O Colar da Rainha 3 Alexandre Dumas

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III

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Memórias de um médico:

O Colar da Rainha

Volume III

Alexandre Dumas




















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LVII

O devedor e o credor


O cardeal olhava para o seu interlocutor como que embasbacado.
– Então! – disse este – agora que travamos novamente conhecimento, conversemos, se é

da vontade do Sr. cardeal.

– Pois não – redargüiu o prelado tornando um pouco a si – falemos do tal embolso, que...

que...

– Que eu lhe indicava na minha carta, não é isso? Vossa Eminência tem pressa de saber...
– Oh! Era um pretexto, não é verdade? Isto é, presumo eu.
– Não, era uma realidade, e muito séria, afirmo-lho. É-me indispensável efectuar a

cobrança da soma em questão, visto que se trata de nada menos que de quinhentas mil libras, e
que tal quantia não é nenhuma bagatela.

– Não é, por certo, e lembra-me perfeitamente que me emprestou esse dinheiro com a

maior prontidão – disse o cardeal descorando levemente.

– É verdade, sim, senhor, emprestei-lho sem hesitar – disse Bálsamo; – estimo muito

encontrar tão boa memória em príncipe tão poderoso quanto o é monsenhor.

O cardeal sentiu a estocada, e umideceu-lhe a testa um suor frio, que lhe correu pelas

faces.

– Cheguei a persuadir-me – disse ele procurando sorrir – que o homem extraordinário

que se chamava José Bálsamo tivesse levado a dívida consigo para o túmulo, assim como deitara
o meu recibo no fogo.

– Senhor – respondeu o conde com gravidade – a vida de José Bálsamo é tão

indestrutível como esta folha de papel que julgava aniquilada. A morte nada pôde contra o elixir
da vida, assim como o fogo não tem acção sobre o amianto.

– Não percebo ainda – disse o cardeal, julgando que lhe dava uma vertigem.
– Estou convencido de que há-de perceber, senhor – disse Cagliostro.
– Como?
– Quando conhecer a sua assinatura.
E apresentou um papel dobrado ao príncipe, que mesmo antes de o abrir, exclamou:
– O meu recibo!
– Tal qual, o recibo de Vossa Eminência – respondeu Cagliostro com um leve sorriso,

acompanhado de uma cortesia.

– Contudo, havia-o queimado, senhor: eu bem vi as labaredas.
– É verdade que atirei esse papel ao fogo – replicou o conde; – porém, como já lhe disse,

quis o acaso que escrevesse em um pedaço de amianto, em vez de escrever em uma folha de
papel ordinário, de forma que, depois de apagado o lume, achei o recibo intacto sobre as cinzas.

– Senhor – disse o cardeal com certa altivez, porque julgava ver na apresentação do

recibo um sinal evidente de desconfiança – fique certo de que, ainda que não apresentasse esse
papel, eu era incapaz de negar a dívida; portanto, fez mal em me enganar.

– Eu, enganá-lo, monsenhor! Juro-lhe que nunca tal me passou pela idéia.
O cardeal acenou com a cabeça.
– Fez-me acreditar – disse ele – que o título dessa dívida tinha sido aniquilado.
– Para lhe deixar gozar em paz as quinhentas mil libras – respondeu Bálsamo encolhendo

imperceptivelmente os ombros.

– Mas, finalmente, senhor – prosseguiu o cardeal – por que motivo não requisitou nunca

o embolso de uma quantia tão avultada durante esses dez anos que têm decorrido?

– Nunca me deu cuidado, monsenhor, porque sabia que estava em boas mãos. Os

acontecimentos, o jogo, os ladrões, têm-me despojado sucessivamente de todos os meus bens.
Porém, como sabia que este dinheiro estava seguro, fui tendo paciência e esperando até à última

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extremidade!

– E chegou agora a esse extremo?
– Infelizmente assim é!
– De sorte que já não lhe é possível por mais tempo ter paciência nem esperar?
– É-me na realidade impossível – respondeu o conde de Cagliostro.
– Visto isso, pede-me a restituição do seu dinheiro?
– Peço, sim, monsenhor.
– Hoje mesmo?
– Se assim lhe aprouver.
O cardeal permaneceu um instante calado, dando bem a conhecer a aflição em que estava.
Depois, voltando-se para o conde com alguma perturbação na voz, disse:
– Sr. conde, os infelizes príncipes cá da terra não improvisam fortunas com a rapidez com

que podem fazê-lo os nigromantes, que têm, como o senhor, poder sobre os espíritos das trevas e
da luz.

– Oh! Monsenhor – respondeu Cagliostro – acredita que eu viria pedir-lhe esta soma se

não soubesse com antecedência que a possuía?

– Pois eu possuo quinhentas mil libras! – exclamou o cardeal.
– Trinta mil libras em ouro, dez mil em prata, e o resto em notas promissórias.
O cardeal mudou de cor.
– Esta quantia existe acolá dentro daquele armário – continuou Cagliostro.
– Oh! Pois sabe isso?
– Sim, monsenhor, e sei também todos os sacrifícios que fez para reunir tanto dinheiro.

Até ouvi dizer que tinha dado por ele o dobro do seu valor.

– Oh! Assim foi na verdade.
– Porém...
– Porém, o quê?... – exclamou o infeliz príncipe.
– Porém, eu, monsenhor – prosseguiu Cagliostro – há dez anos a esta parte, tenho estado

por mais de vinte vezes a ponto de morrer de fome ou de penúria ao lado deste papel, que
representava para mim o valor de meio milhão; e contudo, para o não incomodar, esperei todo
este tempo. Parece-me pois que, no que respeita a sacrifícios, podemos considerar-nos quites um
para com o outro.

– Quites, senhor! – prosseguiu o príncipe; – oh! Não me diga que ficamos quites, quando

tem sobre mim a superioridade de me haver emprestado tão generosamente uma soma de tanta
importância; quites! oh! não, não! Sou-lhe muito obrigado e hei-de sê-lo eternamente. Somente
desejava que me dissesse, Sr. conde, por que razão nunca me pediu este dinheiro no espaço de
dez anos? Ter-se-me-ia oferecido, no decurso de tanto tempo, muita ocasião de lhe restituir o seu
empréstimo sem me incomodar.

– Ao passo que hoje?... – perguntou Cagliostro.
– Oh! Ao passo que hoje, não o ocultarei – exclamou o príncipe – a restituição que exige

de mim, porque a exige, não é assim?

– Não há dúvida, monsenhor.
– Pois bem, vai causar-me grave transtorno.
Cagliostro fez com a cabeça e com os ombros um movimento que significava: Então que

se há-de fazer, monsenhor?

– Mas o senhor, que tudo adivinha – exclamou o príncipe; – o senhor que sabe ler no

fundo dos corações, e até no fundo dos armários, o que às vezes ainda é pior, há-de saber
provavelmente qual é o motivo por que eu preciso tanto daquele dinheiro, e qual a aplicação
misteriosa e sagrada que tenciono dar-lhe?

– Está enganado, monsenhor – disse Cagliostro com a maior frieza; – nada sei a

semelhante respeito; os meus próprios segredos têm-me acarretado tanto desgosto, tanto engano
e tanta miséria, que já não procuro saber os segredos dos mais, senão quando me interessam

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directamente. Eu tinha empenho em saber se possuía dinheiro ou não, porque tencionava
reclamar de Vossa Eminência esta dívida. Mas logo que soube que tinha a quantia de que eu
precisava, fiquei satisfeito, e pouco me importou saber o destino que pretendia dar-lhe. E demais,
monsenhor, pode ser que, se eu soubesse neste momento a causa do transtorno que esta
restituição lhe ocasiona, ela me parecesse tão séria e tão respeitável, que me induzisse a esperar
ainda por mais algum tempo, e isso, nas minhas actuais circunstâncias, causar-me-ia o maior
prejuízo. Prefiro, pois, ignorá-la.

Estas últimas palavras foram despertar o orgulho e susceptibilidade do cardeal, o qual

exclamou:

– Não julgue, senhor, que eu tenha em vista comovê-lo acerca dos meus embaraços

pessoais; é meu credor: este bilhete representa e garante a minha dívida; está firmado por mim, é
quanto basta. Vai receber as suas quinhentas mil libras.

Cagliostro inclinou-se.
– Eu bem sei – prosseguiu o cardeal desesperado por perder em um minuto o dinheiro

que tanto lhe tinha custado a juntar; – eu bem sei, senhor, que este papel não é senão a confissão
da dívida, e não designa a época do pagamento.

– Queira Vossa Eminência perdoar-me – replicou o conde – mas eu refiro-me à letra do

recibo, e vejo nele escrito:


“Declaro que recebi do Sr. José Bálsamo a soma de quinhentas mil libras, que lhe pagarei

logo que mas peça.”

(Assinado) “Luís de Rohan.”

O cardeal estremeceu dos pés à cabeça; não só tinha esquecido a dívida, senão também os

termos em que redigira a declaração.

– Bem vê, senhor – continuou Bálsamo – que eu não peço uma coisa impossível. Não

pode ser, paciência. Somente me magoa ver que Vossa Eminência pareça ter esquecido que a
soma de que se trata, foi espontaneamente dada por José Bálsamo para livrar de um grande apuro
o Sr. de Rohan, a quem ele não conhecia. Parece-me que foi um rasgo de cavalheiro, que o Sr. de
Rohan, que tão cavalheiro é por todos os modos, deveria ter imitado para a restituição. Porém,
achou que assim não devia ser, não falemos mais em tal; tornarei a levar o meu bilhete. Adeus,
monsenhor.

E Cagliostro, dizendo isto, dobrou o papel com indiferença e dispôs-se a metê-lo na

algibeira.

O cardeal deteve-o.
– Sr. conde – disse ele – nunca um Rohan sofreu que pessoa alguma neste mundo lhe

desse lições de generosidade. E demais, a lição, neste caso, seria de probidade unicamente. Peço-
lhe que me entregue esse bilhete, senhor, para o pagar.

Foi então Cagliostro que pareceu hesitar.
E com efeito parecia que o rosto pálido, os olhos enternecidos, e a mão trémula do

cardeal o comoviam profundamente.

O cardeal, apesar da sua soberba, conheceu a boa disposição em que estava Cagliostro, e

ainda chegou a esperar que o resultado lhe fosse favorável.

Mas de repente o olhar do conde tornou-se severo, o sobrolho encrespou-se-lhe, e

estendeu a mão e o bilhete para o cardeal.

O Sr. de Rohan, se bem que ferido no coração, não hesitou um instante. Foi direito ao

armário indicado por Cagliostro, e tirou dele um maço de notas promissórias da administração
das águas e matas; depois apontou para uns poucos de sacos contendo dinheiro em prata, e
puxou por uma gaveta cheia de ouro.

– Sr. conde – disse ele – eis aqui as suas quinhentas mil libras e respectivos juros, isto na

hipótese de que não exija juros compostos, porque nesse caso ainda a soma será mais

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considerável. Vou chamar o meu mordomo para que faça a conta, e dar-lhe-ei as seguranças
necessárias para o pagamento, pedindo-lhe, contudo, que me conceda alguma espera.

– Senhor – respondeu Cagliostro – eu emprestei quinhentas mil libras ao Sr. de Rohan. O

Sr. de Rohan deve-me quinhentas mil libras e nada mais. Se eu tencionasse receber juros, tê-los-ia
estipulado no recibo. Sou mandatário, ou herdeiro, se quiser de José Bálsamo porque José
Bálsamo morreu realmente, e como tal não devo receber senão a soma mencionada na
declaração; paga-ma, recebo-a e agradeço-lha, pedindo-lhe ao mesmo tempo que aceite os meus
respeitosos cumprimentos. Levo pois as notas, senhor, e como careço muito da soma toda para
hoje mesmo, aqui mandarei buscar o ouro e a prata, que lhe rogo conserve à minha disposição.

E acabando de proferir estas palavras, para as quais o cardeal não achou resposta,

Cagliostro meteu o maço de notas no bolso, cumprimentou respeitosamente o príncipe, em cujas
mãos deixou o recibo, e saiu.

– Deste transtorno só eu sofrerei as conseqüências – suspirou o Sr. de Rohan, depois da

saída de Cagliostro – visto que a rainha se acha habilitada para pagar, e a ela, ao menos, não lhe
há-de aparecer um José Bálsamo a reclamar inesperadamente uma dívida atrasada de quinhentas
mil libras.

LVIII

As contas do ministro


Era na antevéspera do primeiro pagamento indicado pela rainha. O Sr. de Calonne não

tinha ainda cumprido as suas promessas. As suas contas não estavam assinadas pelo rei.

É porque o ministro havia tido muito que fazer. Tinha-se esquecido um pouco da rainha,

e ela, da sua parte, não pensava que fosse da sua dignidade avivar a memória do ministro das
finanças. Ele tinha prometido, ela esperava.

Entretanto, começava de mostrar-se inquieta e tratava de informar-se, procurando meios

de falar ao Sr. de Calonne sem comprometer-se, quando lhe trouxeram este bilhete do ministro:


“Esta tarde, o negócio de que Vossa Majestade fez a honra de encarregar-me, há-de ser

assinado em conselho, e os fundos serão entregues à rainha amanhã pela manhã.”


A alegria assomou de novo aos lábios de Maria Antonieta. Não pensou em mais nada,

nem sequer no dia seguinte, que tão pesado lhe era.

Em passeio, procurou as ruas mais isoladas, como para separar os seus pensamentos de

todo o contacto material e mundano.

Passeava ainda com a Srª. de Lamballe e o conde de Artois, que lhe viera ao encontro,

quando el-rei, depois de jantar, entrou na sala do conselho.

El-rei estava de humor difícil. As notícias da Rússia eram más. Perdera-se uma nau no

golfo de Leão. Algumas províncias recusavam-se a pagar o imposto. Um belo mapa-múndi,
polido e envernizado pelo próprio rei, tinha estalado com o calor, e a Europa achava-se cortada
em duas partes na junção de 30° de latitude com a 55° de longitude. Era dia aziago para Sua
Majestade, que a todos mostrava mau modo, até ao Sr. de Calonne.

Debalde este apresentou com ar risonho a sua bela pasta dourada e perfumada. O rei,

silencioso e pensativo, começou a rabiscar num pedaço de papel branco uns traços cruzados em
todas as direcções, o que significava tempestade, do mesmo modo que os homens e os cavalos
significavam bom tempo.

A mania do rei era desenhar durante o conselho. Luís XVI não gostava de olhar de frente

para as pessoas, era tímido. Uma pena na mão dava-lhe firmeza e reflexão. Enquanto ele se
ocupava assim, o orador podia desenvolver os seus argumentos; o rei, erguendo um olhar furtivo,
colhia-lhe um pouco de fogo nos olhos, quanto bastasse para não esquecer o homem, ajuizando

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da idéia.

Se tinha de falar, e não falava mal, o desenho tirava todo o ar de pretensão ao discurso, e

não precisava fazer gestos: podia interromper-se ou zangar-se à vontade, que os traços no papel
substituíam em caso de necessidade os ornamentos da palavra.

O rei pegou portanto na pena, segundo o seu costume, e os ministros começaram a

leitura dos projectos ou das notas diplomáticas.

O rei não disse palavra, deixou passar a correspondência estrangeira, como se não

entendesse palavra nesse género de trabalho.

Mas logo que se falou do relatório das contas do mês, levantou a cabeça.
O Sr. de Callone acabava de abrir uma memória relativa ao empréstimo projectado para o

ano seguinte.

O rei começou de fazer freneticamente os seus riscos no papel.
– Sempre empréstimos – disse ele – sem saber como se hão-de pagar; pois é um

problema que tem de ser resolvido, Sr. de Calonne.

– Senhor, um empréstimo é uma sangria que se faz numa nascente; a água desaparece

daqui para abundar acolá. Mais, vê-se aumentada pelas aspirações subterrâneas. Por isso, em lugar
de dizer: como pagaremos? Deveríamos dizer: como e sobre que pediremos emprestado? O
problema de que fala Vossa Majestade não é saber como se há-de pagar, mas sim como se há-de
receber.

O rei fez os riscos muito grossos, freqüentes e rápidos; mas não disse palavra; as feições

respondiam por ele.

Tendo o Sr. de Calonne exposto o seu plano com aprovação dos seus colegas, o rei pegou

no projecto e assinou-o, soltando um suspiro.

– Agora que temos dinheiro – disse o Sr. de Calonne rindo – vamos gastá-lo.
O rei olhou para o ministro, fazendo uma visagem, e dos riscos cruzados fez um enorme

borrão de tinta.

O Sr. de Calonne deu-lhe uma folha, composta de pensões, gratificações, auxílios,

dádivas, soldos, etc.

O trabalho era curto, bem circunstanciado. O rei foi voltando as páginas e procurou o

total.

– Um milhão e cem mil libras em tão poucas adições! Como pode isso ser?
E descansou a pena.
– Leia, senhor, leia, e digne-se reparar que nesse milhão e cem mil libras há uma adição de

quinhentas mil.

– Que adição, Sr. ministro?
– O adiantamento feito a Sua Majestade a rainha.
– À rainha!... – exclamou Luís XVI. – Quinhentas mil libras à rainha! Oh! Senhor, isso

não é possível.

– Perdão, senhor; é exactamente o que aí está.
– Quinhentas mil libras à rainha! – repetiu o rei. – Há-de haver engano. A semana

passada... Não, na semana antes, mandei pagar o trimestre a Sua Majestade.

– Senhor, se a rainha precisou de dinheiro, e é sabido como Sua Majestade o gasta, não

acho muito extraordinário...

– Não, não! – exclamou el-rei, que sentiu desejos de fazer falar da sua economia e de

granjear alguns aplausos à rainha quando ela fosse ao teatro; – a rainha não quer semelhante
soma, Sr. de Calonne. A rainha disse-me que uma nau era preferível a umas jóias. A rainha pensa
como eu, que se a França faz empréstimos para dar de comer aos seus pobres, nós, os ricos,
devemos emprestar à França. Portanto, se a rainha precisa de semelhante soma, mais
merecimento haverá em esperar; e asseguro-lhe que ela há-de esperar.

Os ministros aplaudiram muito este rasgo patriótico do rei, que o divino Horácio, naquele

momento, não teria chamado Uxorius.

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Só o Sr. de Calonne, que sabia do aperto em que estava a rainha, insistiu para que não

fosse riscada aquela verba.

– Na verdade – disse o rei – interessa-se mais por nós, do que nós mesmos. Sossegue, Sr.

de Calonne.

– A rainha, senhor, há-de acusar-me de ter sido pouco zeloso no seu serviço.
– Eu advogarei a sua causa perante ela.
– A rainha, senhor, quando pede, é porque a necessidade a obriga.
– A rainha pode ter necessidades, mas são decerto menos imperiosas do que as dos

pobres, e ela convirá nisso primeiro que ninguém.

– Senhor...
– Está decidido – disse o rei com resolução.
E pegou na pena das rabiscas.
– Risca essa verba, senhor? – disse o Sr. de Calonne consternado.
– Risco – respondeu majestosamente Luís XVI. – E parece-me estar daqui ouvindo a voz

generosa da rainha agradecer-me por haver tão bem compreendido o seu coração.

O Sr. de Calonne mordeu os beiços. Luís, contente com este sacrifício pessoal heróico,

assinou tudo o mais que lhe foi apresentado com cega boa-fé.

E desenhou uma bela zebra cercada de zeros, repetindo:
– Ganhei esta tarde quinhentas mil libras, belo dia para um rei, Calonne; dará esta boa

nova à rainha verá, verá!

– Ah! Meu Deus! Senhor – murmurou o ministro – Deus me livre de privar Vossa

Majestade do prazer dessa confissão. A cada qual o que lhe pertence.

– Pois sim – redargüiu o rei. – Levantemos a sessão. Basta de trabalho, e muito

principalmente quando tem sido trabalho bom. Ah! Aí vem a rainha; vamos ao seu encontro,
Calonne?

– Senhor, peço perdão a Vossa Majestade, mas esperam-me no ministério.
E fugiu pelo corredor, o mais depressa que pôde.
O rei caminhou apressado e alegremente para Maria Antonieta, que vinha pelo vestíbulo,

cantando, e encostada ao braço do conde de Artois.

– Minha senhora – disse ele – deu um grande passeio, não é verdade?
– Excelente, senhor; e Vossa Majestade trabalhou muito?
– Muito; ora julgue-o por si; ganhei-lhe quinhentas mil libras.
– Calonne cumpriu a sua palavra – pensou a rainha.
– Sabe – prosseguiu Luís XVI – que Calonne a tinha incluído em folha com uma verba de

meio milhão?

– Ah! – disse Maria Antonieta sorrindo.
– E eu... risquei essa verba. São quinhentas mil libras que ganhei com um traço de pena.
– Como, riscou? – disse a rainha tornando-se pálida.
– Risquei-a totalmente; isso vai fazer-lhe muito bem. Boa noite, minha senhora, boa

noite.

– Senhor! Senhor!
– Tenho muita fome. Retiro-me. Ganhei bem a minha ceia, não é verdade?
– Senhor, ouça-me.
Mas Luís XVI fugiu, correndo aos saltinhos, e satisfeito do seu gracejo, deixando a rainha

pasmada, muda e consternada.

– Meu irmão, mande chamar o Sr. de Calonne – disse ela enfim ao conde de Artois – há

nisto alguma zombaria.

Naquele momento traziam à rainha este bilhete do ministro:

“Vossa Majestade terá sabido que el-rei negou o crédito. Este procedimento é

incompreensível, minha senhora, e retirei-me do conselho doente e profundamente magoado.”

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– Leia – disse ela dando o bilhete ao conde de Artois.
– E há pessoas que dizem que dilapidarmos a fazenda, minha irmã! – exclamou o

príncipe. – Isto é um procedimento...

– De marido – murmurou a rainha. – Adeus, meu irmão.
– Receba os meus pêsames, querida irmã; fico prevenido, porque tencionava pedir

amanhã certa soma!

– Que me vão buscar a Srª. de La Motte – disse a rainha para a Srª. de Misery, depois de

longa meditação; – que a vão buscar onde estiver, e que venha imediatamente.

LIX

Maria Antonieta, rainha.

Joana de La Motte, mulher


O correio, que foi expedido para Paris à Srª. de La Motte, achou a condessa, ou antes não

a achou, em casa do cardeal de Rohan.

Joana fora fazer uma visita a Sua Eminência, jantara e ceara lá, e estava conversando com

ele, quando o correio foi ali perguntar se a Srª. condessa estava em casa do Sr. de Rohan.

O guarda-portão, como homem hábil, respondeu que Sua Eminência tinha saído, e que a

Srª. de La Motte não estava no palácio, mas que nada havia mais fácil do que dar-lhe o recado da
rainha, porque provavelmente não deixaria de vir ao palácio em pouco tempo.

– Que vá imediatamente a Versalhes, o mais depressa que puder – disse o correio. E

partiu tendo semeado o mesmo aviso em todos os supostos domicílios da nómada condessa.

Mas apenas partiu o mensageiro, o guarda-portão, dando o seu recado sem ir muito

longe, mandou por sua mulher prevenir a Srª. de La Motte, que estava no quarto do Sr. de Rohan,
onde os dois associados filosofavam sobre a instabilidade das grossas somas de dinheiro.

A condessa, pelo aviso, conheceu que o caso era de urgência. Pediu dois bons cavalos ao

cardeal, o qual a conduziu a uma berlinda sem brasão, e enquanto ele fazia muitos comentários
relativos à mensagem, a condessa ia tão depressa que, uma hora depois, entrava no palácio de
Versalhes.

Alguém esperava por ela e foi sem demora conduzida à presença de Maria Antonieta.
A rainha, recolhida na sua câmara, tinha apenas a acompanhá-la a Srª. de Misery, que

estava lendo no pequeno gabinete.

Maria Antonieta bordava ou fingia que estava bordando, prestando desassossegadamente

o ouvido a todos os rumores que vinham de fora, quando Joana entrou apressadamente.

– Ah! – exclamou a rainha – é a condessa, ainda bem! Uma notícia... Condessa.
– Boa, minha senhora?
– Julgue-a por si. El-rei recusou as quinhentas mil libras.
– Ao Sr. de Calonne?
– A toda a gente. O rei já não quer dar dinheiro. São coisas que só a mim sucedem.
– Santo Deus! – murmurou a condessa.
– É incrível, não é verdade, condessa? Recusar, riscar a verba já escrita! Enfim, não

falemos mais do que não tem remédio. Vai voltar depressa a Paris.

– Sim, minha senhora.
– E dizer ao cardeal, pois que tanta dedicação empregou para me servir, que aceito as suas

quinhentas mil libras até ao próximo trimestre. Bem sei que isto é egoísmo da minha parte,
condessa! Mas é preciso... Eu abuso!

– Ai, minha senhora – murmurou Joana – estamos perdidos. O Sr. cardeal já não tem

dinheiro.

A rainha deu um salto, como se acabasse de ser ofendida ou insultada.

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– Já não tem... Dinheiro!... – balbuciou ela.
– Minha senhora, apresentaram ao Sr. de Rohan uma dívida com que ele já não contava.

Era uma dívida de honra, ele pagou-a.

– Quinhentas mil libras?
– Sim, minha senhora.
– Mas...
– Era o seu último recurso... Já não tem dinheiro!
A rainha parou como que estonteada com esta desgraça.
– Estou bem acordada, não é verdade? – disse ela. – É na verdade a mim que sucedem

todos estes dissabores? Como pode ser que o Sr. de Rohan já não têm dinheiro, condessa?

– Há-de haver hora e meia que ele me estava contando esse desastre, minha senhora. E

esse desastre é tão pouco reparável, que as quinhentas mil libras eram o que se chama o fundo da
gaveta.

A rainha encostou a fronte às mãos.
– É preciso, portanto, tomar um grande partido – disse ela.
– Que vai a rainha fazer? – pensou Joana.
– Vê, condessa, é uma terrível lição, que me castigará por ter feito às escondidas de el-rei

uma acção de medíocre importância, de medíocre ambição ou de mesquinho desvanecimento. Eu
não tinha necessidade de semelhante colar, confesso-o!

– É verdade, minha senhora; mas se uma rainha consultasse as suas necessidades e os

seus gostos...

– Quero primeiro que tudo consultar a minha tranqüilidade, a felicidade da minha casa.

Foi bastante este primeiro desgosto para me provar a quantos aborrecimentos eu ia expor-me,
quanto era fecunda em desgraças a estrada que eu tinha escolhido. Renuncio a ela. Quero
proceder franca, livre e simplesmente.

– Senhora!
– E para começar, sacrifiquemos a nossa vaidade no altar do dever, como diria Dorat.
E suspirando, murmurou:
– E, contudo, o colar era bem bonito!
– Ainda é tempo, minha senhora, o colar equivale a dinheiro pronto.
– Desde este momento já não é para mim mais do que um monte de pedras, e às pedras

faz-se o que lhe fazem as crianças depois de lhes terem servido de divertimento, olham-se com
indiferença, atiram-se fora, esquecem-se.

– Que pretende Vossa Majestade dizer?
– Digo, querida condessa, que vai imediatamente levar o adereço aos ourives Boehmer &

Bossange.

– Restituí-lo?
– Exactamente.
– Mas, minha senhora, Vossa Majestade deu duzentas e cinqüenta mil libras de sinal.
– É mais uma soma de duzentas e cinqüenta mil libras que eu ganho; agora eis-me de

acordo com as contas de el-rei.

– Minha senhora! Minha senhora! – exclamou a condessa – perder assim um quarto de

milhão! Porque pode acontecer que os ourives apresentem dificuldades em restituir um dinheiro
de que já terão disposto.

– Já conto com isso e abandono-lhes o tal sinal, com a condição de desmancharem a

venda. Desde que antevejo esse fim, condessa, sinto-me mais aliviada. Com este colar vieram aqui
instalar-se os cuidados, as penas, os receios, as suspeitas. Nunca estes brilhantes teriam fogo
bastante para riscar todas as lágrimas, que sinto pesarem em nuvens sobre mim. Condessa, leve já
daqui esse adereço. O negócio é muito bom para os ourives. Duzentas e cinqüenta mil libras de
luvas são um belo negócio, era talvez o que eles lucravam comigo, e ficam ainda assim com o
colar. Espero que se não hão-de queixar, e que ninguém saberá disto.

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– Mas o Sr. de Rohan, minha senhora?
– O cardeal só procedeu assim para me servir. Dir-lhe-á que o meu gosto é não ter o

colar, e se ele for homem de espírito, há-de compreender-me; se é realmente um bom padre, há-
de aprovar e animar o meu sacrifício.

E dizendo estas palavras, a rainha estendia para Joana o adereço. Esta repeliu-o

brandamente.

– Minha senhora – disse ela – por que não quer ainda tentar obter uma espera?
– Pedir... não!
– Eu não disse pedir; disse obter, minha senhora – respondeu a condessa.
– Pedir é humilhar-me, condessa; obter é ser humilhada. Eu concebo que alguém se possa

humilhar por uma pessoa amada, para salvar um ente vivo, fosse ele um cão; mas para ter o
direito de guardar essas pedras, que queimam como carvões acesos sem serem mais luminosas
nem tão duradouras, isso, condessa, é uma coisa que nenhuma pessoa, nenhum conselho humano
poderão nunca decidir-me a fazer. Nunca! Leve o adereço, minha querida, leve-o!

– Mas pense, minha senhora, na bulha que os ourives vão fazer com isto, ainda que só a

façam por civilidade ou por deplorar a rainha. A recusa de Vossa Majestade há-de comprometê-la
tanto como a sua aquiescência. Toda a gente há-de saber que teve os brilhantes em seu poder.

– Ninguém o saberá. Eu não devo nada aos ourives; não os tornarei a receber; não é

muito que eles se calem pelas minhas duzentas e cinqüenta mil libras; e os meus inimigos, em
lugar de dizerem que gasto milhão e meio em brilhantes, só poderão dizer, que animo o comércio
com o meu dinheiro. É menos desagradável. Leve, condessa, leve, e agradeça ao Sr. de Rohan,
em meu nome, os seus bons desejos.

E, por um movimento imperioso, a rainha deu o adereço a Joana, que não foi sem certa

comoção que sentiu nas mãos o peso das preciosas jóias.

– Não tem tempo que perder – prosseguiu a rainha; – quanto menos receios tiverem os

ourives, mais certas estaremos do segredo; vá depressa, e que ninguém veja o adereço. Passe
primeiro por sua casa, porque uma visita a Boehmer, a estas horas, poderia despertar a
curiosidade da polícia, que decerto se ocupa do que aqui se passa; depois, quando a sua demora
tiver sossegado os espiões, vá a casa dos joalheiros, e traga-me o recibo desses senhores.

– Sim, minha senhora, assim o farei, visto que Vossa Majestade o ordena.
Fechou o adereço e escondeu-o debaixo do mantelete, tomando todo o cuidado para que

nada denunciasse o volume da caixa, e meteu-se na carruagem com todo o zelo, que reclamava a
augusta cúmplice da sua acção.

Primeiramente, para obedecer, fez-se conduzir a sua casa, e mandou embora a carruagem

do Sr. de Rohan, a fim de que o cocheiro que a conduzira nada percebesse. Depois, fez-se despir
para tomar um trajo menos elegante, e mais próprio para essa excursão nocturna.

A aia vestiu-a rapidamente e observou que a condessa estava pensativa e distraída durante

essa operação, a que geralmente uma mulher da corte prestava o mais atento cuidado.

Joana não pensava efectivamente no vestuário; a sua reflexão recaía numa idéia estranha

inspirada pela ocasião.

Perguntava a si mesma se o cardeal não cometia um grande erro deixando a rainha

restituir o adereço, e se o erro cometido não iria prejudicar a fortuna que o Sr. de Rohan sonhava,
e que podia lisonjear-se de alcançar, participando dos pequenos segredos da rainha.

Proceder conforme a ordem de Maria Antonieta, sem consultar o Sr. de Rohan, não era

faltar aos principais deveres da associação? Não tendo o cardeal mais recursos, não preferiria
vender-se a si mesmo a deixar a rainha privada de um objecto que tanto cobiçara?

– Não posso deixar de consultar o cardeal – disse Joana consigo.
– Um milhão e quatrocentas mil libras! – acrescentou ela no seu pensamento; – como

poderá ele arranjar semelhante quantia?

Depois, voltando-se de repente para a aia, disse num tom imperioso:
– Retire-se, Rosa!

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A aia obedeceu e a Srª. de La Motte continuou o seu monólogo mental.
– Que soma! Que fortuna! Que radiosa vida, e como toda a felicidade, todo o brilho que

uma tal soma pode dar são bem representados pela pequena serpente de pedras, que reluz neste
estojo.

Abriu a caixa e queimaram-se-lhe os olhos ao contacto daqueles rios de chama. Tirou o

colar de cima do cetim, enrolou-o nos dedos, e fechou-o nas suas mãozinhas, dizendo:

– Um milhão e quatrocentas mil libras nestas mãos! Porque este colar vale esse dinheiro e

hoje mesmo os ourives dariam por ele esta soma!

Estranho capricho do acaso, que permite a Joana de Valois, mendiga e obscura, tocar

com a sua mão a mão de uma rainha, que é a primeira do mundo, e possuir nas suas mãos, é
verdade que por uma hora, um milhão e quatrocentas mil libras, uma soma que nunca anda
desacompanhada neste mundo, e que sempre fazem escoltar por guardas bem armados ou por
garantias que nunca podem ser menores, em França, do que as de um cardeal e de uma rainha.

– Tudo isto entre os meus dez dedos!... Como é pesado e como é leve!... Para levar em

ouro, metal precioso, o valor destas jóias, seriam precisos dois cavalos: para o levar em notas...
mas as notas às vezes não as pagam, é preciso assinar, verificar! E daí, uma nota é papel: o fogo, o
ar, a água podem destrui-la. Uma nota não tem curso em todos os países; denuncia a sua origem,
descobre o nome do seu autor, o nome do seu portador. Depois de certo tempo uma nota pode
perder parte do seu valor, ou mesmo o seu valor todo. Os brilhantes, pelo contrário, são uma
substância dura, que resiste a tudo, e que todo homem conhece, aprecia, admira e compra em
Londres, em Berlim, em Madrid, no Brasil até. Todos sabem o que é um brilhante, e muito
principalmente um brilhante de uma água e de um lapidado como estes! Como são belos! Como
são admiráveis! Que perfeição no todo e em separado! Cada um deles destacado vale talvez mais,
guardadas as proporções, do que valem todos juntos.

“Mas em que estou eu pensando? – disse ela de repente; – tomemos depressa um partido,

ou ir procurar o cardeal, ou restituir o colar a Boehmer, conforme a rainha mo ordenou.”

Levantou-se, segurando sempre nas mãos os brilhantes que se iam aquecendo e

resplandeciam.

– Vão portanto voltar para casa do frio joalheiro, que os há-de pesar e depois polir com a

sua escova. Eles que podiam brilhar no colo de Maria Antonieta... Boehmer há-de começar por
zangar-se, depois há-de sossegar, lembrando-se que tem o lucro e conserva a fazenda... Ah! Ia-me
esquecendo! Em que termos há-de ser redigido o recibo do ourives? Isto é objecto de gravidade,
sim, é uma redacção em que deve haver muita diplomacia. É preciso que o recibo não
comprometa Boehmer, nem a rainha, nem o cardeal, nem a mim. Nunca poderei redigir sozinha
semelhante acto. Preciso conselho.

“O cardeal... Oh! Não! Não!... Se o cardeal me tivesse mais amor, se fosse mais rico, se

me desse estes brilhantes...”

Assentou-se no sofá, com os brilhantes sempre enrolados na mão, a cabeça ardente, cheia

de pensamentos confusos, que por vezes a aterravam, e que repelia com uma energia febril.

De repente os olhos tornaram-se-lhe sossegados, mais fixos, mais demorados numa

imagem de uniforme pensamento, e não percebeu que os minutos passavam, que tudo nela
tomava um peso para sempre inabalável! Que semelhante àqueles nadadores que pousam o pé no
lodo do rio, cada movimento que ela fazia, para se desembaraçar, a abismava cada vez mais. Uma
hora se passou naquela muda contemplação de um fim misterioso.

Depois do que levantou-se, empalidecida como a sacerdotisa pela inspiração, e tocou a

campainha para chamar a sua aia.

Eram duas horas da madrugada.
– Vá buscar-me uma carruagem – disse ela – ou uma cadeirinha, se não houver

carruagem.

A criada achou uma carruagem, que estacionava na rua Velha do Templo.
A Srª. de La Motte meteu-se dentro sozinha.

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Dez minutos depois, parava a carruagem à porta do panfletário Réteau de Villette.

LX

O recibo de Boehmer e a obrigação da rainha


O resultado da visita nocturna feita ao panfletário Réteau de Villette apareceu unicamente

no dia seguinte. E eis aqui em que termos:

Às sete horas da manhã, Joana de La Motte mandou à rainha uma carta, que continha o

recibo dos ourives.

Esta peça importante era assim concebida:

“Nós, abaixo assinados, declaramos ter novamente recebido o colar de brilhantes

primitivamente vendido à rainha pela soma de um milhão e seiscentas mil libras. Não tendo os
brilhantes agradado a Sua Majestade, fomos por ela mesma indemnizados do nosso trabalho e
desembolso, pela cessão de uma soma de duzentas e cinqüenta mil libras, que já nos havia dado
por conta da compra.”

(Assinados) Boehmer & Bossange.

A rainha, tranqüila então sobre o negócio que tanto a inquietara, guardou o recibo numa

gaveta e não pensou mais em tal coisa.

Mas por uma estranha contradição com esse recibo, os ourives Boehmer & Bossange

receberam dois dias depois a visita do cardeal de Rohan, que estava inquieto sobre o pagamento
da primeira prestação convencionada entre os vendedores e a rainha.

O Sr. de Rohan encontrou Boehmer na sua casa do cais da Escola. Desde aquela manhã,

em que se vencia a primeira letra, se tivesse havido demora, ou recusa, reinava decerto o
desassossego em casa dos ourives.

Mas, pelo contrário, tudo respirava sossego em casa de Boehmer, e o Sr. de Rohan

estimou achar os criados de boa cara e ver que o cão da casa lhe fazia festas e dava ao rabo.
Boehmer recebeu o seu ilustre freguês com mostras da maior satisfação. O cardeal começou por
dizer:

– Hoje é o dia do primeiro pagamento. Sua Majestade pagou?
– Não, monsenhor – respondeu Bohemer. – Sua Majestade não pôde dar-nos dinheiro.

Bem sabe que o rei negou um crédito ao Sr. de Calonne. Toda a gente se tem ocupado disso.

– Sim, Boehmer, é uma coisa em que toda a gente fala, e é exactamente por isso que eu

vim.

– Mas – prosseguiu o ourives – Sua Majestade é excelente e cheia de boa vontade. Não

podendo pagar, garantiu a dívida, e era quanto nos bastava.

– Ah! Ainda bem! – exclamou o cardeal; – garantiu a dívida, diz o senhor? Muito bem;

mas... Como?

– Do modo mais simples e mais delicado – redargüiu o ourives; – de um modo

perfeitamente real.

– Por intervenção daquela divina condessa?
– Não, monsenhor, não. A Srª. de La Motte nem sequer apareceu nisto, e é o que muito

nos lisonjeou ao Sr. Bossange e a mim.

– Não apareceu! A condessa não apareceu? Acredite, Sr. Bohemer, que ela entra nisto de

algum modo. Toda a inspiração boa dimana da condessa. Nada tira a Sua Majestade,
compreende?

– Vai julgar quanto Sua Majestade foi boa e delicada para connosco. Espalharam-se

boatos de ter el-rei recusado as quinhentas mil libras, e nós escrevemos à Srª. de La Motte.

– Quando?

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– Ontem, monsenhor.
– Que respondeu ela?
– Vossa Eminência não o sabe? – disse Boehmer com um imperceptível tom de

respeitosa familiaridade.

– Não; há três dias que não tenho a honra de ver a Srª. condessa – redargüiu o príncipe

com soberania.

– Pois bem, senhor, a Srª. de La Motte respondeu unicamente esta palavra: Esperem!
– Por escrito?
– Não, monsenhor, verbalmente. A nossa carta pedia à Srª. de La Motte que solicitasse de

Vossa Eminência uma audiência com o fim de prevenir a rainha de que estava próximo o
pagamento.

– A palavra esperem era naturalíssima – redargüiu o cardeal.
– E por isso esperámos, Sr. cardeal, e ontem à noite recebemos, por um correio

misterioso, uma carta da rainha.

– Uma carta? Aos senhores?
– Ou antes uma obrigação de dívida, em boa e devida forma, senhor.
– Vejamos! – disse o cardeal.
– Oh! Mostrar-lha-ia, se não tivéssemos jurado não a mostrar a pessoa alguma.
– E por quê?
– Porque é esse o desejo da rainha, senhor; Sua Majestade recomenda-nos o maior

segredo.

– Ah! Isso é outro caso, e são muito felizes por terem cartas da rainha.
– Por um milhão e trezentas mil libras, senhor – disse o ourives motejando – pode a

gente ter...

– Nem dez nem cem milhões pagam certas coisas, Sr. Boehmer – redargüiu severamente

o prelado. – Mas enfim, estão bem garantidos?

– O mais possível.
– A rainha reconhece a dívida?
– Em boa e devida forma.
– E obriga-se a pagar...
– Quinhentas mil libras daqui a três meses; o resto durante o semestre seguinte.
– E... os juros?
– Oh! monsenhor, uma única palavra de Sua Majestade os garante. – Façamos, acrescenta

Sua Majestade com a sua bondade, façamos este negócio entre nós; entre nós, Vossa Eminência
compreende bem a recomendação; decerto que se não arrependerão disso. E assinou! Desde aí,
monsenhor, bem deve conhecer que para mim, assim como para o meu sócio, é negócio de
honra.

– Estou quite para com os senhores – disse o cardeal encantado; – em breve faremos

outro negócio.

– Cada vez que Vossa Eminência se dignar honrar-nos com a sua confiança.
– Mas notem ainda que nisto anda a mão daquela amável condessa...
– Estamos na verdade muito obrigados à Srª. de La Motte, monsenhor, e já

determinámos, o Sr. de Bossange e eu, provar-lhe que somos gratos à sua bondade, quando o
colar, integralmente pago, nos tiver habilitado com dinheiro de contado...

– Caluda! Caluda! – disse o cardeal – o senhor não me compreendeu.
E retirou-se para a carruagem, escoltado pelas respeitosas cortesias de toda a gente da

casa.

Pode-se agora levantar a máscara. Para ninguém ficou o véu sobre a estátua. O que Joana

de La Motte fez contra a sua benfeitora todos o perceberam já decerto vendo-a procurar a pena
do periodiqueiro Réteau de Villette. Acabaram-se os cuidados dos ourives, os escrúpulos da
rainha, as dúvidas do cardeal. Três meses são dados à perpetração do roubo e do crime: nesses

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três meses os frutos sinistros terão amadurecido bastante para que a mão celerada os colha.

Joana voltou a casa do Sr. de Rohan, que lhe perguntou como tinha feito a rainha para

assim adormecer as exigências dos ourives.

A Srª. de La Motte respondeu que a rainha tinha feito uma confidência aos ourives e que

recomendara segredo; que uma rainha, quando paga, precisa esconder-se, porém que precisa
esconder-se muito mais ainda quando pede crédito.

O cardeal conveio em que ela tinha razão, e ao mesmo tempo perguntou se ainda se

lembravam das suas boas intenções.

Joana pintou um tal quadro da gratidão da rainha que o Sr. de Rohan ficou entusiasmado,

muito mais como galã do que como súbdito; muito mais no seu orgulho do que na sua dedicação.

Joana, levando esta conversa ao seu fim, tinha resolvido voltar sossegadamente a sua casa,

mandar chamar um negociante de pedrarias, vender brilhantes por uma soma de cem mil
escudos, e fugir para Inglaterra ou para a Rússia, países livres, nos quais viveria ricamente com
essa soma, durante cinco ou seis anos, ao cabo dos quais, sem poder ser perseguida, começaria a
vender vantajosamente, por miúdo, o resto dos brilhantes.

Mas nem tudo sai à medida dos desejos. Quando mostrou os primeiros brilhantes a dois

entendedores, a surpresa dos Argos e os seus modos assustaram a vendedora. Um deles oferecia
umas somas desprezíveis, o outro extasiava-se diante das pedras, dizendo que nunca vira
nenhumas semelhantes senão no colar de Boehmer.

Joana teve receio. Se desse mais um passo, estava perdida. Compreendeu que naquele

caso uma imprudência equivalia a uma ruína, que a ruína era o pelourinho e uma prisão perpétua.
Guardando os brilhantes no mais profundo dos seus esconderijos, resolveu munir-se de armas
defensivas tão sólidas, de armas ofensivas tão aceradas, que em caso de guerra se achassem de
antemão vencidos aqueles que se apresentassem para o combate.

Bordejar entre os desejos do cardeal, que procuraria sempre saber; entre as indiscrições da

rainha, que se gabaria sempre de ter rejeitado, era um perigo terrível. Uma palavra trocada entre a
rainha e o cardeal era quanto bastava para se descobrir tudo. Joana sossegou, lembrando-se de
que o cardeal, namorado da rainha, tinha como todos os namorados uma venda nos olhos, e que
por conseqüência cairia em todos os laços, que a astúcia lhe armasse à sombra do amor.

Mas era necessário que uma mão hábil armasse esse laço de modo tal, que apanhasse os

dois interessados.

Era preciso que se a rainha descobrisse o roubo, não ousasse queixar-se, que se o cardeal

o descobrisse, se sentisse perdido. Era um golpe de mestre a jogar contra dois adversários, que
antecipadamente tinham por si toda a galeria.

Joana não recuou. Era dessas naturezas intrépidas que levam o mal até ao heroísmo, o

bem até ao mal. Um único pensamento a preocupava desde aquele momento, era o de impedir
uma entrevista entre o cardeal e a rainha.

Enquanto Joana estivesse entre eles tudo iria bem: mas se tivessem ocasião de trocar duas

palavras fora das vistas dela, perderia a fortuna do futuro, levantada sobre a iniqüidade do
passado.

– Não se tornarão a ver – disse ela. – Nunca mais!
“Contudo – objectava ela – o cardeal há-de querer tornar a ver a rainha; há-de fazer

diligência para isso.”

“Não esperemos que ele o tente – pensou a Srª. de La Motte; – inspiremos-lhe antes a

idéia de o fazer. É preciso que ele deseje, vê-la, que o peça e que se comprometa pedindo-o.”

“Sim, mas se for ele apenas o comprometido?”
E essa idéia lançava-a em dolorosa perplexidade.
Sendo ele o único comprometido, a rainha não ficava sem recurso. A rainha falava tão

alto, e sabia tão bem arrancar a máscara aos velhacos!

Que deveria fazer? Para que a rainha não pudesse acusar era preciso que não pudesse

abrir a boca; para fechar aquela boca nobre e autorizada, era preciso comprimir-lhe as molas pela

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iniciativa de uma acusação.

Aquele que pode ser convencido pelo seu lacaio de um crime tão desonroso como o

roubo, não se atreve a acusar, perante o tribunal, o seu lacaio de o haver roubado. Sendo o Sr. de
Rohan comprometido pela rainha, é quase certo que a rainha há-de ser comprometida pelo Sr. de
Rohan.

Mas não vá o caso aproximar estes dois interessados em descobrir o segredo.
Joana recuou logo ao princípio diante da enormidade do rochedo, que suspendia sobre a

própria cabeça. Viver assim, arquejante, assustada, sob a ameaça de semelhante queda!

– Sim, mas de que modo escapar a tal angústia? Pela fuga, pelo exílio, transportando para

país estrangeiro os diamantes do colar da rainha?

“Fugir! Era coisa fácil. Com uma boa carruagem, é objecto de dez horas; o espaço de um

desses bons sonos de Maria Antonieta; e intervalo, que emprega o cardeal entre uma ceia com
amigos e o seu erguer do dia seguinte. Abra-se diante de Joana a estrada real; ofereça ela as suas
pedras infinitas aos pés ardentes dos cavalos, e é quanto basta. Joana estará livre, sã e salva em
dez horas.”

“Mas que escândalo! Que vergonha! Livre, mas fugida, salva, mas proscrita; Joana deixa

de ser uma senhora, para ser uma ladra, uma contumaz, que a justiça não alcança, mas que
designa, que o ferro do carrasco não queima, por estar muito longe, mas que a opinião pública
devora e fere!”

“Não! Não há-de fugir. O cúmulo da audácia e o cúmulo da habilidade são como os dois

cumes do Atlas, que são como que os dois gémeos da terra. Um conduz o outro. Quem vê um,
vê outro.”

Joana resolveu mostrar audácia e ficar. Resolveu isto principalmente quando entreviu a

possibilidade de criar, entre o cardeal e a rainha, uma solidariedade de terror, para o dia em que
um ou outro conhecesse que um roubo tinha sido cometido na sua intimidade.

Joana tinha examinado quanto lhe poderia render, em dois anos, a protecção da rainha e

o amor do cardeal; tinha avaliado o lucro destas duas felicidades em quinhentas ou seiscentas mil
libras, depois das quais o enfado, a desgraça, o abandono, viriam pôr fim à protecção, à voga e à
predilecção.

– Com este meu plano ganho setecentas ou oitocentas mil libras – disse consigo a

condessa.

Ver-se-á de que modo aquela alma profunda abriu a estrada sinuosa, que a devia

conduzir, a ela, à vergonha, aos outros, ao desespero.

– Ficar em Paris – disse a condessa, resumindo ter firmeza, assistindo ao movimento dos

dois actores; não lhes deixar desempenhar senão o papel útil aos meus interesses; escolher entre
os bons momentos um favorável para a fuga, quer provenha de uma ordem dada pela rainha,
quer seja uma verdadeira desgraça, de que me possa aproveitar.

“Impedir de todos os modos que o cardeal comunique com Maria Antonieta.”
“E essa é a maior dificuldade, visto que o Sr. de Rohan está namorado, é príncipe, tem

direito a entrar em casa de Sua Majestade várias vezes no ano, e a rainha, desvanecida, ávida de
homenagens, em obrigação de mais a mais para com o cardeal, não poderá fugir dele, se ele a
procurar.”

“Nada seria tão bom, tão hábil, como excitar na rainha o orgulho que coroa a castidade.

Não se pode duvidar que um passo um pouco audaz do cardeal há-de ferir a mulher altiva e
susceptível. As naturezas semelhantes às da rainha gostam das homenagens, mas temem e
repelem os ataques.”

“Sim, o meio é infalível. Aconselhando ao Sr. de Rohan que se declare livremente, há-de

operar no espírito de Maria Antonieta um movimento de desgosto, uma antipatia, que afastará
para sempre, não o príncipe, mas o homem da mulher, o varão da fêmea. Por esta razão, teremos
armas contra o cardeal, cujas manobras só poderão paralisar-se no grande dia das hostilidades.”

“Bem. Mas vejamos ainda uma coisa: tornando o cardeal antipático à rainha, só se opera

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sobre o cardeal; deixa-se raiar a virtude da rainha, isto é, dá-se alforria à princesa, e concede-se-
lhe essa liberdade de linguagem, que facilita toda a acusação e lhe dá o peso da autoridade.”

“O que se precisa é uma prova contra o Sr. de Rohan e contra a rainha; é uma espada de

dois gumes, que fira da direita e da esquerda, que fira ao sair da bainha, que fira até cortando a
própria bainha.”

“O que se precisa é uma acusação, que faça empalidecer a rainha, que faça corar de pejo o

cardeal, que, acreditada, lave de toda a suspeita a estranha Joana, a confidente dos dois principais
culpados. O que se precisa é uma combinação por detrás da qual, própria e devidamente
entrincheirada, Joana possa dizer: Não me acusem, senão acuso-os eu; não me queiram perder,
senão perco-os eu. Deixem-me a fortuna, deixar-lhes-ei a honra.”

– Isto vale a pena de ser pensado – disse consigo a pérfida condessa – e hei-de pensá-lo.

A datar de hoje hão-de pagar-me o meu tempo.

Efectivamente, a Srª. de La Motte recostou-se em fofas almofadas, aproximou-se da

janela aquecida por um brilhante sol, e na presença de Deus, alumiada pelo facho de Deus,
começou a cismar.

LXI

A prisioneira


Durante as agitações da condessa, enquanto ela cismava, uma cena de outra natureza se

passava na rua de Saint-Claude, em frente da casa habitada por Joana.

O leitor não terá esquecido que o Sr. Cagliostro conduzira para o antigo palácio de

Bálsamo a fugitiva Oliva, perseguida pela polícia do Sr. de Crosne.

A Srª. Oliva, seriamente desassossegada, aceitara com prazer aquela ocasião de fugir ao

mesmo tempo à polícia e a Beausire. Vivia portanto retirada, escondida, assustada, naquela
morada misteriosa, que servira de abrigo a tantos dramas muito mais terríveis, do que a aventura
tragicómica da Srª. Nicola Legay.

Cagliostro enchera-a de cuidados e atenções: parecia agradável a esta rapariga ser

protegida por um senhor daquela distinção, que nada pedia, mas que parecia esperar muito.

Mas que esperava ele? Era isto o que a reclusa inutilmente perguntava a si mesma.
Para a Srª. Oliva, o Sr. de Cagliostro, aquele homem que domara Beausire, e triunfara dos

agentes da polícia, era um Deus salvador, e era também um amante muito apaixonado, pois que
respeitava o que podia atacar.

Porque o amor próprio de Oliva não lhe permitia persuadir-se de que Cagliostro tivesse

sobre ela outras vistas que não fossem fazer dela algum dia a sua amante.

É uma virtude, nas mulheres que já não a têm, o persuadirem-se que alguém pode amá-las

respeitosamente. Está bem gasto, bem árido, bem morto o coração, que já não conta com o
amor, nem com o respeito que segue o amor.

Quando pela manhã, enfeitada com todos os objectos com que Cagliostro lhe enchera o

toucador, ela se divertia em fazer de fidalga, e experimentava todos os tons do papel de Celimene,
só vivia para aquela hora do dia em que Cagliostro vinha, duas vezes cada semana, saber se ela
suportava facilmente a vida.

Então, na sua bela sala, no meio de um grande luxo asiático, a pobre rapariga, inebriada,

confessava a si mesma que toda a sua vida pretérita não fora mais que uma decepção, um erro,
que, em contrário da asserção do moralista, provava: “se a virtude faz a felicidade, a felicidade é
que facilmente faz a virtude.”

Infelizmente, faltava, na composição dessa felicidade, um elemento indispensável para

que pudesse durar.

Oliva era feliz, mas passava uma vida aborrecida.
Livros, quadros, instrumentos de música, não a tinham suficientemente distraído. Os

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livros não eram bastante licenciosos, e os que o eram, tinham sido lidos muito depressa. Os
quadros, depois de os ver uma vez, são sempre a mesma coisa, (note-se que a asserção é de Oliva
e não nossa), e os instrumentos de música têm uns gritos, mas nunca têm voz para a mão
ignorante que os toca.

Forçoso é dizê-lo, Oliva pouco tardou em se aborrecer cruelmente daquela felicidade, e

teve muitas vezes saudades, acompanhadas de lágrimas, das boas manhãs passadas na janela da
rua Dauphine, quando, magnetizando a rua com o seu olhar, fazia erguer a cabeça a quantos
passavam.

E que lindos passeios no bairro de Saint-Germain, quando o sapatinho elegante, elevando

sobre os tacões de duas polegadas de altura um pé formosíssimo, fazia um triunfo de cada passo
que a linda rapariga dava, e arrancava aos admiradores uma pequena exclamação, quer de susto
quando ela escorregava, quer de desejo quando depois do pé aparecia a perna.

Era nisto que pensava Nicola, fechada em casa. Verdade seja que se os agentes do Sr.

chefe da polícia eram homens temíveis, é certo também que o hospício, onde se extinguem as
mulheres num sórdido cativeiro, era pior do que a prisão efémera e esplêndida da rua de Saint-
Claude. Mas de que serviria ser mulher, e ter direito a ter caprichos, se por vezes a gente não se
revoltasse contra o bem, para o mudar em mal, pelo menos em sonhos?

E daí, para quem está aborrecido, tudo parece sombrio. Nicola teve saudades de Beausire,

depois de lamentar a perda da sua liberdade. Confessemos que nada tem mudado no mundo,
desde o tempo em que as filhas de Judá iam, na véspera de um casamento de amor, chorar para a
serra a sua virgindade.

Estamos chegados a um dia de luto e de frenesi, no qual Oliva, privada de toda a

sociedade, de toda a vista, havia duas semanas, entrava no mais triste período do mal e do
aborrecimento.

Tendo esgotado tudo, não ousando mostrar-se às janelas, nem sair, começava a perder o

apetite do estômago, mas não o da imaginação, o qual, pelo contrário, crescia à medida que
aquele diminuía.

Foi neste momento de agitação moral, que recebeu a visita, naquele dia inesperada, de

Cagliostro.

Entrou conforme o seu costume, pela porta pequena do palácio, e veio pelo jardinzinho,

novamente traçado no pátio, bater nas janelas do quarto que Oliva ocupava.

Quatro pancadas com intervalos entre eles combinados, era o sinal antecipadamente

ajustado para que Nicola abrisse o fecho que mandara pôr na porta, como segurança entre ela e a
visita de um homem que, como Cagliostro, possuía as chaves da casa.

Oliva não pensava que fossem inúteis as precauções para bem conservar uma virtude, que

em certas ocasiões achava pesada.

Ao sinal dado por Cagliostro, correu os fechos com espantosa rapidez, o que bem

mostrava a necessidade de ter uma conferência.

Viva como uma costureira de Paris, correu ao ilustre carcereiro, pegou-lhe nas mãos, mais

para o agarrar do que para o acariciar, e com uma voz irritada, rouca e trémula, exclamou:

– Saiba que estou aborrecida!
Cagliostro olhou para ela, fazendo um leve movimento com a cabeça.
– Está aborrecida? – disse ele fechando a porta, – Ai, minha querida menina, é uma feia

doença essa!

– Isto não me agrada. Morro aqui.
– Deveras?
– Sim, ocorrem-me idéias lúgubres.
– Ora! – disse o conde sossegando-a e afagando-a como o teria feito a um cãozinho – se

não se dá bem em minha casa, não me queira mal por isso. Guarde a sua cólera para o Sr. chefe
da polícia, que é seu inimigo.

– O seu sangue-frio desespera-me, senhor – disse Oliva. – Prefiro uma cólera verdadeira

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a semelhantes doçuras; acha meio de me sossegar, e isso torna-me louca de raiva.

– Confesse que é injusta, menina – respondeu Cagliostro assentando-se longe dela, com

essa afectação de respeito ou de indiferença, que tão bom sucesso tinha junto de Oliva.

– Fala disso sem pena – disse ela – porque sai, entra, respira; a sua vida compõe-se de

uma quantidade de prazeres que escolhe; eu vegeto no espaço que me limitou; não respiro,
tremo. Preveni-o, senhor, de que a sua protecção é inútil, se me não impede de morrer.

– Morrer! A menina! – disse o conde sorrindo; – ora adeus, não diga isso!
– Digo-lhe que procede mal, muito mal para comigo. Não se lembra que amo

profundamente, apaixonadamente alguém?

– O Sr. de Beausire?
– Sim, Beausire. Digo-lhe que o amo, e parece-me que nunca lhe ocultei isso. Decerto

não imaginou que eu havia de esquecer o meu querido Beausire?

– Tão pouco imaginei semelhante coisa, menina, que fiz os maiores esforços para ter

notícias dele, e que lhas trago frescas.

– Ah! – disse Oliva.
– O Sr. de Beausire – continuou Cagliostro – é um belo moço.
– Pudera! – disse Oliva, que não via a que fim tendia o seu interlocutor.
– Moço e guapo.
– É verdade.
– Com uma imaginação muito viva.
– Uma imaginação de fogo... É um pouco brutal para comigo; mas... Quem muito ama,

muito padece.

– Está dizendo bocadinhos de ouro. Tem tanta alma quanta inteligência, e tanta

inteligência quanta formosura; e eu que sei isso, eu que me interesso por todo o amor deste
mundo – é uma mania como qualquer outra – pensei que fazia bem em a aproximar do Sr. de
Beausire.

– Não era essa a sua idéia, há-de haver um mês – disse Oliva sorrindo-se, mas com modo

constrangido.

– Ouça-me, minha querida menina, todo o homem amável que vê uma bonita rapariga

procura agradar-lhe, quando é livre como eu sou. Entretanto, há-de confessar que, se lhe fiz um
pouco a corte, não foi coisa que durasse muito tempo.

– É verdade – redargüiu Oliva no mesmo tom; – durou quando muito um quarto de

hora.

– Era natural que eu desistisse, vendo quanto amava o Sr. de Beausire.
– Oh! Não caçoe comigo.
– Não caçoo, por minha honra; resistiu, eu desisti.
– Oh! Não é verdade que resisti bem? – exclamou Oliva encantada de ter sido apanhada

em flagrante delito de resistência. – Sim, confesse que resisti.

– Era a conseqüência do seu amor – disse Cagliostro fleumaticamente.
– Mas o seu amor então – replicou Oliva – não era muito violento?
– Não sou velho, nem feio, nem tolo, nem pobre bastante para suportar as recusas ou as

probabilidades de ser desatendido; a menina havia de preferir sempre o Sr. de Beausire; conheci
isso e tomei o meu partido.

– Oh! Não – disse a velhaca; – não! Essa famosa associação que me propôs, bem sabe,

esse direito de lhe dar o braço com honestidade, confesse-o, não era ainda um raio de esperança?

E dizendo estas palavras, a pérfida queimava com os olhos demasiado tempo ociosos, o

visitador que se deixara assim cair no laço.

– Confesso – respondeu Cagliostro – que é de uma penetração a que nada resiste.
E fingiu que abaixava os olhos para ser devorado pelo dobrado feixe de chamas que saía

dos olhos de Oliva.

– Voltemos a Beausire – disse ela ofendida com a imobilidade do conde; – que faz ele,

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onde está o meu querido amigo?

Então Cagliostro, olhando para ela com um resto de timidez:
– Eu dizia que desejava uni-la outra vez a ele – prosseguiu o conde.
– Não, não dizia isso – murmurou ela com desdém; – mas, visto que o diz, tomo-o por

dito. Continue. Por que não o trouxe consigo? Teria sido uma obra de caridade. Ele tem a sua
liberdade...

– Não veio comigo – respondeu Cagliostro, sem admirar-se daquela ironia – porque o Sr.

de Beausire, que é como a senhora, que tem demasiado espírito, arranjou também uma
questãozinha com a polícia.

– Também! – exclamou Oliva tornando-se pálida, porque desta vez parecia-lhe conhecer

a verdade no que lhe diziam.

– Também – repetiu Cagliostro com urbanidade.
– Que fez ele?... – balbuciou Oliva.
– Uma encantadora esperteza, uma habilidade de mãos infinitamente engenhosa; eu

chamo a isso uma ratice, mas a gente séria, o Sr. de Crosne, por exemplo, sabe quanto ele é
esquisito, chama-lhe um roubo.

– Um roubo! – exclamou Oliva aterrada; – meu Deus!
– Um lindo roubo, por minha alma! O que prova evidentemente o gosto que o bom Sr.

de Beausire tem pelos objectos bonitos.

– Senhor... Senhor... Ele está preso?
– Não; mas está denunciado.
– Jura-me que não está preso, que não corre perigo algum?
– Posso jurar-lhe que não está preso; mas, quanto ao segundo ponto, não posso dar-lhe a

minha palavra. Bem vê, minha querida menina, que quando há uma denúncia, segue-se ou
procura-se, pelo menos, o denunciado; ora, com a sua figura e com todas as suas qualidades bem
conhecidas, se o Sr. de Beausire aparecesse, seria logo descoberto pelos agentes da polícia. Pense
portanto um pouco na bela pesca que faria o Sr. de Crosne. Prendê-la-ia por intervenção do Sr.
de Beausire e prenderia o Sr. de Beausire por sua intervenção.

– Oh! Sim, sim, é preciso que se esconda! Pobre rapaz! Eu também vou esconder-me.

Proteja a minha fuga para fora de França, senhor. Veja se me presta esse serviço; porque ao ver-
me aqui fechada, abafada, não resistiria, mais dia, menos dia, ao desejo de cometer alguma
imprudência.

– A que chama imprudência, minha querida menina? – perguntou o conde.
– Imprudência... Seria mostrar-me, querer tomar um pouco de ar.
– Não exagere, minha querida amiga; está já pálida, e acabaria por perder a sua bela saúde.

O Sr. de Beausire deixaria de a amar. Não tome ar à sua vontade, regale-se em ver alguns rostos
humanos.

– Mau! – exclamou Oliva – agora está enfadado comigo, e vai abandonar-me. Talvez eu o

incomode?

– A mim! Está louca! Por que motivo me incomodaria? – disse ele com uma seriedade de

gelo.

– Porque... Um homem que tem gosto por uma mulher, um homem tão considerável, um

fidalgo tão belo, como é, tem direito de se irritar e de se desgostar mesmo, se uma louca como eu
o rejeita. Oh! Não me deixe, não me queira perder, não me odeie, senhor!

E a pobre rapariga, tão assustada agora quanto antes se havia mostrado desvanecida,

lançou os braços ao pescoço de Cagliostro.

– Pobre pequena! – disse este dando um casto beijo na fronte de Oliva – que medo ela

tem! Não forme de mim tão má opinião, minha menina. Estava em perigo, prestei-lhe um
serviço; tinha certas idéias a seu respeito, mudei de tenção, nada mais. Não tenho ódio que lhe
mostrar, nem a menina tem que me agradecer. Trabalhei no meu interesse, a menina trabalhou no
seu, estamos quites.

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– Oh! Senhor, tanta bondade! Como é generoso!
E Oliva abraçou de novo Cagliostro.
Mas este, olhando para ela com a sua habitual tranqüilidade, disse:
– Bem vê, Oliva, que poderia oferecer-me agora o seu amor, que eu...
– Então?... – disse ela corando.
– Poderia oferecer-me a sua admirável pessoa, que eu rejeitaria, tão grande é o meu desejo

de não inspirar senão sentimentos verdadeiros, puros, livres de todo o interesse. Julgou-me
interesseiro, e caindo na minha dependência, julgou-se ligada, obrigada. Pensaria que quanto me
oferecesse fosse mais por agradecimento do que por sensibilidade, mais por medo do que por
amor: fiquemos como estamos. Cumpro assim o seu desejo, previno todas as suas delicadezas.

Oliva deixou cair os lindos braços e afastou-se envergonhada, humilhada, despeitada pela

generosidade de Cagliostro, com a qual não contara.

– Assim – disse o conde – assim, minha querida Oliva, está tratado, conservar-me-á como

amigo, terá plena confiança em mim; servir-se-á incondicionalmente da minha casa, da minha
bolsa, do meu crédito, e...

– E direi – continuou Oliva – que há neste mundo homens muito superiores a todos

quanto tenho conhecido.

Pronunciou estas palavras com um encanto e uma dignidade tais que gravaram um traço

naquela alma de bronze, cujo corpo outrora se havia chamado Bálsamo.

– Não há mulher má – pensou ele – quando nela se tem ferido a fibra que corresponde

ao coração.

Depois, aproximando-se de Nicola, disse:
– Desde esta noite, irá habitar no último andar deste palácio. É um quarto composto de

três casas colocadas como um observatório, acima do bulevar da rua de Saint-Claude. As janelas
dão para Menilmontant e Belleville. Algumas pessoas poderão lá vê-la. São vizinhos pacíficos,
não receie nada deles. Boa gente sem relações, sem suspeitarem quem seja. Pode deixar-se ver
por eles, mas não se exponha, e sobretudo evite ser vista pelas pessoas que transitam, porque a
rua de Saint-Claude é algumas vezes explorada pelos agentes do Sr. de Crosne; ali pelo menos
terá sol e ar.

Oliva bateu alegremente as mãos.
– Quer que lá a conduza? – perguntou Cagliostro.
– Esta noite?
– Certamente, esta noite. Isso incomoda-a?
Oliva olhou profundamente para Cagliostro. Uma vaga esperança lhe nasceu na alma, ou

antes na cabeça vã e pervertida.

– Vamos – disse ela.
O conde foi à antecâmara buscar uma lanterna, abriu algumas portas, e subindo uma

escada, chegou, seguido por Oliva, ao terceiro andar, ao quarto que designara.

Ela achou a casa toda mobiliada, toda preparada e habitável.
– Dir-se-ia que era aqui esperada – exclamou ela.
– A menina não – disse o conde – sim eu, que gosto da vista destes quartos, e aqui durmo

muitas vezes.

O olhar de Oliva tomou o aspecto feroz e fulgurante, que muitas vezes se observa nos

olhos dos gatos.

Os lábios estavam-lhe prestes a pronunciar uma palavra; Cagliostro interrompeu-a assim:
– Nada lhe faltará aqui; a sua criada está perto de si e pronta à sua chamada. Boa noite,

menina.

E desapareceu, depois de lhe ter feito uma profunda cortesia misturada com um sorriso.
A pobre prisioneira caiu assentada, consternada, aniquilada sobre a cama, que estava

preparada numa elegante alcova contígua.

– Não percebo absolutamente nada – murmurou Oliva seguindo com os olhos aquele

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homem, para ela realmente incompreensível.

LXII

O observatório


Oliva deitou-se logo que a deixou a criada que Cagliostro lhe mandara.
Pouco dormiu. Os pensamentos de toda a natureza, que tinham nascido da sua conversa

com o conde, produziram-lhe no espírito sonhos acordados, desassossegos sonolentos. A
felicidade não dura muito quando se chega a gozar uma riqueza e tranqüilidade demasiadas,
depois de ter sido pobríssimo ou de ter vivido vida muito agitada.

Oliva compadeceu-se de Beausire, admirou o conde a quem não compreendia porque não

o julgava tímido, nem pensava que fosse insensível. Receou muito ser perturbada por algum silfo
durante o seu sono, e o mais leve estalo das tábuas do sobrado lhe causava a agitação conhecida
de toda a heroína de romance que dorme na torre do Norte.

Com a aurora desapareceram esses terrores, que não deixavam de ter encantos... Nós, que

receamos inspirar suspeitas ao Sr. Beausire, podemos afiançar que Nicola não viu chegar a hora
de tranqüilidade, sem sentir um pequeno resto de vaidoso despeito. Sentimento intraduzível para
todo o pincel que não seja o de Watteau, para qualquer pena que não seja a de Marivaux ou de
Crébillon filho.

Com o amanhecer adormeceu, saboreando a voluptuosidade de absorver no seu quarto

cheio de flores os purpúreos raios do sol nascente, de ver os passarinhos correrem pelo terraço
da janela, onde as asas roçavam com uma bulha deliciosa as folhas das roseiras e as flores dos
jasmins de Itália.

E foi tarde, muito tarde, que ela se levantou, quando duas ou três horas de um sono suave

lhe tinham pesado sobre as pálpebras, quando, embalada entre os rumores da rua e os
entorpecimentos do repouso, se sentiu forte bastante para procurar o movimento, demasiado
forte para ficar deitada e ociosa.

Então, correu todos os cantos da sua nova habitação, na qual o incompreensível silfo

nem sequer tinha podido achar uma abertura, ignorante que era! Para vir adejar e bater as asas em
torno do leito, e contudo os elfos naquele tempo, graças ao conde de Gabalis, nada tinham
perdido da sua inocente reputação.

Oliva surpreendeu as riquezas da sua casa na simplicidade do imprevisto. Aquele recinto

de mulher tinha começado por ser a habitação de um homem. Achava-se ali tudo quanto pode
fazer prezar a vida, achava-se sobretudo a luz em cheio e o ar livre, que seriam capazes de
transformar as masmorras em jardins, se fosse possível ao ar e à luz do dia penetrarem numa
prisão.

Decerto explicaríamos a alegria infantil, perfeita, com que Oliva correu ao terraço, se

deitou sobre as lajes, no meio das flores e dos musgos, semelhante a uma cobra que sai do ninho,
se não tivéssemos necessidade de descrever as suas admirações cada vez que um movimento lhe
descobria um espectáculo novo.

Primeiramente deitada, como acabamos de o dizer, para não ser vista de fora, espreitou

por entre as grades da varanda para o cimo das árvores dos bulevares, para as casas do bairro
Papincourt e para as chaminés, oceano enevoado, cujas ondas desiguais formavam uma escada do
seu lado direito.

Inundada pelo sol, com o ouvido atento ao rumor das carruagens, um pouco raras, é

certo, mas que sempre passavam pelo bulevar, assim esteve felicíssima durante duas horas.
Tomou chocolate, que lhe trouxe a criada, e leu uma gazeta antes de ter pensado em olhar para a
rua.

Essa satisfação era arriscada.
Os agentes do Sr. de Crosne, sabujos humanos que andam à caça de nariz levantado,

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podiam vê-la. Que terrível despertar, depois de tão agradável sono!

Mas aquela posição horizontal não podia durar muito tempo, apesar de ser boa, como

era. Nicola ergueu-se, firmando-se no cotovelo.

Viu então as nogueiras de Menilmontant, as grandes árvores do cemitério, as miríades de

casas de todas as cores que guarneciam a encosta desde Charones até aos outeiros de Chaumont,
metidas em ramalhetes de verdura, ou sobre a terra argilosa das penedias revestidas de mato e
cardo.

Espalhados nos caminhos, como fitas que ondeavam no colo daqueles montículos, nos

carreiros das vinhas, nas estradas brancas, desenhavam-se pequenos entes vivos, aldeões
montados nos seus burros, crianças inclinadas para o campo que ceifavam; mulheres desparrando
as vinhas para expor a uva ao sol. Àquela rusticidade encantou Nicola, que sempre suspirava pela
bela quinta de Taverney, desde que dali saíra para aquele Paris tão desejado.

Acabou por se saciar também de campo, e como tinha tomado uma posição cómoda e

segura no meio das flores, como sabia que podia ver sem se arriscar a ser vista, baixou o olhar da
montanha para o vale, de horizonte longínquo para as casas fronteiras.

Por toda a parte, isto é, no espaço que podem tomar três casas, Oliva achou as janelas

fechadas ou pouco interessantes. A primeira compunha-se de três andares habitados por uns
velhos proprietários, que penduravam umas gaiolas de canários fora da janela, ou que se
empregavam em sustentar alguns gatos favoritos; a outra era de quatro andares em que só se via
o inquilino do último andar, um moço de recados auvernhês; quanto aos outros pareciam estar
ausentes, naturalmente no campo. Enfim, um pouco para a esquerda, na terceira casa, umas
cortinas de seda amarela, umas flores, e como para mobilar aquela morada, uma fofa poltrona,
que ao pé da janela parecia esperar o seu hóspede, despertavam a atenção.

Oliva julgou distinguir naquele quarto, cuja negra escuridão sobressaía pelos reflexos do

sol, uma espécie de sombra ambulante de movimentos regulares.

Ali limitou a sua impaciência, escondeu-se melhor que até então fizera, e chamando a

criada, encetou uma conversa com ela para variar os prazeres da solidão pelos da sociedade com
uma criatura pensante e sobretudo falante.

Mas a criada do quarto foi, em contrário a todas as tradições, de uma reserva espantosa.

Dignou-se explicar a sua ama o que era Belleville, Charonne, e o Père-Lachaise. Disse-lhe o nome
das igrejas de Saint-Ambroise e de Saint-Laurent; mostrou-lhe a curva do bulevar e a sua
inclinação para a margem direita do Sena; mas quando se tratou dos vizinhos, a criada nada soube
dizer; não os conhecia mais do que ela.

O quarto claro-escuro das cortinas de seda amarela não foi explicado a Oliva. Nada sabia

da sombra ambulante, nem da poltrona.

Se Oliva não tinha a satisfação de já conhecer a sua vizinha, pelo menos nutria a

esperança de fazer o conhecimento dela por si mesma. Despediu portanto a discreta criada para
se entregar sem testemunhas à sua exploração.

A ocasião não tardou em se oferecer. Os vizinhos começaram a abrir as portas, a fazer a

sesta depois da comida, a vestirem-se para o passeio na praça Real ou na estrada Verde.

Oliva contou-os. Eram seis, bem variados na sua semelhança, como convém a gente que

escolheu a rua de Saint-Claude para domicílio.

Oliva passou parte do dia a ver-lhe os gestos, e a estudar-lhes os hábitos. Passou revista a

todos, excepto àquela sombra agitada que, sem mostrar o rosto, tinha vindo recostar-se na
poltrona ao pé da janela, e parecia absorta em imóvel meditação.

Era uma mulher. Tinha entregado à criada a cabeça para penteá-la, e esta, durante hora e

meia, edificara-lhe no crânio e fontes um desses edifícios babilónicos, nos quais havia minerais,
vegetais, e até haveria animais, se fosse executado por Leonardo, e se uma mulher daquela época
tivesse consentido em fazer da cabeça uma arca de Noé com os habitantes.

Depois de empoada, penteada, coberta de rendas e atavios, tinha-se reinstalado na

poltrona, recostada em várias almofadas duras bastante para que essa parte do corpo sustivesse o

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equilíbrio do corpo inteiro, e permitisse ao monumento de cabelo ficar intacto, sem recear os
tremores de terra que lhe pudessem agitar os alicerces.

Aquela mulher imóvel semelhava as divindades índias pregadas nos andores, cujos olhos

fixos, graças à fixidade do pensamento, giram sozinhos nas órbitas. Segundo as necessidades do
corpo ou os caprichos do espírito, sentinelas e bons servidores activos, só por si faziam o serviço
do ídolo.

Oliva notou quanto aquela senhora, assim penteada, parecia formosa; como o seu pé,

descansando na borda da janela e metido num sapatinho de cetim cor de rosa, era delicado e
formoso! Admirou-lhe a perfeição do braço e do colo, que repelia o colete e o penteador.

Mas o que sobretudo notou, foi a profundidade do pensamento, dirigido sempre para um

fim vago e invisível, pensamento por tal forma imperioso, que condenava inteiramente o corpo à
imobilidade, aniquilando-o pelo poder da sua vontade.

Aquela mulher, que já conhecemos, mas que Oliva não podia conhecer, não suspeitava

que a estivessem vendo. Defronte das suas janelas nunca se abrira janela alguma. O palácio do Sr.
de Cagliostro nunca descobrira os seus segredos a ninguém, apesar das flores que Nicola achara,
dos pássaros que vira voar, a não ser aos pintores que o tinham restaurado; nunca ente vivo fora
visto naquelas janelas.

Para explicar este fenómeno contrariado pela pretendida habitação de Cagliostro no

pavilhão, bastará uma palavra. O conde mandara preparar aquela casa para Oliva, durante a noite,
como a teria feito preparar para si. Tinha, por assim dizer, mentido a si mesmo, tão bem haviam
sido executadas as ordens.

A senhora do penteado continuava entregue à sua meditação; Oliva imaginou que essa

meditação fosse devida a amores malogrados.

Simpatia na formosura, na solidão, na idade, no aborrecimento; que de laços para ligar

uma à outra aquelas duas almas, que talvez andassem em procura uma da outra, graças às
combinações misteriosas, irresistíveis e intraduzíveis do destino.

Desde que viu aquela alma pensativa, Oliva não pôde mais tirar os olhos dela.
Havia uma espécie de pureza moral naquela atracção de mulher para mulher. Tais

delicadezas são mais comuns do que geralmente se julga entre essas desgraçadas, cujo corpo se
tem tornado o agente principal nas funções da vida.

Pobres desterradas do paraíso espiritual, choram os jardins perdidos e os anjos joviais,

que se ocultam sob as místicas sombras.

Oliva julgou ver na formosa reclusa uma irmã da sua alma. Construiu uma novela

semelhante à da sua vida, figurando-se-lhe que se não podia ser bonita, elegante e morar perdida
na rua de Saint-Claude, sem ter algum grande dissabor no íntimo da vida, ou algum grande
desassossego no fundo do coração.

Depois de haver forjado com aço e diamante a sua fábula romântica, Oliva, como todas

as naturezas excepcionais, deixou-se levar pela própria magia; tomou asas para voar no espaço ao
encontro da sua companheira, a quem, impaciente como estava, quisera ter visto nascer asas
iguais às suas.

Mas a senhora do monumento de cabelos não se mexeu, parecia dormir na sua cadeira.

Duas horas haviam decorrido sem que ela oscilasse de modo algum.

Oliva desesperava-se. Por Adónis ou Beausire não teria feito metade do que fazia por

aquela desconhecida.

Cansada de trabalhar, e passando da ternura ao ódio, mais de dez vezes abriu e fechou a

janela; mais de dez vezes espantou os pássaros da folhagem, e fez gestos telegráficos por tal
forma comprometedores, que o mais obtuso dos instrumentos do Sr. de Crosne, se tivesse
passado pelo bulevar ou pela extremidade da rua de Saint-Claude, não deixaria de os ver e de
querer examinar o que significavam.

Enfim, Nicola chegou a persuadir-se de que a senhora das lindas tranças de cabelo vira

todos os seus gestos, compreendera todos os seus sinais, mas desprezava-os; que era vaidosa ou

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idiota. Idiota! Com uns olhos tão bonitos, tão vivos, com um pé tão delicado, a mão tão formosa!
Era impossível!

Vaidosa, sim, vaidosa como naquela época o podia ser uma mulher de alta nobreza para

com uma mulher do povo.

Oliva, conhecendo na fisionomia daquela senhora todos os caracteres da aristocracia,

concluiu que era orgulhosa e incapaz de ser comovida.

Renunciou.
Voltando costas com um gesto de amuo encantador, foi novamente para o sol, que estava

no ocaso, para entrar outra vez na sociedade das suas flores, agradáveis companheiras, que,
nobres, elegantes, empoadas, coquetes como as mais nobres damas, se deixam contudo tocar,
respirar, e pagam em perfumes, em fresquidão e em frementes contactos o ósculo da amizade ou
do amor.

Nicola estava longe de pensar que aquela suposta orgulhosa fosse Joana de Valois,

condessa de La Motte, que, desde a véspera, procurava uma idéia.

Que essa idéia tinha por fim impedir que Maria Antonieta e o cardeal de Rohan pudessem

falar um com o outro.

Que um interesse ainda maior exigia que o cardeal, não falando já com a rainha,

acreditasse com firmeza que a via sempre, e que, por conseqüência, se contentasse com essa visão
e cessasse de reclamar a verdadeira.

Se Nicola tivesse sabido isso tudo, decerto se não teria ido refugiar, cheia de cólera, no

centro das suas flores.

E não teria, indo lá, empurrado para fora da varanda um vaso de fraxinela, que foi cair no

meio da rua deserta, com terrível estrondo.

Oliva, assustada, correu logo para ver que estrago causara.
A senhora, preocupada, despertou com a bulha, viu o vaso no meio da rua, subiu do

efeito à causa, isto é, os olhos dirigiram-se-lhe do meio da rua para o terraço do palácio.

E viu Oliva.
Vendo-a, soltou um grito terrível, um grito de terror, um grito que terminou por um

movimento rápido de todo aquele corpo, ainda há pouco tão hirto e gélido.

Joana exclamou logo:
– A rainha!
E de repente, de mãos postas e franzindo as sobrancelhas sem ousar mexer-se, com

receio de fazer fugir a visão estranha, murmurou:

– Oh! Eu procurava um meio, ali está ele!
Neste momento, Oliva ouviu rumor por detrás de si, e voltou-se vivamente.
O conde estava no seu quarto; e vira o mútuo reconhecimento.
– Viram-se! – disse ele.
Oliva retirou-se apressadamente da varanda.

LXIII

As duas vizinhas


A partir daquele momento, em que as duas mulheres se tinham visto, Oliva, já fascinada

pela graça da sua vizinha, não afectou mais desprezá-la, e voltando-se com precaução no meio
das suas flores, respondeu com sorrisos aos sorrisos que lhe dirigiam.

Cagliostro, visitando-a, não se esquecera de lhe recomendar a maior circunspecção.
– Principalmente – tinha ele dito – nada de relações com a vizinhança.
Esta palavra caíra como um penedo sobre a cabeça de Oliva, que já achava doce

ocupação nos sinais e cortesias que trocava com a vizinha.

Não ter relações com a vizinhança era o mesmo que voltar as costas àquela encantadora

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mulher, cujo olhar era tão suave, tão brilhante, e na qual cada movimento era uma sedução; era
renunciar a entreter uma correspondência telegráfica entre a chuva e o bom tempo, era romper as
relações com uma amiga. Por que de tal modo corria a imaginação de Oliva, que Joana era já para
ela um objecto curioso e raro.

A sonsa respondeu ao seu protector que ficasse certo de que lhe não desobedeceria, e que

não teria relações nenhumas com a vizinhança. Mas apenas ele se retirou, colocou-se na varanda
de modo que pudesse atrair toda a atenção da vizinha.

Esta, como é fácil de julgar, estimou imenso ver isso, porque logo aos primeiros sinais

que lhe fizeram, respondeu fazendo cortesias e atirando beijos com as mãos.

Oliva correspondeu como pôde àquelas delicadezas, notou que a desconhecida já não

largava a janela, e que sempre atenta em enviar-lhe, quer um adeus quando saía, quer uns bons
dias quando entrava, parecia ter concentrado na varanda da casa de Oliva todas as suas faculdades
amantes.

Tal estado de coisas deveria ser prontamente seguido de uma tentativa de aproximação.
Eis aqui o que aconteceu.
Dois dias depois, indo Cagliostro visitar Oliva, queixou-se de ter vindo uma visita de

pessoa desconhecida ao palácio.

– Como? – disse Oliva corando um pouco.
– Sim – respondeu o conde – uma senhora muito bonita, moça, elegante, apresentou-se,

falou com um criado, que acudiu pela insistência com que ela tocava a campainha. Perguntou-lhe
quem seria uma rapariga que habitava o terceiro andar, designando estes quartos que a menina
habita; era seguramente da menina que falava. Queria vê-la; portanto conhece-a, tem vistas sobre
a menina, portanto está descoberta! Cuidado! A polícia tem espiões mulheres, como tem agentes
homens, e previno-a de que não poderei fugir a entregá-la ao Sr. de Crosne, se ele ma pedir.

Oliva, em vez de se assustar, reconheceu logo o retrato da sua vizinha, sentiu-se satisfeita

com tanta delicadeza, e resolvida a agradecer-lho por todos os meios ao seu alcance, disfarçou
diante do conde.

– Não se assusta? – perguntou Cagliostro.
– Ninguém me viu – redargüiu Nicola.
– Então não era à menina que procuravam?
– Creio que não.
– Contudo, para adivinhar que há uma mulher nestes quartos... Ah! Acautele-se, acautele-

se!

– Ah! Sr. conde – disse Oliva – que posso eu recear? Se alguém me viu, o que não creio,

não me tornará a ver, e se me tornassem a ver, seria longe, porque a casa é impenetrável, não é
verdade?

– É impenetrável, é, disse muito bem – respondeu o conde – e a não ser que escalem o

muro, o que não é coisa fácil, ou que abram a portinha de entrada com uma chave como a minha,
o que também não é fácil, visto que nunca a largo...

E dizendo estas palavras, mostrava a chave, que lhe servia para entrar pela porta

particular.

– Ora – prosseguiu ele – como não tenho interesse em perdê-la, não emprestarei a chave

a ninguém, e como a menina nada lucraria em cair nas mãos do Sr. de Crosne, não deixará escalar
o muro. Assim, minha querida menina, está avisada, e arranje-se como for da sua vontade.

Oliva desfez-se em protestos de todo o género, e apressou-se em despedir o conde, que

não insistiu muito para ficar.

No dia seguinte, logo às seis horas da manhã, estava ela na varanda, aspirando o ar puro

da madrugada e lançando um olhar curioso para as janelas ainda fechadas da casa da sua delicada
amiga.

Esta, que geralmente só acordava às onze horas, apareceu pouco depois de Oliva. Dir-se-

ia que espreitava por detrás das cortinas a ocasião de mostrar-se.

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As duas mulheres cortejaram-se, e Joana, avançando a cabeça fora da janela, olhou para

todos os lados para ver se alguém poderia ouvi-la.

Não aparecia ninguém. Nem só as ruas, mas também as janelas das casas estavam

desertas.

Levou então as mãos à boca em guisa de buzina, e num tom vibrante e prolongado, disse

para Oliva:

– Eu quis fazer-lhe uma visita, minha senhora.
– Caluda! – disse Oliva recuando assustada.
E levou um dedo à boca.
Joana também se escondeu por detrás das cortinas, julgando que a estivesse ouvindo

algum indiscreto; mas quase no mesmo instante tornou a aparecer tranqüilizada pelo sorriso de
Nicola.

– Não se lhe pode falar? – disse ela.
– Ah! – respondeu Oliva.
– Espere – redargüiu Joana. – Pode-se talvez dirigir-lhe cartas?
– Não! – bradou Oliva aterrada.
Joana reflectiu alguns momentos.
Oliva, para lhe agradecer a solicitude, atirou-lhe um beijo encantador, que foi retribuído

por Joana, depois do que, fechou a janela e saiu.

Oliva disse consigo que a sua amiga tinha achado algum novo meio, porque a sua

imaginação lho revelara no último olhar.

Joana voltou com efeito duas horas depois. O sol estava na sua maior força, e as pedras

da calçada queimavam como a areia de Espanha durante o fuego.

Oliva viu aparecer de novo a sua vizinha na janela, com um arco de disparar flechas.

Joana, rindo-se, fez sinal a Oliva para que se afastasse.

Esta obedeceu, rindo como a sua companheira, e refugiou-se contra a porta da janela.
Joana, fazendo cuidadosamente pontaria, atirou uma pequena bala de chumbo, que

infelizmente, em lugar de passar por cima da varanda, foi bater contra um dos varões de ferro e
caiu à rua.

Oliva soltou um leve grito de despeito. Joana, depois de ter encolhido os ombros em sinal

de cólera, procurou um momento com a vista o seu projéctil no meio da rua, e em seguida
desapareceu por alguns minutos.

Oliva, inclinada, olhava também para a rua; apareceu uma espécie de trapeiro, que bateu a

calçada. Viu ou não viu ele a bala no meio da rua? Oliva não o soube, porque se escondeu para
não ser vista.

O segundo esforço de Joana teve melhor resultado.
O arco lançou fielmente, por cima da varanda, dentro do quarto de Nicola, outra bala, em

torno da qual vinha enrolado um bilhete concebido nestes termos:


“Interessa-me muito, formosa vizinha. Acho-a encantadora, e só de a ver, a estimo muito.

Está prisioneira? Sabe que debalde tentei visitá-la? O feiticeiro que a guarda à vista quererá
porventura evitar que me aproxime de si para lhe dizer toda a simpatia que sinto por uma infeliz
vítima da tirania dos homens?”

“Tenho, como vê, imaginação bastante para servir as minhas amizades. Quer ser minha

amiga? Parece que a não deixam sair; mas pode escrever, certamente, e como eu saio quando
quero, espere que eu passe debaixo da suas janelas e atire-me a resposta.”

“Se acontecer que o jogo do arco se torne perigoso, e o descubram, adoptemos um meio

mais fácil de nos correspondermos. Deixe descer do alto da sua varanda, ao anoitecer, uma linha;
ate-lhe na extremidade a sua carta, e eu lhe atarei a minha resposta, que puxará, sem que ninguém
perceba.”

“Lembre-se que, se não são falsos os seus olhos, conto com uma pouca dessa afeição, que

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me tem inspirado, e que ambas reunidas venceremos o universo.”

“Sua amiga...”
P. S. – Viu por acaso se alguém apanhou o meu primeiro bilhete?”

Joana não assinou a carta, e a letra estava completamente disfarçada.
Oliva estremeceu de prazer ao receber o bilhete. Respondeu-lhe o seguinte:

“Também lhe tenho muita amizade. Sou com efeito uma vítima da maldade dos homens.

Mas aquele que aqui me detém, é um protector e não um tirano. Vem ocultamente visitar-me
uma vez cada dia. Noutra ocasião lhe explicarei tudo isto. Para nos correspondermos, prefiro a
linha ao arco.”

“Ah! Não, não posso sair: estou fechada a sete chaves; mas é para meu bem. Oh! Teria

tanto que dizer-lhe, se alguma vez tivesse a felicidade de poder conversar consigo! Ai, minha
senhora, há tantas coisas que se não podem escrever!”

“O seu primeiro bilhete não foi apanhado por ninguém, salvo se o foi por um miserável

trapeiro, que ia passando, mas semelhante gente não sabe escrever, e para eles o chumbo é
chumbo.”

“Sua amiga, Oliva Legay.”

Oliva tinha assinado com todas as suas forças.
Fez sinal à condessa; depois, esperando que anoitecesse, desenrolou a linha com a carta

na ponta.

Joana estava debaixo da janela; agarrou a linha e tirou a carta, movimentos estes que a sua

correspondente percebeu todos por meio do fio condutor, depois entrou em casa para a ler.

Meia hora depois, atava na linha serviçal um bilhete contendo estas palavras:

“Querer é poder. Não está muito vigiada pois que sempre a vejo só. Portanto, deve ter

plena liberdade para receber quem a procura ou mesmo para sair. Como se fecha a sua casa?
Com uma chave? Quem tem essa chave? O homem que vai visitá-la, não é verdade? Guarda ele
essa chave com tanto cuidado, que não lha possa furtar ou pelo menos tirar-lhe o molde? Aqui
não se trata de acção má; trata-se unicamente de proporcionar-lhe algumas horas de liberdade,
alguns lindos passeios pelo braço de uma amiga, que a há-de consolar de todas as suas
infelicidades, e dar-lhe mais do que perder. Trata-se até, se absolutamente o quiser, da sua plena
liberdade. Trataremos circunstanciadamente desse objecto na primeira entrevista que tivermos.”


Oliva devorou este bilhete. Sentiu assomar-lhe ao rosto a febre da independência e ao

coração a voluptuosidade do fruto proibido.

Tinha reparado que o conde, cada vez que entrava em casa, trazendo-lhe algum livro, ou

alguma jóia, deixava a lanterna de furta-fogo sobre uma cómoda, e a chave sobre a lanterna.

Oliva preparou antecipadamente um pedaço de cera amassado, e tirou o molde da chave

logo na seguinte visita de Cagliostro.

Este não voltou uma única vez a cabeça: enquanto ela fazia esta operação, examinava na

varanda algumas flores novamente desabrochadas. Oliva pôde portanto com toda a tranqüilidade
levar a cabo o seu projecto.

O conde retirou-se, e Oliva meteu o molde numa caixa e atou-a na linha. Joana recebeu-a

juntamente com um bilhetinho.

E logo no dia seguinte, pelo meio-dia, o arco, meio extraordinário e expeditivo, meio que

estava para a correspondência pelo fio como o telégrafo para o correio a cavalo, o arco, dizemos
nós, levou um bilhete nestes termos:


“Minha querida, esta noite, às onze horas, quando o seu ciumento se tiver retirado,

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descerá, abrirá os fechos, e achar-se-á nos braços desta que se diz sua extremosa amiga.”


Oliva estremeceu de prazer como nunca lhe sucedera com os mais ternos bilhetes de

Gilberto, na Primavera dos primeiros amores e dos primeiros encontros.

Desceu pelas onze horas sem haver notado a mais leve suspeita no conde. Encontrou em

baixo Joana, que a apertou ternamente nos braços, fê-la subir para uma carruagem, que as
esperava ao pé do bulevar, e atordoada, palpitante, inebriada, deu um passeio com a sua amiga,
que durou duas horas, durante as quais, segredos, beijos, projectos de futuro, se trocaram sem
descanso entre as duas companheiras.

Joana foi a primeira em aconselhar a Oliva que voltasse para casa, a fim de não despertar

desconfianças no seu protector. Acabava de saber que esse protector era Cagliostro. Temia o
génio desse homem, e não via segurança para os seus planos senão no mais profundo mistério.

Oliva entregara-se sem reserva: Beausire, a polícia, tudo tinha confessado.
Joana de La Motte tinha-se feito passar por uma rapariga de boa família, vivendo com um

amante às escondidas dos seus parentes.

Uma sabia tudo, ao passo que a outra tudo ignorava. Tal era a amizade jurada entre

aquelas duas mulheres.

A partir daquele dia, não tiveram mais necessidade do arco, nem da linha. Joana tinha

uma chave e fazia descer Oliva quando queria.

Uma ceia delicada, um passeio furtivo, eram as redes em que Oliva se deixava sempre

prender.

– O Sr. de Cagliostro não tem descoberto coisa nenhuma? – perguntava algumas vezes

Joana com inquietação.

– Ele! Ora adeus; ainda que eu lho dissesse não me acreditava – respondeu Oliva.
Oito dias bastaram para que essas saídas nocturnas se tornassem numa necessidade, num

hábito e até num prazer. Ao cabo de oito dias, o nome de Joana achava-se nos lábios de Oliva
muitas mais vezes do que nunca se tinha achado o nome de Gilberto ou de Beausire.

LXIV

A entrevista


Quando o Sr. de Charny chegou às suas terras, fechou-se em casa depois das primeiras

visitas, porque o médico ordenou-lhe que não recebesse mais ninguém, nem saísse do quarto,
ordem que com tal rigor foi cumprida que nem um só habitante daquele lugar pôde mais avistar o
herói do combate naval, que tanta bulha fizera em toda a França, e que todas as raparigas
diligenciavam ver, porque era notoriamente conhecido como valente, e diziam-no notavelmente
galante.

A verdade é que Charny não estava tão doente do corpo como se dizia. Só padecia do

corpo e da cabeça; mas que mal, santo Deus! Uma dor aguda, incessante, cruel, a dor de uma
recordação, que o queimava, a dor de uma saudade, que o despedaçava.

O amor não é mais que uma nostalgia: o ausente chora um paraíso ideal, em lugar de

chorar uma pátria material, e pode-se até admitir, por mais amador que se seja de poesia, que a
mulher amada é um paraíso um pouco mais material que o dos anjos.

O Sr. de Charny não se conservou assim três dias. Furioso por ver todos os sonhos

deflorados pela impossibilidade, apagados pelo espaço, fez espalhar por todo o lugar a ordem do
médico, que já referimos; depois, confiando a guarda das portas a um criado fiel, partiu do seu
solar, de noite, montado num cavalo manso e ligeiro. Oito horas depois estava em Versalhes, e
mandava um criado alugar uma casita por detrás da quinta real.

Esta casa, abandonada desde o trágico fim de um dos gentis-homens do paço, que nela se

suicidara degolando-se, convinha admiravelmente a Charny, que queria esconder-se nela melhor

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do que nas suas terras.

Estava decentemente mobiliada, tinha duas portas, uma para uma rua deserta, outra para

a ala que circundava a quinta, e das janelas do sul podia Charny mergulhar a vista na rua dos
Álamos, porque cercadas de parreira e de hera, uma vez abertas, pareciam apenas portas um
pouco elevadas e por onde seria fácil penetrar na quinta real dando um pequeno salto.

Este privilégio, já naquele tempo muito raro, fora concedido a um inspector das caçadas,

para que, mais facilmente, pudesse vigiar os gamos e faisões de Sua Majestade.

Figurava-se-nos, ao ver aquelas janelas alegremente cercadas da viçosa moldura, o

melancólico monteiro encostado, numa tarde de outono, na janela do centro, enquanto as corças,
fazendo estalar as delgadas pernas sobre as folhas secas, brincavam no meio da mata, alumiadas
por um pálido raio do sol poente.

Esta solidão agradou a Charny, mais do que qualquer outra. Seria pelo amor das

paisagens? Em breve o saberemos.

Uma vez instalado, depois de tudo bem fechado, depois do seu criado ter despersuadido

as respeitosas curiosidades da vizinhança, Charny, esquecido como ele esquecia, começou uma
vida, cuja única idéia fará estremecer qualquer que, na sua passagem pela terra, tiver amado ou
ouvido falar de amor.

Em menos de quinze dias estava ao facto de todos os hábitos do palácio, dos costumes

dos guardas, conhecia as horas a que os pássaros iam beber aos lagos, e em que o gamo, com o
olhar espantado, passava estendendo a cabeça para um e outro lado. Sabia quais as ocasiões dos
passeios da rainha ou das suas damas, o instante das rondas, numa palavra, viveu de longe com os
que viviam naquele Trianon, templo das suas adorações insensatas.

Como a estação era bela, e as noites doces e perfumadas davam mais liberdade aos seus

olhos e mais doce meditação à sua alma, passava uma parte delas debaixo dos jasmins da sua
janela, espreitando os rumores longínquos que vinham do palácio, seguindo pelas aberturas das
folhas o jogo das luzes, sempre em movimento depois do pôr do sol.

Em breve deixou de lhe bastar a janela. Estava muito afastado daquela bulha e daquelas

luzes. Saltou da sua casa para cima da luzerna, bem certo de não encontrar, a essa hora, nem cães,
nem guardas, e procurou a deliciosa, a perigosa voluptuosidade de ir até à beira da rua dos
Álamos, no limite que separa a sombra densa do esplêndido luar, para interrogar dali aqueles
perfis negros e pálidos, que passavam por detrás das cortinas brancas das janelas dos aposentos
da rainha.

Daquele modo todos os dias a via, sem que ela o soubesse.
Conhecia-a à distância de um quarto de légua quando, caminhando com as damas ou com

algum gentil-homem da sua casa, ia brincando com a umbela chinesa, que lhe abrigava o grande
chapéu enfeitado de flores.

Nenhuns ademanes, nenhuns modos se podiam confundir com os dela. Conhecia bem

todos os vestidos que a rainha possuía, e distinguia, por entre as folhas, a grande capa verde com
bandas pretas, que ela fazia ondear por um movimento do corpo castamente sedutor.

E quando a visão desaparecia, quando a noite, afugentando os passeantes, lhe permitia ir

espreitar até perto das estátuas do peristilo as últimas oscilações daquele corpo adorado, Charny
voltava para a sua janela, olhava de longe, por uma abertura que praticara por entre as árvores,
para a luz que brilhava nas vidraças do quarto da rainha, esperava que desaparecesse a luz, e então
vivia de recordações e de esperança, como acabava de viver de vigilância e de admiração.

Uma noite, depois dele ter regressado, e de haverem já passado duas horas depois do seu

último adeus à sombra ausente, e do orvalho começar a cobrir com as suas pérolas brancas as
folhas da hera, estava Charny para ir deitar-se na cama, quando de repente lhe soou ao ouvido o
ruído de uma chave que não dava volta pronta na fechadura; correu ao seu observatório e
escutou.

A hora ia adiantada. Dava meia-noite nos relógios das freguesias de Versalhes, e por isso

Charny admirou-se de ouvir aquela bulha, a que não estava habituado.

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A fechadura rebelde era a de uma pequena porta da quinta, situada a coisa de vinte e

cinco passos da casa de Olivier, e que só se abria nos dias das grandes caçadas, para a passagem
dos cestos de veação.

Charny notou que os que abriam aquela porta não falavam; tornaram a correr os fechos e

entraram na rua, que lhe passava debaixo das janelas.

Os caniçados e os pâmpanos pendentes encobriam bastante as janelas e a parede para

que, ainda que olhassem para cima, pudessem vê-lo ao passar.

Além disso, os que caminhavam abaixavam a cabeça e apressavam o passo. Charny

distinguiu confusamente os vultos na sombra; mas pela bulha das saias conheceu que eram duas
mulheres, cujos manteletes de seda roçavam pelos arbustos e plantas.

Essas mulheres, quando voltaram para a rua larga que ficava em frente das janelas da casa

de Charny, foram alumiadas pelo raio mais livre da lua, e Olivier esteve a ponto de soltar um grito
de alegre surpresa, reconhecendo a figura e o toucado de Maria Antonieta, assim como a parte
inferior do rosto, alumiado claramente, apesar do sombrio reflexo da aba do chapéu. Levava uma
bela rosa na mão.

Com o coração palpitante, Charny deixou-se escorregar do alto das suas janelas para a

quinta. Correu pela relva para não fazer bulha, escondendo-se por detrás das maiores árvores e
seguindo com a vista as duas mulheres, cujo andar a cada passo se tornava mais vagaroso.

O que devia ele fazer? A rainha levava consigo companhia; não corria perigo. Oh! Por

que não ia ela só? Teria afrontado todos os tormentos para se aproximar e dizer-lhe de joelhos:
amo-a! Oh! Por que não a colocaria Deus nalgum perigo imenso? Teria dado a sua vida para
salvar tão preciosa existência!

Enquanto pensava nisto meditando mil loucas ternuras, as duas senhoras pararam

repentinamente; uma delas, a mais baixa, disse algumas palavras ao ouvido da sua companheira, e
em seguida afastou-se dela.

A rainha ficou só; via-se a outra senhora caminhar apressadamente para um fim, que

Charny não adivinhava ainda. A rainha, batendo no chão com o pezinho, encostava-se a uma
árvore e embrulhava-se cuidadosamente na sua manta, de modo a cobrir a cabeça com o capuz
que, um momento antes, lhe pendia em largas pregas sobre o ombro.

Quando Charny a viu só, e assim pensativa, deu um salto como se quisesse ir cair-lhe aos

pés de joelhos.

Mas lembrou-se que trinta passos pelo menos o separavam dela; que antes de ter andado

esses trinta passos, ela vê-lo-ia, e se assustaria por não o conhecer; que havia de gritar ou de fugir;
que os seus gritos atrairiam primeiramente a confidente, e depois alguns guardas; que dariam
busca à quinta; que descobririam pelo menos o indiscreto, talvez até o esconderijo, e que se
acabava para sempre o segredo, a felicidade, o amor.

Soube conter-se, e fez bem, porque apenas acabava de reprimir aquele impulso, a

companheira da rainha tornou a aparecer, e não vinha só.

Charny viu por detrás dela, a dois passos, caminhar um homem de bela estatura,

encoberto com um grande chapéu, e embuçado numa ampla capa.

Este homem, cujo aspecto fez tremer o Sr. de Charny de ódio e de ciúme, não avançava

como triunfador. De passo incerto, arrastava os pés com hesitação, parecendo caminhar às
apalpadelas no meio das trevas, como se por guia não tivesse a companheira da rainha, e por alvo
a própria rainha, em pé e firme, debaixo de uma árvore.

Assim que viu Maria Antonieta, o tremor que Charny lhe notara cresceu. O desconhecido

tirou o chapéu e, por assim dizer, varreu o chão com ele. Continuava a avançar. Charny viu-o
penetrar na espessura da sombra, e cortejar profundamente e repetidas vezes.

Entretanto a surpresa de Charny mudara-se em espanto. Do espanto ia em breve passar

para outra comoção muito mais dolorosa. Que vinha a rainha fazer à quinta a hora tão adiantada?
Que vinha ali fazer aquele homem? Por que tinha aquele homem esperado escondido? Por que o
tinha a rainha mandado chamar pela sua companheira em lugar de ir pessoalmente ter com ele?

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Charny esteve a ponto de perder a cabeça. Lembrou-se, contudo, que a rainha se ocupava

de política misteriosa, que muitas vezes ligava intrigas com as cortes da Alemanha, relações estas
de que o rei não gostava, e proibia severamente.

Talvez que aquele misterioso cavaleiro fosse algum correio de Schoenbrunn ou de Berlim,

algum gentil-homem portador de alguma mensagem secreta, uma dessas figuras alemãs, que Luís
XVI não queria ver em Versalhes, desde que o imperador José II tomara a liberdade de vir a
França fazer um curso desenvolvido de filosofia e de política crítica para uso do seu cunhado o
rei cristianíssimo.

Esta idéia, como o capacete de gelo que o médico aplica à fronte que escalda em febre,

refrescou o pobre Olivier, restituiu-lhe a inteligência, e abrandou o delírio da sua primeira cólera.
A rainha conservava uma atitude cheia de decoro e dignidade.

A confidente, colocada à distância de três passos, inquieta, atenta, espreitadora como as

amigas ou as aias dos quadros de Watteau, perturbava pela sua condescendente ansiedade as
idéias demasiado castas do Sr. de Charny. Mas há tanto perigo em ser surpreendida em
conferências políticas como há vergonha em ser apanhada em encontros amorosos. E nada há
mais semelhante a um namorado do que um conspirador. Ambos têm a mesma capa, a mesma
susceptibilidade de ouvido, a mesma incerteza de pernas.

Charny não teve muito tempo para profundar estas reflexões; a confidente interrompeu a

conversa. O cavalheiro fez um movimento como para se mostrar; recebia decerto a sua despedida
depois da audiência.

Charny escondeu-se por detrás de uma árvore. Seguramente, o grupo, separando-se, ia

por fracções passar diante dele. Suster a respiração, rogar aos gnomos e aos silfos que apagassem
todos os ecos, quer da terra, quer do céu, era quanto lhe restava fazer.

Naquele momento julgou ver um objecto de cor clara cair ao longo do manto real. O

gentil-homem inclinou-se vivamente até ao chão, depois, tornou a erguer-se com um movimento
respeitoso, e fugiu, porque seria impossível dar outra designação à rapidez com que se retirou.

Mas foi detido no caminho pela companheira da rainha, que o chamou com um pequeno

grito, e quando parou, disse-lhe a meia voz esta palavra:

– Espere!
Era um homem obediente, porque parou no mesmo instante e esperou.
Charny viu então as duas mulheres passarem de braço dado na distância de dois passos

do seu esconderijo; o ar, agitado pelo vestido da rainha, fez mover a folhagem quase debaixo das
mãos do Sr. de Charny.

Sentiu os perfumes que conhecia de casa da rainha: a verbena misturada com reseda,

dupla embriaguez para os sentidos e para a memória.

As mulheres passaram e desapareceram.
Depois, passados alguns minutos, veio o desconhecido, em quem Charny nunca mais

pensara durante todo o caminho que a rainha percorrera até à porta; beijava com paixão, com
loucura, uma rosa toda fresca, toda embalsamada, que certamente era a que Charny admirara nas
mãos da rainha, quando esta entrou na quinta, e que pouco antes vira cair das mãos da sua
soberana.

Uma rosa! Um beijo nessa rosa! Tratava-se de embaixada e de segredos de Estado?
Charny esteve a ponto de enlouquecer. Ia lançar-se àquele homem e arrancar-lhe a flor,

quando a companheira da rainha tornou a aparecer, dizendo:

– Vossa Alteza pode vir.
Charny julgou que seria algum príncipe de sangue, e encostou-se à árvore para não cair

meio morto na relva.

O desconhecido dirigiu-se para o lado donde a companheira da rainha o chamava, e

ambos desapareceram.

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LXV

A mão da rainha


Quando Charny se achou em casa ferido por tão terrível golpe, faltaram-lhe as forças

contra semelhante desgraça.

Assim a Providência trouxera-o a Versalhes e dera-lhe aquele esconderijo precioso

unicamente para servir o seu ciúme e pô-lo na pista de um crime cometido pela rainha em
menoscabo de toda a honra conjugal, de toda a dignidade real, de toda a fidelidade amorosa.

Não havia que duvidar: o homem assim recebido na quinta era um novo amante. Charny,

na febre da noite, no delírio do seu desespero, tentou em vão persuadir-se de que o homem que
recebera a rosa era um embaixador, e que a rosa nada mais era do que um penhor de convenção
secreta, destinado a substituir uma carta, que é sempre objecto susceptível de comprometimento.

Nada pôde prevalecer contra a suspeita. Nada mais restou ao infeliz Olivier senão

examinar o seu próprio procedimento e perguntar a si mesmo, por que motivo, em presença de
uma tal desgraça, ficara ele completamente passivo.

Com alguma reflexão, nada mais fácil do que compreender o instinto que ordenara aquela

passibilidade.

Nas mais violentas crises da vida surge momentaneamente a acção do fundo da natureza

humana, e o instinto que deu o impulso não é outra coisa, nos homens bem organizados, senão
uma combinação do hábito e da reflexão levados ao seu mais subido grau de velocidade e de
oportunidade. Se Charny ficara imóvel, é porque os negócios da soberana não eram da sua conta;
é porque, mostrando a sua curiosidade, mostrava o seu amor; é porque, comprometendo a
rainha, traía-se a si próprio; e é má posição a traição recíproca na presença dos traidores a quem
se quer convencer de tal.

Se ficara imóvel, é que, para se dirigir a um homem honrado com a confiança real, era

preciso arriscar-se a cair numa questão odiosa, de mau gosto, a revelar-se numa espécie de
emboscada, que a rainha nunca lhe perdoaria.

Finalmente as palavras: vossa alteza, ditas no fim pela confidente, eram como que um

salutar aviso, bem que um tanto tardio, que teria salvado Charny abrindo-lhe os olhos no ponto
mais forte do seu furor. Que seria dele, simples fidalgote, se de espada desembainhada contra
aquele homem, lhe tivesse ouvido chamar príncipe? E de que peso não seria o seu erro, caindo de
tão grande altura?

Tais foram os pensamentos que preocuparam Charny durante toda a noite, e a primeira

metade do seguinte dia. Depois que deu meio-dia, a véspera já não era nada para ele. Não lhe
ficou mais senão a espera febril, devoradora da noite, durante a qual outras revelações iam talvez
produzir-se.

Com que ansiedade o pobre Charny se colocou naquela janela, que era a morada única, o

limite, que não podia transpor, da sua vida! Ao vê-lo assim debaixo daqueles pâmpanos, por
detrás dos buracos abertos nas janelas, porque receava que percebessem que a casa era habitada;
ao considerá-lo, dizemos nós, naquele quadrilátero de carvalho e verdura, não se diria ser um
desses velhos retratos escondidos por detrás das cortinas, que lançava sobre os antepassados, nos
antigos castelos, a piedosa solicitude das famílias?

Chegou a noite, trazendo ao nosso ardente espreitador os sombrios desejos e os loucos

pensamentos.

Os rumores ordinários pareceram-lhe ter nova significação. Viu ao longe a rainha, que

atravessava o patim acompanhada por alguns criados que iam adiante, levando luzes. A sua
atitude pareceu-lhe pensativa, incerta, toda perturbada da agitação da noite.

A pouco e pouco foram-se apagando todas as luzes do serviço, e a quinta, solitária, ficou

cheia de silêncio e de frescura. Não parece que as árvores e as flores, que se cansam de dia em
desabrochar para agradar às vistas a acariciar os que passam, se esforçam em recobrar de noite,

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quando ninguém as vê nem lhes toca, a sua frescura, os seus perfumes e a sua suavidade? E
efectivamente os bosques e as plantas dormem como nós.

Charny lembrara-se perfeitamente da hora da entrevista da rainha. Deu meia-noite.
O coração de Charny palpitava apressadamente. Encostou o peito ao balaústre da janela

para abafar as palpitações, que se tornavam cada vez mais freqüentes e violentas.

– Em breve – dizia ele consigo – a porta há-de abrir-se, e os fechos hão-de ranger.
Nada perturbou a paz do bosque.
Charny admirou-se então de pensar pela primeira vez que os mesmos acontecimentos

não se sucedem dois dias seguidos; que nada havia de obrigatório naquele amor, senão o próprio
amor, e que decerto seriam bem loucos, bem imprudentes os amantes que, tomando tão
invencível hábito, não pudessem passar dois dias sem se verem, de modo tão perigoso.

– Segredo aventurado – pensou Charny – quando nele entra a loucura!
Sim, era uma verdade incontestável, a rainha não havia de repetir no dia seguinte a

imprudência da véspera.

De repente ouviu a bulha dos fechos, e a portinha abriu-se.
Uma palidez mortal assomou às faces de Olivier quando distinguiu as duas mulheres,

como na véspera.

– Como ela está namorada! – murmurou ele.
As duas senhoras deram as mesmas voltas que na véspera haviam dado, e passaram

debaixo da janela de Charny, estugando o passo.

Ele, como na véspera, saltou ao chão logo que as viu longe bastante para o não ouvirem;

e caminhando sempre escondido pelas árvores maiores, jurou a si mesmo ser prudente, forte,
impassível; não esquecer que era súbdito, e que ela era a rainha; que ele era homem, isto é, que
tinha por dever ser respeitoso e ela era uma mulher, isto é, que tinha direito de exigir atenções.

E como não se fiava no seu carácter fogoso, explosivo, tirou a espada e escondeu-a

debaixo de umas malvas, que cercavam um castanheiro.

Entretanto as duas senhoras tinham chegado ao mesmo ponto onde haviam estado na

véspera. Como na véspera também, Charny reconheceu a rainha, e esta envolveu a cabeça no
capuz, enquanto a oficiosa amiga ia buscar ao seu esconderijo o desconhecido, a quem davam o
título de alteza.

Onde era esse esconderijo? Era o que Charny perguntava a si mesmo. Havia, na verdade,

na direcção que tomou a condescendente amiga, a sala dos banhos de Apolo, protegida por altas
latadas de flores e pela sombra das suas pilastras de mármore; mas como podia ali esconder-se o
sujeito? Por onde entrava ele?

Charny lembrou-se que daquele lado da quinta existia uma pequena porta semelhante à

que as senhoras abriam para vir à entrevista. O desconhecido tinha certamente alguma chave
daquela porta. Entrava por ela, dirigia-se para os banhos de Apolo, e esperava ali que o fossem
buscar.

Tudo estava bem combinado assim; depois era pela mesma porta que fugia Sua Alteza

após o seu colóquio.

Passados alguns minutos, Charny viu a capa e o chapéu, que na véspera distinguira.
Desta vez o desconhecido já não caminhava para a rainha com tão respeitosa precaução

como na véspera: vinha a passos largos, não se atrevendo a correr, mas pouco faltava para isso.

A rainha, encostada a uma grande árvore, assentou-se sobre a capa, que o novo Raleigh

estendeu no chão para ela, e enquanto a amiga vigilante fazia sentinela, como na véspera, o
amoroso fidalgo, ajoelhado na relva, começou a falar com uma rapidez apaixonada e fervorosa.

A rainha abaixava a cabeça, entregue a uma melancolia amorosa. Charny não podia ouvir

nem sequer as palavras do cavaleiro, mas pareciam ser repassadas de poesia e de amor. Cada uma
das entoações podia traduzir-se por um protesto ardente.

A rainha não dava resposta. Entretanto o desconhecido, aumentando a doçura dos seus

discursos, parecia por vezes a Charny, ao desgraçado Charny, que a palavra envolta naquele

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estremecimento harmonioso, ia romper inteligível, e que então ele morreria de cólera e de ciúme.
Mas, nada, nada. No momento em que a voz se aclarava, um gesto significativo da confidente,
que estava de atalaia, obrigava o apaixonado orador a diminuir o diapasão das suas elegias.

A rainha conservava obstinado silêncio.
O cavaleiro, acumulando rogos sobre rogos, o que Charny adivinhava pela vibrante

melodia das inflexões, só obtinha o doce consentimento do silêncio, insuficiente favor para os
lábios ardentes que começavam a beber o amor.

Mas de repente a rainha soltou algumas palavras.
Assim é preciso crê-lo, pelo menos. Palavras bem abafadas, bem apagadas, porque só o

desconhecido as pôde ouvir; mas apenas as ouviu, no excesso do seu arrebatamento, exclamou de
modo que foi possível ouvi-lo:

– Obrigado, ó minha doce Majestade, muito obrigado! Então até amanhã.
A rainha ocultou de todo o rosto, que já estava em parte encoberto.
Charny sentiu um suor de gelo, o suor dos finados, descer-lhe lentamente e em gotas

pesadas sobre as fontes.

O desconhecido acabava de ver as duas mãos da rainha estenderem-se para ele. Tomou-

as nas suas beijando-as com tanto ardor e ternura, que Charny suportou, enquanto isso durou, o
padecimento de todos os suplícios, que a ferocidade humana tem roubado às barbaridades
infernais.

Dado este beijo, levantou-se a rainha apressadamente, e tomou o braço da sua

companheira.

Ambas fugiram, passando como na véspera ao pé de Charny.
O desconhecido fugiu igualmente, e Charny, que não havia podido tirar-se do lugar onde

o prendia a prostração de uma dor indizível, ouviu vagamente o rumor simultâneo de duas
portas, que se fechavam.

Não tentaremos descrever a situação de Charny depois desta horrível descoberta.
A noite passou-se para ele em furiosas correrias pela quinta, a cujas ruas criminava com

desespero pela sua cumplicidade.

Charny, louco durante algumas horas, só recobrou a razão quando, na sua corrida

desvairada, deu de encontro à espada, que escondera para não se tentar a fazer uso dela.

Esse ferro, que se lhe embaraçou nos pés, fazendo-o cair, chamou-o repentinamente ao

sentimento da sua força e da sua própria dignidade. Um homem, que sente na mão uma espada,
se ainda está louco, pode ou ferir-se com ela, ou ferir quem o ofendeu; mas não pode ser fraco,
não pode ter medo.

Charny tornou-se no que era sempre, um espírito sólido, um corpo vigoroso. Não

continuou as corridas insensatas, durante as quais ia de encontro ás árvores, e caminhou direito e
silencioso na alameda, por onde haviam seguido as duas mulheres e o desconhecido.

Foi visitar o lugar onde a rainha estivera assentada. A relva, ainda achatada, revelava a

Charny a sua infelicidade e a ventura de outrem! Em lugar de gemer, e deixar os fumos da cólera
subirem-lhe de novo à cabeça, Olivier começou a reflectir sobre a natureza desse amor oculto, e
sobre a qualidade da pessoa que o inspirava.

Foi explorar os passos daquele senhor com a fria atenção que teria empregado em

examinar as pegadas de um animal feroz. Reconheceu a porta por detrás dos banhos de Apolo.
Viu, subindo ao espigão do muro, patadas de cavalo e muito estrago na erva.

– Vem por ali! Não vem de Versalhes, vem de Paris – pensou Olivier. – Vem só, e

amanhã há-de voltar, porque lhe disseram: Até amanhã.

“Até amanhã devoremos silenciosamente, não já as lágrimas que me correm dos olhos,

mas o sangue que em borbotões me sai do coração.”

“Amanhã há-de ser o último dia da minha vida, se é que não sou um cobarde e nunca

amei.”

“Vamos, vamos, disse ele batendo brandamente no peito, como o cavaleiro bate no

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pescoço do cavalo para o sossegar; vamos, sossego, força, que ainda não está tudo acabado.”

Dito isto, lançou um último olhar em volta de si, desviando os olhos do palácio, onde

receava ver alumiada a janela do quarto da rainha, porque aquela luz seria uma mentira e uma
mácula mais.

De feito, estar luz no quarto não significava simplesmente que era habitado? E para que é

mentir assim, quando há o direito da impudicícia e da desonra, quando tão pequena distância
separa a mulher da vergonha oculta e do escândalo público!

A janela da rainha estava iluminada.
– Fazer acreditar que está em casa, quando anda correndo pela quinta com um amante!

Realmente, é uma castidade inútil – disse Charny acentuando as suas palavras com amarga ironia.
– É bondade de mais, nesta rainha, o dissimular assim connosco. É verdade, que talvez receie
perturbar o sossego do marido.

E Charny, fazendo um gesto de desespero, dirigiu-se para casa com passos vagarosos.
– Disseram: Até amanhã – acrescentou ele depois de ter saltado para dentro de casa pela

janela. – Pois bem, até amanhã!... até amanhã, para todos, porque amanhã seremos quatro no
encontro, minha senhora!

LXIV

Mulher e rainha


O dia seguinte trouxe as mesmas peripécias. A porta abriu-se com o último som da meia-

noite. As duas mulheres apareceram.

Era, como nos contos árabes, a assiduidade dos génios obedecendo aos talismãs, a horas

fixas.

Charny tomara todas as resoluções; queria naquela noite conhecer o feliz personagem a

quem a rainha favorecia.

Fiel aos seus hábitos, apesar de não serem inveterados, caminhou, escondendo-se por

detrás das latadas; mas quando chegou ao sítio onde, havia dois dias, se verificava o encontro dos
dois amantes, não achou ninguém.

A confidente da rainha conduzia Sua Majestade para o lado dos banhos de Apolo.
Uma horrível ansiedade, uma dor inteiramente nova, aterrou Charny. A sua inocente

probidade nunca imaginara que o crime pudesse ir tão longe.

A rainha, sorrindo e falando ao ouvido da sua confidente, caminhou para o sombrio asilo,

no limiar do qual a esperava, de braços abertos, o gentil-homem desconhecido.

Ela entrou, estendendo também os braços. A grade de ferro fechou-se sobre eles.
A cúmplice ficou da parte de fora, encostada a um tronco todo coberto de folhagem.
Charny não calculara bem as suas forças. Não pôde resistir a semelhante choque. No

momento em que, enfurecido, ia precipitar-se sobre a confidente da rainha para a desmascarar,
reconhecê-la, injuriá-la, esmagá-la talvez, o sangue, como uma torrente vencedora, afluiu-lhe às
fontes e ao peito, e sufocou-o.

Caiu na relva deixando ouvir um fraco suspiro, que foi, durante um segundo, perturbar o

sossego daquela sentinela postada à entrada dos banhos de Apolo.

Sufocava-o uma hemorragia interior, causada pelo ferimento, que de novo se abrira.
O pobre moço foi chamado de novo à vida pelo frio do orvalho, pela umidade da terra e

pela impressão vivaz da sua própria dor.

Ergueu-se, cambaleando, reconheceu o lugar, a sua situação, recordou-se de tudo, e

procurou.

A sentinela desaparecera e não se ouvia rumor algum. Um relógio, que em Versalhes deu

duas horas, fez-lhe saber que o desfalecimento fora longo.

Sem dúvida a horrível visão desaparecera: rainha, amante e confidente tinham tido tempo

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de fugir. Charny pôde convencer-se disso olhando por cima do muro e vendo os vestígios
recentes da partida do cavaleiro.

Esses vestígios, e algumas plantas pisadas à entrada dos banhos de Apolo, confirmavam a

convicção do desventurado Charny.

A noite foi um longo delírio. Ao amanhecer ainda não tinha sossegado.
Pálido como um defunto, envelhecido dez anos, chamou o criado e ordenou-lhe que o

vestisse de veludo preto, como homem rico do terceiro estado.

Triste, mudo, absorvendo todas as suas dores, encaminhou-se vagarosamente para o

palácio de Trianon, no momento em que acabavam de render a guarda, isto é, pelas dez horas.

A rainha saía da capela, onde fora ouvir missa.
Na sua passagem abaixavam-se com respeito as cabeças e as espadas.
Charny viu algumas mulheres cheias de despeito ao verem a formosura da rainha.
Efectivamente, era formosa com os lindos cabelos levantados, o sorriso nos lábios, e

mostrando nos olhos fatigados, mas brilhantes, uma suave expressão.

De repente viu Charny. Corou e soltou um grito de imensa surpresa.
Charny não abaixou a cabeça. Continuou olhando para a rainha, que lhe leu no olhar uma

nova desgraça, e dirigindo-se para ele, disse com severidade:

– Não esperava vê-lo agora! Não estava nas suas terras, Sr. de Charny?
– Já voltei, minha senhora – disse ele em tom breve quase incivil.
Ela parou estupefacta; nunca lhe escapava o tom em que lhe falavam.
Depois desta troca de olhares e de palavras quase hostis, voltou-se para o lado das

senhoras.

– Bons dias, condessa – disse ela com amizade à Srª. de La Motte.
E fez-lhe um sinal com os olhos de um modo inteiramente familiar.
Charny estremeceu. Olhou com mais atenção.
Joana, inquieta, voltou a cara.
Charny seguiu-a como teria feito um louco, até que lhe tornasse a mostrar a cara.
Depois andou à roda dela, estudando-lhe e examinando-lhe o modo de andar.
A rainha, cortejando para a direita e para a esquerda, seguia contudo o manejo dos dois

observadores.

– Estará doido? – pensou ela. – Pobre rapaz!
E voltou para ele.
– Então como está, Sr. de Charny? – perguntou ela com voz suave.
– Muito bem, minha senhora, mas, graças a Deus, menos bem do que Vossa Majestade.
E fez uma cortesia de modo tal, que aterrou a rainha mais do que a tinha surpreendido.
– Há novidade – disse Joana consigo.
– Onde mora agora? – continuou a rainha.
– Em Versalhes, minha senhora – disse Olivier.
– Desde quando?
– Há três noites – respondeu o mancebo carregando com o olhar, com o gesto e com a

voz nestas palavras.

A rainha não manifestou comoção alguma; Joana estremeceu.
– Não tem alguma coisa que dizer-me? – perguntou a rainha a Charny com uma doçura

angélica.

– Oh! Minha senhora – redargüiu este – teria demasiadas coisas que dizer a Vossa

Majestade.

– Venha! – disse ela asperamente.
– Vigiemos – pensou Joana.
A rainha dirigiu-se para os seus quartos, caminhando a passos largos. Todos a seguiram

com agitação igual. O que pareceu à Srª. de La Motte um favor da Providência foi que Maria
Antonieta, para não parecer que queria estar a sós com Charny, convidou algumas pessoas para

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que a acompanhassem.

No meio dessas pessoas meteu-se Joana.
A rainha chegou ao seu quarto e mandou retirar a Srª. de Misery e todas as suas criadas.
Estava o dia bonito, mas encoberto; o sol não rompia as nuvens, mas deixava filtrar o

calor e a luz através das camadas brancas e azuis.

A rainha abriu a janela, que dava para um pequeno terraço, assentou-se diante duma

secretária carregada de cartas e esperou.

A pouco e pouco as pessoas que a tinham seguido compreenderam o desejo que ela tinha

de ficar só, e afastaram-se.

Charny, impaciente, devorado pela cólera, amarrotava entre as mãos o chapéu.
– Fale! Fale! – disse a rainha; – parece estar muito perturbado, senhor?
– Como começarei eu? – disse Charny repetindo em voz alta o que pensava; – como

ousarei acusar a honra, a fé e a majestade?

– Como? – exclamou Maria Antonieta voltando-se vivamente com o olhar chamejante.
– E contudo, só direi o que vi! – continuou Charny.
A rainha levantou-se.
– Sr. de Charny – disse ela friamente – é muito cedo para que eu o julgue embriagado;

todavia, tem aqui uma atitude pouco decente para um gentil-homem em jejum.

Ela esperava esmagá-lo com este ataque de desprezo.
Ele, imóvel a princípio, continuou depois:
– Afinal, o que é uma rainha? Uma mulher. E eu o que sou? Um súbdito, mas também

sou um homem.

– Senhor!
– Minha senhora, não envolvamos o que tenho a dizer numa cólera que conduziria à

loucura. Julgo ter já provado, que respeito a majestade real; receio ter provado também que nutria
um amor insensato pela pessoa da rainha. Assim, digne-se escolher a qual das duas quer que este
adorador faça uma acusação de opróbrio e deslealdade: à mulher ou à rainha?

– Sr. de Charny – exclamou a rainha empalidecendo e caminhando para o mancebo – se

não sai daqui imediatamente, mando-o pôr fora pela minha guarda!

– Então, antes de ser posto fora, vou dizer-lhe porque é uma rainha indigna e uma

mulher sem honra! – exclamou Charny louco de raiva. – Há três noites que a tenho seguido na
quinta!

Em lugar de a ver saltar sob tão terrível golpe, como esperava, Charny viu a rainha erguer

a cabeça e aproximar-se dele com brandura.

– Sr. de Charny – disse ela pegando-lhe na mão – está num estado lastimoso; acautele-se!

Os seus olhos cintilam, as mãos tremem-lhe, está com as faces descoradas, todo o sangue lhe
aflui ao coração; vê-se bem que padece. Quer que chame alguém?

– Vi-a, vi-a – repetiu ele friamente – vi-a com aquele homem quando lhe deu a rosa,

quando ele lhe beijou as mãos, quando entrou com ele nos banhos de Apolo!

A rainha passou uma das suas mãos pela fronte, como para ter a certeza de que não

dormia.

– Vamos – disse ela – assente-se, porque vai cair se não o seguro; assente-se.
Charny deixou-se com efeito cair numa poltrona. A rainha assentou-se num banco ao pé

dele; depois, pegando-lhe nas mãos e olhando para ele como querendo penetrar-lhe até ao fundo
da alma, disse:

– Sossegue o coração e a cabeça, repita-me o que acaba de me dizer.
– Oh! Quer matar-me! – murmurou o desgraçado.
– Deixe-me fazer-lhe perguntas. Quando voltou das suas terras?
– Há quinze dias.
– Onde vive?
– Mandei alugar a casa do monteiro; é onde moro.

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– Ah! Sim, a casa do suicida, no fim da quinta?
Charny fez um sinal afirmativo.
– Fala de uma pessoa que esteve comigo?
– Falo primeiro de Vossa Majestade, a quem vi.
– Onde?
– Na quinta.
– A que horas, em que dia?
– À meia-noite; terça-feira foi a primeira vez.
– E viu-me, a mim?
– Como a estou agora vendo, e vi igualmente quem a acompanhava.
– Acompanhava-me alguém? Pôde conhecer a pessoa que me acompanhava?
– Há pouco tinha-me parecido conhecê-la, mas não ousaria afirmá-lo. A figura parece-se;

quanto ao rosto, sempre se oculta quando se comete um crime.

– Bem! – disse a rainha com sossego – não pôde conhecer a minha companheira; mas a

mim?...

– Oh! Vi-a... Como agora a estou vendo.
A rainha bateu o pé no chão, com ansiedade.
– E... O tal companheiro – disse ela – aquele a quem dei uma rosa... Porque me viu dar

uma rosa...

– Sim; esse cavalheiro nunca o pude alcançar.
– Todavia, conhece-o?
– Dão-lhe o tratamento de alteza; é tudo quanto sei.
A rainha, mostrando os mais visíveis sinais de cólera, bateu na fronte.
– Prossiga – disse ela – prossiga; terça-feira dei uma rosa... E quarta-feira?...
– Quarta-feira, deu as mãos ambas para que lhas beijassem
– Oh! – murmurou ela mordendo as mãos... – Enfim, ontem, quinta-feira?...
– Ontem, passou hora e meia na gruta de Apolo com esse homem, e a sua companheira

deixou-a só com ele.

A rainha ergueu-se com ímpeto.
– E... O senhor viu-me? – disse ela destacando cada uma das palavras.
Charny levantou uma das mãos ao céu para jurar.
– Oh!... – bradou a rainha, levada também pela cólera... – e jura-o?!
Charny repetiu solenemente o seu gesto acusador.
– A mim? A mim? – disse a rainha batendo no seio; – a mim, viu-me...
– Sim, vi-a! Na terça-feira tinha o seu vestido verde com listras ondeadas de ouro; quarta-

feira o vestido de ramagem azul e pardo; ontem, ontem, o vestido de seda cor de folha seca, o
mesmo com que estava vestida no dia em que pela primeira vez lhe beijei a mão! Era Vossa
Majestade! Era Vossa Majestade! Eu morro de dor e de vergonha, dizendo-lho, pela minha vida,
pela minha honra, pelo meu Deus! Era Vossa Majestade! Era Vossa Majestade!

A rainha começou a andar a passos largos pelo terraço, importando-lhe pouco deixar ver

a sua estranha agitação às pessoas que, debaixo, a devoravam com a vista.

– Se eu fizesse um juramento – disse ela – se jurasse também pelo meu filho, pelo meu

Deus!... Também tenho um Deus, como o senhor!... Não, ele não havia de crer! Ele não havia de
crer!

Charny abaixou a cabeça.
– Insensato! – acrescentou a rainha sacudindo-lhe a mão com energia; e levou-o do

terraço para o seu quarto. – É então uma bem rara voluptuosidade a de acusar uma mulher
inocente, irrepreensível; é uma honra bem brilhante a de desonrar uma rainha?... Acreditará,
quando lhe digo que não foi a mim que viu? Acreditará, quando pelo Cristo juro que há já três
dias que não tenho saído depois das quatro horas da tarde? Quer que lhe faça provar pelas
minhas damas, pelo rei, que me viu aqui, que eu não podia estar em outra parte? Não... Não... Ele

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não acredita!

– Eu vi! – redargüiu Charny friamente.
– Oh! – exclamou de repente a rainha – eu sei, eu sei! Não me foi já lançada em rosto essa

atroz calúnia? Não me viram já no baile de máscaras do teatro, dando escândalo à corte? Não me
viram já em casa de Mesmer, em êxtases, dando escândalo diante dos curiosos e das mulheres
perdidas?... O senhor bem o sabe, o senhor que por mim se bateu!

– Minha senhora, naquele tempo bati-me porque não cria; hoje, se for preciso, hei-de

bater-me porque creio.

A rainha levantou ao céu os braços inteiriçados pelo desespero; duas lágrimas de fogo lhe

caíram sobre o seio.

– Meu Deus! – disse ela – inspirai-me uma idéia que me salve. Não quero ser desprezada

por este, ó meu Deus!

Charny sentiu-se comovido até ao fundo da alma por esta simples e vigorosa oração, e

escondeu o rosto entre as mãos.

A rainha, depois de reflectir um instante, disse:
– Senhor, deve-me uma reparação. Eis aqui o que de si exijo. Três noites seguidas viu-me

na quinta com um homem. Sabia, contudo, que já abusaram da semelhança que uma mulher, não
sei qual, tem comigo no rosto e no modo de andar, comigo infelizmente, com a rainha; mas uma
vez que preferiu crer que eu seja quem assim anda de noite; pois que há-de ir repetir que sou eu,
volte à quinta à mesma hora, volte lá comigo. Se sou eu a pessoa que ontem viu, forçosamente
me não verá hoje, pois que hei-de estar consigo. Se é alguma outra, por que não a tornaríamos a
ver juntos? E se não a tornarmos a ver... Ah! senhor, não se arrependerá de tudo quanto acaba de
me fazer padecer?

Charny, apertando a mão contra o coração, murmurou:
– Minha senhora, tem demasiada bondade para comigo; eu mereço a morte; não me

esmague com tanta bondade!

– Oh! Hei-de esmagá-lo com provas – disse a rainha. – Nem uma palavra disto a pessoa

alguma. Esta noite, às dez horas, espere só, à porta da montaria, o que eu tiver decidido para o
convencer. Vá, senhor, e não deixe transpirar coisa alguma a esse respeito.

Charny ajoelhou sem dizer palavra e saiu.
No fim da segunda sala, passou involuntariamente debaixo das vistas de Joana, que

olhava atentamente para ele, e que ao primeiro chamamento da rainha estava pronta para entrar
nos aposentos de Sua Majestade com toda a comitiva.

LXVII

Mulher e demónio


Joana notara a perturbação de Charny, a solicitude da rainha e o empenho que ambos

tinham em conversar.

Para uma mulher da força de Joana era mais do que suficiente para adivinhar muitas

coisas; não precisamos explicar o que todos já perceberam.

Depois do encontro entre a Srª. de La Motte e Oliva, preparado por Cagliostro, a

comédia das últimas três noites escusa comentários.

Joana, voltando para junto da rainha, escutou, observou: queria decifrar no rosto de Maria

Antonieta as provas do que ela suspeitava.

Mas a rainha estava desde muito tempo acostumada a desconfiar de todos. Não deixou

perceber coisa alguma; Joana viu-se portanto reduzida às suas conjecturas.

Já ordenara a um dos seus lacaios que seguisse o Sr. de Charny. O criado veio dizer-lhe

que o Sr. conde entrara numa casa, no fim da quinta, perto dos Álamos.

– Não há dúvida – pensou Joana – o homem é um namorado e viu tudo.

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Ouviu a rainha dizer à Srª. Misery:
– Sinto-me muito fraca, minha querida Misery, e hei-de deitar-me hoje às oito horas.
Como a dama insistisse, a rainha acrescentou:
– Não receberei pessoa alguma.
– O caso é claro – disse Joana consigo; – louco seria quem não o compreendesse.
A rainha, cheia de emoções pela cena que tivera com Charny, pouco tardou em mandar

retirar toda a sua comitiva. Foi a primeira vez que, desde a sua entrada na corte, Joana estimou
semelhante ordem.

– As cartas estão embaralhadas – disse ela; – vamos a Paris! É tempo de desmanchar o

que fiz.

E partiu imediatamente de Versalhes.
Chegando a sua casa, na rua de Saint-Claude, achou um rico presente de objectos de

prata, que o cardeal lhe mandara naquela manhã.

Depois de lançar um olhar indiferente para a dádiva, apesar da sua riqueza, olhou por

detrás da cortina para a casa de Oliva, cujas janelas ainda estavam abertas. Oliva, sem dúvida
cansada, dormia ainda.

Fazia muito calor naquele dia.
Joana fez-se conduzir para casa do cardeal, a quem achou contente, inchado, insolente de

prazer e de orgulho; assentado defronte da sua rica secretária, obra-prima de Boule, rasgava e
tornava a escrever, sem se cansar, uma carta, que sempre começava do mesmo modo e nunca
acabava.

Ao anúncio do criado, o cardeal bradou:
– Querida condessa!
E correu ao seu encontro.
Joana recebeu os beijos com que o prelado lhe cobriu os braços e as mãos, e assentou-se

comodamente para do melhor modo possível sustentar a conversa.

O cardeal principiou por protestos de gratidão, que não deixavam de ter uma eloqüente

sinceridade.

Joana interrompeu-o, dizendo:
– Sabe que o senhor é um amante delicado, e que muito lhe agradeço.
– Por quê?
– Não é pelo presente encantador, que me mandou esta manhã, mas sim pela precaução

que teve de não mo mandar para a casa onde nos encontramos. Na verdade, é delicado. O seu
coração não se prostitui, dá-se.

– A quem se poderá falar de delicadezas senão à condessa? – redargüiu o cardeal.
– Não é um homem feliz – disse Joana – é um Deus triunfante.
– Confesso-o, e a felicidade assusta-me, incomoda-me; torna-me insuportável à vista dos

outros homens. Lembra-me a fábula pagã de Júpiter cansado dos seus raios.

Joana sorriu.
– Vem de Versalhes? – perguntou ele avidamente.
– Venho.
– E... Viu-a?
– Acabo de estar com ela.
– Sim!... E não lhe disse nada?...
– Ora! Que me havia de dizer?
– Perdoe, mas isto já não é curiosidade, é raiva, é loucura...
– Não me pergunte nada.
– Oh! Condessa!
– Não me pergunte nada, repito.
– Como diz isso! Ao vê-la, dir-se-ia que traz más novas.
– Senhor, não me faça falar.

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– Condessa!... Condessa!...
E o cardeal tornou-se pálido.
– Uma felicidade demasiadamente grande – disse ele – parece-se com o ponto culminante

de uma roda da fortuna; ao lado do apogeu está o começo do delírio. Mas não mo oculte, se há
infelicidade. Não há nenhuma... Não é verdade?

– Pelo contrário, senhor, eu chamarei a isto uma grande felicidade – redargüiu Joana.
– A isto... Isto, quê?... Que quer dizer?... Que felicidade é essa?...
– Não ter sido descoberto – disse Joana secamente.
– Oh!... – exclamou sorrindo. – Com precauções, com a inteligência de dois corações e de

um espírito...

– Um espírito e dois corações não evitam que uns olhos possam espreitar por entre a

folhagem.

– Viram! – exclamou o Sr. de Rohan aterrado.
– Presumo que sim.
– Então, se viram, conheceram?
– Oh! Quanto a isso, senhor, decerto que não; se quem viu tivesse conhecido, se este

segredo fosse conhecido de alguém, Joana de Valois estaria já no fim do mundo, e o senhor
deveria estar morto.

– É verdade. Todas essas reticências queimam-me a fogo lento. Viram; bem. Mas viram

gente passeando numa quinta. Não será isso permitido?

– Pergunte ao Rei.
– O rei sabe?
– Outra vez; se o rei soubesse, o senhor estaria na Bastilha, e eu no hospital. Mas como

uma desgraça evitada vale por duas felicidades prometidas, venho dizer-lhe que não tente a Deus
segunda vez.

– Como? – exclamou o cardeal – que significam as suas palavras, querida condessa?
– Não as entende?
– Tenho medo de entendê-las.
– Não teria eu se o cardeal me não sossegasse.
– Que é preciso para fazer isso?
– Não voltar a Versalhes.
O cardeal deu um pulo na cadeira.
– Não voltar a Versalhes! – repetiu ele.
– Incógnito, subentende-se.
– É impossível – disse ele.
– Compete-me agora encarar consigo – respondeu ela; – parece-me que disse: impossível!

Então por que há-de ser impossível? Responda.

– Porque tenho no coração um amor, que morrerá com a minha vida.
– Conheço isso – disse ela com ironia – e é para chegar mais depressa a esse resultado,

que persiste em voltar à quinta. Sim, se lá voltar, o seu amor não acabará se não com a sua vida, e
ambos serão cortados ao mesmo tempo.

– Tanto terror, condessa! A senhora, que ainda ontem tão valente se mostrava!
– Sou valente como os animais. Não tenho medo enquanto não vejo perigo.
– Muito bem; mas então permita que lhe diga...
– Nada, condessa, nada – exclamou o amoroso prelado – o sacrifício está feito, a minha

sorte está jogada. Voltarei a Versalhes.

– Então irá só – disse a condessa.
– Abandona-me? – disse o cardeal em tom de censura.
– Eu, em primeiro lugar.
– Mas irá ela... Ela não falta.
– Está enganado que não vai.

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– É porventura da parte dela que vem dizer-me isso? – perguntou o cardeal todo trémulo.
– É o golpe que há meia hora procuro evitar-lhe.
– Ela não quer tornar a ver-me?
– Nunca mais, e fui eu quem lho aconselhei.
– Minha senhora – disse o prelado em tom sentido – é mal feito cravar o punhal num

coração, cuja ternura conhece.

– Muito pior seria, se deixasse que duas criaturas loucas se perdessem por falta de um

bom conselho. Dou-o; quem quiser que o aproveite.

– Condessa, condessa, antes morrer.
– Isso não é comigo, mas é coisa fácil.
– Morrer por morrer – disse o cardeal com voz profunda – prefiro o fim do réprobo.

Abençoado seja o inferno onde eu encontre a minha cúmplice.

– Santo prelado, está blasfemando! – disse a condessa – súbdito, destrona a sua rainha!

Cavalheiro, perde uma senhora!

O Sr. de Rohan abismou-se em profunda meditação, a que em breve se seguiu uma

grande agitação. Deu várias voltas pelo quarto, soltando ao acaso algumas frases incoerentes.
Depois, estacando de súbito diante da condessa, disse-lhe:

– Condessa, vai-me jurar aqui que as cruéis palavras que soltou não partiram da rainha, e

que não foi ela quem me mandou afastar de Versalhes.

– Ah! Ah! – soltou a condessa com um riso diabólico – impõe-me juramento?
– Imponho, sim!
– Pois seja. Juro-lhe que falei em nome da rainha. Está satisfeito?
– É um adiamento que ela pede?
– Tome-o como quiser, mas observe sempre as suas ordens.
O cardeal continuou no seu passeio desordenado pelo quarto.
– Não – disse ele, erguendo os braços para o tecto – não posso acreditar em semelhante

crueldade depois das bondades com que fui honrado.

Joana encolheu os ombros.
– Hão-de acusar-me de cobardia; de ter seguido um conselho tímido.
– Verá – retorquiu a desalmada condessa – que a rainha, louca pelo seu amado, há-de

exprobrar-lhe o ter tomado ao pé da letra a ordem de se afastar dos lugares que ela habita.

– Condessa!
– Verá como a rainha está ardendo em desejos de ver o seu amado afrontar o próprio rei.
– Condessa!
– Realmente, cardeal, mostra-se duma simplicidade capaz de fazer rir as pedras.
– Condessa, basta de zombaria. Não posso suportar tais palavras. A minha resolução está

tomada.

– Muito bem.
– Hei-de vê-la uma última vez; ela há-de saber inteiro o meu pensamento, e o que decidir

depois de me ter ouvido, hei-de cumpri-lo como faria a uma promessa sagrada.

Joana levantou-se.
– Como for da sua vontade – disse ela. – Vá! Mas digo-lhe que há-de ir só. No meu

trânsito para aqui, atirei com a chave da porta para o Sena. Irá portanto muito à sua vontade a
Versalhes, ao passo que eu vou partir para a Suíça ou para a Holanda. Quanto mais longe estiver
da bomba, menos terei que recear os estilhaços.

– Condessa, quer deixar-me, quer abandonar-me? Oh! Meu Deus! Mas então com quem

falarei eu dela?

Joana recordou então as cenas de Molière; nunca Valério mais insensato deu à mais astuta

Dorina réplicas mais cómodas.

– Não tem a quinta e os ecos? – disse Joana – ensinar-lhes-á o nome de Amarilis.
– Condessa, tenha dó de mim! Veja o meu desespero – disse o prelado com um acento de

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voz que bem exprimia a dor que lhe ia no íntimo da alma.

– Pois bem! – redargüiu Joana com a sua brutal energia de cirurgião, que decide a

amputação de um membro; – se está desesperado, Sr. de Rohan, não se entregue a criancices
mais perigosas do que a pólvora, a peste e a morte! Se tem amor àquela mulher, poupe-a em vez
de a perder, e se não for absolutamente falto de coração e de memória não se arrisque a arrastar
na sua raiva aqueles que o serviram por simples amizade. Por mim, não gosto de brincar com o
fogo. Jura-me que não dará mais passo algum para ver a rainha? Falo só de a ver, percebe? Não
digo que lhe não fale daqui a quinze dias. Se o jura, fico e poderei ainda servi-lo. Está decidido a
fechar os olhos a tudo e a infringir a minha proibição e a dela? Se o fizer, logo o sei, e dez
minutos depois, abalo! Sairá da embrulhada como quiser ou como puder.

– Isto é horrível! – murmurou o cardeal; – a queda é mortal!
– Qual história! – disse a condessa.
– Eu morro!
– É o que havemos de ver. Sabe que está fazendo uma triste figura para um príncipe de

Rohan?

– Sim – replicou o príncipe com altivez e erguendo nobremente a cabeça – o papel é

indigno de mim.

– Muito bem, isso é outra coisa, isso é belo. Saiba sofrer. E agora decida: fico ou tomo o

estrada de Lausanne?

– Fique, condessa.
– Jura obedecer-me?
– Palavra de Rohan! Se o que me impuser for digno de mim.
– Tem razão. Aqui está um termo médio, que tudo concilia. Proíbo as entrevistas, mas

não proíbo as cartas.

– Realmente! – exclamou o insensato, reanimado por esta esperança. – poderei escrever?
– Experimente.
– E... Ela responder-me-ia?
– Experimentarei.
O cardeal cobriu de beijos a mão de Joana, e chamou-lhe o seu anjo tutelar.
Muito havia de rir o demónio que habitava no coração da condessa.

LXVIII

A noite


Naquele mesmo dia, seriam quatro horas da tarde, parou um homem a cavalo perto da

quinta, por detrás dos banhos de Apolo.

O cavaleiro viera a passo. Pensativo como Hipólito, formoso como ele, deixava ondear as

rédeas pelo pescoço do cavalo.

Parou, como dissemos, no mesmo lugar onde havia três dias o cardeal fazia também parar

o seu cavalo. O chão, naquele lugar, tinha os sinais das ferraduras, e os arbustos estavam roídos
em volta do tronco da árvore a que ele prendia o cavalo.

O cavaleiro apeou-se.
– Aqui está um lugar bem remexido – disse ele.
E aproximou-se do muro.
– Aqui estão vestígios de escalada; aqui está uma porta recentemente aberta. Era o que eu

tinha pensado.

“De que me serviria ter feito a guerra contra os índios das savanas, se não conhecesse os

vestígios dos homens e dos cavalos? Ora, há quinze dias que o Sr. de Charny voltou, e há quinze
dias que ninguém o tem visto. É esta a porta que escolheu para entrar em Versalhes.”

Dizendo estas palavras, o cavaleiro suspirou ruidosamente, como se o suspiro lhe partisse

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da alma.

– Deixemos ao próximo a sua felicidade – murmurou ele mirando cada um dos vestígios,

bem visíveis tanto na relva como no muro. – O que Deus dá a uns, nega-o a outros. Não foi
debalde que Deus criou os infelizes e os afortunados; seja feita a sua vontade.

“Mas é-me precisa uma prova. Por que preço, por que meio poderei eu alcançá-la?”
“Oh! É a coisa mais fácil que dar-se pode. Entre os arbustos, de noite, é difícil descobrir

um homem, o qual do seu esconderijo poderia ver todos os que para aqui vêm. Pois esta noite
hei-de ocultar-me entre os arbustos.”

O cavaleiro pegou nas rédeas, tornou a montar vagarosamente e, sem apressar o passo do

cavalo, desapareceu voltando a esquina do muro.

Quanto a Charny, obedecendo às ordens da rainha, fechara-se em casa, esperando alguma

mensagem da parte da soberana.

Chegou a noite sem que nada aparecesse. Charny, em lugar de esperar na janela, que dava

para a quinta, esperava no mesmo quarto, mas na janela que dava para a rua. A rainha dissera à
porta da casa da montaria; mas naquela casa, porta e janela eram a mesma coisa. O principal era
que pudesse ver quem ali chegasse.

Interrogava a noite profunda, esperando ouvir de um instante para outro o galope de um

cavalo ou o passo precipitado de um correio.

Deram dez horas e meia. Nada de novo. A rainha zombara com Charny. Fizera uma

concessão no primeiro movimento de surpresa. Envergonhada, prometera o que lhe era
impossível sustentar; e, coisa horrível de pensar, prometera sabendo que havia de faltar à sua
promessa.

Charny, com a rápida facilidade de desconfiar, arrependia-se de ter sido tão crédulo.
– Como pude eu – exclamava ele – eu que a vi, acreditar a mentira e sacrificar a minha

convicção, a minha certeza, a uma estúpida esperança?

Desenvolvia enraivecido esta funesta idéia, quando a bulha de um punhado de areia

lançada contra a vidraça da outra janela lhe chamou a atenção e o fez acudir para o lado da
quinta.

Viu então, em baixo, na quinta, um vulto de mulher, embuçada numa grande manta preta,

e que para ele erguia o rosto pálido e inquieto.

Não pôde reprimir um grito, ao mesmo tempo de alegria e arrependimento. A mulher

que o esperava, que o chamava, era a rainha!

Deu um salto para fora da janela, e foi cair aos pés de Maria Antonieta.
– Ah! É o senhor? Ainda bem! – disse a rainha em voz baixa e comovida; – que estava aí

fazendo?

– Vossa Majestade... É possível? – redargüiu Charny prostrando-se.
– Assim é que me esperava?
– Eu esperava-a do lado da rua, minha senhora.
– Então, eu havia de vir pela rua, quando é tão simples vir pela quinta?
– Não ousava esperar que viesse, minha senhora – disse Charny com um acento de

agradecimento apaixonado.

Ela interrompeu-o.
– Não fiquemos aqui – disse ela; – está muito claro; traz a sua espada?
– Trago, sim, minha senhora.
– Bem!... Por onde diz que vieram as pessoas que viu?
– Por aquela porta.
– A que horas?
– Sempre à meia-noite.
– Não há motivo para que deixem de vir esta noite. Não falou com pessoa alguma?
– Não, minha senhora.
– Entremos naquele caramanchão e esperemos.

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– Oh! Senhora...
A rainha foi adiante, e com o passo apressado caminhou alguns instantes.
– Deve supor – disse ela de repente como para ir ao encontro do pensamento de Charny

– que não me fui divertir em contar este negócio ao chefe da polícia. Desde que me queixei, o Sr.
de Crosne deveria já ter-me feito justiça. Se a criatura que usurpa o meu nome, depois de já haver
usurpado a minha semelhança, ainda não foi presa; se todo este mistério não foi esclarecido, deve
perceber que há dois motivos: ou a incapacidade do Sr. de Crosne, o que é indiferente, ou a sua
conivência com os meus inimigos. Ora, parece-me difícil, que em minha casa, na minha quinta, se
atrevam a representar a ignóbil comédia, que me denunciou, sem ter a certeza de um apoio
directo ou de uma tácita cumplicidade. Eis aí o motivo por que aqueles que cometeram esse
crime me parecem perigosos de mais, para que eu possa tomar sobre mim o cuidado de tirar-lhes
a máscara. Que lhe parece?

– Peço a Vossa Majestade que me dispense de dizer mais coisa alguma. Estou

desesperado; tenho ainda receios, mas já não tenho desconfiança.

– Pelo menos o senhor é um homem honrado – disse vivamente a rainha; – sabe dizer as

coisas de cara a cara; é um mérito que pode alguma vez ferir os inocentes, quando a respeito deles
haja engano; mas uma ferida cura-se.

– Oh! Minha senhora, são onze horas; eu tremo.
– Vá certificar-se de que não anda por aí alguém – disse a rainha para afastar de si o

companheiro.

Charny obedeceu. Percorreu aquelas imediações e investigou tudo até ao muro.
– Ninguém – disse ele voltando.
– Onde se passou a cena que me contou?
– Minha senhora, agora mesmo, voltando da minha exploração, recebi no coração um

terrível golpe. Distingui-vos no mesmo lugar onde nas noites passadas vi... a falsa rainha de
França.

– Aqui! – exclamou a rainha afastando-se com visíveis sinais de repugnância.
– Debaixo desse castanheiro, sim, minha senhora.
– Mas então, senhor – disse Maria Antonieta – não fiquemos aqui, porque se vieram a

este lugar, é provável que aqui voltem.

Charny seguiu a rainha para outra rua da quinta. O coração batia-lhe com violência. Teve

receio, afastando-se, de não ouvir o ruído da porta quando se abrisse.

Ela, soberba e silenciosa, esperava que aparecesse a prova viva da sua inocência.
Deu meia-noite. A porta não se abriu.
Passou-se meia hora, durante a qual Maria Antonieta perguntou mais de dez vezes a

Charny se os impostores haviam sido sempre bem exactos nas suas entrevistas.

O relógio de Saint-Louis de Versalhes deu três quartos para a uma.
A rainha, cheia de impaciência, bateu o pé no chão.
– Verá que hoje não hão-de aparecer – disse ela; – esta qualidade de desgraça só a mim

sucede!

E dizendo estas palavras olhava para Charny, como para o provocar, se em seus olhos

houvesse divisado o mais leve sinal de triunfo ou de ironia.

Mas ele, tornando-se pálido à medida que voltavam as suas suspeitas, conservava uma

atitude tão grave e melancólica, que o rosto reflectia-lhe naquele momento a serena paciência dos
mártires e dos anjos.

A rainha pegou-lhe no braço e conduziu-o para o castanheiro, junto do qual haviam

estado ao princípio.

– Disse – murmurou ela – que foi aqui que os viu?
– Aqui mesmo, minha senhora.
– Foi aqui que a mulher deu a rosa ao homem?
– Foi, sim, minha senhora.

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E a rainha estava tão fraca, tão cansada por se demorar na quinta úmida, que se encostou

ao tronco da árvore, e inclinou a cabeça para o peito.

Insensivelmente, vergaram-lhe as pernas; ele não lhe dava o braço, quis assentar-se, mas

caiu na relva.

Ele permanecia imóvel e triste.
A rainha levou a mão ao rosto, e Charny não pôde ver uma lágrima que lhe corria dos

olhos sobre os dedos longos e claros.

De repente, levantando a cabeça, disse:
– Tem razão, senhor, estou condenada. Eu tinha prometido provar hoje que me havia

caluniado: Deus não o quer, curvo a cabeça aos seus decretos.

– Minha senhora... – murmurou Charny.
– Fiz – prosseguiu ela – o que mulher nenhuma teria feito em meu lugar. Não falo de

rainhas, falo de mulheres. Oh! Senhor, o que é uma rainha quando nem sequer sobre um coração
pode reinar? O que é uma rainha, quando nem sequer há-de obter a estima de um homem de
bem? Vamos, senhor, ajude-me, pelo menos, a levantar para que eu me retire; não me despreze a
ponto de me negar a sua mão.

Charny caiu-lhe aos pés como um insensato.
– Minha senhora – disse ele batendo com a fronte na terra – se eu não fosse um

desgraçado que a ama, perdoar-me-ia, não é verdade?

– O senhor – bradou a rainha com um amargo sorriso – o senhor diz que me tem amor, e

julga-me uma infame!...

– Oh!... Minha senhora.
– O senhor!... O senhor, que deveria conhecer-me, acusa-me de haver dado aqui uma

flor... acolá, um beijo; mais longe, o meu amor a outro homem... Senhor, deixe a mentira, o
senhor não me tem amor!

– Minha senhora, estava diante de mim o fantasma do amante. Arranque-me o coração,

pois que essas duas infernais imagens vivem no meu coração e despedaçam-no, devoram-no!

Ela pegou-lhe na mão e atraiu-o para si com um gesto exaltado.
– Viu!... Ouviu... Era eu, não é verdade? – disse ela com voz sufocada. – Oh! Era eu, não

procure outra coisa. Pois bem! Se neste mesmo lugar, debaixo deste mesmo castanheiro,
assentada como eu estava, o senhor a meus pés, – como o outro estava, se lhe aperto a mão, se o
chego ao meu peito, se o prendo nos meus braços, se lhe digo: Eu que fiz tudo isto ao outro, não
é assim? Eu que disse o mesmo ao outro, não é verdade? Se lhe digo: Senhor de Charny, não
amei, não amo, não hei-de amar senão um ente no mundo... E esse, é o senhor... Meu Deus! Meu
Deus! Bastará isto para convencê-lo de que se não é infame, quando o coração tem, com o
sangue das imperatrizes, o fogo divino de um amor como este?

Charny soltou um gemido semelhante ao de um homem que expira. A rainha, falando-

lhe, havia-o inebriado com a respiração; ele tinha-a sentido falar, a mão dela havia-lhe queimado o
ombro, e o peito havia-lhe queimado o coração; o hálito da rainha devorava-lhe a boca.

– Deixe-me agradecer a Deus – murmurou ele. – Oh! Se eu não pensasse em Deus,

pensaria demasiado em Vossa Majestade.

Ela levantou-se lentamente, cravou em Charny os olhos, cujas chamas eram apagadas

pelas lágrimas.

– Quer a minha vida? – disse ele com loucura.
Ela calou-se um momento sem cessar de o olhar.
– Dê-me o seu braço – disse ela – e conduza-me a toda a parte onde os outros foram.

Primeiro aqui, aqui onde foi dada uma rosa...

Ela tirou do seio uma rosa ainda quente do fogo que lhe queimava o peito.
– Tome! – disse ela.
Charny respirou o cheiro embalsamado da flor, e apertou-a contra o peito.
– Aqui – disse ela – a outra deu as mãos para que lhas beijassem?

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– As mãos ambas! – disse Charny cambaleando como embriagado no momento em que o

rosto se lhe achou fechado nas mãos ardentes da rainha.

– Eis aqui um lugar purificado – disse a rainha com encantador sorriso. – Depois não

foram aos banhos de Apolo?

Charny como se lhe caísse o céu sobre a cabeça, parou estupefacto, meio morto.
– É um lugar – disse alegremente a rainha – onde só entro de dia. Vamos ver juntos a

porta por onde fugia esse amante da rainha.

Alegre, feliz, pelo braço do homem mais feliz de todos quantos Deus abençoou na terra,

atravessou quase a correr o espaço que a separava do muro. Assim chegaram à porta por detrás
da qual se viam vestígios de pés de cavalos.

– É aqui de fora. – disse Charny.
– Tenho todas as chaves – respondeu a rainha. – Abra, Sr. de Charny; examinemos tudo.
Saíram e inclinaram-se para ver: a lua saía de uma nuvem como para ajudar as suas

investigações.

O pálido raio reflectia brandamente no belo rosto da rainha, que se encostava ao braço de

Charny, escutando e olhando em volta de si.

Depois de profundo exame, fez recolher o cavaleiro, puxando-o bem para si.
A porta fechou-se sobre eles.
Davam duas horas.
– Adeus – disse ela. – Volte para casa. Até amanhã.
Apertou-lhe a mão, e sem mais palavra, afastou-se rapidamente para o palácio por entre

as latadas.

Do lado de fora daquela porta, que eles acabavam de fechar, levantou-se um homem do

meio de uns arbustos, e desapareceu pela floresta que fica ao lado da estrada.

Esse homem levava consigo o segredo da rainha.

LXIX

A licença


No dia seguinte saiu a rainha alegre e formosa para ir à missa.
Os guardas tinham ordem de deixar aproximar-se dela quem quisesse. Era um domingo, e

Sua Majestade, acordando, dissera:

– É hoje um belo dia; hoje sinto agradável o viver.
Pareceu respirar com mais prazer que de costume o perfume das suas flores favoritas;

mostrou-se mais magnânima nas mercês que fez, e mais apressada em ir levar a sua alma ao altar
de Deus.

Ouviu missa sem se distrair. Nunca curvara tanto a majestosa cabeça.
Enquanto orava com fervor, a multidão juntava-se, como aos outros domingos, na

passagem dos quartos para a capela, e até os degraus da escada estavam cheios de gentis-homens
e de damas.

Entre estas últimas brilhava modestamente, mas vestida com elegância, a Srª. de La

Motte.

E na dobrada ala, formada pelos gentis-homens, via-se da direita o Sr. de Charny,

cumprimentado por muitos dos seus amigos, pelo seu restabelecimento, pelo seu regresso, e
principalmente pelo seu rosto radiante.

A graça real é um perfume subtil, e espalha-se no espaço com tal facilidade, que muito

antes da abertura do perfumador, o aroma está definido, reconhecido e apreciado pelos
conhecedores. Apenas havia seis horas que Olivier era afeiçoado da rainha, e já todos queriam ser
amigos de Olivier.

Enquanto ele aceitava todas essas felicitações, com a boa cara de um homem

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verdadeiramente feliz, e que para lhe testemunhar mais honra e mais amizade, toda a esquerda da
ala passava para a direita, Olivier, obrigado a relancear a vista sobre o grupo que se armava em
torno dele, viu só, em frente de si, um rosto, cuja sombria palidez e imobilidade o comoveram no
meio da sua embriaguez.

Era Filipe de Taverney, com a farda toda abotoada, e a mão no punho da espada.
Desde as visitas de civilidade feitas por este último à antecâmara do seu adversário,

depois do duelo, desde o seqüestro de Charny pelo doutor Luís, nenhumas relações tinha havido
entre os dois rivais.

Charny, vendo Filipe, que para ele olhava sossegadamente, sem amizade nem rancor,

começou fazendo uma cortesia que Filipe retribuiu de longe.

Depois, separando com a mão o grupo que o cercava, disse:
– Perdão, meus senhores, deixem-me cumprir um dever de civilidade.
E atravessando o espaço compreendido entre a ala da direita e a da esquerda, foi direito a

Filipe, que se deixou ficar firme.

– Sr. de Taverney – disse ele cortejando-o com mais civilidade do que na primeira vez –

eu devia agradecer o cuidado que mostrou pelo restabelecimento da minha saúde; mas apenas
cheguei ontem.

Filipe corou e olhou para ele; depois abaixou os olhos.
– Terei a honra – continuou Charny – de o ir visitar amanhã, e espero que não estará de

mal comigo pela demora.

– De modo nenhum – redargüiu Filipe.
Charny ia a estender a mão para que Filipe lhe desse a sua, quando se ouviu o tambor

anunciar a chegada da rainha.

– Aí vem a rainha, senhor – disse Filipe lentamente, sem responder ao gesto amigável de

Charny.

E fez ponto nessa frase com uma mesura mais melancólica do que fria.
Charny, um pouco admirado, apressou-se em reunir-se aos seus amigos, que estavam do

lado direito.

Filipe ficou do seu lado, como se estivesse de sentinela.
A rainha aproximava-se; sorriu para várias pessoas, recebeu ou mandou receber

requerimentos, porque de longe vira Charny, e não o perdendo de vista, com o temerário
desembaraço que ela mostrava nas suas afeições, e a que os seus inimigos chamavam impudicícia,
pronunciou estas palavras em voz alta:

– Hoje podem pedir, meus senhores, devem pedir; eu hoje não posso recusar nada.
Charny sentiu-se penetrado até ao íntimo da alma pelo sentido, pela expressão daquelas

palavras mágicas. Estremeceu de prazer, e foi este o seu agradecimento à rainha.

De repente esta foi distraída da sua doce mas perigosa contemplação pelo ruído de

passos, e pelo som de uma voz estranha.

Os passos soavam na laje do lado esquerdo; a voz, comovida, mas grave, dizia:
– Senhora!...
A rainha viu Filipe, e não pôde reprimir um primeiro movimento de surpresa ao achar-se

colocada entre aqueles dois homens, a quem amava, a um, muito; ao outro, muito pouco.

– O Sr. de Taverney! – exclamou ela sossegando; – o senhor tem alguma coisa que pedir-

me? Fale.

– Dez minutos de audiência, quando for do agrado de Vossa Majestade – disse Filipe

inclinando-se sem ter desenrugado a severidade da pálida fronte.

– Imediatamente, senhor – redargüiu a rainha lançando um olhar furtivo para Charny, a

quem involuntariamente receava ver tão perto do seu antigo adversário; – siga-me.

E passou mais rapidamente quando ouviu os passos de Filipe atrás de si, e vendo que

Charny se deixara ficar no seu lugar.

Continuou entretanto a fazer a colheita de cartas, requerimentos e súplicas, deu algumas

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ordens e entrou em casa.

Um quarto de hora depois, Filipe era introduzido na biblioteca, onde Sua Majestade

recebia aos domingos.

– Ah! Sr. de Taverney, entre – disse ela tomando um tom alegre – entre e mostre-me já

boa cara. É forçoso que eu lho confesse, sinto desassossego cada vez que um Taverney me deseja
falar. É de mau agouro na sua família. Sossegue-me já, depressa, Sr. de Taverney, dizendo-me que
não me vem anunciar uma desgraça.

Filipe, mais pálido durante este preâmbulo do que estivera durante a cena com Charny,

contentou-se com redargüir, vendo quanto a rainha lhe mostrava pouca afeição na sua linguagem:

– Senhora, tenho a honra de afirmar a Vossa Majestade que desta vez só lhe trago uma

boa nova.

– Ah! É uma boa nova! – disse a rainha.
– É, sim, minha senhora.
– Ai, meu Deus! – respondeu ela tomando novamente esse modo alegre, que tornava

Filipe tão desgraçado; – disse isso com um suspiro! Pobre de mim! diria um espanhol. Mas o Sr.
de Taverney suspirou!

– Senhora – respondeu gravemente Filipe – duas únicas palavras vão tranqüilizar tão

plenamente Vossa Majestade, que não só a sua nobre fronte se não toldará hoje por se ter
aproximado de um Taverney, senão que não tornará mais a enrugar-se por causa de um Taverney
Casa Vermelha. A datar de hoje, minha senhora, o último desta família a quem Vossa Majestade
se havia dignado conceder alguma graça, vai desaparecer para nunca mais voltar à corte de
França.

A rainha, deixando subitamente o modo alegre que tinha tomado, como recurso contra as

supostas comoções desta entrevista, exclamou:

– Quer retirar-se?!
– Quero, sim, minha senhora.
– O senhor também!
Filipe inclinou-se.
– Senhora, minha irmã teve o cruel desgosto de deixar Vossa Majestade, disse ela; eu sou

decerto de bem pouca utilidade à rainha, e parto.

A rainha, muito perturbada, assentou-se reflectindo que Andréa pedira aquela licença

eterna no dia seguinte a uma entrevista com o doutor Luís, onde o Sr. de Charny tinha recebido o
primeiro indício da simpatia, que por ele experimentavam.

– É singular! – murmurou ela pensativa, e não acrescentou mais palavra.
Filipe ficara de pé como uma estátua de pedra, esperando o gesto que o despedisse.
A rainha, saindo de repente do letargo em que jazia, perguntou-lhe:
– Para onde quer ir?
– Quero ir ter com o Sr. de Lapeyrouse – disse Filipe.
– Sabe que o Sr. de Lapeyrouse está na Terra Nova, neste momento?
– Tenho tudo preparado para o alcançar.
– Sabe que lhe profetizaram uma morte horrível?
– Não sei se é horrível – disse Filipe – mas sei que pelo menos é pronta.
– E parte?
Ela sorriu com a sua formosura tão nobre e doce.
– É para isso que quero ir unir-me a Lapeyrouse – disse ele.
A rainha caiu novamente no seu silêncio inquieto.
Filipe ainda esperou respeitosamente.
A natureza tão nobre e franca de Maria Antonieta despertou mais temerária do que

nunca.

Levantou-se, chegou-se ao mancebo, e cruzando os braços sobre o peito, disse:
– Por que parte?

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– Porque tenho necessidade de viajar – respondeu ele brandamente.
– Mas já correu o mundo inteiro – redargüiu a rainha deixando um momento enganar-se

por aquela tranqüilidade heróica.

– Já vi todo o Novo Mundo, sim, minha senhora, – continuou Filipe – mas o antigo e o

novo juntos, não.

A rainha fez um gesto de despeito, e repetiu o que tinha dito a Andréa.
– Raça de ferro, corações de aço, estes Taverney! Sua irmã e o senhor, são duas pessoas

terríveis, amigos a quem por fim se tem ódio. Parte, não para viajar, que já disso está cansado,
mas sim para me deixar. Sua irmã era, dizia ela, chamada pela religião, e ocultava um coração de
fogo sob a cinza. Enfim, quis retirar-se e retirou-se. Deus a faça feliz. O senhor, que poderia ser
feliz, também quer partir. Não lhe dizia eu, ainda há pouco, que os Taverney são de mau agouro
para mim?

– Perdoe-nos, minha senhora; se Vossa Majestade se dignasse perscrutar melhor os

nossos corações, só lhes acharia uma dedicação sem limites.

– Ouça! – bradou a rainha cheia de cólera – o senhor é um quaker, ela, uma filósofa;

criaturas impossíveis; ela imagina que o mundo é um paraíso, em que se não entra senão com a
condição de ser santo; o senhor julga que o mundo é o inferno, onde só entram os diabos; e
ambos se retiram do mundo: um porque acha o que não procurou; o outro porque não acha o
que procura. É isto assim? Ai, meu caro Sr. de Taverney, deixe à humanidade a imperfeição, não
queira das famílias reais senão que sejam as menos imperfeitas das raças humanas; seja tolerante,
ou antes, não seja egoísta.

Ela acentuou estas palavras com uma demasiada paixão.
– Senhora – disse Filipe – o egoísmo é uma virtude, quando dele nos servimos para

realçar as nossas adorações.

A rainha corou.
– Tudo quanto sei – disse ela – é que eu tinha amizade a Andréa e deixou-me; é que tinha

estima pelo senhor, e deixa-me. É humilhante para mim ver duas pessoas tão perfeitas, falo sério,
senhor, abandonarem a minha casa.

– Nada pode humilhar tão augusta personagem – disse Taverney friamente; – a vergonha

não alcança frontes elevadas como a de Vossa Majestade.

– Eu procuro com atenção – prosseguiu a rainha – o que é que o pôde ferir.
– Nada, nada, senhora – respondeu Filipe vivamente.
– A sua patente foi confirmada; a sua fortuna vai em aumento: tenho-o distinguido...
– Repito a Vossa Majestade que nada me agrada na corte.
– E se lhe dissesse que ficasse... Se lho ordenasse?...
– Teria o sentimento de desobedecer a Vossa Majestade.
A rainha pela terceira vez deixou-se cair em silenciosa meditação.
E como sempre saía de um desses momentos por um repente, fitou em Filipe o seu olhar

e disse:

– Há talvez aqui alguém, que lhe desagrada! Parece-me estar triste!
– Ninguém me desagrada.
– Julgava que estava de mal... Com... Um gentil-homem... O Sr. de Charny... A quem

desafiou em duelo... – disse a rainha animando-se gradualmente. – E como é natural afastar-se a
gente das pessoas de que se não gosta, assim que viu voltar o Sr. de Charny, quer deixar a corte.

Filipe não respondeu.
A rainha, enganando-se com aquele homem tão leal e valente, julgou que era apenas um

ciumento ordinário. Perseguiu-o sem dó.

– Só hoje é que soube do regresso do Sr. de Charny – prosseguiu ela; – digo hoje, e hoje é

que vem pedir-me licença para partir.

Filipe tornou-se mais lívido do que pálido. Assim atacado, assim calcado aos pés, ergueu-

se cruelmente.

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– Senhora – disse ele – é verdade que só hoje soube do regresso do Sr. de Charny; mas

foi muito mais cedo do que Vossa Majestade pensa, porque encontrei o Sr. de Charny pelas duas
horas da madrugada, junto da porta da quinta correspondente aos banhos de Apolo.

A rainha empalideceu por sua vez, e depois de ter olhado com uma admiração cheia de

terror para a perfeita cortesia que o mancebo conservava na sua cólera, murmurou com voz
sufocada:

– Bem; vá, senhor, dou-lhe a licença que pede.
Filipe cortejou-a pela última vez, e partiu vagarosamente.
A rainha caiu aniquilada sobre uma poltrona, dizendo:
– França! País de almas nobres!

LXX

Ciúme do cardeal


Entretanto o cardeal vira sucederem-se três noites muito diferentes das que a sua

imaginação incessantemente fazia reviver.

Nem notícias de ninguém, nem esperança de alguma visita. Aquele mortal silêncio, depois

das comoções de uma paixão, era como que a sombra de um subterrâneo depois da brilhante luz
do sol.

O cardeal iludira-se ao princípio com a esperança de que a sua amada, mulher antes de

rainha, quisesse conhecer a natureza do amor que lhe tinham, e a experiência ser-lhe-ia grata.
Sentimento varonil, cuja materialidade se tornou numa arma de dois gumes, que bem cruelmente
feriu o cardeal, quando se virou contra ele.

De feito, não vendo chegar ninguém e só ouvindo o silêncio, como diz Delille, receou o

desgraçado que a experiência lhe tivesse sido desfavorável. Dali nasceu uma angústia, um terror,
uma inquietação de que se não pode fazer idéia se não se tem padecido dessas nevralgias gerais,
que fazem de cada uma das fibras que se juntam no cérebro uma serpente de fogo, que se torce
ou distende por sua própria vontade.

Este mal-estar tornou-se insuportável para o cardeal; dez vezes no mesmo dia mandou a

casa da Srª. de La Motte, e outras dez vezes a Versalhes.

Por fim o décimo correio trouxe-lhe Joana, que estava no paço real vigiando Charny e a

rainha, e se lisonjeava interiormente da impaciência do cardeal, à qual em breve deveria o bom
êxito da sua empresa.

O cardeal, vendo-a, disse-lhe arrebatadamente:
– Como! Vive com tanto sossego! Como! Sabe o horrível suplício que padeço, e a

senhora, que se diz minha amiga, deixa que este suplício me condene à morte!

– Ai – redargüiu Joana – queira ter paciência. O que eu, longe de si, fazia em Versalhes, é

muito mais útil do que tudo quanto estava aqui fazendo, desejando ver-me.

– É de uma terrível crueldade – disse o cardeal abrandado pela esperança de obter

notícias. – Vamos, diga o que fazem, o que dizem lá.

– A ausência é padecimento doloroso, quer se sinta em Paris, quer se experimente em

Versalhes.

– Já isso me encanta, e agradeço-lho; mas...
– Mas?
– Provas!
– Ai santo Deus! – exclamou Joana – O que está dizendo, monsenhor? Provas!... Que

palavra é essa? Provas!... Está em seu juízo, monsenhor, para pedir a uma mulher que lhe dê
provas dos seus erros?

– Não peço um documento para um processo, condessa, peço um penhor de amor.
– Parece-me – disse ela depois de ter olhado de certo modo para o cardeal – que se vai

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tornando muito exigente, para não dizer muito esquecido.

– Oh! Eu sei o que vai dizer-me; sei que me deveria dar por muito satisfeito, muito

honrado; mas avalie o meu coração pelo seu, condessa. De que modo receberia o ser assim posta
de parte, depois de ter alcançado as aparências do favor?

– Parece-me que disse as aparências? – redargüiu Joana no mesmo tom zombeteiro.
– Oh! Na verdade, a condessa pode impunemente bater-me; é certo que nada me autoriza

a queixar-me; mas queixo-me...

– Então, monsenhor, não posso ser responsável pelo seu descontentamento, se apenas

tem causas frívolas, ou se não tem nenhuma.

– Condessa, trata-me mal.
– Repito as suas palavras, monsenhor, sigo a sua discussão.
– Inspire-se de si mesma, em lugar de me repreender pelas minhas loucuras; auxilie-me,

condessa, em vez de me atormentar.

– Onde não vejo que fazer, mal posso auxiliá-lo.
– Não vê que fazer? – disse o cardeal acentuando as palavras.
– Nada.
– Pois bem, minha senhora – disse o Sr. de Rohan com veemência – talvez que nem

todos digam o mesmo que a condessa diz.

– Ah! Monsenhor, estamo-nos encolerizando, e já nos não compreendemos; perdoe-me

portanto se lho observo.

– Encolerizado! Sim... A sua má vontade leva-me a isso, condessa. E não calcula se será

injustiça?

– Oh! Não! Se já me não serve, é porque não pode fazê-lo, bem o vejo.
– Julga-me bem; mas então, por que me acusa?
– Porque deveria dizer-me a verdade toda.
– A verdade! Eu disse-lhe o que sabia.
– Não me diz que a rainha é uma pérfida, que é uma vaidosa, que provoca a gente a

adorá-la, e que depois repele os adoradores?

Joana olhou para ele com um modo admirado.
– Explique-se – disse ela a tremer, não de medo mas de satisfação.
De feito, no ciúme do cardeal acabava de achar uma saída que as circunstâncias não lhe

teriam talvez proporcionado para se tirar de uma posição tão difícil.

– Confesse – continuou o cardeal, que já não calculava com a sua paixão – confesse que a

rainha recusa ver-me.

– Eu não digo isso, monsenhor.
– Confesse que se ela me não repele por sua livre vontade, o que ainda ouso esperar,

afasta-me de si talvez para não desgostar outro amante, a quem as minhas assiduidades possam
ter perturbado.

– Ah! Monsenhor! – exclamou Joana num tom por tal forma adocicado, que deixava

suspeitar muito mais ainda do que queria disfarçar.

– Ouça-me – redargüiu o Sr. de Rohan – a última vez que vimos Sua Majestade, pareceu-

me sentir passos de outra pessoa perto de nós.

– Loucura!
– Direi quanto suspeito.
– Não diga mais uma palavra, senhor, que ofende a rainha; e demais, se efectivamente a

sua desgraça fosse tão grande, que receasse a vigilância de um amante, o que eu não creio, seria
injusto bastante para lhe fazer um crime do passado que ela lhe sacrificou?

– O passado! O passado! Bela palavra, condessa, mas que não tem valor algum, se esse

passado é ainda o presente e tem de ser o futuro.

– Basta, monsenhor! Fala-me como a um corretor a quem acusassem de ter apresentado

um mau negócio. As suas suspeitas, monsenhor, são de tal forma ofensivas para a rainha, que

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acabam por sê-lo também para mim.

– Então! Condessa, prove-me...
– Ah! Monsenhor, se repete essa palavra, tomarei a injúria para mim.
– Enfim... Ela tem-me algum amor?
– Tem um meio bem simples – redargüiu Joana apontando para a mesa onde estava a

escrivaninha.

– Assente-se aí e pergunte-lho a ela mesma.
O cardeal de Rohan pegou com transporte na mão de Joana de La Motte.
– Entregar-lhe-á um bilhete? – disse ele.
– Se eu lho não entregasse, quem se encarregaria disso?
– E... Promete uma resposta?
– Se não lhe respondesse, como saberia o que lhe restava fazer?
– Oh! Ainda bem! É assim que eu gosto da condessa.
– Valha-nos isso! – disse ela com o seu delicado sorriso.
Ele sentou-se, pegou na pena e começou um bilhete. O Sr. de Rohan era eloqüente, e

escrevia com facilidade; contudo rasgou dez folhas antes de se dar por satisfeito.

– Se continua assim – disse Joana – nunca acaba.
– É porque, condessa, desconfio sempre da minha ternura; trasborda a meu pesar; talvez

a rainha se enfadasse.

– Ah! – disse Joana com ironia – se lhe escreve como homem político, ela responder-lhe-

á com um bilhete de diplomata. Isso é da sua conta.

– Tem razão, a condessa é uma mulher na alma e no espírito. Olhe, por que motivo teria

segredos para si, que já sabe quase tudo?

Ela sorriu.
– O facto é – disse ela – que pouco mais poderá ocultar.
– Leia por cima do meu ombro, leia tão depressa quanto eu escrever, se é possível,

porque o meu peito está ardente, e a pena vai devorar o papel.

Escreveu, com efeito, uma carta de tal modo ardente, de tal modo louca, tão cheia de

queixumes amorosos e de comprometedores protestos, que, quando acabou, Joana, que lhe
seguira o pensamento até à assinatura, disse para consigo:

– Acaba de escrever o que eu nunca teria ousado ditar-lhe!
O cardeal leu o que escrevera, e disse para Joana:
– Vai bem assim?
– Se ela o ama – respondeu a traidora – amanhã o saberá; agora sossegue.
– Até amanhã, sim?
– Não peço mais, monsenhor.
Pegou na carta fechada, recebeu dois beijos nos olhos, que lhe deu sua excelência, e

voltou para sua casa de noite.

Ali, refrescada, começou a meditar.
A situação era tal qual ela a tinha imaginado desde o princípio.
Dois passos mais alcançava o fim.
Qual dos dois era melhor escolher para escudo, a rainha ou o cardeal?
A carta do cardeal impossibilitava-o de acusar a Srª. de La Motte, no dia em que a

obrigassem a pagar as somas devidas pelo colar.

Admitindo que a rainha e o cardeal se vissem para se entenderem, como ousariam eles

perder a Srª. de La Motte, depositária de segredo tão escandaloso?

A rainha não faria bulha, e havia de crer no ódio do cardeal; o cardeal havia de crer na

vaidade da rainha, mas o debate, se o houvesse, teria lugar à porta fechada, e a Srª. de La Motte,
mudamente suspeitada, tomaria esse pretexto para expatriar-se, realizando a bela soma de milhão
e meio.

O cardeal havia de saber que Joana guardara os brilhantes, a rainha não deixaria de

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adivinhá-lo, mas que vantagem teriam de fazer bulha publicamente, com um negócio tão
intimamente ligado com a quinta e os banhos de Apolo?

Mas não era bastante uma só carta para estabelecer todo esse sistema de defesa. O cardeal

tinha boa pena e escreveria pelo menos sete ou oito vezes.

Quanto à rainha, quem sabe se naquele mesmo momento não forjava com o Sr. de

Charny armas de defesa para Joana de La Motte?

Tanto trabalho e projectos conduziam como último recurso a uma fuga, e Joana já de

antemão se preparava para tudo que lhe pudesse acontecer.

Com o primeiro vencimento viria a denúncia dos joalheiros. A rainha ia direita ao Sr. de

Rohan.

– Como?
Por intervenção de Joana era isso inevitável: Joana prevenia o cardeal e convidava-o a

pagar. Se ele se negasse a isso, ameaçava-o de publicar as cartas; ele pagava!

Feito o pagamento, acabava-se o perigo. Quanto a escândalo público, era preciso

primeiro desenredar a intriga. Nesse ponto, satisfação absoluta. A honra da rainha e de um
príncipe da igreja, por milhão e meio, era demasiadamente barata. Joana julgava que, se quisesse,
venderia tudo por três milhões.

E por que motivo estava Joana descansada a respeito da questão de intriga?
É porque o cardeal tinha a convicção de ter visto a rainha três noites seguidas, no bosque

de Versalhes, e que nenhum poder no mundo provaria ao cardeal que se havia enganado. É
porque uma única prova existia dessa fraude, uma prova viva, irrecusável, e essa prova ia Joana
fazê-la desaparecer para sempre.

Chegada a este ponto da sua meditação, aproximou-se da janela, e viu Oliva na varanda,

com ar perturbado e curioso:

– Agora nós! – pensou Joana, cortejando ternamente a sua cúmplice.
A condessa fez o sinal convencionado a Oliva para que descesse à noite.
Muito alegre depois de ter recebido essa comunicação oficial, Oliva tornou a entrar no

seu quarto; Joana voltou às suas meditações.

É costume de todas as pessoas intrigantes quebrar o instrumento quando já não lhes pode

servir; com a diferença que a maior parte perde-se, quer ao despedaçar o instrumento de modo a
fazer-lhe soltar um gemido, que denuncia o segredo, quer despedaçando-o incompletamente, para
que possa servir a outros.

Joana pensou que Oliva, toda entregue ao prazer de viver, não se deixaria quebrar como

era mister, sem soltar um gemido.

Era necessário imaginar para ela uma fábula que a resolvesse a fugir, e uma história que

lhe permitisse fugir de muito boa vontade.

A cada passo surgiam as dificuldades; mas certos espíritos acham tanto prazer em resolver

dificuldades, como outros em andarem sobre rosas.

Oliva, por mais encantada que se sentisse da sociedade da sua nova amiga, só o estava

relativamente; isto é, entrevendo essa relação através dos vidros da sua prisão, achava-a deliciosa.
Mas a sincera Nicola não ocultava à sua amiga que teria preferido andar às claras, passear ao sol, e
enfim todas as realidades da vida, aos passeios nocturnos, à realeza fictícia.

Agradava-lhe a vida, passada com Joana, bem como as carícias da intimidade; mas a vida

para ela, era dinheiro e Beausire.

Joana, que a fundo tinha estudado essa teoria, prometeu a si mesma aplicá-la na primeira

ocasião que se lhe oferecesse.

Resumindo tudo, deu por tema à sua prática com Nicola, a necessidade de fazer

desaparecer absolutamente a prova dos criminosos embustes cometidos na quinta de Versalhes.

Veio a noite. Oliva desceu. Joana esperava-a à porta.
Subindo ambas pela rua de Saint-Claude, dirigiram-se para a carruagem que, para melhor

as deixar conversar, seguiu a passo pelo terreno que rodeia Vincennes.

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Nicola, bem disfarçada com um vestido simples e com um capuz pela cabeça, e Joana

vestida de costureira, ninguém podia conhecê-las. E de mais, para isso seria necessário olhar para
dentro da carruagem, e só a polícia tinha esse direito. Nada tinha ainda despertado a curiosidade
da polícia.

Além disso a carruagem, longe de ser um veículo ordinário, levava pintado nas

portinholas o brasão de Valois, respeitável sentinela, cujo santo nenhuma vigilância de agente de
polícia se teria aventurado a forçar.

Oliva começou por cobrir de beijos Joana, que lhos retribuiu com usura.
– Oh! Como tenho estado aborrecida! – exclamou Oliva; – eu procurava-a, invocava a ...
– Foi-me impossível ir vê-la, minha amiga, porque teria corrido um grande perigo, do

qual a menina partilharia também.

– Como! – exclamou Nicola muito admirada.
– Um perigo terrível, minha queridinha, e de que não estou ainda muito sossegada.
– Oh! Conte-me isso depressa.
– Sabe que a vida que passa é aborrecida.
– Decerto que é.
– E que para se distrair desejou sair.
– No que tão amigavelmente me auxiliou.
– Sabe também que eu lhe tinha falado de um oficial de artilharia, um pouco doido, mas

muito amável, que está namorado da rainha, com quem a menina se parece um pouco?

– Sim, bem sei.
– Tive a franqueza de lhe propor um inocente divertimento, que consistia em iludirmos o

pobre rapaz, e mistificá-lo fazendo-lhe crer num capricho da rainha por ele.

– É verdade – suspirou Oliva.
– Escuso lembrar-lhe os dois primeiros passeios que de noite demos, no Jardim de

Versalhes, em companhia daquele pobre rapaz.

Oliva suspirou novamente.
– Essas duas noites, durante as quais tão bem representou o seu papel, que o nosso

amante tomou o caso a sério...

– Fizemos mal – disse Oliva em voz muito baixa; – porque, com efeito, nós enganávamo-

lo, e ele não o merece; é um perfeito cavalheiro.

– Pois não é?
– Decerto que é.
– Mas espere, o mal não está ainda nisso. Ter-lhe dado uma rosa, tê-lo deixado dar-lhe o

título de Majestade, ter-lhe dado as suas mãos para ele beijar, são apenas travessuras... Mas...
Minha Olivazinha, parece que a coisa não parou aqui.

Oliva corou tanto que se a noite não estivesse tão escura, Joana ter-se-ia visto obrigada a

conhecê-lo. Verdade é que como mulher de espírito, olhava para a rua pelo postigo e não para a
sua companheira.

– Como?... – balbuciou Nicola; – não parou aqui... pois em que?
– Houve terceira entrevista – disse Joana.
– Sim – disse Oliva hesitando; – bem o sabe, pois que dela fazia parte.
– Perdão, minha amiguinha, eu estava, como sempre, em distância, vigiando ou fingindo

vigiar para dar mais verossimilhança ao seu papel. Portanto, nem vi, nem ouvi o que se passou
dentro da gruta. Apenas sei o que me contou. Ora, contou-me, voltando, que tinha andado
passeando, que tinha conversado, que as rosas e os beijos nas mãos tinham continuado. Eu creio
tudo quanto me dizem, minha amiguinha.

– Pois sim. Mas depois? – perguntou Oliva toda trémula.
– Depois, minha bela, parece quê o suposto doido se gaba de ter obtido da rainha mais

do que realmente ela lhe concedeu.

– O quê?

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– Parece que embriagado, atordoado, não cabendo em si de contente, gabou-se de ter

alcançado da rainha uma irrecusável prova de amor correspondido. O pobre diabo está doido,
decididamente.

– Santo Deus! Santo Deus! – murmurou Oliva.
– Está doido, em primeiro lugar porque mente, não é verdade, menina? – perguntou

Joana.

– Decerto... – balbuciou Oliva.
– Não se teria certamente querido expor a um perigo tão horrível, sem mo dizer, minha

filha. Que probabilidade – continuou a terrível amiga – que probabilidade pode haver em que a
menina, que ama o Sr. de Beausire, e que me tem a mim por companheira; que é namorada pelo
Sr. conde de Cagliostro, e que recusa as suas assiduidades, tenha, por capricho, dado a um doido
o direito de dizer... Não, decididamente ele perdeu o juízo, não é outra coisa.

– Enfim – disse Nicola – qual é o perigo?
– É este. Temo-nos divertido com um doido, isto é, com um homem que nada teme e

nada poupa. Enquanto se tratava só de uma rosa dada, de mão beijada, não há que dizer; uma
rainha tem rosas no seu jardim, tem as mãos à disposição de todos os seus súbditos; mas se fosse
verdade, que na terceira entrevista... Ah! Minha querida filha, não me sinto com vontade de rir,
desde que me ocorreu essa idéia.

O medo fez com que se apertassem os dentes a Oliva.
– Que sucederia, minha boa amiga? – perguntou ela inquieta.
– Sucederia primeiramente, que não é a rainha, que eu saiba, pelo menos.
– Não.
– E que tendo usurpado a qualidade de Sua Majestade, para cometer um... uma... ligeireza

de tal ordem...

– Depois?
– Depois, isso chama-se crime de lesa-majestade. E com semelhantes palavras, levam a

gente bem longe.

Oliva ocultou o rosto entre as mãos.
– Afinal – continuou Joana – como não fez aquilo de que ele se gaba, ficará quite

provando-o. As duas precedentes ligeirezas serão punidas com dois até quatro anos de prisão e
expulsão do país.

– Prisão! Desterro! – exclamou Oliva aterrada.
– Não é coisa irreparável; mas eu, pelo sim, pelo não, vou sempre tomar as minhas

medidas e pôr-me ao abrigo.

– Está também com cuidado?
– Pudera! Não me denunciará logo, o insensato? Ai, minha pobre Oliva, foi uma

mistificação, que nos há-de sair cara!

Oliva desatou a chorar.
– E eu! Eu – disse ela – que nunca posso estar um instante sossegada! Oh! Espírito

buliçoso! Oh! Demónio! Estou possessa, vê! Depois desta desgraça, ainda irei procurar outra?

– Não desespere, veja se pode evitar o escândalo.
– Oh! Vou fechar-me a sete chaves em casa do meu protector! Se eu lhe confessasse

tudo?

– Bela coisa! Um homem que a cerca de cuidados, dissimulando o amor que lhe tem! Um

homem que só espera da menina uma palavra para a adorar; será a ele que irá dizer que cometeu
semelhante imprudência com outro? Note bem, que eu digo imprudência, sem contar com o que
ele há-de suspeitar.

– Santo Deus, tem razão.
– Ainda mais: a história vai fazer bulha, e a investigação dos magistrados despertará os

escrúpulos do seu protector. Quem sabe se, para ter melhor acolhimento no paço, não pensará
ele próprio em atraiçoá-la?

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– Oh!
– Admitamos que ele se contente simples e puramente com pô-la fora; que será da

menina?

– Sei que estou perdida.
– E quando o Sr. Beausire souber isso? – disse Joana lentamente, estudando o efeito deste

último golpe.

Oliva deu um pulo, e com a violência do repente demoliu todo o edifício do toucado.
– Mata-me! Oh! Não – murmurou ela – eu é que hei-de matar-me a mim mesma.
Depois voltando-se para Joana de La Motte, disse com desesperação:
– A senhora não pode salvar-me, visto que também está perdida!
– No fundo da Picardia – redargüiu Joana – tenho um palmo de terra, uma pequena

fazenda. Se lhe fosse possível, sem ser vista, refugiar-se nesse asilo antes de se descobrir tudo,
talvez restasse uma esperança.

– Mas o doido conhece-a, e sempre há-de encontrá-la.
– Oh! Se tiver partido, se estiver escondida, de modo que não a vejam, não temo o doido.

Hei-de dizer-lhe em voz alta: é um louco em afirmar semelhantes coisas, prove-as, o que há-de
ser impossível; e em voz baixa, dir-lhe-ei: é um cobarde!

– Então partirei quando e como for da sua vontade – disse Oliva.
– Parece-me que nisso andaria com prudência – redargüiu Joana.
– Quer que parta imediatamente?
– Não; espere que eu tenha preparado tudo para o bom êxito. Esconda-se, que não a veja

ninguém, nem sequer eu. Disfarce-se, até quando se mirar ao espelho.

– Sim, sim, conte comigo, querida amiga.
– E para começar, voltemos para casa; não temos mais que dizer.
– Vamos para casa. Quanto tempo lhe é preciso para dispor as coisas?
– Não sei; mas ouça com atenção: daqui até ao dia da sua partida, não tornarei a aparecer

na janela. Se lá me vir, fique sabendo que há-de ser nessa mesma noite, e apronte-se.

– Sim, muito obrigada, minha boa amiga, muito obrigada por tudo.
Voltaram lentamente para a rua de Saint-Claude; Oliva não se atrevendo a falar mais com

Joana, Joana entregue a uma meditação demasiado profunda para poder dirigir-lhe a palavra.

Quando chegaram, despediram-se e beijaram-se; Oliva pediu humildemente perdão à sua

amiga de todos os desgostos que lhe causara pela sua leviandade.

– Eu sou mulher – redargüiu a Srª. de La Motte, parodiando o poeta latino – e não há

fraqueza feminina que se me não torne familiar.

LXXI

A fuga


Oliva cumpriu a sua promessa.
Joana desempenhou a sua palavra.
No dia seguinte Nicola tinha, completamente ocultado a sua existência a toda a gente;

ninguém podia suspeitar que ela habitasse a casa da rua de Saint-Claude.

Estivera sempre escondida por detrás de alguma cortina ou de alguma persiana, sempre

calafetando as janelas em despeito dos raios do sol, que alegremente vinham reflectir-se nos
vidros.

Joana, que da sua parte preparava tudo, sabendo que no dia seguinte se vencia o primeiro

pagamento de quinhentas mil libras, tomava as suas medidas para não dar lugar a suspeitas no
momento em que rebentasse a bomba.

Esse terrível momento era o último fim das suas observações. Tinha sabiamente

calculado a alternativa de uma fuga, que era fácil, mas que ao mesmo tempo se tornava na

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acusação mais positiva.

Ficar imóvel como o duelista sob os golpes do adversário; ficar com a possibilidade de

cair, mas também com a possibilidade de matar o seu inimigo, tal foi a resolução da condessa de
La Motte.

E aí está porque, logo no dia seguinte ao da sua entrevista com Oliva, apareceu na janela

pelas duas horas para indicar à falsa rainha, que era tempo de se aprontar naquela noite para fugir.

Seria impossível descrever o terror e o prazer de Oliva. Necessidade de fugir significa

perigo, possibilidade de fugir, significava salvação.

Atirou um beijo eloqüente a Joana, depois fez os seus preparativos, metendo na trouxa

alguns objectos mais preciosos do seu protector.

Joana, depois do seu sinal, saiu de casa para ir procurar a carruagem a que ia confiar o

interessante destino da menina Nicola.

Depois destruiu tudo, tudo quanto o mais curioso observador pudesse descobrir entre os

indícios mais significativos da inteligência das duas amigas.

Janelas fechadas, cortinas corridas, luz tardiamente errante, passos ligeiros, misteriosos

rumores seguidos pela sombra e pelo silêncio.

Davam onze horas no relógio de Saint-Paul, e o vento do rio trazia os sons lugubremente

espaçados até à rua de Saint-Claude, quando Joana chegou à Rua de Saint-Louis numa carruagem
de posta, tirada por três vigorosos cavalos.

Na almofada da carruagem, havia um homem embuçado numa capa, que indicava ao

postilhão o ponto onde devia parar.

Joana puxou pela capa desse homem e fê-lo parar na esquina da rua do Roi-Doré.
O homem veio falar-lhe.
– A carruagem que fique aqui, meu caro Sr. Reteau – disse Joana; – bastará meia hora.

Hei-de conduzir para aqui uma pessoa, que se há-de meter dentro, e que fará conduzir, pagando
as mudas dobrado, à minha casa de Amiens.

– Sim, Srª. condessa.
– Aí entregará essa pessoa ao meu caseiro Fontaine, que sabe o que resta fazer.
– Sim, minha senhora.
– Ia-me esquecendo... Está armado, meu caro Reteau?
– Estou, sim, minha senhora.
– A pessoa de que se trata está ameaçada por um doido... Pode acontecer que no caminho

a queiram deter...

– Como deverei então proceder?
– Dispare contra quem quer que se oponha à sua jornada.
– Sim, minha senhora.
– Pediu-me vinte luíses de gratificação pelo que sabe; darei cem, e pagarei a viagem que

vai fazer até Londres, onde antes de três meses me esperará.

– Sim, minha senhora.
– Aqui tem os cem luíses. Não o tornarei certamente a ver em Paris, porque acho

prudente que o senhor vá direito a Saint-Valery, onde embarcará imediatamente para Inglaterra.

– Conte comigo.
– É para seu interesse.
– Para nosso interesse – disse o Sr. Reteau beijando a mão da condessa. – Então lá a

espero.

– Eu vou mandar-lhe a senhora.
Reteau meteu-se na carruagem no lugar de Joana, que, a passo rápido, se dirigiu à rua de

Saint-Claude e entrou em casa.

Todos dormiam naquele inocente bairro. Joana foi pessoalmente acender a vela, que,

posta defronte da janela, devia servir de sinal para que Oliva descesse.

– É rapariga de precaução – disse consigo a condessa ao ver a janela às escuras.

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Joana ergueu e abaixou três vezes a luz.
Nada. Mas pareceu-lhe ouvir uma espécie de suspiro, um sim, pronunciado

imperceptivelmente no ar, debaixo das folhagens da janela.

– Naturalmente vai descer, sem acender luz – disse Joana consigo. – Faz bem.
E desceu à rua.
A porta não se abria. Oliva trazia sem dúvida alguns embrulhos pesados ou incómodos.
– Que pateta! – disse a condessa enfadada; – tanto tempo perdido por causa de uns

trapos!

Mas Oliva não apareceu.
Joana foi direita à porta.
Nada. Escutou, chegando o ouvido aos grossos pregos da porta.
Assim passou um quarto de hora: deu meia hora depois das onze.
Joana afastou-se até ao bulevar, para ver de longe se as janelas tinham luz.
Pareceu-lhe ver por entre as folhas uma fraca claridade por detrás das cortinas.
– Meu Deus! Meu Deus! Que estará fazendo aquela desgraçada? Talvez não visse o sinal.

Vamos, ânimo, tornemos a subir!

E com efeito tornou a subir para casa, a fim de renovar os sinais telegráficos com a luz.
Nenhum sinal lhe respondeu.
– Só se aquela velhaca está doente, que nem se possa mexer – disse Joana amarrotando as

mangas com raiva. – Oh! Mas não importa! Morta ou viva, há-de partir esta noite.

Desceu a escada com a precipitação de uma leoa perseguida. Levava na mão a chave que

tantas vezes lhe servira para dar a Oliva a liberdade nocturna.

No momento de meter a chave na fechadura, susteve-se.
– E se estivesse lá em cima alguém com ela? – pensou a condessa. – É impossível, ouviria

as vozes, e a todo o tempo podia tornar a sair. Se eu encontrasse alguém na escada... Oh!

Esteve a ponto de recuar, ocorrendo-lhe esta perigosa suposição.
A bulha das patas dos cavalos da carruagem decidiu-a.
– Sem perigo – disse ela – não há empresas grandes! Com audácia, nunca há perigos!
Fez girar a lingüeta da fechadura, e a porta abriu-se.
Joana conhecia o lugar; a sua inteligência revelar-lho-ia se o não conhecesse já, como

conhecia, por ir todas as noites esperar Oliva. A escada ficava à esquerda; Joana ia subindo.

Nem bulha, nem luz, nem gente.
Chegou assim ao patamar do quarto de Nicola.
Ali viam-se por debaixo da porta os raios luminosos; por detrás dela, ouvia-se a bulha de

passos agitados.

Joana, arquejante, mas sufocando e sustendo a respiração, escutou. Não se ouviam vozes.

Oliva, portanto, estava só, andava pela casa, certamente fazendo preparativos. Não estava doente;
todo o transtorno reduzia-se a uma pequena demora.

Joana bateu levemente à porta.
– Oliva! Oliva! – disse ela; – minha amiga! Minha amiguinha!...
Os passos sentiram-se mais próximos no tapete.
– Abra! Abra! – disse Joana precipitadamente.
A porta abriu-se. Um dilúvio de luz inundou Joana, que se achou em frente de um

homem que segurava na mão um candelabro com três lumes. Soltou um grito terrível,
escondendo o rosto.

– Oliva! – disse o homem – não é a menina?
E levantou brandamente a manta da condessa
– A Srª. condessa de La Motte! – exclamou ele, em tom de surpresa admiravelmente

natural.

– O Sr. de Cagliostro! – murmurou Joana cambaleando e quase perdendo os sentidos.
De todos os perigos que Joana pudera supor, nunca este lhe tinha ocorrido. Não se

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apresentava a princípio muito assustador, mas reflectindo um pouco, observando um tanto o ar
sombrio e a profunda dissimulação daquele homem singular, o perigo devia parecer espantoso.

Joana esteve a ponto de perder a cabeça, recuou, e teve vontade de se precipitar da escada

abaixo.

Cagliostro estendia-lhe a mão com civilidade, convidando-a a assentar-se.
– A que motivo devo eu a honra da sua visita, minha senhora? – disse ele com voz firme.
– Senhor... – balbuciou a intrigante, que não podia afastar os olhos dos do conde – eu

vinha... Procurava...

– Permita, minha senhora, que eu toque a campainha para mandar castigar aquele dos

meus criados, que teve a desastrada lembrança, que cometeu a grosseria de deixar apresentar-se
assim uma senhora da sua qualidade.

Joana estremeceu e deteve a mão do conde.
– Foi certamente o velhaco do meu guarda-portão, que é alemão e costuma embebedar-se

– continuou este imperturbavelmente. – Não a terá conhecido. Abriu a porta sem dizer palavra,
sem a alumiar; e naturalmente caiu a dormir, depois de ter aberto a porta.

– Peço-lhe que não ralhe com ele, Sr. conde de Cagliostro – disse Joana mais sossegada, e

não percebendo o laço que lhe armavam.

– Foi decerto ele quem lhe abriu a porta, não é verdade, minha senhora?
– Creio que sim... Mas prometeu não ralhar com ele.
– Cumprirei a promessa – disse o conde sorrindo.
– Mas, minha senhora, tem a bondade de se explicar?
E uma vez dada a Joana esta saída, uma vez que já não suspeitavam que fosse ela quem

abrira a porta, podia mentir sobre o objecto da sua visita. E foi o que fez.

– Eu vinha, Sr. conde – disse ela apressadamente – consultá-lo sobre certos boatos que

correm.

– Que boatos, minha senhora?
– Peço-lhe que não inste muito comigo, rogo-lhe – disse Joana fazendo trejeitos; – este

passo que dou é delicadíssimo...

– Procura! Inventa! – pensava Cagliostro – que eu já achei.
– É amigo de Sua Eminência o Sr. cardeal de Rohan? – disse Joana.
– Ah! Ah! Não principia mal – pensou Cagliostro. – Vai até ao fim da linha que tenho na

mão; mais longe proíbo-to.

E continuou:
– Estou, com efeito, em relações de amizade com Sua Eminência, minha senhora.
– E eu vinha – prosseguiu Joana – pedir-lhe informações sobre...
– Sobre? – disse Cagliostro com certa aparência de ironia.
– Já lhe disse que a minha posição é delicada, senhor, não abuse dela. Não ignora decerto

que o Sr. de Rohan tem por mim alguma afeição, e eu queria saber até que ponto posso contar...
Enfim, senhor, tem a arte de ler, segundo dizem, nas mais densas trevas dos espíritos e dos
corações.

– Mais alguma luz, minha senhora – disse o conde – para que eu possa ler melhor nas

trevas do seu coração e do seu espírito.

– Senhor, dizem que Sua Eminência tem outros amores; que Sua Eminência ama uma alta

personagem... Dizem até...

Aqui Cagliostro cravou em Joana um olhar tão cheio de fogo, que esta por pouco não

caiu no chão.

– Minha senhora – disse ele – leio com efeito nas trevas; mas, para ler bem, preciso ser

auxiliado. Tenha a bondade de responder a estas perguntas: Como veio aqui procurar-me? Não é
esta a minha morada...

Joana estremeceu.
– Como entrou aqui? Porque nem há guarda-portão embriagado, nem lacaios nesta parte

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da casa. E se não era a mim que procurava, então a quem era? Não responde? – disse ele para a
trémula condessa; – vou então auxiliar a sua inteligência. Entrou por meio de uma chave, que tem
aí na algibeira. Vinha procurar uma rapariga, que, por simples bondade, eu escondia em minha
casa.

Joana cambaleou como uma árvore arrancada pela raiz.
– E... Quando assim fosse? – disse ela em voz baixa – que crime teria eu cometido nisso?

Não é permitido a uma mulher ir visitar outra? Chame-a, e ela lhe dirá se há alguma coisa que
censurar na nossa amizade...

– Minha senhora – interrompeu Cagliostro – diz-me isso, porque sabe muito bem que ela

já aqui não está.

– Já aqui não está!... – exclamou Joana aterrada. – Oliva já aqui não está?
– Oh! – disse Cagliostro – talvez ignore que ela se foi embora, a senhora que a ajudou a

fugir?

– A fugir! Eu! Eu! – exclamou Joana cobrando ânimo. – Roubaram-na e o senhor acusa-

me?

– Faço mais, convenço-a disso – respondeu Cagliostro.
– Prove! – disse imprudentemente a condessa.
Cagliostro pegou num papel que estava sobre a mesa e mostrou-lho.
Era um bilhete dirigido a Cagliostro, e dizia o seguinte:

“Meu senhor e generoso protector, perdoe-me por o ter deixado; mas, primeiro que tudo,

eu amava o Sr. de Beausire; ele veio, levou-me, eu segui-o. Adeus. Receba os protestos dos meus
sinceros agradecimentos.”


– Beausire!... – disse Joana aterrada – Beausire!... Ele, que não sabia onde Oliva morava!
– Oh! Sabia-o, minha senhora – redargüiu Cagliostro mostrando-lhe outro papel, que

tirou da algibeira; – olhe que achei este papel na escada, quando ainda há pouco cheguei para
fazer a minha visita quotidiana. Este papel caído do bolso do Sr. de Beausire.

A condessa leu a tremer:

“O Sr. Beausire achará a Srª. Oliva na rua de Saint-Claude, na esquina do boulevard.

Levá-la-á consigo imediatamente. É uma amiga bem sincera que lhe dá este conselho. Já é
tempo.”


– Oh! – disse a condessa amarrotando o papel.
– E levou-a – disse friamente Cagliostro.
– Mas quem escreveu este bilhete? – perguntou Joana.
– Naturalmente a senhora, a amiga de Oliva.
– Mas como entrou ele aqui? – exclamou Joana olhando com raiva para o seu impassível

interlocutor.

– A sua chave pode servir a mais pessoas – disse Cagliostro.
– Mas se eu a tenho, como poderia o Sr. Beausire servir-se dela?
– Quando se tem uma chave pode ter-se duas – redargüiu Cagliostro olhando para ela de

frente.

– O senhor tem documentos que convencem – respondeu lentamente a condessa – e eu

só tenho suspeitas.

– Oh! Também eu as tenho – disse Cagliostro – e que não são inferiores às suas, minha

senhora.

E dizendo estas palavras, despediu-se com um gesto imperceptível.
Ela começou a descer; mas nos degraus da escada deserta e sombria, que subira, achou

vinte lacaios com luzes, diante dos quais Cagliostro lhe chamou em voz alta e por muitas vezes:

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Srª. condessa de La Motte.

Ela saiu, soprando a raiva e a vingança, como o basilisco sopra o fogo e o veneno.

LXXII

A carta e o recibo


No dia seguinte era o último dia do prazo fixado pela rainha para fazer o pagamento aos

joalheiros Boehmer & Bossange.

Como a missiva de Sua Majestade lhes recomendava circunspecção, esperavam que

trouxessem as quinhentas mil libras.

E como em casa de todos os negociantes, por mais ricos que sejam, uma entrada de

quinhentas mil libras é um objecto de importância, os associados tinham mandado preparar um
recibo pelo caixeiro de melhor caligrafia.

O recibo foi inútil; ninguém veio trocá-lo pelas quinhentas mil libras.
A noite passou-se mui cruelmente para os ourives, esperando um mensageiro quase

inverossímil. Entretanto, a rainha tinha idéias extraordinárias; precisava esconder-se: talvez que o
seu correio não chegasse senão depois da meia-noite.

A aurora do dia seguinte trouxe a Boehmer & Bossange o desengano das suas quimeras.

Boehmer tomou resolução e dirigiu-se a Versalhes numa carruagem, acompanhado por Bossange.

Pediu para ser apresentado à rainha. Responderam-lhe que, se não trazia bilhete de

audiência, não podia entrar.

Admirado, inquieto, insistiu, e como sabia a gente com quem lidava, e como havia tido a

precaução de semear pelas antecâmaras algumas pedrinhas de refugo, protegeram-no para o
colocar na passagem de Sua Majestade, quando voltasse do seu passeio no Trianon.

Com efeito, Maria Antonieta, ainda encantada da entrevista que tivera com Charny, em

que fora namorada sem se tornar amante, Maria Antonieta voltava com o coração cheio de
alegria e o espírito radiante, quando viu o rosto um pouco contrito, mas muito respeitoso de
Boehmer.

Sorriu-lhe de um modo que ele interpretou o mais favoravelmente, e decidiu-se, então, a

pedir um momento de audiência, que a rainha lhe prometeu para as duas horas, isto é, para
depois do seu jantar.

Boehmer foi levar esta excelente notícia ao seu sócio Bossange, que o esperava na

carruagem, e que, estando doente com uma inflamação na cara, não quisera apresentar-se diante
de Sua Majestade com uma fisionomia repugnante.

– Não há dúvida – disseram eles consigo, comentando os mais leves gestos, as mais

insignificantes palavras de Maria Antonieta – não há dúvida, Sua Majestade há-de ter hoje na
gaveta a soma que não pôde dar ontem; ela diz às duas horas, porque naturalmente a terá só a
essa hora.

E pensavam, como os companheiros da fábula, se levariam a soma em notas, se em ouro

ou em prata.

Deram duas horas. O ourives voltou ao seu posto, e foi introduzido no gabinete de Sua

Majestade.

– Que temos de novo, Boehmer? – disse a rainha assim que o viu – vem falar-me de mais

jóias? Bem sabe que não somos felizes em negócios.

Boehmer julgou que estava alguém escondido, e que a rainha receava que a ouvissem.

Tomou portanto um ar de inteligência para responder, olhando em torno de si.

– Sim, minha senhora.
– Que procura? – disse a rainha admirada. – Tem algum segredo, hem?
Nada respondeu, porque se sentia um pouco sufocado com semelhante disfarce.
– Algum segredo como o da outra vez, alguma jóia para vender – continuou a rainha –

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alguma peça incomparável? Oh! Não se assuste assim; não está aqui ninguém que possa ouvir-
nos.

– Então... – murmurou Boehmer.
– Então! O quê?
– Então, posso dizer a Vossa Majestade...
– Diga depressa, Sr. Boehmer.
O joalheiro aproximou-se, mais da rainha mostrando um agradável sorriso.
– Posso dizer a Vossa Majestade que ontem se esqueceu de nós – disse ele mostrando os

dentes, um pouco amarelados.

– Esqueci!... De quê? – perguntou a rainha muito admirada.
– De que ontem... Se vencia...
– Vencia?... Vencia-se o quê?
– Oh! Mas peço perdão a Vossa Majestade, se ouso... Bem sei que isto é ser indiscreto.

Talvez Vossa Majestade não esteja preparada. Seria uma grande desgraça, mas, enfim...

– Sr. Boehmer – bradou a rainha – não percebo nada do que está dizendo: portanto,

explique-se.

– É porque Vossa Majestade não se recorda, talvez. Isso é natural, no meio de tantas

preocupações.

– Não me recordo? De quê?
– Era ontem o dia do primeiro pagamento do colar – disse Boehmer timidamente.
– Vendeu, então, o colar? – perguntou a rainha.
– Mas... – disse Boehmer olhando para ela admirado – mas, parece-me que sim.
– E a pessoa a quem o vendeu não lho pagou? Pobre Boehmer! Isso é mau. É preciso que

essa gente faça como eu fiz; é preciso que, não podendo comprar o colar, lho tornem a mandar,
deixando-lhe de indemnização o que houverem dado por conta.

– Como?... – balbuciou o ourives, que cambaleou como o viajante imprudente, que

apanha sobre a cabeça o sol da Espanha. – Que é que Vossa Majestade acaba de fazer a honra de
me dizer?

– Digo, Sr. Boehmer, que, se dez compradores lhe restituíssem o colar, como eu restituí,

deixando-lhe duzentos e cinqüenta mil francos de luvas, acharia um resultado de dois milhões, e
o colar por contrapeso.

– Vossa Majestade... – exclamou Boehmer escorrendo em suor – faz-me a honra de me

dizer, que me restituiu o colar?

– Decerto que o digo – redargüiu a rainha pausadamente. – Que tem?
– Como? – continuou o ourives. – Vossa Majestade nega ter-me comprado o colar?
– Ora, vamos! Que comédia estamos representando? – disse severamente a rainha. – Esse

maldito colar está destinado a fazer perder a cabeça a alguém!

– Mas – respondeu Boehmer todo trémulo – é porque me parecia ter ouvido da própria

boca de Vossa Majestade... que me tinha restituído... Vossa Majestade disse restituído... o colar de
brilhantes.

A rainha encruzou os braços olhando para Boehmer.
– Felizmente – disse ela – tenho aqui perto com que lhe avivar a memória, para que me

não diga mais nada desagradável, porque é muito esquecido.

E caminhou para a sua secretária, donde tirou um papel, que abriu, percorreu com os

olhos e apresentou lentamente ao desgraçado Boehmer.

– O estilo está claro – disse ela – segundo me parece. E assentou-se para melhor poder

olhar para o joalheiro enquanto lia.

O rosto deste exprimiu primeiramente a mais completa incredulidade, depois,

gradualmente, o terror mais assombroso.

– Então! – disse a rainha – reconhece esse recibo, que em tão boa e devida forma atesta

que tornou a receber o colar, e salvo se tiver também esquecido que se chama Boehmer...

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– Mas, real senhora – exclamou Boehmer sufocado ao mesmo tempo de raiva e de terror

– não fui eu que assinei este recibo.

A rainha recuou fulminando o ourives com os olhos chamejantes.
– Nega! – disse ela.
– Absolutamente... Ainda que valesse a perda da minha liberdade, da minha vida, direi

que não recebi o colar; nunca assinei semelhante recibo. Ainda que estivesse aqui o cepo, ainda
que estivesse aí o carrasco, repetiria sempre: não, real senhora, este recibo não é meu.

– Então, senhor – disse a rainha empalidecendo ligeiramente – segue-se que o roubei eu!

Quer dizer que tenho o colar?!

Boehmer abriu a sua carteira, donde tirou um papel, e apresentando-o à rainha, disse em

voz respeitosa mas alterada pela comoção:

– Não creio que Vossa Majestade me tivesse querido restituir o colar, e houvesse escrito

esta obrigação!

– Mas – exclamou a rainha – que papel é esse? Nunca escrevi semelhante coisa! É esta

porventura a minha letra?

– Está assinada – disse Boehmer aniquilado.
Maria Antonieta de França... Está doido! Sou porventura de França? Não sou arquiduquesa

de Áustria? Não é um absurdo que eu escrevesse semelhante coisa? Ora vamos, Sr. Boehmer, o
laço é muito grosseiro; vá dizer isto aos seus falsários.

– Aos meus falsários!... – balbuciou o joalheiro, que esteve a ponto de endoidecer

ouvindo essas palavras. – Vossa Majestade desconfia de mim, de mim, Boehmer?

– E não desconfia de mim, de mim, Maria Antonieta? – disse a rainha com altivez.
– Mas essa obrigação? – insistiu ele ainda designando o papel que a rainha segurava nas

mãos.

– E esse recibo? – redargüiu ela, mostrando-lhe o papel que ele não tinha largado.
Boehmer viu-se obrigado a encostar-se a uma poltrona; o chão parecia-lhe andar num

turbilhão debaixo dos pés. Aspirava o ar a largos tragos, e a cor purpúrea da apoplexia tomava o
lugar da sua lívida palidez.

– Restitua-me o meu recibo – disse a rainha – eu guardo-o como bom, e receba a sua

obrigação assinada por Maria Antonieta de França; qualquer magistrado lhe dirá o valor que tem.

E atirando-lhe com a obrigação, depois de lhe ter arrancado das mãos o recibo, voltou-

lhe as costas e entrou numa casa contígua, deixando entregue a si mesmo o desgraçado, a quem
não acudia nenhuma idéia, e que contra toda a etiqueta se deixou cair numa poltrona.

Entretanto, passados alguns minutos, tornando a si, saiu todo estonteado do gabinete, e

foi ter com Bossange, a quem contou a aventura, de modo que se tornou muito suspeito ao seu
associado.

Mas tantas vezes e tão bem repetiu o caso, que Bossange começou a arrancar a cabeleira,

enquanto Boehmer arrancava os cabelos, o que produzia, para as pessoas que passavam e
olhavam para dentro da carruagem, o espectáculo ao mesmo tempo mais doloroso e divertido.

Entretanto, como se não pode passar um dia inteiro numa carruagem, como depois de

arrancar cabelos ou cabeleira fica o crânio, e que dentro do crânio estão ou devem estar as idéias,
os dois ourives acharam a de se unirem para forçar, se fosse possível, a sentinela, e obter da
rainha alguma coisa, que se parecesse com uma explicação.

Encaminharam-se portanto para o palácio num estado de lástima, quando foram

encontrados por um dos oficiais da rainha, que os mandava chamar. Imagine-se o prazer e a
pressa com que obedeceram.

Foram logo conduzidos ao gabinete da rainha.



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LXXIII

Roi ne puis, prince ne daigne, Rohan je suis

1


A rainha parecia esperar com impaciência e por isso, logo que viu os ourives, disse-lhes

vivamente:

– Ah! Aí vem o Sr. Bossange; foi buscar reforço, Boehmer? Ainda bem!
Boehmer nada tinha que dizer, mas pensava muito. O que em semelhantes casos há de

melhor para fazer, é proceder por gestos; Boehmer lançou-se aos pés de Maria Antonieta.

O gesto era expressivo.
Bossange, como sócio, imitou-o.
– Meus senhores – disse a rainha – agora estou sossegada e não tornarei a irritar-me. E

demais, ocorreu-me uma idéia, que modifica os meus sentimentos a seu respeito. Não há dúvida
que, neste negócio, os senhores são como eu vítimas de algum mistério... que já para mim não é
mistério.

– Ah! Real senhora! – exclamou Boehmer entusiasmado por estas palavras da rainha – já

não desconfia de mim... Já não pensa que fiz de fal... Ah! Que feia palavra para dizer, a de
falsário!

– É tão cruel para mim ouvi-la, peço-lhe que o acredite, como para o senhor pronunciá-la

– disse a rainha; – já não desconfio do senhor, não.

– Então Vossa Majestade desconfia de alguma outra pessoa?
– Responda às minhas perguntas. Diz que já não tem os brilhantes?
– Já os não temos – responderam ao mesmo tempo os dois ourives.
– Pouco lhes importa saber que eu os tivesse dado para lhos entregar, isso é comigo. Não

viram... a Srª. de La Motte?

– Perdão, real senhora, nós vimo-la...
– E ela não lhes deu nada... da minha parte?
– Não, real senhora, a Srª. condessa disse-nos unicamente: Esperem.
– Mas essa carta, da minha parte, quem lha entregou? – perguntou a rainha.
– Essa carta?... – redargüiu Bohemer; – a que Vossa Majestade teve nas mãos, essa foi um

mensageiro desconhecido, que no-la trouxe durante a noite.

E dizendo isto mostrava a carta falsa.
– Ah! Ah! – disse a rainha; – bem vêem que não foi directamente da minha parte.
Tocou a campainha, e apareceu um criado.
– Mande-me chamar a Srª. condessa de La Motte – disse sossegadamente a rainha.
– E – prosseguiu com o mesmo sossego – não viram pessoa alguma? Não estiveram com

o Sr. de Rohan?

– O Sr. de Rohan, minha senhora, esse vimo-lo; foi fazer-nos uma visita e informar-se...
– Muito bem! – respondeu a rainha; – não vamos mais longe; uma vez que o Sr. cardeal

de Rohan se acha ainda envolvido neste negócio, fazem mal em se desesperarem. Eu já vejo o
que é. A Srª. de La Motte, dizendo-lhes essa palavra Esperem, quis... Não, não adivinho, nem
quero adivinhar... Vão ter com o Sr. cardeal, contem-lhe o que acabam de me dizer; não deixem
correr o tempo, e digam-lhe que sei tudo.

Os ourives, reanimados por este pequeno raio de esperança, trocaram entre si um olhar

menos aterrado.

Bossange, que queria dar a sua sentença, só disse em voz muito baixa: “que a rainha tinha

em suas mãos um recibo falso, e que um recibo falso era um crime.”

– É verdade – disse ela – que, se não receberam o colar, o recibo em questão é um recibo

falso. Mas para verificar a falsidade, é indispensável que eu o confronte com a pessoa a quem

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Rei não posso, príncipe não me digno, sou Rohan – Divisa dos Rohans.

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encarreguei de lhes entregar os brilhantes.

– Quando Vossa Majestade quiser – exclamou Bossange – nós não receamos a luz, não

receamos as confrontações, somos negociantes honrados.

– Então vão buscar a luz a casa do Sr. cardeal, só ele nos pode esclarecer em tudo isto.
– E Vossa Majestade permite que lhe venhamos trazer a resposta? – perguntou Boehmer.
– Eu saberei tudo primeiro do que os senhores – disse a rainha – sou eu que os hei-de

tirar de embaraços; vão!

Ela despediu-os, e depois de partirem, entregue a uma infinidade de cuidados, mandou

vários correios, uns depois dos outros, em procura da Srª. de La Motte.

Não a seguiremos nas suas buscas e suspeitas, abandoná-la-emos, pelo contrário, para

melhor correr ao encontro dessa verdade tão desejada.

O cardeal estava em casa, lendo com uma raiva impossível de descrever um bilhetinho

que a Srª. de La Motte acabava de lhe mandar de Versalhes. A carta era severa, tirava ao cardeal
toda a esperança; ordenava-lhe que não pensasse mais nela, nem em coisa alguma; proibia-lhe que
tornasse a aparecer familiarmente em Versalhes; recorria à sua lealdade para não renovar relações,
que se tinham tornado impossíveis.

Lendo estas palavras, o cardeal enraivecia; soletrava as palavras a uma e uma; parecia

tomar contas ao papel das crueldades que nele tinham traçado uns dedos ingratos!

– Vaidosa, caprichosa, pérfida! – bradava ele no seu desespero – Oh! hei-de vingar-me!
Acumulava então todas as pequenas coisas, que consolam os corações fracos dos

padecimentos de amor, mas que não os curam.

– Aqui estão – disse ele – quatro cartas que ela me escreve, qual delas mais injusta, qual

delas mais tirânica. Tomou-me por capricho, a mim! É uma humilhação, que custosamente lhe
perdoaria se ela me não sacrificasse a novo capricho.

E o infeliz burlado tornava a ler com o fervor da esperança todas as cartas, que eram

baseadas no rigor, notando-se de carta para carta proporções desapiedadas.

A última era um primor de crueldade; ferira profundamente o coração do pobre cardeal, e

contudo era tal o seu amor, que por espírito de contradição, deleitava-se em ler e reler aquelas
frias crueldades que procediam de Versalhes, segundo a Srª. de La Motte dizia.

Foi neste momento que os joalheiros chegaram a casa do Sr. de Rohan.
Bem admirado ficou de ver a insistência deles em entrarem a despeito das suas ordens.

Três vezes mandou retirar o criado, que voltou quarta vez, dizendo que Boehmer & Bossange
tinham declarado que só se retirariam se a isso fossem obrigados pela força.

– Que significa isto? – pensou o cardeal. – Mande entrar esses senhores.
Entraram. Os rostos transtornados provaram o duro combate, que se haviam visto

forçados a sustentar moral e fisicamente. Se num desses combates tinham ficado vencedores,
noutro tinham os desgraçados ficado vencidos. Nunca espíritos mais perturbados se tinham visto
na necessidade de funcionar diante de um príncipe da Igreja.

– Em primeiro lugar – bradou o cardeal ao vê-los – que significa essa brutalidade,

senhores? Deve-se-lhes aqui alguma coisa?

O tom desta recepção gelou de susto os dois sócios.
– Vão repetir-se aqui as cenas de Versalhes – disse Boehmer, fazendo um sinal ao sócio.
– Oh! Não, não – respondeu este último endireitando a cabeleira com um movimento; –

quanto a mim, estou pronto para todos os assaltos.

E deu um passo quase ameaçador, enquanto Boehmer, mais prudente, se deixava ficar

para trás.

O cardeal julgou que estavam doidos e disse-lho abertamente.
– Monsenhor – disse o desesperado Boehmer entrecortando cada sílaba com um suspiro

– justiça! Misericórdia! Livre-nos da cólera, e não nos obrigue a faltar ao respeito que se deve ao
mais nobre, ao mais ilustre dos príncipes.

– Se os senhores não estão doidos, mando-os deitar da janela abaixo – disse o cardeal – e

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se o estão, mando-os simplesmente pôr na rua. Podem escolher.

– Não estamos doidos, estamos roubados, monsenhor!
– O que tenho eu com isso? – redargüiu o Sr. de Rohan; – não sou chefe da polícia.
– Mas teve o colar nas suas mãos, monsenhor – disse Boehmer soluçando; – irá depor em

juízo; irá...

– Tive o colar? – disse o príncipe. – Roubaram-lhe então o colar?
– Roubaram, sim, monsenhor.
– E que diz a rainha a isso? – bradou o cardeal fazendo um movimento de interesse.
– A rainha mandou-nos para Vossa Eminência.
– Isso é muito amável da parte de Sua Majestade; mas que remédio lhes posso eu dar,

meus amigos?

– Pode tudo, monsenhor, pode dizer o que é feito dele.
– Eu?
– Certamente.
– Meu caro Sr. Boehmer, poderia falar-me assim, se eu fizesse parte do bando de ladrões

que roubaram o colar a Sua Majestade.

– O colar não foi roubado à rainha.
– Então a quem?
– A rainha nega ter estado de posse dele.
– Como? Ela nega! – disse o cardeal hesitando; – mas se tem um recibo dela...
– A rainha diz que o recibo é falso.
– Ora vamos – bradou o cardeal – não estão em seu juízo, meus senhores.
– É verdade – disse Boehmer para Bossange, que respondeu com uma tríplice afirmativa.
– A rainha negou – disse o cardeal – porque estava alguém no quarto quando lhe falaram.
– Não estava pessoa nenhuma, senhor; mas ainda não é tudo.
– Então que há mais?
– Não só negou e sustentou que a obrigação é falsa, mas ainda nos mostrou um recibo

passado por nós, provando que tornamos a receber o colar.

– Um recibo dos senhores – disse o cardeal. – E esse recibo?
– É falso, como o outro, Sr. cardeal, bem o sabe.
– Falso!... Dois falsos!... E dizem que eu sei isso?
– Certamente, pois que Vossa Eminência foi a nossa casa confirmar o que nos tinha dito

a Srª. de La Motte; bem sabia que tínhamos vendido o colar, e que estava nas mãos da rainha.

– Vamos, vamos – disse o cardeal passando uma das mãos pela fronte – isto são coisas

muito graves, segundo me parece. Entendamo-nos um pouco. Vamos a ver quais foram as
minhas operações com os senhores.

– Sim, monsenhor.
– Em primeiro lugar, a compra por mim feita, por ordem de Sua Majestade, de um colar,

por conta do qual lhe dei duzentas e cinqüenta mil libras.

– É verdade, monsenhor.
– Depois a venda contratada directamente pela rainha, segundo me disseram, para pagar

em prestações por ela determinadas, e sob a responsabilidade da sua assinatura.

– Da sua assinatura... Conhece a assinatura da rainha, não é assim, monsenhor?
– Mostre-ma.
– Ei-la aqui.
Um dos ourives tirou a carta da carteira. O cardeal olhou para ela de relance.
– Ora! – exclamou ele – são uns loucos... Maria Antonieta de França... Não é a rainha filha

da casa de Áustria? Estão roubados: letra e assinatura, tudo é falso!

– Mas então – exclamaram os ourives no cúmulo da desesperação – a Srª. de La Motte

deve conhecer o falsário e o ladrão!

A verdade desta asserção deu logo na vista ao cardeal.

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-– Chamemos a Srª. condessa de La Motte – disse ele muito perturbado.
E tocou a campainha como a rainha fizera.
Os criados do cardeal saíram em procura de Joana, cuja carruagem ainda não podia estar

longe.

Entretanto Boehmer & Bossange, acoutando-se como a lebre nas promessas da rainha,

repetiam:

– Onde está o colar? Onde está o colar?
– Desse modo vão tornar-me surdo – disse o cardeal enfadado. – Sei porventura onde

está o colar? Entreguei-o eu mesmo à rainha, é tudo quanto sei.

– Venha o colar, ou o dinheiro! – repetiam os joalheiros.
– Meus senhores, isso não é comigo – repetia o cardeal fora de si, e pronto para mandar

pôr na rua os dois ourives.

– A Srª. condessa de La Motte! A Srª. condessa! – reclamavam os ourives, roucos à força

de desespero – foi ela que nos perdeu.

– A Srª. de La Motte é de uma probidade, que lhes proíbo de suspeitarem, sob pena de os

mandar castigar aqui mesmo.

– Enfim, há um criminoso – disse Boehmer em tom deplorável – os dois papéis falsos

por alguém foram fabricados!

– Seria por mim? – disse com altivez o Sr. de Rohan.
– Monsenhor, decerto que não queremos dizer isso.
– Então?
– Finalmente, monsenhor, em nome do céu, pedimos uma explicação.
– Esperem que eu tenha alguma para que possa dar-lha.
– Mas, monsenhor, o que responderemos à rainha, porque Sua Majestade grita também

em altas vozes contra nós?

– E que diz a rainha?
– Diz que ou Sua Eminência ou a Srª. de La Motte tem o colar, mas não ela.
– Pois bem – disse o cardeal, pálido de vergonha e de cólera. – Vão dizer à rainha que...

Não, não lhe digam coisa nenhuma. Basta de escândalo. Mas, amanhã... Amanhã, hei-de oficiar
na capela de Versalhes; vão ali, e ver-me-ão chegar ao pé da rainha, falar-lhe, perguntar-lhe se não
está de posse do colar, e ouvirão a sua resposta; se ela negar na minha cara... Então, meus
senhores, sou Rohan, pagarei!

E com estas palavras, pronunciadas com uma nobreza de que a prosa mal pode dar uma

fraca idéia, o príncipe despediu os dois sócios, que saíram recuando e tocando no cotovelo um do
outro.

– Então, até amanhã, não é assim, monsenhor? – balbuciou Boehmer.
– Às onze horas da manhã na capela de Versalhes – respondeu o cardeal.

LXXIV

Esgrima e diplomacia


No dia seguinte, pelas dez horas da manhã, entrava em Versalhes uma carruagem com as

armas do Sr. de Breteuil.

Os nossos leitores, que se recordam da história de Gilberto e de Bálsamo, não terão

esquecido que o Sr. de Breteuil, rival e inimigo pessoal do Sr. de Rohan, espreitava desde longo
tempo todas as ocasiões de ferir mortalmente o seu inimigo.

A diplomacia leva nisto superioridade à esgrima, porque nesta última ciência um bote

bom ou mau dá-se num segundo, ao passo que os diplomatas têm quinze anos, ou mais se é
preciso, para combinar o golpe com que replicam, e torná-lo mais mortal possível.

O Sr. de Breteuil mandara pedir, uma hora antes, audiência ao rei, e encontrou Sua

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Majestade vestindo-se para ir à missa.

– Belo tempo – disse Luís XVI muito alegre, logo que o diplomata entrou no seu

gabinete; – um verdadeiro dia da Assunção! Olhe, não há nuvens no céu.

– Bem desesperado me vejo eu, senhor, por trazer uma nuvem à tranqüilidade de Vossa

Majestade – respondeu o ministro.

– Vamos – exclamou o rei carregando o jubiloso aspecto – aí vai o dia começar mal; hoje

que há de novo?

– Vejo-me bem embaraçado, senhor, para contar o caso a Vossa Majestade, e muito mais

porque não é à primeira vista negócio da minha competência. É uma espécie de roubo, e isso é
mais das atribuições do chefe da polícia.

– Um roubo! – disse o rei. – O senhor é o chanceler-mor, e os ladrões acabam sempre

por encontrar a justiça. Compete isso também ao Sr. chanceler-mor, portanto fale.

– Pois bem, senhor, eis aqui do que se trata: Vossa Majestade ouviu falar de um colar de

brilhantes?

– De Boehmer?
– Sim, senhor.
– Que a rainha rejeitou?
– Exactamente.
– Recusa que me valeu uma bela nau, a Suffren – disse o rei esfregando as mãos.
– Pois, senhor – disse o barão de Breteuil, insensível ao desgosto que ia causar – esse

colar foi roubado.

– Ah! Isso é mau – disse o rei; – era caro, mas os brilhantes são fáceis de conhecer. Cortá-

los seria perder o fruto do roubo. Hão-de conservá-los inteiros, e a polícia tornará a achá-los.

– Senhor – interrompeu o barão de Breteuil – não é um roubo ordinário; correm a

respeito dele certos boatos.

– Boatos! Que boatos?
– Senhor, dizem que a rainha guardou o colar.
– Como, guardou? Foi na minha presença que o recusou, sem querer sequer olhar para

ele. Loucuras, absurdos, barão. A rainha não guardou o colar.

– Senhor, não me servi do termo próprio; as calúnias são sempre tão cegas a respeito dos

soberanos, que a expressão é muito áspera para os ouvidos reais. A palavra guardar...

– Ora vamos, senhor de Breteuil – disse o rei sorrindo – persuado-me que não dizem que

a rainha roubou o colar de brilhantes?

– Senhor – disse vivamente o Sr. de Breteuil – dizem que a rainha tornou a comprar

particularmente o objecto, que rejeitou diante de Vossa Majestade; dizem; e aqui não preciso
repetir a Vossa Majestade de que modo o meu respeito e a minha dedicação desprezam tão
infames calúnias e suposições; dizem que os joalheiros de Sua Majestade a rainha têm em seu
poder um recibo, que atesta ter ela guardado o colar.

O rei tornou-se pálido.
– Dizem isso? – repetiu ele; – que é que não dizem? Todavia, isso admira-me. A rainha

podia ter comprado particularmente o colar, que era uma peça rara e maravilhosa. Graças a Deus,
a rainha pode gastar milhão e meio nos seus adereços, se for do seu agrado, que tem certa a
minha aprovação; só lhe levarei a mal uma coisa: é não me haver confessado o seu desejo. Mas
não é da competência do rei meter-se nessas coisas; isso pertence ao marido. O marido há-de
ralhar com a esposa, se quiser ou se puder, e a ninguém reconheço o direito de intervir nisso, e
ainda menos com uma mentira.

O barão inclinou-se a estas palavras tão nobres e tão vigorosas do rei. Mas Luís XVI só

tinha a aparência da firmeza. Um momento depois de a ter manifestado, mostrou-se indeciso,
inquieto e disse:

– Mas que estava dizendo de roubo?... Parece-me que disse roubo?... Se assim fosse, o

colar não estaria nas mãos da rainha. Sejamos lógicos!

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– Vossa Majestade assustou-me com a sua cólera – disse o barão – e eu não pude acabar.
– Oh! A minha cólera!... Eu, encolerizado!... Por semelhante coisa, barão...
E o bom do rei começou a dar estrondosas gargalhadas.
– Olhe – prosseguiu – continue e diga-me tudo; diga-me até que a rainha vendeu o colar a

algum judeu. Pobre senhora, muitas vezes precisa de dinheiro, e eu nem sempre lho dou.

– Era exactamente o que eu estava para ter a honra de dizer a Vossa Majestade. A rainha

mandou pedir pelo Sr. de Calonne, há dois meses, quinhentas mil libras, e Vossa Majestade
recusou-as.

– É verdade.
– Pois, senhor, esse dinheiro, segundo dizem, era destinado a saldar as primeiras letras

vencidas no pagamento do colar. A rainha, vendo-se sem dinheiro, recusou pagar.

– E então? – disse o rei interessando-se a pouco e pouco, como acontece quando à

dúvida sucede um começo de verossimilhança.

– E então, senhor, aí é que vai começar a história, que o meu zelo de servidor fiel me

ordena de contar a Vossa Majestade.

– Como! Diz que a história começa aí? Que há mais, meu Deus? – bradou o rei,

denunciando assim a sua perplexidade aos olhos do barão, que a partir daquele momento ficou
tendo toda a superioridade.

– Senhor, dizem que a rainha se dirigiu a alguém para obter dinheiro.
– A quem? A algum usurário, talvez?
– Não, senhor, não foi a um usurário.
– Meu Deus! Diz isso de um modo tão singular, Breteuil. Ah, bem! Já adivinho: é alguma

intriga estrangeira: a rainha pediu dinheiro a seu irmão, à sua família. Entra nisso a Áustria.

Sabe-se quanto o rei era susceptível a respeito da corte de Viena.
– Antes fosse isso – redargüiu o Sr. de Breteuil.
– Como? Antes fosse isso! Mas então a quem pediu a rainha dinheiro?
– Senhor, não ouso...
– Surpreende-me, senhor – disse o rei erguendo a cabeça, e tomando de novo o seu

modo real; – fale imediatamente, faça favor, e diga me o nome de quem deu o dinheiro.

– Foi o Sr. de Rohan.
– Ora adeus! E não cora de pejo por me citar o Sr. de Rohan, o homem mais arruinado

de todo este reino!

– Senhor... – disse o Sr. de Breteuil baixando os olhos.
– Aí está um modo que soberanamente me desagrada – acrescentou o rei – e explicar-se-á

imediatamente, Sr. chanceler-mor.

– Não, meu senhor; por coisa nenhuma deste mundo, visto que não há no mundo coisa

alguma que me possa obrigar a soltar uma palavra que comprometa a honra do meu rei e da
minha soberana.

O rei franziu o sobrolho.
– Descemos muito baixo, Sr. de Breteuil – disse ele; – esse relatório de polícia está todo

impregnado dos miasmas do lugar infecto donde sai.

– Toda a calúnia exala miasmas mortíferos, senhor, e é esse o motivo por que os reis se

devem purificar por grandes meios, se não querem que essa peçonha os mate, mesmo no trono.

– O Sr. de Rohan! – murmurou o rei; – mas que verossimilhança tem isso?... E o cardeal

deixa dizer?...

– Vossa Majestade se convencerá de que o Sr. de Rohan tratou com os ourives Boehmer

& Bossange; que o negócio da venda foi por ele regulado, que estipulou e aceitou condições de
pagamento.

– Realmente! – bradou o rei todo perturbado pelo ciúme e pela raiva.
– É um facto que o mais simples interrogatório provará. Eu obrigo-me a isso para com

Vossa Majestade.

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– Diz que se obriga a isso?
– Inteiramente, sob minha responsabilidade, senhor.
O rei começou a andar vivamente pelo gabinete.
– Isso são coisas bem terríveis – repetia ele; – mas em tudo isso ainda não vejo o roubo.
– Senhor, os ourives dizem que têm um recibo assinado pela rainha, e que a rainha deve

ter o colar.

– Ah! – exclamou o rei com um raio de esperança – ela nega! Bem vê que ela nega,

Breteuil!

– Ah! Senhor, nunca disse coisa alguma pela qual Vossa Majestade pudesse supor que eu

duvidasse da inocência da rainha! Serei tão abandonado de Deus, que Vossa Majestade não
conheça todo o respeito, todo o amor que o meu coração nutre pela mais pura de todas as
mulheres!

– Então, só acusa o Sr. de Rohan...
– Mas, senhor, a aparência aconselha...
– Grave acusação, barão.
– Que um inquérito naturalmente destruirá, e esse inquérito é indispensável. Lembre-se,

senhor, que a rainha afirma não ter o colar; que os ourives afirmam tê-lo vendido à rainha; que o
colar não aparece, e que a palavra roubo foi pronunciada pelo povo entre o nome do Sr. de Rohan
e o nome sagrado da rainha.

– É verdade, é verdade – disse o rei muito perturbado; – tem razão, Sr. de Breteuil; é

preciso esclarecer todo este negócio.

– É preciso, senhor.
– Meu Deus, quem é que vai acolá passando na galeria? Não é o Sr. de Rohan, que vai

para a capela?

– Ainda não, senhor, o Sr. de Rohan não pode ainda ir à capela. Não são ainda onze

horas; o Sr. de Rohan, que oficia hoje, viria paramentado com os seus hábitos; não é ele, não
senhor. Vossa Majestade tem ainda meia hora.

– Que deverei então fazer? Falar-lhe? Mandá-lo chamar?
– Não, senhor; permita-me que dê um conselho a Vossa Majestade; não faça bulha com

este negócio, antes de falar com Sua Majestade a rainha.

– Sim – disse o rei – ela me dirá a verdade.
– Não o duvidemos um único instante, senhor.
– Vejamos, barão, assente-se aí, e sem reserva e sem atenuação, relate-me o facto e os

seus comentários.

– Tenho tudo circunstanciado na minha carteira com os documentos necessários.
– Então, vamos à obra; espere que eu mande fechar a porta do gabinete; tinha duas

audiências esta manhã, ficam adiadas.

O rei deu as suas ordens, e tornando a assentar-se, lançou um último olhar para a janela.
– Desta vez – disse ele – é o cardeal, olhe!
Breteuil ergueu-se, chegou-se à janela, e por detrás da cortina viu o Sr. de Rohan que,

com o hábito de cardeal e arcebispo, se dirigia para o quarto, que lhe era destinado cada vez que
ia oficiar solenemente a Versalhes.

– Até que chegou – bradou o rei erguendo-se.
– Ainda bem – disse o Sr. de Breteuil; – a explicação não há-de sofrer demora.
E começou a instruir o rei com todo o zelo de um homem que tem empenho em perder

outro.

Com arte infernal reunira na sua carteira quanto pudesse servir para fazer carga ao

cardeal. O rei via amontoarem-se as provas da culpabilidade do Sr. de Rohan, mas desesperava-se
de não ver chegar com muita brevidade as provas da inocência da rainha.

Havia um quarto de hora que sofria com impaciência esse suplício, quando de repente

soaram uns gritos na galeria fronteira.

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O rei prestou o ouvido. Breteuil interrompeu a leitura.
Um oficial veio bater à porta do gabinete.
– Quem é? – perguntou o rei, cujos nervos estavam de uma grande sensibilidade depois

da revelação do Sr. de Breteuil.

O oficial entrou.
– Senhor, Sua Majestade a rainha roga a Vossa Majestade o favor de ir aos seus

aposentos.

– Há novidade – disse o rei tornando-se pálido.
– Talvez – disse o Sr. de Breteuil.
– Vou aos aposentos da rainha – bradou o rei. – Espere aqui por mim, Sr. de Breteuil.
– Bem: estamos perto do desenlace – murmurou o chanceler-mor.

LXXV

Fidalgo, cardeal e rainha


Na mesma hora em que o Sr. de Breteuil entrara nos aposentos de el-rei, tinha o Sr. de

Charny, pálido, agitado, mandado pedir uma audiência à rainha.

Esta estava-se vestindo; viu pela janela do seu toucador, que dava para o terraço, Charny,

que insistia para ser introduzido.

Deu ordem para que o mandassem entrar, ainda antes dele ter tempo de terminar a

petição.

Ela cedia à necessidade do coração; porque dizia a si mesma, com uma nobre altivez, que

um amor puro e imaterial como o seu tem direito a entrar a toda a hora no próprio palácio das
rainhas.

Charny entrou, tocou a tremer a mão que a rainha estendia para ele, e com voz sufocada,

disse:

– Ai, senhora, que infelicidade!
– Que é? Que tem? – bradou ela empalidecendo por ver o seu afeiçoado tão pálido.
– Senhora, sabe o que acabam de me dizer? Sabe o que dizem? Sabe o que já consta ao

rei, ou que talvez lhe constará brevemente?

Ela estremeceu, pensando nessa noite de castas delícias em que talvez um olhar, invejoso

e inimigo, a tivesse visto com o Sr. de Charny na quinta de Versalhes.

– Diga tudo, estou forte – respondeu ela pondo no coração uma das mãos.
– Dizem que Vossa Majestade comprou um colar a Boehmer & Bossange.
– Já o restituí – disse ela vivamente.
– Queira ouvir: dizem que fingiu restituí-lo, que esperava poder pagá-lo, que o rei

impediu que o pagasse, recusando assinar uma ordem para certa soma, que lhe foi apresentada
pelo Sr. de Calonne; que então Vossa Majestade se dirigiu a alguém para alcançar o dinheiro, e
que esse alguém, essa pessoa é... O seu amante.

– E o senhor acredita! – exclamou a rainha com um movimento de sublime confiança – o

senhor! Deixe falar os que o dizem. O título de amante não é para eles uma injúria tão grata a
lançar em rosto a alguém, como é grato o título de afeiçoado consagrado para sempre entre nós.

Charny parou confundido por essa eloqüência varonil e fecunda, que se exala do amor

verdadeiro, como o perfume essencial do coração de toda a mulher generosa.

Mas o intervalo que ele empregou em responder, aumentou a inquietação da rainha. Ela

exclamou:

– De que quer falar, Sr. de Charny? A calúnia tem uma linguagem que eu nunca percebo.

Compreende-a o senhor?

– Minha senhora, digne-se prestar-me toda a sua atenção; a circunstância é grave. Ontem,

fui com meu tio, o Sr. de Suffren, a casa dos ourives da corte, Boehmer & Bossange. Meu tio

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trouxe alguns brilhantes da índia, e quis que lhos avaliassem. Falou-se de tudo e de todos. Os
ourives contaram ao Sr. bailio uma horrível história, comentada pelos inimigos de Vossa
Majestade. Minha senhora, estou desesperado; se comprou o colar, diga-mo; não o pagou, diga-
mo também. Mas não me deixe acreditar que o Sr. de Rohan o pagasse por Vossa Majestade.

– O Sr. de Rohan! – bradou a rainha.
– Sim, o Sr. de Rohan, aquele que passa por ser o amante da rainha; aquele a quem a

rainha pede dinheiro emprestado; aquele a quem um desgraçado chamado Charny viu na quinta
de Versalhes, sorrindo para a rainha, ajoelhando e beijando-lhe a mão; aquele...

– Senhor – bradou Maria Antonieta – se crê em tudo isso, quando não estou presente, é

porque me não ama quando o estou.

– Oh! – redargüiu o mancebo – há um perigo imediato; não venho pedir nem franqueza,

nem coragem, venho suplicar que me preste um serviço.

– Primeiro que tudo – disse a rainha – tenha a bondade de me dizer que perigo é esse?
– O perigo, minha senhora, louco é quem não o adivinha. O cardeal, respondendo pela

rainha, pagando por ela, compromete-a. Já não falo do mortal desgosto que pode causar a Charny
uma confiança como a que inspira o Sr. de Rohan a Vossa Majestade. Não. Isso são males de que
se morre, mas de que ninguém se deve queixar.

– Mas o senhor está doido! – disse Maria Antonieta encolerizada.
– Não estou doido; Vossa Majestade é que é infeliz, e está perdida. Vi-a na quinta... Bem

lho tinha eu dito... Não me havia enganado. Hoje rebentou a horrível, a mortal verdade... O Sr. de
Rohan gaba-se talvez...

A rainha agarrou no braço de Charny.
– Louco! Louco! – repetiu ela com inexplicável angústia; – creia no ódio, creia em

sombras, creia no impossível; mas, em nome de Deus, depois do que lhe disse, não julgue que eu
seja culpada... Culpada! Esta palavra far-me-ia saltar para um braseiro. Culpada... com... Eu, que
nunca pensei no senhor sem pedir a Deus perdão desse único pensamento, que reputava um
crime! Oh! Sr. de Charny, se não quer que fique perdida hoje, morta amanhã, não me diga que
desconfia de mim, ou então fujo para tão longe, que nem sequer lhe chegue aos ouvidos o
estrondo da minha queda no momento da minha morte.

Olivier apertava as mãos com angústia.
– Ouça-me – disse ele – se quer que preste a Vossa Majestade um serviço eficaz.
– Um serviço do senhor! – bradou a rainha – do senhor que é o meu mais cruel inimigo...

porque eles só me acusam, e o senhor, suspeita-me! Um serviço da parte do homem que me
despreza; nunca, senhor... nunca!...

Olivier aproximou-se e tomando as mãos da rainha entre as suas, disse:
– Há-de ver que eu não gemo, não choro – disse ele; – os momentos são preciosos! Esta

noite seria já tarde para o que temos ainda que fazer. Quer salvar-me do desespero, salvando-se
do opróbrio?...

– Senhor!...
– Oh! Em presença da morte, não meço as palavras. Se me não ouve, esta noite

estaremos ambos mortos; Vossa Majestade de vergonha, eu por a ter visto morrer. Vamos
direitos ao inimigo, minha senhora, como nas batalhas! Direitos ao perigo! Direitos à morte!
Vamos lá juntos, eu como obscuro soldado, no meu lugar, mas valente, verá; Vossa Majestade,
com o poder, com a força no mais forte da acção. Se sucumbir, não estará só. Olhe, minha
senhora, veja em mim um irmão... Tem necessidade... de dinheiro para... pagar o colar?

– Eu?
– Não o negue.
– Digo-lhe...
– Não me diga que não tem o colar.
– Juro-lhe...
– Não, se quer que ainda a ame.

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– Olivier!
– Tem ainda um meio de salvar ao mesmo tempo a sua honra e o meu amor. O colar vale

um milhão e seiscentas mil libras, já pagou duzentas e cinqüenta mil, aqui está milhão e meio,
queira recebê-lo.

– Que é isso?
– Não olhe, receba e pague.
– Vendeu os seus bens! Vendeu as suas propriedades! Olivier, sacrificou-se por mim! É

um coração bom e nobre, e já não baratearei a confissão de semelhante amor. Olivier, amo-o.

– Aceite.
– Não aceito; mas amo-o
– Então, quer que o Sr. de Rohan pague? Pense bem, minha senhora, já não é

generosidade da sua parte, é crueldade. Aceita do cardeal?

– Eu? Ora adeus, Sr. de Charny! Eu sou a rainha, e se algumas vezes dou aos meus

súbditos amor ou fortuna, nunca aceito oferecimentos.

– Que vai então fazer?
– É o senhor que vai ditar o meu procedimento. Que diz, que pensa o Sr. de Rohan?
– Pensa que é seu amante.
– É cruel, Olivier...
– Falo como se fala na presença da morte.
– Que julga que os ourives pensam?
– Que não podendo a rainha pagar, o Sr. de Rohan há-de pagar por ela.
– E o público que lhe parece que pensa a respeito do colar?
– Que o tem, que o escondeu, que só o confessará quando estiver pago pelo cardeal, pelo

amor que tem a Vossa Majestade, ou pelo rei, ou pelo receio do escândalo.

– Bem; e agora, senhor de Charny, encaro-o de frente e pergunto-lhe: Que pensa das

cenas que viu na quinta de Versalhes?

– Creio, minha senhora, que precisa provar-me a sua inocência – redargüiu energicamente

o digno fidalgo.

A rainha limpou o suor, que lhe corria da fronte.
– O príncipe Luís, cardeal de Rohan, esmoler-mor de França! – bradou uma voz no

corredor.

– Ele! – murmurou Charny.
– Está realizado o seu desejo – disse a rainha.
– Vai recebê-lo?
– Eu ia mandá-lo chamar.
– Mas eu...
– Entre no meu gabinete, e deixe a porta entreaberta para ouvir bem.
– Minha senhora!
– Depressa, que aí vem o cardeal.
Ela empurrou o Sr. de Charny para o quarto que lhe indicara, fechou a porta quanto

convinha, e mandou entrar o cardeal.

O Sr. de Rohan apareceu no limiar do quarto. Vinha resplandecente com os seus

paramentos. Atrás dele, em distância, conservava-se numeroso séquito, cujos vestuários
brilhavam tanto como o do amo.

Entre esses homens divisavam-se Boehmer & Bossange, um pouco perturbados e muito

acanhados nos seus trajos de cerimónia.

A rainha foi ao encontro do cardeal, experimentando um sorriso, que logo lhe expirou

nos lábios.

Luís de Rohan vinha sério, e até triste. Vinha com o sossego do homem corajoso, que vai

combater, com a ameaça imperceptível do sacerdote, que pode ter que perdoar.

A rainha indicou-lhe um tamborete; o cardeal conservou-se de pé.

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– Minha senhora – disse ele depois de se ter inclinado, visivelmente trémulo – tinha várias

coisas importantes que comunicar a Vossa Majestade, que se esforça por evitar a minha presença.

– Eu – disse a rainha – tão pouco evito a sua presença, que até ia mandá-lo chamar.
O cardeal lançou um olhar para o toucador.
– Estou eu só com Vossa Majestade? – perguntou ele em voz baixa; – posso falar em

plena liberdade?

– Em plena liberdade, Sr. cardeal; pode estar à vontade, estamos sós.
E a sua voz firme parecia querer dirigir as palavras ao gentil-homem que estava escondido

no gabinete contíguo. Gozava com orgulho da sua coragem e do desengano que, logo às
primeiras palavras, ia receber o Sr. de Charny, que devia estar muito atento.

O cardeal tomou o seu partido. Chegou o banco à poltrona da rainha, de modo a achar-se

o mais longe possível da grande porta da sala.

– Temos muitos preâmbulos – disse a rainha, fingindo-se alegre.
– É porque... – disse o cardeal.
– É porque?... – repetiu a rainha.
– Não virá el-rei? – perguntou o Sr. de Rohan.
– Não tenha medo nem de el-rei nem de pessoa nenhuma – redargüiu vivamente Maria

Antonieta.

– Oh! De Vossa Majestade é que eu tenho medo – disse o cardeal com voz comovida.
– Então, maior razão ainda, porque não sou muito de recear: diga em poucas palavras, em

voz alta e inteligível; gosto muito de franqueza, e se não for franco, hei-de pensar que não é
homem de bem. Oh! Nada de gestos! Disseram-me que tinha contra mim motivos de escândalo.
Fale, que eu prezo a guerra; sou de um sangue que nada receia, e o senhor também o é, sei-o
bem. Que tem contra mim?

O cardeal soltou um suspiro e levantou-se como para aspirar mais livremente o ar do

quarto. Afinal, sentiu-se senhor de si para se explicar com a rainha.

LXXVI

Explicações


Conforme dissemos, rainha e cardeal achavam-se finalmente em frente um do outro.

Charny, no gabinete, podia ouvir a mínima palavra dos interlocutores, e as explicações, que tão
impacientemente eram esperadas de ambas as partes, iam afinal ser dadas.

– Senhora – disse o cardeal, inclinando-se – sabe o que se passa a respeito do nosso

colar?

– Não, senhor, não sei, e muito estimaria que mo dissesse.
– Por que me tem há tanto tempo reduzido a só me corresponder com Vossa Majestade

por intermediários? Por que razão, se tem algum motivo para odiar-me, mo não diz, explicando-
mo?

– Não sei o que quer dizer, Sr. cardeal, nem tenho motivo para odiá-lo; mas parece-me

que não é esse o objecto da nossa conversa. Digne-se portanto dar-me algum esclarecimento a
respeito daquele aziago colar, e primeiro que tudo, diga-me onde está a Srª. de La Motte?

– É o que eu ia tomar a liberdade de perguntar a Vossa Majestade.
– Perdão, mas se alguém pode saber onde ela está, parece-me que deve ser o senhor.
– Eu, minha senhora, a que título?
– Oh! Eu não estou aqui para ouvir as suas confissões, Sr. cardeal; foi-me preciso falar

com a Srª. de La Motte, mandei-a chamar, e, tendo sido procurada em casa mais de dez vezes,
não foi encontrada. Esta desaparição é singular, deve confessá-lo.

– Também eu estou admirado de semelhante desaparição, porque mandei pedir à Srª. de

La Motte o favor de chegar a minha casa, e não me respondeu, como não deu resposta a Vossa

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Majestade.

– Então deixemos de parte a condessa, e falemos de nós.
– Oh! Não, senhora; falemos dela em primeiro lugar, porque algumas palavras de Vossa

Majestade lançaram-me numa cruel suspeita, pareceu-me que me lançava em rosto assiduidades
junto da condessa.

– Ainda não lhe lancei em rosto coisa nenhuma, senhor, mas descanse.
– Oh! Minha senhora, é que uma tal desconfiança explicaria todas as susceptibilidades de

tão nobre alma, e eu compreenderia então, apesar do meu desespero, o rigor, até aí inexplicável,
que tem usado para comigo.

– Aí está o ponto em que deixamos de nos entender – disse a rainha; – é de uma

impenetrável obscuridade, e não é para nos vermos mais embaraçados que lhe peço explicações.
Vamos ao facto! Ao facto!

– Senhora – bradou o cardeal de mãos postas e aproximando-se da rainha – por quem é

não mude de conversa: mais duas palavras que houvéssemos dado sobre o objecto de que ainda
há pouco tratávamos, e ter-nos-íamos entendido.

– Realmente, o cardeal fala uma gíria que me é desconhecida; falemos noutra linguagem,

rogo-lhe eu. Onde está o colar que eu restituí aos joalheiros?

– O colar que restituiu! – exclamou o Sr. de Rohan.
– Sim, que fez dele?
– Eu! Não sei, minha senhora.
– Vamos, há uma coisa que é muito simples; a Srª. de La Motte recebeu o colar, restituiu-

o em meu nome; os joalheiros afirmam que não o receberam. Tenho em meu poder um recibo
que prova o contrário, e que os joalheiros dizem ser falso. A Srª. de La Motte, que poderia com
uma única palavra explicar tudo, não aparece! Pois bem! Deixe-me pôr suposições no lugar de
factos obscuros; a Srª. de La Motte quis restituir o colar, o senhor, porém, que sempre teve a
mania, aliás benévola, de me fazer comprar o colar, o senhor, que mo trouxe oferecendo-se para
pagar por mim... Oferecimento que eu...

– Que vossa Majestade rejeitou muito cruelmente – disse o cardeal suspirando.
– Pois bem! Perseverou na idéia fixa, de que eu havia de possuir o colar e não o restituiu

aos joalheiros, para mo fazer comprar numa ocasião qualquer. A Srª. de La Motte mostrou-se
fraca, ela que conhecia as minhas repugnâncias, a impossibilidade em que eu estava de o pagar e a
imutável resolução que tomara de não possuir o colar sem ter dinheiro; a Srª. de La Motte, pelo
seu zelo por mim, conspirou com o cardeal, e hoje teme a minha cólera e não aparece. Não será
isto? Reconstruí os factos no meio das trevas? Diga que sim. E deixe admoestá-lo por tão
inconsiderado procedimento, por semelhante desobediência às minhas ordens formais, que ficará
livre com uma advertência, e fica tudo acabado. Faço mais, prometo-lhe o perdão da Srª. de La
Motte, que pode sair do seu esconderijo. Mas, por favor, clareza, clareza, senhor, porque não
quero que haja a mais leve sombra na minha vida; não quero, ouviu?

A rainha pronunciara estas palavras com tal vivacidade, acentuara-as tão vigorosamente,

que o cardeal não ousara nem pudera interrompê-la; mas assim que ela acabou, o príncipe Luís,
reprimindo um suspiro, disse:

– Vou responder a todas as suposições de Vossa Majestade. Não, não perseverei na idéia

de que Vossa Majestade havia de possuir o colar, visto que eu tinha a certeza de que ele estava
nas suas reais mãos. Não conspirei de modo nenhum com a Srª. de La Motte a respeito desse
colar. Não, não tenho em meu poder o colar, assim como o não têm os joalheiros, assim como o
não tem Vossa Majestade, segundo afirma.

– Não é possível – bradou Maria Antonieta assustada; – não tem o colar?
– Não, minha senhora.
– Não aconselhou à Srª. de La Motte que se conservasse fora de tudo isto?
– Não, minha senhora.
– Não é o senhor quem a esconde?

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– Não, minha senhora.
– Não sabe que é feito dela?
– Tanto como Vossa Majestade o sabe.
– Mas, então, como explica o que acontece?
– Minha senhora, vejo-me obrigado a confessar que não encontro explicação alguma;

contudo, não é a primeira vez que eu me queixo à rainha de não ser compreendido por ela.

– A mim! Quando, senhor? Não me lembro de tal.
– Tenha a bondade, minha senhora, de tornar a ler na imaginação as minhas cartas.
– As suas cartas! – disse a rainha admirada. – Escreveu-me algumas cartas?
– Bem poucas, na verdade, minha senhora, para dizer tudo quanto tinha no coração.
A rainha ergueu-se.
– Parece-me – disse – que estamos ambos enganados; acabemos depressa com esta

comédia. Que está aí dizendo de cartas? Que cartas são essas, e que é que tem sobre o coração ou
no coração, porque não sei bem como foi que disse isso?

– Meu Deus! Senhora, talvez que eu proferisse em tom demasiado alto o segredo da

minha alma.

– Que segredo?! Está em seu juízo, Sr. cardeal?
– Minha senhora!
– Oh! Não tergiversemos, está falando como um homem, que me quer armar um laço ou

que me quer perder diante de testemunhas.

– Juro-lhe, minha senhora, que eu não disse coisa nenhuma... Há realmente aqui alguém

que nos ouça?

– Não, senhor, mil vezes não, não há ninguém; explique-se portanto, mas explique-se

categoricamente, e se está em seu juízo, prove-o.

– Oh! Minha senhora, se estivesse presente a Srª. de La Motte, ela me auxiliaria, ela, que é

nossa amiga comum, a despertar, quando não o coração, pelo menos a memória de Vossa
Majestade.

– Nossa amiga? O meu coração? A minha memória? Não o percebo!
– Ah! Minha senhora, suplico-lhe – disse o cardeal indignado pelo tom cheio de azedume

que a rainha empregara – suplico-lhe que tenha dó de mim. Pode deixar de amar-me, mas não me
ofenda!

– Meu Deus! – bradou a rainha tornando-se pálida; – meu Deus... Que diz este homem?
– Muito bem! – continuou o Sr. de Rohan, que se animava à medida que se ia

encolerizando; – muito bem, minha senhora, parece-me ter sido discreto bastante para não
merecer ser maltratado por Vossa Majestade: e demais, entre nós só há uns arrufos frívolos.
Tenho culpa de insistir. Verdade é que eu devia saber que quando uma rainha diz: não quero
mais, essas palavras são uma lei tão imperiosa como quando uma mulher diz: eu quero!

A rainha soltou um grito terrível, e agarrou o cardeal pela manga de rendas.
– Diga depressa, senhor – disse com uma voz trémula de raiva. – Eu disse: não quero mais;

e tinha dito: eu quero. A quem disse eu essas expressões?

– Disse-as a mim.
– Ao senhor?
– Esqueça, se quer, que disse uma delas, que eu não esquecerei nunca que disse a outra.
– É um miserável, Sr. de Rohan, é um mentiroso!
– Eu!
– É um cobarde, por que calunia uma mulher.
– Eu!
– É um traidor, porque insulta a rainha.
– E a senhora é uma mulher sem alma, uma rainha sem fé.
– Desgraçado!
– Conduziu-me gradualmente a ter por si um louco amor. Alimentou-me de esperanças.

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– Esperanças! Meu Deus, estarei eu doida! Será este homem um facínora?
– Teria eu nunca ousado pedir-lhe as audiências nocturnas que me concedeu?
A rainha soltou um brado de raiva, ao qual respondeu um longo suspiro no toucador.
– Teria eu ousado – prosseguiu o Sr. de Rohan – ir só à quinta de Versalhes, se Vossa

Majestade me não tivesse mandado a Srª. de La Motte?

– Jesus!
– Teria acaso ousado roubar a chave, que abre a porta da Montaria?
– Santo Deus!
– Teria eu ousado pedir-lhe que me trouxesse esta rosa? Rosa adorada! Rosa maldita,

ressequida e queimada pelo fogo dos meus beijos!

– Meu Deus!
– Obriguei-a eu porventura a ir no dia seguinte e a dar-me as suas mãos, cujo perfume

incessantemente me devora o cérebro e me torna louco? Tem razão em me dizer que estou
louco... Tem razão!...

– Oh! Basta! Basta!
– Finalmente, teria eu ousado, no meu mais furioso orgulho, sonhar aquela terceira noite

de céu azul, de doce silêncio, de pérfidos amores?...

– Senhor! Senhor! – bradou a rainha recuando diante do cardeal – está blasfemando!
– Meu Deus! – redargüiu o cardeal erguendo os olhos ao céu – bem sabes, meu Deus, se

para continuar a ser amado por esta mulher falsa, eu não teria dado os meus bens, a minha
liberdade, a minha vida!

– Sr. de Rohan, se quer conservar tudo isso, confesse já, aqui mesmo, que procurou

perder-me, que inventou todas essas infâmias, e que não veio de noite a Versalhes...

– Eu vim! – respondeu nobremente o cardeal.
– Está morto, se continua nessa linguagem.
– Um Rohan não mente; eu vim!
– Sr. de Rohan, Sr. de Rohan, em nome do céu, diga que não esteve comigo na quinta...
– Morrerei, se for preciso, como ainda há pouco me ameaçou, mas afirmo que estive com

Vossa Majestade na quinta de Versalhes, aonde me conduziu a Srª. de La Motte.

– Mais uma vez – bradou a rainha lívida e trémula – desdiga-se!
– Não desdigo!
– Segunda vez, diga que tramou contra mim essa infâmia!
– Não!
– Uma última vez, Sr. de Rohan, confesse que o podem ter enganado, que tudo isso é

uma calúnia, um sonho, um impossível; mas confesse que estou inocente, que o posso estar!

– Não!
A rainha levantou-se terrível e solene.
– Pois então – disse ela – como recusa a justiça de Deus, vai explicar-se perante a justiça

de el-rei.

O cardeal inclinou-se sem dizer palavra.
A rainha tocou uma campainha com tal violência, que várias criadas acudiram ao mesmo

tempo.

– Mande-me dizer a Sua Majestade – disse ela limpando a boca – que lhe peço me faça a

honra de chegar cá.

Foi logo um oficial executar esta ordem. O cardeal, decidido a tudo, ficou intrepidamente

num recanto da casa.

Maria Antonieta foi mais de dez vezes à porta do toucador, sem entrar, como se de cada

vez, tendo perdido a razão, a tornasse a achar em frente daquela porta.

Dez minutos depois, passados neste terrível jogo de cena, apareceu o rei no limiar da

porta, com a mão nos seus bofes de rendas.

No mais numeroso dos grupos, via-se sempre no fundo os rostos espantados de

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Boehmer & Bossange, que farejavam a tempestade.

LXXVII

A prisão


Apenas apareceu o rei no limiar da porta, foi interpelado pela rainha com extraordinária

volubilidade.

– Senhor – disse ela – o Sr. cardeal de Rohan, aqui presente, está dizendo coisas incríveis;

queira ordenar-lhe que as repita.

A estas palavras inesperadas, a esta súbita interpelação, o cardeal tornou-se pálido.

Efectivamente, era tão estranha a posição, que o prelado cessava de compreendê-la. Podia ele
repetir ao seu rei, o súbdito respeitoso, podia declarar ao marido, o pretendido amante, os
direitos que julgava ter sobre a rainha e sobre a mulher?

Mas o rei, voltando-se para o cardeal absorto nas suas reflexões, disse:
– A propósito de certo colar, não é assim, senhor? É a esse respeito que tem coisas

incríveis para dizer-me, e eu coisas incríveis para ouvir? Pois vamos, fale!

O Sr. de Rohan tomou imediatamente a sua resolução, das duas dificuldades escolheria a

mais pequena; dos dois ataques, passaria pelo mais honroso para o rei e para a rainha; e se
imprudentemente o lançassem no segundo perigo, estava decidido, havia de sair dele
cavalheirosamente e com honra.

– A propósito do colar, sim, meu senhor – murmurou ele.
– Mas diga-me, senhor – perguntou o rei – comprou o tal colar?
– Meu senhor...
– Sim, ou não?
O cardeal olhou para a rainha e não respondeu.
– Sim ou não? – repetiu a rainha – A verdade, senhor, a verdade, nada mais lhe pedem.
O Sr. de Rohan voltou a cabeça e não respondeu coisa alguma.
– Como o Sr. de Rohan não quer responder, responda a rainha – disse o rei; – deve saber

alguma coisa a esse respeito. Comprou ou não o colar?

– Não! – disse a rainha com veemência.
O cardeal estremeceu.
– É uma palavra de rainha – bradou o rei solenemente – cautela, Sr. cardeal!
Aos lábios do Sr. de Rohan assomou um sorriso de desprezo.
– Então não diz nada? – perguntou o rei.
– De que sou acusado, senhor?
– Os joalheiros dizem que venderam um colar à rainha ou ao senhor, e mostram um

recibo de Sua Majestade.

– O recibo é falso – disse a rainha.
– Os joalheiros – continuou o rei – dizem que na falta da rainha, estão garantidos pelo

senhor, que tratou com eles directamente.

– Não me nego a pagar, senhor – disse o cardeal. – Deve ser essa a verdade, visto que Sua

Majestade a rainha não o contesta.

E um segundo olhar, de maior desprezo que o primeiro, terminou a sua frase e o seu

pensamento.

A rainha estremeceu. O desprezo do cardeal não era para ela um insulto, pois que não o

merecia; mas devia ser a vingança de um homem de pundonor, e ela assustou-se.

– Sr. cardeal – continuou o rei – não deixa por isso de haver neste negócio um recibo

falso, que comprometeu a assinatura da rainha de França.

– Há ainda outro papel falso – bradou a rainha e esse pode ser imputado a um fidalgo, é

aquele com que se prova que os ourives tornaram a receber o colar.

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– A rainha tem o direito de me atribuir os dois papéis falsos – disse o cardeal. – Quem fez

um, pode ter feito o outro; que dúvida haverá?

A rainha esteve a ponto de soltar um brado de indignação; o rei deteve-a com um gesto.
– Cuidado – disse ele ao cardeal – olhe que agrava a sua posição. Eu digo-lhe que se

justifique, e está-se dando ares de acusador!

O cardeal reflectiu um momento; depois, como se sucumbisse ao peso da misteriosa

calúnia que lhe esmagava a honra, bradou:

– Justificar-me?... É impossível!
– Senhor, estão aí uns homens que se queixam de lhes ter sido roubado um colar;

propondo-se a pagá-lo, prova que é culpado.

– Quem o há-de crer? – disse o cardeal com supremo desprezo.
– Então, senhor, se supõe que não hão-de crer, parece-lhe que hão-de pensar.
E um estremecimento de cólera transtornou o rosto geralmente tão plácido do rei.
– Senhor, nada sei do que se tem dito – redargüiu o cardeal – nada sei do que se tem

feito; tudo quanto posso afirmar é que não tive o colar; tudo quanto posso afirmar é que os
brilhantes estão em poder de alguém, que deveria nomear-se, que não o quer fazer, e me obriga
assim a dizer-lhe esta palavra da Escritura: “Recaia o mal sobre a cabeça de quem o praticou”.

A estas palavras, fez a rainha um movimento para pegar no braço do rei, que lhe disse:
– O debate é entre os dois. Pela última vez, senhora, tem o colar?
– Não! Pela honra de minha mãe, pela vida de meus filhos! – respondeu a rainha.
O rei, satisfeito depois desta declaração, voltou-se para o cardeal:
– Então o negócio é entre o senhor e a justiça – disse ele – salvo se preferir recorrer à

minha clemência.

– A clemência dos reis é feita para os criminosos, senhor – respondeu o cardeal; – eu

prefiro a justiça dos homens.

– Nada quer confessar?
– Nada tenho que dizer.
– Mas enfim, senhor – bradou a rainha – o seu silêncio deixa a minha honra manchada!
O cardeal calou-se.
– Mas eu não me hei-de calar – continuou a rainha; – esse silêncio queima-me, atesta uma

generosidade que rejeito. Saiba, senhor, que o crime do Sr. cardeal não consiste unicamente na
venda ou no roubo do colar.

O Sr. de Rohan levantou a cabeça e empalideceu.
– Que quer dizer?! – exclamou o rei inquieto.
– Minha senhora!... – murmurou o cardeal aterrado.
– Oh! Não há razão, temor ou fraqueza que me faça calar; tenho aqui, no coração, certos

motivos que me levariam a pregar a minha inocência no meio de uma praça pública.

– A sua inocência! – disse o rei. – Ah! Minha senhora, quem seria tão temerário ou tão

cobarde, que obrigasse Vossa Majestade a pronunciar semelhante palavra?!

– Suplico-lhe, minha senhora – disse o cardeal.
– Ah! Já começa a tremer. Então tinha eu adivinhado: os seus tramas preferem a sombra!

Eu escolho a luz do dia! Senhor, ordene ao Sr. cardeal que lhe repita o que ele ainda há pouco me
disse, aqui, neste lugar.

– Minha senhora! Minha senhora! – disse o Sr. de Rohan – cuidado; Vossa Majestade

excede os limites.

– Como? – disse o rei com altivez. – Quem fala assim à rainha? Parece-me que não sou

eu?

– Eis aí exactamente a razão, senhor – disse Maria Antonieta. – O Sr. cardeal fala assim à

rainha porque pretende ter direito para o fazer.

– O senhor?! – murmurou o rei, que se tornara lívido.
– Ele! – bradou a rainha com desprezo; – ele!

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– O Sr. cardeal tem provas? – redargüiu o rei dando um passo para o lado do príncipe.
– O Sr. de Rohan, segundo diz, tem cartas minhas – disse a rainha.
– Vejamos, senhor! – continuou o rei.
– As cartas! – bradou a rainha encolerizada – as cartas!
O cardeal passou a mão pela fronte gelada de suor, e pareceu perguntar a Deus como

tinha podido juntar numa criatura tanta audácia e tanta perfídia; mas calou-se.

– Oh! Não é tudo – prosseguiu a rainha, que se animava a pouco e pouco sob a influência

da sua própria generosidade; – o Sr. cardeal conseguiu entrevistas.

– Por piedade, minha senhora! – disse o rei.
– Por pudor! – disse o cardeal.
– Finalmente, senhor – prosseguiu a rainha – se não é o mais ínfimo dos homens, se

neste mundo tem alguma coisa por sagrado, se possui provas, apresente-as.

O Sr. de Rohan ergueu lentamente a cabeça e respondeu:
– Não, minha senhora.
– Não juntará esse crime aos outros – continuou a rainha; – não fará pesar sobre mim

opróbrio sobre opróbrio. Tem uma confidente, uma cúmplice, uma testemunha em tudo isto,
nomeie-a.

– Quem é? – bradou o rei.
– É a Srª. de La Motte – disse a rainha.
– Ah! – disse o rei, triunfante por ver finalmente justificadas as suas prevenções contra

Joana; – ora vamos, vamos, apareça essa mulher e seja interrogada.

– É impossível – bradou a rainha – desapareceu. Pergunte ao Sr. cardeal o que fez dela.

Tinha demasiado interesse em que não fosse encontrada.

– Outros a terão feito desaparecer – redargüiu o cardeal – outros que nisso tinham maior

interesse do que eu, o que faz com que não seja encontrada.

– Mas, senhor – disse a rainha encolerizada – já que está inocente, ajude-nos a descobrir

os culpados.

Mas o cardeal de Rohan, depois de ter-lhe lançado um último olhar, voltou as costas e

cruzou os braços.

– Senhor! – disse o rei ofendido – vai para a Bastilha.
O cardeal inclinou-se; depois, com tom firme, disse:
– Assim paramentado? Com os meus hábitos pontificais? Diante de toda a corte? Digne-

se Vossa Majestade reflectir, senhor, que o escândalo será imenso, e mais pesado há-de ser sobre
a cabeça em que tiver de recair.

– Assim o quero – disse o rei muito agitado.
– É uma dor injusta que Vossa Majestade prematuramente causa a um prelado, senhor, e

a tortura antes da acusação não é legal.

– Assim há mister – respondeu o rei abrindo a porta do quarto para procurar com a vista

alguém a quem transmitisse a sua ordem.

Estava ali o Sr. de Breteuil; os olhos devoradores tinham-lhe adivinhado pela exaltação da

rainha, pela agitação do rei, pela atitude do cardeal, a próxima e inevitável queda de um inimigo.

Mal tinha o rei acabado de lhe falar em voz baixa, o chanceler-mor, usurpando as funções

do capitão da guarda, bradou com voz sonora, que soou até ao fundo das galerias:

– Prendam o Sr. cardeal!
O Sr. de Rohan estremeceu. Os murmúrios que se ouviam debaixo das abóbadas, a

agitação dos cortesãos, a súbita chegada do oficial da guarda real, davam a essa cena um carácter
de sinistro agouro.

O cardeal passou diante da rainha sem a cortejar, o que fez ferver o sangue da altiva

princesa. Inclinou-se com muita humildade ao passar por diante do rei, e quando passou pelo Sr.
de Breteuil tomou uma expressão de dó tão habilmente manifestada, que o barão ficou tendo por
fraca a sua vingança.

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O oficial da guarda aproximou-se timidamente, e pareceu pedir ao próprio cardeal a

confirmação da ordem que acabava de ouvir.

– Sim, senhor – disse-lhe o Sr. de Rohan – sim, o preso sou eu.
– Conduzirá o Sr. cardeal ao seu quarto, e esperará, durante a missa, o que se tiver

decidido – disse o rei no meio de mortal silêncio.

O rei ficou só no quarto da rainha, com as portas abertas, enquanto o cardeal se afastava

lentamente pela galeria, precedido pelo oficial da guarda, com o chapéu na mão.

– Minha senhora – disse o rei arquejante, porque a grande custo se tinha contido – sabe

que tudo isto conduz a um julgamento público, isto é, a um escândalo, ao peso do qual há-de cair
a honra dos culpados?

– Agradecida! – bradou a rainha apertando com veemência as mãos do rei – agradecida;

escolheu o único meio de me justificar.

– Agradece-me!
– Com toda a minha alma! Procede como rei, eu como rainha! Acredite-o!
– Bem – respondeu o rei, cheio de vivo prazer – sairemos afinal vencedores de todas

estas baixezas. Quando a hidra tiver sido uma vez por todas esmagada por nós, espero que
vivamos tranqüilos.

Deu um beijo na fronte de Maria Antonieta e retirou-se.
Entretanto, na extremidade da galeria, o Sr. de Rohan encontrara Boehmer & Bossange

meio desmaiados nos braços um do outro.

Depois, a alguns passos de distância, viu o cardeal o seu estribeiro que, aterrado com o

desastre, procurava ansiosamente um olhar do amo.

– Senhor – disse o cardeal ao oficial que o guiava – passando aqui todo o dia, vou encher

de cuidados muitas pessoas; não poderei mandar dizer a minha casa que estou preso?

– Sim, monsenhor, contando que ninguém o veja nem o saiba – disse o moço oficial.
O cardeal agradeceu; depois, dirigindo-se em alemão ao criado, escreveu algumas palavras

numa página do livro de missa e rasgou-a.

E por detrás do oficial, que vigiava para não ser surpreendido, o cardeal enrolou a página

e deixou-a cair.

– Podemos seguir – disse ele ao oficial.
E desapareceram.
O criado atirou-se ao papel como o falcão à caça, correu para fora do paço, montou a

cavalo e fugiu para Paris.

O cardeal ainda o viu na estrada, por uma das janelas da escada, quando ia descendo com

o seu guia.

– Ela perde-me – murmurou ele – e eu salvo-a! É por vós, meu rei, que assim procedo; é

por vós, meu Deus, que ordenais o perdão das injúrias; é por vós, que eu perdôo aos outros...
Perdoai-me a mim!

LXXVIII

Relatórios


Apenas o rei voltara muito satisfeito para o seu quarto, tendo assinado a ordem para

levarem o Sr. de Rohan para a Bastilha, apareceu o conde de Provença, que entrou no gabinete
fazendo vários sinais ao Sr. de Breteuil, o qual, apesar de todo o seu respeito e boa vontade, não
pôde compreendê-los.

Mas não era ao chanceler-mor que aqueles sinais se dirigiam, o príncipe multiplicava-os

assim para atrair a atenção do rei, que olhava para um espelho ao mesmo tempo que ia redigindo
a sua ordem.

Aquela afectação não deixou de produzir o seu efeito, o rei viu os sinais, e depois de ter

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mandado retirar o Sr. de Breteuil, disse ao irmão:

– Que significam os sinais que estava fazendo ao Sr. de Breteuil?
– Oh! Senhor...
– Essa vivacidade de gestos, esse modo preocupado significam alguma coisa?
– Certamente, senhor, mas...
– O mano está no seu direito de não falar – disse o rei com ar de visível enfado.
– Senhor, é que acabam de dar-me a notícia da prisão do Sr. cardeal de Rohan.
– E então! Em que pode essa notícia causar-lhe tanta agitação? O Sr. de Rohan não lhe

parece culpado? Faço mal em castigar os poderosos?

– Mal? Não, meu irmão, não faz mal; não era isso que eu queria dizer.
– Muito me admiraria que o Sr. conde de Provença se mostrasse indisposto contra a

rainha, e a favor do homem que procura desonrá-la. Eu acabo de estar com a rainha, meu irmão,
e bastou uma palavra dela...

– Oh! Senhor, Deus me livre de acusar a rainha, bem o sabe. Sua Majestade... Minha irmã,

não tem amigo mais dedicado e sincero do que eu. Quantas vezes, pelo contrário, não me tem
sucedido defendê-la, mesmo contra o mano?

– Realmente, meu irmão, costumam então acusá-la muitas vezes?
– Hoje estou infeliz, monsenhor... Não me perdoa palavra... Eu queria dizer que a própria

rainha não acreditaria se eu mostrasse que duvidava da sua inocência.

– Então aprova a humilhação porque faço passar o cardeal, o processo que se lhe há-de

seguir, o escândalo que vai pôr termo a todas as calúnias, que mal ousariam inventar contra uma
simples dama da corte, e de que todos se fazem eco, porque dizem que a rainha é superior a todas
essas misérias?

– Aprovo completamente o procedimento de Vossa Majestade, e digo que pelo que

respeita ao negócio do colar, procedeu o melhor possível.

– Por minha alma! Meu irmão – disse el-rei – não há nada mais claro! Não se percebe

logo que o Sr. de Rohan fez gala de ter familiaridade com a rainha, efectuando em seu nome uma
compra de brilhantes que ela rejeitou, deixando propalar o boato de que foram roubados pela
rainha, ou na casa da rainha; isto é monstruoso, e repito-lhe, meu irmão, repito-lhe o que me diria
a rainha: “O que pensariam, se tivesse admitido o Sr. de Rohan como cúmplice em tráfico tão
misterioso?”

– Senhor...
– Além disso, meu irmão, bem sabe que a calúnia nunca pára em meio caminho, que a

leviandade do Sr. de Rohan não só compromete a rainha, senão que a narração dessas
leviandades a desonram.

– Oh! Sim, meu irmão, sim, repito, tem razão pelo que diz respeito ao negócio do colar.
– Muito bem! Mas – disse o rei admirado – há ainda outra coisa?
– Mas... A rainha deve ter-lhe dito...
– Dito... O quê?
– Senhor, quer embaraçar-me... É impossível que a rainha não lhe tenha dito...
– O quê, senhor? O quê?
– Senhor...
– Ah! As fanfarronadas do Sr. de Rohan? Essas reticências? Essa suposta

correspondência?

– Não, senhor, não.
– Que é então? As entradas que a rainha concedeu ao Sr. de Rohan, para o negócio do

colar em questão...

– Não, senhor, não é isso.
– Tudo o que sei – redargüiu o rei – é que tenho na rainha uma confiança absoluta,

confiança de que ela é digna pela nobreza do seu carácter. Sua Majestade podia não me dizer
coisa alguma do que se passou. Podia pagar ou deixar que outros pagassem, podia pagar ou deixar

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falar; a rainha, interrompendo esses mistérios, que se tornavam em escândalos, provou-me que
apelava para mim antes de apelar para o público. Foi a mim que a rainha mandou chamar, foi a
mim que quis confiar o cuidado de velar pela sua honra. Tomou-me por confessor, por juiz,
portanto a rainha disse-me tudo.

– Pois bem – redargüiu o conde de Provença menos perturbado do que deveria estar,

porque sentia a convicção do rei menos sólida do que ele queria fazer acreditar; – aí está outra
vez duvidando da minha amizade, do meu respeito pela rainha, por minha irmã. Se procede
contra mim com tamanha susceptibilidade, nada lhe direi, receando sempre, eu que defendo,
passar por um inimigo ou por um acusador. Contudo, vejo quanto nisso é falto de lógica. As
confissões da rainha já o levaram a achar uma verdade, que justifica minha irmã. Por que não
quer que lhe mostrem outras circunstâncias mais próprias ainda para revelar toda a inocência da
nossa rainha?

– É porque... – disse o rei perturbado – meu irmão, sempre começa por circunlóquios,

em que me perco.

– São precauções oratórias, senhor, falta de calor! Peço perdão a Vossa Majestade; é vício

de educação. Cícero estragou-me.

– Meu irmão, Cícero nunca é tão mau como quando defende uma causa má; a sua causa é

boa, seja explícito, pelo amor de Deus!

– Criticar-me no meu modo de falar, é reduzir-me ao silêncio.
– Vamos, aí temos o irritabili genus rhetorum – exclamou o rei, desconfiado e logrado pela

esperteza do conde de Provença. – Vamos ao facto, advogado, vamos ao facto! Exponha-me o
que mais sabe, além do que a rainha me disse.

– Ora, senhor! É nada e tudo. Saibamos primeiro o que lhe disse a rainha.
– A rainha disse-me que não tinha o colar.
– Bem.
– Disse-me que não tinha assinado o recibo dos joalheiros.
– Bem.
– Disse-me que tudo quanto tinha relação com negociações por meio do Sr. de Rohan era

uma falsidade inventada pelos seus inimigos.

– Muito bem, senhor.
– Disse, enfim, que nunca dera ao Sr. de Rohan o direito de se persuadir que fosse

alguma coisa mais do que um súbdito, um indiferente, um desconhecido.

– Ah! Ela disse...
– E num tom que não admitia réplica, porque o cardeal não replicou.
– Então, senhor, como o cardeal não replicou, é porque se confessa mentiroso, e dá por

esse modo razão aos outros boatos que correm sobre certas preferências concedidas pela rainha a
determinadas pessoas.

– Ah! Meu Deus! Que mais há ainda? – disse o rei muito admirado.
– Absurdos, senhor, absurdos, como vai ver. Uma vez que se mostra que a rainha não

passeou com o Sr. de Rohan...

– Como! – bradou o rei – dizem que o Sr. de Rohan andou em passeio com a rainha?
– O que aliás é desmentido pela própria rainha, senhor, e pela negativa do Sr. de Rohan;

mas, enfim, uma vez que isso se disse, como deve supor, trataram de averiguar, sem que a
malignidade se abstivesse, como é que a rainha passeava de noite na quinta de Versalhes.

– De noite! Na quinta de Versalhes!... A rainha!...
– E com quem passeava? – prosseguiu friamente o conde de Provença.
– Com quem?!... – perguntou o rei.
– Certamente!... Todos os olhos estão cravados sempre no que uma rainha faz, sem que o

brilho do dia ou o da majestade os deslumbre nunca, e, se é de noite, vêem ainda mais claro.

– Mas, meu irmão, o que está dizendo é infame!
– Senhor, não faço mais que repetir, e repito com tal indignação, que estou certo de levar

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Vossa Majestade a descobrir a verdade.

– Como, senhor, dizem que a rainha andou a passear de noite, em grande companhia...

Na quinta de Versalhes!

– Oh! Não, senhor, não era com muita companhia, era simplesmente com outra pessoa,

uma só... Oh! se dissesse de grande companhia, nem valeria a pena reparar nisso.

O rei, encolerizando-se de repente, disse:
– Vai provar-me que não faz mais do que repetir, e, para isso, há-de fazer-me crer que se

disseram tais coisas.

– Oh! Isso é fácil – respondeu o Sr. de Provença.
– Há quatro testemunhas: a primeira, é o capitão das minhas caçadas, que viu a rainha

dois dias seguidos, ou antes duas noites seguidas, sair da quinta de Versalhes pela porta da
montaria. Aqui está o seu relatório! Está assinado, queira lê-lo.

El-rei pegou, tremendo, no papel, leu-o e devolveu-o ao conde de Provença.
– Vai ver outro mais curioso, senhor, é o do guarda de noite do Trianon. Declara que a

noite esteve boa, que ouviu um tiro de espingarda, dado certamente por ladrões que andavam
caçando na tapada de Satory; que, quanto às quintas, estiveram em sossego, excepto no dia em
que Sua Majestade a rainha andou passeando nelas com um gentil-homem a quem dava o braço.
Veja o relatório, é explícito.

O rei leu este também, estremeceu, e deixou cair os braços.
– O terceiro – prosseguiu imperturbavelmente o Sr. conde de Provença – é o do guarda-

portão da porta de Leste. Diz que viu e reconheceu a rainha no momento em que ela saía pela
porta da montaria. Diz de que modo estava a rainha vestida; veja, senhor; diz também que de
longe não pôde conhecer o gentil-homem que se apartava de Sua Majestade; – isto são as próprias
palavras escritas; – mas que pelo seu aspecto o tomou por um oficial. Este relatório está assinado.
Acrescenta uma coisa curiosa, pela qual se vê que a presença da rainha não pode ser posta em
dúvida, porque Sua Majestade ia acompanhada pela Srª. de La Motte, amiga da rainha.

– Amiga da rainha! – bradou o rei furioso. – Sim! É como está escrito: amiga da rainha!
– Não queira mal a um honrado servidor, senhor, que só pode ser culpado de excesso de

zelo. Está-lhe confiada a guarda e vigia, ele vigia e guarda.

“O último – prosseguiu o conde de Provença – parece-me ser o mais claro de todos. É

do mestre serralheiro, encarregado de verificar se depois do toque de recolher todas as portas
estão fechadas. Esse homem, que Vossa Majestade conhece, certifica ter visto a rainha entrar
com um gentil-homem nos banhos de Apolo.”

O rei, pálido e reprimindo a cólera, arrancou o papel das mãos do conde e leu-o.
O Sr. conde de Provença, não obstante esta leitura, continuou.
– Verdade seja que a Srª. de La Motte não entrou nos banhos de Apolo, ficou de fora,

numa distância de vinte passos, e que a rainha apenas se demorou uma hora naquela casa.

– Mas qual é o nome do gentil-homem? – bradou o rei.
– Senhor, o nome dele não vem no relatório, e para o saber é preciso que Vossa

Majestade se dê ao incómodo de ler este último certificado, que tenho a honra de lhe apresentar;
é de um guarda da floresta, que estava escondido por detrás do muro da cerca, perto dos banhos
de Apolo.

– Com a data do dia seguinte – disse o rei.
– Sim, senhor, e que viu sair a rainha da quinta, pela porta pequena e olhar para fora, e diz

que ia pelo braço do Sr. de Charny.

– Do Sr. de Charny!... – bradou o rei meio louco de raiva e de vergonha; – bem... bem...

Espere aqui por mim, conde; vamos enfim saber a verdade.

E o rei saiu do gabinete.


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LXXIX.

Última acusação


No momento em que o rei saiu do quarto da rainha, correu esta ao toucador, donde o Sr.

de Charny ouvira tudo.

Abriu a porta, e foi ela mesma fechar a do seu quarto; depois, caindo numa poltrona

como se fosse fraca demais para resistir a tais choques, esperou em silêncio o que dela decidiria o
Sr. de Charny, o seu juiz mais temível.

Mas não esperou muito tempo; o conde saiu do gabinete mais triste e pálido do que

entrara.

– Então? – disse ela.
– Minha senhora – redargüiu ele – bem vê que tudo se opõe ao nosso afecto. Se não a

ferir a minha convicção, há-de feri-la o rumor público; com o escândalo de hoje já não há para
mim sossego, nem tranqüilidade para Vossa Majestade. Depois deste primeiro ferimento que lhe
fazem, os seus mais encarniçados inimigos cairão sobre Vossa Majestade para lhe beber o sangue
como fazem as moscas sobre a gazela.

– Vejo que procura há muito uma palavra consoladora e não a encontra – disse a rainha

com melancolia.

– Parece-me que nunca dei motivo para que Vossa Majestade duvidasse da minha

franqueza – redargüiu Charny; – pelo contrário, algumas vezes ela se tem manifestado com
demasiada dureza, do que peço perdão.

– Então – dizia a rainha comovida – o que acabo de fazer, todo este escândalo, a agressão

perigosa contra um dos mais nobre senhores deste reino, a minha hostilidade declarada com a
igreja, a minha reputação exposta às paixões dos parlamentos, não lhe basta tudo isto? Já não falo
da confiança para sempre abalada no peito de el-rei; nem vale a pena o senhor pensar nisso, não é
verdade?... O rei! Que é isso... Um marido!

E sorriu com tão dolorosa amargura, que as lágrimas lhe deslizaram pelas faces.
– Oh senhora – bradou Charny – Vossa Majestade é a mulher mais nobre, mais generosa

que jamais existiu! Se não lhe respondo imediatamente, obedecendo aos impulsos do coração, é
que me sinto inferior em tudo e não ouso profanar esse coração sublime, pedindo-lhe nele um
lugar.

– Sr. de Charny, julga-me culpada?
– Minha senhora!...
– Sr. de Charny, deu crédito às palavras do cardeal?
– Minha senhora!...
– Sr. de Charny, ordeno-lhe que me diga qual foi a impressão que em si produziu o

procedimento do Sr. de Rohan.

– Devo dizê-lo, minha senhora; o Sr. de Rohan nem foi um insensato, como lhe chamou,

nem um homem fraco, como se poderia crer; é um homem convicto um homem que a amava, e
que neste momento é vítima de um erro que o há-de levar até à ruína, e a Vossa Majestade...

– A mim?
– A Vossa Majestade a uma inevitável desonra.
– Meu Deus!
– Ante mim vejo levantar-se um espectro ameaçador, aquela odienta mulher, a Srª. de La

Motte, que desapareceu no momento em que o seu depoimento como testemunha podia
restituir-nos o sossego, a honra e a segurança para o futuro. Aquela mulher é o anjo mau de
Vossa Majestade e o flagelo da realeza; aquela mulher, que imprudentemente tornou partícipe dos
seus segredos, e talvez, infelizmente, da sua intimidade...

– Os meus segredos, a minha intimidade?... Ah! Senhor, por piedade! – exclamou a

rainha.

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– Minha senhora, o cardeal disse e prova claramente, que com ele tratou da compra do

colar.

– Ah!... Volta a isso, Sr. de Charny? – disse a rainha, tornando-se vermelha.
– Perdão, perdão, bem vê que o meu coração é menos generoso do que o seu; bem vê

que sou indigno de ser chamado para julgar os seus pensamentos. Procuro suavizar, e irrito.

– Olhe, senhor – disse a rainha possuindo-se de uma cólera impregnada de soberba – o

que o rei crê todos o podem crer; não serei mais fácil para os meus afeiçoados do que para meu
esposo. Parece-me que um homem não pode ter prazer em ver uma mulher quando por ela não
tem estima. Não falo do senhor – interrompeu ela vivamente; – eu não sou uma mulher, sou uma
rainha; o senhor não é um homem, para mim é um juiz.

Charny inclinou-se tão baixo, que a rainha deveria achar suficiente a reparação e

humildade daquele fiel súbdito.

– Tinha-lhe aconselhado – disse ela de repente – que ficasse nas suas propriedades; era

um conselho prudente. Longe da corte, a que repugnam os seus hábitos, a sua lisura, a sua
inexperiência, permita que o diga, longe da corte, repito, teria apreciado melhor os personagens
que nesse teatro desempenham os seus papéis. É preciso guardar a ilusão da óptica, Sr. de
Charny, é preciso conservar a honra e a soberba na presença da multidão. Rainha demasiado
inclinada à condescendência, não cuidei em manter, para os que me estimavam, o deslumbrante
prestígio da realeza. Ah! Sr. de Charny, a auréola que uma coroa desenha na fronte das rainhas
dispensa-as de castidade, de doçura, de espírito, e dispensa-as, sobretudo, de coração. Uma
rainha, senhor, serve para dominar; por que se há-de amar?

– Minha senhora – respondeu Charny muito comovido – não tenho palavras para

explicar-lhe o mal que me fez a severidade de Vossa Majestade. Pude esquecer que era a minha
rainha, mas faça-me a justiça de o acreditar, nunca olvidei que fosse a primeira das mulheres
dignas do meu respeito e do...

– Não acabe; eu não sei mendigar. Sim, já o disse, carece de uma ausência. Alguma coisa

me diz que afinal, em tudo isto, o seu nome há-de vir a ser pronunciado.

– Minha senhora, é impossível!
– Diz impossível! Ah! Reflicta no poder daqueles que, há seis meses, se divertem com a

minha reputação, com a minha vida; não dizia que o Sr. cardeal está convencido de que procede em
vista de um engano, em que o induziram? Aqueles que operam tais convicções, Sr. conde, aqueles
que causam tais enganos, têm força bastante para provar que o senhor é um súbdito desleal ao
rei, e um amigo vergonhoso para mim. Aqueles, que com tanta felicidade inventam o que é falso,
hão-de facilmente descobrir o que é verdadeiro! Não perca tempo, o perigo é grave; retire-se para
o seu solar, para as suas terras, fuja do escândalo que vai resultar do processo que me vão
instaurar; não quero que seja arrastado pelo meu destino, não quero ver perdida a sua carreira.
Eu, que, graças a Deus, tenho força e inocência; que tenho uma vida pura e sem mácula; que
estou resolvida a abrir o meu peito, se for preciso, para mostrar aos meus inimigos a pureza do
meu coração, hei-de resistir. Para o senhor haveria a ruína, a difamação, a prisão, talvez... Guarde
esse dinheiro tão nobremente oferecido, e leve a certeza de que nem uma só das suas dores me
encontrou insensível; parta, repito, e procure noutra parte o que a rainha de França não pode já
dar-lhe: a fé, a esperança, a ventura. Daqui até que em Paris conste a prisão do cardeal, até que
seja convocado o parlamento, até que as testemunhas se produzam, hão-de passar-se alguns
quinze dias. Parta! Seu tio tem duas embarcações prontas em Cherburgo e Nantes; escolha uma
delas e afaste-se de mim. Eu levo comigo a desgraça aos que me cercam. Só uma coisa desejava
no mundo, e como me falta, sinto-me perdida.

Dizendo estas palavras, a rainha levantou-se precipitadamente e pareceu dar a conhecer a

Charny que estava terminada a audiência.

O mancebo aproximou-se da rainha respeitosa, mas pressurosamente.
– Vossa Majestade – disse ele com voz bastante mudada – acaba de ditar o meu dever.

Não é no meu solar, não é fora de França, que está o perigo; é em Versalhes, onde é suspeita, é

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em Paris, onde vai ser julgada. Importa, senhora, que todas as suspeitas caiam, que qualquer
sentença seja uma justificação, e como não poderia ter testemunha mais leal, apoio mais decidido,
eu fico. Aqueles que sabem tantas coisas, minha senhora, hão-de dizê-las, mas pelo menos
teremos tido o prazer inestimável para gente pundonorosa de ver os nossos inimigos de frente.
Que tremam ante a majestade de uma rainha inocente, e ante a coragem de um homem melhor
do que eles. Sim, fico, fico, minha senhora, e creia no que digo. Vossa Majestade não precisa por
mais tempo ocultar-me o seu pensamento; o que se sabe muito bem é que eu não fujo, porque
nada temo, e para não tornar mais a ver-me não é preciso desterrar-me. Oh! Os corações de
longe se entendem, de longe as aspirações são mais ardentes do que de perto. Quer que parta
mais por sua causa do que por minha; não receie coisa alguma; pronto a defendê-la, não estarei já
tão perto que a possa ofender nem prejudicar; não me viu, não é verdade, quando durante oito
dias vivi na distância de cem toezas da sua habitação, espiando todos os seus gestos, contando
todos os seus passos, vivendo da sua vida?... Pois bem, desta vez há-de ser o mesmo, porque não
posso satisfazer a sua vontade, não posso partir! E demais, que lhe importa?... Decerto não
pensará mais em mim!

Ela fez um movimento e afastou-se um pouco do mancebo.
– Como quiser – disse ela – mas... compreendeu-me, nunca se iluda com as minhas

palavras; eu não sou uma coquete, Sr. de Charny; dizer o que pensa e pensar o que diz, é o
privilégio de uma verdadeira rainha: eu sou assim. Um dia, senhor, escolhi-o entre todos. Não sei
o que atraía para si o meu coração. Tinha sede de uma amizade forte e pura, bem lho deixei ver,
não é assim? Hoje já não é a mesma coisa, já não penso como então pensava. A sua alma já não é
irmã da minha. Também lhe digo francamente: fujamos um do outro.

– Está bem, minha senhora – interrompeu Charny – nunca julguei que me tivesse

escolhido, nunca julguei... Ah! Minha senhora, não resisto à idéia de perdê-la. Estou louco de
ciúme e de terror. Minha senhora, não hei-de consentir que me roubem o seu coração; é meu,
deu-mo, ninguém mo tirará senão com a vida. Seja mulher, seja boa, não abuse da minha
fraqueza, porque ainda há pouco levou a mal as minhas desconfianças, e agora esmaga-me com
as suas.

– Coração de criança, coração de mulher... – disse ela – quer que eu conte consigo!... Que

belos defensores que somos um para o outro! Fraco! Oh! Por certo que o é, e muito; e eu
também não sou mais forte!

– Eu não a amaria – murmurou ele – se não fosse como é.
– Como! – disse ela com acento vivo e apaixonado – esta rainha amaldiçoada, esta rainha

perdida, esta mulher que vai ser julgada por um parlamento, que a opinião vai condenar, que um
marido, seu rei, vai talvez expulsar, esta mulher acha um coração que a ame!

– Um servidor que a venera e que lhe oferece todo o sangue do seu coração em troca de

uma lágrima, que ainda há pouco verteu.

– Esta mulher – bradou a rainha – é abençoada, é orgulhosa, é a primeira das mulheres, a

mais feliz de todas, esta mulher é demasiadamente feliz, Sr. de Charny, não sei como esta mulher
pôde queixar-se. Perdoe-lhe!

Charny caiu aos pés de Maria Antonieta e beijou-os, num transporte de amor religioso.
Ainda o conde estava ajoelhado, quando a porta do corredor particular se abriu, e o rei,

todo trémulo e como fulminado, parou no limiar da porta.

Acabava de surpreender aos pés de Maria Antonieta o homem que o Sr. de Provença

acusava.

LXXX

Pedido de casamento


A rainha e Charny trocaram entre si um olhar tão cheio de terror, que naquele momento

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o seu mais cruel inimigo ter-se-ia compadecido deles.

Charny ergueu-se vagarosamente, e cortejou o rei com profundo respeito.
Sob a renda dos bofes, via-se o coração de Luís XVI palpitar com violência.
– Ah! – bradou ele com voz sufocada – o Sr. de Charny!
O conde só respondeu fazendo nova cortesia.
A rainha sentiu que lhe era impossível falar e que estava perdida.
O rei prosseguiu com incrível tranqüilidade:
– Sr. de Charny, é pouco honroso para um gentil-homem ser apanhado em flagrante

delito de roubo.

– De roubo! – murmurou Charny.
– De roubo! – repetiu a rainha, que julgava ouvir ainda soar-lhe aos ouvidos as horríveis

acusações do colar, e que supôs que o conde ia ser vexado como ela.

– Sim – continuou o rei – ajoelhar diante da mulher alheia, é um roubo; e quando essa

mulher é uma rainha, senhor, chama-se a isso crime de lesa-majestade. Sr. conde de Charny, eu
lhe mandarei explicar melhor isso pelo meu chanceler-mor.

O conde ia falar, ia protestar pela sua inocência, quando a rainha, impaciente na sua

generosidade, não quis sofrer que acusassem de indignidade o homem a quem ela amava, e
acudiu em seu socorro.

– Senhor – disse ela vivamente – ao que me parece, Vossa Majestade está em maré de

suspeitas e suposições desfavoráveis, e essas suspeitas e prevenções vêm mal, previno-o. Vejo que
o respeito tolhe a fala ao conde; mas eu, que conheço o fundo do seu coração, não o deixarei
acusar sem o defender.

Parou ali, cansada pela comoção, aterrada com a mentira, que se via obrigada a inventar, e

assustada, enfim, porque não achava nenhuma.

Mas essa hesitação, que parecia odiosa à rainha por ser altiva de espírito, era a salvação da

mulher. Nesses horríveis lances, onde muitas vezes se jogam a honra e a vida do que é
surpreendido, um minuto ganho basta para o salvar, como um instante perdido bastaria para o
perder.

A rainha, unicamente por instinto, e aproveitando a ocasião da demora, interrompera as

suspeitas do rei, abatera-lhe o espírito e fortalecera o do conde. Esses minutos decisivos têm asas
rápidas sobre as quais é levada para tão longe a convicção de um ciumento, que poucas vezes se
torna a achar, se o demónio que protege os invejosos de amor não a torna a trazer nas suas.

– Quer porventura dizer-me – respondeu Luís XVI, caindo do papel de rei no de marido

inquieto – que não vi o Sr. de Charny ajoelhado, ali diante de si, minha senhora? Ora, para
ajoelhar sem que o façam erguer, é preciso...

– É preciso, senhor! – disse a rainha com austeridade – que um súbdito da rainha de

França tenha uma mercê a pedir-lhe... Parece-me que o caso não é pouco freqüente na corte.

– Pedir-lhe uma mercê! – exclamou o rei.
– E uma mercê que eu não podia conceder – prosseguiu a rainha – sem o que o Sr. de

Charny não teria insistido, juro-lho, porque eu não tardaria em mandá-lo levantar, com o prazer
de satisfazer a ambição de um fidalgo, que ambos temos em particular apreço.

Charny respirou. O olhar do rei tornara-se indeciso, e a fronte desanuviava-se-lhe a pouco

e pouco da insólita ameaça, que a surpresa nela estampara.

Durante esse tempo, Maria Antonieta procurava o que havia de dizer, com a raiva de ser

obrigada a mentir, com a dor de não achar coisa verossímil.

Pensara, declarando que lhe não era possível conceder ao conde a mercê que ele

solicitava, prender assim a curiosidade do rei. Esperara que o interrogatório ficasse por ali.
Enganava-se: outra qualquer mulher seria mais hábil, mostrando menos hesitação; mas para ela,
mentir diante do homem a quem amava, era um suplício horroroso. Mostrar-se àquela luz
miserável e falsa dos embustes de comédia, era confirmar todas as falsidades, todas as astúcias,
todas as intrigas da quinta, com um desfecho conseqüente à sua infâmia; era quase mostrar-se

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culpada, o que era pior do que a morte.

Hesitou portanto. Daria a vida para que Charny achasse a mentira; mas ele, o leal fidalgo,

não podia, nem pensava sequer nisso. Receava até, tanta era a sua delicadeza, parecer disposto a
defender a honra da rainha.

O que aqui escrevemos em muitas linhas, em demasiadas linhas talvez, apesar da

fecundidade da situação, bastou três minutos aos actores para o sentirem e exprimi-lo.

Maria Antonieta esperava a pergunta, que via suspensa nos lábios do rei, até que essa

pergunta chegou:

– Vamos, senhora, diga-me que mercê é essa, baldadamente solicitada pelo Sr. de Charny,

e que o levou a ajoelhar diante da sua rainha?

E como para adoçar a aspereza da pergunta, o rei ainda acrescentou:
– Talvez eu seja mais feliz, e que o Sr. de Charny não precise ajoelhar diante de mim.
– Senhor, eu disse que o Sr. de Charny pedia uma coisa impossível.
– Qual é?
– Que se pode pedir de joelhos? – perguntava a rainha a si mesma; – que me podem

pedir, que me seja impossível conceder?... Vejamos!

– Estou esperando – disse o rei.
– Senhor, é porque... o pedido do Sr. de Charny é um segredo de família.
– Para o rei não há segredos. O rei é senhor no seu reino, e pai de família interessado na

honra e na segurança de todos os seus súbditos, que são seus filhos; ainda que – acrescentou Luís
XVI com terrível dignidade – esses filhos desnaturados ataquem a honra e a segurança de seu pai.

A rainha estremeceu sob esta última ameaça.
– O Sr. de Charny – disse ela com o espírito perturbado e a mão trémula – o Sr. de

Charny solicitava...

– O que, minha senhora?
– Licença para casar.
– Deveras? – disse o rei sossegando logo.
Depois, entregando-se novamente à inquietação do ciúme, sem fazer reparo no que

padecia a pobre mulher por ter pronunciado semelhantes palavras, ao passo que o Sr. de Charny
estava pálido por ver sofrer a rainha, disse:

– Em que consiste a impossibilidade de casar o Sr. de Charny? Não é ele de antiga

nobreza? Não possui uma boa fortuna? Não é um guapo e valente moço? Realmente, para o não
querer admitir numa família, ou para o rejeitar, sendo mulher, é preciso ser princesa de sangue ou
casada; só vejo estas duas razões para constituir uma impossibilidade. Portanto, minha senhora,
diga-me o nome da pessoa com quem o Sr. de Charny quer casar, e se ela não estiver em nenhum
destes dois casos, prometo remover a dificuldade... para lhe ser agradável.

A rainha, levada pelo perigo sempre crescente, e pela conseqüência da primeira mentira,

respondeu com veemência:

– Não, senhor, não; há dificuldades que Vossa Majestade não pode vencer. Aquela de que

tratamos é exactamente do género de que falo.

– Mais uma razão para que deseje saber que coisa é essa que não está na alçada real

conceder – interrompeu Luís XVI com raiva.

Charny olhou para a rainha, que parecia prestes a desfalecer. Teve desejos de correr a

ampará-la, mas a imobilidade do rei deteve-o. Com que direito, ele, que nada era àquela mulher,
lhe teria prestado apoio, quando o rei, o marido, a abandonava?

– Qual é – perguntava ela a si mesma – o poder contra o qual o rei não tenha acção? Mais

essa idéia, esse socorro, meu Deus, esse socorro!

De repente atravessou-lhe o espírito um raio de esperança.
– Ah! É Deus quem me manda este socorro – murmurou ela. – Aquelas que pertencem a

Deus, nem pelo rei lhe podem ser tiradas.

Depois, erguendo a cabeça:

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– Senhor – disse ela enfim ao rei – a senhora com quem o Sr. de Charny quer casar está

num convento.

– Ah! – bradou o rei – é essa a razão? Efectivamente, é difícil tirar a Deus o seu bem para

o dar aos homens; mas é singular que o Sr. de Charny concebesse tão súbitos amores: nunca
tinha ouvido falar em tal, nem sequer a seu tio, que tudo pode obter de mim. Que mulher é essa a
quem ama, Sr. de Charny, diga-mo?

A rainha sentiu uma dor aguda. Ia ouvir um nome sair da boca de Olivier, ia experimentar

a tortura dessa mentira; e quem sabe se Charny não revelaria um nome outrora amado e ainda
vivo na recordação do passado, ou um nome, gérmen de amor, vaga esperança do porvir?! Para
não receber esse terrível golpe, Maria Antonieta apressou-se em exclamar:

– Mas, senhor, conhece quem o Sr. de Charny pede em casamento, é... é a menina Andréa

de Taverney.

Olivier de Charny soltou um grito e escondeu o rosto entre as mãos.
A rainha encostou as mãos ao peito, e foi, quase desfalecida, cair numa poltrona.
– A menina de Taverney! – repetiu o rei – a menina de Taverney, que está recolhida em

Saint-Denis?

– Sim, senhor – murmurou francamente a rainha – é por isso que não pode casar.
– Mas ela não professou, que eu saiba.
– Mas deve professar.
– Propor-lhe-emos uma condição – disse o rei. – Entretanto – acrescentou com uns

restos de desconfiança por que motivo professaria ela?

– É pobre – disse Maria Antonieta; – Vossa Majestade só enriqueceu o pai – acrescentou

ela asperamente.

– Esse mal hei-de remediá-lo, minha senhora. O Sr. de Charny ama-a?...
A rainha estremeceu e lançou ao mancebo um olhar ávido, como para lhe rogar que

negasse.

Charny olhou fixamente para Maria Antonieta, e não respondeu.
– Bem – disse o rei, que tomou este silêncio por um respeitoso consentimento; – e a Srª.

de Taverney ama decerto o Sr. de Charny? Eu dotarei a Srª. de Taverney; dou-lhe as quinhentas
mil libras que recusei há pouco ao Sr. de Calonne. Agradeça à rainha, Sr. de Charny, por me ter
contado esse negócio, e assegurado assim a felicidade da sua vida.

Charny deu um passo para diante e inclinou-se como pálida estátua a quem Deus, por um

milagre, desse por momentos a vida.

– Oh! Por isso vale a pena tornar a ajoelhar – disse o rei no leve tom de vulgar zombaria,

que não raro atenuava nele a tradicional nobreza dos antepassados.

A rainha estremeceu, e estendeu por um movimento espontâneo as mãos ao mancebo.

Este ajoelhou, beijou-lhe as mãos geladas, pedindo a Deus lhe permitisse que nesse beijo se lhe
fosse a alma.

– Vamos – disse o rei – deixemos agora a Sua Majestade a rainha o cuidado de tratar

deste negócio; venha!

E saiu adiante, apressando o passo, de modo que Charny pôde voltar-se no limiar da

porta, e ver a inefável dor desse adeus eterno, que lhe dirigiam os olhos da rainha.

A porta fechou-se como uma barreira, que para sempre separava os seus inocentes

amores.

LXXXI

Saint-Denis


A rainha ficou só e desesperada. Eram tantos os golpes que ao mesmo tempo a feriam,

que já não sabia de que lado lhe vinha a dor mais viva.

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Depois de ter passado uma hora naquele estado de dúvida e abatimento, pensou consigo

que era tempo de procurar uma saída. O perigo crescia; o rei, ufano por uma vitória ganha
aparentemente, apressar-se-ia em espalhar a notícia. Podia acontecer que essa notícia fosse por
fora recebida de tal modo, que se perdesse todo o benefício da fraude.

Essa fraude, muito se arrependia a rainha de a ter cometido; como ela desejava tornar a

sujeitar aquelas palavras, que lhe tinham fugido! Como quisera tirar a Andréa a quimérica
felicidade que ela ia talvez recusar!

Com efeito, surgia outra dificuldade. O nome de Andréa salvara tudo diante do rei. Mas

quem podia responder por aquele espírito caprichoso, independente, voluntarioso que se
chamava Andréa de Taverney? Quem podia contar que ela, tão altiva, alienasse a sua liberdade, o
seu futuro, em proveito de uma rainha, de quem poucos dias antes se separara como inimiga?

Que sucederia então? Andréa recusava, como era natural, e toda a sua mentirosa

construção se desmoronava. A rainha tornava-se numa intrigante de espírito medíocre, Charny
num estúpido sigisbéu, num inventor de mentiras, e a calúnia, mudada em acusação, tomava as
proporções de um incontestável adultério.

Maria Antonieta sentiu fugir-lhe a razão com estas reflexões; esteve próximo a ceder à

possibilidade de assim lhe acontecer; escondeu entre as mãos a cabeça ardente, e esperou.

Em quem se poderia fiar? Quem era a amiga da rainha? A Srª. de Lamballe? Oh! A

simples razão, a fria e inflexível razão! Por que havia de tentar aquela virginal imaginação, em que
aliás não queriam acreditar as damas de honor, aduladoras da prosperidade, tremendo ao menor
sopro da desgraça, dispostas talvez a dar uma lição à sua rainha, quando ela precisasse de
socorro?

Só lhe restava a Srª. de Taverney. Era um coração de diamante, cujas arestas podiam

cortar o vidro, mas cuja invencível solidez, e profunda pureza podiam, só por si, simpatizar com
as grandes dores de uma rainha.

Maria Antonieta iria portanto procurar Andréa. Expor-lhe-ia a sua desgraça, rogar-lhe-ia

que se imolasse. Andréa recusaria certamente, porque não era daquelas que se deixam dominar;
mas a pouco e pouco, abrandada pelos seus rogos, havia de consentir. Quem sabe, então, se não
se obteria uma delonga? Se, passando o primeiro fogo, o rei, tranqüilizado pelo aparente
consentimento dos dois desposados, não acabaria por esquecer? Então uma viagem arranjaria
tudo. Andréa e Charny, afastando-se por algum tempo, até que a hidra da calúnia deixasse de ter
fome, poderiam fazer correr a notícia de que amigavelmente se haviam restituído a palavra dada,
e ninguém poderia jamais adivinhar que aquele projecto de casamento fosse apenas um jogo.

Desse modo a liberdade de Andréa de Taverney não ficaria comprometida, a de Charny

não se perderia. Deixaria de haver para a rainha o horrível remorso de ter sacrificado duas
existências ao egoísmo da sua honra; e essa honra, que compreendia a do seu marido e a dos seus
filhos, não ficaria manchada; sem mácula a transmitiria à futura rainha de França.

Tais eram as suas reflexões.
Era assim que antecipadamente lhe parecia ter conciliado as suas conveniências com os

interesses privados. Era preciso raciocinar com esta firmeza de lógica em presença de tão horrível
perigo; era preciso armar-se com todas as peças precisas contra adversário tão difícil de combater
como era a Srª. de Taverney, quando dava ouvidos ao orgulho e não ao coração.

Assim que se considerou disposta, Maria Antonieta decidiu-se a ir ter com ela. Bem

desejava prevenir Charny, para não dar sobre este negócio passo algum pouco acertado; mas
tolheu-a a idéia de que decerto haveria espiões que a espreitassem; que em semelhante ocasião
tudo quanto fizesse seria mal interpretado; e bastante tinha ela experimentado o bom senso, a
dedicação e a resolução de Olivier, para estar convencida de que ele ratificaria tudo o que ela
julgasse acertado fazer.

Chegaram as três horas; o jantar de grande cerimónia, as apresentações, as visitas; a rainha

recebeu todas as pessoas com rosto sereno e com uma afabilidade que nada tirava ao seu
conhecido orgulho. Afectou mesmo, para com os que julgava seus inimigos, uma firmeza, que

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geralmente convém pouco aos culpados.

Nunca a afluência fora tão grande na corte; nunca a curiosidade tão profundamente

esquadrinhara as feições de uma rainha em perigo. Maria Antonieta fez face a tudo, aterrou os
seus inimigos, inebriou os seus amigos; mudou os indiferentes em zelosos, os zelosos em
entusiastas, e pareceu tão formosa e tão grande, que o rei lhe dirigiu publicamente parabéns.

Depois, tendo tudo bem determinado, pondo de parte os sorrisos de encomenda,

tornando às suas recordações, isto é, aos seus pesares, só, bem só no mundo, mudou de trajo, pôs
um chapéu alvadio com fitas e flores azuis, meteu-se na carruagem, e sem guardas, acompanhada
por uma dama única, fez-se conduzir a Saint-Denis.

Era a hora em que as religiosas, recolhidas nas suas celas, passam do modesto rumor do

refeitório ao silêncio das meditações, que precedem a oração da noite.

A rainha mandou chamar Andréa de Taverney.
Esta, ajoelhada, envolta no seu penteador de lã branca, contemplava da sua janela a lua,

que nascia por detrás das tílias, e nessa poesia da noite, que começava, achava o tema de todas as
orações ardentes e apaixonadas que dirigia a Deus para aliviar a alma.

Bebia a largos tragos a irremediável dor da ausência voluntária. Este suplício só é

conhecido das almas fortes; é ao mesmo tempo um tormento e um prazer. Parece-se, pelas
angústias, com todas as dores vulgares, e acaba numa voluptuosidade, que só podem conhecer os
que sabem imolar a felicidade ao orgulho.

Andréa saíra do paço por sua livre vontade; rompera com quanto lhe pudesse sustentar o

seu amor. Soberba como Cleópatra, não se pudera conformar com a idéia de que o Sr. de Charny
tivesse pensado noutra mulher, ainda que essa mulher fosse a rainha.

Não possuía a mínima prova de que ele tivesse amor a outra. A ciumenta Andréa, não

deixaria de tirar dessa prova todo o convencimento que pode atormentar um coração. Mas não
vira ela Charny passar indiferente a seu lado? Não suspeitara que a rainha aceitava, decerto que
inocentemente, mas enfim aceitava as homenagens e preferências de Charny?

Para que havia portanto de ficar em Versalhes? Para esmolar alguns cumprimentos? Para

mendigar alguns sorrisos? Para obter de vez em quando um oferecimento de braço, quando, nos
passeios, a rainha lhe cedesse as civilidades de Charny, por não poder aproveitá-las para si?

Não, para aquela alma estóica não havia transacção possível. A vida com o amor e a

preferência, o claustro com o amor e o orgulho ofendido.

– Nunca! Nunca! – repetia consigo a soberba Andréa; – aquele que para mim é apenas

uma sombra, um retrato, uma recordação, esse nunca me ofende, sempre sorri, e só me sorri a
mim!

E aí está o motivo por que ela passara tantas noites de tormento, mas livre; aí está porque,

satisfeita por achar lágrimas na sua fraqueza, por amaldiçoar quando se exaltava, Andréa preferia
a ausência voluntária, que lhe deixava a integridade do seu amor e da sua dignidade, a tornar a ver
um homem, que odiava por se ver na impossibilidade de deixar de amá-lo.

E demais, essas mudas contemplações do amor puro, esses divinos êxtases da meditação

solitária, eram muito melhor vida para a arisca Andréa, do que as brilhantes festas de Versalhes,
com a necessidade de se curvar diante de rivais, e o receio de deixar aparecer à luz do dia o
segredo que no peito encerrava.

Dissemos que no dia de S. Luís, pela tarde, a rainha fora procurar Andréa a Saint-Denis, e

encontrara-a pensativa na cela.

Foram dizer a Andréa, que a rainha acabava de chegar, que o capítulo a recebia na grande

sala, e que Sua Majestade, depois dos primeiros cumprimentos, perguntara se podia falar com
Andréa de Taverney.

Caso estranho! Não foi preciso mais a Andréa, cujo coração o amor abrandara, para

correr ao encontro do perfume que lhe traziam de Versalhes, perfume amaldiçoado ainda na
véspera, e que mais precioso se tornava à proporção que se ia afastando, como tudo quanto se
evapora, como tudo quanto se esquece, tal o amor!

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– A rainha! – murmurou Andréa; – a rainha em Saint-Denis! A rainha perguntando por

mim!

– Vamos, apresse-se – disseram-lhe.
Apressou-se efectivamente. Cobriu-se com o comprido hábito das religiosas, cingiu-o

com o cinto de lã, e sem sequer olhar para o pequeno espelho, seguiu a rodeira, que fora chamá-
la.

Mas apenas tinha andado cem passos, sentiu-se humilhada por ter experimentado tanto

júbilo, e disse consigo:

– Por que motivo estremeceu o meu coração? Que tem Andréa de Taverney com a visita

que a rainha de França faz ao mosteiro de Saint-Denis? Será orgulho que sinto? A rainha não vem
aqui por minha causa. Será contentamento? Não, que já não lhe tenho amizade. Vamos!
Tranquiliza-te, má religiosa, que não pertences nem a Deus, nem ao mundo; vê, pelo menos, se
podes pertencer a ti mesma.

Assim ia Andréa falando consigo ao descer os degraus, e, senhora da sua vontade, fez

apagar das faces o fugitivo rosado da precipitação, e moderou a rapidez dos movimentos. Mas,
para conseguir isso, empregou mais tempo em descer os últimos seis degraus, do que empregara
em descer os trinta primeiros.

Quando chegou detrás do coro, no parlatório de cerimónia, onde o fulgor dos lustres e

dos círios ia aumentando nas mãos pressurosas de algumas irmãs conversas, Andréa estava fria e
pálida.

Quando ouviu o seu nome pronunciado pela rodeira, que a conduzia, quando viu Maria

Antonieta assentada na poltrona abacial, a cujos lados se inclinavam e agrupavam as frontes mais
nobres do capítulo, Andréa foi assaltada por palpitações, que lhe suspenderam o andar durante
uns poucos de segundos.

– Até que finalmente! Venha, venha, que quero falar-lhe – disse a rainha com um leve

sorriso.

Andréa aproximou-se e curvou a cabeça.
– Dá licença, minha senhora? – disse a rainha voltando-se para a abadessa.
Esta respondeu com uma mesura, e saiu da sala acompanhada por todas as religiosas.
A rainha ficou só, assentada ao lado de Andréa, cujo coração palpitava com tanta força,

que se poderia ter sentido, se não fossem as oscilações compassadas e lentas da pêndula do antigo
relógio.

LXXXII

Um coração morto


Conforme cumpria, a rainha encetou a conversação.
– Ora até que enfim a vejo! – disse ela com um sorriso; – que singular impressão me

causa ao vê-la vestida de religiosa!

Andréa não respondeu.
– Ver uma antiga companheira – prosseguiu a rainha – já perdida para o mundo, onde

nós ainda vivemos, é como um austero conselho que o túmulo nos dá. Não é da minha opinião?

– Minha senhora – redargüiu Andréa – quem ousaria dar conselhos a Vossa Majestade? A

própria morte só se atreverá a prevenir a rainha no dia em que dela tomar posse. Efectivamente,
como havia ela de fazer?

– Por que?
– Porque, minha senhora, uma rainha é destinada, pela natureza da sua elevação, a não

sofrer neste mundo senão as necessidades inevitáveis. Tem tudo quanto lhe pode melhorar a
vida; e quanto os outros possuem, que possa servir para lhe embelezar a carreira, tomam-lho as
rainhas.

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A rainha fez um movimento de surpresa.
– E exercem nisso um direito – apressou-se Andréa a dizer; – para uma rainha, a outra

gente não passa de uma colecção de súbditos dos quais os bens, a honra, a vida pertencem aos
soberanos. Vida, honra e bens, morais ou materiais, são portanto propriedade das rainhas.

– Essas doutrinas causam-me admiração – disse lentamente Maria Antonieta. – Imagina

que uma rainha é uma espécie de monstro das fábulas, que devora a fortuna e a felicidade dos
simples cidadãos? Sou porventura alguma dessas mulheres, Andréa? A menina teve realmente
motivos de queixa contra mim, enquanto esteve na corte?

– Já Vossa Majestade teve a bondade de me fazer igual pergunta quando a deixei –

redargüiu Andréa; – respondi então, como hoje respondo: Não, minha senhora.

– Mas, muitas vezes – redargüiu a rainha – achamo-nos ofendidos por motivos que nos

não são pessoais. Ofendi acaso alguém que lhe pertencesse, merecendo, por conseqüência, as
palavras ásperas que acaba de dirigir-me? Andréa, o retiro que escolheu é um asilo contra todas as
más paixões do mundo. É o lugar onde Deus nos ensina a doçura, a moderação, o esquecimento
das injúrias, virtudes estas de que ele é o mais puro modelo. Devo, porventura, vindo aqui ver
uma irmã em Jesus Cristo, encontrar uma fronte severa e palavras de fel? Devo, eu, que venho
como amiga, achar neste mosteiro a censura ou a animosidade oculta de uma inimiga
irreconciliável?

Andréa ergueu os olhos, estupefacta por aquela placidez, a que Maria Antonieta não tinha

costumado os seus servidores; porque a rainha era altiva e firme nas resistências.

Ouvir, sem irritar-se, as palavras que Andréa pronunciara, era um esforço de paciência e

amizade, que comoveu a solitária reclusa.

– Vossa Majestade sabe muito bem – disse ela em tom mais baixo – que os Taverney não

podem de modo nenhum ser seus inimigos.

– Compreendo – redargüiu a rainha; – não me perdoa por me ter mostrado fria para com

seu irmão, e ele mesmo me acusa de indiferente, e caprichosa...

– Meu irmão é um súbdito muito respeitoso para se atrever a acusar a sua rainha – disse

Andréa, esforçando-se por conservar a sua firmeza.

A rainha bem conheceu que se tornava suspeita, aumentando a dose de mel destinada a

domar o cérebro. Mudou portanto de sistema.

– O facto é – disse ela – que vindo a Saint-Denis falar com Sua Alteza, quis vê-la e

certificar-lhe que, tanto de perto, como de longe, sou sempre sua amiga.

Andréa, conheceu essa mudança; receou ter ofendido a mão que a acariciava; mais ainda,

ter revelado a sua chaga dolorosa à vista sempre penetrante de uma mulher.

– Vossa Majestade enche-me de honra e de júbilo – disse ela tristemente.
– Não fale assim, Andréa, que me despedaça a alma – exclamou a rainha apertando-lhe a

mão. – Como uma miserável rainha não poderá ter uma amiga, dispor de uma alma boa e fitar
com a maior confiança os olhos nuns olhos encantadores como os seus, sem que no fundo
desses olhos descubra o interesse ou o ressentimento? Sim, sim, Andréa, tenha inveja das rainhas,
dessas soberanas que dispõem a seu talante dos bens, da honra e da vida de todos! Oh! Sim, elas
são rainhas, possuem o ouro, e o sangue dos seus povos, mas o coração! Nunca! Nunca! Não o
podem tomar, é preciso que lho dêem.

– Asseguro-lhe, minha senhora – disse Andréa, comovida por aquela calorosa alocução –

que amei a Vossa Majestade tanto quanto neste mundo eu poderia ter amado.

E dizendo estas palavras, corou e abaixou a cabeça.
– Diz que me amou! – exclamou a rainha, tomando no ar aquelas palavras – e já me não

ama?

– Oh! Minha senhora!
– Nada lhe peço, Andréa... Maldito seja o claustro, que tão depressa apaga as recordações

em certos peitos.

– Não acuse o meu coração – disse Andréa vivamente; – esse está morto.

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– Está morto o seu coração! Pois a menina, que é moça e formosa, diz semelhante coisa?!

Ah! Não brinque com essas tristes, essas fúnebres palavras. Não pode estar morto o coração
numa pessoa que, como a menina, é formosa e tem sorrisos. Não diga isso, Andréa.

– Repito-lho, minha senhora, para mim nada há já na corte nem no mundo. Vegeto aqui

como as plantas: tenho prazeres, que só eu compreendo: eis o motivo por que ainda há pouco,
achando Vossa Majestade esplêndida e soberana, pude logo compreender tudo, eu, a tímida e
obscura religiosa; os meus olhos fecharam-se deslumbrados pelo fulgor que Vossa Majestade
derrama; suplico que me perdoe; não é muito considerável este crime do esquecimento das
gloriosas vaidades do mundo; todos os dias recebo por isso as felicitações do meu confessor,
minha senhora; não seja, suplico-lhe, mais severa do que ele.

– Como! A menina vive contente no claustro? – disse a rainha.
– Abraço com prazer a vida solitária.
– Nada mais sente, Andréa, que lhe recomende os prazeres do mundo?
– Nada!
– Meu Deus! – pensou Maria Antonieta inquieta; – nada conseguirei!...
E um mortal estremecimento percorreu-lhe as veias.
– Vejamos se a tento – disse consigo; – se este meio não for eficaz, recorrerei às súplicas.

Oh! Rogar-lhe, ter de pedir-lhe que aceite o Sr. de Charny por esposo! Santo Deus! Que desgraça
a minha!

E dominando a comoção, prosseguiu em voz alta:
– Andréa, acaba de exprimir a sua satisfação em termos tais, que me tira todas as

esperanças.

– Que esperanças, minha senhora?
– Não falemos nisso, se está decidida, como parece estar... Ah! Para mim era uma sombra

de prazer, desapareceu! Para mim tudo no mundo é uma sombra! Não falemos mais nisso.

– Mas enfim, minha senhora, visto que Vossa Majestade deve daí tirar uma satisfação,

digne-se explicar-me...

– Para quê? Retirou-se do mundo, não é assim?
– É, sim, minha senhora.
– De livre vontade?
– Oh! De muito livre vontade.
– E não está contente com o que fez?
– Cada vez mais satisfeita.
– Bem vê então que é supérfluo fazer-me falar. Contudo, Deus é testemunha que julguei

por um momento fazer a sua felicidade.

– A minha felicidade?
– Sim, a sua felicidade, ingrata, que me acusava. Mas hoje achou outros prazeres, sabe

melhor do que eu os seus gostos, a sua vocação. Renuncio...

– Enfim, minha senhora, digne-se Vossa Majestade fazer-me a honra de me dar algum

esclarecimento.

– É simples, queria fazê-la voltar à corte.
– Oh! – bradou Andréa com um sorriso cheio de azedume; – eu, voltar à corte... Meu

Deus!... Não! Não! Minha senhora, nunca!... Ainda que me custe desobedecer a Vossa Majestade.

A rainha estremeceu, e o coração encheu-se-lhe de uma dor inexprimível. A poderosa nau

encalhava num átomo de granito.

– Recusa? – murmurou ela.
E para esconder a sua perturbação, ocultou o rosto entre as mãos.
Andréa, julgando que a dor a oprimia, correu a ela e ajoelhou como para adoçar pelo seu

respeito a ferida que acabava de fazer na amizade e no orgulho.

– Ora – disse ela – que faria Vossa Majestade de mim na corte, de mim, triste, de mim,

que nada valho, que sou pobre, amaldiçoada, de quem todos fogem, porque nem sequer soube

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inspirar, infeliz como sou, às mulheres a vulgar inquietação da rivalidade, aos homens a vulgar
simpatia da diferença dos sexos?... Ah! Minha senhora, minha querida ama, deixe esta religiosa a
quem nem o próprio Deus quer, porque a acha muito defeituosa, Ele que recebe os enfermos do
corpo e do espírito. Deixe-me entregue à minha miséria, ao meu isolamento: deixe-me!

– Ah – disse a rainha erguendo os olhos – o estado que eu vinha propor-lhe desmente

todas as humilhações de que se queixa! O casamento de que se trata faria de si uma das mais
distintas senhoras da corte de França.

– Um... Casamento! – balbuciou Andréa admirada.
– Recusa? – disse a rainha perdendo cada vez mais a esperança.
– Oh! Sim, recuso, recuso!
Então a rainha, em tom de súplica, disse:
– Andréa...
– Recuso, minha senhora, recuso.
Maria Antonieta preparou-se desde logo, com uma terrível repugnância, para começar as

súplicas. Andréa interrompeu-a no momento em que ela se levantava indecisa, trémula, fora de si,
não sabendo o que devia fazer.

– Pelo menos, minha senhora, – disse ela agarrando-se ao vestido, porque pensava que a

rainha ia partir – faça-me a distinta mercê de me dizer o nome do homem que me queria para
companheira? Tenho padecido tanto por ser humilhada na minha vida, que o nome desse homem
generoso...

E sorriu com ironia.
– Será – prosseguiu ela – o bálsamo que de ora em diante hei-de pôr em todas as minhas

feridas de orgulho.

A rainha hesitou; mas devia esgotar o cálix até ao fim.
– É o Sr. de Charny – disse ela num tom de tristeza e de indiferença.
– O Sr. de Charny! – bradou Andréa com uma expressão terrível; – o Sr. Olivier de

Charny!

– O Sr. Olivier, sim – disse a rainha olhando para Andréa com admiração.
– O sobrinho do Sr. de Suffren? – continuou Andréa, cujas faces coraram de pejo, cujos

olhos brilhavam como estrelas.

– O sobrinho do Sr. de Suffren, sim – respondeu Maria Antonieta, cada vez mais

admirada da mudança que se ia notando nas feições de Andréa.

– É com o Sr. de Charny, que Vossa Majestade me quer casar?
– É, sim.
– E... Ele consente?...
– Ele pede-a.
– Oh! Aceito, aceito – disse Andréa louca e fora de si. – É então a mim que ele ama!... A

mim, que o amo agora como o amava dantes!...

A rainha recuou lívida e trémula, e soltando um gemido, foi cair sem forças na poltrona,

enquanto a insensata Andréa lhe beijava os joelhos e o vestido, lhe orvalhava de lágrimas as
mãos, e lhas cobria de beijos ardentes.

– Quando partimos? – perguntou ela enfim, logo que os gritos sufocados e os suspiros

lhe deixaram livre a fala.

– Venha já – murmurou a rainha, que sentia fugir-lhe a vida e queria salvar a sua honra

antes de morrer.

Levantou-se, encostou-se a Andréa, cujos lábios ardentes procuravam as suas faces

geladas; e enquanto a Taverney fazia os seus preparativos para a partida, a desventurada soberana,
que era senhora da vida e honra de trinta milhões de súbditos, soluçando amargamente, disse:

– Ai, meu Deus!... Não serão demasiados estes sofrimentos para o meu coração?! E,

contudo, tenho que agradecer-vos, meu Deus! – acrescentou ela – porque salvais do opróbrio os
meus filhos e dais-me o direito de morrer envolta no meu manto real!...

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LXXXIII

Explica-se o motivo por que o barão engordava


Enquanto a rainha decidia em Saint-Denis a sorte de Andréa de Taverney, Filipe, com o

coração despedaçado por quanto soubera, apressava os preparativos da sua partida.

Um soldado acostumado a correr terras, nunca leva muito tempo a arranjar as malas e a

pôr aos ombros o capote de viagem. Mas Filipe tinha motivos mais poderosos que qualquer
outro para se afastar rapidamente de Versalhes; não queria ser testemunha da desonra provável e
iminente da rainha, sua única paixão.

Por isso, com mais ardor que nunca, ordenou que lhe aparelhassem os cavalos,

aprontassem as suas armas, metessem na mala quanto precisava para o seu viver habitual e
quando tudo estava concluído, mandou pedir ao pai para lhe falar.

O ancião voltava de Versalhes mexendo o melhor que podia as delgadas pernas, que

suportavam um ventre um tanto desenvolvido. Havia três ou quatro meses que o barão
engordava, o que lhe dava uma soberba fácil de compreender, se reflectirmos que o cúmulo da
obesidade devia ser nele sinal de completa satisfação.

Ora, a completa satisfação do Sr. de Taverney é uma palavra que encerra muitos sentidos.
O barão voltava portanto muito alegre do seu passeio ao paço. Tinha tomado a sua parte

no escândalo do dia. Sorrira para o Sr. de Breteuil contra o Sr. de Rohan; para os Srs. de Soubise
e de Guémenée contra o Sr. de Breteuil; para o Sr. de Provença contra a rainha; para o Sr.
d’Artois contra o Sr. de Provença; para cem pessoas contra outras cem; mas a nenhuma dessas
pessoas havia sorrido a favor de uns nem de outros. Tinha o seu provimento de maldades, de
pequenas infâmias. Voltava portanto satisfeito como nunca.

Quando soube pelo seu criado que o filho desejava falar-lhe, em lugar de esperar que

Filipe o procurasse, foi ele quem atravessou os corredores para ir ao encontro do viajante.

Entrou, sem se anunciar, no quarto, que encontrou no desarranjo que precede as viagens.
Filipe não esperava ver o pai muito atacado de sensibilidade quando soubesse da

resolução que tomara; mas também não esperava achá-lo indiferente. Andréa saíra da casa
paterna, era portanto uma existência de menos para atormentar. O barão devia achar certo vácuo;
logo que esse vácuo ficasse completo pela ausência do último mártir, o barão podia choramingar
como uma criança quando lhe tiram o cão ou o pássaro com que está brincando, ainda que não
fosse senão por egoísmo.

Filipe ficou portanto admiradíssimo quando ouvia o barão exclamar, rindo contente:
– Ele parte... Vai-se?...
Filipe de Taverney parou e olhou para o pai com verdadeiro espanto.
– Bem dizia eu – continuou o barão; – tê-lo-ia apostado. Bem representado, seu Filipe,

desempenha perfeitamente o seu papel.

– Como, senhor? – disse o mancebo; – que é que eu represento bem, diga-me por favor?
O ancião começou a cantarolar e a saltar sobre uma perna, segurando com as mãos o

nascente abdómen.

E fazia ao mesmo tempo muitos sinais com os olhos a Filipe, para que despedisse o

criado.

Filipe apressou-se a fazê-lo. O barão empurrou Champagne para fora e fechou-lhe a

porta. Depois, voltando-se para o filho, disse em voz baixa:

– Muito bem, admiravelmente bem!
– O meu pai está-me fazendo muitos elogios – respondeu Filipe friamente – e na verdade

não sei se os mereci...

– Ah! Ah! Ah! – disse o velho continuando aos pulinhos.
– Toda essa hilaridade é causada pela minha partida? É por se ver livre de mim?

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– Oh! Oh! Oh!... – continuou o velho barão rindo noutro tom. – Bem, bem, não te

contrafaças diante de mim, não vale a pena; bem sabes que não sou fácil de me deixar enganar...
Ah! Ah! Ah!...

Filipe encruzou os braços, perguntando a si mesmo se o pai não teria perdido o juízo.
– Não se deixa enganar? – disse ele – mas em quê?
– Com a tua partida. Pensas tu, porventura, que eu creio na tua partida?
– Não crê?!
– Olha que o Champagne já aqui não está, bem o sabes. Não te contrafaças mais tempo: e

demais, eu bem sei que não podias tomar outro partido; fazes bem.

– Não o percebo, meu pai, e admira-me...
– Sim, que ele é muito para admirar que eu tenha adivinhado; mas, que queres, Filipe, se

não há homem mais curioso do que eu, e como sou curioso, investigo; fora, ninguém há com
mais tacto do que eu para achar quando procuro; portanto, achei que fingias partir, e dou-te os
parabéns.

– Pois eu finjo? – bradou Filipe intrigado.
O barão aproximou-se dele e bateu-lhe no peito com os dedos ossudos, dedos de

esqueleto, e em tom cada vez mais confidencial, disse-lhe:

– Palavra de honra, que se não fosse este expediente, estou convencido que se descobriria

tudo. Acodes-lhe a tempo. Olha, amanhã seria tarde. Vai-te depressa, meu filho, parte depressa.

– Senhor – disse Filipe friamente – juro-lhe que não entendo uma palavra de quanto me

faz a honra de me dizer.

– E os cavalos, esconde-los? – prosseguiu o ancião, sem responder directamente; – tens

uma égua fácil de reconhecer; olha não ta vejam aqui, quando pensarem que estás em... É
verdade, para onde finges tu que vais?

– Vou para Taverney Casa Vermelha.
– Bem, muito bem; finges que te retiras para Casa Vermelha... Ninguém irá examinar

isso... Oh! Muito bem... Entretanto, sê prudente, olha que vocês têm muitos olhos fitos em
ambos!

– Em ambos?!...
Ela é impetuosa, bem o sabes – prosseguiu o velho – e tem momentos em que é capaz

de deitar tudo a perder. Cuidado! Tem tu mais juízo do que ela...

– Ora! Mas realmente – bradou Filipe com raiva concentrada – parece-me que meu pai se

diverte à minha custa, o que não é das melhores coisas, porque me expõe, no estado de
mortificação em que me encontro, a faltar-lhe ao respeito.

– Dispenso-te do respeito; tu és um rapaz de bastante juízo para arranjar os nossos

negócios, e tão bem arranjas tudo, que chegas a inspirar-me respeito. És o Gerente, eu sou o
Estouvado. Vejamos, deixa-me uma direcção para onde te possa enviar algum aviso se se der
qualquer caso urgente.

– Para Taverney – disse Filipe julgando que o pai entrava em seu juízo.
– Ah! Queres brincar comigo!... Vais para Taverney, que fica a vinte léguas de distância!

Pensas que se eu tiver algum conselho importante, urgente, que te mandar, me divertirei em
estafar correios pela estrada de Taverney para fingir que tu estás lá? Ora adeus, não te digo que
me mandes pôr nas cartas a direcção para a tua casa da quinta de Versalhes, porque poderiam
seguir para lá os emissários, ou conhecer a minha libré, mas escolhe outro sítio, que não fique a
mais de um quarto de légua. Tu não deixas de ter imaginação; ora, quando se tem feito por uma
mulher o que tu acabas de fazer, devem-se ter sempre recursos para tudo, com os diabos!

– A casa da quinta, uma mulher, a minha imaginação! Não sei adivinhar enigmas, e meu

pai não faz outra coisa senão propormos.

– Não conheço animal mais puro e mais discreto do que tu! – bradou o pai, despeitado; –

não conheço nenhum cuja reserva seja mais ofensiva. Parece que tens medo que te atraiçoe. Seria
singular!

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– Senhor! – disse Filipe exasperado.
– Bem! Bem! Guarda os teus segredos para ti; guarda o segredo da casa do monteiro, que

alugaste.

– Eu aluguei a casa do monteiro?!
– Guarda o segredo dos passeios nocturnos, que deste com duas amigas adoráveis.
– Eu!... Dei passeios!... – murmurou Filipe tornando-se pálido.
– Guarda o segredo daqueles beijos escondidos como o mel sob as flores e o orvalho.
– Senhor – bradou Filipe embriagado por um ciúme furioso – por quem é, cale-se!
– Está bom, está bom. Eu soube tudo que tu fizeste! Nem sequer desconfiaste de que eu

o sabia? Com os diabos! Isso devia inspirar-te confiança. A tua intimidade com a rainha, as tuas
empresas favorecidas, as tuas excursões aos banhos de Apolo, meu Deus! Mas isso é a nossa vida
e a nossa fortuna. Não tenhas medo de mim, Filipe... Confia em mim.

– O meu pai está-me inspirando horror! – exclamou Filipe ocultando o rosto entre as

mãos.

E era efectivamente horror o que experimentava o pobre Filipe pelo homem que lhe

descobria as feridas, e não contente de as ter descoberto, aumentava-as e alargava-as com uma
espécie de raiva. Era na verdade horror que ele experimentava pelo homem que lhe atribuía toda
a felicidade de outro, e que, julgando acariciá-lo, flagelava-o com a felicidade alheia.

Quanto o pai soubera, quanto adivinhara, quanto os mal intencionados atribuíam ao Sr.

de Rohan, os melhores informados ao Sr. de Charny, atribuía-o o barão ao filho. Na convicção
do velho fidalgo, era a Filipe que a rainha amava, e a quem a pouco e pouco ia fazendo subir ao
mais alto grau do favoritismo. E era esse o perfeito conhecimento, que desde algumas semanas,
fazia engordar o ventre do Sr. de Taverney.

Quando Filipe descobriu aquele novo lamaçal de infâmias, estremeceu por se ver nele

envolvido pelo único ente que com ele devia ter feito causa comum em defesa da honra; mas o
golpe fora tão violento, que ficou atordoado, mudo, ao passo que o barão continuava a pairar,
cada vez com mais verbosidade.

– Fizeste uma obra-prima – dizia-lhe; – iludiste toda a gente; esta noite cinqüenta olhos

disseram-me: É Rohan. Cem disseram-me: É Charny. Duzentos disseram-me: É Taverney.
Repito que andaste perfeitamente. E bem pouco é o cumprimento que te faço, Filipe. É coisa que
lhes dá bastante honra a ambos, meu caro, a ela, porque te recebeu; a ti, porque a possuis.

No momento em que Filipe, furioso com a última frase do barão, fulminava com o olhar

devorador o desapiedado ancião, olhar que era prelúdio de tempestade, ouviu-se no pátio o rodar
de uma carruagem, e certos rumores, idas e vindas de carácter estranho atraíram para fora dali a
atenção de Filipe.

Ouviu-se Champagne bradar:
– É a menina! É a menina!
E várias vozes repetirem:
– A menina!...
– Como! A menina? – perguntou Taverney. – Mas que menina é essa?
– É minha irmã! – bradou Filipe cheio de pasmo ao ver Andréa apear-se de uma

carruagem, alumiada pela luz que o guarda-portão segurava.

– Tua irmã!... – repetiu o velho barão. – Andréa!... Pois é possível?
E tendo chegado Champagne para confirmar o que Filipe dissera, aproximou-se dele e

disse:

– Senhor, a Srª. Andréa de Taverney está no gabinete contíguo à sala grande, e ordenou-

me que dissesse a V. Ex.a que o espera para lhe falar.

– Vamos recebê-la – bradou o barão de Taverney exprimindo uma grande alegria.
– É comigo que minha irmã deseja falar – disse Filipe de Taverney cortejando seu pai; –

por isso, se dá licença, irei adiante.

No mesmo instante entrou outra carruagem no pátio, com grande estrondo.

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– Quem diabo virá mais? – murmurou o barão. – É a noite das aventuras.
– O Sr. conde Olivier de Charny! – bradou aos criados a voz sonora do guarda-portão.
– Conduza o Sr. conde para a sala – disse Filipe para Champagne – que o Sr. barão o

receberá. Eu vou imediatamente falar com minha irmã.

Os dois homens desceram lentamente a escada.
– Que virá o conde cá fazer? – perguntava Filipe a si mesmo.
– Que vem cá fazer Andréa? – pensava o barão.

LXXXIV

O pai e a noiva


A sala do palácio era situada no andar térreo. Da esquerda ficava o gabinete com uma

saída para a escada que conduzia ao quarto de Andréa.

Da direita, havia uma saleta, que dava entrada para a sala grande.
Filipe entrou primeiro no gabinete onde o esperava a irmã. Chegado ao vestíbulo,

apressara o passo para mais depressa se ver nos braços da sua querida companheira.

Assim que se abriu a porta, Andréa lançou-se-lhe ao pescoço, e abraçou-o com uma

alegria a que, desde largo tempo, não estava acostumado o desolado amante, o irmão desgraçado.

– Santo Deus! Que te aconteceu? – perguntou o mancebo a Andréa.
– Uma felicidade! Oh! Uma grande felicidade, meu querido irmão!
– E vens comunicar-ma?
– Volto para sempre! – exclamou Andréa com indizível transporte de felicidade.
– Mais baixo, minha irmã, fala mais baixo – disse Filipe; – as paredes desta casa já não

estão habituadas à alegria, e além disso acolá, naquela sala, está alguém que poderia ouvir-te.

– Alguém? – disse Andréa; – quem é?
– Ouve! – redargüiu Filipe.
– O Sr. conde de Charny! – anunciou o criado introduzindo-o na sala.
– Ele! É ele!... – bradou Andréa aumentando as carícias que fazia ao irmão. – Oh! Eu bem

sei o que ele vem aqui fazer!

– Sabes?
– Olha! Tanto sei, que ainda agora reparo no meu desalinho, e como prevejo o momento

em que também terei de entrar naquela sala para ouvir com os meus ouvidos o que o Sr. de
Charny vem dizer...

– Falas seriamente, querida Andréa?
– Ouve, ouve, Filipe, e deixa-me ir ao meu quarto. A rainha trouxe-me com muita

precipitação; vou mudar este fato de convento e vestir-me... como uma noiva!

E com estas palavras, que disse a Filipe em voz baixa, acompanhando-as com um alegre

beijo, Andréa, ligeira e contente, desapareceu pela escada que conduzia ao seu quarto.

Filipe ficou só e aplicou o ouvido à porta que comunicava do gabinete com a sala, e

escutou.

O conde Olivier de Charny tinha entrado. Passeava a passos largos pela sala, e parecia

antes meditar do que esperar.

O Sr. de Taverney entrou também na sala, e foi cortejar o conde com extrema civilidade,

bem que um pouco constrangido.

– Ao que devo – disse ele enfim – a honra desta visita imprevista, Sr. conde? Em todo o

caso, creia que me enche de prazer.

– Vim, senhor, sem cerimónia, como vê, e rogo que me desculpe se não vem comigo,

como devia, meu tio, o Sr. bailio de Suffren.

– Oh! Meu caro Sr. de Charny – balbuciou o barão – está desculpado.
– Devia ter vindo com meu tio, bem sei, para o pedido que vou fazer.

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– Um pedido? – disse o barão.
– Tenho a honra – respondeu Charny com uma voz que dominava a comoção – tenho a

honra de lhe pedir a mão de sua filha, a Srª. Andréa de Taverney.

O barão deu um pulo na poltrona. Abriu muito os olhos e com tal expressão que parecia

devorar cada uma das palavras que o conde de Charny acabava de pronunciar.

– Minha filha!... – murmurou ele. – Pede-me Andréa em casamento?
– Sim, Sr. barão; salvo se a Srª. de Taverney experimentar repugnância por semelhante

união.

– Ora vamos! – pensou o ancião – será já tão patente o valimento de Filipe, que um dos

seus rivais queira dele aproveitar-se casando com a irmã? Por minha alma, que também não é
mau jogo, Sr. de Charny!

E em voz alta, suspirando, disse:
– A sua proposta é tão honrosa para a nossa casa, Sr. conde, que pela parte que me toca,

acedo a ela com muito prazer, e como desejo que leve daqui um consentimento completo, vou
mandar chamar minha filha.

– Senhor – interrompeu o conde com frieza – parece-me que é isso um incómodo inútil.

Sua Majestade dignou-se consultar a Srª. de Taverney sobre este assunto, e a resposta de sua filha
foi favorável.

– Ah! – disse o barão cada vez mais maravilhado – foi a rainha quem...
– Teve o incómodo de ir a Saint-Denis, sim, senhor.
O barão levantou-se e disse:
– Só me resta dar-lhe a conhecer, Sr. conde de Charny, o que diz respeito à situação da

Srª. de Taverney. Tenho lá em cima os títulos da legítima, que herdou da mãe. Não vai casar com
uma senhora rica, Sr. conde, e antes de concluirmos coisa alguma...

– É inútil, Sr. barão – disse Charny secamente. – A minha fortuna chega para dois, e a Srª.

de Taverney não é senhora que se deva mercadejar. Mas esse ponto, que o Sr. barão queria tratar
pela parte de sua ilustre filha, é indispensável que eu o trate pelo que me diz respeito.

Apenas acabava de pronunciar estas palavras, abriu-se a porta do gabinete e apareceu

Filipe, pálido, transtornado, com uma das mãos no peito e a outra convulsivamente fechada.

Charny cortejou-o cerimoniosamente e foi correspondido do mesmo modo.
– Sr. conde – disse Filipe – meu pai tinha razão em lhe propor uma conferência a respeito

de assuntos de família; ambos nós temos esclarecimentos que dar-lhe.

Enquanto o Sr. barão sobe ao seu quarto para lhe trazer os papéis de que lhe falou, terei

eu a honra de tratar com o senhor essa questão mais circunstanciadamente.

E Filipe, cujo rosto transpirava irrecusável autoridade, despediu o barão, que saiu um

pouco contrafeito, prevendo algum transtorno.

Filipe acompanhou o barão até à porta da saleta, para se certificar de que naquele quarto

não ficaria ninguém. Foi depois ver se estava alguém no gabinete, e certo de não ser ouvido por
pessoa alguma, senão por aquele a quem se ia dirigir, colocando-se em frente do conde com os
braços cruzados, disse:

– Sr. de Charny, pois atreve-se a vir pedir minha irmã em casamento?
Olivier recuou, fazendo-se vermelho.
– É para melhor ocultar os seus amores com a mulher que corteja – continuou Filipe –

com a mulher que o ama? É para que, vendo-o casado, não se possa, dizer que tem uma amante?

– Realmente, senhor... – disse Charny aterrado, cambaleando.
– É – acrescentou Filipe – porque, sendo esposo de uma mulher, que a toda a hora pode

chegar-se à sua amante, terá assim mais facilidade e ocasião de ver essa amante adorada?

– Senhor, ultrapassa os limites!
– É talvez, e creio isso – continuou Filipe aproximando-se de Charny; – é sem dúvida

para que, sendo eu seu cunhado, não revele quanto sei dos seus amores passados?

– O que o senhor sabe! – bradou Charny espantado; – cautela! Cautela, Sr. de Taverney!

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– Sim – disse Filipe animando-se – a casa do monteiro alugada pelo senhor; os seus

passeios misteriosos na quinta de Versalhes... De noite... As mãos que se apertavam, os seus
suspiros, e sobretudo o terno e recíproco olhar, na pequena porta da quinta...

– Senhor, em nome do céu! O Sr. não sabe nada; diga que não sabe nada.
– Não sei nada! – bradou Filipe com terrível ironia. – Como poderia eu não saber nada, se

estava escondido entre as silvas, por detrás da porta dos banhos de Apolo, quando dali saiu,
dando o braço à rainha!

Charny deu dois passos, como se recebesse um golpe mortal, e procurou em volta de si

um apoio.

Filipe olhava para ele em feroz silêncio. Deixava-o sofrer, deixava-o expiar por aquele

tormento passageiro, as horas de inefável prazer de que acabava de lhe falar.

Charny ergueu-se depois do seu abatimento, tomando uma resolução heróica.
– Pois bem, senhor – disse ele a Filipe – mesmo depois do que acaba de dizer-me, peço-

lhe a mão da Srª. de Taverney. Se eu fosse unicamente um cobarde calculador, como o senhor há
um momento supunha: se quisesse casar para minha satisfação pessoal, seria tão miserável, que
teria medo do homem que possui o meu segredo e o da rainha? Mas é preciso salvar a rainha,
senhor, é preciso salvá-la a todo o transe.

– Em que está a rainha perdida? – disse Filipe – será por eu a ter visto apertar o braço do

Sr. de Charny, e erguer para o céu os olhos úmidos de felicidade? Em que está a rainha perdida?
Será por eu saber que ela o ama? Oh! Isso não é razão bastante para sacrificar minha pobre irmã,
senhor, e eu não a deixarei sacrificar.

– Senhor – respondeu Olivier – quer saber porque está perdida a rainha se não se fizer

este casamento? É porque ainda esta manhã, enquanto prendiam o Sr. de Rohan, o rei
surpreendeu-me aos pés de Maria Antonieta.

– Santo Deus!
– É que a rainha, interrogada pelo rei, cego de ciúme, respondeu que eu estava aos seus

pés para lhe pedir a mão de sua irmã. E aí tem porque é que, se eu não caso com sua irmã, a
rainha está perdida. Agora compreende?

Duplo rumor cortou a frase de Oliver: foi um ai e um suspiro.
Partira um do gabinete, o outro da saleta.
Olivier acudiu ao suspiro, e viu no gabinete Andréa de Taverney vestida de branco como

uma noiva. Ouvira tudo e acabava de perder os sentidos.

Filipe acudiu ao grito que partira da saleta. Viu o corpo do barão de Taverney, a quem

essa revelação do amor da rainha por Charny acabava de fulminar sobre a ruína de todas as suas
esperanças.

O barão, atacado por uma apoplexia, dera a alma ao criador.
A profecia de Cagliostro estava cumprida, quanto à morte do barão de Taverney.
Filipe, que compreendia tudo, até a vergonha daquela morte, abandonou silenciosamente

o cadáver, e voltou para a sala, dirigindo-se a Charny, que a tremer e sem ousar tocar-lhe,
contemplava a formosa donzela, que, fria e inanimada, jazia por terra como morta!

As duas portas abertas deixaram ver os dois corpos paralela e simetricamente colocados,

por assim dizer, no sítio em que o golpe da revelação os ferira.

Filipe, com os olhos inchados e o coração ardente, teve ânimo para falar e dizer ao Sr. de

Charny:

– O Sr. barão de Taverney acaba de falecer. Depois dele, sou eu o chefe de minha família.

Se Andréa de Taverney sobreviver, dar-lha-ei por esposa.

Charny olhou com horror para o cadáver do barão e com desespero para o corpo de

Andréa. Filipe arrancava os cabelos às mãos ambas, e na força do seu desgosto lançou para o céu
uma exclamação, que deve ter comovido o coração de Deus no seu trono eterno.

– Sr. conde de Charny – disse ele depois de ter serenado em si a tempestade – vou tomar

um compromisso em nome de minha irmã, que me não ouve; ela dará a felicidade à nossa rainha;

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e eu talvez que algum dia seja feliz bastante para lhe dar a minha vida. Adeus, Sr. de Charny;
adeus, meu cunhado.

E cortejando Charny, que não sabia de que modo sair sem passar por pé de uma das

vítimas, Filipe ergueu Andréa, aqueceu-a nos braços, e abriu assim passagem ao conde, que
desapareceu pelo gabinete.

LXXXV

Depois do dragão, a víbora


É tempo de voltarmos aos personagens da nossa história, que tanto a necessidade e o

enredo como a verdade histórica nos obrigaram a colocar no segundo plano.

Oliva preparava-se para fugir, desinquietada por Joana, quando Beausire, avisado por uma

carta anónima, Beausire, que estava saudoso de Nicola, se achou levado aos braços dela e a
raptou de casa de Cagliostro, enquanto o Sr. Reteau de Villete a esperava baldadamente na
esquina da rua do Roi-Doré.

Para achar os felizes amantes, que o Sr. de Crosne tanto interesse tinha em descobrir, a

Srª. de La Motte, que se viu burlada, pôs em campo toda a sua gente.

Preferia, como facilmente se concebe, velar pessoalmente sobre o seu segredo, a deixá-lo

entregue ao poder de outros, e para o bom êxito do negócio, que preparava, era indispensável
que se não pudesse achar Nicola.

É impossível descrever as angústias que experimentou, quando cada um dos seus

emissários, ao regressar, lhe anunciava a impossibilidade de encontrar a rapariga, e a inutilidade
das suas indagações.

Naquele momento recebia ela, escondida, repetidas ordens para comparecer na presença

da rainha, e ir responder pelo seu procedimento a respeito do colar.

Partiu de noite, disfarçada, para Bar-sur-Aube, onde possuía uma pequena propriedade, e

uma vez lá chegada por caminhos de atalho, sem haver sido reconhecida, teve tempo de encarar a
questão sob o seu verdadeiro ponto de vista.

Tinha assim dois ou três dias de consultas consigo própria, ganhava tempo e com o

tempo a força para sustentar, por uma sólida fortificação interior, o edifício das suas calúnias.

Dois dias de solidão para aquela alma profunda eram a luta ao cabo da qual estariam

domados o corpo e o espírito; a obediente consciência, perigoso instrumento, não se voltaria
mais contra a culpada, e o sangue habituar-se-ia a circular-lhe no coração sem nunca subir ao
rosto para revelar nele a vergonha ou a surpresa.

Nem a rainha, nem o rei, que a mandaram procurar, souberam da sua instalação em Bar-

sur-Aube senão quando ela já estava preparada para a luta. Mandaram buscá-la por um próprio, e
foi então que ela soube da prisão do cardeal.

Qualquer outra pessoa ficaria aterrada com tão vigorosa ofensiva; mas Joana já não tinha

que recear. Que era uma questão de liberdade na balança, comparada com as questões de vida ou
de morte, que nela se amontoam todos os dias?

Quando soube da prisão do cardeal e do escândalo feito por Maria Antonieta, reflectiu

francamente:

– A rainha perdeu-se. Já não pode emendar o passado. Recusando transigir com o cardeal

e pagar aos joalheiros, joga um jogo forte. Isso prova que não conta comigo e que nem sequer
suspeita as forças que tenho à minha disposição.

Eram desta têmpera as peças da armadura de Joana, quando um homem, uma espécie de

aguazil e de mensageiro, se lhe apresentou de repente e lhe participou, que estava encarregado de
a conduzir à corte.

O mensageiro encarregado de a conduzir ao paço queria levá-la directamente ao rei; mas

Joana, com a habilidade que lhe era peculiar, disse ao aguazil:

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– É afeiçoado à rainha, não é verdade?
– Duvida disso, Srª. condessa? – respondeu ele.
– Pois bem, em nome desse leal amor, desse respeito, que tem pela rainha, suplico-lhe

que me leve primeiramente à presença de Sua Majestade.

O mensageiro quis fazer observações.
– Sabe certamente de que se trata, melhor do que eu, talvez – prosseguiu a condessa. –

Deve portanto perceber que me é indispensável falar primeiramente em segredo com a rainha.

O mensageiro, todo cheio das idéias caluniosas que, havia alguns meses, empestavam o ar

de Versalhes, supôs que prestava um grande serviço à rainha levando-lhe a Srª. de La Motte, antes
de a conduzir à presença do rei.

Imagine-se a soberba, o orgulho, a consciência altiva da rainha colocada em presença

desse demónio, que ainda não conhecia, mas cuja pérfida influência nos seus negócios ela já
suspeitava.

Imaginem Maria Antonieta, viúva ainda inconsolada do seu amor, que sucumbira ao

escândalo; Maria Antonieta, esmagada pela injúria de uma acusação, que não podia refutar;
imagine-se disposta, depois de tantas dores, a pisar a cabeça da serpente que a mordera!

O supremo desdém, a cólera mal contida, o ódio de mulher para mulher, o sentimento de

uma superioridade incomparável de posição, tais eram as armas de um dos adversários. Olhar
baixo, boca fechada, mesuras lentas e solenes, um coração cheio de mistério, um espírito cheio de
idéias, o desespero por último motor, tais eram os recursos do segundo campeão.

A rainha começou por mandar entrar como testemunhas duas das suas criadas. A Srª. de

La Motte, assim que viu as duas mulheres, disse consigo:

– Bom! Aí estão duas testemunhas que não tardará que sejam mandadas sair.
– Ah! Ei-la enfim! – exclamou a rainha; – até que finalmente a encontraram!
Joana cortejou pela segunda vez.
– Então, escondeu-se? – disse a rainha com impaciência.
– Esconder-me! Eu não, minha senhora – redargüiu Joana com voz suave e sem som,

como que perturbada pela impressão da majestade real; – não me escondi; se me tivesse
escondido, não me encontrariam.

– Mas fugiu! Dê a isso o nome que melhor lhe convier.
– Isto é, saí de Paris; sim, minha senhora.
– Sem minha licença?
– Receava que Vossa Majestade não me concedesse a pequena licença de que precisava

para tratar dos meus negócios em Bar-sur-Aube, onde estava havia seis dias, quando lá me achou
a ordem de Vossa Majestade. E demais, devo dizê-lo, não julgava ser tão necessária a Vossa
Majestade, que fosse preciso preveni-la para me ausentar por oito dias.

– E na verdade que tem razão; por que havia de recear que eu lhe negasse a licença? Que

licença tem que pedir-me? Que licença posso eu conceder-lhe? Tem porventura aqui algum
cargo?

Estas últimas palavras foram ditas com sensível desprezo. Joana ofendida, mas contendo

o sangue como os tigres feridos pela flecha, disse humildemente:

– Minha senhora, não tenho emprego na corte, é verdade; mas Vossa Majestade honrava-

me com uma confiança tão preciosa, que eu me considerava muito mais obrigada à rainha por
gratidão, do que muitos outros o são por dever.

Joana procurara muito tempo, e achara a palavra confiança, que acentuou.
– É dessa confiança – repetiu a rainha em tom de desprezo ainda mais pronunciado – que

vamos ajustar contas. Já falou com el-rei?

– Não, minha senhora.
– Pois há-de falar-lhe.
Joana curvou a cabeça respeitosamente.
– Será grande honra para mim – disse ela.

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A rainha procurou serenar um pouco, para começar as suas perguntas com vantagem.
Joana aproveitou essa pausa para dizer:
– Jesus, minha senhora! Como Vossa Majestade se mostra severa para comigo! Toda eu

tremo!

– Ainda agora estamos em princípio – disse asperamente a rainha; – sabe que o Sr. de

Rohan está na Bastilha?

– Já o ouvi dizer, minha senhora.
– Adivinhou certamente por quê?
Joana olhou fixamente para a rainha, e voltando-se para as mulheres, cuja presença

parecia incomodá-la muito, respondeu:

– Não sei, minha senhora.
– Sabe, contudo, que me falou num colar, não é verdade?
– Um colar de brilhantes? Sim, minha senhora.
– E que me propôs da parte do cardeal um meio para pagar esse colar?
– É verdade, minha senhora.
– Aceitei ou recusei essa proposta?
– Vossa Majestade recusou.
– Ah! – disse a rainha com satisfação e surpresa.
– Sua Majestade deu até por conta duzentas e cinqüenta mil libras – acrescentou Joana.
– Bem... E depois?
– Depois, Sua Majestade, não podendo pagar, porque o Sr. de Calonne lhe tinha negado o

dinheiro, restituiu o colar aos joalheiros Boehmer & Bossange.

– E por quem o mandei?
– Por mim.
– E que lhe fez?
– Eu – disse lentamente Joana, que sentia todo o peso das palavras que ia pronunciar –

eu, dei os brilhantes ao Sr. cardeal.

– Ao Sr. cardeal! – bradou a rainha; – e por que não os restituiu aos joalheiros? Queira

dizer.

– Porque, minha senhora, tendo-se o Sr. de Rohan interessado nesse negócio, que era

grato a Vossa Majestade, ofenderia o Sr. cardeal se lhe não fornecesse a ocasião de ele mesmo o
concluir.

– Mas como é que alcançou um recibo dos joalheiros?
– Foi o Sr. de Rohan quem mo deu.
– Mas essa carta que, segundo dizem, entregou aos joalheiros como sendo mandada por

mim?

– Foi o Sr. de Rohan quem me pediu que a entregasse.
– Então, foi sempre em tudo e por tudo o Sr. de Rohan quem tratou deste negócio? –

exclamou a rainha.

– Não sei o que Vossa Majestade quer dizer – redargüiu Joana distraída – nem em que se

meteu o Sr. de Rohan.

– Digo que o recibo dos joalheiros é falso!
– Falso! – exclamou Joana com candura. – Oh! Minha senhora!
– Digo que a suposta carta, em que se declara que recebi o colar, e assinada por mim,

segundo dizem, é falsa!

– Oh! – exclamou Joana aparentemente mais admirada do que da primeira vez.
– Digo, finalmente – prosseguiu a rainha – que tem de ser confrontada com o Sr. de

Rohan para se poder esclarecer este negócio.

– Confrontada! – disse Joana. – Mas, minha senhora, que necessidade há de me

confrontar com o Sr. cardeal?

– Foi ele mesmo que o pediu.

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– Ele?
– E mandou procurá-la por toda a parte.
– Mas, minha senhora, é impossível!
– Queria provar-lhe – dizia ele – que o tinha enganado.
– Oh! Agora, minha senhora, sou eu que peço a confrontação.
– Há-de ter lugar, pode ficar certa disso. Então, nega que saiba onde pára o colar?
– Como posso eu sabê-lo?
– Nega ter auxiliado o Sr. cardeal em certas intrigas?...
– Vossa Majestade tem todo o direito para desgraçar-me, mas não para me ofender. Sou

Valois, minha senhora!

– O Sr. cardeal sustentou diante do rei certas calúnias, que ele espera documentar.
– Não compreendo.
– O cardeal declarou que me tinha escrito.
Joana olhou bem de frente para a rainha, e não deu resposta.
– Ouviu-me? – disse a rainha.
– Ouvi, sim, minha senhora.
– E o que responde?
– Responderei quando tiver sido confrontada com o Sr. cardeal.
– Até então, se sabe a verdade, auxilia-nos?
– A verdade, minha senhora, é que Vossa Majestade ataca-me sem motivo, e maltrata-me

sem razão.

– Isso não é resposta.
– E contudo não darei aqui nenhuma outra, minha senhora.
E Joana olhou novamente para as duas criadas.
A rainha compreendeu, mas não cedeu. A curiosidade não pôde vencer nela o respeito

humano. Nas reticências de Joana, na sua atitude ao mesmo tempo humilde e insolente,
conhecia-se a firmeza que resulta de um segredo adquirido. Esse segredo talvez a rainha o tivesse
comprado por meio da doçura.

Repeliu esse meio como indigno dela.
– O Sr. de Rohan foi metido na Bastilha por ter querido falar demais – disse Maria

Antonieta; – cautela, Srª. condessa, que pode ter a mesma sorte por querer falar de menos!

Joana cravou as unhas nas mãos, mas sorriu.
– Para uma consciência pura – disse ela – que lhe importa a perseguição? Poderá

porventura a Bastilha convencer-me?

A rainha olhou para Joana com olhar enraivecido.
– Não quer falar? – disse ela.
– Nada tenho que dizer, minha senhora, senão a Vossa Majestade.
– A mim? Pois não é comigo que está falando?
– Não está só.
– Ah! Estamos chegados ao ponto – bradou a rainha – quer sessão secreta. Receia o

escândalo da confissão pública, depois de ter-me infligido o escândalo da suspeita pública.

Joana olhou com soberba para a rainha.
– Não falemos mais nisso – disse ela; – o que eu queria era salvar a Vossa Majestade.
– Insolente!
– Ouço respeitosamente as injúrias da minha rainha – disse Joana sem mudar de cor.
– Dormirá esta noite na Bastilha, Srª. de La Motte.
– Sim, real senhora. Mas antes de me deitar, segundo o meu costume, pedirei a Deus que

conserve a honra e o sossego de Vossa Majestade – redargüiu imperturbavelmente a acusada.

A rainha, erguendo-se furiosa, entrou para o quarto contíguo e fechou as portas com

violência.

– Depois de ter vencido o dragão – disse ela – não deixarei de esmagar a víbora.

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– Sei-lhe o jogo de cor – pensou Joana – e parece-me que ganhei.

LXXXVI

O Sr. de beausire, julgando caçar uma lebre, é caçado pelos agentes do Sr. De Crosne


Conforme a rainha determinara, a Srª. de La Motte foi encarcerada.
Não houve compensação mais agradável para el-rei, que instintivamente odiava aquela

mulher. O processo sobre o negócio do colar foi instaurado com toda a rapidez que podem
empregar negociantes arruinados, que desejam sair do embaraço, acusados que querem livrar-se
da acusação, e juízes populares que têm nas mãos a honra e a vida de uma rainha, sem contar o
amor próprio ou o espírito de partido.

O facto deu brado em toda a França, e pela força desse brado pôde Maria Antonieta

conhecer e contar os seus partidários e os seus inimigos.

Desde que estava encarcerado, o Sr. de Rohan pedia instantemente para ser confrontado

com a Srª. de La Motte. Esse desejo foi-lhe afinal satisfeito. O príncipe vivia na Bastilha como
grão-senhor. Exceptuando a liberdade, quanto pedia era-lhe concedido imediatamente.

O processo havia tomado logo de princípio proporções mesquinhas, em atenção à

qualidade das pessoas que estavam nele implicadas. Além disso, toda a gente se admirava que um
Rohan pudesse ser acusado de roubo; e tanto o governador como os oficiais da Bastilha tinham
pelo cardeal toda a deferência, atenções e respeito devidos à desgraça. Para eles o cardeal não era
um criminoso, era um homem que tinha incorrido no desagrado do paço.

E muito mais mudou o caso de figura quando correu pelo público a notícia de que o Sr.

de Rohan era vítima de intrigas da corte. A simpatia mudou-se em entusiasmo.

O Sr. de Rohan, um dos principais do reino, não compreendia que o amor do povo por

ele, nascesse unicamente por ser perseguido por outra pessoa mais nobre. O Sr. de Rohan, última
vítima do despotismo era um dos primeiros revolucionários da França.

A sua entrevista com a Srª. de La Motte foi assinalada por um notável incidente. A

condessa, a quem permitiam falar baixo sempre que se tratava da rainha, conseguiu dizer ao
cardeal:

– Mande afastar todos, e dar-lhe-ei os esclarecimentos que pede.
Então o Sr. de Rohan desejou ficar só e interrogá-la em voz baixa.
Recusaram-lhe isso, mas consentiram que o seu advogado falasse com a condessa.
Quanto ao colar, declarou ela formalmente que ignorava o que fosse feito dele, mas que

podia muito bem acontecer que lho tivessem dado.

E como o advogado se mostrasse admirado com tanta audácia, ela perguntou-lhe se o

serviço que tinha prestado à rainha e ao cardeal não valia um milhão.

O advogado repetiu as palavras ao cardeal, que empalideceu, abaixou a cabeça e

adivinhou que tinha caído num laço armado por uma infame embusteira.

Pensava já em procurar os meios de abafar a questão, que perderia a rainha; mas os

inimigos desta, seus amigos, aconselhavam-lhe que não rompesse as hostilidades.

Observavam-lhe que a sua honra estava em jogo, que se tratava de um roubo, e que sem

sentença do parlamento, a sua inocência não ficava provada.

Ora, para provar essa inocência, era preciso provar as relações do cardeal com a rainha, e

por conseqüência provar o crime desta.

A essa reflexão, Joana respondeu que nunca acusaria a rainha nem o cardeal; mas que, se

perseverassem em torná-la responsável pelo colar, havia de fazer aquilo que se recusava a
praticar; isto é, provaria que tanto a rainha como o cardeal tinham interesse em acusá-la de
aleivosia.

Quando estas conclusões foram comunicadas ao cardeal, o príncipe mostrou todo o seu

desprezo por quem assim falava em sacrificá-lo. Acrescentou que compreendia até certo ponto o

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procedimento de Joana, mas que por forma nenhuma podia compreender o da rainha.

Estas palavras, que foram repetidas e comentadas a Maria Antonieta, irritaram-na e

fizeram-na pular de raiva. Quis que se procedesse a um interrogatório particular sobre as partes
misteriosas desse processo.

Apareceu então o grande escândalo das entrevistas nocturnas, desenvolvido largamente e

com a maior clareza pelos caluniadores e fabricantes de notícias.

Mas foi então que a desgraçada rainha se viu ameaçada. Joana afirmava que não tinha

conhecimento algum do que lhe perguntavam a respeito de Sua Majestade; mas isso era na
presença das pessoas afeiçoadas à rainha; porém, diante dos partidários do cardeal, não era tão
discreta e repetia sempre:

– Deixem-me sossegada, quando não eu falo.
Essas reticências, essas modéstias tinham-lhe dado uma posição de heroína, e baralhavam

por tal forma o processo, que os mais espertos esquadrinhadores de feitos estremeciam
consultando os autos, e nenhum juiz instrutor ousava prosseguir nos interrogatórios da condessa.

Foi o cardeal mais fraco ou mais franco? Confessou porventura a algum amigo o que ele

chamava o seu segredo de amor? Não se sabe; não se deve crer, porque era uma alma nobre,
elevada e generosa. Mas, por mais lealdade que houvesse no seu silêncio, espalhou-se o boato do
seu colóquio com a rainha. Tudo quanto o conde de Provença dissera, tudo quanto Charny e
Filipe tinham visto ou sabido, todos esses arcanos ininteligíveis para qualquer outro que não fosse
o pretendente, como o irmão do rei, ou rival como Filipe e Charny, todo o mistério desses
amores tão caluniados e tão castos, evaporou-se como um perfume, e fundido na atmosfera
vulgar, perdeu o ilustre aroma da sua origem.

É fácil de supor que não faltavam à rainha fervorosos defensores nem ao Sr. de Rohan

activos campeões.

A questão não era já esta: Roubou ou não roubou a rainha um colar de brilhantes?
Questão já bastante desonrosa em si, mas que nem assim mesmo bastava. A questão era:
A rainha deixaria roubar o colar por alguém que tivesse penetrado o segredo dos seus

amores adúlteros?

Aí está como a Srª. de La Motte conseguira cortar as dificuldades. Aí está como a rainha

se via envolvida numa questão sem outra saída senão a desonra.

Não se deixou abater. Resolveu lutar corajosamente e o rei auxiliou-a.
O ministério apoiava-a também com todas as suas forças. A rainha lembrou-se que o Sr.

de Rohan era um homem honradíssimo, incapaz de querer perder uma mulher. Lembrou-se da
sua firmeza quando ele jurava ter sido admitido às entrevistas de Versalhes.

Concluiu que o cardeal não era seu inimigo directo, e que, assim como ela, não tinha

nesta questão senão um interesse de honra.

Toda a força do processo foi portanto dirigida contra a condessa, e activamente se

procuraram os vestígios do colar perdido.

A rainha, aceitando o debate sobre a acusação de fraqueza adúltera, lançava sobre Joana a

fulminante acusação de roubo fraudulento.

Tudo falava contra a condessa, os seus antecedentes, a sua primeira miséria, a sua singular

elevação; a nobreza não queria reconhecer aquela princesa do acaso, o povo não a queria
reivindicar; é instintivo no povo o ódio pelos aventureiros, e nem o bom êxito lhes perdoam.

Joana conheceu que seguira caminho errado, e que a rainha, sujeitando-se à acusação, não

cedendo ao receio do escândalo, convidava o tribunal a imitá-la; que as duas lealdades acabariam
por estar de acordo e achar a luz nas trevas, e que, se sucumbissem, a queda seria tão terrível, que
esmagaria debaixo de si a pobre pequena Valois, princesa de um milhão roubado, que nem sequer
o tinha nas suas mãos para corromper os juízes.

Tinha-se chegado a este ponto quando um novo incidente mudou a face da questão.
O Sr. de Beausire e a Srª. Oliva viviam felizes e ricos numa casa de campo bem retirada,

quando certo dia, tendo o senhor deixado a senhora em casa para ir caçar, se achou envolvido em

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sociedade com dois dos agentes que o Sr. de Crosne espalhava por toda a França para obter um
desfecho a esta intriga.

Os dois amantes ignoravam tudo o que se passava em Paris; apenas pensavam em si. A

Srª. Oliva engordava como uma doninha num celeiro, e o Sr. Beausire, com a felicidade
doméstica, tinha perdido a inquieta curiosidade, que é o sinal distintivo das aves de rapina e dos
homens de presa, carácter que a natureza dá a uns e aos outros para a sua conservação.

Beausire, dissemos, tinha naquele dia ido à caça das lebres. Viu um bando de perdizes,

que lhe fez atravessar a estrada, e aí está de que modo, procurando coisa diversa daquilo que
devia procurar, achou o que não procurava.

Os agentes também procuravam Oliva, e acharam Beausire. São estes os caprichos

ordinários da caça.

Um dos furões era homem de juízo. Depois de bem conhecer Beausire, em lugar de o

prender brutalmente, o que não lhe teria produzido coisa alguma, combinou com o seu
companheiro o projecto seguinte:

“Beausire anda à caça; portanto tem liberdade e riqueza; tem talvez cinco ou seis luíses na

algibeira, e é possível que tenha duzentos ou trezentos em casa. Deixemo-lo ir para casa,
entremos com ele, e poderemos então pôr-lhe preço. Beausire, entregue em Paris, apenas nos
produzirá cem libras, como qualquer preso ordinário, e ainda em cima ralharão connosco por
termos enchido a prisão com personagem de tão pouca consideração. Façamos de Beausire uma
especulação pessoal.”

Começaram a caçar perdizes e lebres, como o Sr. Beausire, e seguindo com exactidão as

manobras da caça, quer no mato para as lebres, quer na luzerna para as perdizes, não perderam
nunca de vista Beausire.

Beausire, vendo uns estranhos que se metiam na sua partida de caça, começou por se

admirar muito, e acabou por se encolerizar imenso. Tinha-se tornado zeloso da caça, como
qualquer fidalgote; e além disso não gostava de novos conhecimentos. Em lugar de ir
pessoalmente interrogar os acólitos, que o acaso lhe dava, dirigiu-se a um guarda que viu na
planície, e encarregou-o de ir perguntar àqueles senhores por que motivo andavam caçando
naquelas terras.

O guarda respondeu que não conhecia aqueles senhores como sendo moradores daqueles

sítios, e acrescentou que era seu desejo interrompê-los na caçada, o que fez. Mas os dois
estranhos responderam que andavam caçando de sociedade com o seu amigo, aquele senhor que
andava além.

Dizendo isto, designavam Beausire. O guarda conduziu-os à presença deste, apesar de

toda a contrariedade que esta confrontação causava ao fidalgo caçador.

– Sr. de Linville – disse ele – estes senhores afirmam que andam caçando de sociedade

com o senhor.

– Comigo! – bradou Beausire bastante enfadado – ora essa!
– Ah! – disse-lhe um dos agentes em voz baixa – chama-se agora o Sr. de Linville, meu

caro Beausire?

Beausire, que tinha o maior cuidado em ocultar o nome, estremeceu.
Olhou para os agentes com modo espantado, e julgou conhecer vagamente aquelas caras.

Para não complicar as coisas, despediu o guarda e travou conversa com aqueles sujeitos.

– Então conhece-os? – perguntou o guarda.
– Conhece-nos, sim – apressou-se a responder um dos agentes – agora conhece-nos.
Então Beausire achou-se em presença dos dois caçadores com grande dificuldade em lhes

falar sem se comprometer.

– Ofereça-nos almoço em sua casa, Beausire – disse o mais esperto dos espiões.
– Em minha casa! Mas... – exclamou Beausire.
– Não terá a incivilidade de nos recusar isso, Beausire.
Beausire estava desorientado; deixou-se portanto levar para casa, porque não foi ele quem

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conduziu os seus convidados.

Os agentes, assim que viram a pequena habitação de Beausire, gabaram-lhe a elegância, a

posição, as árvores e a perspectiva, como o deviam fazer pessoas de bom gosto; e na realidade
Beausire escolhera um sítio encantador para assentar o ninho dos seus amores.

Era um vale cercado de árvores e dividido por um riacho, ficando a casa num outeiro ao

nascente. Uma guarita, uma espécie de torre de igreja, sem sinos, servia de mirante a Beausire
para dominar os campos em dias de spleen, quando as suas idéias fagueiras se turvavam, supondo
ver um aguazil em cada trabalhador curvado sobre a charrua.

De um só lado era esta habitação visível e risonha; dos outros lados ficava encoberta

pelas árvores e pela elevação do terreno.

– Como se está aqui bem escondido! – disse um dos agentes com admiração.
O dito fez estremecer Beausire, que foi o primeiro a entrar em casa, ao som dos latidos

dos cães.

Os agentes seguiram-no com repetidas cortesias e toda a cerimónia.

LXXXVII

Os pombinhos são metidos na gaiola


Beausire, entrando pela porta do pátio, tinha uma idéia, e era fazer bulha bastante, a fim

de prevenir Oliva para que se acautelasse. Beausire, sem saber coisa alguma do negócio do colar,
sabia bastantes coisas relativas ao negócio do baile de máscaras e da selha de Mesmer para recear
que Oliva fosse vista por desconhecidos.

Andou assisadamente, porque Oliva, estando assentada no sofá da sua sala a ler romances

frívolos, ouviu ladrar os cães, olhou para o pátio, e viu Beausire acompanhado, o que a impediu
de correr ao seu encontro, como era costume.

Infelizmente os dois pombinhos não estavam inteiramente livres das garras dos milhafres.

Foi preciso encomendar o almoço, e um criado desastrado (os criados do campo são sempre
estúpidos) perguntou duas ou três vezes se devia ir receber as ordens da senhora.

Esta palavra fez arrebitar as orelhas aos furões.
Caçoaram amavelmente com Beausire a respeito daquela senhora escondida, cuja

companhia era para um eremita o complemento de todas as felicidades que a solidão e o dinheiro
proporcionam.

Beausire deixou-os falar, mas não quis apresentá-los a Oliva.
Serviu-se um lauto banquete, ao qual os dois agentes fizeram a devida honra. Bebeu-se

muito, não esquecendo várias saúdes à senhora ausente.

À sobremesa, tendo-se esquentado as cabeças, os senhores da polícia julgaram que seria

desumano prolongar por mais tempo o suplício do anfitrião. Trouxeram habilmente a conversa
para o prazer que sentem sempre os bons corações em acharem antigos conhecimentos.

Com respeito a isto Beausire, abrindo um frasco de licor das ilhas, perguntou aos dois

desconhecidos em que parte e em que circunstâncias eles o tinham em outro tempo conhecido.

– Nós éramos – respondeu um deles – amigos de um dos seus sócios por ocasião de um

negociozinho que entre uns poucos... Quero falar do negócio da embaixada de Portugal.

Beausire tornou-se pálido. Quando se fala em negócios desta natureza, parece sempre

sentir-se o roçar de um pedaço de corda na garganta.

– Ah! Realmente! – disse ele todo trémulo; – e vem pedir-me para o seu amigo...
– É verdade, não é má idéia – disse o beleguim ao seu camarada; – a introdução é assim

mais honrosa. Pedir uma restituição em nome de um amigo ausente, é de grande moralidade...

– Ainda mais, isso reserva-nos direitos sobre o resto – redargüiu o amigo deste moralista,

com um sorriso agridoce, que fez estremecer o Sr. Beausire dos pés até à cabeça.

– Então?... – disse ele.

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– Então, meu caro Sr. Beausire, muito estimaria que entregasse a um de nós a parte do

nosso amigo. Umas dez mil libras, creio eu.

– Pelo menos, porque não falamos nos juros – disse o camarada Positivo.
– Meus senhores – respondeu Beausire sufocado pela firmeza do pedido – no campo não

se tem assim dez mil libras em casa.

– Isso é natural, meu caro senhor, e nós só exigimos o que é possível. Quanto pode dar

imediatamente?

– Tenho cinqüenta ou sessenta luíses, nada mais.
– Recebê-los-emos e agradeceremos a sua amável cortesia.
– Ah! – pensou Beausire encantado – eles são de fácil composição! Terão tanto medo de

mim como eu tenho deles? Vejamos.

E começou a reflectir que aqueles senhores, gritando em voz alta, só conseguiriam

declarar-se cúmplices dele, e que isso, para as autoridades da província, não seria boa
recomendação. Beausire concluiu que eles se dariam por satisfeitos e guardariam um silêncio
absoluto.

Na sua imprudente confiança, chegou a arrepender-se de não ter oferecido trinta luíses

em lugar de sessenta; mas resolveu desembaraçar-se deles logo depois de dada a soma.

Enganava-se nos seus cálculos, tinha os hóspedes em casa; eles gozavam a bem-

aventurada satisfação, produzida por uma digestão agradável; e mostravam-se amáveis porque
receavam cansar-se enfadando-se.

– É um amigo encantador este Beausire – disse o Positivo ao seu companheiro. – Os

sessenta luíses, que ele nos dá, não são custosos de receber.

– Vou buscá-los imediatamente – exclamou Beausire, assustado por ver a báquica

familiaridade, que patenteavam os seus convivas.

– Não temos pressa – disseram os dois amigos.
– Nada, nada, só me ficará tranqüila a consciência depois de lhes ter pago. Em delicadeza

só entendo tudo ou nada.

E quis deixá-los para ir buscar o dinheiro.
Mas aqueles senhores tinham hábitos de beleguins, hábitos arraigados, que dificilmente se

perdem depois de tomados. Aqueles senhores, uma vez de posse da presa, não sabiam separar-se
dela, do mesmo modo que o bom cão perdigueiro só larga a perdiz ferida para a entregar ao
caçador.

O bom beleguim é aquele que, feita a presa, não a larga nem da mão nem da vista. Sabe

muito bem que o destino é caprichoso para os caçadores, e quem consegue fugir anda depressa.

E tanto um como outro, em admirável harmonia, começaram a bradar estouvadamente:
– Sr. Beausire! Meu caro Beausire!
E agarravam-no vigorosamente pelas abas da casaca.
– Que sucedeu? – perguntou Beausire.
– Não se afaste de nós, por piedade – disseram eles obrigando-o amavelmente a assentar-

se de novo.

– Mas como lhes hei-de eu dar o dinheiro, se não me deixam ir lá acima?
– Nós o acompanharemos – respondeu o Positivo com assustadora ternura.
– Mas é... o quarto de minha mulher – redargüiu Beausire.
Esta palavra, que ele considerava como um pretexto para não os receber, foi para os

esbirros a faísca que incendiou a pólvora.

O seu descontentamento – um beleguim está sempre descontente com alguma coisa –

adquiriu uma forma, um corpo, uma razão de existência.

– É verdade! – bradou o primeiro dos agentes por que motivo nos esconde sua mulher?
– Sim. Não somos dignos de lhe ser apresentados? – disse o outro.
– Se soubesse o que pelo senhor se faz, seria mais cavalheiro – redargüiu o primeiro.
– E dar-nos-ia tudo quanto pedimos – acrescentou temerariamente o segundo.

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– A modo que me vão cantando fora do compasso, meus senhores – disse Beausire.
– Queremos ver a tua mulher – respondeu o Positivo.
– E eu declaro que os vou pôr fora – bradou Beausire, animado pelo estado de

embriaguez em que os via.

Eles responderam-lhe com uma gargalhada, que o devia ter tornado prudente. Ele,

porém, desprezou-a e ainda se obstinou mais.

– Agora – disse ele – não terão o dinheiro que lhes prometi, e hei-de pô-los

imediatamente na rua.

Riram com mais estrondo ainda do que da primeira vez.
Beausire, tremendo de cólera, disse com voz sufocada:
– Compreendo! Querem fazer bulha e denunciar-me, mas se me denunciam, ficarão então

tão perdidos como eu.

Continuaram a rir entre si; o divertimento parecia-lhes óptimo. Foi a única réplica que lhe

deram.

Beausire julgou espantá-los com um golpe de vigor e precipitou-se para o lado da escada,

não já como um homem que vai buscar dinheiro, mas como um furioso, que vai buscar armas.
Os esbirros levantaram-se da mesa, e fiéis aos seus princípios, correram atrás de Beausire, a quem
lançaram as unhas.

Este gritou, abriu-se uma porta e uma mulher, perturbada e aterrada, apareceu no limiar

dos quartos do primeiro andar.

Ao vê-la, os homens largaram Beausire e soltaram também um grito, mas de prazer, de

triunfo, de selvagem exaltação.

Acabavam de reconhecer aquela que tanto se parecia com a rainha de França.
Beausire, que por um momento os julgou desarmados pela aparição de uma mulher,

depressa e cruelmente perdeu a ilusão.

O Positivo aproximou-se da Srª. Oliva, e em tom pouco cortês, em atenção à semelhança,

disse:

– Ah! Ah! Está presa!
– Prendem-na! – bradou Beausire – e por quê?...
– Porque o Sr. de Crosne nos deu essa ordem – redargüiu o outro agente – e nós estamos

ao serviço do Sr. de Crosne.

Um raio que caísse entre os dois amantes tê-los-ia aterrado menos do que esta declaração.
– Eis aí o resultado de não ter sido amável – disse o Positivo a Beausire.
Este agente carecia de lógica, e o seu companheiro fez-lho observar dizendo:
– Não estás na razão, Legrigneux, porque se Beausire tivesse sido amável, apresentando-

nos esta senhora, de todo o modo a prenderíamos.

Beausire tinha encostado entre as mãos a cabeça ardente. Nem sequer se lembrava de que

os criados, homem e mulher, escutavam no fim da escada a cena que se passava no meio daqueles
degraus. Teve uma idéia, pareceu-lhe boa e logo sossegou.

– Vieram para me prender a mim? – perguntou ele aos agentes.
– Não, foi o acaso – disseram eles mansamente.
– É o mesmo. Podiam prender-me e por sessenta luíses deixavam-me a liberdade.
– Oh! Não; a nossa tenção era pedir outras sessenta.
– E nós temos só uma palavra – prosseguiu o outro; – por cento e vinte luíses fica livre.
– Mas... A senhora – disse Beausire a tremer.
– Oh! A senhora, isso é outro caso – redargüiu o Positivo.
– A senhora vale duzentos luíses, não é assim? – disse Beausire apressadamente.
Os agentes soltaram novamente uma gargalhada tão terrível que desta vez Beausire

compreendeu-a.

– Trezentos... – disse ele – quatrocentos... mil luíses! Olhem, dar-lhes-ei mil luíses, mas

deixem-na livre.

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Enquanto Beausire assim falava, os seus olhos feriam lume.
– Nada respondem? – disse ele; – sabem que tenho dinheiro, e querem que eu pague, é

justo. Darei dois mil luíses, quarenta e oito mil libras, a fortuna de ambos, mas deixem-lhe a
liberdade.

– Amas então muito essa mulher? – disse o Positivo.
Desta vez foi Beausire quem se riu, e o seu riso irónico foi tão aterrador, pintava tão bem

o amor desesperado que devorava aquele coração emurchecido, que os dois esbirros tiveram
medo e decidiram-se a tomar precauções para evitar a explosão do desespero, que se lia no olhar
espantado de Beausire.

Cada um tirou um par de pistolas da algibeira, e apontando-as ao peito de Beausire, disse

um deles:

– Não te restituiríamos esta mulher por cem mil escudos. O Sr. de Rohan há-de dar-nos

por ela quinhentas mil libras, e a rainha um milhão.

Beausire ergueu os olhos ao céu com uma expressão que teria enternecido qualquer outro

animal feroz, que não fosse um beleguim.

– A caminho – disse o Positivo. – Deve ter aqui algum carro, alguma coisa que ande em

rodas; mande aparelhar imediatamente para a senhora; é obséquio que lhe não pode negar.

– E como somos uns bons diabos – redargüiu o outro – pode ter a certeza de que não

abusaremos. Virá o senhor também por formalidade, mas na estrada, faremos vista grossa, saltará
do carro abaixo, e só daremos por isso quando estiver mil passos distante. Não é tão delicado
este nosso procedimento, hem?

Beausire só respondeu:
– Hei-de ir onde ela for. Nunca dela me separarei nesta vida.
– Oh! Nem na outra! – apressou-se a acrescentar Oliva gelada de terror.
– Pois bem, melhor – interrompeu o Positivo alegremente – quantos mais presos se

levam ao Sr. de Crosne, mais contente fica.

Um quarto de hora depois, saía de casa o carro de Beausire, levando os dois amantes

cativos e os seus guardas.

LXXXVIII

A biblioteca da rainha


É fácil de supor o efeito que produziu no Sr. de Crosne aquela captura.
Os agentes não receberam provavelmente o milhão que esperavam, mas é de supor que

ficassem satisfeitos.

Quanto ao chefe da polícia, depois de ter esfregado as mãos, em sinal de contentamento,

dirigiu-se a Versalhes numa carruagem, que era seguida por outra, hermeticamente fechada e
aferrolhada.

Era no dia seguinte àquele em que o Positivo e o seu amigo tinham entregado Nicola nas

mãos do chefe da polícia.

O Sr. de Crosne mandou entrar as duas carruagens no Trianon, apeou-se daquela em que

vinha, e confiou a outra à guarda do seu secretário.

Mandou anunciar a sua chegada à rainha, a quem já pedira uma audiência no Trianon.
A rainha, que havia um mês tinha o cuidado de não desprezar nada do que lhe chegasse

da parte da polícia, obedeceu imediatamente ao pedido do ministro; e logo pela manhã, dirigiu-se,
pouco acompanhada, prevendo o caso de haver segredo, para a sua casa favorita.

Assim que o Sr. de Crosne foi introduzido junto de Sua Majestade, ao ver o ar alegre do

chefe da polícia, a rainha julgou logo que as notícias haviam de ser boas.

Pobre senhora! Havia já bastante tempo que só via em torno de si caras tristes ou

carrancudas.

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Uma palpitação de alegria, a primeira naqueles trinta enfadonhos dias, lhe agitou o

coração ferido por tantas comoções mortais.

O magistrado, depois de lhe ter beijado a mão, disse:
– Minha senhora, Vossa Majestade tem aqui, no Trianon, alguma sala onde, sem ser vista,

possa ver o que se passa?

– Tenho a minha biblioteca – respondeu a rainha; – por detrás das estantes há frestas que

dão para o meu gabinete; e, algumas vezes, na hora da merenda, divertia-me com a Srª. de
Lamballe ou com a Srª. de Taverney, quando eu a tinha, em ver as visagens cómicas do abade
Vermond, ao achar em cima da mesa algum panfleto em que se tratava dele.

– Muito bem, minha senhora – respondeu o Sr. de Crosne. – Agora, tenho lá em baixo

uma carruagem, que queria mandar entrar no pátio do palácio, de modo que só Vossa Majestade
possa ver o que vem dentro.

– É muito fácil – respondeu a rainha. – Onde está essa carruagem?
– No primeiro pátio, minha senhora.
A rainha tocou a campainha, e apareceu alguém para receber as suas ordens.
– Mande entrar no grande vestíbulo a carruagem que o Sr. de Crosne lhe designar, e feche

as portas do vestíbulo de modo que fique tudo escuro, e que ninguém veja antes de mim as
curiosidades que o Sr. de Crosne me traz.

A ordem foi executada. Sabiam respeitar, muito mais do que se fossem ordens, os

caprichos da rainha. A carruagem entrou debaixo da abóbada, próximo da casa dos guardas, e
vazou o conteúdo no sombrio corredor.

– Agora, minha senhora – disse o Sr. de Crosne – digne-se acompanhar-me ao seu

gabinete e dar ordem para que deixem entrar o meu secretário, com o que trouxer, na sua
biblioteca.

Dez minutos depois, a rainha espreitava, toda palpitante, por detrás das estantes.
Viu entrar na biblioteca um vulto coberto com um véu, que o secretário descobriu e que,

reconhecido, fez soltar um grito de admiração à rainha. Era Oliva, com um dos trajos mais
predilectos de Maria Antonieta.

Vinha com o vestido verde de listas ondeadas e pretas, o penteado elevado que a rainha

preferia, anéis semelhantes aos dela, sapatos de cetim verde com saltos enormes; era, numa
palavra, a própria Maria Antonieta, menos o sangue dos Césares, que era substituído pelo fluido
plebeu, origem de todas as voluptuosidades do Sr. Beausire.

A rainha julgou ver-se num espelho oposto, e devorou com a vista essa aparição.
– Que diz Vossa Majestade dessa semelhança? – perguntou então o Sr. de Crosne,

triunfando do efeito que produzira.

– Digo... Digo, senhor... – balbuciou a rainha fora de si. – Ah! Se estivesse aqui presente!
– Que quer Vossa Majestade?
– Nada, senhor, nada, senão que o faça constar bem a el-rei – respondeu a rainha.
– E que o Sr. conde de Provença veja, não é verdade, minha senhora?
– Oh! Agradecida, Sr. de Crosne, muito agradecida lhe fico. Mas que se há-de fazer desta

mulher?

– Será a esta mulher que se atribui tudo que se tem feito? – perguntava o Sr. de Crosne.
– Tem certamente o fio do trama?
– Quase, minha senhora.
– E o Sr. de Rohan?
– O Sr. de Rohan ainda não sabe nada.
– Oh! – disse a rainha escondendo a cabeça entre as mãos – essa mulher, agora vejo, foi

com quem se enganou o cardeal!

– Assim será, minha senhora; mas se é o engano do Sr. de Rohan, é também o crime de

outra pessoa!

– Procure bem, senhor; tem entre as suas mãos a honra da casa de França.

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– E acredite, minha senhora, que está em boas mãos – respondeu o Sr. de Crosne.
– O processo? – disse a rainha.
– Está em andamento. Todos negam, mas espero a ocasião oportuna para apresentar este

documento que aí tem na sua biblioteca.

– E a Srª. de La Motte?
– Não sabe que encontrei esta rapariga, e acusa o Sr. de Cagliostro de ter influído no

cardeal até lhe fazer perder o siso.

– E o Sr. de Cagliostro?
– O Sr. de Cagliostro, que mandei interrogar, prometeu ir hoje pela manhã falar-me.
– É homem perigoso.
– Há-de ser um homem útil. Mordido por uma víbora, como a Srª. de La Motte, há-de

absorver a peçonha, e há-de dar-nos o contraveneno.

– Espera revelações?
– Tenho a certeza de as obter.
– Como, senhor? – disse Maria Antonieta – Oh! Diga-me tudo quanto possa sossegar-me.
– Eis aqui as minhas razões, minha senhora; a Srª. de La Motte habitava na rua de Saint-

Claude...

– Bem sei, bem sei – disse a rainha corando.
– Sim, Vossa Majestade honrou essa mulher com a sua caridade.
– Deu-me bom pago, não é verdade? Bem, ela habitava na rua de Saint-Claude...
– E o Sr. conde de Cagliostro habitava exactamente defronte.
– E supõe?...
– Que se existiu um segredo entre esses dois vizinhos, o segredo deve pertencer a um

deles. Mas perdão, minha senhora, é quase chegada a hora de esperar em Paris o Sr. de
Cagliostro, e por coisa nenhuma do mundo quisera demorar essas explicações.

– Vá, senhor, vá; e mais uma vez fique certo da minha gratidão.
Depois, tendo saído o Sr. de Crosne, banhada em pranto, exclamou:
– Eis que vejo chegado o princípio da minha justificação! Vou ler o meu triunfo em todos

os rostos. O único entre os meus afeiçoados a quem tenho empenho de provar que sou inocente,
esse não o hei-de ver!

Entretanto, o Sr. de Crosne corria para Paris e entrava em casa, onde o esperava o Sr. de

Cagliostro.

Este sabia tudo desde a véspera. Ia a casa de Beausire, cujo retiro conhecia, para lhe

aconselhar que saísse de França, quando no caminho o encontrou no carro, entre os dois agentes.
Oliva vinha escondida no fundo, toda lacrimosa e envergonhada.

Beausire viu o conde que passava na sua carruagem, e conheceu-o. A lembrança de que

aquele senhor misterioso e poderoso lhe serviria de alguma utilidade, mudou todas as idéias que
tinha concebido de nunca abandonar Oliva.

Renovou aos agentes a proposta de evasão, que lhe tinham feito. Estes aceitaram cem

luíses que ele levava, e largaram-no apesar das lágrimas de Nicola.

Entretanto, Beausire, abraçando a sua amante, disse-lhe ao ouvido:
– Espera; vou trabalhar para te salvar.
E correu rapidamente na direcção em que ia o conde de Cagliostro.
Este tinha parado para ver o que se passasse; já não precisava de ir procurar Beausire,

visto que ele voltava. Era-lhe mais conveniente esperá-lo, do que ter corrido ao seu encontro.

Cagliostro esperava portanto desde meia hora ao virar da estrada, quando viu chegar,

pálido, arquejante, semimorto, o desgraçado amante de Oliva.

Beausire, ao aspecto da carruagem parada, soltou um grito de alegria semelhante ao do

náufrago que alcança uma tábua.

– Que sucedeu, meu filho? – lhe disse o conde auxiliando-o a subir para a carruagem.
Beausire contou toda a sua lamentável história que Cagliostro ouviu em silêncio.

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– Está perdida – lhe disse ele então.
– Como? – bradou Beausire.
Cagliostro contou-lhe o que ele não sabia, a intriga da rua de Saint-Claude e a de

Versalhes.

Beausire esteve a ponto de desmaiar.
– Salve-a! Salve-a! – disse ele caindo de joelhos na carruagem – que eu dou-lha, se ainda

lhe tem amor.

– Meu amigo – redargüiu Cagliostro – está enganado, nunca amei a Srª. Oliva; só tinha

um fim, e era arrancá-la a essa vida de devassidão, de que o senhor lhe fazia participar.

– Mas... – disse Beausire admirado.
– Admira-se disso? Saiba então que sou um dos síndicos de uma sociedade de reforma

moral que tem por fim arrancar ao vício tudo quanto pode oferecer probabilidades de se
emendar. Eu poderia curar Oliva tirando-lha, e é esse o motivo por que lha tirei. Ela, que nunca
ouviu da minha boca uma só palavra de galanteio, que diga se os meus serviços não foram
sempre desinteressados!

– Maior razão, senhor; salve-a! Salve-a!
– Eu experimentarei; mas isso dependerá de você, Beausire.
– Peça-me a vida.
– Não pedirei tanto. Volte comigo a Paris, e se seguir pontualmente as minhas instruções,

talvez salvemos a sua amante. Só ponho uma condição.

– Qual, senhor?
– Eu lha direi em minha casa, em Paris.
– Oh! Aceito antecipadamente; mas quero tornar a vê-la! Quero tornar a vê-la!
– É exactamente aquilo em que estou pensando; antes de duas horas, tornará a vê-la.
– E hei-de abraçá-la?
– Conto com isso; e ainda mais, há-de dizer-lhe o que ouvir de mim.
A carruagem que conduzia Cagliostro e Beausire meteu pela estrada de Paris.
Ao cabo de duas horas, era noite e tinham alcançado a carruagem em que ia Oliva.
E uma hora depois, Beausire comprava por cinqüenta luíses aos dois agentes o direito de

abraçar Nicola e de lhe dizer ao ouvido as recomendações do conde.

Os agentes admiraram esse amor apaixonado e contavam ganhar assim uns cinqüenta

luíses a cada hora.

Mas Beausire não tornou a aparecer, e a carruagem de Cagliostro levou-o rapidamente

para Paris, onde se preparavam tantos acontecimentos.

Eis aqui o que muito importava que o leitor soubesse antes de lhe mostrarmos o Sr. de

Cagliostro conversando com o Sr. de Crosne.

Agora podemos fazê-lo entrar no gabinete do chefe da polícia.

LXXXIX

O gabinete do chefe da polícia


O Sr. de Crosne sabia de Cagliostro quanto um hábil chefe de polícia pode saber de um

homem que habita o seu país, e não é dizer pouco. Sabia todos os seus antigos nomes, todos os
seus segredos de alquimista, de magnetismo e de adivinhação: conhecia as suas pretensões à
ubiqüidade, à regeneração perpétua: considerava-o um fidalgo charlatão.

O Sr. de Crosne era forte de espírito, conhecia bem todos os recursos do seu emprego,

era benquisto da corte, indiferente à lisonja, não se ufanava dos seus méritos, enfim, era um
homem sobre quem nem todos tinham império.

Àquele não podia Cagliostro oferecer, como ao Sr. de Rohan, luíses de ouro ainda

quentes do forno hermético; àquele não teria Cagliostro apontado uma pistola, como Bálsamo

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fizera ao Sr. de Sartines; a respeito daquele, não tinha Bálsamo nenhuma Lorenza para consultar,
e Cagliostro tinha que prestar contas.

E por isso o conde, em vez de esperar os acontecimentos, julgara urgente pedir audiência

ao magistrado.

O Sr. de Crosne conhecia a vantagem da sua posição e aprontava-se para usar dela.

Cagliostro conhecia as dificuldades da sua e preparava-se para sair bem dela. Esta partida de
xadrez jogada a jogo descoberto, tinha um bolo, que um dos dois jogadores não suspeitava, e esse
jogador, forçoso é confessá-lo, não era o Sr. de Crosne.

Este não conhecia em Cagliostro, já o dissemos, senão o charlatão, ignorava

absolutamente o adepto. Nas pedras que a filosofia semeou no caminho da monarquia tropeçou
muita gente, porque não eram vistas.

O Sr. de Crosne esperava de Cagliostro revelações sobre o colar, e sobre as traficâncias da

Srª. de La Motte. Era esta a sua desvantagem. Enfim, tinha o direito de interrogar, de meter na
prisão, e era essa a sua superioridade.

Recebeu o conde como homem que conhece a sua importância, mas que não quer ser

incivil com ninguém, nem sequer com um fenómeno.

Cagliostro acautelou-se. Quis só ficar parecendo um grande fidalgo, a única das suas

fraquezas que julgou dever deixar suspeitar.

– O senhor – disse-lhe o chefe da polícia – pediu-me uma audiência; chego agora mesmo

de Versalhes, expressamente para o receber.

– Supus que tivesse algum interesse em interrogar-me acerca dos acontecimentos que se

estão passando, e como homem que conhece todo o mérito de V. Ex

ª

. e toda a importância das

suas funções, vim, e aqui me tem.

– Interrogá-lo? – disse o magistrado afectando surpresa; – mas, diga-me sobre o quê, e de

que género hão-de ser as perguntas.

– O senhor – redargüiu Cagliostro – ocupa-se muito da Srª. de La Motte, da desaparição

do colar...

– Tê-lo-ia porventura achado? – perguntou o Sr. de Crosne com ironia.
– Não – respondeu o conde com gravidade; – mas se não achei o colar, pelo menos sei

que a Srª. de La Motte morava na rua de Saint-Claude.

– Defronte de sua casa; eu sabia-o – disse o magistrado.
– Então, se sabe já o que a Srª. de La Motte fazia... Não falemos mais nisso.
– Pelo contrário – disse o Sr. de Crosne com ar indiferente – falemos sobre esse assunto.
– Oh! Isto não tinha interesse senão a propósito da Oliva – disse Cagliostro; – mas como

sabe tudo a respeito da Srª. de La Motte, nada tenho de novo a dizer-lhe.

Ao ouvir o nome de Oliva, o chefe da polícia estremeceu.
– Que diz da Oliva? – perguntou ele; – quem é a Oliva?
– Não o sabe? Ah! Senhor, é uma curiosidade que eu ficaria admirado de lhe descobrir.

Imagine uma rapariga tão bonita, uma estátua... uns olhos azuis, um oval de rosto perfeito; olhe,
um género de formosura que faz lembrar um pouco a de Sua Majestade a rainha.

– Ah! Ah! – disse o Sr. de Crosne – e depois?
– Depois! Essa rapariga vivia mal, e isso mortificava-me; tinha-a conhecido outrora como

criada de servir em casa de um amigo meu, o Sr. de Taverney.

– O barão? Aquele que morreu noutro dia?
– Exactamente, sim, aquele que morreu. Tinha além disso pertencido a um homem sábio,

que o Sr. não conhece, e que... Mas estou complicando as coisas, e conheço que o estou
incomodando.

– Pelo contrário, tenha a bondade de continuar, rogo-lhe. Essa Oliva, diz o senhor?...
– Vivia mal, como tive a honra de lhe dizer, numa espécie de miséria, com certo velhaco,

o amante, que a roubava e lhe batia: um dos hóspedes mais ordinários das suas prisões, senhor,
um espertalhão que talvez não conheça.

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– Um tal Beausire, talvez? – disse o magistrado, estimando parecer bem informado.
– Ah! Conhece-o! É admirável! – disse Cagliostro com espanto. – Muito bem, vejo que é

ainda mais adivinho do que eu! Ora, um dia, em que o tal Beausire tinha roubado e tosado a
pobre rapariga mais do que era costume, refugiou-se ela em minha casa e pediu-me protecção.
Como sou dotado de bom coração, tive dó dela, e dei-lhe não sei que cantinho, num quarto de
um dos meus palácios.

– Em sua casa!... Ela estava em sua casa? – exclamou o magistrado com surpresa.
– Certamente – redargüiu Cagliostro fingindo também admirar-se. – Por que lhe não

daria eu agasalho? Sou homem solteiro.

E desatou a rir com uma franqueza tão bem estudada, que o Sr. de Crosne ficou

inteiramente logrado.

– Em sua casa? – replicou ele; – é então esse o motivo por que não a encontraram os

meus agentes, que tanto se afadigaram em procurá-la.

– Como, procuravam-na! – disse Cagliostro. – Procuravam essa rapariga! Fez alguma

coisa que eu não soubesse?...

– Não, senhor, não; prossiga.
– Concluí, nada mais tenho que dizer. Dava-lhe um quarto em minha casa; é tudo.
– Não, não, Sr. conde, isso não é tudo, pois que ainda há pouco parecia ligar a esse nome

de Oliva o nome da Srª. de La Motte.

– Ah! Por causa da vizinhança – disse Cagliostro.
– Ainda há outro motivo, Sr. conde... Não foi sem um fim que disse que a Srª. de La

Motte e Oliva eram vizinhas.

– Oh! Mas isso é por uma circunstância que seria inútil referir. Não é ao primeiro

magistrado do reino que se deve vir contar estes mexericos de proprietário ocioso.

– Causa-me interesse, senhor, e mais do que pensa; porque essa Oliva, que diz ter alojado

em sua casa, foi encontrada na província.

– Que me diz?...
– Com o tal Beausire...
– Disso desconfiava eu! – bradou Cagliostro. – Ela estava com Beausire? Ah! Muito bem!

Então restitui-se o crédito à Srª. de La Motte.

– Como! Que quer dizer? – redargüiu o Sr. de Crosne.
– Digo, senhor, que depois de ter por um momento suspeitado da Srª. condessa de La

Motte, faço-lhe plena e inteira reparação.

– Suspeitado! De quê?
– Santo Deus! Dá então ouvidos com paciência a todas estas historietas? Pois bem! Saiba

que no momento em que eu esperava corrigir a tal Oliva, encaminhá-la para o trabalho e para a
honra (eu ocupo-me de moral), nesse momento apareceu alguém que ma levou.

– De sua casa?
– De minha casa.
– É singular!
– Não é assim? E eu teria jurado que a Srª. de La Motte... Aí está como são perigosos os

juramentos.

O Sr. de Crosne aproximou-se de Cagliostro.
– Vamos – disse ele – formule isso com mais precisão, se faz favor.
– Oh! Senhor, agora, que achou Oliva com Beausire, nada me fará pensar mais na Srª. de

La Motte, nem nas suas assiduidades, nem nos seus sinais, nem nas suas misteriosas
correspondências.

– Com Oliva?
– Sim.
– A Srª. de La Motte e Oliva tinham relações?
– Muitas.

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– Falavam-se e encontravam-se?
– A Srª. de La Motte tinha achado meio de fazer sair Oliva todas as noites.
– Todas as noites! Está certo disso?
– Tanto quanto o pode estar um homem do que viu e ouviu.
– Oh! Senhor, está-me aí dizendo coisas, que eu de boa vontade teria pago a mil libras

por cada palavra! Que felicidade que é para mim o senhor fazer ouro!

– Já não o faço, saía-me muito caro.
– Mas é amigo do Sr. de Rohan?
– Creio que sim.
– E deve saber que parte tomava na sua escandalosa questão esse elemento de intriga, que

chamam a Srª. condessa de La Motte?

– Não, e quero ignorá-lo.
– Mas conhece talvez as conseqüências desses passeios dados por Oliva e pela Srª. de La

Motte?

– Senhor, há certas coisas que o homem prudente deve sempre tratar de ignorar –

redargüiu o Sr. de Cagliostro em tom sentencioso.

– Vou ter a honra de lhe perguntar ainda uma coisa – disse vivamente o Sr. de Crosne. –

Tem provas de se ter correspondido a Srª. de La Motte com Oliva?

– Tenho um cento delas.
– Quais são?
– Bilhetes da Srª. de La Motte, que ela atirava para casa de Oliva com um arco de flecha,

que sem dúvida se lhe encontrará em casa. Vários desses bilhetes, enrolados em pedacinhos de
chumbo, não chegaram ao seu destino. Caíram à rua, e os meus criados e eu apanhamos muitos.

– O senhor poderia entregá-los à justiça?
– Oh! Senhor, são de uma inocência tal, que não faria escrúpulo nisso e que não julgaria

merecer a menor censura da Srª. de La Motte por semelhante motivo.

– E... As provas das convivências, dos encontros de ambas, da condessa e de Oliva?
– Possuo mil.
– Dê-me uma só, peço-lho.
– A melhor, tê-la-á. Parece que a Srª. de La Motte tinha toda a facilidade de entrar em

minha casa para ver Oliva, porque a vi lá no mesmo dia em que esta desapareceu.

– No mesmo dia?
– Todos os meus criados a viram assim como eu.
– Ah!... E o que ia ela lá fazer, se Oliva tinha desaparecido?...
– É o que indaguei de mim mesmo primeiramente, sem o poder adivinhar. Eu tinha visto

a Srª. de La Motte apear-se de uma carruagem de posta, que ficou parada, na rua de Roi-Doré. Os
meus criados viram igualmente essa carruagem parada no mesmo sítio durante muito tempo, e o
que pensei, confesso-o, é que a Srª. de La Motte queria ligar Oliva a si.

– E consentia?
– Por que não? Essa Srª. de La Motte é uma alma caritativa, e favorecida da sorte. Tem

entrada na corte. Por que motivo a teria eu impedido de me livrar de Oliva? Teria feito mal,
como vê, porque outro ma levou para tornar a perdê-la.

– Ah! – disse o Sr. de Crosne meditando profundamente – a Srª. Oliva estava hospedada

em sua casa?

– Estava, sim, senhor.
– Ah! A Srª. Oliva e a Srª. de La Motte eram conhecidas uma da outra, encontravam-se,

saíam juntas?

– Sim, senhor.
– Ah! A Srª. de La Motte foi vista em sua casa, no dia do roubo de Oliva?
– Sim, senhor.
– Ah! Pensou que a condessa queria ligar-se com essa rapariga?

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– Que poderia eu pensar a não ser isso?
– Mas o que disse a Srª. de La Motte quando não achou Oliva em sua casa?
– Pareceu-me ficar perturbada.
– Julga que foi Beausire quem a levou?
– Suponho-o unicamente pelo que me disse; aliás não teria suspeitado coisa nenhuma.

Esse homem não sabia onde estava Oliva. Quem lho poderia ter dito?

– Ela mesma.
– Não o creio, porque em lugar de se fazer roubar de minha casa por ele, teria ela fugido

de minha casa para a dele, e rogo-lhe que acredite que Beausire não teria entrado em minha casa,
se a Srª. de La Motte não lhe tivesse mandado uma chave.

– Ela tinha uma chave?
– Isso não oferece dúvida.
– Em que dia a roubaram? Tenha a bondade de mo dizer – perguntou o Sr. de Crosne,

subitamente esclarecido pelo facho que Cagliostro lhe apresentava tão habilmente.

– Oh! Senhor, nisso não me enganarei eu: foi na véspera do dia de S. Luís.
– É isso – bradou o chefe da polícia – é isso! O senhor acaba de prestar um distinto

serviço ao Estado.

– Estimo isso muito, Sr. de Crosne.
– E receberá, por tal motivo, os agradecimentos.
– O maior agradecimento está na minha consciência – disse o conde.
O Sr. de Crosne cortejou-o.
– Posso contar com as provas de que ainda há pouco falávamos? – disse ele.
– Estou sempre pronto para obedecer em tudo à justiça.
– Pois bem! Aceito a sua palavra. Até à vista, Sr. conde.
E despediu Cagliostro, que saindo, disse:
– Ah! Condessa, ah! víbora! Quiseste acusar-me, mas parece-me que mordeste na língua;

cautela com os dentes!

XC

Interrogatórios


Enquanto o Sr. de Crosne conversava com Cagliostro, apresentava-se o Sr. de Breteuil na

Bastilha, da parte de el-rei, para fazer perguntas ao Sr. de Rohan.

O encontro dos dois inimigos não podia ser agradável. O Sr. de Breteuil conhecia a

soberba do Sr. de Rohan; vingara-se dele por uma forma terrível bastante para que o seu
procedimento deixasse de ser o mais cortês, e foi mais do que isso; mas o Sr. de Rohan recusou
responder.

O chanceler-mor insistiu; mas o Sr. de Rohan declarou que se conformava com as

medidas que o parlamento e os seus juízes adoptassem.

O Sr. de Breteuil teve de recuar ante a vontade inabalável do acusado.
Mandou chamar ao quarto a Srª. de La Motte, que estava redigindo as suas memórias, e

que obedeceu logo à chamada.

O Sr. de Breteuil explicou-lhe francamente a sua situação, que ela conhecia melhor do

que ninguém. Ela respondia que tinha provas da sua inocência, as quais apresentaria quando fosse
preciso. O Sr. de Breteuil observou-lhe que isso era urgentíssimo.

Joana recitou toda a fábula que compusera; eram sempre as mesmas insinuações contra

todos, a mesma afirmação de que não sabia donde partiam os papéis falsos de que a acusavam de
ser autora.

Declarou também, que estando aquele negócio afecto ao parlamento, nada diria que fosse

absolutamente verdade senão na presença do Sr. cardeal, e segundo as acusações, que sobre ela

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fizesse pesar.

O Sr. de Breteuil disse-lhe então que o cardeal faria pesar tudo sobre ela.
– Tudo? – disse Joana – mesmo o roubo?
– Mesmo o roubo.
– Tenha a bondade de mandar dizer ao Sr. cardeal – respondeu Joana friamente – que o

emprazo formalmente a não continuar por mais tempo em tão mau sistema de defesa.

E foi tudo.
Mas o Sr. de Breteuil não estava satisfeito. Precisava algumas explicações íntimas.

Precisava para a sua lógica o enunciado das causas que tinham levado o cardeal a tanta
temeridade para com a rainha, a rainha a tanta cólera contra o cardeal.

Precisava a explicação de todos os relatórios colhidos pelo Sr. conde de Provença, que

tinham passado a boatos.

O chanceler-mor era homem de bom senso, sabia actuar no carácter de uma mulher;

portanto, prometeu tudo à Srª. de La Motte se acusasse positivamente alguém.

– Tome cuidado – lhe disse ele – não dizendo coisa nenhuma, acusa a rainha; e, se

persiste nisso, olhe que será condenada como ré de lesa-majestade; é a vergonha! É o baraço!

– Eu não acuso a rainha – disse Joana; – mas por que me acusam a mim?
– Acuse então alguém – disse o inflexível Breteuil; – só tem esse meio de se livrar.
Conservou-se em prudente silêncio, e essa sua primeira entrevista com o chanceler-mor

nenhum resultado teve.

Entretanto, espalhava-se a notícia de que haviam surgido provas, que os brilhantes

tinham sido vendidos em Inglaterra, onde o Sr. Reteau de Villette fora preso pelos agentes do Sr.
de Vergennes.

O primeiro assalto que Joana teve de sustentar foi terrível. Confrontada com o tal Reteau,

que ela julgava ter por aliado até à morte, ouviu-o com terror confessar humildemente que era
um falsário, que o recibo dos brilhantes fora escrito por ele, assim como a carta da rainha,
falsificando ao mesmo tempo a assinatura dos ourives e a de Sua Majestade.

Perguntado acerca dos motivos que o tinham levado a cometer tais crimes, respondeu

que fora a pedido da Srª. de La Motte.

Fora de si, furiosa, negou, defendeu-se como uma leoa; sustentou não ter nunca visto

nem conhecido o tal Sr. Reteau de Villette.

Mas nisto foi vigorosamente combatida e derrotada por duas testemunhas.
A primeira, foi um cocheiro de carruagem de aluguel, achado pelo Sr. de Crosne, que

declarava ter conduzido à rua Montmartre, no dia e hora que Reteau designara, uma senhora
vestida de tal e tal modo.

Essa senhora, rodeando-se de tanto mistério, recebida pelo cocheiro no bairro do Marais,

quem podia ser senão a Srª. de La Motte, que morava na rua de Saint-Claude?

E quanto à familiaridade que existia entre os dois cúmplices, como se poderia negar,

quando uma testemunha afirmava ter visto, na véspera do dia de S. Luís, na almofada de uma
carruagem de posta, donde se apeara a Srª. de La Motte, o Sr. Reteau de Villette, fácil de conhecer
pelo seu aspecto pálido e inquieto?

A testemunha era um dos principais criados de Cagliostro.
Esse nome produziu em Joana um sobressalto e impeliu-a aos extremos. Desfez-se em

acusações contra Cagliostro, que ela declarava ter por seus sortilégios e encantos fascinado o
espírito do cardeal de Rohan, ao qual inspirava assim idéias criminosas contra a majestade real.

Era este o primeiro elo da acusação de adultério.
O Sr. de Rohan defendeu-se, defendendo Cagliostro. Negou quanto dizia respeito à

rainha. Negou tão obstinadamente, que Joana, desesperada, articulou, pela primeira vez, a
acusação de um amor insensato do cardeal pela rainha.

O Sr. de Cagliostro pediu, e obteve, ser encarcerado, a fim de poder provar a toda a gente

a sua inocência. Acusadores e juízes inflamaram-se, como sucede ao primeiro sopro da verdade, e

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a opinião pública tomou logo o partido do cardeal e de Cagliostro contra a rainha.

Foi então que a desventurada princesa, para fazer compreender a sua perseverança em

seguir o processo, deixou publicar os relatórios dados ao rei a respeito dos passeios nocturnos
nos jardins, e dirigindo-se ao Sr. de Crosne, lhe ordenou que dissesse a verdade do que sabia.

O golpe, habilmente calculado, caiu sobre Joana, e esteve a ponto de a aniquilar para

sempre.

O interrogador, em sessão plena para a instauração do processo, ordenou ao Sr. de Rohan

que declarasse o que sabia desses passeios nocturnos nos jardins de Versalhes.

O cardeal redargüiu que não sabia mentir, e que apelava para o testemunho da Srª. de La

Motte.

Esta negou que tivesse havido promessas feitas com o seu consentimento, nem que ela

soubesse.

Declarou falsos os relatórios e narrações que a denunciavam como tendo aparecido nos

jardins, quer em companhia da rainha, quer na do cardeal.

Esta declaração tornava inocente Maria Antonieta, se tivesse sido possível crer nas

palavras de uma mulher acusada de falsidade e de roubo. Mas vindo dessa parte, a justificação
parecia ser um acto de obséquio, e a rainha não quis ser justificada desse modo.

Além disso, quando Joana bradou em voz mais alta, que nunca tinha aparecido de noite

no jardim de Versalhes, e que nunca vira ou soubera coisa alguma dos negócios particulares da
rainha e do cardeal, nesse momento apareceu Oliva, testemunha viva, que fez mudar a opinião e
destruiu todo o edifício de mentiras erigido pela condessa.

Como pôde ela evitar que aquele desabamento a sepultasse debaixo das ruínas? Como

pôde erguer-se mais terrível e odienta? Não explicamos o fenômeno só pela vontade, explicámo-
lo pela fatal influência que perseguia a rainha.

Oliva foi acareada com o cardeal. Que terrível golpe! O Sr. de Rohan conheceu,

finalmente, que fora burlado de um modo infame! Aquele homem, cheio de delicadeza e de
nobres paixões, descobriu que uma aventureira, associada com uma velhaca, o tinham levado a
insultar em voz alta a rainha de França, uma mulher que ele amava e que estava inocente!

O efeito daquela aparição no Sr. de Rohan seria, a nosso ver, a cena mais dramática e

mais importante deste negócio, se, aproximando-nos da história, não fôssemos cair na lama, no
sangue e no horror.

Quando o Sr. de Rohan viu Oliva, essa rainha de praças públicas, e se lembrou da rosa,

dos apertos de mão, e dos banhos de Apolo, tornou-se pálido e quase que ia perdendo os
sentidos; teria vertido todo o seu sangue aos pés de Maria Antonieta, se naquele momento a visse
ao lado da outra.

Quantos perdões, quantos remorsos se lhe não escaparam da alma, para irem com as suas

lágrimas purificar o último degrau daquele trono, onde um dia lançara o seu desprezo com a
saudade do amor desdenhado!

Mas até essa consolação lhe era interdita; não podia aceitar a identidade de Oliva sem

confessar que amava a verdadeira rainha; a própria confissão do seu erro suportava uma
acusação, um enxovalho.

Deixou Joana negar tudo. Calou-se.
E quando o Sr. de Breteuil quis, com o Sr. de Crosne, obrigar Joana a explicar-se mais

extensamente, esta respondeu:

– O melhor meio de provar que a rainha não foi de noite à quinta, é mostrar uma mulher

que se pareça com ela, e que diga ter estado na quinta. Mostram-na; está tudo provado.

Esta infame insinuação achou eco. Punha ainda em dúvida a verdade.
Mas como Oliva, no seu ingénuo desassossego, dava todas as explicações e todas as

provas, e lhe davam a ela mais crédito do que à condessa, Joana de La Motte recorreu a um meio
desesperado: confessou.

Confessou que tinha levado o cardeal a Versalhes; que sua excelência queria a todo o

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transe ver a rainha, fazer-lhe os protestos da sua respeitosa amizade; confessou, porque pressentia
atrás de si um partido inteiro, que não teria se persistisse na negativa; confessou, porque,
acusando a rainha, tinha por auxiliares todos os inimigos desta, e eram numerosos.

Então, pela décima vez nesse infernal processo, mudaram os papéis: o cardeal

representou o de logrado, Oliva o de prostituta sem poesia nem sensualidade, Joana o de
intrigante; não podia escolher melhor.

Mas como para que vingasse este plano ignóbil era forçoso que também a rainha

representasse um papel, deram-lhe o mais odioso, o mais absurdo, o mais comprometedor para a
dignidade real: o de uma namoradeira estouvada, de uma doidivanas, que trama mistificações.
Maria Antonieta tornou-se em Dorimena conspirando com Fronsina contra o Sr. Jourdain,
cardeal.

Joana declarou que esses passeios eram feitos com o consentimento de Maria Antonieta

que, escondida por detrás de uns arbustos, ria às gargalhadas, ao ouvir os discursos apaixonados
do Sr. de Rohan.

Eis aí o que escolheu como último entrincheiramento aquela ladra, que não sabia onde

esconder o roubo; foi no manto real, feito da honra de Maria Teresa e de Maria Leckzinska.

A rainha sucumbiu a esta última acusação, porque não podia provar a sua falsidade; não

podia, porque, exasperada, Joana de La Motte declarou que publicaria todas as cartas amorosas
escritas pelo Sr. de Rohan à rainha, cartas que ela efectivamente possuía, ardentes e duma paixão
insensata.

Não podia, porque a Srª. Oliva, que afirmava ter sido levada por Joana à quinta de

Versalhes, não tinha provas de que estivessem ou não escutando por detrás dos arbustos.

Finalmente, a rainha não podia provar a sua inocência, porque muitas pessoas tinham

interesse em tomar por verdades aquelas infames mentiras.

XCI

Última esperança perdida


Pelo modo por que Joana dirigira o negócio, tornava-se completamente impossível, como

se vê, descobrir a verdade.

Convencida irrecusavelmente do extravio dos brilhantes pelo testemunho de vinte

pessoas dignas de fé, Joana não podia decidir-se a passar por uma ladra vulgar.

Precisava ver a vergonha de alguém ao lado da sua.
Persuadia-se que a bulha do escândalo de Versalhes cobriria também o seu crime, e que

se fosse condenada, a sentença atacaria a rainha primeiro do que ninguém.

O seu cálculo saiu errado.
A rainha, aceitando francamente o debate sobre a dupla questão, o cardeal, sofrendo o

seu interrogatório, juízes e escândalo tiravam à sua inimiga a auréola de inocência, que ela se dera
ao trabalho de dourar com todas as suas hipócritas reservas.

Mas, caso estranho! O público ia ver desenrolar-se a seus olhos um processo no qual

ninguém seria inocente, nem aqueles a quem a justiça absolvesse.

Depois de confrontações sem número, nas quais o cardeal se mostrava constantemente

sereno e civil, até para com Joana, e em que esta se revelara violenta e prejudicial a todos, a
opinião pública em geral e a dos juízes em particular, achou-se irrevogavelmente formada.

Todos os incidentes se tinham tornado pouco mais ou menos impossíveis, todas as

revelações estavam esgotadas.

Joana conheceu que nenhum efeito tinha produzido nos juízes.
Resumiu portanto no silêncio da prisão todas as suas forças, todas as suas esperanças.
Os que rodeavam ou serviam o Sr. de Breteuil aconselhavam a Joana que poupasse a

rainha e carregasse sem piedade sobre o cardeal.

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Quantos cercavam o cardeal, família poderosa, juízes parciais pela causa popular, clero

fecundo em recursos, aconselhavam à Srª. de La Motte que dissesse toda a verdade,
desmascarasse as intrigas da corte e levasse a bulha a tal ponto, que dela se seguisse um
atordoamento mortal nas testas coroadas.

Esse partido procurava intimidar Joana; fazia-lhe sentir, o que aliás ela sabia muito bem,

que a maior parte dos juízes estavam inclinados a favor do cardeal; que se despedaçaria
inutilmente na luta, e acrescentava que talvez, meio perdida como estava, mais valia deixar-se
condenar pela questão dos brilhantes do que recordar os crimes de lesa-majestade, lodo
ensangüentado que jazia no fundo dos códigos feudais, e que nunca traziam à superfície de um
processo, sem que consigo acarretasse a morte.

Esse partido parecia certo da vitória. E estava-o.
O entusiasmo do povo manifestava-se abertamente a favor do cardeal.
Os homens admiravam-lhe a paciência, as mulheres a discrição. Os homens indignavam-

se de que ele tivesse sido tão vilmente ludibriado; as mulheres não queriam acreditar que o tivesse
sido.

Para muita gente, Oliva, apesar de se poder ver, com a sua semelhança e as suas

confissões, nunca existira ou se existia, é porque Maria Antonieta a tinha expressamente
inventado para aquele caso.

Em tudo isto reflectia Joana.
Os seus próprios advogados abandonavam-na, os juízes não disfarçavam a repulsão que

por ela tinham; os Rohans acusavam-na vigorosamente; a opinião pública desdenhava-a.

Resolveu um último golpe, para inquietar os juízes, assustar os amigos do cardeal, e

aumentar o ódio público contra Maria Antonieta.

O seu meio devia ser este, quanto à corte:
Fazer crer que tinha continuamente poupado a rainha, e que se a fizessem desesperar,

revelaria tudo.

Quanto ao cardeal, tratava de fazer crer que só guardava silêncio para lhe imitar a

delicadeza; mas que, no instante em que ele falasse, libertada pelo exemplo, também ela falaria, e
que ambos descobririam ao mesmo tempo a verdade e a sua inocência recíproca.

Afinal, não passava do resumo do seu procedimento durante a instauração do processo.
Mas, é bem sabido que não há manjar que, por mais conhecido que seja, não possa

apresentar-se como novo, graças a novos temperos.

Eis o que a condessa imaginou para apresentar os seus dois estratagemas.
Escreveu à rainha uma carta, cujos termos bastam para revelar o seu carácter e alcance:

“Senhora
“Apesar de tudo que a minha resolução tem de difícil e rigorosa, ainda não soltei uma

única queixa.”

“Todos os rodeios, que se têm empregado para me extorquir confissões, só têm

contribuído para me fortificar na resolução de nunca comprometer a minha soberana.”

“Entretanto, por mais persuadida que eu esteja de que a minha constância e a minha

discrição devam facilitar-me os meios de sair do embaraço em que me vejo, confesso que os
esforços da família do escravo (assim chamava a rainha ao cardeal dos dias da sua reconciliação)
fazem-me recear de cair vítima dele.”

“Um demorado cativeiro, acareações que nunca acabam, a vergonha e o desespero de me

ver acusada de um crime de que estou inocente, têm enfraquecido a minha coragem, e receio que
a minha constância sucumba a tantos golpes juntos.”

“É fácil a Vossa Majestade, com uma única palavra, pôr termo a este desgraçado negócio

por intervenção do Sr. de Breteuil, que pode dar-lhe, aos olhos do ministro (o rei), a cor que a sua
inteligência lhe sugerir, sem que Vossa Majestade fique por forma alguma comprometida. É o receio em
que estou de ser obrigada a revelar tudo, que me impele a dar este passo, persuadida que Vossa

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Majestade terá em atenção os motivos que me obrigam a isso, e dará as suas ordens para que eu
seja tirada da desagradável situação em que me encontro.”

“Sou, com profundo respeito, de Vossa Majestade muito humilde e obediente serva”
“Condessa de Valois de La Motte.”

Joana, como se vê, tinha calculado tudo.
Ou esta carta iria às mãos da rainha, a quem assustaria pela perseverança que denotava,

depois de tantos reveses, e então a rainha, que devia estar cansada da luta, decidiria pôr-lhe
termo, mandando soltar Joana, pois que a sua prisão e o seu processo nada tinham produzido;

Ou, o que era muito mais provável, e o que está até provado pelo fim da carta, Joana não

contava colher resultado, e isso é fácil de demonstrar, porque assim envolvida no processo, a
rainha não podia atalhá-lo sem se condenar a si própria.

É portanto evidente que nunca Joana tinha contado com que a sua carta fosse entregue à

rainha.

Sabia que todos os seus guardas eram dedicados ao governador da Bastilha, isto é, ao Sr.

de Breteuil. Sabia que em França todos faziam do negócio do colar uma especulação política, o
que nunca sucedera depois dos parlamentos do Sr. de Maupeou, no reinado precedente.

Era certo que se o mensageiro a quem a incumbisse não a entregasse ao governador,

havia de guardá-la para si, ou entregá-la a pessoa da sua opinião. Tinha enfim disposto tudo para
que a carta, caindo numas mãos quaisquer, depositasse nelas um fermento de ódio, de
desconfiança e de irreverência contra a rainha.

Ao mesmo tempo que escrevia esta carta a Maria Antonieta, redigia outra para o cardeal,

nos seguintes termos:


“Não posso conceber que Vossa Eminência se obstine em não falar claramente. Parece-

me que o melhor que tem a fazer é conceder uma confiança ilimitada aos nossos juízes: a nossa
sorte seria bem mais feliz.”

“Pelo que me toca, estou decidida a calar-me se me não secundar. Mas porque não fala?

Explique todas as circunstâncias deste misterioso negócio, e juro-lhe que hei-de confirmar quanto
disser; reflicta bem, Sr. cardeal que, se me decidir a falar primeiro, e Vossa Eminência negar o que
eu disser, fico decerto perdida, e não escaparei à vigilância daquela que nos quer sacrificar.”

“Da minha parte, nada tem que recear, conhece bem a minha dedicação. Se acontecer que

ela seja implacável, a sua causa sempre há-de ser a minha; por mim, tudo sacrificaria para o livrar
dos efeitos daquele ódio, ou a nossa desgraça seria comum.”

P. S. Escrevi-lhe a ela uma carta, que espero que a resolva a dizer a verdade, ou pelo

menos a não nos acusar a nós, cujo único crime é o nosso erro, ou o nosso silêncio.”


Esta carta artificiosa foi entregue por ela ao cardeal na sua última acareação, no grande

parlatório da Bastilha, e viu-se que o cardeal corou, empalideceu e estremeceu em presença de
tanta audácia. Saiu para tomar fôlego.

Quanto à carta para a rainha, foi entregue no mesmo instante pela condessa ao abade

Lekel, esmoler da Bastilha, que tinha acompanhado o cardeal ao parlatório, e era do partido dos
Rohan.

– Senhor – lhe disse ela, encarregando-o da mensagem – pode fazer mudar a sorte do Sr.

de Rohan e a minha. Leia o conteúdo. O senhor é um homem obrigado por dever a guardar
segredo. Há-de convencer-se que bati à única porta a que podemos pedir socorro, tanto o Sr.
cardeal como eu.

O esmoler recusou.
– Sou porventura o único eclesiástico com quem fala? – redargüiu ele. – Sua Majestade

há-de persuadir-se de que lhe escreve por conselho meu, e que me confessou tudo; não posso
consentir em me perder assim.

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– Pois bem – disse Joana desesperando do resultado da sua astúcia mas querendo

constranger o abade pela intimidação – diga ao Sr. de Rohan que me resta ainda um meio de
provar a minha inocência, é o de fazer ler as cartas que ele escrevia à rainha. Repugnava-me usar
desse meio: mas, no nosso interesse recíproco, hei-de resolver-me a fazê-lo.

E vendo o esmoler aterrado com estas ameaças tentou, pela última vez, pôr-lhe nas mãos

a terrível carta para Maria Antonieta.

– Se ele recebe a carta – dizia ela – estou salva, porque então, na audiência, hei-de

perguntar-lhe que destino lhe deu; e se a entregou à rainha, peço-lhe uma resposta; se a não
entregou, a rainha está perdida; a hesitação dos Rohan terá provado o seu crime e a minha
inocência.

Mas o abade Lekel, assim que sentiu nas mãos a carta, restituiu-lha, como se o queimasse.
– Repare – disse Joana pálida de cólera – que nada arrisca, porque a carta para a rainha

meti-a num sobrescrito para a Srª. de Misery.

– Mais uma razão! – exclamou o abade – duas pessoas saberiam o segredo. Dobrado

motivo de escândalo para a rainha. Não, não, recuso.

E repeliu os dedos da condessa.
– Repare – disse ela – que me obriga a fazer uso das cartas do Sr. de Rohan.
– Pois faça – respondeu o abade – faça uso delas.
– Mas – redargüiu Joana trémula de raiva – como lhe declaro que a prova de uma

correspondência secreta com Sua Majestade faz cair no cadafalso a cabeça do cardeal, fica ao seu
arbítrio dizer: “Seja!” Eu fico sossegada, porque o preveni.

Naquele momento abriu-se a porta, e o cardeal tornou a aparecer soberbo e enraivecido

no limiar dela.

– Faça cair num cadafalso a cabeça de um Rohan – disse ele – que não será a primeira vez

que a Bastilha tenha presenciado semelhante espectáculo; mas, uma vez que assim seja, declaro-
lhe que não me queixarei no cadafalso sobre que rolar a minha cabeça, contanto que eu veja
aquele sobre que for marcada por ladra e por falsária! Venha, abade, venha!

Voltou as costas a Joana, depois destas terríveis palavras, e saindo com o esmoler, deixou

entregue à raiva e ao desespero a miserável criatura, que não podia dar um passo sem ficar cada
vez mais presa no mortal lodaçal, onde em breve deveria cair totalmente.

XCII

Baptizado de Beausire Júnior


A Srª. de La Motte errara em todos os cálculos. Cagliostro não se enganara em nenhum.
Apenas na Bastilha, conheceu que lhe davam ensejo para trabalhar abertamente na ruína

dessa monarquia, que, havia tantos anos, minava abertamente com o iluminismo e os trabalhos
ocultos.

Certo de que não podia provar-se-lhe crime nenhum, tornado vítima no momento mais

favorável, a seu modo de ver, cumpriu religiosamente as suas promessas.

Preparou os materiais da famosa carta datada de Londres, que apareceu um mês depois

da época a que estamos chegados, e foi o primeiro golpe de aríete aplicado nos muros da velha
Bastilha, a primeira hostilidade da revolução, o primeiro choque material que precedeu o de 14 de
Julho de 1789.

Nessa carta, em que Cagliostro, depois de ter deprimido o rei, a rainha, o cardeal, os

agiotas públicos, escorchava o Sr. de Breteuil, personificação da tirania ministerial, o nosso
revolucionário explicava-se deste modo:

“Sim, repito-o livre, depois de o ter dito enquanto cativo, não há crime que não fique

expiado com seis meses de Bastilha. Perguntaram-me já se tenciono algum dia voltar a França.
Decerto que lá voltarei, respondi eu, contanto que a Bastilha seja transformada em passeio público. Deus o

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permita! Os Franceses têm tudo quanto é preciso para a felicidade: terra fecunda, agradável clima,
bom coração, alegria, engenho e graça para tudo; não têm iguais na arte de agradar, nem mestres
nas outras; só lhes falta uma leve coisa, meus amigos, é a certeza de poderem dormir na sua cama,
ainda que a consciência de nada os acuse.”

Cagliostro também desempenhara a sua palavra para com Oliva. Esta, da sua parte, foi

religiosamente fiel. Não lhe escapou uma só palavra que comprometesse o seu protector. Todas
as suas confissões e depoimentos foram contra a Srª. de La Motte, e contou de modo franco e
irrecusável a sua participação inocente numa mistificação dirigida, segundo ela, a um homem
desconhecido, que lhe tinham designado com o nome de Luís.

Durante o tempo que os cativos tinham estado encarcerados e em interrogatórios, Oliva

não tornara a ver o seu querido Beausire, mas não estava inteiramente abandonada por ele, e,
como vamos ver, conservava do seu amante a recordação que Dido desejava quando nos seus
sonhos dizia:

– “Ah! Se me fosse dado ver brincar, no meu colo, um pequeno Ascânio!”
No mês de Maio do ano de 1786, estava um homem parado entre os pobres nos degraus

do portal de Saint-Paul, na rua de Saint-Antoine. Parecia esperar alguém e mostrava-se inquieto,
arquejante, olhando, sem poder arredar dali os olhos, na direcção da Bastilha.

Junto dele foi colocar-se um homem de barba comprida, um dos servidores alemães de

Cagliostro, aquele a quem Bálsamo sempre empregava como camarista nas suas misteriosas
recepções da sua antiga casa na rua de Saint-Claude.

Este homem suspendeu a impaciente ansiedade de Beausire e disse-lhe em voz baixa:
– Espere, espere, que eles hão-de vir.
– Ah! – bradou o homem inquieto – é o senhor?
E como o eles hão-de vir não satisfizesse bastante, ao que parecia, o homem inquieto, que

continuava a gesticular de um modo inconveniente, o alemão disse-lhe ao ouvido:

– Sr. Beausire, faz tanta bulha que a polícia acaba por nos ver... O meu amo tinha-lhe

prometido notícias, e eu trago-lhas.

– Dê-mas, meu amigo.
– Fale mais baixo. A mãe e a criança estão boas.
– Oh! Oh! – bradou Beausire numa expansão de alegria impossível de descrever; – ela

teve o seu bom sucesso? Está salva?

– Está, sim, senhor; mas peço-lhe que nos afastemos daqui.
– Foi menina?
– Não; foi um rapaz.
– Ainda bem! Oh! Meu amigo, quanto sou feliz! Agradeça em meu nome a seu amo; diga-

lhe que a minha vida lhe pertence.

– Sim, Sr. Beausire, sim, eu lhe direi isso em o vendo...
– Meu amigo, por que me dizia ainda há pouco... Mas vamos, receba estes dois luíses.
– Senhor, eu nada aceito senão de meu amo.
– Ah! Perdão; não queria ofendê-lo.
– Acredito; mas, dizia, o senhor?...
– Ah! Perguntava por que motivo ainda há pouco me disse: eles hão-de vir? Quem é que há-

de vir?

– Queria falar do cirurgião da Bastilha e da comadre Cophin, a parteira, que assistiram à

Srª. Oliva.

– Hão-de vir aqui? Para que?
– Para fazer baptizar a criança.
– Vou ver o meu filho! – exclamou Beausire pulando como convulsionário. – Diz que

vou ver o filho de Oliva! Aqui? Logo?...

– Aqui, logo; mas peço-lhe que sossegue, quando não, os dois ou três agentes do Sr. de

Crosne, que pressinto escondidos sob os farrapos daqueles mendigos, hão-de descobrir e

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adivinhar que comunicou com um prisioneiro da Bastilha. Perde-se a si e compromete o meu
amo.

– Oh! – exclamou Beausire com a religião do respeito e do agradecimento – antes morrer

do que pronunciar uma sílaba que prejudique o meu benfeitor. Morrerei, se é preciso, mas não
direi mais palavra. Eles ainda não vêm!... Paciência!

Beausire aproximou-se do alemão.
– E ela tem lá estado contente? – perguntou ele de mãos postas.
– Contentíssima – respondeu o homem. – Oh! Aí vem uma carruagem.
– Sim, sim.
– Lá parou.
– Traz coisas brancas, rendas...
– É o vestido da criança.
– Meu Deus!
E Beausire viu-se obrigado a encostar-se para não cambalear quando viu apear-se da

carruagem a parteira, o cirurgião e um chaveiro da Bastilha, o qual neste negócio representava de
testemunha.

Quando passaram estas três pessoas, os pobres comoveram-se e repetiram as suas

fanhosas e habituais lamentações.

Viu-se então, caso singular, o padrinho e a madrinha passarem sem fazer caso desses

miseráveis, ao passo que um estranho, chorando de prazer, distribuía dinheiro em trocos miúdos.

Em seguida, depois da pequena comitiva entrar na igreja, Beausire entrou atrás e foi com

os padres e fiéis curiosos procurar o melhor lugar na sacristia, onde ia efectuar-se o sacramento
do baptismo.

O padre, conhecendo a comadre e o cirurgião, que já várias vezes tinham recorrido ao seu

ministério em circunstâncias semelhantes, sorriu de um modo amigável.

Beausire cortejou e sorriu ao mesmo tempo que o padre.
A porta da sacristia fechou-se então e o padre, pegando na pena, começou a escrever no

registro as frases sacramentais, que constituem o acto de assentamento.

Quando chegou a perguntar os nomes e cognomes da criança, o cirurgião respondeu:
– É um rapaz, é tudo quanto sei.
E quatro gargalhadas terminaram a frase, que não pareceu a Beausire muito respeitosa.
– Há-de ter um nome qualquer, seja ele um nome de um santo – acrescentou o padre.
– Sim, a mãe quer que lhe ponham o nome de Toussaint.
– Sim, sim, eles lá são todos santos – disse o padre, rindo satisfeito com o trocadilho, o

que encheu novamente de hilaridade a sacristia.

Beausire começava a perder a paciência, mas a prudente influência do alemão continha-o

ainda.

– Bem – disse o padre – com esse nome por patrono pode-se bem dispensar o pai.

Escrevamos: “Hoje foi-nos apresentada uma criança do sexo masculino, nascida ontem na
Bastilha; filho de Nicola Oliva Legay e de... pai ignoto.”

Beausire lançou-se com fúria ao padre, e segurou-lhe com força no punho:
– Toussaint tem pai – exclamou ele – assim como tem mãe! Tem um terno pai, que não

há-de renegar o seu sangue. Escreva, rogo-lhe, que Toussaint, nascido ontem da Srª. Nicola Oliva
Legay, é filho de João Baptista Toussaint Beausire, aqui presente!

Julgue-se da estupefacção do padre, do padrinho e da madrinha! A pena caiu das mãos do

primeiro, e a criança esteve quase a cair dos braços da comadre.

Beausire recebeu-a nos seus braços, e, cobrindo-a de ávidos beijos, deixou cair sobre a

fronte do pobre pequeno o primeiro baptismo, o mais sagrado neste mundo depois daquele que
procede de Deus, o baptismo das lágrimas paternais.

As pessoas presentes, apesar de estarem habituadas a presenciar cenas dramáticas, e do

cepticismo ordinário nos verdadeiros voltaireanos daquela época, ficaram enternecidas. Só o

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padre ficou contrariado por ter de começar de novo o assentamento no registro.

Mas Beausire, que adivinhou a dificuldade, apresentou logo três luíses de ouro que, com

muito maior eficácia do que as suas lágrimas, estabeleceram o seu direito de pai, e fizeram brilhar
a sua boa fé.

O padre cortejou, recebeu as setenta e duas libras, e riscou as duas frases que acabava de

escrever no registro.

– Contudo, senhor – disse ele – como a declaração do Sr. cirurgião da Bastilha e da Srª.

Cophin foi formal terá a bondade de escrever por seu próprio punho no livro, e certificar que se
declara pai desta criança.

– Eu! – exclamou Beausire no cúmulo da alegria; – é uma declaração que eu escreveria até

com o meu sangue!

E pegou entusiasmado na pena.
– Cuidado! – lhe disse em voz baixa o chaveiro Guyon, que não tinha esquecido o seu

papel de homem escrupuloso. – Parece-me, meu caro senhor, que o seu nome soa mal em certos
sítios, e há perigo em o escrever em registros públicos, com uma data que dá ao mesmo tempo
prova da sua presença e das relações com uma acusada.

– Agradecido pelo seu conselho, meu amigo – redargüiu Beausire com soberba; – cheira a

homem honrado e vale os dois luíses, que lhe ofereço; mas renegar o filho de minha mulher...

– É sua mulher? – bradou o cirurgião.
– Legítima? – bradou o padre.
– Dê-lhe Deus a liberdade – disse Beausire tremendo de júbilo – e no dia seguinte Nicola

Legay há-de chamar-se de Beausire, como o seu filho e como eu!

– Entretanto arrisca-se – repetiu Guyon; – parece-me que andam em sua procura.
– Não serei eu que o atraiçoe – disse o cirurgião.
– Nem eu – disse a comadre.
– Nem eu – disse o padre.
– E ainda que me atraiçoassem – prosseguiu Beausire com a exaltação dos mártires –

sofreria até o ser rodado para ter a consolação de reconhecer o meu filho.

– Se ele for rodado – disse o Sr. Guyon em voz baixa para a parteira – não será decerto

por se dizer pai da criança.

E com este gracejo, que fez sorrir a Srª. Cophin, procedeu-se, segundo o estilo, ao

assentamento do jovem Beausire.

Beausire escreveu a sua declaração em termos magníficos, mas um pouco verbosos, como

o são geralmente as narrações de todas as façanhas que ensoberbecem o autor.

Tornou a ler, pontuou, assinou e fez assinar pelas quatro pessoas presentes.
Depois, tendo lido e verificado tudo novamente, beijou o filho, devida e legalmente

baptizado, meteu-lhe uns dez luíses na cinta, pendurou-lhe ao pescoço um anel, presente
destinado para a mãe, e soberbo como Xenofonte durante a sua famosa retirada, abriu a porta da
sacristia, decidido a não empregar nem o mais leve estratagema, a não tomar nem a mais pequena
precaução para fugir aos esbirros, se tão desnaturados os houvesse, que o quisessem prender
naquele momento.

Os grupos de mendigos não se haviam afastado da igreja. Beausire, se tivesse podido vê-

los com olhos mais firmes, conheceria talvez, entre eles, o famoso Positivo, autor da sua
desgraça; mas não houve novidade. A nova distribuição de esmolas que Beausire fez, foi recebida
com um agradecimento de: “seja pelo amor de Deus!” e o feliz pai saiu de Saint-Paul com todas
as aparências de um fidalgo venerado, amado e abençoado pelos pobres da sua freguesia.

Quanto aos padrinhos do baptismo, retiraram-se do seu lado e tornaram a entrar na

carruagem, maravilhados com semelhante aventura.

Beausire espreitou-os do canto da rua Culture-Sainte-Catherine, viu-os entrar para a

carruagem, atirou com dois ou três beijos palpitantes ao filho, e quando o seu coração se sentiu
satisfeito, quando a carruagem desapareceu a seus olhos, pensou que era bom não tentar Deus

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nem a polícia, e recolheu-se a um lugar, asilo conhecido só dele, de Cagliostro e do Sr. de Crosne.

O Sr. de Crosne também tinha mantido a palavra dada a Cagliostro, e não o mandara

incomodar.

Quando a criança regressou à Bastilha, e a Srª. Cophin contou a Oliva tantas aventuras

admiráveis, esta, enfiando no seu dedo máximo o anel de Beausire, começou também a chorar, e
tendo abraçado o filho, a quem já se procurava uma ama, disse:

– Não, o Sr. Gilberto, discípulo do Sr. Rousseau, dizia que toda a boa mãe deve criar o

seu filho; eu hei-de criar este; quero pelo menos ser uma boa mãe, e deste modo farei alguma
coisa boa.

XCIII

O banco dos réus


Chegara finalmente o dia em que, depois de largos debates, a sentença do tribunal do

parlamento ia ser provocada pelas conclusões do procurador geral.

Os réus, exceptuando o Sr. de Rohan, tinham sido transferidos para a Conciergerie para

ficarem mais próximos da sala da audiência, que se abria às sete horas da manhã.

Diante dos juízes presididos pelo presidente de Aligre, o procedimento dos acusados

continuara a ser o que fora durante a instrução do processo.

Oliva, franca e tímida; Cagliostro, tranqüilo, superior e radiante por vezes com o místico

esplendor, que se comprazia em afectar.

Villette, envergonhado, abjecto, choroso.
Joana, insolente, com o olhar chamejante, sempre ameaçadora e mordaz.
O cardeal, simples, pensativo, atacado de atonia.
Joana acostumara-se em pouco tempo aos usos da Conciergerie, e cativara, pelos seus

modos adocicados, a benevolência da porteira, bem como a do marido do filho.

Deste modo adoçara mais a sua vida e tornara mais livres as suas comunicações.
O macaco precisa mais espaço do que o cão, o intrigante mais do que o espírito tranqüilo.
Os debates nada de novo deram a conhecer à França. Eram sempre a mesma história do

colar roubado audaciosamente por alguma das duas pessoas acusadas, que reciprocamente se
acusavam.

Decidir qual dos dois era o ladrão, era em que se cifrava todo o processo.
O espírito que sempre, e principalmente naquele tempo, tem levado os Franceses aos

extremos, instaurara outro processo sobre o verdadeiro.

Tratava-se de saber se a rainha procedera com acerto mandando prender o cardeal e

acusando-o de temerárias incivilidades.

Para os que se ocupavam de política, esse anexo ao processo constituía a causa

verdadeira.

O Sr. de Rohan julgara poder dizer à rainha o que lhe havia dito, e proceder em seu nome

como fizera; teria ele sido o agente secreto de Maria Antonieta, agente repelido logo que o
negócio se tornou conhecido?

Numa palavra, nessa causa incidente, o cardeal acusado teria obrado de boa fé, na sua

qualidade de confidente íntimo, para com a rainha?

Se tinha obrado de boa fé, era então a rainha culpada de todas essas intimidades, por

inocentes que fossem, que ela negara, e que a Srª. de La Motte insinuava terem existido. E daí,
como total aos olhos da opinião, que nada poupa, são porventura inocentes intimidades que têm
de ser negadas ao marido, aos ministros, aos súbditos?

Tal é o processo, que o libelo do procurador geral vai dirigir para o seu fim, para a sua

moral.

O procurador geral tomou a palavra.

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Era órgão da corte, falava em nome da dignidade real, menoscabada, ultrajada, e

advogava o princípio incomensurável da inviolabilidade da realeza.

O procurador geral entrava no processo real por certos acusados; aceitava o processo

incidente quanto ao cardeal. Não podia admitir que na questão do colar a rainha assumisse um
erro, um único. Portanto, se ela não era culpada, a culpa caía toda sobre a cabeça do cardeal.

Concluiu portanto inflexivelmente, pedindo:
A condenação de Villette às galés;
A condenação de Joana de La Motte a ser marcada, açoutada e enclausurada

perpetuamente no hospital.

Exclusão de Cagliostro do processo.
Oliva, absolvida e posta em liberdade.
O cardeal seria constrangido a confessar que cometera uma temeridade ofensiva para

com a majestade real, e em seguida seria banido da presença do rei e da rainha, exautorado dos
seus cargos e dignidades.

Este requisitório levou a indecisão ao parlamento, e o terror aos acusados.
A vontade real explicava-se nele com tal força, como se fosse um quarto de século antes;

se bem que os parlamentos tivessem começado a sacudir o jugo e a reivindicar as suas
prerrogativas, as conclusões do procurador régio teriam sido ultrapassadas pelo zelo e pelo
respeito dos juízes pelo princípio, então ainda venerado, da infalibilidade do trono.

Mas só catorze conselheiros adoptaram a opinião completa do procurador geral, e desde

então entrou a divisão na assembléia.

Procedeu-se ao último interrogatório, formalidade quase inútil com semelhantes

acusados, por isso que tinha por fim provocar confissões antes da sentença, que não havia paz
nem tréguas a pedir aos encarniçados adversários, que lutavam desde tanto tempo. Era menos a
sua própria absolvição que eles pediam, de que a condenação dos seus adversários.

Era uso comparecer o acusado diante dos juízes, assentado sobre um pequeno banco de

madeira, assente humilde, vil, desonrado pelo contacto dos acusados, que daquele banco tinham
passado para o cadafalso.

Ali foi assentar-se o falsário Villette, que pediu perdão com as suas lágrimas e os seus

rogos.

Declarou quanto é já sabido, isto é, que era sua a falsificação, e a cumplicidade com Joana

de La Motte. Disse que o seu arrependimento e os remorsos eram já para ele um suplício capaz
de desarmar os juízes.

Este não interessava a ninguém; nem era, nem pareceu ser mais que um velhaco.

Mandado retirar da audiência, recolheu chorando à prisão.

Depois dele, apareceu à entrada da sala a Srª. de La Motte, conduzida pelo escrivão

Frémyn.

Vestia com muita simplicidade e não trazia pós no cabelo.
A presença da formosa condessa produziu alguma impressão na assembléia.
Acabava de sofrer o primeiro dos ultrajes que lhe estavam reservados: tinham-na feito

passar pela escada pequena como aos criminosos vulgares.

O calor da sala, o rumor da conversação, o movimento das cabeças, que ondeavam de

todos os lados, perturbaram-na; vacilou e o olhar pareceu por alguns momentos incerto, como
para se acostumar à vista de toda aquela assembléia.

Então, o mesmo escrivão que a conduziu pela mão, foi-a dirigindo para o banco dos réus,

colocado no centro do hemiciclo e semelhante ao pequeno tronco, que se chama cepo, quando se
ergue sobre um cadafalso em lugar de estar numa sala de audiência.

À vista do banco infamante que lhe destinavam, a ela, orgulhosa por se chamar Valois, e

por ter em suas mãos o destino da rainha de França, Joana de La Motte empalideceu, lançou em
torno de si um olhar enraivecido, como para intimidar os juízes que ousavam fazer-lhe
semelhante ultraje; mas, encontrando em todos uma vontade firme e inabalável, e curiosidade em

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lugar de misericórdia, disfarçou a sua indignação furiosa e assentou-se, para não parecer que caía
sobre o banco.

Notou-se nos interrogatórios que as suas respostas eram sempre vagas, de modo que os

adversários da rainha poderiam tirar delas mais partido para defenderem a sua opinião. Nada
afirmou senão os protestos da sua inocência, e obrigou o presidente a dirigir-lhe uma pergunta
sobre a existência dessas cartas, que ela dizia partirem do cardeal para a rainha, e das que a rainha
escrevera, dissera ela, ao cardeal.

A peçonha da serpente ia correr toda na resposta a esta pergunta.
Joana começou por protestar todo o seu desejo de não comprometer a rainha;

acrescentou que ninguém melhor do que o cardeal podia responder a semelhante pergunta.

– Convidem-no – disse ela – a produzir essas cartas ou cópias delas, para as poderem ler e

satisfazerem a sua curiosidade. Pelo que me toca, não poderia afirmar se essas cartas são do
cardeal para a rainha ou da rainha para o cardeal; acho estas muito livres e muito familiares para
serem de uma soberana a um súbdito; e aquelas muito irreverentes para poderem partir de um
súbdito para uma rainha.

O silêncio profundo, terrível, que acolheu este ataque, devia ter provado a Joana que ela

só tinha inspirado horror aos seus inimigos, terror aos seus partidários, e desconfiança aos seus
juízes imparciais.

Só se levantou do banco dos réus com a doce esperança que o cardeal também se

assentaria nele. Esta vingança bastava-lhe, por assim dizer. Mas ficou passada, quando, para mais
uma vez contemplar esse banco de opróbrio, onde obrigava um Rohan a ir assentar-se depois
dela, já não viu o assento da infâmia, que por ordem dos juízes fora retirado e substituído por
uma cadeira!

Fugiu-lhe do peito um rugido de raiva; correu para fora da sala e mordeu as mãos com

frenesi.

Começava o seu suplício. O cardeal avançou lentamente. Acabava de se apear da

carruagem: a porta principal tinha sido aberta para ele entrar.

Acompanhavam-no dois soldados e dois escrivães, e o governador da Bastilha ia a seu

lado.

À sua entrada um longo sussurro de simpatia e de respeito saiu dos bancos dos juízes.

Uma estrondosa aclamação dos que estavam de fora respondeu a esse murmúrio. Era o povo que
cumprimentava o acusado, recomendando-o aos juízes.

O príncipe Luís estava pálido e muito comovido. Vestido com hábitos talares,

apresentava-se com respeito e a condescendência devida a juízes, por um acusado que aceita a sua
jurisdição e a invoca.

Indicaram a cadeira ao cardeal, cujos olhos tinham receado dirigir-se para o recinto, e

tendo-lhe o presidente dirigido um cumprimento e uma palavra animadora, todo o tribunal o
convidou a assentar-se com uma benevolência, que aumentou ainda mais a palidez e a comoção
do acusado.

Quando tomou a palavra, a sua voz trémula, entrecortada de suspiros, os olhos

perturbados, os modos humildes promoveram fortemente a compaixão do auditório. Ele
explicou-se lentamente, apresentou antes desculpas do que provas, súplicas em lugar de
raciocínios, e parando de repente, ele, o homem eloqüente, produziu com esta paralisia do seu
espírito um efeito mais poderoso do que todos os arrazoados e todos os argumentos.

Seguiu-se Oliva; a pobre rapariga achou novamente o banco. Muitas pessoas

estremeceram ao ver aquele retrato vivo da rainha, assentado no banco da vergonha que Joana de
La Motte ocupara; esse fantasma de Maria Antonieta, rainha de França, no banco das ladras e dos
falsários, aterrou os mais ardentes perseguidores da monarquia, e regozijou igualmente muitos
outros, como sangue que se desse a provar a tigres.

Mas diziam todos que a pobre Oliva tinha deixado à entrada uma criança que criava, e

quando por acaso a porta se abria, o choro do filho do Sr. Beausire vinha advogar favoravelmente

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em abono da mãe.

Depois de Oliva, compareceu Cagliostro, o menos culpado de todos. Não o mandaram

assentar apesar de ter a cadeira ficado ao pé do banco.

Os juízes receavam o arrazoado de Cagliostro.
Uma espécie de interrogatório, sempre interrompido pelo muito bem! do presidente de

Aligre, satisfez plenamente, as exigências da formalidade.

E então anunciaram que estavam concluídos os debates, e que iam passar a deliberar.
A chusma saiu lentamente, dirigindo-se pelas ruas e pelos cais, formando já o plano de

voltar durante a noite, para ouvir a sentença, que, segundo diziam, não tardaria em ser
pronunciada pelo juiz.

XCIV

Uma grade e um abade


Terminados os debates, todos os prisioneiros foram por aquela noite alojados na

Conciergerie.

A multidão, como já dissemos, foi à noite colocar-se em grupos silenciosos, ainda que

animados, na praça do palácio, para receber imediatamente a notícia da sentença, apenas fosse
proferida.

Em Paris, caso estranho! os grandes segredos são exactamente aqueles que a multidão

conhece antes que tenham sido divulgados.

Portanto a multidão estava esperando, saboreando as doçuras que os seus fornecedores

ambulantes iam colher debaixo do primeiro arco de Pont-au-Change.

Estava calor.
As nuvens de Junho corriam pesadamente uma sobre as outras, como ondulações de

denso fumo. O céu brilhava no horizonte com um fogo pálido.

Enquanto o cardeal, a quem fora permitido passear pelos terraços, que ligam entre si as

torres, conversava com Cagliostro sobre o provável bom êxito da sua mútua defesa; enquanto
Oliva, na sua cela, acariciava o filho e o balouçava nos braços; enquanto Reteau, com os olhos
enxutos e roendo as unhas, contava, na imaginação, os escudos prometidos pelo Sr. de Crosne, e
os opunha como total aos meses de cativeiro que o parlamento lhe prometia; durante este tempo,
Joana, retirada no quarto da Srª. Hubert, mulher do carcereiro, tentava distrair o espírito com
alguma bulha e algum movimento.

Esse quarto, de tecto alto, espaçoso como uma sala, lajeado como uma galeria, recebia luz

por uma grande janela em ogiva, que dava para o cais.

Os vidros miúdos dessa janela interceptavam a maior parte da claridade, e como se nesse

mesmo quarto habitado por pessoas livres, entendessem dever espantar a liberdade, uma enorme
grade de ferro, colocada da parte de fora, aumentava a escuridão, pelo seu cruzamento das barras
de ferro e caixilhos de chumbo, que emolduravam cada pedaço de vidro.

Mas a luz, que assim joeirada penetrava no interior da casa, era como adoçada pelo olhar

dos prisioneiros.

Nada conservava do raiar insolente do sol livre, não era feita para ofender aqueles que

não podiam sair.

Em todas as coisas, até nas más que são obra do homem, se o tempo, esse intermediário

entre o homem e Deus, lhe tem passado por cima, há certas harmonias que mitigam e permitem
uma transição entre a dor e o sorriso.

Era nesta sala que desde a sua reclusão na Conciergerie, vivia a Srª. de La Motte todo o

dia, em companhia da mulher do carcereiro, do marido e do filho.

Já dissemos, que ela tinha o espírito brando, o carácter sedutor. Tinha-se feito amar pelos

seus criados; tinha achado meio de lhes provar que a rainha era muito culpada.

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Um dia devia chegar, em que outra carcereira, naquela mesma sala, compadecida também

dos infortúnios de uma prisioneira, a julgasse inocente, ao vê-la boa e resignada, e essa prisioneira
seria a rainha.

A Srª. de La Motte ia portanto, segundo ela dizia, esquecer na sociedade da carcereira e

dos seus conhecimentos, as suas idéias melancólicas, e pagava assim com o seu bom humor as
complacências que para com ela tinham.

Naquele dia, em que se encerrara a audiência, quando Joana entrou no quarto daquela boa

gente, encontrou-os todos tristes e contrafeitos.

Para aquela mulher espertíssima a mais leve mudança não podia ser indiferente. Com

qualquer coisa ganhava esperança, com tudo se assustava. Debalde tratou de arrancar a verdade à
Srª. Hubert; esta e os seus não responderam senão com evasivas banais.

Naquele dia, dizemos, Joana viu num recanto da sala, ao pé da chaminé, um abade,

comensal intermitente da casa.

Era um antigo secretário do preceptor do Sr. conde de Provença. Homem de modos

simples, moderadamente cáustico, conhecendo com quem lidava e que, andando desde muito
afastado da casa da Srª. Hubert, tinha-se novamente tornado assíduo freqüentador, desde que a
Srª. de La Motte fora para a Conciergerie.

Estavam também presentes dois ou três empregados superiores do palácio. Olhava-se

muito para a Srª. de La Motte; falava-se pouco.

Ela tomava alegremente a iniciativa.
– Estou certa – disse ela – que se fala com mais calor lá em cima do que nós o fazemos

aqui.

Um pequeno murmúrio afirmativo, escapado ao carcereiro e à mulher, foi a única

resposta a esta provocação.

– Lá em cima? – disse o abade fingindo ignorância; – onde, Srª. condessa?
– Na sala onde os meus juízes estão deliberando – redargüiu Joana.
– Oh! Sim, sim! – disse o abade.
E voltou o silêncio.
– Parece-me – disse ela – que o meu procedimento de hoje produziu bom efeito. Já

devem sabê-lo, não é assim?

– Sim, minha senhora – respondeu timidamente o carcereiro.
E levantou-se como para interromper a conversa.
– Diga-me a sua opinião, Sr. abade – redargüiu Joana. – O meu negócio vai tomando mau

aspecto! Lembre-se que não apresentam prova nenhuma.

– É verdade, minha senhora – disse o abade. – Deve por isso ter toda a esperança.
– Não é assim? – exclamou ela.
– Entretanto – acrescentou logo o abade – suponha que o rei...
– O rei! Que há-de fazer o rei? – disse Joana.
– Ah! Minha senhora, o rei pode não querer que lhe dêem um desmentido.
– Então faria condenar o Sr. de Rohan. É impossível.
– Verdade é que isso é difícil – responderam todos ao mesmo tempo.
– Ora – apressou-se Joana em acrescentar – nesta causa o Sr. de Rohan e eu, somos uma

e a mesma pessoa.

– Não, não – respondeu o abade – ilude-se, minha senhora. Há-de haver um acusado

absolvido... Eu creio que há-de ser a senhora, assim o espero, mas há-de haver um só. O rei
precisa um culpado; a não ser assim, que seria da rainha?

– É verdade – disse mansamente Joana, sentida por se ver contrariada, mesmo a respeito

de uma esperança que ela só afectava. – O rei precisa um culpado. Pois bem, então o Sr. de
Rohan é tão bom para isso como eu.

Um silêncio assustador para a condessa sucedeu a estas palavras.
O abade foi o primeiro que o rompeu.

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– Minha senhora – disse ele – el-rei não é vingativo, e satisfeita a sua primeira cólera, não

pensará no passado.

– Mas, a que chama uma cólera satisfeita? – perguntou Joana com ironia. – Nero tinha

também as suas cóleras, mas eram diferentes das de Tito.

– Uma condenação... qualquer – apressou-se a dizer o abade – é uma satisfação.
– Qualquer!... Sr. abade – exclamou Joana – aí está uma palavra terrível... É muito vaga...

Qualquer, é dizer tudo!

– Oh! Falo apenas de uma reclusão num convento – redargüiu friamente o abade; – e

segundo os boatos que correm, parece ser isso que o rei prefere que se adopte a seu respeito.

Joana olhou para aquele homem com um terror, que deu lugar à mais furiosa exaltação.
– Reclusão num convento – disse ela; – isso é uma morte lenta, ignominiosa pelas

circunstâncias; uma morte feroz, que parecerá um acto de clemência! A reclusão no in pace, não é
assim? Os tormentos da fome, do frio, das correcções! Não, é demasiado suplício, demasiada
vergonha, demasiada desgraça para a inocência, quando a culpada está livre, poderosa, honrada!
Antes a morte imediata, mas a morte que escolher, o livre arbítrio para me castigar de ter nascido
neste mundo infame!

E sem dar ouvidos nem às representações, nem aos rogos, sem sofrer que a

interrompessem, repelindo o carcereiro, afastando o abade, empurrando a Hubert, correu a uma
mesa para pegar numa faca.

Estas três pessoas conseguiram impedi-la; ela correu como uma pantera perturbada, mas

não assustada, pelos caçadores, e soltando rugidos de cólera muito ruidosa para ser natural,
dirigiu-se para um gabinete contíguo à sala, e ali, pegando num enorme vaso de louça, no qual
estava uma roseira, bateu com ele contra a cabeça várias vezes.

O vaso quebrou-se, ficou um pedaço na mão daquela fúria, e viu-se o sangue correr-lhe

da testa pelas fendas da pele ferida. A mulher do carcereiro lançou-se-lhe nos braços toda
chorosa. Assentaram-na numa poltrona; inundaram-na com águas de cheiro e vinagre. Tinha
perdido os sentidos, depois de passar por horríveis convulsões.

Quando tornou a si, estava de tal modo que o abade pensou vê-la sufocar.
– Olhe! – disse ele – aquela grade intercepta a luz e o ar. Não seria possível fazer respirar

um pouco esta pobre mulher?

Então a Srª. Hubert, esquecendo tudo, correu a um armário situado ao pé da chaminé,

tirou dele uma chave com que abriu aquela grade, e logo o ar e a vida entraram em abundância no
quarto.

– Ah! – disse o abade – não sabia que a grade se podia abrir. Para que são tantas

precauções, meu Deus?!

– São as ordens que temos! – redargüiu a carcereira.
– Sim, compreendo – acrescentou o abade com visível intenção – aquela janela está

apenas à altura de sete pés do chão, e dá para o cais. Se sucedesse que alguns presos fugissem do
interior da Conciergerie, passando pela sua sala, achariam a liberdade sem ter encontrado um
único chaveiro, nem uma só sentinela.

– É exactamente isso – disse o carcereiro.
O abade notou, olhando de revés, que a Srª. de La Motte ouvira, compreendera, e até

estremecera, e que logo depois de ter percebido as palavras do abade, erguera os olhos para o
armário, que unicamente tinha um pequeno fecho, e no qual a mulher do carcereiro guardava a
chave da grade.

Era quanto lhe bastava. A sua presença pareceu não ser mais necessária, e despediu-se.
Entretanto, voltando atrás, como os personagens do teatro que fingem sair da cena, disse:
– Que de gente anda na praça! Toda a multidão se dirige com tanta pressa para o lado do

palácio, que não há viva alma no cais.

O carcereiro, inclinando-se para fora, disse também:
– É verdade!

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– Não se julga geralmente – prosseguiu o abade sempre como se a Srª. de La Motte o não

pudesse ouvir (e ela ouvia-o muito bem) – que a sentença há-de ser proferida durante a noite?
Não; não é verdade?

– Não creio – disse o carcereiro – que seja proferida antes de amanhã pela manhã.
– Pois bem – acrescentou o abade – trate de deixar descansar um pouco esta pobre Srª.

de La Motte. Depois de tantos abalos, deve precisar repouso.

– Retirar-nos-emos ao nosso quarto – disse o honrado carcereiro para a sua mulher – e

deixaremos aqui a Srª. condessa nesta poltrona, salvo se ela prefere ir deitar-se na sua cama.

Joana, erguendo-se um pouco, encontrou o olhar do abade, que esperava ouvir a sua

resposta. Fingiu que adormecia.

Então o abade desapareceu, e o carcereiro e sua mulher retiraram-se também, depois de

terem fechado mansamente a grade, pondo a chave no seu lugar.

Assim que se viu só, Joana abriu os olhos.
– O abade aconselha-me que fuja – pensou ela. – É possível indicar-se-me com mais

clareza a necessidade e os meios de fugir? Ameaçar-me de condenação antes da decisão dos
juízes, isso é próprio de um amigo que quer aconselhar-me que tome eu a minha liberdade, não
pode ser um bárbaro que me queira insultar.

“Para fugir basta-me dar um passo; abro aquele armário, depois a grade, e achar-me-ei no

cais deserto.”

“Deserto, sim!... Ninguém; a lua mesmo oculta-se entre as nuvens.”
“Fugir!... Oh! A liberdade! A felicidade de ir achar as minhas riquezas... a felicidade de

causar aos meus inimigos tanto mal quanto eles me causaram a mim!”

Ela caminhou para o armário e pegou na chave. Já se ia aproximando da fechadura da

grade.

De repente julgou ver, na linha escura do parapeito da ponte, um vulto negro, que

interrompia a sua uniforme regularidade.

– Está ali um homem na sombra! – disse ela – talvez seja o abade que vem proteger a

minha fuga; espera-me para me socorrer. Sim, mas se isso fosse um laço... Se, chegando ao cais,
me prendessem, apanhada em flagrante delito de fuga?... A fuga é a confissão do crime, ou pelo
menos a confissão do medo. Quem se quer evadir, foge diante da sua consciência... Donde vem
aquele homem?... Parece ter relações com o Sr. de Provença... Quem me diz que aquele homem,
não é um emissário da rainha ou dos Rohan?...

“Bem desejariam eles, desse lado, apanhar-me nalguma... Sim, está ali alguém espreitando-

me!...”

“Fazer-me fugir poucas horas antes da sentença! Não o podiam ter feito antes, se

realmente me tivessem querido servir? Meu Deus! quem sabe se os meus inimigos não terão
recebido a notícia de ter o conselho dos juízes resolvido que eu fosse absolvida; quem sabe se
não querem livrar a rainha deste golpe terrível, por meio de uma prova ou de uma confissão da
minha culpabilidade? A confissão, a prova, seria a minha fuga. Ficarei!

A partir daquele instante, Joana ficou convencida de que acabava de escapar ao laço, que

lhe queriam armar. Sorriu, ergueu a cabeça astuciosa e ousada, e com passo seguro foi de novo
pôr a chave da grade no armariozinho ao pé da chaminé.

Depois, tornando a assentar-se na poltrona entre a luz e a janela, observou de longe,

fingindo sempre dormir, a sombra daquele homem que espreitava e que, sem dúvida, cansado de
esperar, levantou-se e desapareceu com a primeira luz da madrugada, às duas horas e meia da
manhã, quando já se distinguia bem a água do rio.




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XCV

A sentença


Pela manhã, quando recomeça o bulício, quando Paris volta à vida e liga um novo elo ao

da véspera, a condessa esperava que a notícia da sua absolvição lhe penetrasse de repente no
cárcere, acompanhada da alegria e das felicidades dos seus numerosos amigos.

Teria ela amigos? Oh! nunca falta cortejo à fortuna e ao crédito, e todavia Joana

enriquecera, tornara-se poderosa; recebera e dera, sem que sequer adquirisse os amigos triviais
que hão-de queimar no dia seguinte a uma desgraça aquela a quem na véspera incensaram.

Mas depois do triunfo que esperava não lhe faltariam partidários, admiradores e

invejosos.

Contava com isso.
Essa onda solícita de gente risonha, esperava ela em vão vê-la penetrar na sala do

carcereiro Hubert.

Da imobilidade de uma pessoa convencida e que se presta aos abraços, Joana passou, era

o declive do seu carácter, a excessiva inquietação.

E como nem sempre se pode dissimular, não se deu ao trabalho de ocultar aos guardas as

suas impressões.

Não lhe era permitido sair para ir saber notícias, mas passou a cabeça por uma das frestas,

e ali, ansiosa, arquejante, prestou ouvido atento aos rumores da praça fronteira, rumores que
consistiam num murmúrio confuso, depois de ter atravessado a espessura dos muros do velho
palácio de Saint-Louis.

Joana ouviu então, não um rumor, mas uma verdadeira explosão; bravos, gritos, vozearia,

alguma coisa que a espantou, porque não tinha a consciência de que devesse ser por ela que se
mostrasse tanta simpatia.

Aquelas salvas tumultuosas repetiram-se duas vezes, e depois delas retumbarem,

sucederam-se-lhe alguns rumores de outro género.

Pareceu-lhe também que era aprovação, mas uma aprovação tranqüila e morta logo à

nascença.

Pouco tardou que aumentasse o número das pessoas no cais, como se os grupos da praça

se fossem dissolvendo e repelindo por parcelas as suas massas dispersas.

– Belo dia para o cardeal! – disse uma espécie de escrevente de procurador, pulando na

calçada junto do parapeito.

E atirou com uma pedra ao rio com a habilidade do rapazio parisiense, que tem

consagrado muitos dos seus dias ao exercício desta arte, exumada da palestra antiga.

– Para o cardeal? – repetiu Joana. – Portanto, há já notícia de ter sido absolvido o cardeal?
E da testa desceu-lhe uma gota de suor, uma gota de fel.
Entrou rapidamente na sala.
– Srª. Hubert! Srª. Hubert! – disse ela à mulher do carcereiro. – Que ouço eu dizer: “Que

é um dia feliz para o cardeal?” Que felicidade é essa, diga-mo por favor?

– Não sei – respondeu-lhe a Srª. Hubert.
Joana de La Motte olhou bem de frente para a carcereira e retorquiu:
– Pergunte a seu marido, sim?
A mulher obedeceu para a satisfazer, e Hubert respondeu de fora da porta:
– Não sei!
Joana, impaciente, aterrada, parou um instante no meio do quarto, e replicou:
– Que queriam então dizer aquelas pessoas, que iam passando? Esta espécie de oragos

não costumam enganar-se. Não há dúvida, que iam falando do processo.

– Talvez quisessem dizer que, se o Sr. de Rohan for absolvido, há-de ser um belo dia para

ele, nada mais.

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– E julga que ele seja absolvido? – exclamou Joana aterrada.
– Pode acontecer.
– E então eu?
– Oh! A senhora... Pode ser que também a absolvam; por que não?...
– Estranha hipótese! – murmurou.
E voltou para a janela.
– Parece-me que não faz bem, minha senhora – disse-lhe o carcereiro – em ir procurar

assim comoções nas palavras que de fora lhe chegam de modo que não as compreende. Deixe-se
estar sossegada, esperando que o seu advogado ou o Sr. de Frémyn venha ler-lhe a sua sentença...

– A sentença... Não! Não!
E pôs-se à escuta.
Passava uma mulher com as suas amigas. Levava touca de dia de festa na cabeça, e um

grande ramalhete na mão; o aroma das rosas subiu até onde estava Joana, que o aspirou.

– Hei-de atirar-lhe com este ramalhete – bradou a mulher – e ainda com mais um cento

deles, àquele santo homem! Oh! Se eu puder chegar-me a ele, hei-de dar-lhe um beijo.

– E eu também – disse uma companheira.
– E eu, quero que ele me beije – disse alegremente uma terceira.
– De quem falarão elas? – pensou Joana.
– Não tens mau gosto – disse outra mulher para as suas amigas; – é um belíssimo

homem.

E passaram todas.
– Ainda o cardeal! Sempre ele! – murmurou Joana. – Ele foi absolvido, foi absolvido!
E pronunciou estas palavras com tanta desanimação e tanta certeza ao mesmo tempo,

que os carcereiros, resolvidos a não ocasionarem uma tempestade como a de véspera, lhe
disseram ao mesmo tempo:

– Ah! Minha senhora, por que não quer que o pobre prisioneiro tenha sido absolvido e

posto em liberdade?

Joana sentiu o golpe, sentiu principalmente a mudança nos modos do carcereiro e nos da

sua família, e não querendo perder coisa alguma da simpatia que lhes inspirara, disse:

– Oh! Não me compreendem. Ah! Julgam-me tão má ou tão invejosa que possa desejar

mal aos meus companheiros de infortúnio? Meu Deus! Que seja absolvido o Sr. cardeal, oh! Sim,
seja-o. Mas eu, eu... Finalmente, é preciso saber... Acreditem-me, meus amigos, é a impaciência
que me põe neste estado.

Hubert e sua mulher olharam um para o outro como para medir o alcance do que

pretendiam fazer.

Um raio feroz que brilhou nos olhos de Joana, a seu despeito, suspendeu-os quando iam

tomar uma decisão.

– Nada me dizem? – bradou ela conhecendo a falta de franqueza.
– Nada sabemos – redargüiram eles em voz baixa.
Neste momento, vieram chamar Hubert, que teve de sair da sala. A mulher, ficando só

com Joana, tentou distrai-la, mas em vão; todos os sentidos da cativa, toda a inteligência eram
atraídos para fora, pelos rumores, pela vozearia, que ela percebia, por uma susceptibilidade que a
febre aumentara consideravelmente.

A mulher do carcereiro, vendo a impossibilidade de lhe impedir que olhasse ou escutasse,

resignou-se.

De repente, sentiu-se na praça um grande tumulto, e um grande movimento. A multidão

foi repelida desde a ponte até ao cais, com gritos tão compactos e reiterados, que fizeram
estremecer Joana no seu observatório.

Os gritos não cessavam. Dirigiam-se a uma carruagem descoberta, cujos cavalos, seguros

mais pela multidão do que pela mão do cocheiro, caminhavam a passos vagarosos.

A pouco e pouco, a multidão, cercando-se e aproximando-se cada vez mais, levava aos

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ombros, e nos braços, os cavalos, a carruagem e as duas pessoas que iam dentro.

À luz esplêndida dos raios de sol, debaixo de uma chuva de flores, e de uma abóbada de

folhagem, que mil mãos agitavam por cima das cabeças, reconheceu a condessa aqueles dois
homens, que a multidão entusiasta levava em triunfo.

Um, pálido com o seu triunfo e aterrado com a sua popularidade, permanecia sisudo,

atordoado, trémulo. Algumas mulheres trepavam aos eixos das rodas, e puxavam-lhe pelas mãos
para as cobrir de beijos, e com pancadas recíprocas se disputavam as rendas dos punhos, que elas
lhe tinham pago com flores das mais viçosas, frescas e raras.

Outras, mais felizes ainda, tinham trepado à traseira da carruagem com os lacaios; e daí,

destruindo insensivelmente os obstáculos que as impediam de chegar ao objecto do seu amor,
agarravam a cabeça do personagem idolatrado, aplicavam-lhe um beijo cheio de respeito e
sensualidade, deixando depois o lugar para outras bem-aventuradas.

Este homem adorado era o cardeal de Rohan.
O seu companheiro, moço, alegre, radiante tinha uma recepção menos viva, mas

igualmente lisonjeira, guardadas as proporções. Depois, recebia mais vivas, mais gritaria; as
mulheres agarravam-se ao cardeal, e os homens bradavam: viva Cagliostro!

Esta embriaguez durou meia hora. Joana viu os triunfadores atravessarem a Pont-au-

Change, e até ao seu ponto culminante, não perdeu uma única circunstância.

Aquela manifestação de entusiasmo público pelas vítimas da rainha, porque assim lhe

chamavam, deu a Joana um momento de alegria.

Mas logo depois exclamou:
– Como? Já estão livres! Já se cumpriram para eles as formalidades, e eu nada sei do que

me é relativo? Por que me não dizem nada?

Um estremecimento lhe percorreu o corpo.
Ao lado de si tinha sentido a Srª. Hubert, que silenciosa, atenta a quanto se passava, devia

por certo, ter compreendido perfeitamente tudo, mas não dava explicação alguma.

Joana ia provocar um esclarecimento que se havia tornado indispensável, quando um

novo rumor atraiu a sua atenção para a Pont-au-Change.

Uma carruagem cercada de povo ia também subindo naquela direcção.
Joana reconheceu a alegre Oliva, que ia nessa carruagem mostrando seu filho ao povo, e

que partia também livre e louca de prazer com os gracejos um pouco silenciosos da chusma, que
lhe atirava beijos. Eis o incenso, grosseiro decerto, mas mais que suficiente para a Srª. Oliva, que
lhe oferecia a multidão dos sobejos do esplêndido festim dedicado ao cardeal.

No meio da ponte esperava uma carruagem de posta. O Sr. Beausire escondia-se nela por

detrás de um dos seus amigos, o qual ousava revelar-se à admiração do público. Este fez um sinal
a Oliva, que se apeou da carruagem no meio de gritos que iam quase degenerando em assuada.
Mas para certos actores o que importavam os apupos, quando até podiam atirar-lhes pedras e
expulsá-los do teatro?

Oliva, subindo para a outra carruagem, foi cair nos braços de Beausire, que a apertou a

ponto de quase a esmagar, não a largou por muito tempo, e inundou-a de lágrimas e beijos; só
respirou em Saint-Denis, onde mudaram os cavalos sem ter sofrido incómodo algum da parte da
polícia.

Entretanto, Joana, vendo toda essa gente livre, feliz, acariciada, perguntava a si mesma

por que motivo só ela não recebia notícias.

– Mas, eu! Eu! – bradou ela – por que requinte de crueldade me não querem declarar a

sentença, que me diz respeito?

– Sossegue, minha senhora – disse Hubert entrando; – sossegue.
– É impossível que não lhe conste nada – redargüiu Joana; – o senhor sabe alguma coisa;

diga-mo!

– Minha senhora...
– Se não gosta de cometer barbaridades, diga-me tudo; bem vê como sofro.

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– É-nos proibido, minha senhora; nós os empregados da prisão não podemos revelar as

sentenças, cuja leitura pertence aos escrivães do tribunal.

– Mas, então, é por tal forma horrível a sentença que não tem ânimo para mo dizer? –

exclamou Joana num transporte de raiva, que aterrou o carcereiro, e lhe fez entrever a renovação
das cenas da véspera.

– Não – disse ele – sossegue, sossegue.
– Então, fale.
– Terá resignação, e não me comprometerá?
– Prometo-lho, juro-lhe, mas fale!
– Pois bem, o Sr. cardeal foi absolvido.
– Bem sei.
– O Sr. de Cagliostro excluído da corte.
– Também sei! Também sei!
– A Srª. Oliva... Teve baixa na culpa.
– Depois? Depois?
– O Sr. Reteau de Villette foi condenado...
Joana estremeceu.
– Às galés!... à grilheta!...
– E eu? – bradou ela com fúria.
– Tenha paciência, minha senhora, tenha paciência, pois foi o que me prometeu.
– Paciência, tenho-a! Veja! Vamos, fale! Eu?...
– A desterro – disse o carcereiro com voz fraca e desviando os olhos.
Um raio de alegria brilhou nos olhos da condessa, raio que tão depressa apareceu como

se apagou.

Depois, soltou um grito terrível, e fingiu que perdia os sentidos, caindo nos braços da Srª.

Hubert.

– Que teria sucedido – disse Hubert em voz baixa ao ouvido da mulher – que teria

sucedido se eu lhe tivesse dito a verdade?

– O desterro – pensava Joana fingindo um ataque de nervos – é a opulência, é a vingança,

é tudo quanto eu tinha sonhado... Ganhei a partida!

XCVI

A leitura da sentença


Joana continuava a esperar que o escrivão de que falara o carcereiro fosse ler-lhe a

sentença pronunciada contra ela.

Com efeito, não tendo já as angústias da dúvida, conservando apenas as da comparação,

isto é, do orgulho, dizia consigo:

– Que me importa a mim, espírito sólido, como creio ser, que o Sr. de Rohan tenha sido

considerado menos culpado do que eu?

“É a mim que infligem o castigo de um crime? Não, por certo. Se todos me houvessem

devidamente reconhecido por Valois, se eu tivesse tido como o Sr. cardeal uma ala de príncipes e
de duques postada na passagem dos juízes, suplicantes pela atitude, pelos crepes das espadas, pela
choradeira, não recusariam coisa alguma à pobre condessa de La Motte, e decerto que, prevendo
a ilustre súplica, teriam poupado à descendente dos Valois a afronta de se assentar no banco
infame dos réus.”

“Mas de que serve ocupar-me de todo esse passado, que já morreu? Está aí terminado

este grande negócio da minha vida. Colocada de um modo equívoco no mundo, de um modo
equívoco na corte, exposta a ser prostrada pelo primeiro sopro vindo de cima, vegetava, cairia
talvez novamente nessa miséria primordial, que foi a aprendizagem dolorosa da minha vida.

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Agora, é outra coisa. Desterrada! Sou desterrada! Isto é, tenho o direito a levar o meu milhão no
cofre, de viver à sombra das laranjeiras de Sevilha ou de Agrigente durante o inverno, na
Alemanha ou na Inglaterra durante o verão; isto é, que nada me impedirá, moça, formosa, célebre
e podendo explicar o meu processo a meu talante, nada me impedirá de viver como entender, ou
seja com meu marido, se também ele for banido, ou seja com os amigos, que a fortuna e a
mocidade sempre trazem!”

“E, acrescentava Joana perdida em seus ardentes pensamentos, venham depois dizer-me,

a mim, a condenada, a desterrada, a pobre humilhada, que não sou mais real do que a rainha, mais
respeitada, e mais absolvida do que ela; porque não se tratava para ela da minha condenação. O
leão despreza o verme da terra. O que se queria era fazer condenar o Sr. de Rohan, e esse foi
excluído da causa!”

“Agora, como farão eles para me intimarem a sentença, assim como para me fazerem pôr

fora do reino? Vingar-se-ão numa mulher sujeitando-a aos usos mais estritos da penalidade?”

“Confiar-me-ão aos archeiros para me conduzirem à fronteira? Dir-me-ão solenemente:

‘Indigna, o rei desterra-te do seu reino’. Não, os meus amos são boas pessoas, disse ela sorrindo;
já me não querem mal. Só querem mal a este bom povo de Paris, que brada debaixo das suas
janelas: Viva o Sr. cardeal! Viva Cagliostro! Viva o parlamento! O povo é o seu verdadeiro
inimigo. Oh! sim, é o inimigo directo, pois que eu tinha contado com o apoio moral da opinião
pública, e consegui-o!”

Joana fazia mentalmente os seus cálculos e combinava os seus negócios. Ocupava-se já da

venda dos brilhantes, do seu estabelecimento em Londres (era verão), quando de repente o nome
de Reteau de Villete lhe atravessou, não o coração, mas o espírito, e com um sorriso de maldade,
disse:

– Pobre rapaz! Foi ele quem pagou por todos. É que todas as expiações precisam de uma

alma vil, no sentido filosófico, e cada vez que surge essa espécie de dificuldades, sai da terra o
bode emissário e justamente o golpe que o há-de ferir.

“Pobre Reteau! Fraco, miserável, paga hoje os seus panfletos contra a rainha, as suas

conspirações de pena, e Deus, que a cada qual neste mundo dá a sua parte, terá querido dar a este
uma existência de pauladas, de luíses de ouro intermitentes, de emboscadas, de homizio com um
desfecho de grilheta, Por aí se vê o que é a astúcia em vez da inteligência, a malícia em lugar da
maldade, o espírito de agressão sem a perseverança e a força. Quantos entes malfazejos há na
criação, desde o oução peçonhento até ao escorpião, o primeiro dos pequenos que se faça temer
do homem! Todas essas enfermidades querem prejudicar, mas não têm as honras da luta:
esmagam-nas.”

E Joana enterrava com esta cómoda pompa o seu cúmplice Reteau, muito decidida a

informar-se do local para onde o mandavam, para se não encontrar com ele, evitando assim
humilhar com a sua felicidade o seu antigo conhecido.

Joana era prudente.
Tomou alegremente parte na refeição do carcereiro e de sua mulher, que tinham

inteiramente perdido a alegria, e já não se ocupavam em disfarçar a sua perturbação.

Joana atribuiu essa tristeza à condenação de que acabava de ser objecto. Fez-lhes esta

observação. Responderam que, para eles, nada havia mais doloroso do que o aspecto de uma
pessoa depois de uma condenação.

Joana sentia-se tão feliz no íntimo do peito, e custava-lhe tanto disfarçar a alegria, que a

ocasião de ficar só, livre com os seus pensamentos, lhe era sumamente agradável. Resolveu pedir
licença depois de jantar para voltar ao seu quarto.

Bem admirada ficou quando o carcereiro Hubert, usando da palavra quando estavam à

sobremesa, com uma solenidade constrangida, que não costumava empregar nas suas relações
com a condessa, lhe disse:

– Minha senhora, recebemos ordem de não conservar mais aqui nas nossas salas as

pessoas de quem o parlamento tem já decidido.

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– Bem – disse Joana consigo – o homem adivinha os meus desejos.
Ergueu-se.
– Não é meu desejo – respondeu ela – pô-los em contravenção; seria ingratidão em vista

da bondade que têm empregado para comigo... Vou portanto para o meu quarto.

E olhou para ver o efeito das suas palavras. Hubert tinha uma chave na mão. A carcereira

desviava a cabeça, como para ocultar uma nova comoção.

– Mas – acrescentou a condessa – onde me lerão a sentença, e quando será?
– Talvez esperem que esteja no seu quarto – disse o carcereiro Hubert.
– Decididamente, ele afasta-se de mim – pensou Joana.
E um vago sentimento de inquietação a fez estremecer; mas logo se lhe desvaneceu.
Joana subiu três degraus que conduziam ao quarto pelo corredor das prisões.
Vendo-a partir, a Srª. Hubert correu precipitadamente para ela, e pegou-lhe nas mãos, não

com respeito, mas com amizade verdadeira, não com essa susceptibilidade que honra aquele que
a patenteia e aquele a quem respeita, mas com uma compaixão profunda, com um rasgo de dó,
que não escapou à inteligente condessa, que em tudo reparava.

Desta vez a expressão foi tão clara, que Joana confessou a si mesma que sentia susto; mas

o susto foi, como o fora a inquietação, repelido daquela alma, que trasbordava de alegria e de
esperança.

Todavia, Joana queria pedir explicações à Srª. Hubert da compaixão que ela lhe

demonstrava; já abria a boca e descia dois degraus para formular uma dessas perguntas claras e
vigorosas como o seu espírito, mas não teve tempo para o fazer. Hubert pegou-lhe na mão, mais
com viveza do que com civilidade, e abriu a porta.

A condessa achou-se no corredor. Oito archeiros do prebostado estavam ali postados.

Que esperavam eles? Foi o que Joana perguntou a si mesma ao vê-los. Mas a porta do carcereiro
estava já fechada, diante dos archeiros achava-se um dos carcereiros ordinários da prisão, aquele
que todas as noites acompanhava a condessa ao quarto.

Este homem foi andando adiante de Joana como para lhe mostrar o caminho.
– Volto ao meu quarto? – perguntou a condessa no tom de uma pessoa que parece segura

do que diz, mas que duvida.

– Volta, sim, minha senhora – redargüiu o carcereiro.
Joana encostou-se ao corrimão de ferro e subiu atrás daquele homem. Ouviu os

archeiros, que, a alguns passos mais distantes, conversavam em segredo, mas sem se afastarem do
mesmo lugar.

Mais descansada, deixou-se fechar no quarto, e até agradeceu afectuosamente ao

carcereiro. Este retirou-se.

Joana, assim que se viu livre e só no quarto, deu largas à sua extravagante alegria,

demasiado tempo contida pela máscara com que tinha hipocritamente encoberto o rosto em casa
do carcereiro. Aquela cela da Conciergerie era a toca daquele animal feroz, um momento
agrilhoado pelos homens, e que um capricho de Deus ia de novo lançar no livre espaço do
mundo.

E no seu covil, ou na sua toca, quando é já bem noite, quando nenhum rumor denuncia o

animal cativo à vigilância dos seus guardas; quando o seu faro subtil não pressente vestígio algum
nas imediações, é quando começam os regozijos dessa natureza selvagem. Então estira à vontade
os membros para os amolecer aos rasgos da independência esperada: então solta gritos, dá saltos
e cai em êxtases, que nunca o olhar do homem surpreendeu.

Assim foi para Joana. De repente, sentiu passos no corredor; ouviu o tinir de chaves, e

sentiu que alguém procurava o buraco da fechadura.

– Que pretendem de mim? – pensou ela endireitando-se.
O carcereiro entrou.
– Que há de novo, João? – perguntou ela com a sua voz doce e indiferente.
– Queira ter a bondade de acompanhar-me – disse ele.

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– Para onde?
– Para baixo, minha senhora.
– Como? Para baixo...
– À chancelaria...
– Para que, faz favor de mo dizer?
– Minha senhora...
Joana endireitou-se para esse homem, que hesitava, e distinguiu, na extremidade do

corredor, os archeiros do preboste, que ela já tinha encontrado em baixo, quando subira para o
quarto.

– Enfim – bradou ela comovida – diga-me, o que pretendem de mim na chancelaria!
– Minha senhora, está lá o Sr. Doillot, seu defensor, que deseja falar-lhe.
– Na chancelaria? E porque não há-de ser aqui? Já se lhe tem dado várias vezes licença

para vir aqui.

– Minha senhora, é porque o Sr. Doillot recebeu notícias de Versalhes, que deseja

comunicar-lhe.

Joana não reparou quanto era falta de lógica a resposta. Uma única palavra lhe atraiu a

atenção: notícias de Versalhes, notícias do paço, sem dúvida, trazidas pelo próprio defensor.

– Teria a rainha intercedido junto do rei, depois da publicação da sentença? Teria

porventura...

Mas para que havia de formar conjecturas? Era desnecessário, porque, no espaço de dois

minutos, podia achar a solução do problema.

E demais, o chaveiro insistia; agitava as chaves como homem que, na falta de boas razões,

impõe as suas ordens.

– Espere um instante – disse Joana; – bem vê que já me tinha despido para descansar!

Tenho-me fatigado muito nestes últimos dias.

– Esperarei, minha senhora; mas peço que se lembre de que o Sr. Doillot tem pressa.
Joana fechou a porta, envergou um vestido um pouco melhor, pôs um mantelete e

arranjou à pressa o cabelo. Apenas empregou seis minutos nestes preparativos. O coração dizia-
lhe que o Sr. Doillot trazia a ordem para ela partir imediatamente, e o meio de atravessar a França
dum modo ao mesmo tempo discreto e cómodo! Sim, a rainha havia de ter pensado em fazer
desaparecer quanto antes a sua inimiga. A rainha, agora que estava pronunciada a sentença, devia
esforçar-se em irritar o menos possível essa inimiga, porque, se a pantera é temível enquanto
presa, quanto não seria para temer quando estivesse livre? Embalada com felizes idéias, Joana
correu, ou antes voou atrás do carcereiro, que lhe fez descer a escada por onde já a tinham
conduzido à sala da audiência. Mas em lugar de ir para aquela sala, em lugar de voltar à esquerda
para entrar na chancelaria, o carcereiro voltou-se para uma portinha situada do lado direito.

– Então onde vai? – perguntou Joana de La Motte; – a secretaria é aqui.
– Venha, venha, minha senhora – disse docemente o carcereiro – é aqui que o Sr. Doillot

a espera.

Ele entrou primeiro e fez entrar atrás de si a prisioneira, que ouviu fechar com estrondo

os ferrolhos exteriores da pesadíssima porta.

Joana, admirada, mas não podendo ainda distinguir vulto algum na escuridão, não se

atreveu a perguntar mais coisa alguma ao guarda.

Deu dois ou três passos e parou. Uma claridade azulada dava à casa, onde ela estava, um

aspecto semelhante ao do interior dum sepulcro.

A luz vinha de cima, por uma fresta de grades antigas, pela qual, através das teias de

aranha e da cêntupla camada de poeira secular, alguns pálidos raios conseguiam dar algum reflexo
às paredes.

Joana sentiu de repente o frio, sentiu a umidade desse cárcere, pressentiu alguma coisa

terrível nos olhos chamejantes do chaveiro.

Entretanto, ainda não havia senão aquele homem; ele e a prisioneira ocupavam naquele

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momento um espaço fechado por quatro paredes esverdeadas pela umidade e pela água que caía
pela fresta, coberta de bolor pela passagem do ar, que o sol nunca aquecera.

– Senhor – disse ela, dominando a impressão de terror que a fazia estremecer – que

estamos aqui fazendo? Não vejo o Sr. Doillot, que me disse estar esperando por mim...

O chaveiro não deu resposta alguma, e voltou-se para ver se a porta, por onde tinha

entrado, estava solidamente fechada.

Joana seguiu esse movimento com terror. Veio-lhe à idéia que, como nos negros

romances daquela época, estava entregue a um desses chaveiros, furiosamente apaixonados pelas
suas prisioneiras, que, no dia em que a presa lhes vai fugir pela porta aberta da gaiola, se tornam
em tiranos da formosa cativa, e oferecem o seu amor em troca de liberdade.

Joana estava forte, não receava as surpresas, não tinha o pudor da alma. A sua imaginação

lutava vantajosamente contra os caprichos sofísticos de Crébilon filho e de Louvet. Dirigiu-se ao
chaveiro, e esforçando-se por se mostrar sossegada e agradável, disse-lhe:

– Meu amigo, que me pede? Tem alguma coisa a dizer-me? O tempo de uma prisioneira,

quando a hora da liberdade está próxima, é um tempo precioso. Parece ter escolhido para me
falar um lugar bem sinistro.

O chaveiro não lhe respondeu, porque nada compreendia. Sentou-se a um canto, e

esperou.

– Mas, repito a pergunta – disse Joana – que estamos aqui fazendo?
Receou estar tratando com um doido.
– Estamos esperando pelo Sr. Doillot – respondeu desta vez o chaveiro.
Joana abanou a cabeça.
– Confessar-me-á – disse ela – que o Sr. Doillot, se tem notícias de Versalhes, a

comunicar-me, emprega mal o seu tempo, e escolheu uma péssima sala de audiência... Não é
possível que o Sr. Doillot me faça esperar aqui. Há outra coisa, seja ela qual for.

Acabava apenas de dizer estas palavras, quando se abriu mesmo em frente dela uma

porta, que ainda não tinha visto.

Era uma dessas portas arredondadas, verdadeiros monumentos de pau e ferro, que

deixam aberto, no fundo que tapam, uma espécie de círculo cabalístico, no centro do qual uma
pessoa ou uma paisagem parecem ser animadas por magia.

Com efeito, por detrás dessa porta, havia uma escada, que dava para algum corredor mal

alumiado, mas cheio de vento e fresquidão; além desse corredor, apenas num movimento que
fez, tão rápido como um raio, Joana viu, erguendo-se um pouco nos bicos dos pés, um espaço
semelhante àquele que forma uma praça, e nesse espaço uma multidão de homens e de mulheres
de olhos chamejantes.

Mas, repetimo-lo, foi para Joana uma visão e não uma vista; nem sequer teve tempo de

explicar a si mesma o que via. Diante dela, num plano mais próximo do que era o daquela praça,
apareceram três pessoas subindo o último degrau.

Por detrás dessas pessoas, que, sem dúvida, estavam nos degraus inferiores, surgiam

quatro baionetas brancas e aceradas, semelhantes a sinistras tochas, que tivessem querido alumiar
aquele acto.

Mas a porta redonda tornou a fechar-se. Os três homens entraram sós no quarto onde

estava Joana.

Esta ia passando de surpresa em surpresa, ou melhor diremos, da inquietação para o

terror.

Agora aproximava-se do carcereiro, que um momento antes temia, como para lhe pedir

protecção contra os desconhecidos.

O chaveiro encostou-se à parede do cárcere, mostrando por esse movimento que nada

podia fazer e que devia ficar mudo espectador do que se ia passar.

Joana foi interpelada, antes que lhe ocorresse a idéia de tomar a palavra.
Um dos três homens, o mais moço, foi quem começou. Vinha vestido de preto. Trazia o

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chapéu na cabeça, e na mão uns papéis enrolados e fechados como a cifra antiga.

Os outros dois, imitando a atitude do carcereiro, escondiam-se na parte mais sombria da

sala.

– Queira dizer-me – perguntou o desconhecido – a senhora chama-se Joana Saint-Remy

de Valois, e é esposa de António Maria Nicolau, conde de La Motte?

– Sim, senhor – respondeu Joana.
– Nascida em Fontette, a 22 de Julho de 1756?
– Sim, senhor.
– Moradora em Paris, na rua Nova de Saint-Gilles?
– Sim, senhor... Mas por que motivo me dirige todas essas perguntas?
– Minha senhora, sinto muito que me não conheça; tenho a honra de ser o escrivão do

tribunal.

– Bem o conheço.
– Então, minha senhora, posso desempenhar as minhas funções nessa qualidade, que

acaba de reconhecer em mim?

– Espere um momento, senhor. A que o obrigam as suas funções? Tenha primeiramente

a bondade de mo dizer.

– Obrigam-me, minha senhora, a ler-lhe a sentença proferida contra a senhora na sessão

de 31 de Maio de 1786.

Joana estremeceu. Olhou em torno de si com um modo cheio de angústia e desconfiança.

Não é inadvertidamente que escrevemos em segundo lugar a palavra desconfiança, que pareceria
a menos forte das duas; Joana estremeceu com uma angústia irreflectida: e como para tomar mais
sentido, abriu muito os olhos, que chamejaram nas trevas.

– O senhor é o escrivão Breton – disse ela afinal; – mas quem são aqueles dois senhores

seus acólitos?

O escrivão ia responder, quando o chaveiro correu para ele, e disse-lhe ao ouvido estas

palavras cheias de medo e de compaixão:

– Não lho diga!
Joana ouviu; olhou para os dois homens com mais atenção do que até ali fizera. Admirou-

se de ver o fato cinzento com botões de ferro de um, a véstia e o boné de peles do outro; o
singular avental que cobria o peito desse último atraiu a atenção de Joana; o avental parecia estar
queimado nalgumas partes e manchado de sangue e de azeite em outras.

Recuou. Dir-se-ia que se dobrava para tomar um impulso mais vigoroso.
– Que querem de mim? – exclamou ela.
O escrivão, aproximando-se, disse-lhe:
– Ajoelhe, minha senhora, faça favor.
– Que ajoelhe! – bradou Joana; – de joelhos! Eu! Eu!... Uma Valois de joelhos!
– São as ordens, minha senhora – disse o escrivão inclinando-se.
– Mas, senhor – observou Joana com um sorriso fatal – não sabe o que está dizendo; é

preciso que eu lhe ensine a lei? Nunca se ajoelha senão para fazer confissão pública.

– Então! Minha senhora?
– Então! Senhor, não se faz confissão pública senão em conseqüência de uma sentença

que condene a penas infamantes. O exílio não é, que eu saiba, uma pena infamante no código
francês!

– Eu não lhe disse que estava condenada ao exílio, minha senhora – disse o escrivão com

uma tristeza grave.

– Então! – bradou Joana soltando um grito – a que sou condenada?
– É o que vai saber ouvindo ler a sentença, minha senhora, e para a ouvir tem que

ajoelhar.

– Nunca! Nunca!
– Minha senhora, a lei manda que, se a condenada recusar ajoelhar...

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– O quê?
– Que seja obrigada a fazê-lo por meio da força.
– Por força! Usar da força com uma mulher!
– Uma mulher assim como um homem nunca deve faltar ao respeito devido ao rei e à

justiça.

– E à rainha! Não é assim? – bradou Joana furiosamente – por que nisso tudo reconheço

eu perfeitamente a mão de uma mulher inimiga!

– Não tem razão em acusar a rainha, minha senhora; Sua Majestade é inteiramente alheia

à redacção das sentenças do tribunal. Vamos, minha senhora, peço-lhe que nos poupe a
necessidade de empregarmos a violência; de joelhos!

– Nunca! Nunca! Nunca!
O escrivão enrolou os papéis e tirou da algibeira outro muito grosso, que guardava em

reserva, como que prevendo o que sucederia.

Leu a ordem formal dada pelo governador geral da força pública para constranger a

acusada rebelde a ajoelhar, para satisfazer à justiça.

Joana refugiou-se num canto da prisão, desafiando com o olhar essa força pública, que ela

julgava serem as baionetas, que tinha visto na escada, de fora da porta.

Mas o escrivão não a mandou abrir, fez sinal aos dois homens, de quem já falámos, os

quais se aproximaram sossegadamente como as máquinas de guerra, robustas e inabaláveis, que
se armam contra uma muralha nos assaltos.

Esses homens, apenas com uma das mãos cada um, agarraram Joana pelos ombros, e

arrastaram-na até meio da casa, a despeito dos seus gritos e furores.

O escrivão assentou-se impassível e esperou.
Joana não reparava que para assim se ter feito arrastar havia quase ajoelhado. Uma

palavra do escrivão lho fez notar.

A mola soltou-se imediatamente, isto é, Joana saltou na altura de dois pés do chão e foi

cair nos braços dos dois homens que a seguravam.

– É inútil gritar assim – disse o escrivão – porque de fora ninguém a escuta, além de que,

continuando a fazer semelhante bulha, não ouvirá a leitura da sentença.

– Permita-me que a possa ouvir de pé, e ouvi-la-ei silenciosamente – disse Joana com o

peito arquejante.

– Sempre que um criminoso é castigado com açoutes – disse o escrivão – o castigo é

infamante e obriga a ajoelhar.

– Açoutes! – bradou Joana. – Açoutes! Ah! Miserável! Disse açoutes?...
E as suas vociferações tornaram-se tais, que atordoaram o chaveiro, o escrivão, os

ajudantes, e todos estes homens, perdendo a cabeça, começaram, como gente embriagada, a
querer domar a matéria pela matéria.

Então lançaram-se a Joana e deitaram-na por terra; mas ela resistiu vitoriosamente.

Quiseram fazer-lhe dobrar as pernas, mas entesou os músculos como folhas de aço.

Ficava suspensa no ar entre as mãos desses homens, e agitava os pés e as mãos de modo a

fazer-lhes dolorosas contusões.

Dividiram entre si o trabalho: um deles segurava-lhe os pés como se estivessem metidos

num estojo; os outros agarravam-na pelos punhos e bradavam ao escrivão:

– Leia, leia a sentença, Sr. escrivão, senão há-de levar muito tempo primeiro que se

consiga alguma coisa desta endemoninhada!

– Nunca deixarei ler uma sentença que me condena à infâmia – bradou Joana lutando

com uma força sobre-humana. E unindo a acção à ameaça, dominou a voz do escrivão, com
rugidos e gritos de tal ansiedade, que não pôde ouvir uma única palavra do que o escrivão lhe leu.

Acabada a leitura, o oficial tornou a dobrar os papéis, e meteu-os na algibeira.
Joana, julgando que ele tinha acabado, calou-se, e tentou cobrar novas forças para se

defender ainda contra aqueles homens. Aos rugidos violentos sucederam-se gargalhadas ainda

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mais ferozes.

– E – prosseguiu tranquilamente o escrivão como um fim de fórmula trivial – a sentença

será executada na praça das execuções do palácio.

– Publicamente! – bradou a desgraçada... – oh!...
– Senhor de Paris, entrego-lhe esta mulher – disse o escrivão dirigindo-se ao homem do

avental de couro.

– Quem é este homem? – perguntou Joana num verdadeiro paroxismo de terror e raiva.
– O carrasco! – respondeu o escrivão inclinando-se e compondo os bofes da camisa.

XCVII

A execução


Assim que o escrivão pronunciou estas palavras, apoderaram-se de Joana os dois

executores, e levaram-na para o lado da galeria, que ela lobrigara. É forçoso renunciar a descrever
a defesa que ela opôs. Aquela mulher, que na vida ordinária perdia os sentidos por uma simples
arranhadura, suportou durante perto de uma hora os maus tratos e pancadas dos dois executores;
foi arrastada até à porta exterior sem ter um só momento cessado de soltar os mais horríveis
clamores.

Além da porta, onde os soldados reunidos continham a multidão, o pequeno pátio,

chamado da Justiça, apareceu subitamente com os seus dois ou três mil espectadores, que a
curiosidade ali atraíra desde os preparativos e a aparição do cadafalso.

Num estrado, elevado cerca de oito pés, via-se erguido um poste negro, guarnecido de

argolas de ferro, tendo no alto um letreiro, que o escrivão, obedecendo naturalmente a indicações
superiores, procurara tornar ilegível.

O estrado não tinha parapeito, e dava-lhe acesso uma escada sem corrimão. A única

balaustrada que se via era a das baionetas dos archeiros, que fechavam o recinto como uma grade
de bicos luzentes.

A multidão, ao ver as portas do palácio abrirem-se, chegarem os juízes com as suas varas,

e o escrivão com os papéis, começou o seu movimento de ondulação, que a fazia assemelhar ao
mar.

Por toda a parte os gritos de “Vejam! Vejam! Ela aí vem! Ela aí vem!” ressoavam com

epítetos pouco honrosos para a condenada, e algumas observações também pouco amáveis para
os juízes.

Mas o Sr. de Crosne tinha prevenido tudo. A primeira ordem daquela sala de espectáculo

fora ocupada por um público dedicado aos que pagavam as despesas da função. Viam-se ali, ao
pé dos agentes da polícia, as mulheres mais afeiçoadas ao cardeal de Rohan. Tinha-se achado
meio de utilizar em favor da rainha até as iras acesas contra ela. Os que tanto haviam acariciado o
cardeal de Rohan por antipatia a Maria Antonieta, iam apupar a Srª. de La Motte, que tivera a
imprudência de separar a sua causa da do cardeal.

Resultou daí que, apenas apareceu na praça, os gritos de: Fora La Motte! Fora a falsária!

compuseram a maioria e saíram com frenesi do fundo dos mais vigorosos pulmões.

Sucedeu também que os que tentaram exprimir o dó que sentiam por Joana, ou a sua

indignação contra a sentença pronunciada contra ela, foram considerados como inimigos do
cardeal pelas mulheres do Mercado, e como inimigos da rainha pelos agentes, e maltratados nesta
dupla qualidade pelos dois sexos interessados em sustentar o aviltamento da condenada. Joana
estava exausta de forças, mas não de cólera; cessou de gritar, porque os gritos se lhe perdiam no
meio da vozearia e da luta do povo. Mas com a sua voz clara, vibrante e metálica, soltou algumas
palavras, que, como por encanto, fizeram calar todos os murmúrios.

– Sabem quem eu sou? – gritou ela; – sabem que sou do sangue dos vossos reis; sabem

que castigam em mim, não uma criminosa, mas sim uma rival; sabem que sou uma rival, e não

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uma cúmplice.

Aqui foi Joana de La Motte interrompida por clamores soltados a propósito pelos mais

inteligentes empregados do Sr. de Crosne.

Mas suscitara, se não interesse, pelo menos curiosidade, e a curiosidade do povo é uma

necessidade que precisa ser satisfeita. O silêncio que ela notou provou-lhe que a queriam ouvir.

– Sim – repetiu ela – uma cúmplice! Castigam-me porque eu sabia os segredos de...
– Cautela! – lhe disse o escrivão ao ouvido.
Ela voltou-se. O carrasco tinha um azorrague na mão.
Ao vê-lo, Joana esqueceu o seu discurso, o seu ódio, o seu desejo de captar a multidão,

não viu senão a infâmia, não receou senão a dor.

– Perdão! Perdão! – bradou ela com voz aflitíssima.
Uma imensa gritaria lhe cobriu a súplica. Joana, fora de si, agarrou-se aos joelhos do

executor, e conseguiu apoderar-se-lhe da mão.

Mas ele levantou o outro braço, e deixou brandamente cair o chicote nos ombros da

condessa.

Caso inaudito: aquela mulher, que a dor física deitaria por terra, abrandara ou domara

talvez, indignou-se quando viu que a poupavam; precipitando-se sobre o ajudante do carrasco,
tentou derrubá-lo para atirar com ele fora do cadafalso, no meio da praça.

De repente recuou.
Aquele homem tinha nas mãos um ferro em brasa, que acabava de tirar do lume.

Levantava ao ar esse ferro, e ao calor imenso que ele exalava, obrigou Joana a dar um salto para
trás, soltando um brado furioso de terror.

– Marcada! – bradou ela – marcada!
O povo inteiro respondeu ao seu brado com um grito terrível.
– Sim! Sim! – clamaram ao mesmo tempo mais de três mil vozes.
– Socorro! Socorro! – bradou Joana fora de si, tentando romper as cordas com que lhe

acabavam de prender as mãos.

Ao mesmo tempo o carrasco rasgava o vestido da condessa, porque o não podia

desacolchetar, e enquanto com a mão trémula afastava a fazenda rasgada, tentava pegar no ferro
ardente que o seu ajudante lhe oferecia.

Mas Joana atirava-se contra esse homem, fazendo-o sempre recuar, porque não se atrevia

a tocar-lhe, de modo que o carrasco, desesperando de poder pegar no ferro sinistro, começou a
escutar se do meio do povo surgiria contra ele algum anátema. O amor próprio preocupava-o.

A multidão, palpitante e começando a admirar a vigorosa defesa daquela mulher, tremia

com silenciosa impaciência; o escrivão descera da escada; os soldados olhavam para o
espectáculo: era uma desordem, uma confusão, que apresentava um aspecto ameaçador.

– Acabe com isso! – bradou uma voz saída da primeira fila da multidão.
Voz imperiosa, que, sem dúvida, o carrasco conheceu; porque, deitando Joana por terra

com um impulso vigoroso, dobrou-a ao meio e curvou-lhe a cabeça com a mão esquerda.

Ela ergueu-se mais ardente do que o ferro com que a ameaçavam, e com uma voz que

dominou todo o tumulto da praça, todas as imprecações dos desastrados carrascos, exclamou:

– Cobardes Franceses, não me defendem, deixam que assim me façam torturar!
– Cale-se! – bradou o escrivão.
– Cale-se! – bradou o juiz.
– Que me cale!... É o que faltava! – disse Joana; – que mais me poderão fazer?... Sim, se

eu passo por esta vergonha é por minha culpa...

– Ah! Ah! Ah! – bradou a multidão, enganando-se com o sentido destas palavras.
– Cale-se! – repetiu o escrivão.
– Sim, por minha culpa – prosseguiu Joana, defendendo-se sempre – porque se eu tivesse

querido falar...

– Cale-se! – bradaram enraivecidos os escrivães, juízes e carrascos.

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– Se eu tivesse querido dizer tudo quanto sei a respeito da rainha... teria sido enforcada,

mas não desonrada!

Não pôde dizer mais nada, porque o juiz subiu ao cadafalso, acompanhado de agentes

que puseram mordaças na boca da miserável mulher, e a entregaram, toda palpitante, magoada,
com o rosto inchado, lívido, ensangüentado, aos dois executores, um dos quais curvara
novamente a sua vítima, recebendo ao mesmo tempo o ferro que o seu ajudante conseguira dar-
lhe.

Mas Joana aproveitou-se, como uma serpente, da insuficiência da mão que lhe apertava a

nuca; deu ainda um salto, e voltando-se com uma alegria frenética, ofereceu o peito ao carrasco,
olhando para ele com olhar provocador, de modo que o fatal instrumento, que lhe ia descendo
sobre o ombro, foi pousar-lhe no seio direito, onde imprimiu a sua forma fumegante e
devoradora na carne viva, arrancando à vítima, apesar da mordaça, um desses rugidos que não
tem equivalente em nenhuma das entonações que possa reproduzir a voz humana.

Joana caiu a poder de dor e de vergonha. Estava vencida. Os lábios não lhe exprimiram

mais som algum, nem os membros lhe estremeceram mais; tinha realmente perdido os sentidos.

O carrasco levou-a às costas dobrada pela cintura, e com passo incerto desceu com ela a

escada da ignomínia.

Quanto ao povo, mudo também, quer aprovasse, quer estivesse consternado, não

desapareceu pelas quatro saídas da praça senão depois de ter visto as portas da Conciergerie
fecharem-se sobre Joana, depois de ter visto o cadafalso desmanchar-se lentamente peça por
peça, depois de se ter certificado de que o horrível drama, que o parlamento lhe oferecera, não
tinha epílogo.

Os agentes vigiaram até as últimas impressões dos assistentes; as ordens tinham sido tão

franca e terminantemente articuladas, que teria sido loucura opor qualquer objecção à sua lógica
armada de cacetes e algemas.

A objecção, se a houve, foi tranqüila e interior. A pouco e pouco, a praça apresentou o

seu aspecto ordinário; apenas na extremidade da ponte, quando a multidão toda se dissipou, dois
homens, moços e reflectidos, que, assim como todos, iam retirando, tiveram entre si o seguinte
diálogo:

– Foi realmente a condessa de La Motte quem o carrasco marcou? Julga isso,

Maximiliano?

– Dizem que sim, mas não me parece... – redargüiu o mais alto dos dois interlocutores.
– É de parecer que não foi ela, não é verdade? – acrescentou o outro, homúnculo de

olhos redondos e brilhantes como os das aves nocturnas, e cabelo curto e oleoso; – não, não é
verdade, não foi a de La Motte que eles marcaram. Os agentes destes tiranos pouparam-lhe a
cúmplice. Quem achou, para descarregar Maria Antonieta da acusação, uma tal Oliva, que
confessou ser uma prostituta; podia muito bem ter achado uma falsa de La Motte, que se
prestasse a passar por falsária. Dir-me-á que foi marcada; mas, ora adeus! Não passa de uma
comédia paga por bom preço ao carrasco e à vítima! Custou mais caro, é verdade, mas é isto!

O outro ouviu tudo abanando a cabeça. Sorria sem responder.
– Por que não responde? – disse o homúnculo; – não convém no que eu digo?
– Parece-me difícil achar alguém que se deixasse assim marcar no seio – redargüiu ele; – a

comédia de que fala parece-me carecer de prova. É mais médico do que eu, e há-de ter conhecido
o cheiro da carne queimada, que me deixa uma recordação bem desagradável, confesso-o.

– Com dinheiro tudo se consegue, digo-lho eu; paga-se uma condenada, que seria

marcada por qualquer outro crime, para dizer três ou quatro frases pomposas, e quando ela está a
ponto de denunciar, põe-se-lhe uma mordaça na boca...

– Bem, bem, nesse terreno não o seguirei; é pouco sólido – disse fleumaticamente aquele

a quem chamara Maximiliano.

– Oh – disse o outro – fará como os papalvos, dirá que viu marcar a Srª. de La Motte, são

caprichos seus. Não era assim que ainda há pouco falava, porque positivamente me disse: Não

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creio que fosse a Srª. de La Motte a quem marcaram.

– Nem o creio ainda – redargüiu o mancebo sorrindo – mas também não creio que fosse

nenhuma dessas condenadas a quem se refere.

– Então, quem foi, vejamos, quem foi a pessoa que ali marcaram em lugar da Srª. de La

Motte?

– Foi a rainha – respondeu o mancebo com voz aguda ao sinistro companheiro, e

acentuou estas palavras com o seu sorriso indefinível.

O outro recuou soltando uma gargalhada, e aplaudindo o gracejo, olhou em torno de si, e

disse:

– Adeus, Robespierre.
– Adeus, Marat – respondeu o outro.
E separaram-se.

XCVIII

O casamento


No dia da execução, ao meio-dia, saiu o rei do gabinete, em Versalhes, e ouviram-no

despedir-se do Sr. de Provença com estas palavras, pronunciadas com aspereza:

– Senhor, hoje assisto a uma missa de casamento. Não me fale de negócios de família, e

principalmente de negócios meus, peço-lhe isso; porque seria um mau agouro para os nubentes, a
quem protegerei e de quem sou amigo.

O conde de Provença franziu o sobrolho sorrindo-se, cortejou profundamente o irmão, e

voltou para casa.

O rei, prosseguindo no seu caminho por entre os cortesãos espalhados na galeria, sorria

para uns e olhava com soberba para outros, conforme o aspecto favorável ou de oposição, que
eles haviam apresentado durante a questão que o parlamento acabava de julgar.

Chegou até à sala quadrada, onde estava a rainha preparada, no círculo das damas e

gentis-homens.

Maria Antonieta, empalidecendo por baixo do carmim, escutava com atenção afectada as

perguntas que a Srª. de Lamballe e o Sr. de Calonne lhe dirigiam sobre a sua saúde.

Mas, muitas vezes, furtivamente, olhava para o lado da porta, procurando como quem

arde em desejos de ver, desviando a vista como quem treme por ter visto.

– O rei! – bradou um dos criados da casa.
E numa onda de bordados, de rendas e de luz, viu entrar Luís XVI, cujo primeiro olhar,

logo à entrada da sala, foi para ela.

Maria Antonieta levantou-se e deu três passos para ir ao encontro do rei, que lhe beijou a

mão.

– Está hoje muito formosa, milagrosamente formosa, minha senhora! – disse ele.
Ela sorriu tristemente, e com o olhar vago procurou de novo no meio da multidão o

ponto desconhecido que dissemos.

– Não chegaram ainda os nossos noivos? – perguntou o rei. – Parece-me que é quase

meio-dia.

– Senhor – respondeu a rainha com um esforço por tal modo violento, que o carmim se

lhe fendeu nas faces, caindo de vários pontos – ainda não chegou senão o Sr. de Charny; está
esperando na galeria que Vossa Majestade lhe ordene que entre.

– Charny!... – disse o rei sem reparar no expressivo silêncio que sucedera às palavras da

rainha; – Charny já ali está? Pois que apareça! Que apareça!

Alguns gentis-homens se destacaram para ir ao encontro do Sr. de Charny.
A rainha carregou nervosamente com os dedos sobre o coração e tornou a assentar-se,

voltando as costas para a porta.

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– Realmente, é já meio-dia – repetiu o rei – e a noiva já deveria cá estar.
Pronunciava o rei estas palavras no momento em que o Sr. de Charny aparecia na entrada

da sala; ouviu ainda as últimas palavras do rei, e respondeu logo:

– Digne-se Vossa Majestade desculpar a demora involuntária da Srª. de Taverney; desde a

morte do seu pai, tem sempre estado doente. É hoje a primeira vez que se levanta, e já teria vindo
receber as ordens de Vossa Majestade, se não fosse um desmaio que lhe sobreveio.

– Coitada! Era tão amiga do pai! – disse o rei em voz alta; – mas como achou um bom

marido, esperamos que em breve se conforme com a dor.

A rainha escutou, ou, melhor diremos, ouviu, sem fazer movimento algum. Qualquer que

a tivesse seguido com a vista, enquanto Charny falava, teria visto o sangue fugir-lhe, como um
nível que se abaixa, da fronte para o coração.

O rei, notando a afluência de nobreza e de clero que enchia as salas, ergueu subitamente a

cabeça.

– Sr. de Breteuil – disse ele – já expediu a ordem de exílio para Cagliostro?
– Sim, meu senhor – redargüiu o ministro com toda a prontidão e humildade.
Um sopro de ave a dormir teria interrompido o silêncio da assembléia.
– E a tal La Motte, que se diz ser de Valois – continuou o rei com voz forte – não é hoje

que deve ser marcada?

– A esta hora, meu senhor – redargüiu o chanceler-mor – já deve estar tudo acabado.
Os olhos da rainha chamejaram. Um murmúrio, que tinha a pretensão de ser aprovativo,

circulou na sala.

– Quando o Sr. cardeal souber que lhe marcaram a cúmplice há-de ter com isso algum

dissabor – prosseguiu Luís XVI com uma tenacidade de rigor que até então ninguém lhe
conhecera.

E com esta frase a sua cúmplice, dirigida a um acusado que o parlamento acabava de

absolver, com esta palavra, que condenava como ladrão e falsário um dos primeiros príncipes da
Igreja, um dos principais fidalgos franceses, o rei, como se lançasse um desafio formal ao clero,
aos nobres, ao povo, para sustentar a honra de sua mulher, o rei olhou em volta de si com um
olhar chamejante cheio dessa cólera e majestade que ninguém ainda vira em França desde que os
olhos de Luís XIV se tinham fechado para o sono eterno.

Nem um murmúrio, nem uma palavra de assentimento recebeu esta vingança, que o rei

tomava de quantos tinham conspirado para desonrar a monarquia. Então aproximou-se da
rainha, que estendeu para ele as mãos com efusão de profundo agradecimento.

Neste momento apareceram na extremidade da galeria a Srª. de Taverney vestida de

branco como uma noiva, e com o rosto pálido como o de um espectro, e Filipe de Taverney, que
lhe dava a mão.

Andréa avançava a passos rápidos, com o olhar perturbado, o peito arquejante; não via,

nem ouvia; a mão do irmão dava-lhe força e coragem, imprimindo-lhe direcção.

A multidão dos cortesãos sorriu na passagem da noiva. As mulheres colocaram-se atrás

da rainha, os homens atrás do rei.

O bailio de Suffren, trazendo pela mão Olivier de Charny, foi ao encontro de Andréa e

do irmão, cortejou-os e confundiu-se no grupo dos amigos particulares e dos parentes.

Filipe continuou o caminho sem que o seu olhar tivesse encontrado o de Charny, sem

que a pressão dos seus dedos tivesse prevenido Andréa de que devia erguer a cabeça.

Chegado em frente do rei, apertou a mão da irmã, a qual, como uma defunta galvanizada,

abriu os olhos e viu o rei, que para ela sorria com agrado.

Cortejou-o no meio do murmúrio das pessoas presentes, que lhe aplaudiam assim a

formosura.

– Minha senhora – disse o rei tomando-lhe a mão – teve que esperar pelo fim do seu luto

para casar com o Sr. de Charny; talvez que, se eu lhe não houvesse pedido para apressar o
casamento, o seu futuro esposo, apesar da sua impaciência, lhe permitisse ainda um mês de

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demora; porque, segundo me disseram, está doente, o que eu muito sinto; mas é do meu dever
assegurar a felicidade dos bons fidalgos, que me servem como o Sr. de Charny, e se não se
recebessem hoje, não assistiria ao seu casamento, porque parto amanhã para uma viagem pela
França com a rainha. Assim, terei hoje o prazer de assinar o contrato do casamento, e de os ver
casar na minha capela. Corteje a rainha, minha senhora, e agradeça-lhe, porque Sua Majestade
mostrou-se cheia de bondade para com a senhora.

Ao mesmo tempo, conduziu ele mesmo Andréa a Maria Antonieta.
Esta erguera-se maquinalmente com os joelhos trémulos, as mãos geladas. Não ousou

levantar os olhos e viu unicamente um vulto branco, que se aproximava e inclinava diante dela.

Era o vestido de casamento de Andréa.
O rei restituiu logo a Filipe a mão da noiva, deu a sua a Maria Antonieta, e disse em voz

alta:

– Meus senhores, para a capela.
Toda aquela multidão passou silenciosamente atrás de Suas Majestades para ir tomar os

seus lugares.

A missa começou logo. A rainha ouviu-a curvada no seu genuflexório com a cabeça

apoiada nas mãos. Orava com todo o fervor da sua alma, com todas as suas forças; dirigia ao céu
votos tão ardentes, que o sopro dos lábios lhe devorou a umidade das lágrimas.

O Sr. de Charny, pálido e belo, sentindo sobre si o peso de todos os olhares, mostrou-se

tranqüilo e denodado, como o fora a bordo do seu navio, no meio dos turbilhões de chamas e
dos furacões da metralha inglesa; com a diferença que sofria muito mais.

Filipe, com os olhos cravados na irmã, que via estremecer e cambalear, parecia estar

sempre pronto a socorrê-la com alguma palavra ou gesto de consolação ou amizade.

Mas Andréa não se desmentiu, permaneceu com a cabeça alta, respirando a cada

momento o seu frasco de sais, moribunda e vacilante como a chama de uma vela, mas de pé e
perseverando em viver pela força da sua vontade.

Aquela não dirigiu rogos ao céu, não fez ouvir votos pelo futuro, nada tinha que esperar,

nada que recear; nada era a Deus, nem aos homens.

Quando o padre falava, quando o sino sagrado tangia, quando se cumpria em torno dela

o mistério divino, Andréa dizia consigo:

– Sou eu sequer uma cristã? Sou porventura um ente como os outros, uma criatura

semelhante às mais? Criaste-me tu para a piedade, tu, a quem chamam o Deus soberano, árbitro
de todas as coisas? Tu, que dizem o justo por excelência e que sempre me tens punido sem que
eu haja pecado! Tu, a quem chamam o Deus da paz e do amor, e a quem devo esta vida de
tormentos, de cóleras, de sanguinolentas vinganças! Tu, a quem eu devo que seja o meu mais
cruel inimigo, o único homem a quem tenho amado!

“Não, prosseguiu ela, não, as coisas deste mundo e as leis de Deus não têm relação

comigo! Fui sem dúvida amaldiçoada antes de nascer, e na ocasião do meu nascimento fui posta
fora das leis da humanidade.”

E depois, voltando ao seu passado doloroso, murmurou:
– É singular! Bem singular! Está aqui perto de mim um homem, de que só o nome me

fazia morrer de felicidade. Se este homem me tivesse vindo pedir, por mim só, ver-me-ia
obrigada a deitar-me aos pés dele e a pedir-lhe perdão do meu erro de outrora, do vosso erro,
meu Deus! E este homem, que eu adorava, ter-me-ia talvez repelido. Hoje, esse mesmo homem
casa comigo, e há-de ser ele quem me há-de pedir perdão, ajoelhando e prostrando-se ante mim!
É bem singular! Oh! Por certo que o é!

Naquele momento soou-lhe aos ouvidos a voz do padre, que dizia:
– Jacques Olivier de Charny, recebe por esposa Maria Andréa Taverney?
– Sim – respondeu Charny com voz firme.
– Maria Andréa de Taverney, recebe por esposo a Jacques Olivier de Charny?
– Sim!... – respondeu Andréa num tom quase selvagem, que fez estremecer a rainha e

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várias senhoras do auditório.

Então Charny enfiou o anel de ouro no dedo de sua mulher, e o anel passou sem que

Andréa sentisse a mão que lho oferecia.

Pouco depois, levantou-se o rei. Tinha acabado a missa. Todos os cortesãos foram

cumprimentar os noivos à galeria.

O Sr. de Suffren pegara na mão de sua sobrinha, e prometia-lhe, em nome de Charny,

toda a felicidade que ela merecia ter.

Andréa agradeceu ao bailio sem um único instante desenrugar a fronte, e rogou ao novo

tio que a conduzisse imediatamente a el-rei para lhe agradecer, pois que se sentia fraca e pouco se
podia demorar.

Ao mesmo tempo, horrível palidez lhe cobriu o rosto.
Charny contemplava-a de longe, sem aproximar-se dela.
O bailio atravessou a sala, grande, conduziu Andréa até próximo do rei, que lhe deu um

beijo na fronte, e disse:

– Srª. condessa, entre nos aposentos da rainha; Sua Majestade quer dar-lhe o seu presente

de noivado.

Depois destas palavras, que ele julgava cheias de amabilidade, retirou-se seguido por toda

a corte, deixando a noiva fora de si, desesperada, pelo braço de Filipe.

– Oh! – murmurou ela – isto é de mais! É de mais! É de mais, Filipe! Pois parece-me ter

suportado bastante!

– Ânimo! – disse Filipe em voz baixa; – mais esta provação, minha irmã.
– Não! Não! – respondeu Andréa – não posso. As forças de uma mulher são limitadas;

talvez eu faça o que me pedirem, mas pensa bem, Filipe, se ela me fala, se ela me cumprimenta, eu
morro!

– Morrerás, se for preciso, minha querida irmã – disse o mancebo – e então serás mais

feliz do que eu, porque terás o que desejo para mim!

E pronunciou estas palavras com inflexão de voz tão triste e dolorosa, que Andréa, como

que ferida inopinadamente, dirigiu-se a correr para os aposentos de Maria Antonieta.

Olivier viu-a passar, e pôs-se de lado para lhe não roçar pelo vestido na passagem.
Ficou só na sala com Filipe, e ambos, de cabeça baixa, esperaram o resultado da

conferência que a rainha ia ter com Andréa.

Esta achou Maria Antonieta no seu grande gabinete. Apesar da estação, no mês de Julho,

a rainha tinha mandado acender lume: estava assentada na sua poltrona, com a cabeça reclinada
para trás, os olhos fechados, e as mãos cruzadas como uma defunta.

Tiritava de frio.
A Srª. de Misery, que introduzira Andréa, correu os reposteiros, fechou então as portas, e

saiu do quarto.

Andréa, de pé, trémula de comoção, de cólera, e também de fraqueza, esperava, de olhos

baixos, que lhe chegasse ao coração alguma palavra. Esperava a voz da rainha, como o
condenado espera o cutelo que deve cortar-lhe o fio da vida.

Seguramente, se Maria Antonieta tivesse naquele momento proferido alguma palavra,

Andréa, despedaçada como estava, teria sucumbido antes de compreender ou de responder.

Um minuto, um século desse horrível padecimento se passou sem que a rainha fizesse um

único movimento.

Enfim levantou-se apoiando-se nos braços da poltrona, e pegou num papel de cima da

mesa, que os seus dedos vacilantes deixaram por várias vezes cair.

Depois, caminhando como uma sombra, sem que se ouvisse outro ruído senão o roçar do

vestido pelo tapete, foi com o braço estendido para Andréa, e entregou-lhe o papel, sem dizer
palavra.

Entre esses dois corações, era supérflua a palavra; a rainha não precisava provocar a

inteligência de Andréa, e esta não podia um único momento duvidar da grandeza de alma da

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rainha.

Qualquer outra teria pensado que Maria Antonieta lhe oferecia um rico presente, ou a

assinatura de um acto de posse de alguma propriedade ou a nomeação para algum lugar na corte.

Andréa adivinhou que o papel continha outra coisa. Recebeu-o, e sem se tirar do lugar

que ocupava, começou a ler.

Maria Antonieta deixou pender os braços, e ergueu os olhos lentamente para Andréa.
O papel continha o seguinte:

“Andréa, salvou-me. A minha honra vem da senhora, a minha vida é sua. Em nome dessa

honra, que tão cara lhe custa, juro-lhe que pode chamar-me sua irmã. Experimente, que não me
verá corar.”

“Entrego nas suas mãos este papel; é o penhor da minha gratidão; é o dote que lhe dou.”
“O seu coração é de todos o mais nobre, e saberá agradecer o presente que lhe faço.”

(Assinada) “Maria Antonieta de Lorraine de Áustria.”

Andréa olhou também para a rainha. Viu-a com os olhos marejados de lágrimas, a cabeça

atordoada, esperando uma resposta.

Depois atravessou lentamente o quarto, foi queimar o bilhete da rainha no fogão, e

fazendo uma mesura profunda, sem articular uma palavra, saiu do gabinete.

Maria Antonieta deu um passo para a deter ou para a seguir; mas a inflexível condessa

deixando a porta aberta, foi ter com o irmão à sala contígua.

Filipe chamou Charny, pegou-lhe na mão e colocou-a sobre a de Andréa, enquanto no

limiar do gabinete, por detrás do reposteiro que ela afastava com o braço, a rainha assistia a esta
cena dolorosa.

Charny retirou-se como o desposado da morte conduzido pela sua lívida noiva; retirou-se,

voltando-se para trás para ver o pálido rosto de Maria Antonieta, que de passo em passo o viu
desaparecer para sempre.

Assim o julgava ela, pelo menos.
Na porta do palácio, estavam duas carruagens de viagem. Andréa meteu-se na primeira; e

quando Charny se preparava para a seguir, a nova condessa disse:

– Senhor, parece-me que parte para a Picardia.
– Sim, minha senhora – respondeu Charny.
– E eu parto para a terra onde morreu minha mãe, Sr. conde. Adeus!
Charny inclinou-se sem responder. Andréa partiu só.
– O senhor fica comigo para me provar que é meu inimigo? – disse então Olivier a Filipe.
– Não, Sr. conde – redargüiu este – não é meu inimigo, pois que é meu cunhado.
Olivier estendeu-lhe a mão, meteu-se na outra carruagem e partiu.
Filipe ficou, torceu um instante os braços com a angústia do desespero, e com voz

sufocada, disse:

– Meu Deus! Reservais vós alguma alegria no céu àqueles que na terra cumprem os seus

deveres? Alegria! – repetiu ele olhando uma última vez para o palácio – eu falo de alegria!... Para
quê!... Só devem esperar outra vida aqueles que acharem lá em cima os corações que os amavam.
A mim ninguém me teve amor neste mundo; nem sequer tenho, como eles, a doçura de desejar a
morte!

Depois dirigiu ao céu um olhar cheio de amargura, uma doce repreensão de cristão, cuja

fé vacila, e desapareceu, como Andréa e como Charny, no último turbilhão daquela tempestade,
que acabava de abalar um trono, esmagando tantos nomes honrados e tanto amor.

FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO VOLUME

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