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A PONTE DOS SUSPIROS


FERNANDO CAMPOS


Colecção Literatura Portuguesa


DIFEL


Digitalização e Arranjo


Rosa Branca Henriques
e Agostinho Costa


Fernando Campos Nasceu em 1924 em Águas Santas, concelho da
Maia, nos arredores do Porto. Estudou em Coimbra onde se
licenciou em Filologia Clássica e foi professor no Liceu Pedro
Nunes, em Lisboa. Para além de algumas obras didácticas e
pequenas monografias de investigação etimológica e literária,
é autor do romance histórico A Casa do Pó, a sua primeira obra
de fôlego a ser publicada e que o colocou entre os grandes
escritores portugueses, a que se seguiram Psiché, O Homem da
Máquina de Escrever, O Pesadelo de dEus, A Esmeralda Partida,
(Prémio Eça de Queirós - 1995), A Sala das Perguntas e Viagem
ao Ponto de Fuga, todas editadas pela Difel. Algumas das suas
obras estão traduzidas em França, Alemanha e Itália.


Há os que dizem que sim e os que dizem que não. Ambos
acreditam na sua verdade. Ainda hoje. Ele morreu? Não morreu?
Regressou disfarçado ao reino, depois do destroço da batalha,
e andou por aí, envergonhado, a ouvir o que diziam de si?...
Um rei envergonhado, humilhado, arrependido, escondido, de
tanta doidice que a sua orgulhosa juventude provocou até à
perda da pátria. Onde se vira tal na história do mundo? Um
império desfeito, abocanhado pela ambição das nações
poderosas...
O ficcionista não tem de acreditar, não tem de argumentar,
aduzir provas. Tem de fingir que acredita e tentar levar os
leitores, durante os instantes da leitura, a aderirem àquele
fingimento... apesar de ser verdade que, um dia, em Veneza,
ele apareceu... apesar de ser verdade que, um dia, em
Sanlúcar, Filipe III mandou enforcar e espostejar e lançar aos
cães um que se dizia ser ele... apesar de ser verdade que... e
que... e que... como aqui dentro, neste livro, se verá.



OBRAS DO AUTOR

Didácticas:

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- Prosadores Religiosos do Século XVI (antologia
organizada de colaboração com Alcides Soares), Coimbra,
Livraria do Castelo, 1950.

- A Redacção (orientação e exercícios), Porto, Livraria
Avis, 1968, 1970, 1972.

- A Vila de São Teotónio uma fonte de Os Lusíadas?, in
Panorama, nº 44 e separata, Lisboa, 1972.

- O arinteiro de el-rei (monografia de investigação
etimológica), in Armas e Troféus, 1972, III Série-tomo 1,
Jul.-Set., nº 2, pp. 196-202.


Ficção:


- A Casa do Pó, romance, Lisboa, DIFEL, 1986, 2ª e 5ª
ed. 1987, 6ª ed. 1988, 7? ed. 1991, 8.á ed. 1994, 9.ª ed.
1996, 10ª ed. 1997, 11ª ed. 1999; 12ª ed.
Círculo de Leitores;

- O Homem da Máquina de Escrever, sátira, Lisboa, DIFEL,
1987, 2ª ed. 1997;

- Psiché, romance, Lisboa, DIFEL, 1987; 2ª ed. 1988.

- O Pesadelo de Deus, romance, Lisboa, DIFEL, 1990.

- A Esmeralda Partida, romance, DIFEL, 1995 (Prémio Eça
de Queirós, da Câmara Municipal de Lisboa); 2ª e 3ª ed.
1995, 4ª ed. Círculo de Leitores, 1996; 5ª ed. DIFEL,
1999.

- A Sala das Perguntas, romance, DIFEL, 1998; 2ª e 3ª-
ed. 1999, 4ª ed. 2000, 5ª ed. Círculo de Leitores, 2000.

- Viagem ao Ponto de Fuga, contos, Lisboa, DIFEL, 1999.


Outras:


- Portugal, álbum, texto do autor e fotografias de
Jean-Charles Pinheira, Lisboa, DIFEL, 1989.

Antologias em que está incluído:
- Flor de Estufa, conto, in Imaginários Portugueses,
Antologia de Autores Portugueses Contemporâneos, Fora do
Texto, Lisboa, 1992.

- A fonte da paciência, conto, Fundação Calouste
Gulbenkian, Boletim Cultural, Memórias da Infância, VIII
Série, nº 1, Dez. 1994.

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- Regressos, conto, inédito em português e publicado pela
primeira vez em italiano com o título Ritorni, Europa
Come, 15 Racconti per 15 Nazioni, antologia de 15 contos, um
por cada país da UE, promovida pela Itália, Florença, Giunti,
Gruppo Editoriale, 1996.

- No cimo da montanha, conto, jornal A Capital, Lisboa.

- O Inferno e o Paraíso, conto, in Contoário Cem, Editora
Escritor, Lisboa, 1996.

- Colaboração no JL -Jornal de Letras, Artes e Ideias,
com crónicas intituladas Os Trabalhos e os Dias.
Participação em antologias:
Beja, C. M. de Beja, 1996; Macedo de Cavaleiros, C. M. de
Macedo de Cavaleiros, 1997; Camilo e o "O Marquês de
Torres Novas", C. M. de Famalicão, 1999; Gama, Camões, Vieira,
Pessoa, A Gesta e os Poemas, a Profecia, Livraria Nova
Galáxia, Caldas da Rainha, 1999.



A Ponte dos Suspiros


Fernando Campos


(c) 1999, Difel SA


Todos os direitos de publicação desta obra
em língua portuguesa reservados por:


DIFEL - Difusão Editorial, S. A.



Denominação Social - DIFEL 82
- Difusão Editorial, S A.


Sede Social - Avenida das Túlipas,
nº 40-C - Miraflores
- 1495-159 Algés - Portugal


- Telefs.: 21 412 35 10


- Fax: 21 412 35 19


- E-mail:
Difel.SA@mail.telepac.pt

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Impressão e acabamento:


Tipografia Guerra- Viseu - 2000



Alegue o historiador com os escritores que da dita
batalha, por estas ou por aquelas razões, o fazem sair vivo e
juntamente com os outros que, por outras razões, o fazem na
mesma batalha morto. Destes dois sucessos certamente um é
certo. Humanamente não podemos saber qual é o verdadeiro. Por
não expor a perigo o crédito da verdade, fique a questão
indecisa.


RAFAEL BLUTEAU, citado por J. P. BAIÃO
in Portugal Cuidadoso e Lastimado, p. 729)



Índice


I - O galeão São Mateus ................... 9
II - Estrella ............................ 25
III - O sapateiro santo .................. 43
IV - O sósia ............................. 71
V - A ponte dos Suspiros ................. 97
VI - Os sinais do corpo ................. 123
VII - A espada e o anel ................. 153
VIII - Massacre em Sanlúcar ............. 177
Epílogo - "se é verdade o que dizem" .... 201
Notas ................................... 209



I - O galeão São Mateus


Flutuava sobre a laguna o vazio e o nada, cerrara-se uma
espessura de bruma que o sol da manhã nascente, sem a
conseguir romper, mal dourava de um rubor genesíaco. Na
humidade viscosa, cortada por manso respiro de asas e pios de
gaivotas,
entranhara-se o fedor que a maré vaza destilava das cloacas da
cidade invisível.
- Grande Canal - vem da cerração uma voz. - Estamos a chegar.
Como fantasma a proa da gôndola surge das entranhas do
nevoeiro e logo a embarcação acosta ao cais. O homem apeou-se:
-Arrivederci, buon uomo.
Que palidez! pensa o gondoleiro. Como rebrilham aqueles olhos
no escuro do capuz! A barba a grisalhar antes do tempo, os
dedos brancos da mão, como de cadáver mas bem cuidados,
aferrados ao bordão, a outra a acenar leve adeus... É prà i
algum grande senhor, apesar do burel e do desalinho...

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-Arrivederci, Eccellenza.
Vê afastar-se, a esvoaçar engolida na névoa, a sombra da capa
de romeiro,
ouve-lhe o eco dos passos sem imagem esbater-se na fundura
cinzenta em direcção a São Marcos.


9


Sente um arrepio: "Uma alma do outro mundo!" Persigna-se e
abala dali.
Num canto da piazza o homem bateu a uma porta. Um criado vem
abrir.
- Sua Eminência, o arcebispo de Espálato? - Quem devo
anunciar?
- Um peregrino acabado de chegar da Terra Santa. Português.
Desejo falar a Sua Eminência. Matéria da máxima importância.
O criado foi dentro e não tardou a reaparecer: - Sua Eminência
aguarda-vos.
Um átrio lajeado de mármores, paredes ornadas de retratos a
óleo de prelados de ar estático, cadeirões encourados,
pregueados de cobre, em nichos dourados imagens de santos,
peanhas com estátuas de deuses pagãos, um busto do imperador
Diocleciano, ao fundo escadaria sumptuosa.
- Por aqui, senhor - disse o mordomo, começando a subir.
O arcebispo estava sentado à secretária. Debaixo, enrolado a
seus pés, um dálmata levantou o focinho e as pintas negras
rosnaram.
- Calado, Split!
Mas o cão levantou-se e, a dar ao rabo, aproximou-se do
desconhecido, que, como habituado, lhe fez uma festa.
- Estes bichinhos sabem quem é deles amigo - sorriu o prelado.
- Que me quereis falar...
Era um homem magro e seco, as pontas dos cabelos a fazerem
coroa em roda do solidéu, a barba encanecida, pontiaguda. O
tamanho do tronco inculcava ser alto.
- Deus vos cubra de graças por me terdes recebido, Eminência.
A seu lado, de pé, um cónego de sotaina preta à entrada do
peregrino suspendera o gesto de apresentar ao superior alguns
papéis.
-... peregrino... português... - mirava-o o prelado. - Vindes
da Terra Santa?
- Sua Eminência o arcebispo de Espálato tem na sua frente o
homem mais desgraçado que jamais se viu.
Remirou-o o arcebispo, a magreza na estatura alçada, na barba
rala o loiro riscado de fios de prata, a postura mal ocultando
na capa de romeiro traços de altivez...
- Falai - disse.
- Ouvistes certamente contar daquele grande destroço que foi
para a cristandade a batalha do rei de Portugal contra os
Mouros?
- Quem não ouviu? Deu brado em todo o mundo. - Alcácer Quibir
- lembrou o cónego.
- Grande descalabro, sim - continuou o arcebispo. - O exército
cristão destroçado, o rei morto...
- O rei não morreu. - Que dizeis?

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- O rei não morreu? - repetia o cónego abismado.
- Como o podeis afirmar, se Filipe de Espanha o sepultou com
solenes exéquias em Lisboa?
- O rei está vivo. Sou a única pessoa neste mundo que o pode
testemunhar.
- Como assim?
- Todos estes anos, desde aquele fatal fim de tarde, nunca
dele me apartei. As suas angústias foram as minhas angústias,
as suas dores, as minhas dores... - suspendeu-se, a garganta
embargada, os olhos aguados, depois continuou: a sua
humilhação, a minha humilhação...

10 - 11


- Mas vós viestes sozinho. Onde está o rei? - O rei e eu...
- Este homem é louco! - exclamou o cónego.
O arcebispo levantou-se, estendeu a mão ao acólito a
suster-lhe a fala:
- Estais a querer dizer-me...
- Sim, Eminência.
O arcebispo deu alguns passos na sala com ar concentrado.
Parou em frente do estrangeiro e disse:
- Uma enormidade! Como o poderíeis provar? - É um louco! -
repetia o cónego.
- Rei sem coroa, sem ceptro, sem anel...
-... e sem reino, podeis acrescentar - tornou o peregrino com
triste dignidade mas um lampejo de majestade no olhar e na
voz. E, como o arcebispo hesitasse em falar, continuou: -
Compreendo a vossa perplexidade e descrença. Um rei não
aparece assim, caído do nada, vestido de peregrino, em casa de
um arcebispo longínquo...
-... e essa batalha foi já há muito tempo - lembrava o cónego.
- Há vinte anos - disse o desconhecido e precisou: - Vão cair
vinte anos no dia quatro de Agosto próximo.
- Então - perguntou o arcebispo-porque é que só agora...?
- Contar-vos-ei tudo como se passou.
- Mas sentemo-nos - tornou o prelado, entre curioso e
duvidoso, e indicava uma cadeira ao peregrino.
Sentaram-se os três e o estrangeiro começou:
- Estou a morar aqui em San Beneto, em casa de Jerónimo
Migliori. Alguns portugueses emigrados na cidade vieram até
mim e logo se prontificaram a ajudar-me. Foram eles que me
aconselharam a procurar-vos.
- E em que poderei eu...?
- Acreditaram em mim, depois de me ouvirem, que eu sou quem
sou... E sentiram piedade. E sentirem piedade feriu o meu
orgulho e por fim abateu-o.
- Orgulho ainda, ao cabo de vinte anos?
- Vede, arcebispo, como ainda não estou limpo de minhas
misérias e prosápias.
- Pensei que ia ouvir a história de um orgulho abatido. -
Avaliareis a que ponto eu era orgulhoso e desatinado. Porque
não segui eu, antes de partir para África, os conselhos dos
mais velhos e assisados? Não era esta a pergunta dos que
verdadeiramente queriam o bem do reino? Que arrogante e
insensato fui! Fernando Álvares de Noronha, general das galés,

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mandei-o ir esperar-me com elas em Cascais. Bem se arreceou
ele de que eu intentava ir cometer pelo mar alguma travessura
contra os corsários. Era isto em quinhentos e setenta e
quatro. Não presumiu que eu chegasse ao excesso de, sem que
ninguém esperasse, passar a África. Quando me viu resolvido a
executá-lo, teve-o por desvario. Fidalgo velho e
experimentado, contrariou-o quanto pôde. Sem proveito. Tão
determinado em meu apetite e fogo da mocidade, com as
louvaminhas dos aduladores, não atendia às oposições dos
prudentes e zelosos. Em Tânger
despedi-o para o reino com as galés, no propósito de lá ficar
esperando por força de gente com que fizesse guerra aos
Mouros. Repugnou ele o projecto, com fundamentos sólidos.
Lembrava-me o perigo de descrédito de minha pessoa real.
Persisti em minha disposição. Respondeu-me - foram estas as
suas textuais palavras -: "Em nenhuma maneira hei-de ir nem eu
nem as galés sem levar Vossa Alteza, ainda que me mandeis
cortar a cabeça. Sofrê-lo-ei melhor do que desamparar-vos."

12 - 13


E acrescentou: "Se assim o ordenardes, folgarei que se diga
mandara Sua Alteza matar um fidalgo velho por lhe dizer as
verdades tocantes a seu serviço."
Bramei com ele, agastado, mas, abalado da resposta e do que a
experiência e outras razões me mostravam e vencido agora do
desvelo e autoridade de D. Fernando, disse-lhe enfim: "Ora
vamos, já que porfiais, e fartar-vos-ei essa vontade." E
ordenei se suspendesse, por então, a marcha da gente do reino.
- Honrosa resolução, em verdade - observou o arcebispo, com ar
de dúvida, afagando um sobrolho crítico. - Mas depois...
- Altivo de minha condição, arrogante, insensato, não desisti
de meus planos. Adiados apenas. Prossegui os preparativos para
a grande jornada. Meu tio Henrique, quando fui a Évora dar-lhe
conta da empresa e rogar-lhe que a aprovasse, embora com
brandura não deixou de me contradizer e recusou-se a ser
regente durante a minha ausência. Minha avó Catarina, um mês
antes de falecer... estava eu em Salvaterra, era Janeiro de
setenta e oito, uma terça-feira, dia catorze... vieram-me
dizer que ela...
"Já os podengos as filham pelas pernas, aferram-lhes as cerdas
do cachaço em rosnidos furiosos. Soa o olifante e a algazarra
ecoa pela lezíria alvoroçada. Acorrem os monteiros e procuram
conter um dos bichos que forceja por fugir. El-rei avança em
seu cavalo baio, sangra-o com a forquilha pelos narizes
rugidores e obriga-o a descair de lado. Apeia-se, saca do
punhal e afunda-lhe o aço nos peitos até ao coração. Num
sufoco de sangue esmorecem os roncos da besta, que
esperneia...
"Os cães perseguem o outro javardo, que foge lá longe." "Das
bandas de Lisboa vem chegando um cavaleiro. Ata a montada ao
tronco de um pinheiro e saúda
el-rei numa vénia." - Que há?
- Senhor, agravou-se a doença da rainha.
"Que cavalgada é essa que levanta a poeira dos caminhos?"
"Aquele jovem loiro e formoso que ali vai com os seus à

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desfilada não é outro senão el-rei. Bem o reconheço."
"Ai, mulher! Que azadinho!" "Dizem que não quer casar..."
"...el-rei e sua comitiva, que correm de Salvaterra para
Lisboa... "
"Que fogoso cavalga o reizinho na montaria! Lida o cervo e o
porco-montês como se já estivesse a combater o Mouro."
"Foste seu aio. Viste-o crescer nessa mania."
"Desde pequeno o tenho seguido no exercitar da espada, da
lança, do estoque..."
"Não admira tenha fortalecido mais todo o lado direito do
corpo... "Olhai! A matilha dos rafeiros, em latidos excitados,
levantou duas feras do seu fojo de entre o canavial! Que
corpulentas! Cuidado, Senhor!"
Está a rainha Catarina em seu leito deitada, cuidam-lhe as
aias do aspecto.
- Ora graças a Deus! - diz a camareira-mor, aos pés da cama. -
Como Vossa Alteza está hoje bem melhor! Foi Nosso Senhor que a
quis festejar neste dia catorze de Janeiro...
-... dia dos seus anos... - humedece-lhe uma açafata o rosto
com água-de-rosas. - Que linda está! De ontem para hoje
rejuvenesceu dez anos.

14 - 15


- Já a noite vem descendo e el-rei que não chega! Mandaram-lhe
recado, como eu ordenei?
- Sim, Alteza. Logo de manhã. Não deve tardar.
El-rei desembarca no cais do terreiro. Esperam-no cortesãos e
fazem-lhe vénia.
- Tan hermoso deve estar el campo, Alteza - diz D. Juan de
Silva, enviado de Castela -, que no pudiera dejar por menos
causa que la indisposición de la reina.
-Ainda que fora isso, era já tempo de vir e de partir para
África.
- Camareira, que passos são esses aí fora? - El-rei que chega,
Alteza.
Retiram-se as aias, quando el-rei entra acompanhado do médico.
- A quentura desceu - vem informando o físico -, a respiração
tornou-se menos custosa, mas...
- Senhora - abeira-se el-rei da avó -, vim, mal me deram a
notícia do vosso mal-estar. Mas Deus seja louvado, que vos
venho encontrar com boa disposição no vosso aniversário. -Ah,
meu querido neto! Ainda me sinto muito fraca.
- Logo passará, vereis.
- Não, não. Eu é que sei. Estou muito doente. Já pouco tempo
resta para Nosso Senhor me chamar. Ainda bem que vieste.
Desejava tanto aliviar a consciência, esta angústia que trago
comigo, que me tira o sono e me não estanca as lágrimas...
- Vá, senhora, vá - disse el-rei, compreendendo-lhe o alcance.
- Acalmai. Já falámos muitas vezes desse assunto e eu...
Com incontido vigor e determinação a rainha ripostou:
- Pois é forçoso e urgente uma última vez ouvires o que tens
evitado escutar...
Que gesto de enfado esboçou el-rei! - pensou a camareira.
- Eu sei que contrario o teu pendor - continua Dona Catarina.
- És muito novo e essa tua tenção de ganhar honra por teu

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próprio braço seria bem de louvar, não fosse estorvarem-no
razões ponderosas. É a empresa honrosa? Não se duvida. Mas o
tempo não é o disposto nem convinhável. És rei, és responsável
por estes reinos e impérios e ainda não asseguraste
descendência nem sucessor. Três pontos por que as leis divinas
e humanas desaconselham de saíres de tua casa a fazer, em
terras estranhas e sem seres provocado, guerra duvidosa...
Queres deixar-nos a todos órfãos de rei e de legítimo
herdeiro? Já pensaste se a fortuna nesta viagem te responder
ao contrário do que cuidas?...
Estátua de teimosia e de silêncio, o rei parece não ouvir. -
Não respondes? Não queres escutar a tua avó? Ah! Ingrato!
Ingrato!... Doutor, doutor, não me sinto bem... Acorre o
médico, a camareira:
- Senhora! Senhora!
- Desfaleceu - disse o físico.
Retira-se el-rei como sonâmbulo. Pela janela vê-se no céu o
rasto lento de um cometa.
- Uma cauda de fogo! - aponta um cortesão.
- Estende-se para o Meio-Dia, Alteza, aonde fica a África -
diz o astrólogo da corte. - Sinal de bom augúrio para a vossa
empresa.
- Sinal de mau agouro - rosna entre dentes um conselheiro
velho.

16 - 17


Porque não matamos este louco que encaminha para a perdição o
reino e todos nós? - segredou ao ouvido do barão de Àlvito Dom
Fernando de Noronha.
"Com uma mentira?" "Será mentira?" "El-rei não mente."
Ia lá mentir em matéria de tanto cabedal!"
- Sem serdes provocado? - estranhou o arcebispo. - E
prosseguistes em vosso desvairo?
- Escute Vossa Eminência e meça quanto desvairo...
A rainha sua avó falecera a onze de Fevereiro e ele, conquanto
se recolhesse a Penalonga em retiro de dó, como era de praxe,
não deixara um só instante de cuidar dos preparativos para a
campanha de África.
"Elrey esta mas caido que nunca en su proposito y así no se
detuvo en Penalonga mas de tres o cuatro dias", escrevia a
Filipe de Castela o embaixador em Lisboa Juan de Silva.
"Que loução anda o reizinho! Vestido de cores, com plumas..."
"Sinal de loucura... "Este moto hierve. "El-rei arde!"
"Tão descontente, o povo espera milagre que impeça a jornada.
"Senhor! Senhor!" gritam os da cidade. "Olhai o perigo que é
de tua pessoa se não deixas sucessão."
El-rei pára em sua montada, deixa que a multidão o cerque: -
Sossegai - diz. - Faço-vos saber que estou casado... - Com
quem, Senhor?
- Quem é tua mulher?
- Não vos posso de momento declarar com quem. A seu tempo o
sabereis.
"Y así paso elrey este barranco!"
Vozes, vozes, vozes... Julgará Vossa Eminência que eu não
tinha conhecimento delas? Tinha, sim... e não fiz caso. Como

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não fiz caso dos conselhos do duque de Medina Celi, que esteve
em Lisboa com sua mulher em Abril de setenta e oito.
Perguntei-lhe com grande instância se o rei Filipe de Espanha
suspeitava que eu queria meter-me por terra dentro em África e
perder o mar de vista. Sabeis que me respondeu? Que isso, mais
do que arriscar-me, seria de certeza perder-me. Não lhe dei
ouvidos... e foi isso mesmo que aconteceu.
- Havia certamente entre os vossos pessoas experimentadas na
guerra em África, na Índia e noutras partes. Poderíeis ter
escolhido um bom general para a empresa...
- João de Mascarenhas poderia ser esse general. Conselheiro de
Estado, era um excelente cavaleiro que defendeu Dio com valor.
Servira muitos anos em África e na índia...
- Porque o não nomeastes?
- Ordenei-lhe por carta que ficasse em Portugal para, com
outros três, fazer parte do conselho de Estado que havia de
governar o reino na minha ausência. Em minha insensatez,
achava que só eu, Francisco de Portugal e Luís da Silva é que
sabíamos de guerra... quando nenhum de nós três havia visto em
vida inimigo armado...
- Não sei que vos diga.
E o romeiro continuava a contar. Com que fervor procedia aos
preparativos da partida! Arrestar navios, embarcar vitualhas,
dia e noite sem alçar mão do trabalho...

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Juan de Silva fazia as últimas tentativas de lhe acalmar o
ímpeto. Compreendia - respondia-lhe Sebastião - que houvesse
alguns que deixariam de participar na empresa, se lhes
mostrassem os inconvenientes, mas, posto o negócio no ponto a
que chegara, onde no mundo estava homem que volvesse atrás?
Entendesse o embaixador que não era tempo de admitir
conselhos...
"... elrey se arde bibo...", por respeito algum suspenderia a
jornada de Alarache nem haveria de diferir uma hora nem meia o
seu embarque e partida... "...el sabado nos embarcamos... como
homem de bem, não me provi nem fiz nada de quanto é necessário
para ir com ele... parto para a guerra, embaixador de Sua
Majestade, sem armas nem tendas... queda-me a esperança de
morrer dentro de seis dias..."
Uma romaria Lisboa, arraial de ilusão e ligeireza. À miséria
dos soldados vindos de Viana, do Porto, de Aveiro, de Buarcos,
recrutados à força, contrariados, arrancados aos seus e à
enxada, seu ganha-pão, metidos tristes aos magotes nos porões
dos barcos, atravessava-se a gralhada, movimento, cor, por
terreiros, pátios, ruas, bodegas, bordéis, de alemães,
flamengos e valões de Martim de Borgonha, hereges, veteranos e
calvinistas, acompanhados das mulheres, amantes e filhos, os
seiscentos italianos de Tomás Stukeley, marquês de Leinster, a
quem uma tempestade obrigou a acolher-se a Lisboa e o rei
aliciou com grossa quantia para desviar a sua missão de ir
acudir aos católicos irlandeses, os castelhanos do porto de
Santa Maria. Sobre o Tejo não se amanhavam bem as gaivotas,
que voavam de largo, ante tanto tremular colorido de
bandeiras, pendões e galhardetes e não se viam golfinhos a

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saltarem nas águas, que lhes não deixavam espaço as zabras,
barcas, barinéis, galés, batelões, urcas e caravelas e naus em
que se embarcava soldadesca, armas, provisões, lenha, água,
palha para as cavalgaduras... O terço dos aventureiros,
fidalgos portugueses, dava nas vistas no luxo dos vestidos, no
lavrado das armas, no atavio de jóias, na riqueza de baixelas,
no requinte de manjares e vinhos, na corte de criados, no
fausto de tendas de campanha franjadas de ouro, nas colgaduras
de seda...
Aos catorze de Junho da desventurada era de mil e quinhentos e
setenta e oito, saiu el-rei dos seus paços da Ribeira com toda
a monarquia deste reino e se foi logo embarcar na sua galé
real e outro dia, que foram vinte e cinco, reunida toda a
armada, partiu barra fora e com próspera viagem seguiu até
Lagos, no reino do Algarve, e em dois dias e meio, com vento
em popa, chegou à baía de Cádis, onde ficou três dias a
aguardar que se juntasse toda aquela esquadra, que, se fosse
tão galharda como aparentava - dizia o embaixador Juan de
Silva - "pudieramos ir confiados de qualquer empresa, pero,
conociendola bien, mas se hade confiar en la ignorancia o
impossibilidad de los enemigos que en las fuerzas que
llevamos... Los marineros dicen que es hermosa cosa de.navios
si no viniesen cargados de marmelada..."
- Como podia ser tamanha cegueira? - perguntava abismado o
arcebispo.
O cónego Battista esse, de tão incrédulo, não tugia nem mugia.
- Escutai, Eminência, escutai. O próprio inimigo me escreveu a
desenganar-me...
"... não sei qual a causa e razão, rei Dom Sebastião, que te
moveu a quereres guerra comigo tão injusta. Que agravo tu ou
os teus tendes de mim?..."

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... aconselhava-me a não confiar no xarife, dizia-me que mais
queria a minha amizade e vizinhança que a desse perro, que nos
víssemos eu e ele irmãmente...
"Tu me vens buscar sem razão e queres guerra comigo injusta...
Sabe que isto
há-de custar mais vidas do que pode caber de grãos de mostarda
em um grande saco. És moço e cavaleiro, tens quem te
aconselhe. Faze-o para tua segurança..."
Só mostrei a carta aos meus mais íntimos conselheiros quando
já na marcha, por temer que me embaraçassem de passar avante,
mas eles tiveram-na por astúcia do bárbaro. No dia sete
tínhamos navegado para Tânger, de onde partíamos a doze para
Arzila. A vinte e sete metíamo-nos terras adentro por aquele
deserto e, quase sem água, alcançávamos a ponte de Alcácer. A
batalha feriu-se a quatro de Agosto...
- Que desgraça tamanha! - disse o arcebispo, compungido.
Meu Deus! Aquele fatídico fim de tarde! Trago ainda nos olhos
e nos ouvidos, na alma e na carne aquele apocalipse... E, de
olhar perdido, o peregrino contava da bravura dos golpes, das
arrancadas dos cavaleiros, do relampejo de espadas, alfanges e
cimitarras, da saraivada dos pelouros que zuniam, das hordas
de mouros que cercavam os cristãos, do estrondo da artilharia,

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da grita e alarido, dos urros de dor e de raiva, da carga dos
arcabuzeiros, dos tiros das escopetas, do fumo e poeira no ar
doirado pelo sol ardente, empapado de sangue o areal onde
uivavam os feridos sobre montões de cadáveres e esperneavam
cavalos e escoucinhavam nos sacões da morte... Olhando em
redor, já não via junto de si o seu alferes com a bandeira.
Apenas o seguia a destemida agilidade do moço pajem do guião.
O cavalo em que ia montado escorria sangue e já não podia dar
passo. Mas ali estava Jorge de Albuquerque Coelho, senhor de
Pernambuco, muito chagado de quatro cutiladas e atravessado de
uma seta pelos peitos, aguentando-se bravamente em cima de um
cavalo ruço-queimado muito formoso.
Pede-lhe o cavalo.
"Para este momento vo-lo guardei, meu senhor" responde o
fidalgo, que logo, por se não poder menear das feridas nem se
firmar nos estribos, chama soldados que o ajudem a desmontar.
"Salva-te, rei" repetia, deitado no chão. "Salvai-vos. É o que
importa. Já não há outro remédio" e quanto a vista lhe alcança
vê o o furacão do rei abalar dali, a espada apontada como
lança em riste. Adiante estava caído, a sangrar, golpeado, o
Prior do Crato: "É o fim, senhor, é o fim. Por amor de Deus,
fugide." Não quer fugir. Deseja morrer com honra. Mas súbito
vê-se rodeado por Jorge de Lencastre, duque de Aveiro, por
Luís Coutinho, conde do Redondo, por João da Silveira, filho
do conde da Sortelha, por Cristóvão de Távora, que lhe indicam
na chusma dos mouros uma nesga por onde escapar. Seguidos do
pajem Telo de Meneses, deram em o levar para trás e foram
saindo do campo de batalha...
- Eu não queria fugir - contava, contristado -, mas o duque de
Aveiro...
-... pretendia talvez - observou o arcebispo - salvar a vida
do seu rei...
-... salvar-me a vida, bem sei. Não era desonra, dizia ele,
perder uma batalha, mas sim, perdendo-me, perder o reino...
Caía a noite. Os fugitivos chegam às portas de Arzila. Batem.
O capitão Pero de Mesquita não quer abrir.

22 - 23


"É el-rei que chega" gritam de baixo. Recebem-nos na alcáçova
e, pouco depois, o mestre da capitânia da armada, ancorada na
foz do Larache, recolhe os fugitivos no galeão São Mateus e a
toda a vela rumam para o reino...

24


II - Estrella


- E depois? - perguntava o arcebispo.
Depois fora a vergonha, uma vergonha profunda e miserável. O
seu sangue, o sangue de seus avós, revoltava-se, fervia
turbulento. Pejo de si, viscoso e imundo. Escorrera-lhe pelo
corpo e pela alma. Só lhe apetecia vomitar-se a si mesmo,
tapar o rosto com as mãos como criança apanhada em falta,

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velar-se, não deixar que ninguém lhe fitasse o opróbrio...
sepultar-se em qualquer ignorado chavascal longínquo...
Tinha-se despojado da armadura, das luvas, das vestes, de
qualquer objecto ou sinal que o identificasse. Levaram-nos os
companheiros para os lançarem ao mar. Enfiara o corpo numa
roupa tirada a um vilão dos muitos que jaziam por terra nos
montões de cadáveres. A bem dizer estava nu, um rei nu como
agora diante de Sua Eminência. E essa nudez era o seu pudor...
Os amigos procuravam levantar-lhe o ânimo, mas ele,
enraivecido, perguntava-lhes:
"Sabeis que coisa é a vergonha? Asco de morte pela desonra e
deslustre..."

25


"Tendes razão, Senhor" respondera o duque de Aveiro. "Desonra
e deslustre. Mas a vergonha não chega para esconder a
covardia."
Abespinhara-se Sebastião. Vinha ao de cima a conhecida sanha.
Puxando do punhal que Cristóvão de Távora trazia à cinta:
"Como te atreves, vilão?" rouquejou."Chamas-me covarde?"
"Deveríeis ter morrido a combater" respondia-lhe sem medo o
duque, "ter pejo de estares vivo. Assim, acrescentais a uma
grande tragédia, outra não menor. Guardai esse punhal. Também
o meu sangue, o do rei João segundo, me ferve de vergonha.
Também eu deveria lá ter ficado no campo de batalha. Fui
covarde para vos salvar. Vede lá agora se não sou vário..."
Com as lágrimas a brotarem-lhe dos olhos, Sebastião, abatido,
estendeu o punhal a Cristóvão de Távora e abraçou-se ao duque
de Aveiro desfeito em soluços.
O arcebispo e o cónego ouviam-no num silêncio contristado. O
peregrino continuou:
- Dir-se-ia que me custava mais o vexame da derrota que a
perda do trono. Mas o pior estava para chegar. Virei-me para
os meus companheiros:
"Senhores, poderei por uma derradeira vez ordenar-vos... Não.
A minha autoridade real morreu naquele areal africano. Poderei
pedir-vos, rogar-vos..."
Beijavam-me as mãos, ajoelhavam-se-me aos pés, misturando-se
as lágrimas por aquelas barbas com o sangue das feridas
trazidas da batalha, protestando, as palavras embargadas nas
goelas. Disse-lhes que não queria mais aparecer, fosse cada um
a seu destino, eu seguiria incógnito por aí, pelo mundo... mas
nunca revelassem que era vivo. Cristóvão de Távora falou por
todos: para onde eu fosse, eles iriam também, disfarçados em
trajos comuns, reuniriam dinheiro e correriam mundo à procura
de uma morte honrosa a combater o Turco ou a penitenciarem-se
dos pecados na Terra Santa... mas primeiro era necessário
curarem aquelas feridas demasiado acusadoras de donde
vinham...
A vossa perna, Alteza...
Pchiu! Nada de Altezas nem de vós. Daí em diante tratar-se-iam
por tu e nunca pronunciariam os nomes verdadeiros...
"... inchada e feia..."
"Começa a ficar gangrenada. É urgente tratá-la." "Poderíamos
sair em terra no cabo de São Vicente. Há aí um convento de

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capuchos. Poderão acudir-nos nos primeiros cuidados... O São
Mateus pairou ao largo do cabo e, num escaler, remaram para
terra. O bote atracou na estreita língua de rebos, à sombra da
arriba alcantilada, que causava vertigens só de olhar para
cima onde o céu se aclarava na manhã nascente. Fernão Álvares,
o mestre da capitaina, fitou o rei e apontou-lhe a perna que
parecia um cepo:
"Não podereis..."
O rei fez-lhe um sinal e ele emendou:
"Não poderás andar... " ia a dizer Alteza, mas conteve-se:
"... e muito menos subir esta fraga..."
"E quem o poderá?" perguntou Jorge, olhando as rochas talhadas
a pique.
"Tens razão. Impossível, se eu não estivesse aqui. Quando a
maré enchesse, o mar engolir-vos-ia. Mas poucos sabem o que eu
sei. Vinde comigo. Eu levo Sua... eu levo Sebastião às costas.
Vinde."
Seguiram pelos rebos e, diante de uma brecha da fraga, Fernão
Álvares disse:

26 - 27


"Por aqui" e começou a subir, com o rei aos ombros, por uma
escada tosca ferida a picão na rocha. "Cuidado!" dizia aos
outros.
Quando chegaram a cima, o sol começava a erguer-se.
Descansaram um pouco na relva, junto à fortaleza de São
Vicente. O rei disse:
"Tenho vindo a pensar. Tu podes chamar-te Jorge, tu Luís, tu
João, tu Cristóvão, tu Telo e tu Fernão... mas eu não mais me
poderei chamar Sebastião. Ouvi um dia uma mulher do povo
chamar-me Savachão. Assim me chamareis daqui por diante."
Acolhemo-nos à fortaleza?" perguntou Luís.
"Melhor será" atalhou Fernão, "acolherdes-vos ao convento dos
capuchos que daqui se avista. São mais discretos. Vamos" e ia
a tomar outra vez o rei às costas,
disse-lhe este:
"Não. Tu tens de voltar quanto antes ao galeão. Eu arrimo-me
no braço de Jorge. Vai e obrigado."
Fernão Álvares olhou o rei: "Posso dar-te um abraço?"
Abraçaram-se.
"Vai, amigo. Não te esquecerei."
O mestre aproximou-se do abismo. O rei acenou-lhe adeus: "Boca
selada" fez-lhe sinal.
Daí a pouco viram-no remar em direcção ao galeão e, virando
costas, caminharam para o conventinho dos capuchos.
Passados alguns dias o grupo saía do convento. Savachão trazia
a cabeça empanada e, debaixo do braço esquerdo, uma muleta que
o ajudava na impossibilidade de pousar a perna ferida no chão.
Os outros também vinham pensados: Luís com um braço ao peito,
João com o peito e o pescoço enfaixados, Jorge e Cristóvão com
as marcas de curativos pelo corpo. Só Telo se encontrava
incólume.
"Lindo grupo é o nosso" disse o rei. "Não podemos caminhar
assim todos juntos. As pessoas começariam a murmurar, a
desconfiar."

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"Sim" concordou Jorge. "É melhor separarmo-nos por algum
tempo. Proponho que aqueles que têm mais possibilidade de
rápida e secretamente arranjar dinheiro, eu, o Luís, o João,
sigamos cada um seu caminho. Cristóvão à Arrábida, à Caparica,
a Guimarães, com o mesmo propósito. Telo acompanhe Sua...
acompanhe Savachão..."
"João certamente" disse Cristóvão "tomará o caminho da
Guarda... "... para mais perto, para Góis..."
"... Luís o da serra de Ossa..." "Por lá passarei."
"... tu, Jorge, o de Setúbal, o da Arrábida, como eu. Irei
contigo."
"Faremos companhia um ao outro." "E quando nos tornaremos a
reunir?"
"Antes de sairmos do reino" esclareceu Savachão, "desejo fazer
por ele peregrinação. Quero ver com as chagas da alma o mal
que lhe fiz.
"Então quando?"
"Concertai com Telo a maneira de cada um de nós se conservar
sempre em comunicação comigo e... estamos em Agosto... lá para
o fim do ano reunir-nos-emos algures e sairemos talvez pelo
Norte, caminho de Santiago... e que Deus nos proteja..."
Olhou-os a todos, que se prestavam a partir, como um pai olha
os filhos:

28 - 29


"Pobres de vós! Sem cavalo, sem égua, sem asno que vos
leve..."
"E tu, Senhor?" "Savachão" emendou o rei. "E tu? Ainda por
cima com muleta..."
"Deixa. Verei mais de passo a minha ruína." Separaram-se,
seguindo seus destinos, após haverem combinado com Telo o modo
de darem sinais de si.
Os primeiros passos andados, reconhecera Savachão que havia
chegado a hora das provações. Telo, sem ferimentos, nem se
dera conta de que já ia lá adiante. Quando se viu sozinho e,
olhando atrás, enxergou o rei a um tiro de pedra,
envergonhou-se da desatenção. Correu a reunir-se-lhe:
"Perdoai, Senhor."
Emendou-se a um gesto do amo:
"Perdoa, Savachão. Como vai ser? Tu quase não podes andar."
"Levará mais tempo. Não é verdade que temos todo o tempo do
mundo e da vida?"
"Que vai ser de ti?"
"Não me esperam despachos, louvores ou punições alheias,
serões nos paços, audiências a embaixadores, preocupações de
governo, montarias, refregas militares..."
Dizia estas coisas procurando sorrir por entre a água dos
olhos. Telo olhava-o constrangido. Savachão retomou o caminhar
trôpego, vagaroso. Meu cavalo baio, tão formoso! Caído ferido
no último relincho... a apodrecer lá em baixo no areàl
fedorento...
A fortaleza de São Vicente ficara para trás. Ele voltara-se
como a dizer-lhe adeus. Telo acompanhou-lhe o olhar. Contra a
prata do mar Oceano negrejavam as pedras das muralhas. Ali
fundei eu a minha Ordem do Cavaleiro da Cruz de Jesus

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Cristo...
"Posso chamar-te Cavaleiro da Cruz?" perguntou o pajem. "Já
não há ocasião disso. O Cavaleiro da Cruz morreu naquela
desgraçada batalha."
"Tenho fé que não."
Algum tempo depois chegavam à vista da ermida de Nossa
Senhora de Guadalupe, próximo da Raposeira. Vinham de lá os
sons de romaria e arraial. Pararam a escutar...
"Quinze de Agosto. Romagem à Senhora" disse Savachão.
Caminharam pela várzea, pela sombra e o cheiro das figueiras,
que vergavam pejadas de fruto. Telo colheu alguns e veio
apresentá-los ao rei na bandeja de uma folha. Distraído, ia a
fazer vénia...
"Estás doido! Olha além peregrinos. Podem ver-nos." Comeu um
figo e perguntou:
"E tu? Não comes?" e ele próprio meteu um na boca do
companheiro.
"Mas..."
"Somos iguais, não te esqueças."
A ermidinha surgia com os seus fortes botaréus arrimados às
paredes baixas, as carrancas toscas das gárgulas a rirem-se de
cima, no adro murado o portal gótico aberto e a rosácea um
pouco descentrada do pórtico, a cruz no topo da fachada.
Entravam mulherzinhas do povo, os lenços na cabeça, arrastando
os joelhos pela pedra, os olhos postos na imagem venerada lá
adiante no altar-mor. Os romeiros espalhavam-se pelo adro,
pelo largo à volta da capela, à sombra de tendas de pano que
esvoaçava na aragem marítima, ou sob as ramas das figueiras,
ou sentados em palha que se acamava sob as carroças, rodeados
de bilhas de água e pichéis de vinho, de condessas de
ovos, pão e salpicões.

30 - 31


Alguns haviam armado suas bancas de venda: de mistura com
comidas e bebidas, rosários e agnusdei, cestinhas de ovos
cozidos coloridos, de figos, alfarrobas e amêndoas.
Savachão quis entrar no templo a rezar. Molhou a ponta dos
dedos na pia de água benta e persignou-se e benzeu-se,
encostado ao primeiro arco da nave, olhou além a imagem da
Senhora sobre o altar-mor e fechou os olhos, concentrado. A
seu lado, Telo olhava ao alto a abóbada artesoada, as nervuras
que vinham apoiar-se nas colunas, a lavra dos capitéis - uma
cabeça de boi, cabeças humanas de bela expressão, um peixe,
ramos e folhas de carrasqueiro e palma -, os fustes de grés
amarelo ou cinzento com veios verdes e rosa-pálido, a janela
alta ao fundo, por detrás do altar, fendida em duas frestas,
os travejamentos do resto do tecto com a telha-vã a
descoberto, da trave lançada entre as impostas do arco
triunfal a lamparina pendente, acesa diante do sacrário, a
gente que, sentada no chão sobre as próprias pernas, aguardava
a hora da função religiosa.
"Vem" encaminhava-se Savachão para a porta.
No adro, sentou-se no muro baixo a descansar, a ganhar forças
para a caminhada, a perna ferida estendida ao pé da muleta.
Telo teve uma ideia. Haviam passado por mendigos que,

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mostrando suas chagas, lançavam a boca de gorros no chão a
solicitar esmola. O pajem tirou o barrete e deixou-o cair
aberto aos pés de Savachão.
"Que fazes?" eriçaram-se os sobejos da prosápia real,
erguendo-se de súbito.
Com simplicidade Telo fê-lo sentar-se de novo e disse,
encolhendo os ombros num meio sorriso:
"Precisamos de dinheiro. Não queres roubar, pois não?
Deixa isso por minha conta. Por ti não se me arriçam os
pergaminhos."
Savachão fechou as lágrimas nos olhos e engoliu o soluço na
garganta e
quedou-se ali como uma estátua. As pessoas passavam, entrando
e saindo, magras moedas caíam na carapuça, côdeas de broa,
fruta passa.
Veio distrair daquela sonolência o som de uma viola e do canto
gorjeado de um cigano. Olhou. Do lado de fora do adro uma
companhia de gitanos, numa clareira entre árvores, dava seu
espectáculo. Veio um de tronco nu, musculado, pegou de uma
mecha embebida em resina, acendeu-a na fogueira, engoliu um
líquido que guardou na boca e chegou-lhe fogo lançando as
chamas, que lhe saíam das fauces como dragão. Depois, enfiou a
mecha acesa pela garganta e tornou-a a retirar sem que se
apagasse e roçou o fogo pelos peitos, pelos braços como se
nada sentisse. Em redor, o público aplaudia. Uma menina vinha
pela roda com um púcaro na mão a recolher a paga. Alguns
viravam costas e retiravam-se quando ela se aproximava. Já
entrava outro, com facas afiadas e desatava a metê-las pela
goela feita bainha. Mais aplausos ante a façanha. As guitarras
tocavam, dois cantores garganteavam trinados andaluzes,
quando, livre a pequena arena, salta de lá uma moça, a saia
rodada aos folhos, em airosos requebros de ancas, braços e
mãos, rodopiando sobre um só pé como pião, estacando súbito,
batendo os calcanhares, estalando castanholas, ao som de
pandeiros, adufes, palmas e olés desencontrados dos
companheiros.
Nunca olhara nenhuma mulher. Os padres habituaram-no a desviar
os olhos. E tinha poluções nocturnas... Como estava sentindo
agrado em ver aquela moça a dançar!... Nenhuma das princesas
que lhe inculcavam para mulher teria certamente a graça
daquela rapariga...

32 - 33


E pôs-se a pensar que, se razões de estado ou o seu
desinteresse haviam sido até ali impedimento a que se casasse,
nem que quisesse poderia casar-se com uma moça como aquela em
razão de clã e de raça da parte, não de si, mas da família
cigana...
A dançarina tinha terminado. Savachão procurou-a com os olhos,
mas não a viu. Na pequena arena dois macacos faziam cabriolas.
"Queres que te leia a sina, chico?" como aparição estava a
cigana diante dele.
Tão confuso ficou que a olhava sem responder.
"Não, não quer" respondeu Telo a despachá-la. "Tu agora lês a
sina a mendigos? Vens dar-nos esmola?"

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"E quem te disse que eu dele quero dinheiro? Mendigos vós? Não
enganais a ciganita."
"Como te chamas, moça?" perguntou Savachão.
"Estrella, senhor."
"Tratas-me por senhor..."
"No lo es?"
"Estás diante de um romeiro pobre."
"O teu pensamento me chamou. Não pensavas em mim ainda agora
quando me viste dançar?"
Savachão não encontrou que dizer. Olhava a moça nos olhos.
"Nem preciso das tuas mãos" disse ela. "Esse azul dos teus
olhos contam tudo."
"Calla!"
sem bem saber porquê, Savachão levantou-se e levou o indicador
aos lábios. Tomou da muleta e começou a caminhar.
"Aún hoy volveremos a encontrarnos."
Interdito com a cena, Telo apanhou do chão o barrete com as
esmolas e seguiu-o. Em breve saíram do terreiro e deixavam a
romaria, estrada fora. Passavam terras maninhas, abandonadas,
casais desertos. Vinha lá um casebre. Um cão magricela
pôs-se a ladrar. Num quinteiro uma mulher, a quem a miséria
secara a beleza, cavava a horta. Uma criança apareceu, rota e
descalça, no negrume da porta. Quando se aproximaram, a mulher
estacou arrimada ao cabo da enxada.
"Deus te salve, dona!" "Salve-vos Deus. Que quereis?" "Um
pouco de água" disse Telo.
"Está aí um balde. Ide por ela ao ribeiro, ali a baixo." Telo
foi pela água. Savachão sentou-se num banco de pedra, sob a
latada, a descansar a perna.
"Estás ferido" notou a mulher, chegando-se... "Vens da guerra?
O meu homem também lá anda. Deus o traga vivo... Vens de lá?
El-rei ganhou a batalha?"
"Não, não!" respondia Savachão aturdido.
"Não ganhou?"
levou a mulher as mãos à cabeça, largando a enxada. "Ai minha
Nossa Senhora! Meu rico homem!" "Não é isso, mulher"
apiedou-se Savachão.
"Não?"
"Não. Não venho da batalha nem sei nada dela."
"Se ele por lá me morre e eu fico viúva com esta menina
órfã!... Que desgraça vai ser!... Maldito rei! Levou-me o
braço que nos protegia."
Telo chegava com a água: "O ribeiro vai quase seco." "Sempre
assim nesta quadra."
"Tens uma púcara?"
"Rosinha, vai dentro pela púcara."
A menina foi dentro e veio de lá com uma púcara encardida de
sarro. Telo encheu-a de água e deu a Savachão, que hesitou com
relutância.

34 - 35


"Bebe. A água sabe bem. Não olhes à vasilha."
Savachão bebeu um golo e em seguida sorveu a água toda. Telo
oferecia-lhe um naco de broa. Savachão partiu um pouco e levou
à boca. Sentiu em si os olhos da criança e viu neles a fome:

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"Dá à menina" disse, estendendo o resto a Telo.
"Porque não lho dás tu?" respondeu Telo, fitando-o acinte nos
olhos.
Savachão chamou a criança: "Anda cá, Rosinha."
A menina aproximou-se.
"Tens um lindo nome. Queres pão?" A criança acenou que sim.
"Toma."
"Obrigada, senhor" disse a mãe. "Há quanto tempo não vemos
pão!"
Telo abriu o barrete e apresentou pão e figos. E todos ali, no
sossego da tarde, comeram do que o barrete trazia e beberam da
água do balde pela púcara única. Junto da menina, o cão pedia
com os olhos e a pata levantada. A menina deu-lhe do seu pão,
que ele abocanhou.
"Deus vá convosco" disse a mulher agradecida, quando eles se
deitaram ao caminho. Seguiram estrada fora. O sol apertava.
Telo enfiara o carapuço vazio, a Savachão fazia de sombreiro a
faixa de pano que lhe pensava as feridas.
"Sei que estais a ter uma experiência dolorosa, meu senhor"
quebrou Telo o silêncio.
Pchiu! "
"Quem nos ouve, nesta solidão? A mim custa-me desdobrar a
língua e tratar-te por tu. Mas tu... Sentires a fome e a sede,
comeres de esmolas, dirigir-te a palavra o povoléu sem sombra
de respeito e distância...
"Dão-me aquilo que lhes tirei. Tirei-lhes o pão, sequei-lhes
as terras, roubei-lhes a caça, trouxe-lhes a viuvez e a
orfandade, a miséria e a morte... e vê tu que me dão amizade e
do pouco que possuem. Que lição! Essa foi a guerra que eu não
quis travar... e tinha-a em minhas mãos. Maldito rei! Não
ouviste dizer? O outro que eu era mandá-los-ia enforcar por
muito menos. Se eu tivesse morrido, estava agora a penar nas
profundas do Inferno."
"Agradece a Deus ter-te conservado a vida... "Um rei sem
reino... um povo sem pátria..." É aqui que devemos penar os
nossos erros."
O sol declinava. Lá muito atrás o rolar de carros, o patear de
alimárias. Era uma caravana de carriolas e carroças que lá
vinha de seu vagar. Quando a primeira os alcançou, envolveu-os
uma nuvem de poeira. Estacaram na berma a deixá-las passar.
Savachão sentou-se na raiz de uma azinheira. Telo encostou-se
ao tronco. As mulas, suadas, tiravam de manso as pesadas
cargas, os cães caminhavam ao lado, as línguas de fora. Nas
carriolas cobertas seguiam pessoas. Pelo vestuário, os lenços
de cabeça vermelhos com pintas redondas brancas, os xailes
negros, com franjas, das mulheres, o moreno da pele de caras e
braços, reconheceram que eram ciganos.
"Hou!" regougou do alto da boleia um dos cocheiros, sacudindo
as rédeas. Um dos carros parou e, atrás dele, os outros.
"Subid, hombres. La noche no tarda."
Telo e o cocheiro, um de baixo e o outro de cima, ajudaram
Savachão a trepar ao assento e daí a pouco seguiam estrada
fora.
"No te lo dixo yo" veio de trás uma voz feminina, "que
volveríamos a encontrarnos?"

36 - 37

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Savachão voltou-se. No interior do carro, Estrella, entre
donas e crianças que dormitavam, sorria-lhe e começou a
falar-lhe em voz baixa. Com aquela perna doente não iria longe
e a noite apanhá-lo-ia no descampado sem manta para se abrigar
nem caldo para conforto do estômago. Não negasse. Ela sabia
bem que eles nada tinham que comer.
"Não é o comer que me dói."
Sim, sim, o mais... e a perna. Ela sabia. Quando acampassem
para passar a noite, ia ali su madrecita que sabia de mezinhas
e era grande curandeira das feridas que os homens se faziam
uns aos outros ao pegarem-se de rixa e sacarem das navalhas...
- suspendia-se e, com olhar acintoso, acrescentava: -... ou ao
meterem-se em guerras... mas não se arreceasse, ela sabia
guardar um segredo, por grande que fosse..."
"Obrigado, Estrella. Quando eu puder..."
Não prometesse nada, que tinha à frente muita vida madrasta a
percorrer. Que desgraça tamanha! Quando quisesse desabafar,
pensasse em Estrella, mesmo que estivesse longe ela tinha a
caixa aberta e a alma muy ancha...
Escurecia. A meia légua de uma povoação, escolheram local de
acampamento num sobreiral junto de um ribeiro. As carroças
fizeram muralha em redor do terreiro. Ergueram-se as tendas e
não tardou que uma boa fogueira ardesse no centro do eirado e,
sobre um tripé, numa grande caldeira de ferro começasse a
borbulhar a cozedura.
Estrella fez sentar-se Savachão num fardo de palha e Consuelo
começou a desatar-lhe as ligaduras da perna e da cabeça. O rei
dos ciganos dava ordens:
"Maurício. Vai à vila por vitualhas."
O moço logo atrelou um burrico a uma pequena carroça e
deitou-se a caminho.
"Que mexerufada é essa que me estás a pôr na perna?" perguntou
Savachão.
"Não te cheira bem?" disse Consuelo, de joelhos diante da
perna dele, a saia preta em roda pelo chão. "Vais ficar bom" e
massajava de leve para não magoar.
"Unguento milagroso. Mas não me perguntes como se faz.
Segredo. Vem já da minha avó e da avó da minha avó... sei
lá... Linda ferida, sim, senhora. Como é que arranjaste isto?
E esta cabeça, meu loiraço! Andaste à esgrima com os
meirinhos?"
Savachão olhou Estrella que, de pé, observava o tratamento.
"Sim. Mais ou menos isso" respondeu.
"Estes moços vagam por aí de noite, pelas tabernas e pelas
putas e depois pegam-se uns com os outros..."
Telo, prestável, para não levantar dúvidas quanto aos seus
hábitos e os do companheiro, ajudava Manolo a pensar os
animais e a procurar lenha. Estrella
agachou-se ao lado direito de Savachão e pegou-lhe na mão,
afagando-lha:
"Mi precioso, ahora te puedo leir la buena-dicha?"
"Não, deixa!" sacudia ele a mão.
"... saber lo que te espera..."
Olhou-a desvairado:
"Só Deus sabe."

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"Está nos teus olhos, já to disse, e as linhas das tuas palmas
o hão-de confirmar. A notícia está aí a rebentar e a
espalhar-se por todo o reino."
"De que estás tu a falar?"
Estrella ergueu-se. Maurício chegava da vila. Apeou-se
esbaforido, ciganos e ciganas rodeavam-no. Consuelo
levantou-se e chegou-se a eles.
"Sabeis o que corre na vila?" "Que é?"

38 - 39


"Que foi?"
"A batalha perdida, o exército destroçado..." "Quem to disse?"
"Não se fala noutra coisa. Os velhos arrepelam-se, as mulheres
uivam."
"E o rei?"
"Uns dizem que morreu, outros que desapareceu."
"Grande desgraça! A morte!" "O luto!" "Viuvez! " "Orfandade!"
"Eu bem vos dizia que ele era louco" - afirmava o rei dos
ciganos.
Telo e Manolo aproximavam-se. "Que aconteceu?" perguntou
Manolo.
Uma multidão de vozes deu-lhe a notícia. Telo afastou-se e
chegou-se a Savachão:
"Ouviste?"
Meneou que sim. Depois disse em voz baixa: "Temos de
desaparecer quanto antes."
"Quanta chaga a fechar, alminha! Vai levar tempo..." disse
Estrella que se aproximara. "Fica, enquanto o acampamento aqui
estiver. Não há melhor sítio."
Savachão olhou-a hesitante. O rei dos ciganos achegava-se
falando com os outros:
"Rei, sabeis o que vos digo?... vale mais ser rei dos
ciganitos... Se toda a cavalaria, carriagem e mais acampamento
por lá ficou... morta, ferida, pilhada, aprisionada tanta
alimária, quem vai fazer bom negócio com cavalos, muares,
potros, burros, digo-vos eu quem é... - e batia no peito - cá
o rei dos ciganos."
Depois da ceia o acampamento adormeceu. Em respeito pelo luto,
essa noite não houve descantes. De madrugada, Savachão, que
estava estendido na palha, na tenda de Manolo, tocou no braço
de Telo a seu lado. Levantaram-se em silêncio. Manolo
ressonava. Savachão apoiou-se à muleta e saíram por detrás das
carroças, junto aos animais. Quando se afastavam do
acampamento, Savachão parou a olhar para trás. Estrella, de pé
à boca da sua tenda, levantava o braço num adeus.

40 - 41


III - O sapateiro santo


- O que me contais é coisa de espanto - disse o arcebispo
de Espálato. - Não achais, cónego Battista?
O romeiro conservou a testa apoiada na mão, o pensamento

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alheado, enquanto o cónego respondia:
- Como muito bem sabe Vossa Eminência, a missão sacerdotal
leva o padre a conhecer as maiores alegrias e tragédias da
humanidade... - buscava de longe, com método, a resposta à
pergunta do prelado: -... nos alçapões da alma, as histórias
mais imprevistas. Mas, desde a do rei Édipo, que, sem o saber,
investiga o próprio crime, ou a do mouro Arum Al-Rachid, que
sonha ser rei, nunca como agora tomara conhecimento de caso
tão extraordinário como o que este infeliz está contando: um
rei que, por vergonha, pusilanimidade ou covardia louca...
- Não digais mais - atalhou angustiado o peregrino. - Poupai
quem tanto tem sofrido.
- Desculpai - disse o cónego, compassivo. - Eu não queria...
- Escutai o resto, que para isso vim.

42 - 43


O arcebispo fez com as mãos o gesto de assentimento e o
peregrino, afirmando o propósito de os não maçar muito mais
tempo, continuou a contar...


Um dia haviam chegado a Évora com os sapatos rotos do caminho.
Savachão lembrou-se de Simão Gomes.
"O sapateiro santo?" perguntou Telo.
"Assim lhe chama o povo, por via das suas muitas cantigas
proféticas como as do Bandarra. Queres que eu te encomende uns
chapins novos?"
"Será bom que ele nos tire a medida dos pés."
Numa ruela perto da sé, era aí a oficina de Simão. Lá estava
ele, sentado num mocho, à porta, cosendo gáspeas com a sovela,
cantando:


Vejo montes humilhados
vejo vales levantados
vejo gemidos e prantos
vejo..............


"Que desejais?"
"Uns chapins" disse Telo.
"Hum! Mendigo não costuma comprar chapins. Sola dura,
calejada, nos pés. Esses que trazes, todos rotos, roubaste-os
a algum defunto?"
"Não desconverses."
"Alto lá! Temos fidalgo!"
"Quanto queres por eles?"
Mediu-o desconfiado da cabeça aos pés: "Tens dinheiro?"
"De esmolas. Não é muito, mas... Quando eu for pajem do
cardeal..."
"Ah, ah, ah! Vais ser pajem do cardeal? E eu deão da sé. Tu
pagas-me e eu aspirjo-te com o hissope in nomine Patris e
Filho.
Olhou para Savachão, que se conservara calado um pouco atrás
de Telo:

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"E tu? Também queres chapins? Uns sapatos? Umas botas? Um para
o pé direito, outro para a muleta... ah, ah, ah! é mais em
conta... e pagas-me quando fores rei: o lugar está vago..."
Súbito tornou-se sério, os olhos turvos de água:
"Desculpa. Gracejo, mas tenho o luto aqui..." e levava a
sovela ao peito. "... Quando ele me chamava ao paço...
enquanto eu, de joelhos, lhe ia tirando o molde do pé... Como
ele gostava de falar comigo!... Coisas do futuro... E eu
dava-lhe trela àquele desejo tenaz, àquela imaginação sem
rédea... Também tenho a minha parte de culpa no que
aconteceu... Naquela idade, com aquelas manias, o de que ele
precisava era de levar nas trombas. Mas não houve ninguém...
até que os Mouros..."
"Fazes os chapins?" cortou Telo.
"Pareceis boas pessoas. Vá, mostra-me o teu pé."
Telo aprestou-se. Simão Gomes tirou de uma prateleira uns
chapins já feitos e experimentou-lhos:
"Mesmo a calhar. Agora o teu amigo."
Savachão aproximou-se e ele examinou-lhe o pé esquerdo, que,
por mor da muleta, tinha no ar:
"Ah! Peito arqueado, alto... O meu senhor rei também tinha um
pé assim..." e olhou-o acima: "Não tens, por acaso, uma
verruga no dedo mindinho do pé direito, pois não?"
"Não."


44 - 45


"Era tão grande" dizia o sapateiro, recordando, enquanto da
prateleira pegava outros chapins: "... que parecia um sexto
dedo, nunca o esquecerei... " e calava-se, continuando a
afagar o pé de Savachão e olhando-o pensativo nos olhos...
"Aqui tens uns chapins mesmo a matar."
"Quanto é?" perguntou Telo.
"Pagar-me-eis..." e esganava-se-lhe o sentimento na garganta,
"... quando eu for deão da sé..."


Soluçavam dobrando tangendo os bronzes plangentes por toda a
cidade... corriam pessoas os olhos chorosos de todas as
ruas...
"Que luto será este?" Savachão desembarcava na Ribeira com o
companheiro, vindos do Sul.
Telo, no cais, inquiria um velho que passava. O barqueiro
estendia a Savachão a muleta...
Já assentava o pé no chão, embora continuasse a apoiar-se e
manquejar. Mais como disfarce, meu pai que eu não conheci,
minha mãe que me abandonaste... verdade que, por ter os
membros direitos mais avantajados, sempre coxeara, mas sempre
o soubera dissimular. Até das duas bolsas a esquerda era a
mirrada. Pecara como fruto chocho, por apartar para esse lado.
"Para que lado aparta Vossa Alteza?" perguntava-lhe o alfaiate
ao medir-lhe as calças na virilha, para poder talhar a
barguilha à feição. Não sabia bem definir o que sentia,
vergonha, mal-estar, quando as mãos dele lhe mexiam naquelas
partes...

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"Tu morreste, não te recordas?" acordava-o Telo. "Esta manhã o
quebrar dos escudos."
Eis o meu caminho de negrume. Sigamos por ele, Telo. Pintemos
de luto o pranto dos sinos. Ali vai saindo das portas da
câmara o alferes municipal, a abrir o préstito. Conheço-o. É
André Pires. Negras são as suas vestes e monta à bastarda um
cavalo murzelo azeviche, de negra gualdrapa rastejante e
cabeçada de nojo. Tão longa a haste preta da bandeira de
canhamaço preto, que se verga desde o punho direito e do ombro
do porta-bandeira até roçar o chão. Ladeiam-no, a pé, negras
as túnicas, negros os capuzes aguçados, negras as varas nas
mãos, os vereadores, os procuradores da cidade e dos mesteres.
A seguir, em cavalos murzelos gualdrapados de preto, os
fidalgos que, pela idade ou doença, não foram a Alcácer. Este
é Dom João, duque de Bragança, aquele Dom Francisco de Melo,
conde de Tentúgal. Acolá, os senhores nobres que eu deixei por
governadores do reino... Lá vem meu tio Dom Henrique. Que mau
ar tem!... E o povo atrás gemendo orfandade e viuvez...
Chegamos à sé. Já o juiz do cível, Lourenço Marques, sobe ao
patamar do pórtico. Ergue bem alto, acima da cabeça, o escudo
negro e arranca das cavernas do peito um ronco raivoso:
"Chorai, senhores! Chorai, gentes! Morreu o nosso rei Dom
Sebastião!" Telo fita-me com os olhos aguados e o lábio a
tremer. O juiz quebra o escudo contra os degraus da escadaria
e o guaiar do povo sobe pelas ruelas até às muralhas da
alcáçova. Descemos à rua Nova. O cortejo estende-se vagaroso
ao badalar dos sinos: a meio caminho pára. Agora é Duarte
Lampreia, juiz do crime, que ergue o escudo e brada
enrouquecido: "Chorai, senhores! Chorai, cidadãos! Chorai,
povo! Morreu o rei Dom Sebastião!"
e, por entre soluços e choros, estilhaça o escudo na calçada.
"Vamos daqui" agarra-me Telo pelo braço. "Deixa" digo-lhe.
"Irei até ao fim." Já no Rossio, sobe o outro juiz do crime,
Gaspar Campelo, as escadas do hospital de Todos-os-Santos e,
com o mesmo brado fúnebre, quebra na pedra o terceiro
escudo... Regressam por São Nicolau a ouvir missa na sé.

46 - 47


Ficamos no vão de um portal a vê-los desaparecer...
"Vem" disse Telo. "Ali adiante, numa porta sob as arcadas,
entra-se para um refeitório. As freiras do hospital servem uma
sopa quente e pão."
"A sopa dos pobres" considerou Savachão, enquanto caminhavam
por entre esvoaçar de pombos que vinham às migalhas. "Um rei
morto não pode sentir o orgulho ferido."
Grande fila de mendigos à espera de vez. Escondem nos alforges
de andrajos a sua fortuna: côdeas de pão revelho, alguma
castanha pilada, um botão encontrado no chão... Tristes
alguns, metidos consigo, desdentados e sujos, homens de barba
por fazer coçando-se pulgas e cinches, mulheres desguelhadas
cheias de lêndeas... Outros lépidos na galhofa dos
comentários...
"Hoje é dia de festa. O cardeal vai ser alçado aqui ao lado.
Pão a dobrar, caldo de feijão com couves..."
"... e um naco de chouriço..." "A sopa dos ricos."

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"O rei morreu. Viva o rei. Ontem chorou-se, hoje ri-se."
"Que estais prà i a dizer?" segredou um, olhando em redor.
Puxou os que estavam próximos, entre eles Savachão e Telo, à
colação e disse: "Sabeis o que corre? O rei não morreu e anda
por aí entre nós..."
"Agora! Não me digas!" "Ainda te enforcam por isso."
"A minha avó!" e fazia um gesto obsceno.
"Se ele anda por aí e te ouve, manda cortar-te a língua...
"... a mão direita..."
"... os colhões..."
"Que disse eu de mal? É o que consta... Ah! Se ele estivesse
vivo, mesmo na minha miséria era capaz de lhe beijar a mão, os
pés... até lhe beijava o cu... Agora o velhadas, o padreco...
"Pchiu!
"Pobre reino! Um louco, outro velho..."
Entravam. Sentavam-se a uma mesa corrida, diante de uma tijela
de caldo e um naco de pão. Savachão hesitava. A seu lado, à
sua frente, sôfrega sorvia a pobreza a sopa nas gorjas
sequiosas os lábios a escorrerem. As freiras apressavam-nos:
"Vamos, vamos. Dar o lugar."
Levantavam-se limpando as beiças às mangas dos gibões, levando
à boca com grandes dentadas a polpa do pão. "Então não comes?"
perguntava a irmã a Savachão. "Não sei comer depressa."
"Andar, andar. Há outros à espera."
Telo tocou-lhe de leve no braço a urgi-lo. Beberam o caldo,
ergueram-se e saíram. Savachão tinha os olhos húmidos. O pajem
olhou-o, mas evitou dizer fosse o que fosse. Vinha lá um
cortejo em direcção à igreja. Em cavalos baios de gualdrapas
quarteadas de vermelho e branco, os trombeteiros e atabaleiros
com os instrumentos calados... Por de mais conhecia ele aquele
protocolo, as precedências. Podia vê-los de olhos fechados...
os três reis-de-armas, os arautos, os passavantes... Abria os
olhos. Já desfilava a representação da câmara, agora os
desembargadores e... seus pecados!... os magros fidalgos que
restavam na corte. A negrura da ausência povoa o séquito. O
que me os olhos da culpa estão vendo é a multidão dos
fantasmas dos que se finaram lá em baixo...

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Sacudo-os com a mão... Lá vem o alferes-mor, a bandeira
enrolada na haste, como condestável o duque de Bragança com o
estoque... Meu tio Henrique! De vermelho. Montado em mula
preta de gualdrapa escarlate, doirados os copos da brida e os
arreios da cabeçada. Às rédeas, os condes da Sortelha e da
Castanheira. Diante deles, empunhando a vara de mordomo-mor, o
conde de Portalegre... Escolheu esta capela, conheço bem
porquê: aqui foi ele sagrado arcebispo de Braga. Agora vai ser
rei... Já sobe a escadaria. No patamar espera-o toda a
clerezia da capela real e do cabido. Lá está o arcebispo
Teotónio e os bispos Osório, André, Jorge e aquele ali,
diz-me, Telo...
"É Dom Sebastião da Fonseca, bispo de Targa...
... Olha o meu capelão-mor João de Castro... Debaixo do pálio,
Jorge de Almeida, arcebispo de Lisboa... Já entram no templo.
Sei bem o que se vai passar lá dentro: meu tio no estrado, sob

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o dossel... a jurar, de joelhos, sobre o missal e a cruz, bem
governar, sustentar a justiça, guardar privilégios e
liberdades... o camareiro-mor a entregar-lhe o ceptro... a
cerimónia do beija-mão... e não tardará, tão poucos são os
senhores para lhe beijarem a mão, que o rei-de-armas...
"Ouvide! Ouvide! Ouvide!" soa dentro a grita do rei-de-armas.
... o alferes-mor já desfralda a bandeira e solta o brado...
"Real! Real! Real! Pelo Sereníssimo Príncipe Dom Henrique, Rei
de Portugal!"
... Ah! Que tibieza! Como o povo corresponde sem alegria!...
"Vem, Telo. Já me custa morrer tanta vez."
E afastam-se dali, pelas traseiras dos Estaus, soavam na praça
as trombetas e os atabales.
Vieram de detrás de São Domingos e no largo da feira das
bestas, sentaram-se nos degraus da ermida da Senhora da
Escada. Saíam da igreja do mosteiro damas embiocadas, seguidas
das criadas e escravas negras, e juntavam-se a falar.
"De luto, senhora? Pois já tendes a certeza?" "Não, mas... é o
luto da alma."
"Eu recuso-me a acreditar. Choro dia e noite... mas não me
visto de negro enquanto não souber. Dá mau sestro."
"Esta angústia em que vivemos..."
"Conseguistes saber alguma coisa dos poucos que chegaram na
armada de Dom Diogo?"
"Não queirais saber! Insisti, insisti... Caras de pau, senho
sombrio, carrancudos, a boca cerrada... um túmulo..."
"... um túmulo como todo o reino... Mas podiam, ao menos,
desabafar, dizer o que sabem..."
"Dizerem que o rei morreu é dizerem que o deixaram morrer..."
"Ah! Meu Deus! Tenho lá o meu marido, os meus filhos... agonia
de alma!"
"Sabeis que vos digo? Eu não sou pessoa para ficar nesta
incerteza."
"Que ides fazer?"
"Falaram-me de uma mulher de virtude que vive no Borratém...
"Também a mim. Mas essa foi presa por roubar. Está presa no
Aljube."
"Pois irei ao Aljube."
Sentou-se junto deles um mendigo que rondara as damas de mão
estendida:
"Pobres comadres!" rosnou coçando os sovacos. "Tão desvairadas
e andejas, acabam por não fazer diferença entre luto e
romaria."

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"Porque dizes isso?" perguntou Telo.
"Com o fedor que vem de África, onde filhos e maridos
apodrecem, os ventos começam a ser de devassidão..."
sorriam-lhe os dentes sujos e acrescentava: "Se os maridos
soubessem... eh, eh, eh... antes queriam continuar mortos..."
Levantaram-se, entraram pelas portas de Santo antão e, pela
rua que vai da estrebaria de el-rei, caminharam ao longo da
muralha que descia de Santa Ana.
"Ficaram lá todos" disse Savachão. "Até eles." "Eles quem?"
"Os cavalos. Repara, Telo, como está vazia a estrebaria. Temos

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agora ali boa palha para dormirmos."
Telo comoveu-se: "Meu Senhor!"
Savachão enlaçou-o com o braço direito pelos ombros:
"Amigo..." e, continuando a caminhar, acrescentou: "Vou
estando habituado, mas quero ainda sepultar-me de vez, quando,
daqui a dias, forem as minhas solenes exéquias nos Jerónimos.
"Esquecia-me de dizer-te" informou Telo. "É hoje à noite que
os outros virão juntar-se a nós."
"Onde é o encontro?"
"Luís sugerira as casas em que, num dos pátios do hospital, se
acolhem peregrinos e mendigos. Junto às da roda e do
criadoiro?"
riu-se Cristóvão.
"Lá enjeitados somos nós, que nos enjeitámos a nós próprios,
mas julgo que dispensamos amas cristãs e vacas leiteiras."
João lembrou então os aposentos das corporações, onde se
costumam reunir caldeireiros, bate-folhas, barbeiros... Mas
Jorge considerou estes lugares demasiado próximos das
gentes..."
"Com razão."
"Deixassem com ele, dizia, que haveria de amanhar sítio
resguardado."
"Onde?"
No boqueirão do Corpo Santo." "Não estou a ver onde é."
"Ali adiante, passados os estaleiros da Ribeira das Naus, uma
angustura cega de janelas, na babugem do rio."
Para lá se dirigiram ao anoitecer e encontraram os quatro
companheiros sentados num bote varado, preso a uma argola da
parede. Ao verem chegar o rei, apearam-se e, desabituados,
esboçaram a vénia, logo atalhados pelos gestos de Savachão:
"Então, então!"
Ficavam calados, depois de tornarem todos a sentar-se no
barco, interditos, sem saberem como se dirigir ao soberano.
"As vossas feridas são saradas?" perguntou Savachão a
quebrar-lhes a tolheição.
"Savachão ainda anda de muleta" ajudava Telo, "mas é já só
quase fingimento, que a perna vai melhor."
"Notícias?" perguntou o rei.
"Não sei como falar... contigo..." adiantou Jorge. "Vejo que
Telo se acostumou."
"Fala."
"As feridas estão a cicatrizar... e o resto... Bem, no maior
dos segredos, conseguimos dinheiro e garantias de crédito
junto de vários banqueiros estrangeiros... Podemos partir, sem
necessitarmos de..." olhou para Savachão e Telo: "De que
tendes vivido?"
"De esmolas" respondeu Telo.
"Telo é hábil" acrescentou Savachão, "em deitar o barrete ao
chão. A minha perna tem ajudado."

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"Tudo isso agora acabou" disse Cristóvão com raiva nos olhos.
"Não, amigos, não" ripostou Savachão. "Por enquanto, na cidade
e no reino, teremos de continuar a ser mendigos." "Deixa-nos
ao menos" disse Luís, "arranjar-te cómodos condignos para

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dormires..."
"Temos boa palha nas cavalariças vazias de el-rei, atrás dos
muros... Olhou em redor a embarcação:
"Este barco... Não o fretastes, não?"
"Não" respondeu Jorge. "Estava aqui amarrado. Sentámo-nos
nele."
"Ostentar riqueza será mau neste transe." "Quais são os teus
planos?" perguntou João.
"Isto é uma violência e constante agravo de nossas qualidades"
disse Cristóvão, "... quanto mais da tua. Calculo o que te vai
na alma."
"Não tenho senão o que mereço. Até a morte seria alívio...
Penso que devemos sair do reino..."
"Poderíamos embarcar numa nau para a índia" propôs Jorge. "...
ou para a Flandres..." acrescentava Luís.
"... Não antes de..." disse o rei, mas Telo disse:
"Savachão" atalhou, "quer mortificar-se mais ainda. Dentro de
dias, o cardeal presidirá no mosteiro dos Jerónimos à
cerimónia solene..."
"... das minhas exéquias. Pensarão todos que serão de corpo
ausente, mas eu quero que sejam de corpo presente..." "De um
sei eu que desconfia disso" adiantou Jorge. "Quem?"
"Ouvi-o contar há dias a dois frades que pararam junto de mim.
O sermão fora encomendado a frei Miguel dos Santos, provincial
da ordem dos eremitas de Santo Agostinho..."
"Conheço. Foi pregador de minha avó, a rainha..."
suspendeu-se, olhando aos lados, e num sussurro terminou:
"Dona Catarina."
"Alguém o avisou em segredo: Olhasse como pregava. O rei era
vivo e havia de o ouvir."
O pregador, enfiado, deu parte a Dom Henrique do que passava e
que assim não haveria de pregar. O cardeal mandou logo o
corregedor Diogo da Fonseca tirar devassa do que se por aí
diz..."
"Devassa? Andam a tirar devassa?"
"Sim" confirmou João. "E parece que não apareceu ninguém que
jurasse ter-te visto morrer... ter visto o rei morrer na
batalha... que não seria fácil conhecê-lo depois de morto,
dois dias passados, despido... Ainda vestidos e frescos, eram
desconhecidos de pais e de filhos os que acabavam de morrer,
quanto mais cobertos de pó, suor e sangue, talhados de
feridas, inchados ao ardor do sol, desfigurados... Nem se
achara no campo ou em mão de mouros insígnia sua, coisa do seu
corpo, fáceis de reconhecer pelas guarnições de armas reais e
até nas fivelas dos sapatos...
"O caso é que" continuou Jorge, "Frei Miguel afirmava que só
pregaria se ordenasse o sermão com tal arte que nem desse o
rei por vivo nem por morto. O cardeal despachou-o e entregou o
encargo ao padre Luís Álvares da Companhia de Jesus.
"Muito me contais" disse Savachão. "Por mais que me custe, é
meu propósito assistir a essas exéquias."
"Savachão" disse Telo, "folga de remexer na ferida que está a
sangrar."
"Se não quereis assistir, ficai ao largo. Eu assistirei."

54 - 55

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Uma noite, pela Betesga saíram a Santa Justa. Zona de
tavernas, malandros, rufias e mulheres da vida.
"Esse rei que tanto admiras, João segundo" disse Telo a
Savachão, "quando príncipe, gostava de se escapar da alcáçova
pela calada da noite a ter amores com as rameiras."
"E rixas, bem sei" disse Savachão. "Não o imitei nisso..."
Olhou o amigo, hesitando em vestir de voz o pensamento. Olhou
os outros, que seguiam à frente, distanciados para que o grupo
não desse nas vistas, e enfim perguntou:
"E tu? Alguma vez te escapaste a experimentar amores por estes
sítios?"
Acenou Telo que sim, sem adiantar palavra, lembrado de que o
rei, segundo se dizia, ainda não conhecera mulher. Leu-lhe o
pensamento Savachão, que desabafou:
"Sempre tive medo de apanhar alguma doença... o morbo
serpentino... A conversa levou Telo a voar a outro lado:
"E agora? O cardeal como é que..."
"As minhas culpas não têm perdão" disse Savachão. "Porque não
morri eu?"
Jorge tinha-se deixado aproximar e ouviu estas palavras.
"Ainda estás a tempo de tudo remediar" disse.
"Não, não!" respondeu Savachão com violência. "Já há outro rei
alçado sobre a minha morte."
"Quando Afonso quinto regressou de França ao reino, o príncipe
João, que havia sido alçado rei, ajoelhou-se aos pés do pai a
restituir-lhe o trono."
"Não é a mesma coisa." "Pode ser, se tu quiseres."
"Cala-te, cala-te. Deixa-me estar morto. Meu tio há-de pedir
ao papa licença,
há-de casar e dar herdeiro ao reino, verás..."
"Casar, ele?" disse Telo. "Mesmo que o papa conceda a licença
das ordens, como poderá ele...?"
Da sombra de uma esquina surgiram súbito cinco embuçados de
negro, as lâminas das espadas a cintilarem ao luar. As vossas
bolsas, vá, depressa" disse uma voz rouca. Como um raio, Jorge
abriu a capa de mendigo, na mão fino sabre desembainhado, a
cota de malha a reluzir-lhe no peito: "A mim, vilões!"
e investia.
Telo, sem arma, tirara o capote e, rodando-o no ar, procurava
desarmar algum dos meliantes. Savachão retirou de sob a axila
a muleta, assentou a perna doente no chão e arremeteu
volteando o madeiro com tanta violência e destreza que
escachou a cabeça a um, arrombou o costado a outro e desfez a
muleta no traseiro de um terceiro que virava costas a fugir,
já Luís, João e Cristóvão acudiam à refrega e castigavam com
suas estocadas os salteadores e os punham em debandada
malferidos.
Assomavam homens e mulheres à porta de uma taverna a verem a
bernarda. Savachão ainda tentou apanhar a muleta, mas ela
estava feita em pedaços. Caminhou coxeando da perna dorida.
Uma rapariga adiantou-se da porta e veio dar-lhe o braço:
"Agarra-te a mim, filho. Ao menos sirvo de cajado."
O taverneiro, entre os que assistiam, limpava as mãos ao
avental e dizia:
"Ah! Se homens desta cepa tivessem pelejado naquela maldita
batalha!"

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Savachão entrou pelo braço da rapariga. Os outros seguiam-no.
Sentaram-se numa mesa vaga a um canto. "Pareceis mendigos"
disse o taverneiro, "mas mendigo não luta assim contra
malandros."

56 - 57


"Romeiros" mentiu Telo, "a caminho de Santiago." "E que vão
querer Vossas Senhorias?"
"Queremos cear" respondeu Cristóvão.
"Vinho, ainda me resta uma pipa. De estalo. Carne, só toucinho
rançoso. Pão, viste-lo. Na Casa da índia nem um saco de trigo
da Flandres. Levaram tudo... para os Mouros comerem... Mas
tenho umas migas de farelo com couve e feijão que é um
primor."
"Traz do que tiveres. Romeiro tem boa boca."
As mulheres rodeavam os valentões comentando o sucedido. A
rapariga, sentada ao lado de Savachão, enxugava-lhe a testa
suada:
"Querido, que valente foste! Uma muleta! Minha mãe! Só
visto!... Tens uns lindos olhos... E esta boca?..." e deu-lhe
um beijo nos lábios...
Nem o vento nem o sol, a espuma do mar, o sopro de asas das
gaivotas, o respiro de velas enfunadas, o calor das achas da
lareira... o frémito da montaria, a vertigem de uma luta de
vida e de morte... Este beijo ficou-me na carne. Hei-de
senti-lo por toda a vida. Nunca meu corpo estremeceu assim...
Que me está a acontecer?...
Olhou a jovem. Era formosa, embora lhe sombreassem os cantos
dos olhos e da boca pequenas linhas de amargura. Lembrava-lhe
alguém que conhecia, lembrava-lhe...
"Também danças? Também lês o passado e o futuro?"
"Também?"
"Sim, como..."
"Ah! Faço-te lembrar outra. A tua namorada abandonou-te? É por
isso que te fizeste andarilho?"
"Não, não!"
"Deixa lá, filho. Sei o que é dor de corno. Eu faço-te
esquecer.
"Como te chamas?"
"Minha mãe! Olha-me um que me pergunta o nome! Há quantos
séculos foi isso?"
"Não tens nome?"
"Os homens procuram-me pelo meu corpo. Que importa quem sou?
Puta sem nome... E, de repente, vens tu, meu docinho, e
perguntas-me pelo fundo de mim..."
"Diz."
"Queres mesmo saber?" Acenou que sim.
"Essa é a única coisa que ainda guardo de mim. Deixa-a comigo,
o meu segredo... O resto..." e encolhia os ombros, "... Olha,
chama-me Cadela. É nome a condizer.
Ouço-o todas as noites. Putarroa, Cabra, Tinhosa... lindos
nomes deste baptizado... "
"Respeitarei o teu pudor, princesa."
"Tão querido! Vem" dizia a moça tomando-lhe da mão.
"Descansarás um pouco lá em cima, enquanto não chega a ceia...

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Levantou-se Savachão como adormecido e, levado pela rapariga,
subiu as escadas e desapareceram.
Ao fim da noite, quando se dispôs a descer, ela disse-lhe:
"Nós temos dois corações, meu querido. Aquele que bate aqui no
peito... dizem que é um pedaço de carne maior do que o de um
cabrito... o outro, não sei bem dizer... é uma a modos de
boceta invisível onde nós guardamos pequenas coisas, olha, uma
flor que ali vai fanar, desbotar, descheirar, sem apodrecer,
como para a não deixarmos morrer. É aí que guardo o que sinto
por ti. Tu és o meu rei e no meu coração eu tenho... dizem que
os reis têm uma cadeira de ouro numa sala muito grande...

58 - 59


"... o trono..."
"... pois eu tenho nesse meu coração um trono para ti."
Savachão beijou-a.
"Não te disse o meu nome nem to vou dizer, que tenho vergonha.
Mas gostava que tu me pusesses um especial, só para ti... o
nome de uma flor..."
"Violeta, o perfume mais simples e mais fino..."


"Está aí à porta o outono" disse João. "Seria melhor
aviarmo-nos a evitar as invernadas, se vamos de longada pelas
partes do Setentrião.
Caminhavam em direcção aos Jerónimos, na peugada da multidão
de mulheres enlutadas com crianças pelas mãos e velhos ossudos
de semblantes carregados.
"Savachão" falou Jorge, "poupa-nos à tortura a que te vais
sujeitar. Falo por mim e pelos outros."
"Não por mim. Eu acompanhar-te-ei" disse Telo ao rei. "Não
quereis assistir às minhas exéquias, não é?" "Podíamos
entretanto ir adiantando preparativos de viagem... "Se assim
quereis..."
"Ainda pensas sair pelo Norte, para Santiago? Está aí, no
Restelo, fundeada uma nau prestes a partir...
"Para as índias?"
"Para a Flandres. Para as índias as armadas já partiram.
Agora, só daqui a não sei quantos meses."
E qual a vantagem de irmos para a Flandres?" "Menos trabalhos
para a tua perna..."
Interrompeu-se a um gesto de desapego de Savachão e logo
emendou:
"... nós podemos arranjar cavalos... mas com mais rapidez, por
aquela via, atingiríamos o coração da Europa, haveria menos
perigos de assaltos de ladrões formigueiros..."
"... menos despesas e canseiras de albergues..." ajudava Luís.
E mudas de cavalgaduras... e depois..." e depois...?"
se subíssemos para norte, em busca da raia da Galiza, que mais
verias tu do reino que não tivesses visto já? Terras maninhas,
penúria de pão por míngua de braços... desertos os paços dos
senhores, as choupanas dos lavradores, as oficinas dos
mesteirais..."
Paravam por momentos a escutar Cristóvão que lhes chamava a
atenção:

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"Na vicissitude, é sabido, vemos mais claro. O reino é um
ermo. A muitos
dizimou-os a peste, a não poucos o mar e à multidão a guerra.
Que mais havemos de esperar senão que a fome se estenda aos
que restam?"
"Não te esqueça" disse Luís, "de que a fuga ao trabalho do
campo e aos mesteres mecânicos vem de muito longe, a maioria
dos adolescentes a buscarem servir nos paços dos fidalgos ou
na corte..."
"... ou no ócio da religião..." acrescentava João. "Também
havia por aí" dizia Jorge, "muito madraço a fingir-se criado
de el-rei e de senhores, para se darem a andar de terra em
terra a praticar malfeitorias."
Savachão escutava, o ar grave e contristado.
De qualquer modo" disse, "não é boa medida roubar sesmeiros e
coureleiros às suas terras, para lhes meter nas mãos uma
lança, uma acha-de-armas... Erro meu. Tudo isto me dói.,-.
lavrar o mar, lavrar a guerra, lavrar a ilusão... e perder
o reino..."

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e pôs-se a caminhar, o mais lesto que pôde, arrimado ao bordão
que lhe agora era apoio. Um pouco adiante, estacou: "Seja"
virou-se para Jorge e os outros. "Preparai a nossa partida por
mar."
Separaram-se. Jorge e os três companheiros dirigiram-se para a
praia velha, perto da qual, no meio das águas, se erguia o
castelo de São Vicente a par de Belém, ondulava ao largo uma
nau com as velas ferradas. Savachão e Telo continuaram caminho
do mosteiro. Pararam a beber da água de um fontanário pouco
afastado do pórtico lateral do templo.
"Vai ser difícil entrar" disse Telo. "O povo já engrossa cá
fora."
Avançaram por entre as gentes que cada vez mais se apinhavam.
Vinha de dentro o cantochão dos frades:
deixara crescer uma barba de um negro cerrado, Savachão por
mor das ataduras de pano que lhe escondiam os cabelos loiros.
Apertados entre o povo, era-lhes impossível ajoelharem-se.
Corriam-lhes os olhos à capela-mor. Ali está meu tio... o rei
meu tio... Aquele é o duque de Bragança... e os outros
nobres... o celebrante Dom Jorge de Almeida, o bispo do
Algarve... aquele é Jerónimo Osório... e demais prelados...
Olhavam aos lados e ao fundo as naves pejadas de fiéis... o
cantochão ia no fim...
Huic ergo parce, Deus, pie Jesu Domine, dona ei requiem. Amen.
Dies irae, dies illa...
"Já começou o ofício" murmurou Telo.
Determinado, abria Savachão caminho e, daí a pouco...
Rex tremendae majestatis...
... penetravam na igreja e anichavam-se num recanto da parede,
não distantes do cruzeiro.
Lacrimosa dies illa qua resurget ex favilla judicandus homo
reus...
Morria o cântico pelas abóbadas, entre gemidos e suspiros de
mulheres de olhos chorosos, ferravam-se os homens os lábios,

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rugas vincadas, contendo o sentimento. O arcebispo de Lisboa
levantou-se e recitou do missal:
"Sequentia Sancti Evangelii secundum Joannem. In illo tempore
dixit Marta ad Jesum: Domine, si fuisses hic...
"... Naquele tempo, disse Marta a Jesus..." recordava Savachão
o texto conhecido, "Senhor, se tivesses estado aqui, o meu
irmão não teria morrido..."
Telo não conseguiu dominar-se e abafou um soluço no ombro do
companheiro, que lhe apertou o braço a incutir-lhe coragem.
"... qui credit in me, etiam si mortuus fuerit, vivet... "...
ainda que morto, viverá..."
Savachão persignava-se, Telo imitava-o.

62 - 63


Haviam baixado os capuzes, sem receio de serem reconhecidos,
Telo porque Acabava a leitura, o celebrante beijava o missal
e, ajudado pelos acólitos, tornava a sentar-se, voltavam-se os
olhos para o púlpito onde surgia o padre Luís Álvares com a
sua estola preta, aquietava-se a assembleia na contenção do
mexer e do arfar. O pregador ajoelhara breves segundos a
concentrar-se na oração e logo, levantando-se, chicoteou em
voz poderosa o ar e as almas com o latim do mote:
Domino Deo nostro justitia, nobis autem confusio
faciei nostrae...
Escolhia versículos da Baruch referentes à provação de Judá
aquando da conquista de Jerusalém por Nabucodonosor e do
cativeiro de Babilónia...
Ao Senhor nosso Deus a justiça, a nós porém a confusão dos
nossos rostos, como este dia a todo Judá, aos que moram em
Jerusalém, aos nossos reis, aos nossos príncipes, aos nossos
sacerdotes, aos nossos profetas, aos nossos pais...
... e, colocando teatralmente o antebraço esquerdo no bordo do
balcão e olhando a baixo aos olhos para ele erguidos, falou de
que, assim como Deus deve ser o fim último e princi pal de
nossas esperanças, é maldito o homem que põe esperança no
homem...
... e bem o vedes nesta miséria e desaventura presente... como
tão em breve acabaram tantas esperanças de tantos senhores, de
tantos morgados, de tantos ofícios, de tantas privanças, de
tantas valias e - perdoai-me que isto é acabado - de tantas
loucuras, de tantas meninices, de tão grandes brios, soberbas,
mentiras, de tantos nadas... que tudo ao fim nisso se
resolveu...
Esperanças certas só em Deus e na medianeira a Virgem sua
mãe... E, olhos e mãos erguidos ao Céu das abóbadas, invocou a
Senhora, refúgio, alívio, consolação dos males que afligiam o
reino e exortou o povo de Deus a saudá-la rezando Ave,
Maria...
Quando o sussurro da prece por todo o templo se extinguiu,
repetiu o orador o mote latino do exórdio...
Aí está o osso do discurso, pensou Savachão. Ah! Negra alma
minha, que no momento em que devia cobrir a cara de vergonha,
no orgulho da chamada serenidade real não se me abre o
coração, não geme esta rocha e se rasga a fonte dos olhos!
Como mestre-escola, ponho-me a discretear sobre a fábrica do

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sermão... friamente, enquanto à minha volta... Não vês, não
ouves como esta pobre gente chora as vidas espedaçadas por
ti?... E eis-me a reconhecer, passo a passo, os caminhos
retóricos do orador. Não está ele falando das adversidades de
Judá? Não se adivinha o propósito?
... permitiu Deus que aquela sua mimosa cidade de Jerusalém e
o templo tanto seu amado que lhe chamava o querido das meninas
dos seus olhos... puderam tanto os pecados que deu licença às
nações bárbaras entrassem a cidade, profanassem o santuário,
não deixassem pedra sobre pedra e levassem consigo para
Babilónia, manietados com desonra, nobres fidalgos do reino,
cativos, em servidão dura e espantosa, e depois que lá se
viram na terra dos inimigos, com braga e adobes nos pés, sem
camisa nem capote, com almofaça nas estrebarias dos
bárbaros...

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Mero tópico. Logo cotejará com o que está vivendo este reino.
O próprio auditório já o adivinhou, que se lhe marejam de
lágrimas os olhos. E tu, pregador, notaste-o...
para vós, rei Dom João primeiro, de gloriosa memória...
Tem piedade! Não!...
... Não choreis, que tais tendes vossos filhos. Deixai-os
estar, que assim vós o quisestes...
Cala-te, pregador. Tem pena desta gente. A mim não me
atingirás. Já ouvi tudo. Já sei tudo. A dimensão da minha
culpa e da minha desculpa. Sei o que vais dizer a seguir e a
seguir e depois do a seguir e como perorarás... Pobre tio-avô,
filho de meu bisavô Emanuel! Que rosto pálido o teu aí sentado
no cadeirão real em que te colocou a minha loucura! As
palavras do orador ferem-te fundo, a ti que não tens culpa.
Escuta-as...
... desonra para vós, ó grande rei Dom Manuel, a cujos pés
tantos reis do Oriente, com as mãos cruzadas, vinham dar
obediência... E que direi de vós, rei Dom João terceiro, em
cujo tempo houve este reino muitas e mui grandes vitórias,
quando vejo vosso neto jazer despido entre outros mortos no
campo de Arzila, sem sepultura... Que vergonha esta! Que
desonra!...
"Vamos embora daqui" dizia Telo em soluços ao ouvido de
Savachão. "Vamos daqui."
... Ao Senhor Deus nosso, justiça; a nós nenhuma outra coisa
mais compete que afronta, desonra e vergonha de nosso rosto...
Com quanta maior razão pudera dizer de si hoje estas palavras
o desventurado reino de Portugal... Que triste, que
lamentável, que desonrada história se contará agora deste
reino? - reino outrora tão glorioso que, sendo tão pequeno em
gente, era tão grande em esforço e ânimo, que lá na índia,
tantas mil léguas daqui, fazia tremer a barba a nossos
inimigos - quando se escrever que seu rei, com toda a flor do
reino, em menos de três horas se consumiu de todo, à vista e
faro da nossa terra? Que desonra esta de nossos rostos, de
nossos reis, de nossos príncipes, de nossos bispos, de nossos
pregadores, de nossos pais... Que desonra para vós, rei Dom
Afonso Henriques...

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... Montes de Gelboé, nec ros nec pluvia veniat super vos...
Campos desastrados de Larache, de hoje em diante mais não deis
fruto, malditos sejais para sempre, pois em vós perdeu
Portugal sua nobreza, em vós se acabou seu esforço, em vós
perdeu sua honra, onde ficaram nossos filhos, nossos irmãos,
nossos maridos, o nosso rei tão formoso... quasi non esset
unctus oleo... como se não fora ungido...
"Vamos embora, vamos embora!" puxava Telo, aflito, a manga de
Savachão, por entre o vendaval de suspiros e ais que varria
aquela seara de gente. Mas Savachão não o sentia. Murmurava
como alucinado:
"quasi non esset unctus... como se não fosse ungido com o
óleo...
Não, não, pregador! Por aí, não, que me feres no mais fundo de
mim...
Depois de morto Saul, não faltaram varões esforçados que
arriscaram suas vidas para descobrir o corpo de seu rei e
tanto andaram até que o acharam e o levaram e lhe deram
honrosa sepultura...

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Que desonra esta de portugueses! Morrer-vos vosso rei em parte
onde nem privado nem senhor nem grande nem pequeno soube dar
conta dele!... Cuidar nisto parece sonho... cuidar em um rei
que lágrimas pediram, lágrimas pariram, lágrimas conceberam,
lágrimas criaram, lágrimas sustentaram, acabar assim da
maneira que vedes...
Morte e nascimento andam comigo. Meu pai morreu, eu nasci. O
dia da minha morte foi o do meu nascimento. Posso dizer que só
agora me nasço, depois que desci a ser igual ao mais pobre dos
pobres. Que importa o que me ensinava o meu preceptor Luís
Gonçalves, que a realeza é dignidade que não morre? Pobre
Fénix minha! Sei que se, neste preciso momento, eu avançasse
aí ao meio da capela-mor e me descobrisse, me desse a
conhecer, haveria espanto, surpresa, júbilo... e o pregador
teria de emendar o seu sermão. Como pode a um rei jovem
suceder um rei velho?... Mas não. O dia deste meu nascimento é
o dia da minha morte. Ninguém saberá que estou vivo...
... Não morrestes vós, meu rei, como covarde. Vossas mãos não
foram atadas como cativo, vossos pés não trouxeram braga, não
vos feriram por detrás como quem fugia, não dissestes `sou
rei, não me mateis. Estimastes mais a honra que a vida.
Deste-la em sacrifício pela Fé, em serviço de Deus, em remédio
de vosso povo... ainda que tínheis condição autorizada, porém
com grandes desculpas. Rei de menino criado com fumos de
imperador de Marrocos, levantado com autoridade de muitas
mentiras entonadas com tantas letras e tanta nobreza, não era
muito que vos levassem aonde vimos, e sobretudo nenhuma culpa
tendes, meu rei, porque vossos avessos, se o eram, correndo a
idade puderam ter emenda. Pois quem vos matou, meu formoso?
Matou-vos o bispo, matou-vos o clérigo, matou-vos o povo,
matei-vos eu, matámos-vos todos quantos somos, pois entre nós
não houve um tanoeiro que vos tivesse mão pela rédea, como já
se fez a outro rei deste reino...
"Vamos embora, vamos" disse Savachão, tomando Telo do braço e

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abrindo caminho por entre o povo em direcção à porta.

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IV - O sósia


- Palavras de sonho para história de sonho - disse o
arcebispo de Espálato levantando-se e dando largas passadas
pela sala. - Pretendeis que eu acredite nisso?
Não me acudira a ideia. Está a ouvir-me há tanto tempo e só
agora caio em mim e me dou conta de que não sei se ele
acredita em mim e pensará que sou um mistificador. Que outra
coisa posso esperar senão a dúvida? Que resposta poderei
dar?...
- A verdade - respondia - é como um raio de luz coado por um
vidro facetado: estilha-se em feixes e cores...
e, com aguda insistência - atalhou o cónego -, pode lançar
fogo ao universo.
- Uma história do outro mundo! - teimava o prelado.
- Sente-se, Eminência, e escute o restante.
O arcebispo sentou-se. O peregrino retomou o seu relato:
- Resolvi-me a correr mundo com os meus companheiros.
- E os teus companheiros onde estão?
Escutasse, logo saberia. Não souberam morrer nos areais de
Alcácer e procuravam agora a glória ou a morte algures. Na
Flandres, nas províncias do Norte, ajudaram os maltrapilhos de
Guilherme de Orange contra a dominação de Filipe segundo,

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ainda estava na memória do povo, quando chegaram, as
crueldades do duque de Alba, esse mesmo de que lhe vinham
então ao conhecimento notícias de que invadira Portugal,
vencera em Alcântara seu primo Dom António aclamado rei em
Santarém, colocara pela força, dispensando a argumentação
jurídica, o rei de Espanha no trono português. Raiva, paixão e
impotência, quando tudo desabava e ele assistira atónito à
imprevista cena em que Baltasar Gérard disparara a sua pistola
no peito de Taciturno. Saíram, então, Europa dentro, na
Áustria lutaram contra os Otomanos e foram subindo pelos
Balcãs, até que um dia... Os companheiros foram ficando pelo
caminho, mortos, desaparecidos, para maior pungência do seu
remordimento. Dois deles, na travessia do Danúbio coalhado.
Haviam confiado na espessura do gelo, iam lá à frente e
avançaram confiantes, não avisados de que era abril e já a
brancura das montanhas por toda a parte se abria em sulcos de
riachos. Com o peso e o bater dos cascos das montadas, a
superfície escorregadia cedeu e eles foram engolidos pela
torrente subterrânea, que nunca mais ninguém os viu e nem um
ai os pôde salvar... Outros dois tinham sucumbido em combate
algures na Síria... Ficara Telo. Um dia, em Damasco, aonde
entraram disfarçados numa caravana de mercadores de seda,
saíra o pajem da tenda em busca de mantimentos. Escorreram
horas e, como não voltasse, ele fora pela cidade com um

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indiano amigo à procura do companheiro. Na praça pública
balouçavam três corpos pendurados das forcas. O pajem era um
deles. Manifestara a vontade de saber que se tinha passado, de
resgatar-lhe o corpo para o sepultar cristãmente. Mas o
indiano, agarrando-lhe do braço, arrastou-o dali e obrigou-o a
sair, se não quisesse sofrer a mesma sorte...
Sozinho com a sua dor e o seu remorso, acabou por decidir
desaparecer para sempre.
Levara então uma vida recolhida, de penitência, junto de um
velho eremita, numa tebaida do Sinai. Paisagem sem marcas, sem
indicadores de precedências, mando, riqueza, gruta sem trono
fendida na rocha da montanha, duas árvores e a magra horta na
sobrevivência de fonte avara, cascalho estéril só de víboras e
lagartos rastejado, céu agreste sem adejo de asas, a solidão
perene. Alheado de tudo, pensara poder apagar o passado e
abafar o peso da alma, esvaziar a memória. O pulsar do nascer
e pôr do Sol, da noite e do dia, das horas sem acontecimentos,
adormentavam-no, deixou de sentir a meada dos anos que se
enfiavam no esquecimento. Não fosse aquele moer escondido que
lhe latejava e pungia não sabia onde de si, dir-se-ia que
estava morto.


Certa vez, o eremita, tendo-o encontrado sentado num morro, o
olhar vago fitando o horizonte, disse-lhe:
"Deixaste de rezar? Que se passa contigo? Tens andado triste e
agora, vê tu, estão húmidos os teus olhos." Pegou-lhe da mão,
obrigou-o a descer dali e a caminhar a seu lado. "Vem. Não
queres desabafar?"
Sebastião calava-se. Verdade que quase já não sabia falar, por
via do constante silêncio.
O eremita insistiu:
"É como se te ouvisse em confissão" e sentou-se numa pedra, à
sombra de um sicómoro. Ajoelhasse-se-lhe aos pés, fazia-lhe
sinal...
Foi uma longa e comovida confissão, que o eremita escutava de
olhos fechados para os não abrir de espanto. No fim,
disse-lhe:

72 - 73



"Pecaste. Contra Deus e contra o teu povo. Sabes que a realeza
vem de Deus?"
Acenou que sim.
"Vou dar-te a única penitência possível. Regressa, rei. Cumpre
o teu dever e o teu destino. Retoma o governo do teu reino."
Desceram ao tugúrio onde costumavam pousar. O eremita foi a um
canto e pegou numa pequena arca que o peregrino lhe dera a
guardar e continha a riqueza acumulada pelos companheiros e de
que se despojara:
"Toma. Recupera a tua qualidade, o teu estado."
"Há tanto tempo que renunciei a isso! Não será agora..." "Há
vinte anos que vives em pecado. É urgente remediares o mal
feito. Não podes dilatar mais."
"Pecado é ser rei. Não saberia já governar."

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"Pelo contrário. Abatido o orgulho, amansados os arremessos
juvenis, adquirido mais fundo conhecimento da vida, serás
agora um rei sábio e justo."
"Prouvera a Deus que tivesses razão."
"... Deus para com quem estás em falta grave. Não és um
ungido?"
"E quem me aceitaria agora?"
--"Será esse o teu combate. Se te deres a conhecer, verás que
se te ajoelharão aos pés."
"Não quero que ninguém se me ajoelhe aos pés. Nunca mais. São
meus iguais."
"Enganas-te. Realeza vem de Deus. São teus sujeitos."
"Reneguei vinte anos da minha vida. Penitenciei-me de meus
erros. Queres que renegue outros vinte anos?"
"Assim é preciso, senão..." "... senão?..."
... não te poderei dar a absolvição."
Olhou desolado, indeciso, Sebastião: "Inferno foi a minha
vida."
"Não faças que o seja também a eternidade." Decidiu-se enfim:
"Aceitarás vir comigo, como meu confessor e conselheiro?"
Subiram a Alexandria, onde embarcaram numa nau de Génova que
no porto estava de partida e em breve velejavam ao largo a
caminho de Cândia.
Meu Deus! Uma noite que o vento desabrido uivava lá fora e os
surbiões do mar balançavam perigosamente o barco, o velho
eremitão, que dormia a meu lado envolto numa manta, estendeu o
braço a procurar-me no escuro.
"Que é?" perguntei. "Tens medo?"
Não me respondeu. A mão dele agarrava-me convulsa e, de
súbito, deslassou e ali ficou sossegada. Soergui-me e aquela
mão descaiu para o soalho.
"Que tens? Estás doente?"
Não se mexia e não lhe sentia o respirar. Chamei por alguém.
Um passageiro que dormia ali ao pé acordou. Acendemos a
candeia. O velho tinha os olhos abertos para a noite e a boca
torcida num esgar de dor.
Na manhã seguinte, no convés, numa aberta da tempestade, o
corpo dele, embrulhado numa serapilheira e com uma pesada
pedra atada aos pés, foi lançado ao mar. O mestre não permitiu
que assistíssemos, por causa do perigo, que o vento era muito
e a nau varrida por vagas alterosas.


74 - 75


Apenas pudemos espreitar pela portinhola das escadas e rezar
breve oração que o vento nos veio arrancar dos lábios. Era
mais um pai que de mim se partia antes que eu renascesse...
Eram fins de Dezembro de noventa e sete. Dobavam os dias entre
mar e céu, passavam ao largo de Cândia, bordejavam o Sul de
Itália e aportavam a Messina, onde ele desembarcara em cata de
frei Raimundo Marchetti, intermediário - soubera-o em tempos
pelos companheiros - de cartas secretas trocadas com amigos do
reino de Portugal.
"Que me quereis falar" recebia-o o sacerdote na sacristia da
Annunziata dei Catalani, enquanto, de costas, se

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desparamentava.
"Sou português" disse-lhe. "Venho do Sinai, onde estive muitos
anos em penitência e desejava enviar um mensageiro ao meu
país. Disseram-me que vós..."
"Estranha coisa essa!" virou-se para mim. "Há muito tempo que
ninguém tem vindo reclamar os meus serviços. A última vez foi
há bons anos, recado de um nobre português que andava
incógnito pela Europa e na sua terra todos julgavam morto
naquela batalha do Norte de África...
Era um franciscano baixo, gordo, o semblante invulgarmente
agradável, com perpétuo sorriso nos olhos e na boca, mesmo
quando acrescentava que tinha tanto ódio aos Espanhóis, que
ocupavam a sua pátria..."
"... também a minha."
"... basta seres português para eu me pôr ao teu serviço."
"És capaz de guardar um segredo?"
"Darei a vida pelos segredos que guardo. Mas sou homem
prático. Ajoelha-te aqui..." e, sentando-se num cadeiral
iluminado pelo vitral da janela, dispôs-se a ouvir-me em
confissão. Daí a meia hora, o frade, a pé, guiava pela toa o
jumento em que eu ia montado, pelas ruas da cidade, por entre
rebanhos de cabras, mulheres que subiam do porto com canastras
de peixe à cabeça e filhos agarrados às saias, ladeando
pomares de fruto de espinho, à vista do mar muito azul
ponteado de ilhotas, lá em baixo a costa rochosa recortada de
abras acolhedoras e, da outra banda do estreito, as terras da
Calábria dominadas pelo Aspromonte.
Aqui vai nos lombos de um asno, pendurado no sorriso de um
franciscano e nos sonhos do desarrependimento, olhando o
fuminho anilado e distante de Lo Stromboli como se fora o seu
pensamento, o rei de Portugal.
"É longe?"
"Aí já adiante."
Parámos à porta de uma casa de um só piso, na sombra de um
limoeiro. O frade bateu:
"Túlio! Paola!"
Não tardou que assomasse à entrada uma mulher muito formosa e
não me puderam os olhos desafeiçoados e o sentimento desafeito
deixar de atentar-lhe na cintura delgada a relevar-lhe o
redondo das ancas e na tumescência do peito moldada no corpete
encarnado sob a camisa branca.
"Ah! Fra Raimundo! Entrai. Meu marido anda lá atrás com a
filha a colher laranjas. Entrai."
E, como me fitasse curiosa de saber quem eu fosse,
"Um amigo português" disse o frade. "A senhora Paola
Galardetta."
Entrámos na peugada da anfitriã e atravessámos a sala e a
cozinha para as traseiras.
"Marco Túlio Catizone", ia explicando Frei Raimundo, "é um dos
meus mensageiros. Calabrês de nação, casado com Paola
Gallardeta. O homem que procurais, o mais apto e indicado para
o que pretendeis."

76 - 77


"Marco", chama a mulher, "anda cá. Tens visitas."

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Ele surgiu do fundo da cortinha acompanhado de uma moça de
seus dezoito anos, muito esbelta, com uma cesta cheia de
laranjas e tangerinas:
"Fra Raimondo, a que devo a honra...?"
Marco Túlio era um homem da minha idade, da minha estatura, da
minha compleição. Os cabelos negros e a tez morena
contrastavam com a minha pele branca e cabeleira loira.
Todavia as feições, não fora a cara rapada, incrivelmente
semelhantes às minhas... a expressão dos olhos, a testa alta,
a arcada do queixo... se ele deixasse crescer a barba, talhada
como a minha, pensei, bem poderia ter eu ali um sósia... Não
sei porque me veio isso à ideia, mas dei-me conta, não sem
algum rebate, de que, a um certo ponto a esta parte, desde que
abandonei a Terra Santa, me andava a imaginação perigosamente
insofreada. Resolvi haver sobre mim o necessário açaimo, tanta
dolorosa desconfiança tinha, depois dos últimos vinte anos de
amargas e mortificadas experiências, do meu pendor.
Levantava-se do mar uma aragem que nos arrepiava a pele. Marco
Túlio levou-nos para dentro, assentámo-nos os três a uma mesa
e, enquanto comíamos do pão e bebíamos do vinho que Paola e a
filha nos serviram, falámos do que ali me trouxera. Eu tinha a
intenção de ir a Roma falar com o papa Clemente, mas
necessitava, antes, de dois serviços dos amigos: que Túlio
partisse para Portugal com cartas minhas endereçadas a certos
senhores, a anunciar o meu regresso, e Frei Raimundo
diligenciasse contratar-me dois criados convenientes a meu
estado.
"Se eu não tivesse de ajudar-vos no primeiro serviço" disse o
calabrês, "bem gostava de vos ser prestimoso no segundo."
O franciscano não demorou a encontrar-me os dois pajens, que
reputava pessoas da máxima discrição, e, levados a cabo todos
os preparativos, Marco Túlio abalou para Portugal e eu, com
Carlo e Vittorio, embarquei para Roma. A pensar na audiência
de Sua Santidade, procurei dar dignidade à minha reduzida
comitiva, mas Carlo, de espírito faceto, para ele tudo era
riso - como eu agora também ia compreendendo a comédia humana!
-, e Vittorio, dissimulado, pelo excesso de cerimónia
tornava-se ridículo. Como não tinha mordomo a quem incumbisse
da tarefa de os moldar, não sabia que havia de fazer, mas os
sucessos futuros encarregaram-se de me dar a conhecer quem
tinha a meu serviço. Mal chegámos, tomámos aposentadoria na
Ostaria dell'Orso, próximo da ponte de Santo Angelo. Bons
cómodos em quadra com quatro câmaras, sala de estar, sala de
refeições, cozinha com cozinheiro às ordens, mobiliário a
preceito, cadeiras de couro, tapeçarias ricas, panejamentos de
seda e ouro...
"como para rei" dizia a rir Carlo e Vittorio fazia vénia
solene: "... além de que" dizia, "Vossa Senhoria está a dois
passos do Vaticano e de Sua Santidade..."
Nessa mesma noite... Sim, foi nessa mesma noite. Dormia eu a
sono solto, não dei por nada senão de manhã, quando me
levantei. Levaram-me tudo: dinheiro, credências, roupas e
desapareceram. De um dia para o outro regressei à mais
completa miséria e via-me impossibilitado de me apresentar a
Sua Santidade. Apiedou-se de mim a mulher do estalajadeiro,
que, além de me dar bragas, pelote, um velho jubão e uma capa,
levou o marido a perdoar-me o aluguer da aposentadoria daquela

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noite.
Quando saí do albergue, fiquei indeciso sobre que fazer da
minha vida. Ainda se tivesse ali comigo a jovialidade de Telo,
o seu engenho, as suas manhas em resolver as adversidades...

78 - 79


Alguma coisa, no entanto, eu aprendera com ele. Isso me
animaria. Atravessei a ponte, passei o castelo e, metido
comigo, foi com surpresa que súbito me vi a caminhar rodeado
da multidão. Deixei-me levar e daí a pouco entrava na basílica
de São Pedro. Era domingo. O papa oficiava acolitado por
quatro cardeais, mas a pompa das cerimónias e a excessiva
riqueza do templo não se me quadravam com o abatimento de alma
e eu saí dali - Deus me perdoe - sem ser capaz de rezar um
padre-nosso. Dei em cuidar nisso por muito tempo, enquanto que
ia saindo da cidade...
Não se me acomoda o roteiro interior ao itinerário externo dos
meus passos. Olho em voragem os fantasmas do passado e do
presente que me surgem no caminho, a fúria do tempo em
destruir a memória, a fúria do momento em, sobre aquela,
construir outra... ossadas de esbeltas colunas de templos
romanos, olha acolá o de Saturno... templos em ruína, templos
em construção, morrem uns deuses, nascem outros... destroços
de arcos antigos que um dia foram triunfais como os que agora
aí estão sendo edificados com igual arte à espera de igual
sorte - o de Tito comemora o saque de Jerusalém, o de
Constantino celebra a vitória sobre o imperador Maxêncio na
batalha da ponte Mílvio. Deveu-se - rezavam as lendas - a
tê-lo um anjo exortado em sonho a que marcasse um qui e um ró
nos escudos dos seus soldados ou a ter-lhe aparecido nos céus,
ia a refrega em meio, a cruz do Salvador, in hoc signo
vinces... anfiteatros, arenas, colossos, fontes e repuxos,
deuses e deusas desnudados os corpos de mármore, mortos como a
eternidade por entre o gargalhar cósmico da água... a coluna
de Trajano, memorando a conquista da Dácia, lembra a
edificação de um império que levou séculos a tornar-se pó... A
mim bastaram-me três horas para pulverizar o meu...
Saí de Roma de meu vagar, seguindo algum tempo o curso do
Tibre, desesperançado de alguma vez aí voltar a cumprir a
minha tenção de solicitar ao sumo pontífice a necessária
ajuda, sem alento sequer para prosseguir no propósito a que me
obrigara o velho eremitão meu companheiro do Sinai, que Deus
haja. Peregrinando e esmolando ao acaso pelos santuários de
Itália, transpus em breve os Apeninos, visitei Assis, na
margem do Chiascio, aonde entrei pela porta de São Pedro, a
basílica no cimo do monte Subásio, desci para o Adriático a
rezar na casa santa de Nossa Senhora do Loreto... Mas para que
hei-de eu estar a maçar-vos com as minhas desaventuras? Um
pouco mais de paciência. Acabarei já... Dormia nos portais das
igrejas, debaixo de pontes, na espessura da floresta, nas
grutas dos montes... Subi a Ancona, a Ravena, a Ferrara...
Depois de Mântua e Verona, acolhi-me à piedade de meu padre
Santo António, em Pádua, e finalmente vim ter a esta Veneza em
que, a Deus graças, encontrei conterrâneos meus que me
reconheceram e ajudaram...

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- ... e aqui estás - disse o arcebispo. - Que queres de mim?
- ... que Vossa Eminência ajude o infeliz rei de Portugal a
ser recebido pelo papa.
- O papa há-de querer provas de quem és.
- Os meus amigos portugueses darão de mim testemunho. - Quem
são eles?
- Proscritos, como é natural, pelo amor que dedicam à sua
pátria e ao seu rei. Cuidando que eu havia morrido, tomaram a
parte do rei legítimo, meu primo Dom António, prior do Crato.
Com a derrota de Alcântara, com as derrotas dos Açores,
exilaram-se com o rei em Inglaterra, em França, na Flandres,
aqui, fugidos à vingança de Filipe...

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Dom António morreu e eles, sabendo do meu aparecimento,
rejubilaram e acolheram-me...
- Pessoas gradas, julgo.
-... e de autoridade. Frei António de Sousa... - É frade?
-... dominicano. Filho de um embaixador em Espanha, mestre de
teologia, grande pregador e outras partes... Frei Luís dos
Anjos, agostinho, cronista da ordem. Dom António de Brito
Pimentel, fidalgo de minha casa, Nuno da Costa, médico
insigne, e muitos outros, Pantaleão Pessoa, o cónego Lourenço
da Costa, Sebastião Figueira, Manuel de Brito de Almeida... De
Roma deve estar a chegar um amigo importante, Dom Cristóvão de
Portugal, filho do prior do Crato...
- Sei quem é.
-... o padre José Teixeira...
- Frei José Teixeira, o esmoler do rei de França e protegido
de Catarina de Médicis?
- Esse mesmo. - Sábio homem. - Não deve tardar a chegar de
Paris... - Conheço a sua obra.
-... e os dominicanos Frei Crisóstomo da Visitação e Frei
Estêvão de Sampaio...
O arcebispo levantou-se e passeou pela sala. Os outros dois
levantaram-se também.
- Dentro de umas semanas - disse o prelado - parto para Roma
convocado para um sínodo. Quererás aproveitar?...
Deus seja louvado e sua mãe Maria Santíssima! Julgava eu nunca
mais me ser dado ouvir os sinos de Roma, a cidade leonina, e
eis que de novo os de São Pedro, de Santa Maria Trastevere, de
Sant'Agnese, de San Giovanni in Laterano, de Santa Maria
Maggiore e muitos outros, outros tais e outros tantos,
badalando, repicando, tilintando, me enchem ouvidos e alma.
Agora acredito que finalmente a minha vida vai mudar e terá
fim o meu calvário. O arcebispo de Espálato, António Graziani,
conseguiu que o papa Clemente me recebesse em audiência e aos
meus companheiros. Embora sem as insígnias e a magnificência
que seriam próprias de minha qualidade, apresentei-me
honestamente vestido de modo a que me tomassem por quem era,
nas condições de vicissitude em que me encontrava. O luxo do
Sacro Palácio, as longas galerias lustrosas de obras de arte,
que os meus amigos olhavam com assombro, não chegaram para
romper-me o turbilhão interior. O camareiro que nos conduzia
fez-nos parar diante da alta porta da câmara papal. Ali

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aguardámos até que dentro se ouviu uma campainha e as portadas
se abriram. Sua Santidade estava sentado e tinha à sua
esquerda o arcebispo de Espálato e à direita o cardeal
camerlengo. Entrámos de cabeça descoberta, quando o camareiro
me deu passagem e a meus companheiros. Com um joelho em terra,
aguardámos a bênção do papa. Então, a um sinal do camerlengo,
avancei até ao tapete de veludo em que Sua Santidade tinha os
pés. Ajoelhei, o camerlengo levantou a fímbria da batina do
papa, a quem eu beijei o pé direito calçado de chapim vermelho
com uma cruz branca. Levantei-me e então o arcebispo disse:
- Sua Santidade tem a bondade de te ouvir.
O papa, no ar cansado, tinha aquele meio sorriso sonso - Deus
me perdoe - de quem cumpre a rotina. Falei procurando ser
sucinto, contei-lhe de mim, aduzi a autoridade dos meus amigos
ali presentes, que anuíam com a cabeça.

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O semblante do pontífice foi-se alterando ao passo que eu
avançava no meu relato e, de meramente curioso, demudou em
estupefacto. Quando terminei, disse:
- Meu filho. É deveras assombroso o que referes, mas em
ocorrência de tanta gravidade haveis de concordar que a vossa
palavra sozinha e a de vossos amigos sozinhos não bastam a
prevenir a necessária prudência...
- Poderei apresentar provas concretas?
Olhou interdito para o camerlengo, para o arcebispo, que não
sabiam que dizer ou fazer em tão inesperada emergência, e com
um gesto da direita convidou-me a continuar.
- Saberá Vossa Santidade que, depois de eu ter ascendido ao
trono de Portugal, enviei a Roma, ao papa Pio quinto, um
embaixador especial, o meu legado Dom Álvaro de Castro, a
prestar-lhe obediência. Esse mesmo pontífice, como é uso,
mandou-me pelo embaixador Dom Diogo de Meneses o estoque e o
chapéu bentos...
Quase imperceptível sinal fez o papa ao cardeal camerlengo,
que, compreendendo a mensagem, se dirigiu a uma porta interior
a dar uma ordem. Incitou-me em seguida Sua Santidade a que me
recordasse eu de mais factos concretos das relações do rei de
Portugal com a Santa Sé. Sem qualquer hesitação, precisei:
- A seis de Outubro de mil e quinhentos e sessenta e nove, Pio
quinto
concedeu-me o breve do jubileu... - parei a vasculhar, a
escolher na memória e prossegui: - Lembro-me de que o núncio
apostólico, Frei Leonardo de Marini, arcebispo Lanciano, foi a
Portugal de mando de Gregório treze pedir-me apoio para a liga
que o papa pretendia organizar contra o Turco...
A porta interior entreabriu-se e o camerlengo acorreu a tomar
um maço de documentos que alguém lhe trazia. O papa e todos os
presentes olharam expectantes. Menos eu. Não morava em mim a
dúvida. O camerlengo aproximou-se com um ar radiante de
espanto:
- Bate tudo certo, Santidade, com o que este senhor... com o
que Sua Alteza disse! - e mostrava as provas documentais ao
papa, que, durante algum tempo as olhou em silêncio, como a
pensar, sem as tomar das mãos do prelado. Enfim disse:

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- Estas provas terão de ser examinadas pela Cúria.
Providenciai nesse sentido, cardeal. Meu filho, como muito bem
deves calcular, podem advir perturbações internacionais de tão
inesperada circunstância. O teu caso, porém, não será
esquecido. O Senhor te acompanhe e à tua comitiva - e,
abençoando-nos, deu a audiência por terminada.
O camerlengo acompanhou-nos à porta.
Com evidente alegria e entusiasmo se congratulavam comigo, a
caminho do albergue, os companheiros pelo bem-sucedido da
empresa.
- Sinto-me a alma a ressuscitar, amigos - desabafei. - Estava
morto e ardia nas profundezas do Inferno. Agora
refrigera-se-me o coração.
- Conquanto - rosnou dentro de si Nuno da Costa - não morras
depois de teres ressuscitado...
Na estalagem, preparavam-me as malas para o regresso a Veneza,
vem um criado dizer-me que se encontrava em baixo um senhor
que me desejava falar.
- Frei Crisóstomo - pedi -, fazei-me essa mercê. Ide ver quem
é.
Desceu o frade e, daí a pouco, regressava:

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- Bofé! - disse muito pálido. - Quando o olhei, fiquei
confundido. Não vos havia eu deixado aqui, quando desci?... E
não é que vos vou encontrar lá em baixo? Tereis o dom da
ubiquidade? O homem, vestido à calabresa, estava de costas. Ao
sentir-me, voltou-se e eu... dei de caras convosco! Tal e
qual. Convosco. A mesma estatura, o mesmo semblante, a mesma
barba e cabelo, embora mais escuros... Só quando falou me dei
conta de que não éreis vós... Tendes um irmão gémeo?...
- Quem é então e que pretende?
- Um calabrês. Pede para falar a Sua Alteza o rei de Portugal.
- Como sabe ele...?
-... que vos fora apresentado por um tal Fra Raimundo, de
Messina, quando o visitastes na Sicília... que já uma vez vos
fez recado, indo com cartas vossas a Portugal...
- Túlio! - exclamei.
- Sim. Marco Túlio Catizone.
- Pede-lhe que suba. É amigo que muito importa guardar. Túlio
subiu. Fez-me uma vénia rasgada, jovial:
- Meu Senhor.
- Túlio! Deixastes crescer a barba e talhaste-la da mesma
feição...
Não fosse o vestuário, a voz, o parco conhecimento da língua
portuguesa, dir-se-ia ser meu sósia.
Sentámo-nos a um canto a conversar: deu-me conta da missão de
que eu o havia incumbido, das dificuldades em encontrar os
senhores a quem eram endereçadas as cartas, os perigos
corridos, Lisboa e o reino enxameados de espiões castelhanos,
as forcas sempre a baloiçarem portugueses resistentes à
ocupação estrangeira...
Daí a pouco já estavam os dois a falar de assuntos que só eles
conheciam.
- Estava em cuidados com a vossa demora. A falta de notícias

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vossas... a vossa mulher em cuidados... escreveu-me a saber de
vós...
- Missão difícil, como vedes. Eu tinha avisado minha mulher e
minha filha dos perigos que ia correr...
- Escrevi-lhe a sossegá-la... e a Frei Raimundo que procurasse
novas de vós... Já a fostes ver?
- Já. Não recebeu carta vossa. - Não?
-... e Frei Raimundo também não... Ela estava até magoada
convosco, que não lhe respondíeis...
- Ter-se-ão perdido as cartas? Que se terá passado?
Essa mesma tarde, depois do jantar, partimos para Veneza.
Túlio
acompanhou-me, como meu criado e pajem. Montado num cavalo
baio - que toda a companhia viajava em montadas dignas e
alguns dos companheiros iam armados, para prevenir assaltos de
encruzilhadas, desfiladeiros e florestas -, já me dava eu
ares, como antigamente. Porque será sina minha cair sempre no
sonho, que já tanto mal atrás havia causado?... Apartava-me da
crueza da vida com a mesma ingenuidade dos anos imaturos? Não
me servira de nada a experiência?... A loucura voltava?... E
no entanto, ali, à minha volta, rondava e tomava corpo pior
desventura ainda que as anteriores...
- Que livro estais a ler, meu Senhor?
Ergui os olhos da leitura. Era Nuno da Costa, que, sorridente,
ali estava de pé junto da minha estante, iluminado pelo
colorido coado dos losangos do vitral. Havia entrado com Frei
Crisóstomo, com Pantaleão Pessoa e António Pimentel.

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À porta assomava também a figura de Marco Túlio. Nas longas
horas deste esperar por que se me resolva o destino, gosto de
me isolar no silêncio de um livro. Não, não. Não mais leituras
piedosas, vidas de heróis e de santos, especulações
teológicas, arquimanhas visionárias de falsos profetas...
Coisas concretas, práticas, do que vai sendo o fado das
nações, dos impérios, dos principados... Consegui dos meus
companheiros um exemplar do De regis institutione do meu sábio
bispo Jerónimo Osório e agora... - Il Principe - mostro-lhe a
capa.
- Ah! Nicolau Bernardo de Maquiavel! Uma espada de dois gumes.
- Vejo que o conheceis.
- Nenhum homem que se preze de querer entender, nestes
difíceis tempos, o que se passa no mundo deve ignorar esta
obra. O rei e o cortesão, o clérigo, o humanista...
-... e também o conspirador, não esqueçais - atalhei. - Por
isso, Alteza, e por muitas outras razões, afirmei que este
livro é espada de dois gumes.
Levantei-me do assento a deslassar os membros e abri a porta
envidraçada que dava para um pequeno jardim. No Grande Canal
passavam gôndolas junto dos Grimani, metiam algumas pelo
estreito rio di San Luca. Saí ao pátio. Veio-me na cola Nuno
da Costa. Logo me rodeava a multidão de pombos a que eu
gostava de vir dar migalhas e sementes.
- Já vos conhecem, Senhor.
Pousavam-me nos ombros, no coruto da cabeça, esvoaçavam a

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debicar-me nas palmas das mãos...
- Amigos assim - reatava eu a conversa -, podem ser
interesseiros, move-os sem dúvida a pensão de comer, mas não
como alguns de que fala esse livro...
- Quereis referir...

- Procura-se o vulto do príncipe e logo se topa, nas pregas da
noite, no esconderijo dos segredos, com o veneno, o punhal do
assassino, o egoísmo do adulador, a hipocrisia do traidor... -
É verdade, Senhor.
-... Lia aquela parte em que se diz que, para se conservar um
reino conquistado, é preciso extinguir a família do
príncipe... E eu fui traidor do meu próprio reino. Com levá-lo
à ruína e a ser ocupado por estranhos, matei-me a mim próprio
e, não prevenindo descendência, extingui a família do
príncipe...
- Não, meu Senhor, não - acudia vivamente Frei Crisóstomo. -
Vós ressuscitastes. Estais aqui. O que esse texto quer dizer,
isso sim, é que todo o cuidado é pouco, aqui e agora, mesmo
entre nós, com o embaixador espanhol Don Inigo de Mendoça.
- Sim - ajudou Pimentel. - É de recear o que fará quando
souber da vossa presença, Senhor, aqui em Veneza.
- E quem de nós lho iria dizer? - perguntava Nuno da Costa. -
Daqui não sairá qualquer inconfidência - confirmou com
rispidez Pantaleão Pessoa.
Todavia, de nada valeu a firmeza de Pessoa, que a traição já
se havia instalado entre nós. Uma noite...
Na noite húmida, embrulhado em capa negra, a aba larga do
chapéu derrubada sobre a cara, caminha estugado um vulto,
cosido cauteloso com as paredes das casas. Junto do palácio do
embaixador de Espanha, passa a monumental frontaria, rodeia o
edifício por uma viela e, depois de vigiar a todos os lados,
estaca em frente de uma pequena porta das traseiras, a que
bate três pancadas espaçadas.

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A portinhola abriu-se e ele sumiu-se no interior da casa.
Caminhou por um corredor até um pequeno vestíbulo que dava
para a copa e as escadas de serviço. Um mordomo, acompanhado
de um criado com uma candeia na mão, indicou-lhe o caminho,
depois de lhe ter pegado no chapéu, no capote e nas luvas.
- Por aqui, senhor - disse e, subidas as escadas e passada uma
comprida galeria, abriu uma porta e introduziu a visita no
salão do embaixador.
- Ah! Sois vós, Nuno da Costa - saudou D. Inigo de Mendoça. -
Que novidades me trazeis?
- Estrondosas, senhor embaixador, completamente estrondosas! -
disse o português sentando-se.
E, por mais de uma hora, estiveram conversando a meia voz.
Acompanhado do seu secretário, o embaixador de Espanha, apesar
da idade avançada, atravessou rapidamente a piazzetta e
dirigiu-se ao portal do palácio do Doge. Entrou, passou o arco
Foscari sem olhar para as estátuas de Adão e Eva, cópias de
Rizzo, galgou a grande escadaria, entre o Marte e o Neptuno de
Sansovino, e subiu ao salão do Conselho, em que foi recebido

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pelo doge,
- Já sabeis decerto, senhor - disse, após as saudações -, que
temos em Espanha novo rei?
- Quê! O rei Filipe morreu?
-... e agora subiu ao trono seu filho Filipe terceiro.
- Deus tenha em sua glória o pai e cubra de bênçãos o filho.
-Amém. Mas, além desta notícia, que creio ter-vos trazido em
primeira mão, venho comunicar-vos assunto que se me afigura
grave e solicitar a vossa pronta intervenção.
- Credo, D. Inigo! De que se trata?
- Apareceu em Veneza, vai para seis meses, um desconhecido que
pretende ser o rei Sebastião de Portugal.
- Pode lá ser! O rei morreu naquela batalha... - Exactamente.
- E vós dais importância a mais um impostor? Não fostes vós
que me contastes terem aparecido já uns três outros e...
e, uma vez desmascarados... enforcados, eu sei. E então?
- Então... o caso não teria importância, se não tivesse
assumido proporções alarmantes.
- Como assim?
- Um grupo de portugueses aqui residentes reconheceu-o.
Falaram com o núncio apostólico, foram ao papa...
e o papa...? reconheceu-o... - Que me dizeis?
-... e parece que vai emitir uma bula... - Estais bem
informado.
-A ambição, senhor, e o dinheiro... sabeis como é... sempre
corromperam os fracos.
- Um traidor entre eles?
- Traidor! Que nome tão feio! Um servidor de Sua Majestade o
rei Filipe.
O doge cofiou a barba com ar preocupado: - Se ele é mesmo o
rei de Portugal...
- Não pode ser!
-... o rei Filipe de Espanha terá de...
- Senhor! - abespinhou-se o embaixador. - Quereis arranjar
conflito entre Veneza e Madrid?

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- Não vejo em que possa a verdade provocar conflito entre dois
estados soberanos e católicos. Pareceu-me ver nas vossas
palavras um tom de ameaça...
- Não, mas...
- Mas? - levantou-se o doge, como a dar por finda a audiência.
- O que Espanha deseja é que a Senhoria de Veneza mande
prender esse indivíduo que se diz rei de Portugal e...
- Senhor embaixador, considerarei o assunto com o meu Conselho
dos Dez e verei o que há que fazer.
Marco Túlio correu esbaforido para o cais e embarcou numa
gôndola:
- Depressa, depressa, San Beneto! A gôndola afasta-se a toda a
pressa.
Em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori, Pantaleão Pessoa,
Frei Crisóstomo, António de Brito Pimentel e Nuno da Costa
conversavam com Frei Estêvão de Sampaio recém-chegado de
Paris.
Era Frei Estêvão um dominicano de grande prestígio. As obras

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que eu escrevi? encolhia os ombros aos que o elogiavam pelas
inúmeras vidas de santos e varões ilustres da sua ordem, que
publicara em Paris e incorporara no seu Thesaurus. Também se
não envaidecia do talento e saber que todos lhe reconheciam,
do renome de grande latinista...
- Os meus pergaminhos são outros, o ter tido o meu berço em
Guimarães, ser afeiçoado à casa de Vimioso e, por ter sido
partidário do senhor Dom António, terem-me encarcerado os
Castelhanos.
- E a vossa fuga, Frei Estêvão?
- Sabeis o que é descer uma muralha altíssima pendurado de um
lençol que a todo o momento ameaça romper-se e precipitar um
desgraçado no abismo?
E recordava o exílio em França, em Tolosa, a universidade, o
doutoramento em teologia, a amizade com Carlos IX e Henrique
III, reis de França, e com o seu capelão, o bispo de Angers, a
quem dedicara o Thesaurus... Mas agora...
- Mal soube da novidade, meti-me a caminho. Dom João de
Castro, neto do grande vice-rei da Índia, Dom Jerónimo de
Portugal e o padre José Teixeira pediram-me muito empenhados
lhes escrevesse logo que veja esse rei ressuscitado. Onde está
ele?
- De visita ao arcebispo de Espálato, que muito o tem ajudado
junto do papa. Chegará em breve.
- Estou ansioso, ficai sabendo, por beijar a mão ao meu rei.
No estreito rio a gôndola atraca à soleira de uma porta. Marco
Túlio salta da embarcação para o degrau de pedra e entra
estugado na casa e na sala onde estão os portugueses:
- Senhores, el-rei foi preso. - Que dizeis?
- Estávamos em casa do arcebispo quando chegaram os guardas,
de mando do Conselho dos Dez, e o levaram preso. - Meu Deus! -
disse Nuno da Costa. - E agora?
- Parece que a Senhoria procedeu assim a instigação do
embaixador de Espanha.
- E como poderia o embaixador de Espanha saber? - perguntou
Frei Estêvão.
- Nem quero pensar - disse Frei Crisóstomo com ar grave - que
entre nós haja um traidor.
- Pode lá ser! - exclamou Pimentel levando a mão ao punhal. -
Teria de se haver comigo.

92 - 93


- E comigo - disse Pessoa.
- Tens razão, Pimentel - secundou Nuno da Costa. - Não pode
ser. Talvez, antes, tenha havido inconfidência saída de casa
do arcebispo... - e lançava aos companheiros um olhar sagaz.
- Vou à Senhoria - disse Frei Estêvão. - Hei-de falar com
alguém do Conselho. Quero saber o que se passa.
No palácio o juiz Marco Quirini recebeu-o com solicitude,
disse que o processo estava confiado a mais três juízes, além
dele, e que seguia com todas as cautelas dada a gravidade e o
melindre da situação.
- Queremos honestamente esclarecer a identidade do preso e
apurar a verdade. Temos-lhe feito constantes
interrogatórios...

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e ele?...
afirma e confirma o que vós bem sabeis.
- Não me conformo - disse Frei Estêvão. - Há aqui qualquer
coisa que me não parece curial.
- Quê?
-Afinal, porque o prendestes? De que o acusais? Ele é réu de
que crime?
Visivelmente embaraçado, Marco Quirini respondeu:
- Ele foi intimado pela Senhoria a, no prazo de oito dias,
sair dos territórios da República. Não obedeceu.
- E que crime cometeu ele para ser expulso da República?...
Não respondeis. Respondo eu: o crime de afrontar a Espanha.
- Examinamos o caso com isenção...
-... sob a pressão do embaixador castelhano.
- Não nos deixamos conduzir por qualquer influência. - Se
chegardes à conclusão de que ele é um embusteiro...
-... será condenado.
- Se finalmente acreditardes que ele é o rei de Portugal...
-... teremos de enfrentar a inimizade da Espanha.
- Da Espanha? - exclamou Frei Estêvão levantando-se. - E a
França? E a Flandres? E a Inglaterra?...
Marco Quirini acompanhou-o à porta: - Poderei dar-vos um
conselho?
- Agradeço-vo-lo.
- Ide a Portugal. Procurai obter dados, sinais, indícios,
traços concretos da identidade de el-rei Sebastião...
- Estai certo de que assim farei. Não desistirei enquanto não
libertardes o meu rei.

94 - 95


V - A ponte dos Suspiros


Gaivotas e pombas são as minhas visitas, às vezes um ou
outro pardal pousa a medo no beiral do meu janelo de grades.
Dou-lhes migalhas do meu pão. Habituam-se ao ritual e acabam
por também eles serem o meu relógio dos dias intermináveis. A
única vantagem deste meu cárcere é não se situar nos caboucos
do palácio, mas alcandorar-se cá em cima no balouçar dos
nevoeiros, sobre a ponte dos Suspiros. Sinto a maresia subir
até mim, mas não vejo o canal nem a laguna. Esta experiência
me faltava, ser encarcerado e ter a fragilidade ameaçada com a
prepotência de interrogatórios, a iminência de torturas e
talvez até de morte ignominiosa. Que fazer? Luto por que tempo
e lugar se não alonguem de mim e me não deixem abandonado à
impotência da angústia, suspenso sem amarras que me amparem a
queda no aniquilamento. Acuda-me este pombo que agora aí
pousou e se está meneando em vénias e arrulhos. Parece
saudar-me. Estendo-lhe a palma da mão cheia de migalhas, como
costumava em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori, com os
pombos a esvoaçarem-me em redor, a pousarem-me nos ombros, nas
mãos. Este não me estranhou. Será um deles e conhecer-me-á?


97

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Anda cá, meu lindo! Olhinho vivo, matizado. Sou eu que te
conheço. Esta peitaça de senhor dos ares, este azulado
metálico de penas, estas listras cinzentas. Espera. Talvez tu
me possas salvar, levar recado... Talvez pudesses, mas onde
tenho eu papel, tinta, pena? Eu sei, eu sei. De bom grado me
emprestavas uma das tuas penas... mas o resto? Nem qualquer
sinal de mim trago no corpo a não ser o próprio corpo com as
cicatrizes da vida e a alma com as cicatrizes da morte... nem
anel, nem medalha, nem chancela... o rei nu... Afago-o,
beijo-o: "Vai, amigo, vai à tua vida" e lanço-o ao ar pelo
janelo e fico a vê-lo elevar-se com três vigorosas batedelas
de asas, fazer um largo giro no céu e tomar rumo de San Beneto
ali para trás na outra curva do canal.
De novo sozinho, recosto-me a tentar adormecer, mas a porta
abre-se e aparece o carcereiro com dois meirinhos. Levanto-me
e sigo-os. Conheço o que me aguarda. Transposta a saída,
está-se numa pequena quadra que dá para a sala dita das
torturas, estreita e alta, escura, ao meio um pequeno estrado
de três degraus a que chega, suspensa do tecto, uma corda de
que costumam pendurar os pacientes pelos pulsos para lhes
arrancar a confissão. De um varandim de madeira assistem os
juízes. Não é aqui que paramos, pois me têm poupado, por
enquanto, a essa infâmia. Mas não posso impedir que me acuda o
pensamento acusador de que também eu presidi com regozijo a
morticínios de autos-de-fé e chacinas de judeus e exortei reis
e príncipes a que fizessem o mesmo em terras de protestantes.
Morsega-me a consciência ou não será puro egoísmo, instintivo
medo que arrepanha a pele?... Na sala seguinte, a do conselho,
esperam-me os juízes para mais um interrogatório. Preside
Marco Quirini, que sem rodeios me diz:
- Mais uma vez te exortamos a que nos digas o teu verdadeiro
nome.
- Sebastião.
- Sebastião quê?
- Rei não tem apelidos. Sebastião primeiro de Portugal. Os
juízes olhavam-se, irritado um, desolado outro, o presidente
calmo e paciente.
- Sabes que há quem pense que és louco, que entraste num jogo
perigoso...
- Nem sou louco nem é jogo.
-... que te pode levar à morte...
- Se me matardes, cometereis um grande erro.
- Nós não te queremos matar... mas sim que nos proves a
verdade do que dizes. O teu caso pode ter implicações
imponderáveis nas relações entre a Senhoria e Espanha...
- Esqueceis-vos de que era amistoso o trato entre o reino de
Portugal e a vossa República...
- Não nos esquecemos, mas...
-... Recordo-me de que pessoalmente escrevi à Senhoria em
assentimento ao pedido por ela feito, através do embaixador
António Tiepolo, para que Portugal exortasse o rei da Pérsia a
auxiliar a liga 'dos Cristãos contra o Turco...
- Isso é verdade. Como o sabes?
- Não fui eu que ditei a carta e a assinei para o rei da
Pérsia? Consultai os vossos arquivos... Janeiro de quinhentos

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e setenta e dois, se a memória me não atraiçoa...
Mostravam-se perturbados. Apresentava-lhes factos concretos
das relações dos dois estados, falava-lhes de minúcias do
crédito de Portugal nos bancos de Génova e Veneza, do comércio
das especiarias que da índia vinha a Veneza, a Lisboa, a
Antuérpia, à Hansa de Danzigue... Compreendia ser o receio que
mostravam em todo este negócio desagradar à poderosa Espanha
que dominava mais de metade da Itália...

98 - 99


-... enquanto para vós Portugal deixou de existir... - E não
deixou?
-...e não passa de possessão da Espanha... - E não passa?
-...mesmo quando o seu legítimo rei, depois de atravessar o
limbo, se apresenta a reclamar os seus direitos... Mandavam-me
embora para a minha cela, malavindos consigo próprios...
Dias e noites, noites e dias... Montanhas nevadas,
desfiladeiros despenhados, vales e planícies espraiados,
campos verdes, caminhos áridos, sol ardente... A que trabalhos
te deitas, Frei Estêvão de Sampaio... à chuva e ao vento, às
tempestades desabridas, às neves e ao desvairo das águas
transbordadas... os meses que passam, invernada, estiagem,
outonada, primavera... os roubadores dos caminhos os pequenos
e os grandes, que o maior de todos é aquele que rouba impérios
e reinos e semeia a todo o lado destruição e morte, esculcas e
meirinhos, planta forcas no alto dos outeiros e assenta
garrotes nos calabouços das torturas... abril, maio, junho...
ir e voltar... A que trabalhos te dás, Estêvão de Sampaio, só
porque acreditas que o homem de Veneza é o teu rei e ainda
chega a tempo de salvar o reino espoliado. O embaixador de
França comunicou ao seu soberano Henrique quarto a detenção do
meu senhor. Ainda tem dúvidas, também ele, quanto à identidade
de el-rei. Não as tem a Senhoria? Não as tem a maior parte dos
meus companheiros, que, nascidos um pouco antes ou um pouco
depois da batalha, não tiveram ocasião de o conhecer? Não eu,
que conheci el-rei na corte. Se me faço eco das dúvidas dos
outros, é que mo não deixaram ver em São Marcos. Não é por
isso mesmo que viajo a Portugal, a procurar os verdadeiros
sinais identificadores de Sua Alteza? A pé, com o bordão do
caminheiro, montado num asno burro, demudado o hábito de frade
em trapos de mendigo, no porão enjoado de uma nau, disfarçado
de almocreve no comboio de uma cáfila, de comerciante na
caravana de traficantes, candongueiros e contrabandistas...
Mal cheguei, tornado já a meu natural estado de clérigo
dominicano, fui procurar o cónego Rodrigues da Costa de quem
sempre me conservei particular amigo. Encontrei-o no fim de um
lausperene, na igreja da Boa Hora.
- Frei Estê...
Chiu! tapei-lhe a boca. Não pronunciasse o meu nome! Esquecido
de que eu já havia sido preso por...?
A que vinha Minha Reverência e seu grande amigo? perguntava.
Deu-me pousada em sua casa, na rua da Calcetaria, e durante a
ceia e pela noite dentro falámos horas descuidadas. Queria eu
ouvir pessoas que tivessem tido trato quase íntimo com el-rei
e lhe conhecessem os sinais do corpo? Olhasse. Ali perto, na

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rua Nova dos Ferros, morava ainda a sogra de Rui Teles de
Meneses, que havia sido alcaide-mor de Moura. A irmã dela fora
dama da rainha... E porque não falava com o antigo fronteiro
da torre de Belém, Sebastião Neto, que fora barbeiro de
el-rei? Apesar dos seus cinquenta bem puxados, ainda tinha
loja no beco do Ourinol, ali a São Nicolau. Barbeiros eram
gente curiosa, deviam saber coisas, conhecer o paradeiro do
alfaiate, do camareiro, do sapateiro... ou as mulheres deles,
mais indagadeiras de solheiro...
Na manhã seguinte, encetava eu a minha ronda de inquérito. Na
rua Nova, na moradia indicada pelo meu amigo, entrei pelas
arcadas a uma porta ao lado de um oculista e subi, por escadas
estreitas, escuras e malcheirosas, ao quinto piso.

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Bati. Veio abrir uma mulherzinha magra, chupada, o cabelo
grisalho desalinhado, toda ela inculcando privações.
- Que deseja Vossa Reverência? - perguntou com delicadeza e
cortesia inesperada.
- É aqui que mora uma nobre dama, mãe do senhor alcaide-mor de
Moura, Dom Rui Teles de Meneses?
Um sorriso esclareceu-lhe da nobreza esquecida o semblante:
- Sou eu, meu senhor.
- Venho da parte de Sua Reverência o cónego Lourenço Rodrigues
da Costa...
- Conheço muito bem. Costumo assistir à missa dele na igreja
da Boa Hora. E que recado traz Vossa Reverência?
- Permita que me apresente, minha senhora. Frei Estêvão de
Sampaio. Acabo de chegar de Veneza e encontro-me aposentado em
casa do meu amigo cónego Lourenço. Pretendo reunir dados sobre
o nosso malogrado rei Dom Sebastião...
- Deus o tenha em glória!
-... terá... e, num rol de pessoas que o conheceram de perto,
sugerido por Sua Reverência, figura Vossa Senhoria. - Ah! É
curioso! Já lá vai um ror de anos... Mas queira entrar, Frei
Estêvão.
Entrei e, sentados a uma mesinha coberta com uma renda
desbotada e suja, com uma jarra de flores contrastantemente
viçosas, começámos a conversar.
- O que eu sei, meu senhor, pouca coisa é. Devo-o ao que me
contava minha irmã, que foi dama de Sua Alteza a rainha Dona
Catarina. Mas a maior parte desbotou-se-me da memória...
- Eu também não pretendo saber muito, mas particularmente
indagar de quaisquer marcas especiais que el-rei tivesse em
seu corpo.
- Sim, sim... deixe ver... lembro-me... não sei se no esquerdo
se no direito... creio que era no pé direito, no dedo
pequeno... uma verruga tão grande que parecia unha de um sexto
dedo...
- E outros sinais?
- Não sei, não sei, já não sei nada - repetia desolada. - A
lembrança apagada. Que escuridão!... - e caiu de súbito no
encerro interior que, após uns minutos de silêncio à espera
que ela continuasse, vendo-a ensimesmada, levantei-me e saí
sem que o sentisse.

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Não me foi difícil encontrar a loja de Sebastião Neto no beco
do Ourinol. Mal entrei...
- Muitas bo's tardes a Vossa Reverência! - e estalava no ar a
toalha a sacudi-la e estendê-la, enquanto me sentava... -
Aparar a barba? Rapar a coroa?
- Não, não, a coroa não! - respondi vivamente.
- Não? Parece um matagal. Nem se distingue que Vossa
Reverência... se não fosse o hábito...
Se tenho que me disfarçar nas jornadas do regresso - pensei -,
convém-me eliminar a tonsura. Que me importa que o barbeiro
resmungue, que bem lhe entendo o esgar contra os frades.
- Só a barba, por favor, senhor Sebastião Neto. Um clarão de
sol o semblante do homem:
- Pois Vossa Reverência conhece-me?
- E quem não há-de recordar-se de um tão excelente servidor de
Sua Alteza, el-rei Dom Sebastião?
-Ah! meu senhor...

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- Frei Estêvão de Sampaio.
- ... Frei Estêvão! Não me faça chorar. Meu infeliz rei! - É
verdade, Sebastião Neto, é verdade. Infeliz... - clique clique
clique as tesouras do mestre a aparar-me a barba. - Mas eu,
para o não chorar, ando antes à procura daqueles que de mais
perto com ele viveram...
- Por mor de quê, Frei Estêvão?
- Digamos que por mor de recolher os particulares sinais de
seu corpo, de modo a poder reconstituir-lhe o verdadeiro
vulto, como se eu fosse pintor e o quisesse debuxar na tela da
minha alma.
- E veio Vossa Reverência bater à minha porta.
- Meu bom Sebastião Neto, quem melhor do que um oficial como
vós para me dar a conhecer minúcias de que mais ninguém
suspeita? Como o ministro de Deus conhece as intimidades da
alma, o barbeiro, tal como o físico, conhece-lhe os mais
íntimos sinais do corpo...
- E vós, padre, divulgais segredos de confissão? - E quem vos
pede que vos confesseis?
- Mas...
- Ora, Sebastião Neto. Quereis contar? - Em que confusão me
colocais!
- Conheceis sinais particulares do corpo de el-rei?
Hesitava o homem. Por fim disse.
- Nem todos, nem todos, meu padre - cliqueava a tesoura
elogiada. - Nem todos, mas...
- Vejo que vos acodem à memória - atiçava eu as brasas. -
Verdade, Frei Estêvão. Lembro-me de que... ora deixai ver...
aí um ano ou dois antes que el-rei partisse para África...
mandou-me chamar. Andava de um lado para o outro, agarrado aos
queixos, cheio de dores, que os reis também têm dores, sabeis?
Arreiguei-lhe um dente da queixada de baixo, do lado
direito... Os palavrões que me atirou! Quereis que vos diga? -
Dizei.
- Olhai que só comigo rebentava assim como um pelouro, ali
sozinhos os dois no seu guarda-roupa, que de resto Sua

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Alteza... uma contenção, uma cortesia!... Mas ali, que demasia
e despejo! "Ah! Fi de puta! Porra, cabrão ladravaz, que te
mando enforcar!" E eu a rir, a empunhar o alicate, a filar-lhe
o molar, a torcê-lo, a puxá-lo: "Já vai passar, Alteza. Tende
calma!... " Depois mostrava-lhe a tachola na ponta da pinça:
"Fi de puta e ladravaz, Alteza, era este. Mandai-o enforcar a
ele" e dava-lhe a gargarejar um copo de água ardente para lhe
adormentar a dor... Que sofrido era! Levantava-se, tentando
sorrir: "Desculpai, mestre. Mas crede que não devem doer tanto
cutiladas de mouros..."
- E o vão do dente lá lhe ficou na boca... - Claro. Aquele não
nasce mais.
- Conhecíeis-lhe outras marcas?
- Conheço-lhe o corpo como ao meu próprio. Se alguém alguma
vez o viu nu, fui eu e o seu camareiro Lopo Soares, que a mais
ninguém o consentia. A mim, à puridade, pedia-me que lhe desse
massagens quando lhe vinham as cólicas...
- Estou com curiosidade.
- Era um homem de muitas forças. Desde pequeno, no exercício
das armas, da cavalaria, da montaria, desenvolvera de forma
invulgar todo o lado direito do corpo, a mão direita mais
possante e esse braço mais comprido... Quem vos poderá falar
das medidas é o seu alfaiate...
- E onde...?
- Mora aqui perto. Se quiserdes, levo-vos lá.
- Quero, sim. Mas primeiro acabai.

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Sebastião Neto suspendeu os ameaçadores molinetes de tesoura
em frente da minha cara e assumiu ar e voz confidenciais:
- Alguns eram tão secretos, tão íntimos que nem sei...
- Contai, contai...
- ... tinha a picha... ih, ih, ih... tinha a picha torta que
nem um arrocho...
- Ah!
- ... e sofria de fluxo de semente...
- Demais disso...
- ... marcas por todo o corpo: num ombro, um sinal do tamanho
de um vintém; na espalda direita, próximo da nuca, outro,
negro, grande como uma unha; sardas ou lentilhas, pardas e
ruças, no rosto, nas mãos... mal se viam, quem não soubesse
não dava por elas... dedos e unhas alongados e aquele beiço,
senhor, aquela beiça de baixo derribada da casa de Áustria, do
avô Carlos, da avó Catarina, da mãe... Que mais vos poderei eu
dizer?... Mas olhai. Nem a propósito. Aí vem entrando o
alfaiate de el-rei. Eh, mestre Leonardo! Sejais bem aparecido!
- Ora muitas boas tardes. Então que há, mestre Sebastião?
- Contai aqui a Sua Reverência...
- Frei Estêvão de Sampaio, para o servir - saudei.
- Deus salve Vossa Reverência. Então que me diz, mestre?
- Estávamos aqui a falar do nosso infeliz rei...
- Oh! Não me lembreis isso!
- Sua Reverência está empenhado em conhecer algumas
particularidades do corpo de el-rei...
- Mestre Sebastião Neto - atalhei -já me referiu algumas e...

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e lembrei-me de que vós, em vosso ofício, muita vez lhe
tirastes as medidas...
- Conheço-as como ninguém, Reverência, como ninguém...
E mestre Leonardo, puxando-se-lhe a língua, era vê-lo
tagarelar... Já viram alfaiate talhar roupa mais torta? Se não
fosse rei, ele lhas cantaria! O corpo tão curto das espaldas à
cintura que o gibão dele não servia a outra pessoa, ainda que
de semelhante estatura, mas da cintura aos joelhos - não
queria lá ver? - muito longo, calções compridos, largos... e,
para cúmulo, o braço direito mais comprido que o esquerdo, a
perna direita...
- Eu não dizia? - clique clique clique...
- ... também... de maneiras que coxeava sem que se notasse,
porque disfarçava... e, ainda por cima, ambas curvas como de
quem anda habitualmente a cavalo... Tortura de alfaiate!
Obrigado a fazer vestuário tão desazado! Quantas vezes tive de
calar as fungadelas das minhas costureiras!...
- Preciosas são as vossas informações, mestre Leonardo, e
também as de mestre Sebastião - disse eu levantando-me para
sair, retirava-me o barbeiro a toalha e
sacudia-me da batina algum cabelo caído.
- Em que mais poderei servir Vossa Reverência? - perguntava.
- Sabereis porventura onde mora Lopo Soares, que foi camareiro
de el-rei?
Sebastião Neto ia a responder, mas o alfaiate, que presumia de
gracioso, adiantou-se:
- Eu sei. Mora em Alcácer.
- Em Alcácer do Sal?
- Em Alcácer Quibir. Foi com el-rei e com el-rei morreu.
Apodreceu.

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- Morreu, sim - confirmou o barbeiro contristado -, ou por lá
ficou cativo que nunca mais ninguém o viu, nem a viúva, que
por muito tempo o chorou e se conserva inconsolável ao cabo
dos anos...
- E eu poderei falar com a viúva?
- Não precisa Vossa Reverência de ir muito longe. Aí adiante,
na rua dos Carapuceiros, basta perguntar por Dona Gabriela,
toda a gente lhe diz.
- Obrigado. E já agora... - Dizei.
- E Dom Manuel de Portugal?
- Conheço muito bem - respondeu o alfaiate. - Filho do senhor
Dom Francisco, primeiro conde de Vimioso, poeta...
- Há vinte anos - ajudava o barbeiro - tomou partido por Dom
António...
- Por isso o rei Filipe não o incluiu no rol dos
amnistiados...
- Exilado? - perguntei.
- Não. Dada a qualidade de sua pessoa, permitiram-lhe que
vivesse em Portugal.
- Onde?
- Ainda há dias estive nos paços de Sua Senhoria - disse o
alfaiate - a tirar-lhe as medidas para umas vestes novas.
Aquilo é que são uns oitenta anos joviais! O segundo

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casamento, com uma formosa senhora muito mais nova...
- Dona Maria de Mendoça - disse o barbeiro -, dos Cortes
Reais...
-... remoçou-o, oh se remoçou!... Tem por ela uma tão grande
paixão! Mandou pintar um retábulo da Natividade, contou-me
ele, para a igreja de Machede. Sabeis cujo é o rosto de Nossa
Senhora? Isso mesmo. Da linda Dona Maria, morgada de Val de
Palma.
- Então sabeis onde é o seu paço.
- Perto das portas de Santo Antão. Mas ele não está cá. - Mas
vós dissestes...
- Veio cá para me encomendar a roupa e falar comigo... saber
novidades do que por aí vai... Digamos que eu sou o seu... mas
cala-te boca, já estou a falar de mais...
- Então onde vive?
- Partiu com a sua senhora para a quinta de Val de Palma. -
Onde fica?
- A algumas léguas de Évora, na margem do Degebe.
- Irei lá, que também desejo procurar em Évora um tal Simão
Gomes, antigo sapateiro de el-rei.
- O Senhor vos acompanhe.
Não me foi difícil encontrar Dona Gabriela na rua dos
Carapuceiros. Vivia numa casinha térrea muito asseada. Quando
lhe bati à porta, vinha ela de chave na mão chegada da igreja.
- Dona Gabriela? - perguntei.
- Sim, sou eu. Vossa Reverência quer falar comigo?
- Já que não posso falar com seu marido que Nosso Senhor tenha
em sua glória...
- Amém - suspirou a viúva, abrindo a porta.
Disse-lhe o que pretendia e daí a pouco ela contava-me do que
ouvira contar ao marido sobre as marcas do corpo de el-rei.
Confirmava-me o que me dissera Sebastião Neto e sobretudo
achei delicada a simplicidade e o respeito com que falava das
intimidades de Sua Alteza como se o soberano fosse um Menino
Jesus:

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- Ai, padre! O coitadinho tinha a pilinha torta! Contou-me o
meu querido Lopo, que lá morreu com el-rei...


Quando no dia seguinte me deitei a caminho de Évora, de vez em
quando dava comigo a rir sozinho por aquelas charnecas e
planícies... Não, não! Não era do fugir das lebres que se
levantavam à minha passagem e disparavam mato fora como
doidas. Era porque, Deus me perdoe, me acudia à ideia a imagem
de Dona Gabriela, cheia de unção, a beijar a pilinha torta de
um São Sebastião que tinha as feições de el-rei...
Em Évora, junto à sé, tal como me havia sido indicado,
encontrei o sapateiro Simão Gomes, a cabeça nevada, arqueado
sobre a banqueta de trabalho a ensebar umas botas e a cantar
quase sem fôlego:


... do leão o seu bramido

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demonstra que vai ferido
desse bom rei encoberto...


Levantou para mim os olhos quando assomei à porta da oficina.
- Continuais então a acreditar, mestre Simão... - disse-lhe
como se o conhecesse desde sempre.
- Bom dia, padre. Sois forasteiro, embora desejeis inculcar o
contrário.
- Como sabeis?
- Dom que tenho. Também sei que vindes de longe...
- Ora, Simão Gomes. Ide enganar outro que nanja a mim. Não
tive foi o cuidado de sacudir o pó dos caminhos.
- Há outro pó que não se sacode, Reverendo, e vós sabeis disso
muito bem. Vê-se no fundo das almas através dos olhos...
- Está bem, está bem. Deus vos abençoe. Guardai o vosso latim.
- Guardai vós o vosso, Frei Ninguém... - Estêvão de Sampaio.
-... Frei Estêvão... Que desejais? Umas sandálias? - Parece
que sim, que preciso de umas.
- Sentai-vos aí. Media-me o pé, disse-lhe: - Sei que fostes
sapateiro de el-rei...
- É verdade. Há quantos agostos foi isso! - Porque dizeis
agostos?
- Contas das minhas sovelas. Resolvi ir ao miolo do assunto:
- Venho de Lisboa, de acinte para vos falar, depois de ter
estado com o barbeiro e o alfaiate de el-rei...
- Conheço.
- Das pessoas que particularmente o conheceram, ando a
inquirir as marcas do corpo dele.
- Para terdes a certeza de que é ele, desta vez? - Como te
passa semelhante ideia pela cabeça? Desatou a dar lustro às
botas e a cantar:


... de terra em terra andará muita gente
lhe há-de morrer...


- E se fosse? - perguntei.
Parou a função e olhou-me muito sério: - É.
- Mestre Simão, confundis-me.
- Frei Estêvão de Sampaio, não me confundis. Pus-me a rir:

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- Desarmais-me com os vossos agostos e sovelas e cantigas
tontas.
- Não são tontas... - e pôs-se de novo a cantar:


Ergue-se a águia imperial
com seus filhos pelo rabo
e com as unhas no cabo
faz o ninho em Portugal...

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- Deus te oiça, mestre.
- Falei de agostos? Pois ficai sabendo que foi naquele agosto
maldito que lhe tirei a medida do pé pela última vez, como o
fiz agora convosco...
- Em agosto? Pois fostes com ele à batalha? Ficastes cativo?
Vistes o que aconteceu a el-rei? Falai, homem. Pode ser muito
importante o que estais a dizer... - e eu levantava-me
assombrado.
- Credo, padre! Parece que vistes o diabo, Não, não fui com
ele à batalha nem sei nada do que lhe aconteceu a não ser que
um dia... poucos dias andados depois da batalha. Aí a essa
porta... assomaram dois andarilhos, mendigos, romeiros ou lá
que eram. Vinham chagados como de guerra. Traziam rotos os
sapatos... Quando tirei a medida ao pé de um deles... Vede lá,
padre, se eu não reconheceria aquele pé... Depois sumiu-se que
nunca mais soube dele... e vindes vós agora perguntar...
porque...,
dizei-me, que vos serve agora inquirir sobre os sinais do
corpo dele? Só vejo uma razão...
Tentando ainda esconder-lhe o meu segredo, disse: - Digamos
que pretendo pintar o retrato de el-rei.
- Ah, ah, ah! Disparate! Que colhestes do cirurgião-barbeiro?
Que lhe falta um molar? Conheço a história. E do alfaiate? Que
tem um braço maior do que o outro? Pretendeis pintar um bobo,
de boca aberta e com a piça torta? E de mim que desejais? Que
vos diga que ele, além do pé pequeno e dos dedos quase iguais,
tinha o peito do pé alto e uma verruga no dedo mindinho do pé
direito? Ides pintá-lo descalço?... Ora, ora, Frei Estêvão! A
maioria das pessoas lida cega, sem suspeitar que é guiada
pelos astros. Eu leio nos astros e nas marcas que eles deixam
nos olhos das pessoas como vós... Quereis ver?
- Dizei.
- Vós vindes de muito mais longe que de Lisboa... de muito,
muito longe... Onde é que ele está agora o meu senhor rei?...
Fiquei calado, hesitante.
- Não quereis falar, vejo. Eu sei que é missão perigosa a que
vos traz. Sois corajoso... Frei Estêvão de Sampaio não
descansa enquanto não vir restaurado o reino de Portugal...


Amistoso o encontro com Dom Manuel de Portugal. Conhecíamo-nos
da infeliz batalha de Alcântara. A quinta era mimosa,
abeberada pelo rio, pingue de semeadura e olival. Fiz-me
anunciar por um caseiro e daí a pouco lá vinham do lagar do
azeite a limpar as mãos a um trapo os seus oitenta anos
saudáveis:
- Estêvão de Sampaio!
- Meu caro Manuel! Que bom abraçar-te de novo!
Com ele não havia guardar segredo. Ele próprio tinha o seu:
fora um dos portugueses a quem Marco Túlio havia entregado
carta de el-rei...
... vai fazer um ano... - dizia.

112 - 113


Mostrei-lhe o rol dos sinais do corpo de el-rei por mim

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coligido. Concordou com eles, que o conhecera bem:
- Acrescentai a isso as cicatrizes que por certo trouxe da
batalha.
- Quem o poderá contar?
- Só quem o viu depois disso. Quem?
- Os companheiros que com ele saíram do campo morreram todos.
Mas sei de quem o viu de muleta, por mor de uma ferida na
perna esquerda, a cabeça pensada de faixas sangrentas...
- Quem?
- O sapateiro Simão Gomes. - Ah, o Simão!
Contei-lhe o caso. Ele disse com ar triste:
- E andou el-rei por aí como pedinte, sofrendo privações...
sem que ninguém soubesse...
- Quis castigar-se a si mesmo.
-... e agora padece prisão em terra estrangeira, acusado de
mistificador...
- O maior perigo virá dos Castelhanos. Se o apanham, enviam-no
para as galés... ou para a forca...
- Queres dizer que, enquanto a Senhoria o tem preso, está
seguro?
- Assim parece. Mas o que nós queremos é levá-lo para França,
onde terá protecção.
Ficámos muito tempo a conversar pela noite dentro, depois da
ceia. Recordámos amigos comuns que já se haviam libertado das
leis da morte, o bom Sá de Miranda, o Luís...
- Morreu na miséria, calcula...
- E tu, continuas a poetar?
- Nem por isso. Ando feito Títiro sub tegmine fagi.
- Estou a ver. Lentus in umbra ensinas aos trigais e às
oliveiras o nome da tua formosa Amarílis.


- Que fazemos agora? - perguntava Pantaleão Pessoa, nervoso,
passeando de um a outro lado da sala.
Mais numeroso o grupo. Haviam chegado a Veneza, trazidos pelo
rumor, que Frei Crisóstomo da Visitação se apressara a fazer
chegar a toda a parte, Frei Lourenço de Portugal, Frei Luís
dos Anjos e outros.
- A Senhoria não nos deixa ver Sua Alteza e Frei Estêvão
demora a chegar...
-... se chegar - agoirou Nuno da Costa. - Viagem perigosa. Se
os Espanhóis sabem do que foi buscar e lhe saltam à estrada...
Os outros ficavam calados, indecisos, os olhos perdidos no
tumulto dos pensamentos.
- Enquanto um vem a caminho e o outro está preso incomunicável
- disse Frei Crisóstomo -, quereis ver como vai o mundo? O
poder tiraniza, a riqueza arrebanha, a ambição lança o isco, a
justiça, contra dever ter os olhos vendados, olha ao cliente,
a virtude amolece, ensonsa-se, a traição atalaia-se, a volúpia
só pensa em si...
- Não dejejuastes bem, Frei Crisóstomo? - perguntou o doutor
Pimentel.
- A que vem a pergunta?
- Deu-vos a fraqueza para preparar sermão.
- Apontei apenas o que vejo à minha volta. Não fiz escólio nem
aduzi a mais leve conclusão. Concluí vós.
- Abstracções.

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- Concretizai vós. Onde digo poder, riqueza, ambição, justiça
e o mais, podeis apor nomes conhecidos de todos nós.

114 - 115


- Mesmo para traição? - perguntou Nuno da Costa.
- As diligências junto da Santa Sé - cortou Pimentel - de
obtermos cartas para levar a Senhoria a libertar Sua Alteza
não deram fruto. Que fazer então? Dizei-no-lo, Frei Lourenço.
- Todos têm medo de Espanha. Até o papa. Se ao menos a
Senhoria nos deixasse verificar a identidade do preso... Sim,
porque nós não temos ainda a certeza. Eu pelo menos quero ver.
Como São Tomé.
- Eu não tenho dúvidas - disse Pessoa. - Acho que devíamos
garantir à Senhoria que é el-rei em pessoa que ela tem em
prisão.
- Não, não - contestou vivamente Frei Lourenço. - Primeiro
temos de ter a certeza e isso só pode conseguir-se assim que
Frei Estêvão chegue com o rol dos sinais de Sua Alteza.
- Frei Lourenço tem razão - disse Frei Crisóstomo. - Todo o
resíduo de dúvida tem de ser apagado. Só então empenharemos na
luta corpo e alma.

Desanimavam. A conversa morria. Dispersou-se a assembleia. Foi
cada um à sua vida.
Súbito, ia em maio o ano de seiscentos, começaram de soprar
outros ventos. Frei Estêvão, acompanhado do cónego Rodrigues
da Costa, chegava a Veneza. Era ver-lhe nos olhos a alegria ao
mostrar aos companheiros a lista dos sinais:
-... com a firma de todos os declarantes e autenticada pelo
notário Tomé da Cruz.
Liam-na, reliam-na, já dela citavam de memória partes. Correm
à Senhoria, para procederem ao reconhecimento do preso. O juiz
Marco Quirini é porta que se não pode transpor e o eco das
preocupações e receios do doge.
- Quê! - irritava-se Frei Estêvão. - Para me entreterdes,
mandaste-me a Portugal buscar os sinais do corpo de el-rei,
sem mo terdes deixado ver...
- É que vós, os Portugueses, para vos libertardes dos
Castelhanos, não hesitaríeis em dizer de um negro que seria o
rei Dom Sebastião - respondia o juiz rindo.
- Não riais, senhor, que isto é negócio muito sério... -
Desculpai. Não vos queria ofender.
- Agora que trouxe o rol dos sinais, confirmados por
instrumentos autênticos de um notário apostólico, e vos peço
me permitais ver Sua Alteza, negais-mo?
-A Senhoria...
-Asseguro-vos que honestamente vos demonstrarei a verdade ou a
falsidade. Não quereis também vós conhecer uma ou outra?
- Temos tido sobre isso muitas disputas no senado e... - Tomai
- disse Frei Estêvão estendendo um papel ao juiz.
- Que é?
- Tendes aqui a cópia da lista dos sinais de el-rei. Faço
tanto empenho como vós em verificar se a pessoa aqui detida é
el-rei ou não. Trouxe-a de Portugal, onde, com muito trabalho
e não pouco perigo de vida, a coligi de pessoas que muito bem

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o conheceram e fi-la autenticar por notário apostólico. Não
podereis alegar que é falsa. Eu ainda nem vi o preso...
- A Senhoria é de parecer que não é conveniente saber se o
preso é o rei ou não, sem primeiro ser solicitado por
príncipes e reis.
Frei Estêvão retirava-se desolado:
- O doge receia indispor-se com Filipe terceiro, não é? Marco
Quirini encolhia os ombros:


116 - 117


- Quereis príncipes e reis? - voltava-se para trás o frade, já
de saída. - Pois tereis príncipes e reis.
Ali, sob a loggia, escondendo-se atrás das colunas da arcada.
Julgam que não os topo os filhos-da-mãe. Não me apanhareis
descuidado, senhores espiões do embaixador de Espanha. Quando
enviar as minhas cartas para a corte de França, para Roma,
para a Holanda, saberei despistar-vos nos assaltos ao correio
da posta, nas estações das mudas, nas estalagens das
montanhas...
- Viste-los? - perguntou o cónego Rodrigues da Costa. - Vi.
Não tenhais cuidado.
- Que ireis fazer?
- Com estes, nada para já. Com os do paço ducal, convocar a
Veneza o empenho de reis e de príncipes, as pessoas dessa
nobreza de Portugal que anda homiziada da sua terra... - E
tantos são!
- Sabeis, Rodrigues da Costa? Creio do fundo do coração que
Portugal não há-de morrer pelos séculos fora. Mas pergunto-me
muitas vezes se nos séculos vindouros ainda será necessário
que os filhos da nossa terra tenham de procurar refúgio no
exílio em terra estranha...
- Dizem que a história se repete...
- O exílio... o mal menor. E as prisões? E as torturas? E as
mortes?... Quantos dos nossos ficaram pelo caminho às mãos dos
algozes!... E agora, pelos vistos, esse nosso rei dos ventos
está preso... Isabel de Inglaterra não nos há-de negar
valimento e Henrique quarto, que tem sido informado do que se
passa por seu embaixador, mostra-se interessado no caso.
Concitarei os bons ofícios do príncipe Maurício de Nassau...
-... e de seu cunhado, não esqueçais, casado com Emília de
Nassau, princesa de Orange...
-... Dom Manuel de Portugal, eu sei, filho de el-rei Dom
António. Escrever-lhe-ei para o castelo de Wychen, na Haia,
onde vivem com os filhos... E de Roma convocarei o irmão, o
príncipe Dom Cristóvão de Portugal, que logo comparecerá...
- Não omitais Paris.
- Sim, sim. Rogarei a Dom João de Castro, neto do vice-rei da
Índia, que venha sem demora...
-... e ao grande valido e esmoler de el-rei de França, o padre
doutor José Teixeira, protegido de Catarina de Médicis...
- Chiu! Calai-vos, que somos seguidos... macios passos no
manto da névoa...

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Saíra Frei Estêvão mais o companheiro, ficou parado no meio da
sala o juiz Marco Quirini, com o papel na mão, absorto.
Depois, caminhou até à porta e, atrás do reposteiro, puxou o
laço da campainha. Um mordomo apareceu.
- Os senhores juízes que se reúnam comigo.
Vieram os juízes. Deu-lhes conta do rol dos sinais deixado por
Frei Estêvão.
- Poderemos, meus senhores, estar a cometer um estranho erro,
por minha fé. Julgo prudente verificarmos nós os quatro se
estes sinais conferem com o prisioneiro.
- E se conferirem?
- Que Deus nos perdoe! Teremos de expor imediatamente o
assunto ao sereníssimo doge.
Caminharam então até à cela onde se encontrava o prisioneiro
e, cerrada a porta, ordenaram ao carcereiro que o despisse...

118 - 119


Um rei sem reino, sem trono, coroa, manto, ceptro... não tenho
eu tantas vezes dito que sou um rei nu?... Pois agora... o meu
corpo que nem meu pai nem minha mãe conheceram, só raros,
pouquíssimos amigos deixei, em minha câmara real, que
vestissem, despissem, ataviassem, lavassem, enxugassem,
perfumassem... minha intimidade que eu só permiti fosse tocada
por aquela princesa de uma noite de refrega em Santa Justa...
Violeta! tão recatada que não me quis revelar o seu nome...
Meu pobre corpo devassado por carcereiros estranhos!... E, de
repente, epifania! desataram a fazer-me vénia, a tratar-me
como arremedo de quem sou... Acreditaram finalmente? Que
aconteceu?... Mudaram-me da enxovia lá de cima, para aposento
mais honrado algures no palácio e, de minha miséria, dão-me
agora para o prato seis cruzados cada dia e vestimenta mais
decente... Só me não deram a liberdade. Porquê?... É um
compartimento sem janelas exteriores. Uma fresta mal coa a luz
do dia. Não vejo o céu, não sinto a maresia, não me visitam as
gaivotas, as pombas, os pardais. A quem darei agora as minhas
migalhas?... O bafio das horas ganha bolor, perco o pulsar do
tempo no relógio do coração.
- Carcereiro - digo-lhe, quando um dia me vem trazer o comer.
- Que há?
- Sabeis de alguém que precise de ajuda?
Olha-me espantado:
- Quem aqui precisa de ajuda senão vós?
- Aí bate o ponto, amigo. A ajuda de que necessito negam-ma: a
liberdade...
- Não é da minha conta.
- ... e os seis cruzados que me... enfim, por esmola, cada
dia... olhai, sobejam-me.
- Sim, tenho visto. Sois muito poupado. Também, para o que
comeis! Pão e água... debicar, bebericar... Viu-se lá coisa
assim!... - Dirigia-se para a porta, parava na soleira: -
Estais a juntar pé-de-meia? Para casardes, quando daqui
sairdes?
- Não. Vinde cá.
Fechava a porta e chegava-se ao pé de mim a escutar.
- Não vos perguntei eu se sabíeis de alguém que precisasse de

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ajuda?
- Sim.
- Aí está. Com o dinheiro poupado, poderia eu, em desconto dos
meus pecados, fazer bem a outrem... casar, por exemplo, uma
órfã...
Olhou-me o homem nos olhos como se buscasse ver-me no chão do
meu ser e disse muito sério:
- órfãs, e bem necessitadas, e que desejam casar-se, conheço
eu duas. Se quiserdes...
- E como poderei eu proceder, se estou aqui manietado?
- Isso não sei. Mas...
- Não podereis dar parte da minha tenção ao senhor juiz
Quirini?
- Acho que sim, senhor. - Então...
- Está bem.
- Quanto antes?
- De imediato, se puder.

120 - 121


vi - Os sinais do corpo


Pela meia-manhã o sol rompeu. No Campo san Luca uma
companhia de comediantes armara seu teatro. Trupe vária e
colorida de belos rapazes e raparigas, meias-calças a tornear
coxas ágeis na dança viva, gibões de abas a esvoaçar, saias
rodadas baloiçantes, cabeleiras e narizes postiços,
mascarilhas de veludo e cetim preto, cartolas, gorros, boinas,
carapuços, chapéus, toucas, turbantes, borzeguins, sapatos de
salto, pantufos, golas folhadas, gargantilhas, tranças, blusas
listradas, corpinhos justos decotados, abanicos, lantejoulavam
o azul, o branco, o creme, o amarelo, o carmim, o verde, o
castanho, cantavam madrigais picantes, risos brejeiros de
actores e público ao som de mandolinas, sacabuxas, charamelas,
violas de arco, atabales, trombetas e pífaros...
Ricchezza non cerchiam né piú ventura che balli e canti e
flori e ghirlandelle...


Riqueza não buscamos nem ventura senão bailes, canções,
guirlandas, flores...

123


- Vede o que aí vai, Bertoldo. Quanto pecado mortal! - dizia o
cónego Baptista entrando escandalizado.
- Comediantes. - Sua Eminência? - Sua Eminência já perguntou
por Monsenhor duas vezes. - Pressa?
- Parece que há novidade. Lê e relê um papel acabado de chegar
e anda lá em cima de um lado para o outro...
- Eu subo - disse o cónego dirigindo-se à escadaria.
- Ah! Monsenhor! Bem-vindo. Lede isto, lede isto - dizia o
arcebispo.
O cónego Battista tomou o documento:

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Clemens octavus per Divinam providentia Ser
Servorum Dei"...

- Mas é um breve de Sua Santidade!
- Sem mais. E quereis saber? Intima Filipe terceiro, sob pena
de excomunhão, a entregar ao seu legítimo senhor o reino de
Portugal!
- Ah! Finalmente o papa acede a defender o nosso amigo! E a
Senhoria...
- ... tem-no preso! - Terá de soltá-lo.


Ben venga primavera
che vuol l'uom s'innamori. E voi, donzelle, a schiera con li
vostri amadori,
che di rose e di flori
vi fate belle il maggio...


Primavera chegada, tome-se homem de amores e vós, moças, mãos
dadas com vossos amadores, que de rosas e flores belas vos
fazei em maio...


A folia dos comediantes abandonara o palco e descia agora,
rodeada de povo, a Calle dei Fabbri em direcção à grande
piazza.
Que pode contra isto um pobre irmão de São Bernardo? - ia
remoendo com os botões da roupeta Frei Crisóstomo da
Visitação. Causas perdidas as dos meus escritos em defesa dos
privilégios do meu convento cisterciense da longínqua
Alcobaça? A de sustentar os direitos deste infeliz rei
ressuscitado?... Cantai, bailai, que a vida são dois dias...
- Ides a falar sozinho, Frei Crisóstomo? - perguntava Brito de
Almeida juntando-se ao frade na calle San Luca.
- Gostava de ter a ilusão e a alegria desses. - Gente nova,
futuro de esperanças.
- Ides a San Beneto? - Para lá caminho.
- Pareceis contente. Trazeis novidades? Chegaram novas de
Paris? da Holanda?...
- Conjugam-se os astros em nosso favor. Os nossos amigos devem
estar a chegar, se não estão já em Veneza. E Sua Santidade...
-... Sua Santidade...?
- Olhai e pasmai! - e Brito da Cunha mostrava a cópia do
breve: -... emitiu finalmente a sentença em pró de el-rei Dom
Sebastião!
Graças a Deus! Mostrai, mostrai.

124 - 125


Brito de Almeida açodava o passo, o frade atardava-se na
leitura do documento. Os cânticos e a folia juvenis
esbatiam-se na distância e na desatenção dos dois amigos:

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Amor ne vien ridendo con rose e gigli in testa e vien di voi
caendo. Fategli, o belle, festa, qual sarà la piú presta
a dargli e flor del maggio...


Lá vem Amor sorrindo de rosa e lis c'roado
e vem de vós espargindo. Fazei-lhe, moças, festa, qual a de
vós mais presta a dar-lhe a flor de maio...


Don Francisco de Vera y Aragón meteu esbaforido pelos paços de
São Marcos, subiu a dois e dois os degraus da escadaria e só
parou lá em cima à porta da sala do Collegio. Aguardava-o
apenas o juiz Marco Quirini:
- Que deseja o senhor embaixador de Espanha? - perguntou. -
Não faz meio mês que estivestes aqui e nada do que vos disse
então...
- Sua Majestade o meu senhor escreve-me a ordenar que insista
junto da Senhoria...
nada do que vos então disse perdeu actualidade.
a Senhoria tem de condenar esse prisioneiro pelo menos às
galés...
- Pelo menos?
-... se não à forca.
- Tão alto preço atinge o prisioneiro para a coroa de Espanha?
Tão grande a ameaça um mistificador? Ou será que...? - Senhor
juiz!
- Senhor Don Francisco de Vera y Aragón, não vos admireis de
que se mostre cada vez mais clara a presunção de que ele é...
- Senhor!
- Não sei mais que vos diga, embaixador. A Senhoria julgará.
Quem pensa a Senhoria que é? saía o embaixador irritado. A
formiga contra o elefante! Esmagar-vos-ei... E levantava o
punho ameaçador.
Desembocava na piazza a trupe foliona nos folguedos do tanger,
cantar e dançar...


Ciascuna balli e canti di questa schiera nostra. Ecco che i
dolci amanti ven per noi, belle, in giostra...


Todas juntas bailemos, aí vem o amante. Neste rancho cantemos
que ele vem pró descante...


Don Francisco estacou um pouco a olhar aos lados por onde se
haveria de escapar à multidão. Caminhou sob as arcadas em
direcção à margem do canal.
Cruzou-se com... Um fantasma! estremeceu. Era o
prisioneiro!... Mas como? A Senhoria-apressara-se a pô-lo em
liberdade, depois de, ainda há pouco...? Ah! Não!

126 - 127

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Voltou atrás. Entrou nos paços. Procurou Marco Quirini.
- Vós?
- Senhor! Como vos atreveis a...?
- Que é lá, embaixador?
- ... a... a... - sufocava. - Que se passa?
-... a libertar o prisioneiro, mal eu viro costas?
- Libertar o prisioneiro?
- Vi-o agora mesmo a passear-se sob as arcadas.
- Estais a sonhar. Vinde comigo.
Desceram aos baixos do edifício, meteram por sob a escadaria
aos calabouços e chegaram a uma porta.
- Espreitai - disse o juiz.
Don Francisco espreitou pelo postigo. O prisioneiro dormitava,
estendido no catre. O embaixador fechou o postigo,
desorientado. Subiram em silêncio.
- Até à vista, embaixador - despediu-se o juiz, virando costas
com desprezo.
Passavam na piazza os foliões. Don Francisco atravessou por
entre a multidão ululante em direcção à embaixada. Marco Túlio
saiu de detrás de uma das colunas da arcada, colocando na cara
uma máscara de nariz arrebitado, misturou-se com a turba e
seguiu-o de perto até o ver entrar em casa. Depois deixou-se
ir no grupo mimando dança e cantares com as moças:


Brunetta ch'hai le rose alle mascelle le labbra dello zucchero
rosato garofolate porti le mamelle
che ali piú che non fa lo moscato...

Na face rosa a preceito trigueira lábios de mel dois cravos as
flores do peito embriagas que nem moscatel...


No canto da piazza saiu para o Salvádego, guardou a máscara e
meteu para Beneto. Quem és tu, Marco Túlio, meu farsante
acabado? De Sebastião meu senhor, que ainda há pouco
assustaste Don Francisco de Vera y Aragón, passaste a
comediante pimpão. Dias atrás, os esculcas espanhóis que, para
interceptarem o correio, esperavam a posta numa encruzilhada
de Val Venosta, não se aperceberam do pobre almocreve que
seguia com a caravana. Lembras-te do frade que foste, a bater
ao portão do padre José Teixeira no convento dos jacobinos em
Paris? Do guarda-costas de aspecto temível, pistolões à cinta,
que comboiou o senhor Dom João de Castro na viagem para
Veneza? Tua mulher Paola Galardetta se te visse agora não te
reconheceria. Coitada! Já não sabe qual, entre tantos, é o seu
marido... E tu, sabes quem és? Qual és tu? De tão mal
habituado, já nem sabes, não é?... E isso que importa, se a
fidelidade a um amigo o dita? Caminhas na baliza oposta da
traição. Também usa máscaras Nuno da Costa. Só tu o sabes, mas
aguardas em silêncio o momento propício de o desmascarar.
Despojar-se homem de si, supremo sacrifício, a menos que seja
despojamento fictício como o desse traidor: finge um coração
que não tem, por mor da ganância de poder, de dinheiro, de se
sobrelevar aos outros... Eu te amanharei, fi de puta, eu te
amanharei... Não, não é um nariz artificial, o cetim da
mascarilha, os postiços de bigodes, suíças, cabelo. Isso é

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disfarce, travestimento, mime que eu faço por jogo e diversão.

128 - 129


Importa é a identidade intrínseca, o eu íntimo. Meu senhor
rei, não sei quem sou...


Estavam reunidos em San Beneto. Aguardavam a chegada, a todo o
momento, dos que Frei Estêvão convocara de fora. Marco Túlio
fora ajudar Dom João de Castro a instalar-se. Na sala
discutiam alguns amigos.
- Como é possível pensardes assim? - levantou-se quase
apopléctico Pantaleão Pessoa de Neiva. - Isso é renegardes a
pátria, a vossa condição de português.
- Não renego coisa nenhuma - respondeu Nuno da Costa de má
cara. - Não se renega aquilo que não existe.
- Não existe?
- Isso a que chamais pátria morreu.
- Como ousais? Sois apátrida ou sustituístes a vossa por outra
alheia?
- Que coisa é pátria? Há hoje em Portugal, sabeis muito bem,
quem tenha pejo de pronunciar sequer a palavra. O último que a
pronunciou foi um poeta que teve a sorte de morrer antes de
lhe assistir ao enterro. Enterrou-a a loucura de um rei que
levou o reino a fazer a guerra de África...
- Recuso-me a ouvir-te - saiu da sala Pessoa, incomodado.
Frei Lourenço olhou para Nuno da Costa e, com voz que forçava
ser apaziguada, perguntou:
- E pode saber-se em que assenta tão funesta opinião?
- Na realidade - respondeu o companheiro. - Nada mais do que
na realidade. Não lhe chameis funesta. Vinte e poucos anos,
reparai, bastaram vinte e poucos anos para se apagar a
identidade da pátria e da nacionalidade.
- Não se apagarão. Jamais!
- A flor do reino morreu em Alcácer. A nobreza que restou
bandeou-se com Castela...
- Quem vos ouvir pensará que...
- Para os que levantaram cabelo, o confisco, o cárcere, o
patíbulo, o homizio...
- Vós também estais homiziado. E falais assim?
- Medito em voz alta. Não vos ofendais. Não nos resta outro
caminho...
- A unificação ibérica?
- Que somos nós? África, Ásia, as Índias são pasto de
estrangeiros. Portugal é uma região, uma província de Espanha
e, quando toda a Europa, sob o domínio de Filipe...
- Não estais bom da cabeça.
-... quando toda a Europa for unida...
- Não é essa a realidade, não é isso que se passa. Por toda a
parte há mas é movimentos que se reclamam a identidade
própria, a libertação, a independência. Olhai a Catalunha, a
Vascóvia, a Irlanda, a Escócia, os Países Baixos, a Grécia...
Portugal não morreu, não morrerá. Por mais uniões que se
façam, existem fundas e surdas correntes de afirmação de
identidade...

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- Não somos nós, os que aqui estamos, disso exemplo? -
ponderou o cónego Rodrigues.
- Nós, menos ele - levantou-se exaltado Pimentel, que até ali
se mantivera calado. E apontava Nuno da Costa: - Aquilo cheira
a fala de renegado.
- Renegado, eu? Não segui eu a parte de Dom António, que Deus
tenha?
- Dais Portugal como morto. Esqueceis-vos de que el-rei está
vivo.

130 - 131


- Falta provar que é el-rei...
- Olhai, olhai, amigos! - vinham entrando Frei Crisóstomo e
Brito de Almeida, o riso aberto, e logo atrás Pantaleão
Pessoa. - Alvíssaras!
- Que aconteceu? - perguntou Frei Lourenço.
Postos ao corrente da publicação do breve pontifício, não se
cansavam de o passar de olhos a olhos, com os corações
açodados e exclamações de júbilo.
- Vedes? - mostrava Pimentel o documento a Nuno da Costa, que
se mantivera um pouco arredado.
- Portugal não morreu! - disse Lourenço com a voz embargada e
os olhos húmidos.
- Morreu - respondeu entre dentes Nuno da Costa, pegando no
breve. Leu-o em silêncio. Depois, levantando os olhos, disse:
- Inacreditável!
- Inacreditável quê?
- Dir-se-ia uma contrafacção... Como vos chegou isto às mãos?
- Lá estais vós com as vossas dúvidas - arrancou-lhe Pessoa
das mãos o papel.
Formavam grupo a comentar a boa notícia, afastava-se Nuno da
Costa dos amigos...
Dançam-te nos olhos da memória tantas imagens de invejas
recalcadas durante a vida, cacos de episódios vividos, desejos
e ambições inconfessas, ambiguidades elaboradas, mentira
pronta, rancores abafados, crimes meditados que a cobardia
arredara... Borra da alma, negrume, náusea... É isso, Nuno da
Costa. Que outro caminho te resta senão o da traição? Diante
destes, veste a capa da prudência. Ainda há pouco te expuseste
sem indústria... Dissimulação é a tua arma. Não afies garras,
não arreganhes dentes, não arrepies pêlo. O teu coração são as
tripas. Insensível... na mostra. Guarda-te para as horas
mortas. Vingança de teres sempre rastejado, ciúmes das asas
dos outros...


Chegou, enfim, vindo de Roma, na qualidade de embaixador de
Sua Santidade e de príncipe português, o senhor Dom Cristóvão
de Portugal. Logo ao entrar da porta dos paços de Dom João de
Castro, era ver-lhe aquela cabeça a emergir da gola de folhos
rendados, o semblante iluminado por um leve sorriso de bonomia
interior que lhe transparecia da expressão da boca e do olhar.
Um jovem cavaleiro ainda não chegado aos trinta anos, estatura
média no jubão de guarnições lavradas, a meia-calça ajustada
na perna magra... Cabelo encaracolado, testa alta, olhos

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claros, nariz comprido ondeado a terminar em bico, lábios
finos bem recortados, bigode encrespado com guias reviradas
para cima, sob o lábio inferior a breve mosca, pêra espetada
no queixo.
- Príncipe! - do alto da sua estatura esguia e barbas
venerandas a escorrerem adelgaçadas até ao peito, acolhia-o
paternal de braços abertos Dom João de Castro. Permitiam-lho
os cinquenta anos e a amizade fraternal que o unira ao pai, o
rei Dom António.
Chegava também, de Paris, Diogo Manuel Lopes, com seu criado
francês Aloé. Vinha como embaixador de França, com as
credências competentes para se apresentar perante a Senhoria.
Acompanhava-o Sebastião Figueira, que servira na índia,
combatera em Alcácer onde caíra prisioneiro e, resgatado,
emigrara para Paris após a refrega de Alcântara. Era portador
de mensagens dos Estados Gerais dos Países Baixos e cartas do
príncipe Maurício de Nassau e de Dom Manuel de Portugal para o
doge.


132 - 133


Chegava ainda Cipriano de Figueiredo, herói da resistência da
Ilha Terceira aos Castelhanos, que el-rei Dom António fizera
conde de São Sebastião...
- Não percamos tempo - disse Dom Cristóvão. - Solicitemos
audiência à Senhoria. Não no-la poderá negar.
E não negou. Foram recebidos no salão das recepções solenes,
ouvidos com atenção e respeito protocolares e obtiveram do
doge a promessa de que o Conselho dos Dez resolveria com
presteza o caso do prisioneiro. Ao retirarem-se, Frei Estêvão,
que os acompanhara, deu-se conta de que se cruzavam com o
embaixador de Espanha, que vinha subindo a escadaria com
semblante pesado.
"Vai contrapesar com ameaças" pensou. "Para que lado penderá a
balança da Senhoria?"


- Dois anos e vinte e um dias. Não dizeis que hoje são quinze
de Dezembro do ano de mil e seiscentos? É há quanto tempo me
tendes preso. E ainda me chamais a perguntas? Não bastaram as
que já tantas vezes fizestes?
O juiz Marco Quirini, sem abrir o carrego do rosto, dirigindo
um olhar conivente aos outros juízes, disse:
- Vimos buscar-vos para uma pequena cerimónia na capela.
- Uma cerimónia? Mas hoje não é dia nem esta é a hora, tão
tardia, da costumada missa dos presos.
- Vinde. Logo vereis.
À porta da câmara o carcereiro sorriu-lhe desdentado, quando
ele passou.
- Teimais então em afirmar que sois...? - ia o juiz a
perguntar enquanto seguiam por um longo corredor.
- Não teimo - respondeu. - Vós é que me obrigais a repetir a
verdade, apesar de a saberdes. Estais cansados de a ouvir?
Fechai os ouvidos, que a vou reiterar: eu... sou...
- Está bem, está bem - cortou Quirini. - Não é a isso que

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viemos. A Senhoria, tocada pela vossa disposição de quererdes
casar duas órfãs venezianas da esmola do vosso prato...
- da minha miséria...
- delegou em nós a efectivação do acto. Os noivos esperam-nos
na capela com o sacerdote...
- Folgo de saber que a Senhoria deu consentimento.
- O doge recomendou-nos que estivéssemos presentes e fôssemos,
além de vós, os padrinhos. O arcebispo de Espálato, sabendo do
caso, rogou-lhe que aceitasse como oficiante o seu secretário,
o cónego Battista.
Caminharam em silêncio alguns momentos e, antes de chegarem à
porta da capela, ao fundo do corredor, o juiz acrescentou com
voz grave:
- Mais ninguém foi autorizado a assistir senão nós e o
carcereiro. Os guardas ficam de serviço à porta. Não tomeis
como abrandamento do nosso ministério de juízes a nossa
presença. Não tem nada a ver uma coisa com a outra.
- Estais a prevenir-me para a severidade do vosso julgamento?
E quando será esse julgamento? Começo a desesperar de que o
despacheis.
Marco Quirini não respondeu e, os semblantes compostos para o
recolhimento do lugar e da função, entraram na capela. A
cerimónia foi simples e rápida. Assinados os termos do
matrimónio, os guardas e o carcereiro acompanharam o
prisioneiro aos seus aposentos.
Não demorou a noite a cair no quarto mal alumiado. Pão e
água-... pão e água... Deitemo-nos. Vê se dormes.

134 - 135


A Deus graças, que a tarde foi de festa. A música que não se
fez ouvir na capela cantaram-na os anjos nos corações dos
noivos. Umas boas centenas de cruzados farão a alegria da
boda, doces e vinho no himeneu. Que sejam felizes... Vê se
dormes... As chaves na porta? A estas horas?...
A luz das tochas iluminou a quadra. O prisioneiro levantou-se,
entravam os juízes.
- Não protelemos - disse um deles para Marco Quirini. -
Lede-lhe a sentença.
O juiz leu a sentença. Que dentro de vinte e quatro horas se
saísse da cidade e dentro de três dias abandonasse para sempre
os estados de Veneza, sem réplica, sob pena de galés
perpétuas. A quem o descobrisse e prendesse em contravenção
davam mil cruzados. Poderia a sua vida correr risco daquela
hora por diante. Que se fosse em boa hora...
Os juízes fizeram vénia, viraram costas e saíram.
- Tomai as vossas coisas - disse o carcereiro - e vinde
comigo. Vou acompanhar-vos até à saída.
Por uma pequena porta dos baixos saiu às traseiras do palácio
ducal e da basílica de São Marcos. Eram dez horas da noite,
soprava um vento crespo que encrespava as águas dos rios, que
quase transbordavam. Caminhou lesto em direcção a San Beneto.
Quando lá chegou, já a água começava a alagar as margens e a
atingir as soleiras mais baixas e o rés-do-chão da casa não
tardaria a estar inundado. Jerónimo Migliori e as filhas, com
a ajuda de Marco Túlio, andavam a remover para cima os

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principais trastes... Subia o pajem as escadas com um pote ao
ombro esquerdo e outro na mão direita, quando o viu entrar. A
largueza das espáduas, acentuada pela extrema magreza, a pele
sobre os ossos, o cabelo e a barba tamalavez crescidos, os
olhos metidos, as maçãs das faces levantadas, o nariz comprido
e um pouco afilado, os beiços delgados, o de baixo ressaindo -
de começo Marco Túlio não reconheceu o seu senhor. Mas, quando
el-rei sorrindo:
- Marco Túlio! - disse. - Tão atarefado vos faz andar a água?
- Meu Senhor! - pousou ele os potes num degrau e desceu
açodado a tomar-lhe as mãos. - Meu Senhor! Deixaram-vos sair!
Ninguém sabia. Subi, subi. Estão na sala alguns senhores
portugueses... - e nomeava-os...
À entrada da sala, o pajem, na grande expectativa do encontro,
ficou especado.
El-rei parou também no limiar. Ao fundo uma grande lareira
acesa lampejava clarões de luz e bafos de calor no aposento.
Em redor, alguns sentados, outros de pé, conversavam em voz
repousada.
- É isso que pensais, senhor Dom Cristóvão?
- A Senhoria não pode, perante tão fortes pressões e
influências...
- ... de tanta banda e tão altas pessoas... - Espanha não
dorme.
- ... amanhã ou depois...
- E porque não hoje? - disse da porta el-rei. Todos se
voltaram àquela voz.
- Senhores - disse Túlio solene: - Sua Alteza! Ergueram-se dos
assentos e olharam a figura que avançava para eles, como
visão, alumiada pelo luar das chamas.
- Meu rei e senhor! - rojava-se-lhe aos pés Dom Cristóvão, já
os outros se curvavam em vénias e procuravam beijar-lhe as
mãos. Dom João de Castelobranco inclinou levemente a cabeça
duvidoso, não o reconhecendo, levantava el-rei Dom Cristóvão:
- Senhores, tende calma.

136 - 137


- Meu senhor - dizia Dom João de Castro -, que magro vindes!
Sentai-vos aqui à lareira. Marco, trazei alguma colação para
Sua Alteza.
- Não desejo comer - disse, sentando-se. - Tenho pressa de
sair da cidade... - e contou-lhes o teor da sentença.
- O embaixador de Espanha - disse Dom João de Castro -
conseguiu ainda botar veneno em tão agra sentença que só o
ânimo de Vossa Alteza o consegue suportar.
- As barbas encanecidas, mas lembro-me muito bem de vós, Dom
João - e lançava os olhos em redor. - Folgo de ver que saístes
com vida da batalha... E vós, tão jovem, sois... - fitava Dom
Cristóvão.
Foi Dom João quem respondeu:
- É o senhor Dom Cristóvão, filho segundo de vosso primo o
senhor Dom António, Prior do Crato, que Deus tenha em sua
glória.
Olhou-o atentamente:
- Meu primo Dom Cristóvão. Muito grato em ter-vos comigo.

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Sabeis que sois parecido com vosso pai e com o infante Dom
Luís vosso avô? Permita Deus que nas obras os semelheis
também.
Apresentados todos e acabados de lhe beijarem as mãos,
pareceu-lhes bem que se passassem a casa de Sebastião
Figueira, que era duas ruas acima. Foram, mas pelo muito
tráfego, não lhe pareceu bem a el-rei e pediu-lhes que se
reunissem em rua mais escusa, por via do perigo que todos
corriam. Dirigiram-se então a casa de Dom João de Castro.
Aquela noite saiu o mar Adriático do seu leito e já corria por
muitas ruas de Veneza. Tiveram de fazer o percurso em
gôndolas, pelas quais se distribuíram, que eram muitos.
- Temos de prevenir Frei Estêvão de Sampaio - lembrou Nuno da
Costa sem embarcar. - Ide seguindo, que eu irei chamá-lo ao
convento dos beneditinos.
Na gôndola da frente, com el-rei iam Dom João e Dom Cristóvão.
- Coisa nunca vista, senhores! - dizia o gondoleiro. - E isto
é só o princípio. E olhai o prejuízo que já está a causar!...
Lojas alagadas, andavam os comerciantes, à luz de archotes, a
tentar salvar ricos panos de seda, telas, brocados, peças de
cristal finíssimo, especiarias...
- Isto é dano para mais de vinte mil cruzados. Podeis
acreditar...
- Achais que as águas ainda vão subir mais? - perguntou
el-rei.
- Por este andar! Os meus cabelos brancos não se lembram de
cheia assim... E se chega ao tesouro da basílica? Nem quero
pensar...
- É esta a casa - disse Dom João.
- Quem me houvera de dizer - dizia o gondoleiro, parando a uma
porta - que havia de trazer a barca a navegar por cima de
terra! Tende cuidado ao sair, que a maré já está muito alta.
Saltaram à água, que lhes deu pela cintura, Dom João e Dom
Cristóvão, fizeram Cadeira com os braços para que el-rei se
não molhasse.
- Arrivederci, buon uomo - disse el-rei.
- Arrivederci, signor - respondeu o gondoleiro, olhando o
homem que de costas, sentado nos braços dos outros dois, se
sumia casa adentro. - Estas palavras e esta voz! - murmurou
persignando-se e afastando-se.

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Assentou-se el-rei ao lume e disse:
- Senhores. Sei muito bem que tendes uma lista dos sinais
naturais do meu corpo, trazida de Lisboa por um dos vossos
companheiros. Significa isso que vos quereis inteirar de ser
eu ou não o vosso rei...
- Senhor, nós... - ia a entremeter-se Dom Cristóvão, mas um
gesto de el-rei
calou-o:
- Pois Nosso Senhor foi servido de mos estampar no corpo, por
eles se justificará a verdade que minhas palavras por si sós
não podem autenticar... - e, levantando-se, ante o espanto
interdito de todos, despiu seu jubão, sua camisa, suas
meias-calças e mostrou honestamente o seu corpo. Pôs-se de

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joelhos, para que vissem que era mais curto da parte esquerda
que da direita... - Dai-me a vossa chinela, Dom João...
Dom João tirou a chinela do pé e entregou-lha. Meteu-a el-rei
debaixo do joelho esquerdo e logo o corpo se lhe endireitou.
Fez menção de tirar os cueiros que lhe tapavam as vergonhas,
para que nada do seu corpo ficasse por vistoriar, mas não lho
permitiu o respeito que os presentes tinham à sua qualidade
real. De dor e compaixão, alguns não continham algum soluço
abafado.
- Não nos tenhais, meu senhor - disse Dom João de Castro com a
voz embargada -, por tão desconfiados. Nós estamos crentes da
verdade.
- Cristo - respondeu el-rei -, para inteirar a um só homem,
descobriu-se e levou-o a meter a mão no lado chagado do seu
peito. Então eu, um pecador, não hei-de dar satisfação de mim
a tantos de vós?... - e, chamando um por um, tomava-lhes das
mãos e levava-os a palpar-lhe as feridas recebidas na batalha:
- ... aqui... isso sim... uma pelourada no bucho
do braço esquerdo... não, não, não fiquei aleijado... aqui na
sobrancelha direita, de um golpe de cimitarra... aí, aí, sobre
a cabeça, da parte esquerda, de uma porrada com maça de armas
que fez amolgadela no casco...
... e a mão direita maior que a esquerda... os dedos longos,
unhas compridas... e o braço direito mais comprido que o
esquerdo... e o corpo, dos ombros à cintura, dobrado e curto,
e da cintura aos joelhos alongado... e a perna direita mais
que a esquerda já sabeis...
-... vede aí, no ombro esquerdo, junto ao fio do lombo, um
sinal...
pardo, com cabelos, como um vintém... e no direito, ao pé do
pescoço...
outro sinal, preto, como uma unha...
... e lentilhas nas mãos e sardas... não se enxergam bem... e
as pernas encurvadas...
Tornou-se el-rei ao lume e assentou-se entre aqueles seus
portugueses radiantes, de sorriso aberto. Dom João de Castro
ajoelhou-se-lhe em frente e descalçou-lhe o pé direito como
para o beijar e, dissimuladamente, correu-lhe com a mão pelos
dedos e logo achou o calo que buscava, tão grande que parecia
um sexto dedo, enquanto ia falando:
- Para quem tantos anos há não falava português, pronunciais
bem, meu senhor, embora com algum acento estranho, palavras
que os estrangeiros não conseguem pronunciar.
- Esforço-me por recuperar a boa fala... Mas vejo que no meu
pé encontrastes o meu calo. Tendes ainda dúvida?...
- Oh, meu senhor!
-... olhai aqui, Dom João - e abria a boca quanto podia -, na
queixada direita...
Dom João espreitava: faltava a el-rei um queixal.

140 - 141


- Foi Sebastião Neto, o meu barbeiro, quem mo tirou. Quem me
sabe dar notícias dele?
- Frei Estêvão de Sampaio... - Lembro-me dele...
-... deve estar a chegar. Quando foi a Lisboa pelos sinais,

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falou com ele...
Quiseram calçar-lhe o sapato. Com o peito do pé tão alto não
conseguiram. Então el-rei, com a maior das facilidades, o
calçou.
- Senhor - disse Dom Cristóvão -, tendes de comer qualquer
cibo de alimento. Deveis estar fraco.
- Não, primo, não. Hoje é sexta-feira, não quero quebrar o
voto de jejum.
Com graciosidade notava a diferença de vestimentas dos que o
rodeavam:
- Diogo Manuel veste à francesa, Sebastião Figueira à
flamenga, meu primo Dom Cristóvão à italiana...
-... e eu, meu Senhor - disse rindo Dom João de Castro -, à
veneziana...
- É verdade, é verdade. À portuguesa só vejo Pimentel e Neiva,
que os irmãos vestem seus hábitos e Francisco Antônio...
bordão e sombreiro como peregrino...
vestes que eu tantas vezes usei por esse mundo de Deus...
Rogou então Dom João de Castro a el-rei que, pois tinham a
dita de terem vivo ali na sua presença o seu rei, lhes fizesse
Sua Alteza a graça de lhes contar alguma coisa de sua fadigosa
peregrinação.
- Não me lembreis mágoas de meus trabalhos. Tempo virá de
minha prosperidade e então, com grande gosto, vos contarei o
que agora me seria tão penoso se o renovasse na memória.
Dai-me antes vós notícias de Portugal. Que é feito, Dom João,
de vossos irmãos? Lembro-me de que vossos pais tiveram uma
ninhada de filhos...
- Oh, Senhor! Lembrar o que lá passa é coisa triste, um vazio
de alma. Nada sei de meus irmãos João, Fernando, Francisco...
Manuel casou com Beatriz de Vilhena, Violante com o conde de
Odemira, Luís morreu em Alcácer...
- Mea culpa.
-... Dos tios pouco sei. Fernando morreu abrasado na mina do
baluarte de Dio, Miguel morreu capitão em Malaca... -... E
Cristóvão?
- Do tio Cristóvão não sei nada, nada...
- Sabeis alguma coisa de Dona Catarina de Bragança? - Quando,
depois da morte do cardeal vosso tio - respondeu o cónego
Rodrigues -, se apresentaram os herdeiros ao trono de
Portugal, a senhora duquesa era na primeira linha dos
direitos...
- Eu sei.
- Depois... contra a força dos exércitos do duque de Alba e a
inércia no interior do reino...
Era doloroso recordar tais factos; e os senhores, para poupar
el-rei, falavam-lhe de coisas menores, dos paços da Ribeira,
do Castelo, de Enxobregas, da torre de São Gião...
- E ainda fazem em Lisboa a procissão de São Sebastião que se
ordenou pelo meu nascimento?
Os mais não sabiam responder, mas o cónego acudia dizendo que
em algumas paróquias dirigidas por padres velhos ainda se
fazia sem serem molestados. Perguntava el-rei por Dom
Teodósio, arcebispo de Évora, por Dom Fernando de Meneses, o
Boca Aberta, por Dom Luís de Noronha, por Dona Maria de
Alcáçova...

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- Ah! Dona Maria! - exclamou Dom João. - Poderei ser um pouco
irreverente convosco, meu senhor?
-Aquele jovem rei orgulhoso, colérico, intratável, egoísta,
que vós conhecestes, morreu há muito tempo. Falai à vontade. -
Senhor, todos julgavam, nesse tempo, que vos era indiferente
senão incómodo o trato com mulheres. E agora perguntais vós
por tão formosa dona?... Eu sei. A evocação do seu nome
traz-nos ao teatro da memória o de seu pai, Pedro de Alcáçova,
fidalgo de vossa casa e de vossa confiança... Como mudam os
tempos e as vontades! Com a notícia da vossa morte, o cardeal
vosso tio mandou-o prender...
- ... chorava ele a morte de dois filhos na batalha de
Alcácer... - disse Frei Lourenço.
- ... fê-lo julgar... Alcáçova, por ressabio e aliciado pelo
traidor Cristóvão de Moura, tomou o partido de Filipe segundo.
Já rei usurpador de Portugal, Filipe restituiu-lhe os bens,
fê-lo conde de Idanha, membro do conselho do vice-rei o
cardeal Alberto...
- Coisas tristes me contais.
- Mas não é triste certamente, meu senhor, a lembrança daquela
belíssima criatura que era Dona Maria de Alcáçova...
- Quereis lembrar-me que ainda não respondi à vossa pergunta,
não é?
- Se assim o quiserdes entender, Senhor...
- É, sim, uma grata recordação... aqueles olhos, aqueles
cabelos em ondas de oiro sobre os ombros, o donaire do andar,
do busto, das... Olhai, amigos. Parecia eu indiferente? Nesse
tempo considerava com raiva por que razão não podia um rei
casar senão com uns fantoches sem alma que lhe propunham os
reis e príncipes dos outros reinos da Europa... Que é feito
dela, de Dona Maria? Casou, claro.
- Com Dom Álvaro de Melo, senhor, neto de Dom Rodrigo, conde
de Tentúgal e marquês de Ferreira.
Nisto irrompeu porta dentro Frei Estêvão de Sampaio e, logo
após, Nuno da Costa.
- Senhores! - dizia o frade com calor. - Estamos rodeados de
espiões. Que aconteceu? Esta gente do embaixador de Castela
que vejo em duas ou três faluas a rondar-vos a casa?...
Deu-se conta, de súbito, do estranho acatamento com que todos,
de pé, rodeavam aquele homem sentado com natural dignidade em
frente da lareira. O silêncio que mantiveram e aqueles olhos
espetados a fitar-lhe a entrada tempestuosa fê-lo compreender:
- Meu senhor! - arrojou-se Frei Estêvão aos pés de el-rei. -
Então fostes vós, Frei Estêvão, que vos destes à canseira de
ir a Portugal... - dizia el-rei tomando-lhe os braços para que
se levantasse.
- Meu senhor, agora há urgência em vos tirar daqui sem serdes
reconhecido...
- Sugiro - disse Dom João de Castro - que vós ou Frei Lourenço
vá a um dos vossos mosteiros por um hábito em que Sua Alteza
se possa salvar pelo meio desses aleivosos que espreitam lá
fora.
Mais despachado, Frei Estêvão logo se prontificou:
- Pois Nosso Senhor tem guardado Vossa Alteza de tantos

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perigos, vos há-de salvar de mais este.
Fez menção Nuno da Costa, que se mantivera à porta, de o
acompanhar, mas Marco Túlio adiantou-se-lhe:
- Eu vou com Frei Estêvão.
Saíram os dois e, tomando a barca que o frade havia fretado,
desapareceram na noite.

144 - 145


Dobaram as horas até que, alta madrugada, regressou Frei
Estêvão com o hábito.
- Vós, senhores - dizia enquanto ajudava el-rei a vestir-se -,
ficai aqui quietos, como se Sua Alteza estivesse pousando.
Sem fazerem bulha saíram ambos, com Marco Túlio, e se foram
pelo Grande Canal, entrando pelo rio de San Vio, ao mosteiro
de São Domingos.
- Aqui, senhor - dizia o frade -, estais seguro e fora de
perigo daquela canalha que pela boca da rua fervia.
- Agora - disse el-rei - é urgente que eu saia da cidade.
- Estará tudo prestes em pouco espaço, Alteza.
Foi dentro e tornou com um fradinho velho que faria companhia
a el-rei naquela jornada. Mas o frade, mal se viu embarcado na
gôndola com um mar alteroso,
apertou-se-lhe o coração e saiu fora, não havendo maneira de o
convencer a acompanhar o viajante.
- Vejo-me forçado a ir convosco - disse Frei Estêvão. - Seria
melhor que eu ficasse, para desnorteio dos Castelhanos. Sou
mais conhecido e de maior suspeita. Mas, a Deus graças, que
serei vosso ditoso companheiro neste transe.
Marco Túlio por barqueiro, na manhã nascente se partiram, com
vento teso, fazendo-se às águas revoltas que, não fossem as
casas, confundiam canais, rios e ruas da cidade.
Em redor da casa de Dom João, os Espanhóis alvoroçavam-se.
Corria que alguns deles haviam visto entrar um frade e saírem
dois. Informado, o embaixador expediu logo correio por mar
para ir dando rebate dos frades por todas as ribas e costas.
Mas já, esgueirando-se por entre canaviais, sinuosidades de
ribeiras, véus de choupais, moitas de funchos na pantanosa
planície, os fugitivos iam longe.
Sob o toldo da ré acomodou-se o rei, fatigado.
- El-rei adormeceu - disse Marco Túlio em voz baixa manobrando
o timão.
Frei Estêvão olhou o rei e o pensamento enfunou-se-lhe como as
velas da falua. Aqui vou eu com Sua Alteza. Aqui vou eu a
caminho do futuro, de não sei onde nem quando, a caminho de
algures, de alhures, escoltando uma ideia. As mudanças não
alteram a natureza das pessoas. Arreiem-se bandeiras dos
mastros, para ver ondular ao vento outras cores e outros
símbolos, abafem-se hinos, amordacem-se gritos de guerra, para
gritar outros ideais, cantar outras verdades. Anatematizem-se
reformas, para decretar em concílios dogmas de outra fé,
caminhos das consciências. Apeia daí o teu ídolo, o teu herói,
para eu lá colocar o meu. Sábio foi aquele príncipe que não
permitiu lhe erguessem estátua nos Estaus. Troquem-se os nomes
de ruas, de pontes, de castelos e palácios, de cidades, nações
e reinos. Não se muda o essencial, que é o destino e a morte.

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Tanta canseira, meu Deus! Doem-me os ossos da alma.
Amortalha-te, também tu, no capote e dormita... Mas esta luta
não é de casca de ovo, de cortiça de árvore, senão do âmago,
do cerne, da gema, da seiva. El-rei é a ressurreição da
liberdade dos antepassados, que lavraram a terra, o mar e a
história... Como ele dorme! Que frágil parece! E se os
inimigos o alcançam? se mo matam?... Não matam a ideia. Irei
até ao fim. Para o proteger ou para o ressuscitar fá-lo-ei, se
for preciso, substituir por esse outro que, parecido com ele,
aí vai a velejar o seu sonho. Tire-se um rei, ponha-se outro,
conquanto, na floresta de enganos e desenganos, permaneça a
ressurreição...
- Sabeis que temos entre nós um traidor? - acordou Marco Túlio
a Frei Estêvão do solilóquio interior.

146 - 147


A manhã clareava, avistava-se a grande distância o casario de
uma cidade, algumas ribas mais elevadas do Pó erguiam-se um
pouco acima do trasvaze das águas, vararam o barco na raiz de
uma colina, junto a um açude abeberado de choupos e canaviais.
- Há muito que desconfiava - disse Frei Estêvão. - Julgo saber
quem é.
El-rei acordava. Não prosseguiram a conversa. Saíram em terra
e, um pouco acima, abrigados da nortada na concha de uma lapa,
sentaram-se. Marco Túlio fez-lhes sinal que aguardassem.
Viram-no desaparecer na lomba do teso e daí a obra de alguns
minutos chegava ele com um molho de lenha e, pendente da
cintura pelas patas, um corpulento coelho de olho vidrado e
pingando sangue dos narizes:
- O vosso dejejum, Alteza.
O rei lembrou-se de Telo e o seu olhar entristeceu. Petiscado
lume, levaram as cavacas algum tanto a pegar, mas ao fim, com
a paciência e a arte de Túlio, uma boa fogueira crepitava e o
coelho, esfolado e estripado pela destreza do pajem, assava
num espeto de salgueiro ressumando banha.
- Se me não engano - disse Frei Estêvão -, aquela cidade
além...
- ... deve ser Ferrara... - acrescentou el-rei.
- É Ferrara - asseverou Túlio. - Conheço-lhe as muralhas e, lá
dentro, as flechas da catedral e a torre do castelo. - Apesar
de terra do papa - propôs Frei Estêvão -, será melhor
evitá-la... os Espanhóis já devem estar avisados...
alongarmo-nos mais adiante, por Bolonha, caminho de Florença e
daí rumar a Livorno no mar da Ligúria, a tomarmos barco para
França...
Para prevenirem serem reconhecidos por possíveis esculcas,
Marco Túlio, useiro nestas artes, vestiu-se de florentino,
el-rei largou o capelo e tomou chapéu e espada, só Frei Estê
vão permaneceu com seu hábito de São Domingos. Fizeram jornada
por Bolonha até Florença.
- Eis terra amiga! - disse el-rei à vista da cidade. - Seremos
aqui bem acolhidos.
- De onde vos vem essa esperança, Alteza? - perguntou o frade.
- É meu primo o duque da Toscana, Fernando primeiro.
- Deus vos ouça.

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- Mas, antes de lhe irmos falar, desejo visitar o túmulo de um
ilustre príncipe português.
- Aqui? De quem falais?
- Do cardeal Dom Jaime, filho do infante Dom Pedro e neto de
el-rei Dom João primeiro. Está sepultado na basílica de San
Miniato al Monte.
Sem demora atravessaram o rio por San Nicolò e por Monte alle
Croci subiram a San Miniato. Pararam a olhar do alto o
casario, do vermelho dos telhados a erguerem-se as torres de
pedra alvacenta, em volta colinas azuladas, as manchas
verde-negras esguias dos ciprestes, a cinza rebolada dos
olivais, o espelho do rio a cintilar.
- Quem mandou construir a capela do cardeal de Portugal? -
perguntava Marco Túlio ao entrarem na basílica.
- Não sei grandes pormenores - respondeu el-rei. - Dinheiros
do infante Dom Pedro, seu pai, depositados em Florença e
distribuídos pelos irmãos herdeiros, parecem ter pago os
custos.
Caminharam em silêncio até à entrada da capela e logo na
fachada depararam, ao alto, com o brasão do príncipe encimado
pelo chapéu cardinalício...

148 - 149


- ... que ele nunca chegou a usar - adiantou Frei Estêvão.
Depois, enquanto el-rei ajoelhava diante do túmulo a rezar, os
companheiros passeavam os olhos pelo recinto, desde o
pavimento em cosmatesco à abóbada com medalhões de Luca della
Robbia, aos frisos com os brasões da família, ao painel dos
três santos...
- Que santos são? - perguntava Túlio em voz baixa.
- São Tiago - e o frade apontava -, aquele São Vicente e este
Santo Eustáquio.
- Porquê?
- O primeiro, patrono do cardeal. Sabeis latim? Não? Iacobus é
o nome latino de Jaime. O segundo por ser padroeiro de Lisboa,
de que ele foi bispo...
- ... o terceiro - concluía el-rei que se lhes juntara -, por
ser o santo de seu título cardinalício.
Observavam agora a estátua jacente, a serenidade da expressão
do cardeal, os dois puni segurando o manto mortuário...
- Nada melhor que o mármore - observou Marco Túlio - para dar
a ideia do sono eterno...
... e liam o epitáfio...
... MORS IVVENEM RAPVIT... VIX.NA.XXV.M.XI.D.X. OBIIT
AN.SAL.MCCCCLIX...
- morreu na idade de vinte e cinco anos - traduzia Frei
Estêvão -, onze meses e dez dias, em mil quatrocentos e
cinquenta e nove...
Ao descerem da colina, disse el-rei:
- Procuremos agora a protecção do grão-duque meu primo.
Seguiram pela margem do Arno em direcção ao palácio ducal.
Aguardava-os a sombra negra de Filipe de Espanha: o
grão-duque, receoso de outro sucesso como o de Veneza,
negou-se a recebê-lo e ordenou que o prendessem no Bargello.
Frei Estêvão e Marco Túlio ficaram cá fora descoroçoados, sem

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bem saberem que fazer.
Enfadados se viram também os fidalgos portugueses, em Veneza,
com as novas que lhes chegavam das buscas castelhanas.
Ordenaram de partir todos, cada um por seu caminho, uns por
mar, outros por terra, para Florença e lá se ajuntarem.
Acrescentou-se-lhes o enfado, aí chegados, com saberem pelos
dois amigos da prisão de el-rei e ainda mais quando se
acharam, por ordem do grão-duque, intimados a sair do estado
da Toscana.
Os meses escoavam-se. O grão-duque carteava-se com Filipe
terceiro.
Dispunha-se, com ânimo servil, a entregar-lhe o prisioneiro.
Dissesse Sua Majestade o que houvesse por bem. Faz o rei de
Espanha reunir o conselho de estado, que sugere seja o homem
entregue ao vice-rei de Espanha em Nápoles. Devia este
averiguar "las senales públicas y secretas del charlatán...
quien es y de que lugar y que el lo confiese y quien le ha
metido en este enbuste". Não o condenassem à morte, mas a
galeras perpétuas, vindo depois a Espanha para que "en todas
partes sea visto y con esso se desenganen deste falso
rumor..."


Chegava maio. Frei Estêvão e Marco Túlio que, disfarçados,
rondavam o Bargello, certa madrugada viram el-rei ser levado,
sob forte escolta, numa carroça, atravessar o Arno por il
ponte Vecchio e, pela porta Romana, abandonar a cidade em
direcção ao sul. Afastados e escondidos, vigiavam também os
olhos de Nuno da Costa.


150 - 151


VII - A espada e o anel


Bela passeggiata a deste rei sem coroa que é levado
prisioneiro por sua guarda de honra a respirar o fino ar das
montanhas da Toscana. São rapazes alegres estes. Vejo-os pelas
grades dos postigos, a uma e outra banda do veículo. Cá dentro
é escuro, cheira mal e a dureza do banco é acentuada pelos
solavancos bruscos das pesadas rodas ferradas. Não falam:
tagarelam, gralham... cantam com malinconia saudades de
terra...


Santa Lucia
luntana...
... brejeiras esperanças de apanhar as moças pelas bordas do
Tirreno...
- Belle ragazze, no, Giuliano? quelle di Maremma, di
Talamone...
- ... di Piombino, ahimé!...


Sem quererem, vão-me anotando as terras por que passamos, San

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Gimignano, Volterra, Gavorrano...
-... guarda, guarda, il mare...

153


E eu olho e vejo também aquele espelho de um azul espesso,
algumas vezes estranhamente cor de vinho, como dizia o poeta:
oivona TLoviov... Grosseto, ouço um deles dizer. Não tarda a
chegarmos a Orbetello, diz outro. Caminhávamos já à beira-mar
e eu, em minha miséria e angústia, deliciava-me a sorver, as
narinas e os pulmões bem abertos, aquele cheiro a maresia que
não tinha a certeza se respirava pela última vez... E esse
cheiro a maresia nunca mais o hei-de esquecer, que a ele está
ligada, no longo rol das desgraças padecidas, a minha mais
dolorosa e insuportável experiência. Oh Deus! Assim pequei eu
tanto, em meu orgulho e insensatez, que ainda me reservavas
esta degradante, a mais que nunca vi, provação?... Ferveu-me o
sangue. Revoltei-me. Revoltou-se em mim toda a lama que eu
sou, a borra do corpo e da alma, os mucos da náusea...
Haviam-me levado para a ilha do monte Argentário e, em Porto
Ercole, enclausuraram-me no castelo, numa cela em que se
encontravam dois criminosos. Era um deles homem de uns trinta
anos, o outro rondaria os cinquenta. Barba crescida, cabelos
em desalinho, estava o mais novo de tronco nu e o companheiro
vestia uma camisa sebenta desapertada no peito peludo.
Tresandavam a porcaria e suor, apesar da janela gradeada
aberta para o mar. A luz e sol da tarde clareavam a pocilga,
quando os guardas abriram a cancela de ferro e me empurraram
para dentro. Fiquei encostado à porta, sem saber que fazer, ao
dar com aqueles companheiros de prisão. O jovem encontrava-se
de pé, junto da janela, a olhar para fora. Voltou-se ao ver-me
entrar. Na contraluz não lhe distingui o ar. O mais velho,
deitado no chão, numa esteira de palhas, as mãos sob a nuca a
fazerem de almofada, mascando um palhiço entre os dentes,
mirou-me dos pés à cabeça e, observando-me o traje,
- Boa tarde, Excelência, sede bem-vindo - disse. - Já
reparaste no fidalgote, Nicolò? Culo de San Codino! Temos de
o...
Despegou-se o outro da janela e aproximou-se, a babar-se, com
ar de mentecapto:
-Lo voglio succhiare. Anda, Toniazzo, mostra-lhe como é.
Levantou-se de um pulo Toniazzo...
Das profundas do meu ser, que julgava há muito em cinzas,
reacendeu-se e
subiu-me ao coração e à cabeça e aos músculos a labareda da
ira. E de novo fui de uma violência tão medonha e o meu braço
adquiriu a antiga força tão extrema, que o brado de Nicolò,
arremessado pelo ar contra a janela em frente, e o ronco de
agonia de Toniazzo, com o crânio esmigalhado nas grades de
ferro da porta, ecoaram pelo castelo. Subiu-me um soluço à
garganta com o pejo do meu assanho. "Rei não chora" pensei e
dominei-me.
Acudiram os guardas:
- Que se passa? - perguntavam, olhando atónitos os dois corpos
desmaiados nas lajes, as vergonhas de fora das barguilhas.
- Levai-me - disse-lhes - para uma cela onde possa estar só.

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Entraram, carregaram os corpos dos dois homens dali para fora,
fecharam a porta e deixaram-me sozinho.
No dia seguinte de madrugada, quatro guardas vieram buscar-me.
Descemos a encosta até ao cais do portinho, onde baloiçavam
barcos de pesca de cores alegres. Embarcámos numa falua que aí
esperava e logo desamarrou e zarpou. Com vento de feição fomos
velejando para sul à vista de terra. Na popa, no banco à
frente do timoneiro, deixei-me envolver naquele banho de azul
de céu e mar e, embalado pela ondulação, quase dormitava
quando ouvi o velejador dizer atrás ao homem do leme:

154 - 155


- Louvado Dio, Stefano, que este barco é mais ligeiro que o de
Ferrara.
Ria-se o companheiro e respondia:
- Com esta calma, Marco, agora até os senhores guardas haviam
de apreciar um coelho como o de outro dia.
- Coelho? Canté! - dizia o chefe dos guardas.
Não tinha eu até aí olhado com atenção os dois marinheiros que
nos conduziam. Observei agora o homem da vela. Quem esperaria
reconhecer naquele marujo tisnado pelo sol Marco Túlio?
Voltei-me: ao leme, Frei Estêvão, com blusa de pescador, as
mangas arregaçadas, sorria.
Foi Andres Jovalina, secretário do vice-rei de Nápoles, quem
se encarregou de receber o prisioneiro no Castel Novo. Portas
de bronze abertas de par em par, eis que o rei da morte entra
pelo arco do triunfo, branquíssimo mármore de Carrara
finamente lavrado, esmagado pela negra robustez das duas
torres cilíndricas. O saibro do chão é a passadeira de honra.
Faltam as trombetas dos arautos, os pendões a trapejar ao
vento. Buscaram-me os olhos em volta os marinheiros da falua,
mas a entrada do castelo tapava-me a vista do embarcadouro, já
os novos guardas, castelhanos, em suas vestes garridas, me
traziam para dentro e não tardou que estivesse sentado em meu
trono, as pernas cruzadas no chão frio e húmido dos caboucos
da fortaleza... Sinto-me a alma esvaziada. A esperança
abandona-me. Não quero cair em jeremíadas autocompassivas, mas
a fé vacila, aquela fibra de rijeza, aquela têmpera de aço que
até aqui me haviam sustentado a luta, deslassaram.
Não enxergo bordão a que me arrime, estrela que me guie, farol
que me previna. Deus venha em meu socorro. Não desejaria
anojar-me de desespero. Que é evidência? Aquilo em que se
acredita. Toda a verdade é um acto de fé. A eles, é-lhes mais
fácil acreditar na evidência de que eu morri na batalha.
Morri, sim, porque ainda estou vivo para presenciar a que poço
sem fundo mergulhei. Sou o fantasma de mim, a minha alma
penada saída e corporizada de um fogo-fátuo... Passos no
corredor, trinclintar de chaves no fecho da porta, Sua Alteza
vai ter visitas... Minha Alteza... Ajeitemos o ar e a
compostura.
- Sua Excelência, o vice-rei de Nápoles! - anunciou um arauto,
em continência, no umbral da porta.
Abriam alas os soldados. Ele entrava acompanhado do secretário
e do camareiro. Chapéu derrubado ao lado direito, com uma
pluma encaracolada na ponta, olhos vivos no rosto corado, a

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barba em pêra pontiaguda com alguns fios grisalhos, bigode
revirado, gola de folhos, jubão e capa com guarnições a oiro,
espada à cinta.
Sebastião olha o aparato, sem se levantar.
- Levante-se o prisioneiro - ordena o camareiro. - Ficas
quieto, miserável? Não te levantas? - e avança para ele. -
Deixa - suspende-lhe o gesto o vice-rei e,
aproximando-se: - Sabes quem eu sou?
Ergue-se do chão o prisioneiro:
- Reconheci-vos de imediato, senhor, apesar dos mais de vinte
anos que vos não via. Folgo de vos tornar a encontrar.
- Pois já nos encontrámos? Conheces-me?
- E vós...? - acentuava o vós com leve inclinar de cabeça
- Conheceis-me? - corrigia, um pouco interdito, o vice-rei.

156 - 157


- ... e vós não me reconheceis? No entanto... Olhai bem, Don
Rodrigo de Castro.
- Sabeis o meu nome?
- Quem não sabe o vosso nome, meu senhor? - intervinha o
secretário. - Deve-o ter ouvido aos guardas que o escoltaram
até aqui.
- Mas afinal...? - e o vice-rei fitava o rosto do prisioneiro
e dizia aos companheiros: - Devo-o ter visto algures, não sei
onde nem quando...
- Eu vos refrescarei o lembrar... -... mais jovem...
- Oh! Sim! Mais jovem... como vós... - Quem sois vós?
- Eu sou...
- Claro, claro. Pretendeis ser o rei de Portugal, eu sei. -
Sabeis bem que o sou.
- Estais doido. O rei morreu. - Morreu, mas...
- Toda a gente o soube... toda a gente o sabe...
- ... mas não como vós e toda a gente o pensa. Poucas pessoas
conhecem que o rei sobreviveu à batalha. E vós... - Eu...?
- Foi Deus que me enviou junto de vós e vós junto de mim.
Podereis dar testemunho de mim e socorrer-me neste transe
grave da minha vida.
- Eu? Vosso testemunho? Não estais bom da cabeça.
- Senhor, não lhe deis ouvidos - disse o camareiro.
- Este homem é louco - acrescentava Andres Jovalina - e
torna-se perigoso falar com ele.
- Sim, vós. Lembrais-vos, senhor conde de Lemos, do tempo em
que estáveis acreditado na corte de Lisboa na qualidade de
legado de Espanha? Foi em abril de mil e quinhentos e setenta
e oito...
- Como...?
- Lembrais-vos de um presente que, por essa altura, eu vos
dei, em sinal da minha satisfação e amizade?
- Um presente?
- Uma espada. Ainda a tendes?
O vice-rei olhava espantado para o secretário, para o
camareiro, que davam sinais de desaprovação de cena tão
insólita. Respondeu hesitante:
- Recebi um dia uma espada das mãos de el-rei Dom Sebastião...
Mas que tendes vós a ver com isso?... Acabemos com isto.

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Senhor secretário, lede ao prisioneiro os trâmites do seu
processo...
- Quereis melhor prova de que vos falo verdade? -
interrompia-o o prisioneiro. - Olhai para mim. Ainda a tendes,
essa espada?
- Ora! - voltava-lhe as costas o vice-rei.
- Dai-me a liberdade - ouvia Don Rodrigo a voz do prisioneiro
atrás de si. Agastado, virava-se para o secretário: - As
ordens de Sua Majestade, o rei Filipe terceiro, são expressas:
é preciso condenar o impostor às galés.
- E o senhor conde de Lemos - perseguia-o a voz do prisioneiro
-, um grande coração de cavaleiro cristão, subscreverá tal
injustiça?
- Providenciareis - continuava o vice-rei ao secretário - que
ele seja levado para o Castel dell'Ovo. Não o quero aqui, onde
tenho residência com a condessa minha senhora e onde está a
minha corte. Há muito que pensava acabar com estas masmorras.
É chegada a hora.

158 - 159


O prisioneiro deu uns passos desolados até à janela, de onde
se enxergava o porto, voltou-se e disse para o vice-rei, que
já ia a sair:
- Se ao menos...
Estacou o conde no limiar da porta, o semblante marcado pelos
desencontros do pensar e do sentir:
- Se ao menos...?
- Desejo confessar-me...
- Mandar-vos-ei o meu confessor - e fez menção de retirar-se.
- Confissão é a coisa mais íntima que há. Mais ainda do que o
acto de amar uma mulher, de ter ajuntamento com ela.
Desnudam-se os corpos aqui, desnudam-se as almas ali. É estar
com Deus. Eu tinha um confessor, o meu confessor...
- Onde? No outro mundo, de onde vindes? - riu-se o conde.
- Em Veneza.
- Não quereis que eu mande a Veneza buscá-lo, pois não? -
Tomais com leveza o que é sério, senhor.
Don Rodrigo acusou o remoque e deixou de gracejar. O
prisioneiro continuou:
- Eu tinha um confessor e um pajem...
- Ah! Também quereis um pajem! - brincava desta vez Jovalina.
-... eles seguiram-me até aqui... desde Florença... - Muito me
contais - disse pensativo o vice-rei.
- Mandai-os prender, Excelência - rosnou o mordomo. - Poderia
abrir o meu coração ao meu confessor, ouvir missa, comungar,
como soía... O meu criado poderia, sem cuidados para os vossos
serviços, fazer-me as compras, preparar-me as refeições...
Foi brusca a intervenção de Jovalina, virando-se para o
vice-rei:
- Ele não está em situação de pedir, de exigir seja o que for.
- Em Veneza, na prisão de São Marcos, davam-me seis cruzados
para a minha mesa...
- E onde os poderei eu encontrar? - perguntava Don Rodrigo
olhando significativamente o secretário.
- Não será difícil - disse com estudada simplicidade o

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prisioneiro. - Preocupados com a minha sorte, deverão andar
por aí rondando o castelo...
- Rondando o castelo... - remoeu o vice-rei, olhando de
soslaio os sorrisos de sorna esperteza do camareiro e do
secretário. - A vossa ingenuidade espanta-me. Aí está um bom
exemplo de delação.
- Não é ingenuidade, senão confiança em vós.
- Senhor secretário, mandai procurá-los e prendê-los. - Vós
não fareis tal vilania.
-Assim tanto confiais em mim?
- Cavaleiro jurado e sacramentado...
Caminhou Don Rodrigo para a saída e, voltando-se: - Dei as
minhas ordens - retirou-se.
A única coisa que estraga a paisagem, a agradável caminhada a
pé ao longo do mar, a visão da larga curva do golfo, a mancha
azulada do Vesúvio lá adiante, Capri no outro cabo, o ar
perfumado e quente - é eu ir de mãos atadas atrás das costas,
entre soldados armados. E se o ameno da natureza me atenua as
vicissitudes, este contraste carrega-lhes o pesar.

160 - 161


Seja Deus-louvado, que alguma luz me acena com a esperança na
bondade do vice-rei. Ele reconheceu-me, não o duvido,
conquanto o não tenha confessado. Mas a pergunta dele
lateja-me nos ouvidos: "Quem sois vós?" Pergunta por outros e
em outras ocasiões tantas vezes perguntada. Não será a altura
de ma fazer eu a mim mesmo? Quem sou eu? A cada hora que
passa, a cada cutilada do destino ou cachaporra da sorte, a
cada esquina da dor, sinto-me tão outro do que fui! Que
diferença faria agora, se eu me diluísse na multidão anónima?
Rei, reino... ideias que se apagariam para sempre. Neste
momento, se me fosse dado, faria Marco Túlio ocupar o meu
lugar, para eu poder sentar-me na areia, ao sol, no quebrar
das ondas, a ouvir sem cuidados de alma as canções dos
pescadores... Horror e maldição ser ungido de Deus! Não tenho
salvação nem na vida, nem na morte, nem no Inferno...


Aquela ilhota em frente a Santa Luzia... o Castel dell'Ovo...
De lá se enxergam as ilhas de Prócida e de ísquia. Barcos a
vogar, barcos a ondular. Paredes altas, a pique, nuas, sem
janelas, a não ser lá em cima. Fuga impossível. Daqui só se
sai para as galés ou a forca, para a eternidade de penas.
Alguma surpresa me aguardava. Não me deram uma cela imunda nas
masmorras da fortaleza, mas aposento limpo, arejado e cheio de
sol, no topo de um torreão, com janela para a baía e porta
para um patim onde eu podia desempenar os joelhos. Desde que
entrei em meu novo cativeiro, dei conta de que todos tinham
para comigo acatamento. Não sabia que pensar deste inédito
procedimento para com um prisioneiro tão perseguido, mas não
deixei de julgar que o deveria a espressas ordens do
vice-rei... e este pensamento aqueceu-me a esperança como o
sol de Nápoles que me entrava pela janela.
Don Rodrigo trabalhava no seu escritório e ditava ao
secretário uma carta para

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el-rei Filipe:


"A primero desto, llego aqui el charlatan que se finge ser
elrey Don Sebastian, yo cierto quando le vi quede espantado de
ver que hombre d'entendimiento ninguno pudiese imaginar..."


- Excelência...- aproximou-se o camareiro-mor.
- Que há, Don José?
- Chegaram os guardas com os dois homens que mandastes
prender.
- Que entrem os prisioneiros.
Entrou o camareiro com Frei Estêvão e Marco Túlio. Don Rodrigo
fez sinal de que o deixassem só com eles. Saíram contrafeitos
o secretário e o camareiro. Fechada a porta, o conde de Lemos
olhou os dois homens, que ainda vestiam à maneira de
marinheiros.
- Vós sois... - dirigiu-se a Frei Estêvão.
- Senhor, um pobre pescador que não compreende porque o
prenderam.
- E vós? - perguntava a Túlio.
- Oh! Eccelenza! Se eu adivinhara, tinha-vos trazido a melhor
pescaria de Nápoles.
- Ide contar isso a outro. Quereis que vos mande meter a
ferros?... Quem és tu? - tornou a perguntar a Frei Estêvão,
tratando-o agora por tu.
Frei Estêvão sentiu o caso mal parado e resolveu responder de
outra forma:
- Senhor, na realidade eu não sou o que pareço... - Eu sei.
-... como a mulher de César... - Folgais?

162 - 163


na realidade sou um súbdito de Sua Alteza... el-rei Dom
Sebastião. Também sei.
- Frei Estêvão de Sampaio, dominicano, teólogo.
- E vós... - virava-se para Marco Túlio -... é de presumir que
também não sois um homem do mar.
- Marco Túlio Catizone, às vossas ordens, Excelência - saúda
Marco Túlio com desenvoltura.
- Sois bem-disposto e... Ah! Mas vós sois... Em verdade é de
espantar, de confundir! O rei Dom Sebastião, que eu conheci em
tempos em Lisboa, vós e o prisioneiro que se encontra no
Castel dell'Ovo... sois o mesmo ser, o mesmo indivíduo que se
multiplica...
- Eis-me, senor! - faz Túlio uma vénia sorridente.
- Fica-se sem saber quem é que afinal está preso lá em cima...
- O vosso prisioneiro, Excelência - disse Frei Estêvão com
gravidade -, é o verdadeiro rei Dom Sebastião de Portugal, que
vós vistes um dia em Lisboa. Este é o seu fiel servidor Marco
Túlio Catizone, calabrês de nação, que tem a particularidade
de ser sósia de el-rei meu senhor.
Don Rodrigo de Castro levantou-se e aproximou-se dos dois
homens:
- É notável! Prouvera a Deus que eu pudesse...

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- Vós podeis - disse Frei Estêvão adivinhando-lhe o
pensamento.
- ... Catizone... Catizone... - vasculhava o conde de Lemos na
memória -... Catizone...Ali! O duque de Maqueda, governador de
Sicília, interceptou correspondência que aquele a quem chamais
Dom Sebastião...
que é Dom Sebastião... - emendou Frei Estêvão. quando estava
em Veneza, enviava a Portugal por intermédio de um frade de
Messina...
- ... Frei Raimundo Marchetti... - disse Marco Túlio. - Tenho
comigo essas cartas. Fala-se nelas de vós, Catizone...
- Ides usá-las contra nós, essas cartas?
Mas o conde nem o ouviu. Passeava de cá para lá ensimesmado:
- Catizone!... É para confundir, na verdade!...
Frei Estêvão, sentindo alguma moleza no ânimo do vice-rei,
procurou levar a bom cabo a situação:
- Prenderam-nos, Excelência. Trouxeram-nos à vossa presença,
favor raro. Que desejais de nós?
Parou Don Rodrigo de andar, hesitante, ruminando uma decisão
que havia alguns dias vinha tecendo. Enfim, resolvendo-se:
- O prisioneiro falou de que tinha um confessor e um pajem...
- Sou eu o confessor - mentiu Frei Estêvão, compreendendo a
ideia de seu senhor.
- ... e eu o pajem - secundou-o Marco Túlio.
- Ele pediu-me... ah! deixei-me tomar de comiseração... -...
porque o reconhecestes...
- Podereis ficar ao seu serviço. Vós, Frei... Estêvão de
Sampaio... dir-lhe-eis missa na capela do castelo e sereis seu
confessor. Vós, Marco Túlio, ireis ao mercado fazer as
compras, preparar-lhe-eis as refeições, cuidar-lhe-eis da
roupa, far-lhe-eis a barba... Vou dar as minhas ordens...
Don Rodrigo de Castro bateu as palmas. O secretário e o
camareiro apareceram com ar agravado...

164 - 165


Essa noite retirou-se o vice-rei de Nápoles a seus aposentos
satisfeito consigo mesmo. Estranhou-lhe o ar descarregado a
condessa sua esposa.:
- Ah, meu querido marido! Que semblante desanuviado trazeis!
Há quanto tempo vos não via tão...
- Senhora, é que hoje sucederam-me coisas extraordinárias,
surpreendentes.
- Que coisas?
- No Castel dell'Ovo está um prisioneiro... - e Don Rodrigo
murmurava o seu segredo ao ouvido da mulher...


- Está feita a primeira experiência - disse Frei Estêvão. - E
resultou - confirmava Marco Túlio.
- Como vos sentistes, meu senhor?
- A princípio tive algum receio, quando passava pelos guardas
no adarve ou lá em baixo à saída. Depois, atravessado de barco
o canal que nos separa de terra, caminhei à vontade pelo meio
da gente e parei no mercado a fazer compras, como Túlio me
havia dito. O homem do talho conheceu-me: "Senhor Catizone,

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como está?"... Andei pela praia ao sol. Ah, meus amigos! Estou
aprendendo que rei é o único homem que não tem liberdade...
- Lembrai-vos dos escravos - disse Marco Túlio.
- Até os escravos são mais livres do que um rei. Um dia
chegará para eles a carta de alforria. Rei não tem alforria...
nem quando anda escondido pelo mundo.
Frei Estêvão vigiava pelo postigo da porta o aproximar de
gente. Disse:
- Será melhor, agora, assumirdes, no vestuário e no resto, a
vossa identidade real. Presumo que o vice-rei há-de querer
visitar-vos.
- Em que vos fundais para assim pensardes? - Já que vos
reconheceu...
- Tem sido um amigo inesperado - dizia el-rei trocando de
vestes com Túlio. - Veremos como irá o assunto a seu cabo...
Tinha razão Frei Estêvão. Não mais que um palmo avançara na
parede a sombra da janela, abriu-se a porta e o vice-rei
entrava acompanhado da esposa, do camareiro e do secretário,
postados à entrada guardas e o carcereiro.
Levantou-se el-rei de seu assento e, com extrema cortesia -
Que gentil visita, senhora, fazeis a este pobre prisioneiro...
Não posso esquecer que foi um Medinaceli que esteve presente
em Portugal nas condolências pela morte de minha avó, a rainha
Dona Catarina.
Comovida, a condessa não encontrava palavras, já o conde Don
Rodrigo, como quem não desejava entrar em concessões de
sentimentalismo, dava uma ordem ao camareiro:
- Mandai trazer as espadas.
Entram dois pajens sobraçando espadas que pousam em cima da
mesa.
- Falastes-me outro dia de uma certa espada, não é verdade?
- Sim.
- Podereis distinguir, entre todas essas que aí vedes, a que
me deu el-rei de Portugal?
Acercou-se Sebastião a examinar as espadas. Brilhavam,
suspensos do exame, os olhos dos circunstantes, batia receoso
o coração de Frei Estêvão, que desconhecia o lance, a Marco
Túlio ensombrava-se-lhe o cenho.
- É esta - levantava el-rei na mão, de entre a molhada de
espadas, uma lâmina que faiscava ao sol da janela.

166 - 167


- Excalibur! - exclamou Túlio entusiasmado.
- Não, amigos. Não, Excelência. Vejo o espanto nos vossos
rostos. Isto não é espectáculo. Isto não é sortilégio. Isto é
a verdade, não é assim, senhor vice-rei? - e Sebastião
entregava-lhe a espada, que Don Rodrigo tomava e olhava:
- Sim. É esta a espada. Como é que...?
Mas já Sebastião se estava dirigindo à condessa de Lemos: -
Senhora, vejo cintilar no vosso anular direito um anel que vos
ofereci um dia que passeávamos nos jardins do meu palácio. Se
me não engana a memória...
- De feito - disse a condessa, elogiada pela cortesia de
Sebastião -, tenho um anel que... Mas... Estais a querer fazer
outra vez um passe de magia?

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- Parece? Nem sempre o que parece é, mas às vezes é. Senhora
condessa, nunca desconfiastes de que esse anel tivesse um
segredo?
- Um segredo?
- Um segredo. Premi e movei a mola que se encontra a um dos
lados, a coroa abre-se e lá dentro encontrareis... quê?
o nome de um amigo.
Tomou Don Rodrigo a mão da mulher e fez deslizar o fecho da
pequena caixa. A tampa com a esmeralda abriu-se e dentro o
conde e a condessa, com olhos de espanto, puderam ler...
- Sebastião! - soletrava a condessa, enquanto a boca do
vice-rei desenhava em silêncio a forma da palavra.
- Meu Deus!, - exclamou a senhora.
- Vós sois... - Deus do Céu! - admirava-se o conde.
A condessa mostrava o anel ao secretário, a frei Estêvão, que
se aproximara a espreitar, a Marco Túlio... Don Rodrigo
afastara-se a um canto com Sebastião e dizia-lhe em voz baixa:
- Se vós sois de verdade...
- Eu sou.
- Em que dilema me encontro! Por respeito de meu senhor e rei
Don Filipe... perdoai-me se eu não posso tratar-vos como...
Ah! Deixai-me advertir-vos de que estais a entrar num jogo
verdadeiramente perigoso...
- Não é jogo.
- Um rei oculto, escondido, gera no coração do seu povo um rei
ideal, salvador, desejado... o mito e a utopia...
- Deixará de ser mito e utopia quando eu...
- Abandonai essa ideia. Só vos pode trazer prisão, tortura e
morte.
- Não, não.
- Deixai Portugal ao seu destino...
- É meu dever acudir ao meu reino e ao meu povo.
- Tomai outro lugar em outra parte, onde não sejais
perseguido.
- Não, não.
- Não quereis aproveitar a ajuda que me proponho dar-vos?
- Dessa maneira, não.
- Ah! Sois teimoso.
- Dever não é teimosia.
Olhou Don Rodrigo um momento o prisioneiro fixamente nos olhos
e, com um gesto de desaprovação, aproximou-se da esposa:
- Vinde, senhora, e saiu.

168 - 169


- Alteza - chegava-se Marco Túlio -, que interessante cena
acabastes de representar ainda há pouco.
- Não foi teatro, amigo.
- Agora - disse Frei Estêvão -, sinto-o, o vice-rei de Nápoles
conhece a verdade: que vós sois o rei de Portugal. - No mundo
não há senão duas espadas e dois anéis semelhantes: esses e os
que eu dei de presente, em setenta e oito, em Cádis, ao duque
de Medina Sidónia e à duquesa sua mulher e minha prima.
- Vossa prima? - admirou-se Frei Estêvão.
- A duquesa Dona Ana da Silva era filha de Dona Ana de Mendoza
de La Cerda, princesa de Eboli. Diz-se que a duquesa era fruto

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dos amores adulterinos da princesa com o rei Filipe segundo,
meu tio.
- Sabemos o que distingue esses anéis - disse Marco Túlio -, o
segredo do vosso nome. Mas as espadas? Qual é a marca?
- Muito simplesmente o meu sinal particular: no punho, gravada
a ouro, a fénix, essa ave fabulosa que vivia nos desertos da
Arábia, se imolava no fogo e renascia das próprias cinzas...
- como vós! - disse Frei Estêvão.
- símbolo da imortalidade - rematava Sebastião.
De repente, o vice-rei de Nápoles adoecia e os médicos logo
desenganavam a mulher. Sentindo a morte avizinhar-se, chamou o
filho, Don Francisco de Castro:
- Meu filho, estou prestes a dar contas a Deus do que fiz
durante a vida. Para descargo da minha consciência, desejo
afiançar-te que o homem que está preso no Castel dell'Ovo é o
verdadeiro e legítimo rei de Portugal, Dom Sebastião. Sei-o
bem, examinei-o e reconheci-o. Recomendo-to e peço-te que o
trates bem.
- Assim se fará, meu pai.
- Minha querida esposa - continuou Don Rodrigo, tomando nas
suas a mão da mulher -, mandastes chamar Frei Estêvão, como
vos pedi?
- Mandei. Não vos inquieteis. Ele deve estar a chegar.
- Eis-me aqui, senhor conde - entrava Frei Estêvão. Ordenou
então Don Rodrigo que o deixassem a sós com o frade, que, mal
fecharam a porta, se ajoelhou à cabeceira da cama do doente,
para melhor o escutar.
- Irmão Sampaio - murmurou o moribundo. - Os meus cabelos
brancos viram muita gente, muitos reinos, guerras, novidades e
mudanças. Vivi uma vida cheia. Recordo-me do dia em que fui
solenemente armado cavaleiro. Fiz juramento de lealdade ao meu
rei, de defender a minha pátria, a justiça, os fracos, contra
a tirania, os abusos do poder... Eis que ao fim da minha
existência me vejo a braços com um dilema mortal. Ai de mim!
Que importa que eu o reconheça como o rei Dom Sebastião de
Portugal, se ele não deve passar de um charlatão e impostor
aos olhos de Sua Majestade o meu rei?... E, no entanto, para
morrer com a minha consciência tranquila, mandei-vos chamar
junto de mim, pois tenho uma coisa importante a dizer-vos.
- Dizei, senhor conde.
- Para salvar a vida dele das galés, da morte talvez, é
preciso convencê-lo... - e Don Rodrigo de Castro, revirando os
olhos com receio de que o ouçam, faz sinal a Frei Estêvão que
aproximasse o ouvido e segredou-lhe o resto do pensamento,
acenava o frade que sim com a cabeça...

170 - 171


Quando Frei Estêvão saiu, Don Rodrigo mandou chamar Andres
Jovalina e ditou-lhe carta para Sua Majestade el-rei Filipe.
Falava-lhe do prisioneiro, dizia-lhe que entre Dom Sebastião e
aquele charlatão nada havia de comum, sugeria que, uma vez
condenado às galés, devia ser mostrado em cidades de Espanha e
de Portugal para que o povo visse bem que não era Dom
Sebastião...
No cais, na cinza da cerração, a sombra de Frei Estêvão esboça

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um adeus apagado... Desapareceres, diluíres-te, dissolveres-te
no nevoeiro é a tua sina, rei escondido, rei da bruma, rei do
nada. Não te resta senão a fuga, para noutro lado, com os
amigos, poderes prosseguir a imperial missão. Entretanto, os
teus fiéis servidores cobrem-te a retirada, até que também
eles... também nós possamos partir ao teu encontro...


- ... corre aqui o rumor de que o prisioneiro enviado pelo
duque da Toscana não é o mesmo homem que esteve preso em
Veneza e que esse se encontra em França...
- Ides condená-lo às galés? - perguntou o secretário. -Assim
me recomendou Sua Majestade.
- Por mim era a forca.
- Selai a carta e enviai-a a seu destino.


Quase se não vêem, envoltos no nevoeiro da manhã seguinte, mas
ouvem-se e vibram dolentes no ar por toda a cidade os bronzes
plangentes nas campãs dos templos, os do Duomo, de Santa
Chiara, de San Domenico Maggiore, de San Lorenzo, pelo
falecimento do vice-rei de Nápoles.
O pajem de el-rei caminha na rua por entre a gente que passa.
No mercado compra pão e fruta:
- Quanto é?
Sem pressas nem alarmes dirige-se para o porto. Está chamando
os passageiros a sineta de uma nau que vai partir para França.
O pajem sobe a escada do portaló e não tarda que o barco
levante âncora e se faça ao largo.

172


Não esperou Don Francisco de Castro, o novo vice-rei de
Nápoles, que arrefecesse o corpo do pai. Desejoso de agradar a
el-rei Filipe terceiro, toma rápidas decisões. Manda vir à sua
presença o prisioneiro.
- Ah! Senhor impostor! Vou finalmente desmascarar-vos. - Nada
há que desmascarar, senhor conde. Aliás, que é uma máscara?
Vós ontem éreis filho de vice-rei, hoje sois vice-rei. A
máscara de vosso pai, que Deus tenha, pelos vistos não se vos
ajusta. Ah! A vida está cheia de extravagâncias...
- Sois doido.
- ... de inverosimilhanças. Sabeis? São as inverosimilhanças a
única verdade. Sabeis quem o disse?
- E eu a dar-vos trela! Senhor camareiro, mandai entrar essa
mulher.
- Não acreditais? - continuava Marco Túlio, enquanto o
camareiro se dirigia para a porta. - Olhai para mim. Vós
afirmais que eu sou impostor e eu esgrimo convosco que sou o
verdadeiro rei de Portugal. A minha loucura contra a vossa. A
minha máscara contra a que me desejais afivelar...
Fazia o camareiro entrar na sala Paola Galardetta.

173

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- Túlio! - correu Paola para o marido. - Que fazes aqui? Quem
é esta gente que me trouxe à força?
- Reconheceis, senhora, este indivíduo? - perguntava Don
Francisco.
- É o meu marido.
- Vosso marido?
- Sim, o meu marido Túlio.
- Túlio?
- Marco Túlio Catizone, da Calábria.
Marco Túlio interrompia:
- Essa mulher engana-se nas máscaras.
Virava-se para a mulher:
- Não me reconheceis, senhora Paola Galardetta? Vistes-me com
vosso marido Marco Túlio em Messina. Não estais lembrada do
rei Dom Sebastião?
Paola Galardetta olhou-o indecisa:
- Ah! Sois mesmo vós, meu senhor? Que confusão a minha! Não é
possível. Deixai ver... - e examinava-lhe de perto o rosto, as
mãos... - Não. Não pode ser. Que confusão a minha! Vós não
sois o rei... Tu és Túlio. Eu conheço bem o meu marido...
- Estais enganada. Olhai bem. -... mas...
- Basta! - diz o conde, fazendo ao camareiro sinal para
retirar a mulher.
- Mas eu desejo falar ao meu marido... - gritava Paola,
olhando atrás, levada pelos guardas.
- Pois bem, senhor... - ia o conde a dizer, interrompeu-o
Marco Túlio:
- ... impostor, não, senhor conde. Eu sou Dom Sebastião, rei
de Portugal. Isso foi armadilha contra mim. Proclamo com toda
a solenidade que essa mulher se enganou. Eu sou o rei. Não
poderia dizer outra coisa sem ofender Deus.
- Levai-o - ordenou o vice-rei aos guardas.
- Aonde me levais? - estranhava Marco Túlio o caminho tomado
pelos guardas.
Não responderam. Caminharam pelo Lungomare e em breve,
chegados ao porto, descem pela rampa que leva à borda de água
a tomar um bote que logo rema em direcção à galera ancorada ao
largo.
Do meio dos fardos de mercadorias, pipas de vinho, sacos de
cereal e especiarias, destaca-se a figura de Frei Estêvão de
Sampaio a olhar com ar angustiado o bote que se afasta. Ele vê
o prisioneiro subir a bordo e o bote a regressar. Já se moviam
os remos da galera, como se tivesse estado à espera daquele
especial condenado, e não tardou que se sumisse no horizonte.
No cais, os guardas punham pé em terra.
- Daqui a dias - ouve Frei Estêvão um guarda dizer -, chegará
a Puerto de Santa Maria.
Puerto de Santa Maria! Levam-no para Espanha, para Sanhicar de
Barrameda. Que hei-de fazer? Contávamos poder escapar-nos em
breve, adiantou-se o novo vice-rei. Certo que é preciso
conservá-lo na ilusão, no balouçar da incerteza... Sinto-me
indeciso por que caminho tomar. Continuar a apoiá-lo como
se...? É garantir aos olhos dos Castelhanos a identidade que
se lhe emprestou. Dói-me a alma pensar no que ele possa vir a
sofrer. Bem sei, bem sei. Eu e ele sabíamos, ao entrarmos
neste jogo, sabemos o risco que corríamos, que corremos para
cobrir el-rei. Hesita-me a alma agora?... Vais abandonar o

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fiel Túlio?... Não, Frei Estêvão de Sampaio, não.

174 - 175


No porto, um destes dias uma nau largará para Espanha e
Portugal. Ela há-de fazer escala em Cádis... Aonde nos levará
esta aventura?...


E Frei Estêvão afastava-se dali, sem notar que também espiavam
a cena os olhos de Nuno da Costa.


VIII - Massacre em Sanlúcar



E se isto for o começo da morte?... Essa chusma de
desgraçados! É ver o que suam e se esforçam a remar,
acorrentados às bancadas pelas grilhetas nos tornozelos.
Alguns desmaiam, doentes, sob as chicotadas dos verdugos, não
aguentam a cadência imposta pela voz do timoneiro. Levam-nos e
deitam-nos ao mar... Porque me pouparam a mim, o único, de
remar?... e me deram camarote para meu pouso?... e me tratam
com acatamento?... De muita feição se nasce e de muita forma
germina a vida: água, vento, remo, vela, pinheiro bravo,
pinheiro manso, mastro ou remo... capitão ou forçado, rei ou
mendigo... E muda-se de mil maneiras: o rei passa a mendigo...
o meu senhor rei... o mendigo torna-se rei... Minha
Majestade!... Posso rir-me da morte. Realeza é dignidade que
não morre. Não foi isto que ele me ensinou?... Rei não
morre... eu não morro, ainda que me matem... Ânimo, Marco
Túlio, sustenta-me esta luta.
Enfadonhos os dias. Surgisse agora uma esquadra de corsários e
nos abalroassem e houvesse abordagem, refrega, mortos e
feridos, fogo a bordo, naufrágio... mas navegamos de conserva,
que espanhóis não arriscam nestas águas infestadas.

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Valha-nos a invernia, o mar crescido e agitado, os bofes
revirados. La vita è bella!... Às vezes, a violência da
borrasca força a esquadra a procurar o resguardo de um porto.
Ficamos então dias sem conto o pano forrado e o vento a
assobiar nas enxárcias.
- Onde estamos, mestre?
- Puerto de Palma.
Vai a minha ignorância a perguntar-lhe onde fica Palma, já o
homem desandara. Algures em Espanha, presumo. Daquela vez que
viajei até Portugal fiz caminho por terra, palmilhei,
burriquei, juntei-me a almocreves. Nada sei dos percursos
marítimos destas bandas. Numa aberta do temporal, olho-a da
amurada. Uma fortaleza, cercada de poderosas muralhas, em
anfiteatro no arco da baía. Laranjais em volta, de pomos de
ouro que se sentem sumarentos. Apetecia-me um. De entre o

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casario, espetam-se no ar agulhas de catedral gótica. Recomeça
a ventar e a chover. Arrepio-me. Aconchego o gibão ao corpo.
Recolho-me. Corre-me o pensamento a outras paragens. Onde
estarão eles agora? Tantos senhores e tão importantes! Tinham
vindo de toda a parte a reconhecê-lo, a apoiá-lo...
Dispersados pelo duque da Toscana, impedidos pelo vice-rei de
Nápoles, malquistos em Veneza, devem ter regressado aos seus
fojos de exilados, em França, na Flandres, em Roma... E Frei
Estêvão, meu último companheiro? Havíamos selado um pacto...
Renunciei a mulher e filha por mor de... Queira Deus que tudo
acabe de feição. Compensá-las-ei... Frei Estêvão deve ter
ficado desorientado com o meu inesperado e forçado embarque.
Ah! Mas aquilo não é aço de destemperar. Ele há-de aparecer a
secundar-me... E onde pairará a ave de rapina do Nuno da
Costa? Tenho contas a ajustar com ele...
Madrugada sem nuvens, pusemo-nos de novo a navegar rumo à
eternidade, que não sei para onde me levam. Céu e mar e,
depois de um dia e uma noite e outro dia, fundeámos numa
enseada abrigada, pejada de naus, galeões, carracas, barcas,
barinéis. Nas nossas costas uma cidade branca e sua fortaleza
na ponta de uma península.
- Cádiz! - ouvi bradar. - El puerto de Santa María. Mais uma
paragem? Em Veneza muitas vezes ouvi falar dela. Aqui esteve
el-rei de Portugal, antes de partir com o seu exército para
África. Aqui... Os guardas vêm tomar-me, atam-me as mãos e
fazem-me descer para um bote. Remam para terra. Desembarcamos.
Patenteia-se-me uma vasta praça cheia de gente, rodeada de
barracas de feira onde se canta e bebe, ruidosa, colorida, e,
de súbito, Minha Alteza Marco Túlio Catizone, italiano,
calabrês de nação, prisioneiro do rei Filipe terceiro, dá-se
conta de que caiu num mundo diferente. Tagarelam sua
algaravia, riem-se, movimentam-se, cantam e dançam. Penso isto
como se os italianos, da Venécia à Calábria, não tagarelassem,
não dançassem, não rissem. A estranheza está nos meus ouvidos,
nos meus olhos, no sentir, no meu desacostume. Ao verem-me
passar pelo meio deles, calculo a estranheza que também
sentirão, para mais indo eu preso. Homens morenos, garbosos,
costas como tábuas, suíças farfalhudas, de fazer cócegas no
beijo das mulheres. Na cabeça, sombreiros pretos, redondos, de
pequena copa rasa, derrubados sobre a fronte, toutiço à
mostra, no jeito machão do derriço, às vezes pousados sobre o
lenço gitano que lhes cinge a cabeça, da testa à nuca, de onde
pendem sobre as costas as pontas da atadura. Meias-calças até
abaixo do joelho, debruadas de veludo, chanfradas na dobra da
perna. Botas de cano ou aguçado sapato de pelica baia e salto
alto, jaleco bordado sobre o colete, camisa branca, faixa
larga, rubra, em volta da cintura, varita de mimbre na mão.

178 - 179


Grupos a pé, parados, discutem negócios, redingote pendurado
do ombro esquerdo. Cavaleiro que passa com a namorada na
garupa, o braço esquerdo dela a enlaçar o homem, a mão direita
a
segurar-se à pega que improvisou passando o lenço por debaixo
da cauda do animal. Saias rodadas, aos folhos, de belas moças

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morenas, o pé pequeno de meia branca a espreitar na chinela
preta, corpete justo, mantilha pelos ombros, abano de penas a
sombrear o rosto. Junto ao carro desatrelado, carregado de
sacos de grão e farinha, estadulhos esguios e rodas grandes,
pensa o lavrador os bois, ante o olho vigilante do rafeiro que
ao lado se deitou a descansar. Manada de murzelos andaluzes e
seus poldros. Um garoto de pé descalço, manta às riscas pelas
costas, estende à esmola o chapéu roto, abana outro, de
cócoras, o fogareiro, a caçarola a fumegar... A variedade das
gentes deveria humanizar-nos. Saiu o homem em seus barcos a
descobrir a Terra, daqui, de Lisboa, que há outras índias,
outras estrelas, que é redonda, e tornou-se cidadão do mundo.
Calábria minha, minha Itália, minha pátria, terra de meus
pais, da minha mulher, da minha filha... Estes dirão:
Andaluzia minha, minha Espanha... E os do meu rei dirão: meu
Portugal que foste roubado e lutamos para recuperar... De
todos os humanos a pátria é a terra toda, com seus ares, suas
borboletas e flores, as cores da pele, os seus deuses, ícones
e amuletos, as suas danças e cantares, batuques, castanholas e
adufes, as feras dos bosques, a fénix dos desertos... Mas em
cada aldeia as pessoas continuaram nos seus ninhos e
perguntam: porque vêm os homens com as suas espingardas
roubar-nos as borboletas e as flores, irar os nossos deuses,
ícones e amuletos? Minha pátria são as minhas danças, os meus
cantares, os meus batuques, as minhas castanholas... a fénix
do meu senhor rei...
Tinha o mar desaparecido da nossa vista, quatro léguas andadas
por caminhos de olivedo, vinhas e laranjais alvejaram ao longe
as casas de um pueblo blanco.
- Sanlúcar de Barrameda - disse um guarda.
Não tardou a ver-se o Guadalquivir e a linha azul do mar, e,
junto às marismas, pelas canas de juncos, patinharem de manso
brancas garças e flamingos cor-de-rosa. Pudesse ter eu a paz
deles, que um pressentimento enegreceu-me o susto quando, ao
metermos pelo burgo amável, dei com o vulto do castillo de
Santiago a carregar ameaça no alto da colina. Para lá nos
dirigimos e lá me levaram a entrar. Estas muralhas mouriscas,
maciças e insondáveis, consentirão saída?... Sobre uma vasta
plataforma quadrada, as muralhas nuas da mole enorme, com seus
baluartes em cada canto e os torreões redondos no centro. A
entrada enfia cá em baixo, nos fundamentos, quase subterrânea,
para o pátio interior onde mil janelas me espiam. Levaram-me
para cima até ao adarve e, por um dos baluartes, a uma torre
sextavada que o reforça e aí me deixaram prisioneiro. Deus se
amerceie de mim.
- Quem é o senhor da terra? - pergunto ao capitão dos guardas,
procurando confirmar o que guardava na memória. - Sua
Excelência o senhor duque de Medina Sidónia - responde,
virando costas e olhando o carcereiro a fechar a cancela.
Uma fresta é a minha luz, sobre o patamar do baluarte, uma
nesga do canto oposto do pátio interior e, por cima da muralha
sem ameias, lá adiante, a povoação e o pôr do Sol sobre o rio.
Como seria bom agora estar ali, algures numa taberna, a beber
una copita e a comer langostinos ao som das castanholas e do
sapateado de uma linda bailarina de raça!...

180 - 181

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Medina Sidónia, foi o que ele disse? Ouvi esse nome a meu
senhor rei. Don Alonso Pérez de Guzmán, o derrotado da
Invencível Armada, aquele duque enviado à corte de Lisboa pelo
rei de Espanha, a tentar dissuadir o sobrinho da jornada de
África... Se ele, o meu pobre senhor, o tivesse escutado!...
Cumulou-o de cortesia e despediu-o mais à esposa com o
presente de uma espada e um anel. Conde de Niebla, senhor de
Sanlúcar de Barrameda. Meu senhor mo contou...
- Estais a ver o que eu vejo? - perguntava Frei Estêvão. - O
mesmo que os melros empoleirados nesses choupos - respondeu
Frei Crisóstomo da Visitação, caminhando lesto. -As casas, a
gentinha que vai passando... Estuguemos o andar. Tenho pressa
de embarcar para Sevilha.
- Luzida companhia! Dirige-se para a igreja de Nuestra Senora
de La O...
- Nem reparava. Quem são?
- Pasmai, homem de Deus. Sua Excelência Don Alonso Pérez de
Guzmán e sua esposa Dona Ana da Silva, duques de Medina
Sidónia.
- É um baptizado. A ama toda embiocada de véus, com a criança
ao colo... Dona Ana é a que vai ao lado?
e o marido do outro... padrinhos...
logo atrás, o pai da criança, Don Manuel... - Quer dizer que
baptizam o neto?
- Assim é.
Vestido escuro, saia rodada de brocado lavrado, leves pregas
até aos pés, sapatos pontiagudos de verniz preto rendados de
branco na raiz do peito, mantilha sobre o cabelo negro a
descair pelos ombros e costas, luvas de punhos rendilhados, o
terço de contas brilhantes pendente da mão esquerda, leque na
direita, gargantilha de pérolas no pescoço alvo, a duquesa
aparentava pouco mais de quarenta anos. Don Alonso, cara
rapada, nariz rectilíneo, cabelo comprido a tapar as orelhas,
chapéu derrubado, gola de folhos, capa a deixar ver, na
ondulação do andar, a espada cinta, grande colar encadeado
sobre o peito, inculcava os seus cinquenta. Já entravam o
portal mudéjar da igreja.
- Muito formosa a duquesa - notava Frei Estêvão.
Não lhe respondia o companheiro, entretido a observar a
comitiva, coifas, capelinas, toucados armados à sevilhana,
sobre alto pente o véu rendilhado, chapéus de aba larga,
coifas de couro, plumas, rostos chamorros, bigodes, peras,
moscas a saltarem do branco das golas de rendas encanutadas,
vestidos de seda, cabelos em cachos pelos ombros, botas de
cano alto até o joelho, luvas, punhos rendilhados, laços de
organdi, filigranas, veludos, brocados matizados, cadeias,
jóias, guarnições de passamanes, cores de rostos avivadas por
unguentos de pez e cera, pomadas, pós dourados... xailes e
ricos mantões de Manila, mantilhas, corpinhos lavrados...
- Sabeis que vos diga, Frei Estêvão? Tanta fedúncia para um
anjinho se candidatar ao Céu! Devem ter cu grande para cagar
este ror de trampa.
Aproximavam-se. Entravam no templo. Chegavam perto do
baptistério...
"Gaspar, ego te baptizo in nomine Patris et Filii et Spiritus

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Sancti" abençoava o oficiante. Sorrisos em volta: Mais uma
alma no grémio da Igreja...
"E se um dia for uma menina?" ouviram uma voz conhecida
perguntar ao pai do catecúmeno, quando no adro se formavam
grupos a conversar.

182 - 183


Atentaram no perguntador. Era um fidalgo magro, alto, barba
preta em bico, vestido à veneziana...
- Mas é...! - sussurrou Frei Crisóstomo.
- ... o nosso amigo Nuno da Costa! Vamo-nos daqui, irmão. É
bom que nos não veja.
"Se for uma menina" ainda ouviram Don Manuel responder, "há-de
chamar-se Luísa Francisca."
"Dona Luísa Francisca de Guzmán. Soa bem." Afastaram-se dali
em direcção ao cais na margem do Guadalquivir.
- Não sei se valeria mais a pena dar um salto a Portugal...
- Não, amigo - respondeu Frei Crisóstomo. - Muito perigoso.
Tenho em Sevilha conhecimentos bastantes a angariarmos
dinheiro para tentarmos libertar Marco Túlio.
Olhava o prisioneiro pelas grades da janela, quando, atrás de
si, lá fora, soaram passos e a porta se abriu.
- Suas Excelências o duque e a duquesa de Medina Sidónia -
anunciou um guarda.
Marco Túlio sentiu-os entrar, mas conservou-se de costas.
Quando os visitantes se aquietaram e se fez silêncio, só
então, empertigando o busto e tomando jeito de altiva
majestade, se virou lentamente.
Estranha visão! pensou o duque surpreso. Vinte e cinco anos se
passaram, que também em mim alguma transfiguração operaram...
mas este homem, descontados os anos volvidos... Como minha
mulher está pálida!...
- Porque desviais de mim o olhar, senhor Don Alonso de Guzmán?
Ficastes branca como a cal, senhora duquesa.
- Calai-vos - rosnou Don Alonso.
- Reconhecestes em mim o infeliz rei vosso amigo, que jamais
apareceria hoje diante de vós no miserável estado que vedes,
se tivesse escutado então os vossos conselhos...
- Eu não...
- ... e deles tivesse sabido aproveitar-se. Mas o meu destino
era outro e eu não podia contrariá-lo.
Tentou o duque dar volta ao teor do diálogo:
- O rei que dizeis pagou com a vida a sua insensatez. Foi
melhor ter morrido...
- Teria sido.
- Salvou ao menos a honra...
- Remexeis numa ferida a sangrar. - Se sobrevivesse, seria uma
tragédia.
- Nem calculais quão grande! A minha vergonha foi outra.
Perder uma batalha não é perder a honra. Não travastes vós a
vossa contra o corsário Drake?... Ganhando, cobrir-vos-íeis de
glória. Perdendo, não foi a honra que perdestes... E
sobrevivestes... e eu posso agora reconhecer o nobre fidalgo
meu amigo que teima em não me reconhecer a mim...
- Um descarado impostor. Reconhecer-vos? - disse agastado Don

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Alonso, afastando a conversa do desagradável rumo que estava
levando.
- Um dia em Cádis - repunha-a o prisioneiro no trilho que
escolhera -, junho de mil e quinhentos e setenta e oito...
- Em Cádis?
- ... outro viso, bem diferente, cordial e urbano, mostrava o
vosso semblante. Navegava eu para África, ancorava aí a minha
armada. Que acatamento me fizestes!
- Acolhia el-rei Dom Sebastião.
- A mim.
- Aí chegaremos, senhor impostor.

184 - 185


- Pena, senhor duque, que finjais. A isso, sim, se chama
imposturice...
- Basta! Refreai a língua ou mandar-vos-ei pôr a ferros.
- O empenho que pusestes esse dia, e a senhora duquesa... um
derradeiro e desvelado empenho... em me dissuadir da ida a
África! Como tínheis razão! Nesse tempo...
- Mandai-o calar, senhor - disse Dona Ana ao marido.
- Calai-vos. Ouvi agora o que tenho para vos dizer... - disse
Don Alonso com crescente incómodo.
- ... nesse tempo era eu de vós amado e respeitado. Agora... -
e Marco Túlio, buscando não ser teatral, abria os braços,
desolado...
- Calai-vos.
- ... objecto de desprezo e de ódio... Ferros? Vou estando
habituado... Vede. Nem ousais fitar-me...
Dona Ana, de embaraçada, fazia menção de dirigir-se para a
saída. O duque olhou em redor, como a inspeccionar a cela: -
Ronda costumeira... visitar os doentes encarcerados... dever
cristão...
- É pena - continuava Marco Túlio, o olhar para lá das paredes
e do tempo. - Havia-vos eu feito presente - será oportuno
dizê-lo? - de uma bela espada, lembrais-vos? - e o olhar agora
chegava de longa viagem e adejando tornou-se-lhe a empoleirar
nos olhos do duque.
- Espada?
- Ainda a tendes? Mandai-a vir. Entre muitas outras. Eu vo-la
mostrarei.
- Desejais brincar?
- Senhor - interveio o mordomo, que aguardava no limiar da
porta. - Desmascaremo-lo de vez. Deixai-me ir pelas espadas.

186


- Pois bem - respondeu o duque. - Ide - e fez ao mordomo um
sinal imperceptível. O mordomo desandou a cumprir a ordem.
- E vós - voltava-se Túlio para a duquesa -, senhora minha
prima...
- Que impudência! Eu não sou vossa prima.
- Por menos que isso sereis enforcado - ameaçou o duque.
- Dona Ana da Silva - continuou calmamente o prisioneiro - é
filha da princesa de Eboli, Dona Ana de Mendoza e La Cerda.

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Corre-lhe nas veias sangue de el-rei Filipe segundo, meu tio.
Portanto...
- Ah! senhor! - batia o pé a dama. - É de mais!
- Não vos enfadeis, não vos enfadeis, que tenho ainda uma
confidência a
fazer-vos...
- Meu marido, vamo-nos daqui.
- ... Vejo brilhar na vossa mão direita um anel que me não é
desconhecido. Dei-vo-lo por essa altura.
- Vós?
- Eu.
- Como se apanha um mentiroso! Na mão direita?
- O charlatão denuncia-se - exclamou o duque.
- Na minha mão esquerda é que... - e a duquesa ingenuamente
mostrava a esquerda onde faiscava uma enorme esmeralda.
- Sim, sim, claro! Na vossa mão esquerda - emendava, sem se
descompor, Marco Túlio. - Que engano o meu! Esta minha
memória, com a idade... Era isso que eu queria dizer... E
sabeis, senhora, que o vosso anel esconde um pequeno segredo?
- Um segredo? - estranharam o duque e a mulher.

187


- Só de mim conhecido - fazia Túlio render a suspensão.
- Só de el-rei. E do joalheiro, é evidente. Mas esse já não
pode falar, que Deus levou há muito a sua velhice... Olhai. Há
aí uma mola. Se a premirdes, o espelho com a pedra preciosa
desanda e, dentro, encontrareis um nome amigo.
Estendeu a duquesa a mão ao marido, que premiu a mola e fez
deslizar a coroa do anel com a esmeralda. Ele e a mulher
espreitaram: no fundo da pequena caixa posta a descoberto,
gravado a ouro, o nome de Sebastião!
- Céu! - exclamou Dona Ana. - Vós sois...
- ... um bruxo! um bruxo! - dizia o duque, sem largar a mão da
duquesa e fulminando Marco Túlio com o olhar.
Entrava um pajem com uma braçada de espadas que pousou sobre a
mesa. O duque, decidido, desabafou:
- Aí tendes as espadas, senhor feiticeiro. Examinai-as.
Examinou Marco Túlio as espadas uma a uma:
- Senhor duque - virou-se para Don Alonso -, a espada que vos
dei de presente em Cádis não se encontra aqui.
- E se eu vos asseguro que...
- Não se encontra aqui, senhor - retorquiu o prisioneiro com
autoridade. - Se ainda a tendes, mandai-a vir, entre outras.
Acenou o duque ao mordomo, que da porta fez sinal para fora.
Um segundo pajem entrou com outra molhada de espadas, Marco
Túlio examina-as com demorado cuidado. Grande é a expectativa
dos presentes. Por fim, o prisioneiro pega numa e estende-a a
Don Alonso:
- Aqui tendes, senhor duque, a vossa espada.
Perturbado, o duque procurou esconder a estupefacção:
- Um belo passe de magia, sim senhor. Estou a pensar em
conservar-vos a vida e em recomendar-vos para bobo da corte.
Entretanto, veremos se porfiais nas vossas manhas e
imposturas, quando estiverdes a tormentos... - e Don Alonso de
Guzmán

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- Vinde, senhora!
deu o braço à esposa e saiu seguido da sua comitiva e dos
pajens malavindos com o carrego das espadas, que lhes
escorregavam dos braços...
Rir? Chorar? Que me passou pela ideia para desatar a mimar a
cena que vi a meu senhor em Nápoles? Palavras, gestos, voz,
catadura... auto burlesco?... Um pequeno deslize o da mão da
duquesa - direita? esquerda?... Pode ter sido fatal... Certo é
que desassosseguei a alma do duque. Está convencido de que
eu... Para obedecer às ordens do seu rei ameaça-me com
tormentos, da ameaça virá às obras e depois...
Já a noite caiu e na parede o luar estampa as cruzes da janela
a agourarem morte. Assim deitado no meu catre, horizontal e
calmo, bem estendido, as mãos sob a nuca, a olhar o nada...
quase a posição de um homem falecido em santidade, em seu
redor os olhos tumefactos e as coroas de flores emurchecidas.
Acaso outra a posição que me espera, vertical, pendente de uma
corda, em redor o esvoaço de abutres pacientes à espera da
podridão. Não fosse a cerviz quebrada, a fronte descaída sobre
o peito, seria até postura garbosa e digna de rei: aprumo,
verticalidade da espinha moral, os pés desapoiados como de
anjo que bateu asas rumo ao Céu... Chorar? Rir? Arrastemos a
comédia até ao desfecho da tragédia...
Já me vêm buscar?
Aproxima-se gente... o ruído das chaves na fechadura... O
carcereiro tornou a fechar a porta, depois de ter deixado cá
dentro aquele luar dominicano especado à porta.

188 - 189


Confissão in articulo mortis?... Soergo-me nos cotovelos...
- Estou a afeiçoar a vista à semiescuridão - disse a voz
conhecida.
- Frei Estêvão! - levanto-me de salto. - Vós aqui?
- Por mal dos meus pecados. Prenderam-me em Sevilha.
- Em Sevilha?
- Tentava com Frei Crisóstomo arranjar dinheiro para comprar a
vossa libertação...
- E Frei Crisóstomo?
- Tinha ido a um convento dos arredores.
- Como souberam de vós?
- Denúncia, suponho.
- Nuno da Costa?
- Ele anda por aí. Vimo-lo no baptizado do neto dos duques.
- Está ao menos na ilusão de que eu...
- Está. Não se deu conta da troca operada em Nápoles, da
partida de el-rei para França...
- Se o apanho!
- Quem nos apanhou foi ele.
- E agora?
- Não auguro nada de bom.
- Não há muito ameaçaram-me de tortura.
Frei Estêvão caminhou até à janela, deitou até à foz do rio o
olhar e o pensamento - "... tenho de o salvar..." - e
voltou-se:
- Podem até condenar-vos à morte - disse preocupado. - Não

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vejo senão uma maneira de vos tirar deste aperto.
- A mim?
- Sim, a vós.
- Como se vós não estivésseis também em apuros, aqui preso
comigo.
- Escutai - sentou-se o frade no catre ao lado de Marco Túlio,
falando com serenidade. - Antes que vos torturem, confessai a
verdade: quem sois, que eu vos aliciei para representardes
esta comédia, que não sois português, que nada mais tendes a
ver com o assunto, que Deus salve Sua Majestade o rei
Filipe... Rogai que vos deixem partir para a vossa Calábria,
para a vossa mulher e filha... Assim, eles só terão a haver-se
comigo...
- Como admiro, padre, a vossa lealdade, o vosso devotamento, o
vosso sacrifício!
- Sou eu que vos admiro a vós. Eu sou português, vejo a minha
pátria, as suas possessões, domínios e entrepostos, que
abraçavam o mundo inteiro, subjugados, roubados, aniquilados,
o meu rei fugido na última das misérias, escondido como
malfeitor... enquanto vós...
Marco Túlio levantou-se, deu alguns passos à volta da cela,
mimou o padre a botar pensamento e olhar pela janela fora até
ao rio e parou em frente do amigo:
- Escutai, Frei Estêvão - disse com o seu lépido ar de
comediante. - Não vejo senão uma maneira de vos tirar deste
aperto. Antes que vos torturem, confessai a verdade: quem
sois, que eu me dispus por meu alvedrio a representar este
entremez, que sois português e que coisa será de estranhar se
um português queira servir o seu rei? que mais nada tendes a
ver com o assunto senão a vossa lealdade. Espanhol não faria o
mesmo por Sua Majestade o rei Filipe, que Deus salve? Rogai
que vos deixem partir de novo para o sossego do vosso convento
no exílio... Assim eles só terão a haver-se comigo...

190 - 191


- Deus seja louvado! - abraçava-o Frei Estêvão. - Em vosso
infortúnio ainda encontrais ânimo de vos rirdes.


Aos vinte e dois dias do mês de setembro do ano da desgraça de
mil e seiscentos e três, no planeta Terra, naquele pequeno
ponto que é a desembocadura do rio Guadalquivir, à vista de
dunas e pantanal, de flamingos e garças, em Sanlúcar de
Barrameda, aos subterrâneos do castillo de Santiago por onde
escorre a cloaca de mijo e trampa de Suas Excelências os
senhores de muita milha em redor, que têm desde nascença lugar
cativo na bem-aventurança do paraíso celeste, o farrapo de Sua
Paternidade o doutor em teologia Frei Estêvão de Sampaio é
conduzido entre guardas, na companhia do desgraçado
companheiro el-rei Marco Túlio Catizone, para o antro das
torturas.
Esbirros torcionários e os juízes doutores Mandojana e Negrón
estão-nos aguardando e todo o arsenal de aparelhos que
arrancam às consciências a mentira da verdade. Azorragues de
corda, látegos de tiras de couro cru com pontas de ferro, a

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roda e o cavalete, o potro e a polé, tenazes de arreigar
dentes e unhas, ao lume o panelão com pez ou chumbo a ferver,
cínica extrema-unção ministrada pelo piedoso zelo dos algozes:
bebê-lo-ás pela boca, pelos olhos, pelas orelhas, pelos
narizes...

per istam sanctam unctionem indulgeat tibi Dominus quidquid
per os, per visum, per auditum, per odoratum deliquisti...

por esta santa unção perdoe-te o Senhor tudo o que pela boca,
pelos olhos, pelos ouvidos, pelo olfacto pecaste...

Despem-nos. Prendem-nos com cadeados pelas mãos a argolas na
parede. Dois inquiridores, ladeados por verdugos, ocupam-se de
Frei Estêvão:
- Como te chamas?
- Quando eu era alguém - responde o frade com o calor do ânimo
revoltado -, lembro-me de ter nome Estêvão de Sampaio. Há
quantos séculos foi isso? Agora não sei. Vós quitastes-me a
identidade.
- Gracejas?
- Não estou nu? Nasci agora. Ainda não fui baptizado.
Como um raio ergueu-se e fustigou-o de alto a baixo o
azorrague do carrasco. Do rosto ao sexo rasgaram-lhe as carnes
as pontas de ferro. Nem um grito se lhe ouviu, avermelhavam-se
gotejando grossos vergões, olhava sinistra a pupila pela
pálpebra derribada:
- Deus vos perdoe - cuspiu palavras e sangue.
- Padre - disse o inquiridor -, se queres salvar a tua alma,
confessa a verdade.
- Que verdade queres que eu confesse?
- Ajudaste este impostor a fazer-se passar pelo rei de
Portugal?
- O prisioneiro de Veneza não é impostor - respondeu Frei
Estêvão jogando no equívoco. - Ele é el-rei Dom Sebastião de
Portugal.
A voz de Marco Túlio fez-se ouvir:
- Deixai o frade em paz. O assunto é comigo. Eu sou o rei Dom
Sebastião. Permiti que eu vá à presença de meu primo, Sua
Majestade o rei de Espanha. Ele me reconhecerá e me acolherá.
O doutor Mandojana trocou um olhar de cumplicidade com o
doutor Negrón e disse:
- Se é verdade o que dizes, porque é que nem todos os teus
companheiros de Veneza o acreditaram?
- Eu não sou artigo de fé - respondeu Túlio. - Não se trata de
acreditar, mas de verificar...

192 - 193


- Não vás por aí, amigo - murmurou Frei Estêvão, mas Túlio não
o ouviu.
- ... e eles verificaram e tiraram a prova, quando vacilaram
como São Tomé.
- Nós sabemos, nós sabemos - disse Mandojana.
- Conheceis um dos vossos, chamado...? - ia a perguntar
Negrón, mas Mandojana deteve-o:

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- Calai-vos, doutor. Ainda é cedo para mostrarmos as provas.
- Tendes razão - respondeu Negrón. - Mas chega de conversa.
Vamos pô-los a cantar - e fez sinal aos algozes. Frei Estêvão
foi içado na polé, Marco Túlio atado ao cavalete. A luz dos
archotes fazia dançar duendes e fantasmas pelas paredes e
alumiou os gritos que atroaram o castillo de Santiago e
fizeram gelar os corações na povoação em redor.
- Que gritos aqueles, meu marido, que gritos eram, pela
madrugada dentro, pela madrugada fora? Trago a alma assustada
daqueles lances de dor e o coração agitado de negro presságio.
Mandaste-o torturar ao desgraçado?... sabendo, como eu sei, a
verdade sobre ele...?...
- Não me tortureis a mim vós, senhora, mais do que já estou.
Cumpro ordens de Sua Majestade.
- E Sua Majestade ordena que o tortureis desta maneira? -
Ordena que lhe arranquemos a confissão da mentira e depois o
condenemos à morte.
- Duque, meu marido. Lembrai-vos de que ele é o rei, de que
ele é meu primo.
- Não me atormenteis. Nada posso fazer... Ainda se me fosse
dado realizar um sonho profundo que acalento no peito há algum
tempo...
- Que sonho?
- Escutai, senhora, e guardai bem calado este segredo. Na
Catalunha há já subterrâneos sinais de libertação. Portugal um
dia vai acordar, tenho a certeza...
- Então, se o rei está vivo, vós...
- ... e o meu sonho é que, nesse dia, também a Andaluzia...
- Projecto ousado!
- Não será para os meus dias, sinto-o, nem para os do meu
filho. Mas esse nosso neto, que agora baptizámos...
Calemo-nos, que vêm entrando alguns do meu conselho. Guardai
segredo... Don Irrigo, Don Nuno! A que devo esta visita tão
matutina?
- Deus vos dê os bons-dias, senhor Don Alonso, Deus vos
guarde, senhora duquesa - respondia Nuno da Costa. - Vínhamos
saber se os prisioneiros já confessaram a verdade.
- Aguardo notícias a todo o momento.
- Das masmorras do castelo já não transuda qualquer SOM...
- Devem ter desmaiado exânimes os coitados! - murmurou a
duquesa.
Vinham entrando, pressurosos e alarmados, os juízes doutores
Mandojana e Negrón:
- Senhor Don Alonso... - Senhor duque...
- Que se passa?
- O prisioneiro, senhor... el-rei, senhor... não é el-rei.
- Não é el-rei? - admirava-se o duque. -Que dizeis? -
empalidecia Nuno da Costa.

194 - 195


- Lembrais-vos, senhor Don Nuno, do rol que nos destes com os
sinais peculiares de el-rei?
- Sim. São fidedignos, garanto-vos. Verificámo-lo em Veneza.
- Precisamente. Pois nós verificámo-lo aqui, hoje. - E...?
- O homem que aí está não é o prisioneiro de Veneza - afirmou

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o doutor Mandojana.
-A mão direita, a perna direita perfeitamente iguais às
esquerdas... - explicava o doutor Negrón.
nada de sardas na face, nas mãos... não lhe falta nenhum
dente...
- Marco Túlio! - espantou-se Nuno da Costa. - Como foi
possível?... Então el-rei conseguiu escapar-se para França?...
Como me deixei enganar? Foram mais espertos do que eu...
- Que fazemos, senhor? - perguntavam os juízes.
- Qual a vossa dúvida, senhores? Segui com o processo até ao
fim, como havia ficado estabelecido... - e o duque de Medina
Sidónia olhou a mulher recordando-se da conversa do segredo. -
Em vez de um farsante, tínhamos dois. Vá, senhores. Ide a
vosso mester. Haveremos, com o tempo, de apanhar o outro.
Saíam os senhores, ficavam sós o duque e a duquesa.
- Ele está salvo, meu marido... Só não entendo como é que
este...
- Ouvi dizer que el-rei tinha um criado seu sósia. É este que
está lá em baixo. Ele mais o frade armaram esta farsa, segundo
depreendo das palavras de Nuno da Costa, para proteger a fuga
de el-rei em Nápoles.
- O vosso sonho, meu marido, vai um dia, mais cedo do que
ousais esperar,
tornar-se realidade.


Cheia de gente a praça pública de Sanlúcar de Barrameda.
Curiosidade? Vertigem do abismo? da morte? do medo? do horror?
da tragédia? Visceral?... Num cadafalso montadas duas forcas,
dois carrascos de pé, duas máscaras negras com os olhos a
faiscarem, sem alma. Entre a turba a figura de Nuno da Costa.
Todos esperam a chegada dos condenados. Guardas a cavalo abrem
caminho. O cortejo avança. À frente os irmãos das irmandades,
os confrades das confrarias, os congregados das congregações,
com suas cruzes ao alto e estandartes ao vento. Um arauto vem
bradando:
Justiça que manda fazer Sua Majestade el-rei nosso senhor:
manda enforcar e esquartejar Estêvão e Marco, depois de
cortadas as mãos direitas, por cometerem crime de traição e
perdição de seus reinos...
Com os dois condenados, de mãos atadas e vestidos de uma pobre
túnica amarela, atravessa a carroça a multidão que grita e
ulula vaias e impropérios. A custo se sustêm de pé os
infelizes. Os semblantes chagados revelam em sua passividade
que já venceram o limiar da dor. Param junto ao cadafalso. Os
guardas fazem-nos subir as escadas do estrado, onde os
carrascos os recebem. "Vem cá, meu amor" ouve-se um dizer ao
tomar o braço de Marco Túlio, imagina-se-lhe o riso cínico sob
a máscara. Dois padres aproximam-se, a cruz erguida na mão, a
encomendarem a Deus os infelizes. Na sombra do capuz de um
deles reconhecem Frei Crisóstomo.

196 - 197


Enquanto os algozes se preparam para a função, arrastando-os
para o cepo, Frei Estêvão e Marco Túlio trocam as últimas

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palavras:
- Enfim, irmão, ao menos conseguimos salvá-lo.
- Que lhe acontecerá daqui por diante?
- Deus o guarde!
- Embora eu seja um simples calabrês, alguma coisa de Portugal
morre comigo. Deitai-me a vossa bênção, meu padre. Frei
Estêvão já tem as mãos desatadas, já o carrasco lhe vai tomar
a mão direita, mas antes, olhando para Marco Túlio, traça no
ar o sinal da bênção e deixa então a mão descansar no cepo. A
multidão faz silêncio. O cutelo desce uma vez. Agora trazem
Túlio...
- Deixai-o! - grita Frei Estêvão, o coto no ar a borbotar
sangue. - Deixai-o! Ele tem mulher e filha. Deixai-o! Eu sou o
único culpado.
O cutelo desce outra vez. Os verdugos mostram ao povo as mãos
cortadas a sangrar. Sem demora levam os pacientes para as
forcas, enfiam-lhes os laços nos pescoços, accionam os
alçapões e os dois corpos balançam no ar. A noite vem caindo.
A multidão começa a retirar-se horrorizada. Alguns permanecem
ainda, à espera da carnificina final. Longos momentos até que
a morte esteja assegurada. Depois, os carrascos despenduram os
corpos e atiram-nos ao chão e logo começam a
desmanchá-los à machadada, a golpes de sabre, de facas de
açougue. Cortam-lhes as cabeças, que espetam em forquilhas
erguidas junto às forcas... Este é o braço com que te
abençoei... aí vai pelo ar cair no chão da praça, farejam cães
vadios, a carne fresca, esvoaçam pelo lusco-fusco dos telhados
sombras negras de abutres, as pessoas fogem aterrorizadas, aos
vómitos... Uma posta, eh! boa ucharia! brada numa gargalhada
um dos algozes. Bom assado! Matai a fome, nem sempre há tal
festim... Olhai-me esses corvos escarranchados nas cabeças
degoladas, a debicarem a guloseima de olhos, beiças e
narizes... Não tarda sejam só duas caveiras descarnadas... Uma
coxa, costelas espostejadas, as tripas lançadas pelo ar a
espalharem merda... os corações que abrigaram em si paixão e
amor até ao sacrifício supremo...
A praça está deserta. Cães, abutres, corvos disputam o
acepipe. Nuno da Costa, de olhar sombrio, vai retirar-se lá
adiante. Ao virar da esquina, um frade encapuzado barra-lhe a
passagem.
- Frei...! - reconhece-o ele.
- Morre, traidor! - é relâmpago que logo se apaga o brilho do
punhal.
Lento, lento, verga as pernas Nuno da Costa, as mãos agarradas
ao ventre. Frei Crisóstomo da Visitação desaparece na noite.

198 - 199


Epílogo

"... se é verdade o que dizem..."


Nevoeiro cerrado. Não vejo nada, meu senhor. Vagas
sombras cinzentas, esbranquiçadas, que se esvaem, se me
desfazem em humidade pelo fumo que sou... A laguna?...

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Não. Não se ouve deslizar de gôndola, chape-chape de casco,
bater de remo, respiro de vela. Não se sente pio de gaivota
nem adejar de asa.
Vultos de flamingos e garças, cervos, linces, dunas que se
movem, canaviais ondulantes... sons aquáticos, pântano...
Marismas de Sanlúcar?
Não, não. Marismas do que está por vir... brisa do tempo,
sorvedoiro...
Quem fala? Quem fala? Que vozes são estas?... Ali, ali. Um ano
depois...
Depois?...
... depois da chacina dos infelizes Estêvão e Marco Túlio...
Infelizes Estêvão e Marco Túlio! As suas almas vagam por
aqui...
Estás a ver?
Onde? Onde? Não vejo nada, sombras, fumos, vapores...

201


Ali. João nasceu... mil e seiscentos e quatro... Que João?
O filho de Teodósio de Bragança. Será ele o novo rei... e
acolá...
... nove anos depois de João nascer...
... vem à luz aquela que há-de ser sua mulher... Deus a fade!
Deus a fade!
Queres saber o nome dela? Se me disseres...
Luísa... Luísa de Guzmán, irmã de Gaspar, o novo duque de
Medina Sidónia. Nasce em Sanhicar de Barrameda... Estranha
coincidência!... E então o outro rei? El-rei Sebastião? Bastou
o nevoeiro e desapareceu, desfez-se, sumiu-se?...
Nevoeiro, neblina, bruma... é como o conhecimento humano. Que
sabes tu? Que sei eu? De vez em quando uma réstia de sol... e
pode entrever-se alguma porção de verdade. Queres ver?
Espreita. Aproveita este raio de sol que alumia, lá em baixo,
aquela vereda...
Vejo um peregrino a caminhar para um palácio. Apesar do andar
lesto e determinado, parece velho...
Setenta e dois anos...
Já bate à porta... já está a falar com o porteiro... Quem é
ele? Onde estamos?...
... à porta dos paços do duque Teodósio. Entremos com o
peregrino. Já irás saber quem é...
O duque beija-lhe a mão, dá-lhe a direita ao conduzi-lo ao
salão nobre. O visitante senta-se no trono. Teodósio escuta-o
postado de joelhos aos pés dele. Que respeitoso acatamento!...
Pudera! Reconheceu el-rei no peregrino...
El-rei Sebastião!
... que o vem visitar clandestinamente...
E este menino que, meio escondido, está atentando pela frincha
da porta?
O filho do duque, João, de quem te falei há poucos anos atrás.
Tem doze anos. Será ele quem mais tarde há-de contar o que viu
e que nós estamos também a ver neste momento... El-rei
retira-se. Que majestade!
Costumam as pessoas despedir-se do duque caminhando para a
porta às arrecuas. El-rei sai sem se virar sequer, o duque

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inclina-se quase até ao chão...
Então el-rei está vivo!...
Está vivo nesta altura... e também no ano seguinte... Como
sabes?...
No ano seguinte... Olha além...
O papa Paulo quinto recebe el-rei e manda publicar, como o
antecessor Clemente oitavo, um breve a intimar o rei de
Espanha a entregar o trono de Portugal ao seu legítimo dono...
Coisa de espantar! E Filipe?...
Como da primeira vez, não fez caso... E depois?
Depois... nevoeiro, neblina, bruma... pântano do tempo... O
que vai pelo mundo! Holandeses, Franceses, Ingleses
encarniçam-se a disputar às postas o império português...
Moçambique, Macau, Maluco, Ceilão, Brasil...
Olha as cortes em Lisboa. O infante de Espanha a ser jurado
herdeiro da coroa portuguesa...
... e a epidemia...
... e a fome... Além, em Madrid, morre Filipe terceiro,
sucede-lhe Filipe quarto e o conde-duque de Olivares...

202 - 203


Nevoeiro, pantanal, esfumam-se nove anos... Em Outubro, é
agora o papa Urbano oitavo que recebe el-rei...
... el-rei oitenta e seis anos!...
... no castelo de Santo Ângelo... e emite um terceiro breve a
sentenciar Filipe quarto para que entregue o trono de Portugal
ao seu legítimo senhor...
Estamos em mil e seiscentos e trinta, se bem faço as contas...
... ano em que morre, em Vila Viçosa, o duque Teotónio. João,
com vinte e seis de idade, é o novo duque de Bragança e, três
anos depois, casa com Luísa de Guzmán...
Sebastião ainda será vivo?... Se é, terá oitenta e nove
anos...
Chegará a tempo de assistir ao grande acontecimento... sete
anos mais tarde?...
... Sete anos andados, a Catalunha rebela-se, Portugal
acorda...
... atira a Espanha pela janela fora na pessoa de Miguel de
Vasconcelos...
... e na Andaluzia o duque Gaspar, irmão de Luísa, tenta fazer
o mesmo...
... sem êxito...
... João e Luísa são reis de Portugal...
Nevoeiro, neblina, bruma... passeiam sombras de garças e
flamingos nos pauis do tempo, saltam cinzas de cervos
selvagens pelas dunas movediças dos dias que se escoam,
espreitam fumos de linces nos vultos liquefeitos de carvalhas
que perdem e renovam as folhas dos anos...
... Sebastião, pela lei natural, terá falecido... Onde?
Quando? Como?...
Não vejo nada, meu senhor... Vagas sombras cinzentas, como eu,
como tu... esbranquiçadas, fantasmas, esvaem-se no tremedal do
constante devir...
Espera. Ancoremos um pouco aqui, quarenta e dois anos
depois...

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... mas entretanto não sucedeu nada?...
Por todo o mundo a formiga humana não tem descanso... Em
Portugal?
Porque perguntas, se podes ver como eu vejo?... Os Holandeses
expulsos do Brasil, as guerras com Espanha... a morte de João
quarto...
... a regência de Luísa na menoridade de Afonso sexto...
regência que continua porque o reizinho tem distúrbios
mentais...
... a regente destituída e o governo nas mãos de Pedro, irmão
de Afonso exilado nos Açores...
... e prisioneiro em Sintra... Ficar sem a razão, sem o trono,
sem a mulher!...
... Coisas tristes para se não recordarem...
... a paz com Espanha, o reconhecimento pelo papa da monarquia
portuguesa...
Levou tempo!...
... morte de Afonso, é rei Pedro segundo... Pois agora, olha
ali. De coloridos mármores da Arrábida lavrado, erguem os
canteiros o túmulo de Sebastião nos Jerónimos, o sarcófago a
repousar sobre dois elefantes asiáticos, à maneira dos
triunfos dos Romanos. Pedro segundo o mandou fazer...
... mas os ossos que lá dizem estar...
... os que Filipe segundo pudera arranjar e aí encerrara, a
procurar fazer crer que o rei havia morrido na batalha...

204 - 205


... mas o conde da Ericeira, no epitáfio latino que compôs ao
modo da quarta Geórgica de Virgílio, fez questão de conservar
a dúvida eterna:
Conditur hoc tumulo, si vera est fama, Sebastus...
Está sepultado neste túmulo, se é verdade o que dizem,
Sebastião...
Nevoeiro, neblina, bruma... sombras, duendes, vozes...
Dormes?...
Não sei. Não tenho corpo. Sou fogo-fátuo. Não me posso palpar
a ver se estou acordado...
Olha o dobar dos séculos!... Quantos séculos?
Deixa ver. Um, dois... dois, creio eu... por volta de mil e
oitocentos e cinquenta...
E nada?
Que querias que houvesse? Que esperas?... Sebastianismo,
Quinto Império...
Quimera, utopia... Espera! Há ali qualquer coisa... Ali, onde?
Ali, naquela fábrica de faianças... junto ao rio Vienne... em
Limoges...
Que se passa?
Estão a fazer escavações na igreja do mosteiro... Então não é
fábrica?
... um antigo mosteiro de agostinhos transformado em
fábrica...
O destino das coisas!
Aos frades e ao mosteiro matou-os o jacobinismo da
revolução... Dirige as obras um arqueólogo, o abade Antoine
Texier...

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... sábio de nomeada...
Repara. Parece que encontraram alguma coisa de especial
naquele túmulo, na capela - imagina! - de São Sebastião, no
lado direito do cruzeiro...
São Sebastião!
... contam os velhos que os velhos contavam que ouviram aos
velhos abrigar aquela capela os restos mortais de um rei desse
nome... E como em nenhum reino deste mundo houve outro rei com
esse nome...
... e agora encontram nesse túmulo ossadas humanas... e entre
elas uma medalha de ouro...
Uma medalha? Tem dizeres? Que diz ela?
Tem uma inscrição: SEBASTuS PRIMuS PORTuGALIAE REX...
Sebastião!
... e uma figura de pé, vestida de monge...
O dono da fábrica já a reclama, arranca-a das mãos do
arqueólogo, diz que aquele ouro, fundido, dará um dourado mais
fino para pintar as suas porcelanas...
... o abade Texier barafusta... em vão...
... o outro mostra-se renitente. O abade propõe comprá-la, mas
a parada é demasiado alta para as suas posses... Ao menos -
pede o abade - deixe-o tirar o molde da medalha...
... o homem tem relutância...
... e, antes que o abade tenha ensejo de tirar o molde à
medalha, trata de a mandar fundir...
Que vândalo!

206 - 207


Sobre o sucedido Texier escreve um relatório à comissão dos
monumentos históricos... É o único documento que fica a
perpetuar o caso na memória dos homens...
E os arquivos do mosteiro? Não registam nada?
Os arquivos do mosteiro levaram sumiço com a Revolução
Francesa...
Pobre Sebastião! Nevoeiro, neblina, bruma há-de acabar sempre
por encobrir o que te pertence...
... Dois túmulos, um nos Jerónimos, em Lisboa, outro nos
Agostinhos, em Limoges...
... além do sarcófago da barriga de cães selvagens, abutres e
corvos em Sanlúcar de Barrameda...

208


Notas


1. A história é velha. A dúvida e a esperança surgiram logo,
na tarde da derrota. Ninguém o viu morrer. Houve quem o visse
sair do campo da batalha. Houve quem identificasse, no dia
seguinte, um corpo nu, inchado, chagado, "irreconhecível", no
meio de montões de cadáveres a apodrecer. Nenhum objecto
identificador foi encontrado, e tantos eram até às fivelas dos
sapatos. Morreu? Não morreu? A uns interessava a morte. A
outros a vida, a fuga, a lenda... A história era invulgar e

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desde logo os escritores se apoderaram dela: desde D. João de
Castro, neto do vice-rei da índia, do Padre José Teixeira,
desde Lope de Vega, dramaturgos ingleses, romancistas
franceses, desde dramaturgos e romancistas portugueses como
Camilo, Antero de Figueiredo, Aquilino Ribeiro, desde
historiadores e investigadores como Bluteau, José Baião e
outros, até aos mais recentes como Queirós Veloso, Veríssimo
Serrão, A. Belard da Fonseca, F. Sales Loureiro, Mário
Saraiva, Manuel J. Gandra e outros, para já não falar de
sebastianistas como Vieira e Pessoa.

211


2. Não me passava pela ideia retomar o assunto, tanto mais que
me sentia cansado do romance dito histórico e, sobretudo, da
trabalheira que me dava o meter-me nos meandros e intrigas da
história. Desejava trilhar outros caminhos... Mas acontece que
apareceu a desafiar-me Patrick Lizé, archéologue plongeur,
espreitador de intrigas da história, que sobre o assunto
andava a escrever um guião para um filme e uma banda
desenhada: Le deuil impossible. Este "luto impossível" era
precisamente o da tese de que as ossadas ditas de Dom
Sebastião, que se encontram no túmulo dos Jerónimos, não são
do rei. Fizemos um acordo para a escrita de um romance que
desse lastro ao referido guião. Mas cedo, quando juntos
estabelecíamos a estrutura da peripécia, entre tantos caminhos
cruzados de hipóteses verosímeis, o meu amigo no seu guião
optava por umas e eu, partindo de Belard da Fonseca, aceitei
caminhar por outras alicerçado em indícios que, em relação ao
que anteriormente a ficção tem explorado, me pareceram
originais. Este romance responde a esse desafio ficcional.
Devo a Patrick Lizé todo um acervo de fotocópias de documentos
importantes respigados nos arquivos de França, Itália,
Alemanha, Espanha e Portugal, completado por outra
documentação que eu próprio procurei.

Também estou em dívida para com o Prof. Doutor Walter de
Medeiros. O texto italiano das canções que a trupe dos
comediantes, no capítulo VI, cantam, dançando, pelas ruas de
Veneza foram-me amavelmente sugeridas pelo meu sempre pronto
Amigo, respigadas em bailias do trecento e do quatrocento.

3. Não se pense que é minha invenção o rumor de que o rei
andou disfarçado por aí depois da batalha e a devassa sobre
isso mandada fazer pelo cardeal-rei; que é minha invenção o
sermão dos Jerónimos (pretendi, neste caso, dar uma explicação
para a controvérsia se foi Frei Miguel dos Santos ou o P.e
Luís Álvares quem fez o sermão, cujo texto existe na
Biblioteca Nacional); que são invenção minha as pessoas que
apoiaram o rei em Veneza; ou as cheias nesta cidade na noite
em que ele foi libertado da prisão; ou a existência do rol das
marcas físicas de el-rei; nem o ter havido um traidor cujo
nome é documentado em carta do embaixador de Espanha em Veneza
ao seu rei; nem a carta do vice-rei de Nápoles ao rei Filipe a
sugerir uma troca de prisioneiros no Castel dell'Ovo; nem a
chacina de Sanhicar de Barrameda; nem o mosteiro dos

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agostinianos em Limoges, com a sua capela de São Sebastião;
nem outros muitos pormenores que seria fastidioso citar. São
esses pequenos, grandes, estranhos sucessos o fundamento deste
romance.

4. Mas sobretudo o que mais me empenhou foi recriar e encher
personagens tão ricas como um rei Dom Sebastião, na sua lenta
e dolorosa transformação de rei soberbo em pobre farrapo
humano abatido e transfigurado, como um Frei Estêvão de
Sampaio e um Marco Túlio Catizone, que levam a sua lealdade
até ao supremo sacrifício da própria vida.

5. Verdade? Mentira?... Problema que se não põe desde que a
ficção inicia o seu incontestável poder de criar...



COLECÇÃO LITERATURA PORTUGUESA
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Mas é no Rosto e no Porte Altivo do Rosto;

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Marcello Mathias:
Doze Sonetos e uma Canção;

José Viale Moutinho:
Pavana para Isabella de França;

Adolfo Simões Müller:
A Torre de D. Ramires;

António Rebordão Navarro:
Mesopotâmia;

João Gaspar Simões:
Fernando Pessoa: Breve História da sua Vida
e da sua Obra;

João Fezas Vital:
Graças a Deus.



Data da Digitalização


Lisboa/Amadora, Agosto de 2002



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