesse dado errado, ela teria sangrado até a morte. Sozinha, na floresta.

— Era uma menina.

Imaginava-a pouco mais do que uma criança, assustada e inocente, sem ter ninguém que a ajudasse, ou se importasse com seu destino. Que será que Ellie sentira e pensara ao trazer aquela criaturinha ao mundo?

— Que você fez? — indagou, contendo o ímpeto de tomá-la nos braços.

— Eu sabia da existência de um casal em Florence, os Masterson, que perdera o filho por causa de um surto de gripe. Achei que talvez eles quisessem meu bebê. Talvez criar uma criança abandonada os ajudasse a superar a perda do próprio filho. Assim, levei minha filha até a cidade durante a noite e a deixei na varanda dos Masterson. Atirei uma pedra na janela para acordá-los. Eles a encontraram.

— E a aceitaram?

— Voltei à cidade algumas semanas depois e vi fraldas e roupinhas de bebê dependuradas no varal.

— Mas você nunca tornou a ver sua filha desde então?

— Não.

— Sinto muito — Caleb murmurou beijando-a nos cabelos. — Como você sofreu durante tanto tempo e ainda manteve essa natureza amorosa e dedicada, nunca poderei saber.

— Não é assim. Tenho tanto ódio dentro de mim que me sinto consumida.

— Você a odeia? Sua mãe?

— Sim!

— E odeia Winston? Ellie não respondeu.

— Os dois a feriram terrivelmente. Sua mãe deveria tê-la protegido, atendido às suas necessidades. Porém não o fez e estava errada. Winston a machucou de uma forma covarde e cruel. Mas agora você já não é obrigada a carregar o peso desse segredo sozinha.

Você não fez nada errado. Não usou aquele vestido para en­corajá-lo. Tinha apenas quatorze anos de idade e tentava ganhar algum dinheiro para alimentar os irmãos. Winston era um animal, não um ser humano. Graças a Deus não tive que enfrentar a decisão de salvar-lhe a vida. Não sei se poderia tê-lo feito.

— Você o teria salvo, sim.

— Não sei, Ellie.

— Teria sim. Eu o conheço. Você é o homem mais gentil que conheço. — Pausa. — …Caleb, você não está me tocando apenas como um médico toca um paciente.

— Estou tocando-a como um homem toca a esposa.

— Compreenderei se você não quiser permanecer casado comigo. Segurando-a pelos ombros delicadamente, ele a obrigou a fitá-lo.

— Fizemos um trato, sra. Chaney. Você é a mãe de Nate e eu o pai de Ben e Flynn. Vamos finalizar a adoção. Nada mudou em relação a isso. A menos que você tenha desistido.

— Mas agora que você sabe…

— Agora eu sei a razão dessa sua melancolia. Sei porque a idéia de um lar lhe é tão cara. Sei porque você não pode suportar a idéia de um homem a machucando daquela maneira outra vez. E sei que se angustia sobre o que pode ter acontecido a uma certa garotinha. Essas são as coisas que agora sei. E elas me fizeram compreendê-la melhor. Todavia não me fizeram amá-la menos.

Aquelas palavras ficaram paradas no ar.


CAPÍTULO XVII

— Você não pode me amar — Ellie mur­murou afinal.

— Sim, posso. E a amo.

— Mas nunca poderei corresponder a esse amor. Não da maneira que você deseja.

— Podemos dar um passo de cada vez. — Caleb beijou-a na testa, tendo o cuidado de manter seu toque gentil, embora desejasse tomá-la nos braços e absorver todo o sofrimento e desilusão que a amarguravam.

— Como pode me amar, sabendo de toda essa sordidez?

— Porque você continua sendo a mesma pessoa que era antes de eu conhecer seu passado e suas atitudes nunca me decepcionaram. Reparei nos seus instintos maternais em re­lação aos meninos, inclusive com Nate. Vi como encontra prazer nas coisas simples da vida. Você pensa nos outros antes de pensar em si mesma, sempre. Seu sorriso ilumina meu mundo e me causa uma sensação estranhamente deliciosa.

Ellie chorou de emoção e alívio. Dizer as palavras, revelar a verdade, havia tirado um peso enorme de suas costas. Sen­tia-se tão exausta que mal conseguia se mover.

Caleb a amava. Aquele homem maravilhoso, gentil e gene­roso a amava. Oh, Deus, parecia bom demais para ser verdade.

Aninhada entre os braços fortes, adormeceu.

Ao acordar no dia seguinte, no meio da manhã, a casa con­tinuava silenciosa. Caleb colocara um bilhete na mesa da co­zinha. Flynn fora para a escola e ele levara Benjamin até o escritório do xerife, onde o menino deveria prestar depoimento. Também deixara Nate na casa dos Swensen.

Ellie vestiu-se, tomou um copo de leite e comeu um pedacinho de bolo. Seus lábios doíam onde Winston a atingira, porém o ódio se esgotara um pouco.

Ao retornar, logo antes do almoço, Caleb encontrou-a as­sando pão.

— Caleb! — ela exclamou feliz.

Durante alguns minutos os dois permaneceram imóveis, fitando-se apenas. Ellie lembrava-se de ter acordado durante a noite e sentido os braços do marido ao seu redor. Queria man­ter-se unida a ele para sempre.

Caleb, todavia, não parecia muito seguro de que era aceito. Assim, aguardava um sinal. Ele confessara amá-la. Como podia ter tanta sorte?

Hesitante, sorriu-lhe.

— Está tudo bem?

— Sim. Benjamin respondeu às perguntas do xerife e depois o levei para a escola. Fox quer falar com você tão logo seja possível.

— Ele sabe tudo? — Ellie indagou abaixando os olhos.

— Apenas o que aconteceu ontem à noite. Ben sabia que você havia recebido um bilhete. Nós o entregamos ao xerife. Também acreditamos que Winston me seguiu até a fazenda de Arnold e então me atacou pelas costas.

— Sua cabeça está melhor?

— Dói como o diabo, mas ficarei bem. Ontem à noite, Fox me contou que Winston já havia sido acusado de atacar pelo menos quatro outras moças. Nenhuma delas pôde provar nada e sendo Winston um banqueiro importante, as queixas foram arquivadas.

— Oh, pobres meninas. O xerife deve-lhes uma explicação agora.

— Acredito que o fará assim que conversar com você sobre o incidente.

Ela tirou o avental e lavou as mãos sujas de farinha.

— Nate está com os Swensen?

— Eles insistem em perguntar o que podem fazer para me recompensar. — Caleb sorriu. — Então pedi a sra. Swensen que tomasse conta de Nate durante algumas horas.

Um silêncio desconfortável caiu entre os dois. Atirando a cautela para o lado, Ellie deu um passo a frente. Se o marido pretendia rejeitá-la, melhor descobrir já.

— Por favor, me abrace.

Sem hesitar, Caleb a tomou nos braços.

— Você me acompanhará até o escritório do xerife?

— Sim. Talvez Fox queira lhe falar a sós, mas eu a esperarei.

— Obrigada. Por tudo.

— Não quero sua gratidão.

— De qualquer forma, você a tem. — Ficando na ponta dos pés, Ellie beijou-o nos lábios, desejando ser a esposa que Caleb merecia, uma mulher pura e de valor.

Afastando-se afinal, apoiou a cabeça no peito largo, armando-se de coragem para enfrentar seu destino.

— Está bem. Vamos agora.

O xerife não poderia ter sido mais polido ou compreensivo. Fox parecia tão desconfortável quanto Ellie por se ver obrigado a discutir o incidente ocorrido na noite anterior. Ela lhe falou sobre Winston assediando-a na alfaiataria.

— Alguém os viu lá?

— O dono da loja apareceu e me perguntou se estava tudo bem. Sentia-me embaraçada demais para contar-lhe o que acon­tecera. Assim, corri para casa.

— A loja deve pertencer ao sr. Rentchler. Irei fazer-lhe uma visita. Ótimo que você tenha se lembrado disso. O que Parker lhe disse na ocasião?

Ellie explicou ao xerife como Winston a pressionara para encontrarem-se num lugar deserto. Claro que se recusara e, por esse motivo, ele aparecera em sua casa.

— O que aconteceu quando você desceu a escada e descobriu Parker na cozinha?

Depois que Ellie terminou de contar a história, Caleb foi chamado.

— Sinto muito que você tenha passado por tudo isso, sra. Chaney — desculpou-se o xerife. — As evidências me levam a crer que você e Benjamin estavam apenas tentando se pro­teger. Parker já foi acusado por outras mulheres. Verei o que o sr. Rentchler tem a dizer e encerraremos o caso.

Ao sair do escritório, Ellie sentiu-se finalmente aliviada. Benjamin não seria culpado pela morte de Winston.

Naquela mesma noite, ao encontrar o irmão sozinho, sentado na varanda, aproximou-se para uma conversa.

— O que você está fazendo?

— Olhando as estrelas.

— Há muitas delas. — Sentindo frio, Ellie passou o xale ao redor dos ombros.

— Você acha que existe o céu?

Por um momento ela considerou a pergunta.

— Após passar a freqüentar a igreja com Caleb e conhecer a família dele, comecei a acreditar em Deus. A existência do céu é algo em que precisarei pensar mais um pouco. Mas por que a pergunta?

— Porque fico imaginando onde nossa mãe está. E Winston. Pessoas como esses dois não iriam para o céu, não é?

— Não somos nós quem temos que decidir isso. Cabe a Deus.

— Imagino que sim. O pastor fala muito sobre o perdão.

— E verdade.

— Você me perdoa?

— Perdoá-lo do quê?

— Por não ter sido capaz de ajudá-la naquela noite, anos atrás.

— Já lhe disse, Ben, você era apenas uma criança. Não havia nada que pudesse ter feito.

— Talvez houvesse algo.

— Você não vai se culpar de nada. Precisa apenas esque­cer. Deixe o passado para trás e aproveite sua vida daqui para a frente.

— É isso o que você está fazendo?

— Sim — ela murmurou, querendo acreditar que fosse verdade.

— Bem, se você pode fazê-lo, eu também posso. Ben levantou-se, os olhos brilhando animados.

— Vou engraxar meus sapatos para amanhã. Boa noite, Ellie. Sozinha, seus pensamentos voltaram-se para os sermões do reverendo Beecher. Guardar ódio no coração não era saudável. Devia-se aprender a perdoar os outros. Mas e quanto a odiar a si mesma? Passara uma vida inteira se recriminando, tão enojada de si que não sabia agir de outro modo. Perguntava-se se não poderia ter agido de maneira diferente naquela noite terrível. Se não poderia ter se protegido.

Aconselhara o irmão a esquecer o passado e seguir adiante. Entretanto ainda não fora capaz de fazê-lo. Como poderia ig­norar algo que marcara sua vida? Talvez nunca conseguisse esquecer a sordidez que a cercara.

Mas talvez conseguisse parar de culpar-se. Talvez apren­desse a viver o momento. Desfrutar desse novo mundo que o destino lhe dera de presente.

Sim, tinha um passado, porém não era necessário revivê-lo. Se Caleb podia amá-la, mesmo depois de conhecer a verdade, então sem dúvida podia parar de se odiar. Claro que não era nenhuma tola a ponto de acreditar ser possível bloquear todas as lembranças imediatamente, como se nada houvesse acontecido. Mas podia seguir adiante.

Apenas uma nuvem parecia toldar agora o firmamento de seu futuro. Se esperava vivenciar um casamento verdadeiro, então devia ser honesta com Caleb em todos os sentidos. A verdade era que o desejava de corpo e alma. Porém não tinha nenhum controle sobre o terror que a dominava quando tentava se entregar.

Seria corajosa o suficiente para abordar o assunto?

Quanto à morte de Winston Parker, o xerife Fox declarou que Benjamin havia agido em legítima defesa e, portanto, não podia ser. acusado de nada.

Caleb deu a notícia à esposa durante o jantar.

Flynn, a quem haviam contado o incidente da forma mais simples possível, vibrou.

— Os meninos na escola estão chamando Benjamin de herói.

— Ele é mesmo um herói — Caleb concordou. Ben corou e comeu uma fatia de torta de maçã.

— Adivinhe quem foi se consultar comigo hoje?

Ellie fitou o marido um instante, antes de dar uma colherada de mingau a Nate.

— Não faço a menor idéia.

— Mabel Connely.

— Ela está doente desta vez?

— Apenas decidiu seguir meu conselho e começar uma dieta.

— Oh, céus! Sua reputação a convenceu de que você sabe o que está falando.

— Não sei se é isso, ou se Mabel deseja poder usar um vestido bonito e justo no casamento da sobrinha, no início da primavera.

— Será possível?

— Milagres acontecem — ele respondeu sorrindo.

— Que ótima notícia. A saúde da sra. Connely sempre o preocupou.

— E verdade. Vocês meninos têm tarefa escolar?

— Sim — Flynn limpou a boca no guardanapo e levantou-se.

— Então ajudem Ellie a tirar a mesa e podem cuidar de seus afazeres.

Caleb levou Nate para a varanda enquanto a esposa terminava de lavar a louça. Depois de instantes, ela foi ao encontro do marido.

— Acho que está na hora de colocar Nate no berço — falou, tomando o bebê no colo.

— Irei acompanhá-la.

Enquanto a mulher trocava Nate, Caleb preparou a mamadeira.

— Sua esposa era muito bonita? — ela perguntou de repente, cobrindo a criança com uma manta bordada.

— Sim. Tinha cabelos loiros e olhos azuis.

— Como Nate.

— Sim.

— Sente muita falta dela?

Uma expressão estranha tomou conta do rosto do médico.

— Senti-me péssimo sobre o que aconteceu. Culpava-me de não ter sido capaz de salvá-la, embora soubesse que nenhum médico poderia ter feito nada.

Ellie permaneceu em silêncio, aguardando que o marido res­pondesse a pergunta que lhe fizera.

— Eu a amava. Pensei que seríamos felizes juntos. Mas nunca a fiz feliz. Ela queria morar numa cidade grande, onde pudesse ter uma vida social intensa. Adorava festas, teatro e jantares. Nunca me perdoou por eu haver vindo trabalhar em Newton e tinha esperanças de me convencer a sair daqui.

— Talvez ela quisesse fugir do pai.

— Talvez. A mãe de minha esposa morreu um ano antes de nos casarmos, porém Leila jamais disse algo negativo a respeito do pai.

— Você acha que ele…

— O quê?

— Seria possível que o próprio pai a tivesse… — Ellie não conseguiu terminar a frase.

— Creio que não. Minha mulher ainda era virgem na nossa noite de núpcias.

— Desculpe-me tê-lo perguntado. A maior parte das pessoas jamais pensaria em algo tão pavoroso.

— É natural que a possibilidade lhe passasse pela cabeça. De nada adiantava sofrer por não ser mais virgem. Se pretendia aceitar a si mesma como era, Caleb teria que aceitá-la também.

— A idéia de fazer amor comigo o repugna agora que você sabe a verdade a meu respeito?

Nate adormecera e os dois estavam falando baixinho. Tomando-a pela mão, ele a fez sentar-se ao seu lado, nos pés da cama.

— Angustia-me saber tudo o que aquele verme lhe fez. Par­tilho seu sofrimento. Mas nada disso muda o que sinto a seu respeito, ou diminui meu desejo. Você não tinha outra escolha na época. E ainda permanece inocente.

— Estou começando a pensar assim também. Mas seja sin­cero. Você realmente não tem nojo de mim?

— Como uma idéia dessas pode lhe ocorrer? — Ele a tocou de leve na face.

— Porque durante muito tempo eu tive nojo de mim. Porém, ao me saber amada por você, passei a me enxergar com novos olhos e já não odeio quem sou.

— Eu te amo.

— Oh, Caleb, eu também te amo. E o desejo. Não quero que continuemos a dormir separados. Mas tenho medo do que aconteceu da última vez que tentamos. Não tenho controle sobre o pânico que me subjuga.

— Não há nada a recear. Daquela vez, eu não sabia o que lhe havia acontecido. Agora sei. Não farei nada para deixá-la desconfortável. E poderemos conversar sobre o assunto. Con­tudo posso esperar até que você esteja pronta.

Como poderia saber que estava pronta a menos que tentasse?

— Por que não instalamos Nate no próprio quarto? — Caleb sugeriu. — Você e eu poderíamos dormir na mesma cama. Quero tê-la perto de mim. Se não se sentir confortável com maiores intimidades, serei paciente. Não há pressa.

As palavras do marido a sossegaram. E queria tanto ficar perto dele!

— Está certo. Em que quarto passaremos a dormir?

— Nate ficará no seu quarto. Amanhã você pode trazer suas coisas para cá. Entretanto hoje dormiremos na sua cama, se a idéia lhe agradar.

Ela concordou e os dois desceram para dizer aos garotos que estava na hora de dormir e trancar a casa. Então Ellie banhou-se no quarto e vestiu a camisola. Logo Caleb batia na porta e entrava.

— Você quer que eu apague o lampião? — o médico indagou antes de começar a despir-se.

— Não.

Ele tirou a camisa e jogou-a sobre uma cadeira, mas pareceu hesitar no momento de livrar-se da calça, como se temesse ofendê-la.

Diante do sorriso da esposa, tirou a calça também e deitou-se, cobrindo a parte inferior do corpo com o lençol. Então cruzou as mãos atrás da cabeça.

Hipnotizada, Ellie estudou as linhas dos braços musculosos, o peito largo, os pêlos escuros logo abaixo do umbigo.

Caleb não percebeu medo nos olhos da esposa e isso o agradava mais do que tudo. Esperava conquistar-lhe a confiança. Fizera tudo ao seu alcance para mostrar-lhe que seu único desejo era amá-la e expressar esse sentimento em toda sua plenitude.

Ao compreender os medos da mulher, tornara-se capaz de destruí-los. Deixara claro que não queria vê-la tomar nenhuma atitude apenas para agradá-lo. A escolha devia ser dela. Se Ellie se entregasse, seria porque o amava, o desejava.

A pobrezinha não tivera nenhuma oportunidade de fazer es­colhas na infância ou adolescência. Não pudera nem sequer pro­teger o próprio corpo quando Winston a violentara e engravidara. Agradava-o que o casamento de ambos pudesse, enfim, oferecer à esposa chance de escolher o caminho que ansiasse trilhar.

— Ellie?

— Sim?

Caleb lhe explicou os métodos de evitar gravidez tão direta e minuciosamente quanto possível. Ela aceitou as informações parecendo fascinada e fazendo perguntas pertinentes.

— Claro que a escolha deve ser sua — ele apressou-se a acrescentar. — Você deve optar por aquele método que a faça sentir-se mais confortável. Eu assumo a responsabilidade de atender ao seu pedido.

Para sua surpresa, Ellie dava a impressão de estar bastante confortável com toda a conversa. Talvez porque a possibilidade de fazer escolhas a tornasse mais segura.

Ele reconhecia que devia sua mulher uma chance de con­trolar o próprio corpo, os próprios desejos, e não iria decepcio­ná-la. Não importava quão difícil seria conter-se, pois a dese­java demais. Conseguiria dominar-se a qualquer custo.

— Pode me tocar — ele falou, sabendo que era observado com atenção. — A qualquer momento… em qualquer lugar que quiser.

— Você gostaria mesmo?

— Sim. Mas iremos nos concentrar naquilo que a agrada, no que a deixa confortável.

— Você tem que gostar do que está acontecendo também.

— Deixarei que você saiba se não estou gostando de algo — Caleb retrucou com um sorriso sensual. — Todavia, se eu fosse você, não apostaria nisso.

Sentada ao lado do marido, Ellie deslizou a ponta dos dedos sobre a pele bronzeada do peito e dos bíceps bem torneados.

— É gostoso — ele murmurou.

Um tanto hesitante, Ellie roçou-o na boca com os lábios.

— Isso também é gostoso.

Sorrindo, ela tornou a beijá-lo, desta vez um pouco mais ousada.

— Existem outros tipos de beijos que ainda não experimentamos.

— Outros tipos? Como assim? — ela perguntou curiosa.

— Envolvendo nossas línguas.

— Línguas?!

— Você poderia gostar.

— Mostre-me.

— Torne a me beijar.

Quando a boca macia tocou a sua, Caleb passou a língua devagar sobre o lábio inferior da esposa, até senti-la ceder à pressão. No princípio Ellie parecia insegura, mas então o aca­riciou no pescoço, o toque deixando-o em fogo.

— Você gostou? — Caleb perguntou quando suas bocas se separaram.

— Sim. Você?

— Oh, sim.

— Gosto de admirá-lo.

— Vá em frente.

— Não posso — ela murmurou, pousando a mão sobre o quadril do marido, porém sem ter coragem de ir adiante.

— Você não é obrigada a nada.

— Eu sei, mas queria muito.

— E se o lençol caísse acidentalmente, você se importaria? Ellie negou, balançando a cabeça de um lado para o outro. Caleb flexionou uma das pernas, o lençol escorregando para o chão. Embora corasse, ela não desviou o olhar.

A esposa o estivera fazendo arder de desejo desde que o beijara pela primeira vez e seu sexo latejava tanto que chegava a doer. Porém mostrava-se imperturbável, como se não ansiasse jogá-la na cama e penetrá-la.

Entretanto, maior do que o impulso de possuí-la, era a von­tade de conquistar-lhe a confiança, de levá-la a acreditar não haver motivos para recear seu corpo.

— Você está pensando que eu poderia machucá-la? — Caleb perguntou, apesar de não perceber nenhum traço de medo no olhar da mulher, apenas fascinação.

— De certa forma, parece possível.

— Dói somente na primeira vez porque a mulher tem um pequenino pedaço de pele que é rompido no ato da penetração. Todavia, não deveria mais doer a partir de então, a menos que a mulher seja forçada. E doerá sempre que for forçada, não importa quantas vezes deite-se com um homem. Somente quando ela está pronta para aceitar o parceiro, não há dor.

— Então não vai doer desta vez?

— Creio que não. Talvez você se sinta um pouco desconfor­tável, porque muito tempo já se passou. Porém será apenas um desconforto inicial. Prometo-lhe.

— Eles ensinam esse tipo de coisa na universidade?

— Em parte, sim.

— Um bando de homens engravatados discutindo intimidades?

— Na verdade, é distribuído material de leitura e quem tiver dúvidas faz perguntas sobre o assunto.

— Tem quem faça perguntas?

— Não tantas quanto você.

Ela riu e pousou a cabeça sobre o peito musculoso, as pernas de ambos entrelaçadas.

— Como vou saber se estou pronta?

— Eu poderia explicar-lhe. — E Caleb, de fato, esclareceu o funcionamento do mecanismo de excitação para ambos os sexos, descobrindo tratar-se de uma das experiências mais eróticas que jamais tivera. Só não sabia se conseguiria sobreviver se Ellie decidisse não estar pronta para seguir em frente.

Mas a esposa dava a impressão de estar ansiosa para pôr em prática o que acabara de ouvir. Enrubescendo, ela tirou a camisola, os olhos fixos no marido.

Os seios lindos e empinados o hipnotizaram. Queria beijá-los, sugar os mamilos eretos. Contendo o impulso, limitou-se a indagar:

— Você quer que eu a toque?

— Sim.

— Mostre-me onde.

Ellie segurou as mãos do marido e as colocou sobre os seios, fechando os olhos por um momento para absorver a carícia.

Sentia-se perdida em sensações mágicas, as reações do pró­prio corpo surpreendendo-a. Caleb a esperou dizer algo, ou dar sinais do que desejava. E assim aconteceu.

Mantendo-se prisioneiro de um controle rígido, ele pensava apenas no prazer da esposa. Não tomaria nenhuma iniciativa que pudesse assustá-la.

O fogo da paixão a consumia. Ellie ardia de desejo por aquele homem. Amava-o com todas as fibras de seu ser e queria de­monstrar esse amor. As palavras e explicações do marido lhe tinham infundido coragem e confiança. O amor fazia a dife­rença. Amá-lo e se saber amada.

Queria consumi-lo. Queria envolvê-lo com seu corpo. Queria criar aquele elo indissolúvel que os mantivesse unidos pelo resto de suas vidas.

— Agora, Caleb — ela implorou. — Possua-me agora.


CAPÍTULO XVIII

Ellie esperava que o marido a pegasse de costas e a pressionasse contra a cama, penetrando-a imediatamente. Em vez disso, Caleb manteve-se fiel à promessa feita. Deitando-se ele de costas, a fez acomodar-se sobre seu corpo.

— É sua vez, querida.

— Não posso… não sei…

— Vou lhe mostrar como. Assim. Fácil.

— Oh, Deus…

— Podemos parar a qualquer momento se doer. — A paixão represada fazia Caleb estremecer. Porém as mãos que a guia­vam eram firmes e gentis. Como sempre.

— Oh, Caleb…

— Está doendo?

— Não. — A palavra soou como um gemido de puro des­lumbramento. — Eu não pensei… eu não sabia…

— Você não tem que pensar em nada. Apenas entregue-se às sensações. Sinta seu prazer.

Ela o fez, desvencilhando-se de qualquer dúvida, afogando-se no amor refletido nos olhos do marido. Caleb lhe explicara cada detalhe da relação física, para que pudesse entendê-la. Todavia ele não fora capaz de lhe explicar a paixão… o amor… Queria chorar diante de tamanha beleza e perfeição.

— Meu amor, o que foi? Alguma coisa errada? Podemos parar agora, se você quiser.

— Não, não é isso. Você não me disse que seria dessa maneira.

— Dessa maneira como? Algo a está incomodando? Diga-me o que é.

— Tudo o que está acontecendo entre nós é maravilhoso demais. E tão bom e ao mesmo tempo… tão frustrante.

— Confia em mim?

Caleb beijou-a até deixá-la sem fôlego. Então, vagarosamen­te, deslizou a mão por entre os corpos unidos de ambos e a massageou no ponto mais íntimo até ouvi-la arfar, ansiosa. Depois, segurando-a pelos quadris, estabeleceu o ritmo das in­vestidas, lentas a princípio, urgentes e enlouquecidas no final.

Ondas de sensações deliciosas a envolveram por inteiro, arrastando-a num turbilhão de prazer tão intenso que chegava a ser quase doloroso. Sentia-se renascer para uma nova vida, o passado transformado em cinzas.

O corpo do marido estremeceu violentamente ao mesmo tempo que o seu. Vendo-o banhado de suor, a respiração ofegante, foi tomada de uma ternura imensa. E quando Caleb ergueu os braços para abraçá-la, pela primeira vez desde que haviam começado a se amar, Ellie entregou-se sem resistência, sentindo-se não pri­sioneira, mas liberta de todos os medos e finalmente em paz.

— Eu te amo, Ellie.

— Acredito em seu amor. E nunca deixarei que você pare de me dizer isso… ou de demonstrá-lo.

Ele a beijou na testa, cheio de carinho, antes de perguntar:

— E então? Você gostou?

— Muito. E você?

— Oh, sim.

Os dois riram, cúmplices, e se abraçaram. Tornaram a rir e a se abraçar antes de adormecerem, exaustos e felizes.

— Tenho uma surpresa para você. — Caleb havia deixado os garotos na escola bem cedinho e voltado para casa.

— Estou gostando de suas surpresas cada vez mais. — Ellie abraçou-se ao marido, insinuante.

— Mas para essa surpresa, você vai ter que estar vestida, portanto, mexa-se. Eu pedi a sra. Swensen para tomar conta de Nate durante toda a manhã.

— Céus! O que você planejou desta vez?

— Você verá. Vamos, apanhe seu casaco que eu pegarei as coisas de Nate.

Dali a meia hora, os dois despediam-se do bebê e partiam, a sra. Swensen parecendo feliz da vida diante da perspectiva de cuidar da criança.

— Acho que ela está praticando para ter seu próprio filho — Caleb comentou com a esposa, ajudando-a a se acomodar na charrete.

— Os Swensen vão ter um bebê?

— Bem, a sra. Swensen marcou uma consulta comigo para a próxima semana, assim ainda não posso dizer com certeza. Todavia tenho minhas desconfianças de que seja isso.

Ellie calou-se por um momento, imaginando como seria ter um filho com a pessoa amada.

— Aonde estamos indo? — indagou, reparando que haviam tomado a estrada.

— Você verá.

Ao perceber que o destino da curta viagem parecia ser Florence, ela foi tomada pelo pânico.

— Estamos indo para Florence? — perguntou aflita, incapaz de conter a crescente apreensão.

— Sim.

— Mas as pessoas irão me reconhecer. Você será alvo de chacotas.

— Talvez. Se a reconhecerem, verão que você tem um marido que a ama agora.

A possibilidade de influir negativamente na reputação do marido a preocupava. Ele, entretanto, não pensava que o fato de haver se casado com uma Foster pudesse atingi-lo. Ou então não se importava com comentários maldosos.

— Essa cidade é meu passado — Ellie murmurou.

— E verdade. Porém parte de seu passado ainda precisa ser resolvido.

Winston estava morto. Caleb lhe tinha ensinado a beleza do amor físico e agora regozijava-se no prazer que podiam dar um ao outro. A única lembrança que ainda possuía o poder de magoá-la era…

Assustada, Ellie retorceu as mãos.

— Aonde você está me levando? O que você está fazendo, Caleb?

— Vamos visitar os Masterson. Eu lhes escrevi uma carta dias atrás. Então vim procurá-los pessoalmente. Ambos estão satisfeitos com a oportunidade de encontrá-la e desejam discutir algumas preocupações com você. E também têm coisas que gostariam de lhe dizer.

Desesperada, Ellie o agarrou pelo braço.

— Não posso fazer isso! No que você estava pensando quando teve essa idéia absurda?

— Estava pensando que você passou anos torturando-se sobre ter tomado, ou não, a atitude certa. E, se estou concluindo corre­tamente, também passou todo esse tempo perguntando-se se devia amar ou odiar a criança concebida em circunstâncias tão terríveis.

Ela corou, reconhecendo a verdade nas palavras do marido.

— Eu estava pensando que para fechar definitivamente a porta do passado, você precisa expor essa ferida e desinfetá-la. Apenas assim a cicatrização ocorrerá.

A analogia médica a teria feito rir se não estivesse tão aterrorizada.

— O que eles pensarão de mim?

— Eles a consideram muito corajosa. E querem lhe falar sobre o bem que você lhes fez.

Pensativa, Ellie estudou as construções a sua frente. Real­mente perguntava-se se havia tomado a atitude certa. Nunca imaginara que um dia poderia vir a descobri-lo. Não queria correr o risco de saber que fizera a coisa errada. Mas Caleb não a levaria a Florence para mostrar-lhe algo que a tornasse infeliz. A surpresa seria boa. Precisava se agarrar à esperança.

Caleb conduziu os cavalos até a casa da qual se lembrava tão bem. Um punhado de flores desabrochava perto da varanda e havia roseiras sob as janelas.

— Os Masterson sabem de nossa vinda?

— Sim. O sr. Masterson trabalha na estação ferroviária, porém ficou em casa essa manhã apenas para esperá-la.

— Oh, Deus, estou apavorada!

— Eu sei. Todavia não mais apavorada do que na noite em que você atirou uma pedra numa dessas janelas, sem saber qual seria o resultado de sua ação.

Caleb tomou as mãos geladas da esposa entre as suas e beijou-as. Então ajudou-a a descer da charrete. Juntos, subiram os degraus da varanda.

Vozes de crianças ecoaram pelo ar e, de repente, Ellie mal podia conter a ânsia de ver a garotinha. Sua garotinha. Dando um passo a frente, ela bateu na porta.

Uma mulher pequenina, de cabelos escuros e sardas, atendeu imediatamente, um sorriso de genuína satisfação ilumi­nando o rosto sereno.

— Dr. Chaney e senhora! Por favor, entrem. Acompanhando a dona da casa, Ellie e Caleb foram condu­zidos a uma saleta simpática e bem mobiliada.

— Sra. Chaney… — a outra começou, sentando-se defronte aos visitantes.

— Meu nome é Ellie.

— Por favor, me chame de Marissa. Você não faz idéia de como estamos felizes com sua vinda.

Um homem entrou na sala. Quase tão alto quanto Caleb, tinha cabelos escuros e olhos muito azuis.

— Esse é meu marido, Jack.

— Como vai? — Nervosa, Ellie apertou a mão do sr. Masterson.

— Seu marido nos contou que você era muito nova quando teve Mary Michael — disse Marissa, indo direto ao assunto.

— É esse o nome dela? — Ellie perguntou, agarrando-se avidamente à primeira informação sobre a menina.

— Sim.

— Você sabia que nós havíamos perdido um filho na ocasião?

— Sim. Ouvi alguém falar sobre isso na cidade. Como a tragédia os abalara.

— Um garotinho com poucos meses de vida — Marissa escla­receu. — A princípio, quando vi o embrulho na varanda, pensei que alguém estivesse nos pregando uma peça cruel. Foram pre­cisos alguns minutos até eu me dar conta de que se tratava de um bebê de verdade. Jack a apanhou no colo e a vi mover-se. Sentia-me confusa. Eu ia levá-la para o xerife. Porém, quando a vi tão pequenina e indefesa, percebi que se tratava de um presente. Um presente do céu que nos foi dado através de você.

— Você a ama? — Ellie indagou, quase sufocada pelas lá­grimas contidas.

— Nós a amamos muito — Marissa respondeu igualmente emocionada. — Tantas vezes quis lhe agradecer. Quis lhe dizer que correspondemos à confiança que nos foi depositada. Mary Michael tem sido sempre fonte constante de alegrias. Nunca poderemos lhe agradecer o suficiente.

— Nós nos indagávamos sobre você — Jack falou, sentan­do-se ao lado da esposa.

— Eu tinha quatorze anos na época, sem dinheiro, sem possibilidade de conseguir comida para sustentar um bebê, ou roupas para vesti-la. Não podia mantê-la comigo. Estava as­sustada e não sabia o que fazer. Durante todos esses anos, jamais cessei de me perguntar se havia tomado a atitude certa.

— Seu marido nos disse que se você a visse e conversasse conosco, talvez seus receios tivessem um fim. Mas agora, es­tamos um pouco preocupados. Tememos que você possa querer levá-la embora, tomá-la de nós.

— Oh, não! — Ellie exclamou, sentindo a dor da mulher que criara sua filha com um amor de mãe. — Eu não faria isso com ela, com vocês. Vocês são a família dela e família é a única coisa que importa.

Marissa sorriu através das lágrimas.

— Você pode visitá-la sempre que desejar. Algum dia, quan­do Mary Michael for madura o bastante para compreender, não nos importaremos que ela saiba sua verdadeira história.

— Ainda não estou preparada para esse momento também. Mas eu gostaria muito de vê-la agora.

— Meninas! — Jack chamou, aproximando-se da janela. — Venham cumprimentar nossos convidados.

Duas garotinhas entraram na sala, vestidas lindamente, os cabelos presos em trancas.

A menor tinha sardas e covinhas. Os olhos tão azuis quanto os do pai.

A maior, possuía uma pele muito branca, cílios escuros e espessos, olhos violeta.

— Esses são o dr. Chaney e esposa. Vieram de Newton — Marissa explicou.

— Alguém está doente, papai? — a menina mais velha per­guntou, tocando o braço de Jack. Seu pai.

— Não, querida. Vieram apenas nos visitar.

— Oh. — Um sorriso tímido iluminou as feições delicadas. — Prazer em conhecê-los.

Os olhos de Ellie se encheram de lágrimas.

— Prazer em conhecê-la também. Mary Michael?

— Sim. Esse é meu nome.

— E essa é Nancy — Marissa apontou para a outra menina.

— Prazer em conhecê-los — Nancy murmurou, agarrando-se à saia da mãe.

Ellie absorveu todos os detalhes a respeito da filha. Sua garotinha era saudável e bem cuidada. Sem dúvida sentia-se segura no seio daquela família. Possuía pais amorosos e uma irmã.

Mary Michael tinha tudo o que ela ansiara para si mesma e para os irmãos.

— Vocês duas são muito bonitas. Gostam de ir à escola? Mary Michael respondeu e as meninas se tornaram o centro das atenções, relatando histórias divertidas sobre os colegas e correndo ocasionalmente para o quarto para trazer algo que haviam feito para mostrar aos visitantes.

Emocionada, Ellie tocou o molde da mão da filha, feito em argila num trabalhinho escolar.

— Talvez você gostasse de dar o molde de sua mão aos Chaney — Marissa sugeriu. — Aposto que eles não têm nada parecido.

Ellie reconheceu no olhar de Marissa o amor e a abnegação que jamais teria sido capaz de apreciar se Caleb não a houvesse ensinado que tais sentimentos existiam no mundo. O gesto de Marissa a tocou mais profundamente do que qualquer um seria capaz de imaginar. Talvez, algum dia…

— Eu gostaria muito — ela murmurou. — Isto é, se vocês, meninas, não se importarem de me dar o molde.

— Podemos fazer outro — Nancy apressou-se a dizer. Depressa, Mary Michael concordou.

Marissa serviu chá e bolinhos, porém Ellie quase não sentia o gosto de nada, sorvendo os detalhes da vida da filha avidamente.

A menina parecia se sentir tão à vontade com Ellie, que a convidou para conhecer o quarto que partilhava com a irmã.

— Se seus pais não se incomodarem — Ellie falou, temendo causar algum embaraço.

— Claro que não — Marissa a sossegou com um sorriso.

— Vou com vocês. — Nancy levantou-se, pronta para acompanhá-las.

— Mas você não ia mostrar ao dr. Chaney como está adian­tada nas suas lições de piano? — Marissa interveio, distraindo a atenção da filha propositadamente.

— Oh, é verdade! — Tomando a mão de Caleb, Nancy pra­ticamente o arrastou para junto do piano colocado num canto da sala.

Em silêncio, Ellie seguiu Mary Michael até o quarto, admi­rando a decoração bonita e alegre. Colchas coloridas cobriam as duas camas e cortinas brancas enfeitavam as janelas envidraçadas.

Uma fileira de bonecas encontrava-se sobre uma prateleira larga e Mary Michael fez questão de dizer o nome de cada uma delas, explicando quais haviam sido presente de Natal, ou de aniversário. Numa gaveta, estavam dezenas de roupinhas. Para as bonecas!

— Foi sua mãe quem as fez? — Ellie perguntou admirada.

— Sim. São bonitas, não são?

Não podia ter sido simplesmente o destino que a guiara até aquela casa numa noite escura, anos atrás. Teria que ter sido a providência divina. Essa criança crescera em segurança, cer­cada de amor, atenção e fartura. Coisas que todas as crianças do mundo mereciam ter. Coisas que Ellie jamais conhecera e tentara proporcionar ao bebê gerado em seu ventre.

Amara a filha o bastante para entregá-la aos cuidados de outros. E os Masterson a amavam o bastante para aceitá-la como se fosse de seu próprio sangue.

Tomara a decisão certa. Graças a Deus.

Ao sair daquela casa, de braço dado com o marido, Ellie descobriu dentro de si uma serenidade nunca experimentada antes. Caleb fitou-a e ela sorriu, amando-o mais do que nunca. O marido lhe tinha dado um outro presente naquele dia: ajudara-a a fechar as portas do passado e a encarar o futuro sem medo.

— Vocês virão nos visitar novamente? — Marissa indagou, acompanhando-os até a charrete.

As meninas estavam agora correndo pelos jardins, alegres e confiantes como apenas as crianças muito amadas podem ser.

— Eu gostaria muito — Ellie retrucou. — Obrigada.

— E trarão os meninos?

— Sim, vamos trazê-los — Caleb prometeu.

Quando a charrete se afastou da casa, Ellie acenou para os Masterson, que continuavam de pé no meio da varanda, os rostos iluminados por um sorriso de puro contentamento.

Já na estrada, ela aconchegou-se ao marido, sentindo-se em paz.

— Que tal a surpresa?

— Provavelmente foi uma das melhores surpresas que al­guém já me proporcionou.

Apaixonada e agradecida, Ellie fitou-o, o coração a ponto de explodir de felicidade. Goldie tinha razão. O dia em que caíra da plataforma da estação havia sido seu grande dia de sorte. Caleb não apenas soubera como curar seu braço, mas também descobrira como tratar das feridas de sua alma e lhe devolver a fé nas pessoas e na vida.

Por causa do amor e da força do marido, fora capaz de enterrar os fantasmas do passado e aprender a acreditar na possibilidade de um futuro feliz. Por causa de Caleb, tinha os irmãos consigo, um bebê recém-adotado, uma confiança reno­vada no ser humano e a aceitação de si mesma.

Sobrevivera ao impensável e começara de novo. Ellie Foster Chaney era uma mulher de personalidade, caráter e energia, com muito amor para dar.

— Eu também vou acabar lhe fazendo uma surpresa qual­quer dia desses — ela falou misteriosa.

— Como assim?

— Se lhe contasse, não seria uma surpresa, não é mesmo? Ela sorriu, sabendo que todos aqueles bons motivos que imaginara ter para não desejar engravidar, agora haviam per­dido a importância.

CHERYL ST. JOHN é o pseudônimo da autora nascida em Nebraska, Cheryl Ludwigs.

Ela trabalhou como diretora de programação e ocupou o cargo de vice-presidente do Heartland RWA. Atualmente é a intermediadora entre a Cadeia de Autores Publicados e o comitê conferencista. Casada, mãe de quatro filhos e avó de vários netos, Cheryl aprecia a vida em família. No seu tempo "livre", corresponde-se com escri­tores e leitores. Ela adoraria receber uma carta sua. Escreva para: Cheryl St. John, P.O. Box 12142, Florence Station, Omaha, NE 68112-0142.

1



Wyszukiwarka

Podobne podstrony:
Lauren St John Afrykanskie przygody Martine 02 Piesn de Lauren St John
Ford Focus ST Line 2016 DE
D W St John See Night Run
Richard de Bury Histoire de St Louis, Roi de France
John St John The Record of the Magickal Retirement of G H Frater O M
Liber DCCCLX John st john
Ford Fiesta ST Line 2016 DE
John St John
St John of the Cross for Begin William Meninger
Lauren St John Afrykanskie przygody Martine 04 Opowiesc Lauren St John
Zabierz mnie do raju Yahrah St John
Reis Dilermando Tempo De Crianca Choro (Rev Fortuna) (Guitar Chitarra)
planilha de controle DO TEMPO DE ESTUDO
Lauren St John Afrykanskie przygody Martine 03 Ostatni Lauren St John
St John Patricia Zwyciezca
st john ambulance email 2009

więcej podobnych podstron