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A MULHER DE HONG-KONG

FRANK GOLD

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A MULHER DE HONG-KONG

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA

Capa

estúdios P. E. A.

Luís Campos

Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda.

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passíveis de procedimento judicial

Editor: Francisco Lyon de Castro

Edição n.° 35 51413265

Execução técnica: Gráfica Europam, Lda.,

Mira-Sintra - Mem Martins

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Já vi gente morrer. No hospital. Numa rua de Nova Iorque, no bosque de

Neuilly e num beco escuro de Marselha. Vi pessoas morrerem de morte natural e de

buracos de balas. Morte natural, de qualquer modo. Agora mesmo, neste momento,

um homem jazia ali, morto bem próximo de mim. Apenas desta vez, era diferente.

Porque se em qualquer lado morrer é morrer, uma coisa é um pequeno orifício na

linha do coração, por onde a vida foge na forma de um fio de sangue... e outra bem

mais feia de olhar é o efeito de uma .45 que atravessa o crânio de lado a lado. Tudo

fica numa massa horrorosa, para onde não é aconselhável olhar outra vez. Eu sei

que na guerra é pior. Mas é outra coisa, também. E isto acontecera ali mesmo, a uma

esquina mal iluminada de Nathan Road. Nathan Road fica em Hong-Kong. E o

meu nome é Chasey. Al Chasey. Sou repórter criminal.

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CAPÍTULO I

Eu desembarcara na véspera no aeroporto de Kai Tak, para uma

permanência de seis dias na cidade de Hong-Kong, onde de 12 a 15 de Setembro se

efectuaria no Bay View Hotel o Congresso de Correspondentes Estrangeiros no

Médio e Extremo Oriente. Mais de oitenta representantes da imprensa de todos os

países de língua inglesa estariam presentes, incluindo cerca de trinta dos Estados

Unidos.

A minha tarefa dentro do jornalismo é a de repórter criminal, e mais

precisamente a de dirigir a “Coluna” do Sun, de Nova Iorque. À primeira vista dá a

impressão de que eu estaria deslocado em Hong-Kong, isto se partirmos do

princípio de que não me encontrava nesta altura em gozo de férias. Mas a verdade é

que, encontrando-se o correspondente do Sun, George Brannigan, impossibilitado

de comparecer, o meu director, Ralph Pearson, resolvera que o Al Chasey podia dar

lá um salto, e de um golpe matava dois coelhos: estaria presente como observador

no Congresso e traria de volta para os Estados Unidos uma série de artigos para a

“Coluna”. Foi assim. Eu ainda não me dera bem conta de que ia de um momento

para o outro realizar um dos sonhos da minha vida, quando Ralph inquirira:’

“Quando pode partir?” “Não sei... amanhã...”, retorqui com um sorriso idiota.

“Okay”, declarou ele, “peça a Miss Moore que lhe entregue a sua passagem para o

avião desta noite. Tudo o resto está tratado. Boa viagem.” E pronto.

Foi assim que no princípio da tarde do dia seguinte, envergando gabardina

clara e fato tropical e segurando uma mala pequena na mão, eu descia do avião da

B.O.A.C. que me transportara desde a última escala. Depois de ter percorrido as

oito mil milhas de um percurso que começa no aeroporto John Kennedy e passa por

Roma, Atenas, Carachi e Singapura, para terminar num ponto algures no Sul da

China, chamado Hong-Kong. E reflectia que não havia engano e que era bem eu, Al

Chasey, o rapaz de Nova Iorque, quem nessa manhã radiosa de sol punha os pés na

cidade mais fascinante e misteriosa do Oriente. E perigosa também, segundo parecia

- centro de espionagem, crime e acção. Onde acontece tudo o que é possível

acontecer... de pior. Onde quem tiver poucos escrúpulos pode enriquecer depressa...

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ou morrer mais depressa ainda. Onde as mulheres dão tudo o que têm, e têm mais

para dar que em qualquer outra parte do mundo. Tudo isto eu ouvira dizer de

Hong-Kong. E TUDO ISTO E MUITO MAIS VEIO TER COMIGO EM

HONG-KONG.

Um estranho numa cidade estranha. Estranha nas gentes, nos costumes, no

que se vê e naquilo de excitante e explosivo que se sente como sismo violento

sacudindo o interior da terra, ou vulcão fazendo vibrar as entranhas na procura

desesperada de ponto vulnerável para a expulsão das suas lavas incandescentes. Lava

que pode formar torrente, que vem do Inferno e arrasta para o Inferno tudo o que

encontra no caminho. Frente à qual a vida humana tem tão pouca importância

como a de um inseto. Lugar onde se pode sobreviver? Sem dúvida. Quatro milhões

de pessoas são uma prova. Em que condições? Bem, essas não são agradáveis de

ver. Os três milhões e meio, que são as vítimas, que o digam. A diferença para os

quatro milhões foi a que por razões diferentes se manteve afastada da torrente. Ou

que, por razões mais diferentes ainda, ficou acima dela. Mas se Hong-Kong é tudo

isto, é também um refúgio. Porque ao alcance da vista se ergue o dragão formidável

que é a China. E a China justifica Hong-Kong. E Hong-Kong tem de ser aceite

assim, e é inútil imaginar poder modificá-la, porque doutra forma não seria Hong-

Kong.

Fora exactamente o Bay View, em Cameron Road, o hotel designado para a

minha permanência. E se era certo que quase uma centena de jornalistas se

encontravam naquela altura na cidade, ou em vias de chegar, a verdade é que o Sun

sabe fazer as coisas, e o bom do Brannigan tinha quarto reservado havia um mês no

Bay View Hotel. Só que agora quem se ia refastelar em aposento de luxo era eu, Al

Chasey, enquanto o pobre George adormecia as complicações de estômago numa

clínica de Singapura. E, se querem saber, direi sinceramente que não o lamentava.

Eu sempre o avisei que demasiado álcool dava cabo de um tipo. Mas George

Brannigan é o sujeito mais teimoso que já encontrei na minha vida.

Cameron Road é uma artéria movimentada. E dizer isto sobre uma rua da

cidade pode não a caracterizar definitivamente, porque todas o são. Mas o que

acontece é que se falarmos de uma rua do Bairro Wanchai, na “Ilha”, o adjectivo

mais aconselhável não poderá nunca ser “movimentada”, mas qualquer outro muito

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mais expressivo. Mas fixemos que Cameron Road, com os seus letreiros gritantes,

escritos em inglês e chinês, de cada lado da rua, é apenas movimentada.

A entrada do Bay View não é sumptuosa, deixando contudo adivinhar que

para lá da grande porta rotatória o clima que se respira é de grande ambiente. O

porteiro indiano que me veio abrir a porta do táxi apanhou a maleta, fazendo

questão de me levar igualmente a gabardina. Eu não quis desapontá-lo.

O átrio era espaçoso e povoado pela fauna heterogénea de todos os átrios de

grandes hotéis. Na recepção exibi o passaporte ao ocidental que me atendeu, e pela

pronúncia soube que era inglês. Tratava-se de um indivíduo novo e simpático, mas

que apresentava já no rosto, e especialmente nos olhos, os traços que uma vida

demasiado agitada deixa sempre impressos.

- Mister Chasey, não é?

- Sim... acho que sim - anuí. - Pelo menos é o que aí diz.

Julgo que aceitou a minha palavra, porque encolheu os ombros e foi

consultar os registos. Acho que, quer a fotografia do passaporte tivesse sido

substituída por outra ou o nome falsificado, o facto não o incomodaria o bastante

para telefonar à polícia.

E quando pensei em polícia, reflecti que depois do banho e de mudar de fato

a primeira coisa que faria antes mesmo de um sono reparador era ir visitar alguém.

Esse alguém chamava-se John McDermott e desempenhava nessa altura apenas as

funções de chefe da Divisão de Detectives da Polícia de Hong-Kong. Uma das

tarefas mais ingratas deste mundo - trabalho que apenas poucos poderiam

desempenhar. E um desses poucos era precisamente o capitão John D. McDermott,

ex-Scotland Yard, que eu conhecera em Londres como tenente da Polícia

Metropolitana e voltara a encontrar depois, mais vezes. Para ele eu era o Good Old

Chasey. Para mim, ele era o meu amigo John D.

O rapazote da recepção voltou pouco depois, mas desta vez acompanhado.

Antecedia-o alguém de certa importância ali dentro - o gerente, sem dúvida. Era um

parceiro elegante como um manequim masculino de Madison Avenue, um pouco

mais leve apenas. Trajava fato cinzento-claro de corte britânico, as linhas do rosto

tinha-as tão vincadas como as do fato, e os olhos e o cabelo eram negros. Enfim,

um indivíduo à altura do ambiente.

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- Em nome do Bay View Hotel desejo-lhe as boas-vindas e uma feliz estada.

É uma honra para nós, Mister Chasey.

Deixava cair as palavras bem articuladas com um toque forçado de

deferência, mas apesar disso o conjunto não era desagradável. Fora dali devia ser um

fulano simpático.

Agradeci, depois do que ele retirou do chaveiro a chave correspondente e a

entregou a um rapazinho oriental de farda azul que surgira como por encanto ao

meu lado.

- Conduz Mister Chasey ao número quatrocentos e cinco.

Por essa altura verifiquei que o porteiro já saíra, e trotei atrás do miúdo até ao

elevador, que nos conduziu ao quarto andar. Os olhos marotos do rapaz não

paravam de me observar, e quando lhe fitei o rosto notei que lhe faltavam dois

dentes da frente, o que só servia para acentuar o ar malandro e espertalhão.

O quatrocentos e cinco ficava à esquerda da saída do elevador e para lá nos

dirigimos, eu sempre um pouco atrás e os olhos brilhantes do garoto a espiarem-me

sorrateiramente. Pouco antes de alcançarmos o quarto que me fora destinado, a

porta do fundo abriu-se para dar passagem a alguém que começou a andar para nós

num passo balouçado e provocante. Esse alguém era um serzinho notável

embrulhado num casaco muito leve de pele macia que lhe contornava o corpo, que

tinha muito que contornar. Os cabelos louros puxados para o alto encimavam o

rosto encantador num adorável ninho de cegonha. O narizinho arrebitado virou-se

para mim à sua passagem por nós e os olhos verdes fitaram descaradamente os

meus enquanto os lábios vermelhos carnudos compunham um ligeiro trejeito

sensual.

Quando a visão acabou de passar, o miúdo olhou para mim com aquele seu

ar sabido e comentou apenas num inglês enrolado:

- Bom, hem, mister? Conhecedor. Deixei que escancarasse a porta do

quatrocentos e cinco e pousasse a maleta sobre a cadeira, e inquiri interessado:

- Ouve cá, que idade tens? Falou entusiasmado:

- Doze anos. O meu nome é Mike. Nasci em Hong-Kong. Grande cidade!

Conheço tudo. Gente. Mulheres. Posso arranjar, mister. Senhor diz como quer, eu

trago.

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Inspirei fundo e percorri descontraidamente o quarto com a vista. Era

luxuoso, de facto, e as paredes forradas de azul davam ao aposento um clima

repousante que a cama esplêndida no outro extremo do salão assegurava. Todo o

mobiliário, de resto, era rico e confortável. Ao fundo, uma porta de chapa de vidro,

que deslizava lateralmente, dava para uma grande varanda que era quase terraço.

Podia dispor ainda da sala de banho contígua e de dois telefones nas mesinhas

elegantes de cada lado da cama. Um lustre de dimensões apreciáveis pendia do tecto,

e este fora pintado na mesma cor das paredes mas em tom um pouco mais claro.

Concluí definitivamente que o ambiente me agradava e sorri para o rapaz, enquanto

do bolso extraía uma nota pequena que ele sumiu na algibeira quase antes de eu ter

acabado de a tirar para fora. Mostrou o intervalo entre os dentes.

- Tudo o que quiser, mister...! - e piscou-me os olhos miúdos, que já tinham

visto tanto em doze anos como os meus em trinta.

Esgueirou-se para o corredor fechando cuidadosamente a porta atrás de si, e

eu dirigi-me para a varanda. O panorama que contemplei era deslumbrante. Por

sobre os telhados irregulares e coloridos podia alcançar-se o cenário incomparável

do porto e da baía e, mais para lá, a ilha de Hong-Kong. Sobre as águas, que

reflectiam os raios quentes do Sol, as embarcações, às centenas, flutuavam coladas

umas às outras, e o mundo que as habitava adivinhava-se tão intenso como o das

gentes que enchiam as ruas e habitavam nelas, ou debaixo dos telhados irregulares e

coloridos. E até o ar que me entrava pelas narinas tinha um sabor diferente de tudo

o que até aí respirara, e esse cheiro, como o ruído que me chegava aos ouvidos e que

vinha de toda a parte, subindo desde o porto, era de tal modo poderoso e transmitia

com tamanha força a presença do vulcão que expelia lavas incandescentes, que as

veias me pulsavam mais intensamente e me senti irreversivelmente arrastado a sair

para as ruas, a misturar-me com a multidão e a penetrar naquele mundo fascinante e

desconhecido.

Mas o que fiz foi voltar para dentro, correr os vidros, tirar os sapatos e o

casaco e deixar-me cair pesadamente sobre a cama. A longa viagem, antecedida pela

excitação da partida, extenuara-me. E Hong-Kong estava ali. Podia esperar. E o

banho e o meu amigo John D. McDermott também.

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CAPÍTULO II

Quando acordei do sono profundo que tomara conta de mim já o quarto

fora invadido pela escuridão e apenas, a espaços regulares, a parede fronteira à janela

era iluminada por uma tonalidade verde que provinha do anúncio luminoso do

outro lado da rua. Acendi um cigarro e ali, no escuro, onde apenas a ponta

incandescente brilhava, eu tinha a sensação de me encontrar num quarto de hotel

algures na cidade de Nova Iorque. Apenas o ruído que me chegava lá de fora era

distinto, embora em relação ao de horas atrás houvesse diminuído sensivelmente.

Liguei o pequeno candeeiro ao lado da cama, consultei o relógio e levantei o

auscultador. Quando a voz do outro lado atendeu, falei:

- Pode mandar-me o jantar cá acima?... Bem, desde que não seja comida

chinesa, pode vir qualquer coisa!

Desliguei com a convicção de que “o outro lado” ficara ofendido.

Simplesmente, eu tenho ideias pessoais sobre o que me entra no estômago, e

embora admita que haja comida oriental tragável, continuo, mesmo a oito mil milhas

de casa, a preferir a alimentação ocidental.

Levantei-me e, depois de me ter desembaraçado da roupa e extraído da mala

tudo o que precisava, encaminhei-me para a casa de banho.

Levei vinte e cinco minutos a barbear-me e a tomar o duche, após o qual, e

devido também ao facto de ter dormido cinco horas, me senti como novo. Saía do

quarto de banho como as crianças vêm ao mundo quando bateram à porta. Era o

jantar.

- Entre! - disse distraidamente, enquanto esfregava vigorosamente a cara com

a loção de barbear.

A porta entreabriu-se para deixar passar uma mesinha de rodas que

transportava realmente o meu jantar. Só que a empurrá-lo não entrou um rapaz, mas

sim uma rapariguinha interessante de olhos em amêndoa que ao ver-me soltou uma

risada infantil e continuou a aproximar-se enquanto eu procurava desesperadamente

cobrir-me com a primeira coisa que apanhei à mão. Colocou o tabuleiro bem

pertinho de mim, mirando-me com o mesmo interesse com que observaria um

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artigo americano de exportação, depois do que soltou nova risadinha e, voltando-me

as costas, desapareceu. “Bolas”, pensei, “estas chinesinhas devem ser levadas da

breca!” Olhei o espelho e a minha figura, enrolado como estava no tapete felpudo

que apanhara do chão, era a de um indígena da Nova Zelândia.

Quando dei por terminada a operação de vestir-me, atirei-me com toda a

gana ao jantar que me haviam preparado. Soube-me bem, e quando acabei acendi

um cigarro e fui até à varanda. A cidade à noite era um apelo a que eu não podia

resistir.

Saí. John D. e o presidente do Congresso, a quem eu ficara de me apresentar

assim que chegasse, podiam esperar até amanhã. Porque esta noite pertencia-me.

Ao ver-me, o rapazote da recepção precipitou-se para mim.

- Deseja que lhe sugira algum local agradável, Mister Chasey?

- Bem - concordei -, desde que seja um sítio onde eu possa sentir que estou

em Hong-Kong e não noutro lado qualquer ...

- Nesse caso, deste lado da cidade e próximo daqui, permito-me recomendar-

lhe o Golden Bamboo. Ao cimo da rua, do lado direito, mesmo à esquina de

Cameron com Nathan Road.

Agradeci e descolei. Subi Cameron Road, tal como me fora aconselhado. Os

letreiros luminosos eram o suficiente para iluminar o pavimento, pelo que a

presença dos candeeiros semeados pelos passeios era supérflua. Claro que o

raciocínio lógico é que eles tinham sido ali plantados antes das tabuletas luminosas.

Satisfeito com a dedução, continuei até à esquina com Nathan Road. E mesmo que

o tipo da recepção não me tivesse fornecido a indicação rigorosa do local, eu

chegaria lá nem que estivesse embriagado. As letras de néon a formar as palavras

Golden BamBoo desciam desde o topo do edifício até três metros do solo. Meia

dúzia de marinheiros faziam à porta uma algazarra de tal ordem que se devia ouvir

do outro lado de Victoria Bay, e a meia dúzia de mulheres que lhes faziam

companhia contribuía decisivamente para o resultado. Consegui furar por entre o

grupo e atravessar o cortinado de cana de bambu que ocultava o interior. E não era

só isso o que ocultava o interior, porque lá dentro a cortina de fumo era tão espessa

que nos dava a mesma impressão de quando entramos na sala de um cinema depois

de as luzes se apagarem e a sessão já começou - uma pessoa tem de se habituar

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primeiro.

Os meus olhos aperceberam de início os contornos esbatidos e depois, a

pouco e pouco, os vultos desenhando-se com mais nitidez até aparecerem as

pessoas. Homens, mulheres e raparigas que ainda não eram mulheres, mas que

sabiam já tudo o que as mulheres que frequentam lugares como aquele precisam

saber. O balcão ficava ao fundo, a toda a largura, e a sala do rés-do-chão era

formada por pequenos compartimentos tapados com reposteiros do género do da

entrada com dragões vermelhos e dourados e separados por espaços onde haviam

sido colocadas mesas de verga rodeadas por coxins pintados de vermelho berrante.

As mesas estavam todas ocupadas, e pelos vistos os compartimentos também,

porque de lá saíam risadas, gritinhos e casais colados com grude, e entravam outros

pares. E às vezes não se tratava apenas de pares, mas sim de um tipo com uma

fêmea em cada braço. O elemento feminino, aliás, era mais numeroso, e o que logo

se tornava evidente era que a fauna que habitava o local se caracterizava pelo facto

de os homens, salvo raras excepções, serem todos ocidentais e as garotas chinesas. E

o certo é que, embora ali estivessem misturadas raças diferentes e nacionalidades

distintas, a harmonia era completa, o entendimento total e os espíritos e os corpos

moldavam-se por completo.

A iluminação não era de modo algum intensa, ali. Muito pelo contrário.

Chegava apenas para diferenciar, se percebem o que quero dizer, e era fornecida por

balões coloridos pendurados do tecto e de suportes nas paredes. Também esses

pequenos balões ostentavam o tal dragão vermelho e dourado, e tal insistência dava

a entender que se tratava do distintivo da casa, embora eu não conseguisse à

primeira tentativa estabelecer qualquer ligação entre Golden Bamboo e um dragão

dourado.

As raparigas da casa estavam vestidas com trajos tradicionais de bom gosto

subidos até ao pescoço e abertos de cada lado, sobre as pernas, até quase às coxas.

Cheong Sam, é como lhe chamam. As cores eram agradáveis à vista, e aquilo que

não era vestido, mas que o vestido deixava ver, ou adivinhar, ainda mais. Havia

também raparigas que não eram da casa, e mulheres européias até. Enfim,

encontrava-se ali de tudo, de marinheiros a tipos importantes que cheiravam a

massa, e de raparigas que somente queriam dinheiro sem lhes importar donde ele

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vinha a outras que procuravam apenas sensações fortes.

Depois que desisti de arranjar mesa consegui, após algum esforço, alcançar o

balcão, onde me empoleirei num tamborete desocupado entre dois marinheiros que

discutiam acaloradamente.

- Uísque - pedi ao barman, um chinês de cara de pergaminho que limpava

escrupulosamente o tampo do balcão.

- Gelo, mister?

- Simples.

Os marinheiros eram franceses e a causa da discussão nunca a cheguei a

perceber. Só sei que na altura em que, já irritado com os perdigotos e palavrões que

se entrecruzavam defronte do meu nariz, eu ia entrar na conversa, o que se

encontrava à minha esquerda, um franganote de rosto rosado e imberbe, me tocou

no ombro e proferiu, zangado:

- Eli, toi, muda-te!

Eu ia responder-lhe que, a sair dali, só se fosse para lhe dar uma surra,

quando compreendi que o seu objectivo era trocar comigo para ficar ao lado do

outro. Fiz-lhe de bom grado a vontade e a discussão prosseguiu, mas agora eu já não

queria saber. Entretanto a bebida chegou. Emborquei-a de um trago e encomendei

outra.

- Vai afogar-se, mister?

Virei-me para quem falava. Quem era encontrava-se do meu lado esquerdo e

as palavras, proferidas num tom melodioso, saíam de entre dois lábios carnudos e

húmidos. Esses pertenciam a um rosto que encerrava toda a beleza misteriosa de

uma mulher daquelas paragens, e os olhos, negros e brilhantes, captavam os nossos

e a gente mergulhava neles e não sentia vontade de voltar à superfície. Devia já

encontrar-se ali quando eu mudara de lugar, e interroguei-me sobre como pudera

não reparar nela. Vestia de maneira diferente das raparigas da casa, embora de modo

semelhante. O corpo fazia assim, e depois assim, e assim, e todo o conjunto

provocava reflexões profundas.

Deixei que a bebida chegasse, molhei nela os lábios e inquiri em seguida:

- Quer fazer-me companhia?

Os olhos negros continuavam a fitar os meus e reflectiam tanta candura

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como os de cãozinho à procura do dono.

- “Companhia”... como, mister?

A voz era suave como luar de Agosto e o inglês dela tinha restos de

cantonês.

- Numa bebida. E pare de me tratar por mister!

- Sim, mister...

E sorriu, mostrando os dentinhos, belos como marfim trabalhado.

- Afinal, em que ficamos?

- Onde acha melhor, americano

1

?

- Não é isso. Beber... que é que bebe?

- O mesmo que você, americano. Pedi o que ela queria, e fixei-lhe de frente o

rosto amoroso.

- Ouça, Flor de Lótus, ou lá como é o seu nome: o meu é Chasey. Al Chasey.

Percebeu?

- Xeisi Alxeisi. Percebi. Nome bonito.

Só quando lhe mostrei o passaporte a questão ficou arrumada, embora ela

tivesse passado a considerar o nome menos bonito.

- E o teu?

- Mae Leung. Gostas?

- Muito.

- E de mim? Não foi preciso estudar a resposta.

- Sim. Gosto de ti, “Flor de Lótus”.

- És um homem rico, Al? Descaramento não faltava a estas garotas.

Sinceridade, talvez. Por isso tratei de ir esclarecendo:

- Ouve, “Flor”: não sou homem rico. O patrão é avarento e não me dá

dinheiro suficiente para que tu possas tentar esfolar-me. Portanto tira daí a ideia.

Okay?

As sobrancelhas bem desenhadas arquearam-se-lhe um pouquinho

- Que quer dizer “esfolar”?

1

Em inglês o advérbio where, sendo empregado para a locução adverbial em que, significa

vulgarmente onde

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- Quer dizer, por exemplo, tu quereres dinheiro para me fazer companhia.

Compreendes, ou isso é novo para ti?

Quando ela assimilou o que eu lhe dissera, os olhos negros tornaram-se

subitamente maiores, chamejando intensamente, e a beleza do rosto de porcelana

acentuou-se mais ainda. Falou então depressa, furiosamente:

- Estás enganado, americano! És mau e eu já não gosto de ti. Gostei há

bocado, porque tu parecias bom e simpático, e eu gostei dos teus olhos e das tuas

mãos. E eu não recebo dinheiro por gostar. Eu vou para a cama com um homem

quando me apetece, mas não por dinheiro. Gostava de ti. Não gosto já. Vou-me

embora!

Senti-me de repente constrangido, de um modo que não é vulgar suceder-me.

E envergonhado, também. Pousei os meus dedos sobre a mão pequenina dela e

procurei-lhe o olhar, que neste momento transmitia apenas desgosto.

- Lamento, Mae. Desculpa. Vamos ser amigos. De acordo?

Os lábios distenderam-se um pouco num sorriso ainda um bocadinho triste,

mas logo a seguir o rosto iluminou-se de novo.

- Compreendo, Al. Mae Leung não se enganou. Tu és bom. Gosto de ti por

isso. Muito. Mas és também homem forte, não és, Al?

Acabei de entornar o que restava da bebida e sorri-lhe de volta.

- Sou. Até encontrar outro mais forte que eu, como dizem os heróis das fitas

do Far-West.

- E com mulheres? Soltei uma gargalhada. - Bem, isso é outra questão... Por

que não procuras tu própria a resposta?

Inclinou-se ligeiramente para mim. Pude aspirar-lhe o hálito quente e o

perfume suave. Trincou ao de leve o lábio inferior com os dentinhos brancos, como

se reflectisse, e sugeriu logo:

- Vamos embora daqui? Limitei-me a pagar ao barman a despesa, e sem

esperar pelo troco ajudei Mae a descer do tamborete, no que ela cooperou

passando-me os braços pelo pescoço. Direi mesmo que foi mais além,

permanecendo uns quinze segundos colada a mim, a cabeça inclinada levemente e

os olhos brilhantes.

Saímos. Cá fora era agradável, depois do ambiente viciado do lugar, respirar

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de novo o vento fresco que subia da baía. O grupo de marinheiros debandara já,

certamente para local mais recolhido. Mae conduzia-me pela mão, e era bom ter um

guia assim na cidade desconhecida. Descemos a continuação de Nathan Road para o

outro lado de Cameron. Aí a iluminação era difusa, porque os anúncios luminosos

rareavam e os candeeiros também. Um homem entrou numa cabina telefónica. Eu

sentia o corpo de Mae roçando o meu, e para onde ela me conduzia eu não queria

saber, porque desejava ansiosamente viver o mistério da noite de Hong-Kong.

Mae estacou repentinamente e ergueu o rosto para mim.

- Al, beija-me. Fiz-lhe a vontade. Passei os meus braços sob os dela, apertei-

lhe os ombros corri força e puxei-a bem para mim. Os meus lábios poisaram-se na

boca sensual. Não cheguei a completar o beijo. Um estoiro tremendo atroou os ares,

a pouca distância de nós, e repercutiu-se com violência rua abaixo. Quase

simultaneamente Mae soltou um grito. O meu corpo descreveu uma rotação rápida,

e então eu vi aquilo que acontecera. No passeio fronteiro, uns metros acima,

situava-se a cabina telefónica mal iluminada. E dentro dela encontrava-se um

homem. Não estava a telefonar. Não, pelo menos naquele momento. Porque o seu

corpo jazia enrodilhado, grotescamente contorcido de encontro à porta. A porta

então abriu-se, impulsionada pelo peso, e o corpo tombou para o pavimento, de

cara para baixo. Apertei o braço de Mae e proferi rapidamente:

- Estou no quarto quatrocentos e cinco do Bay View. Vai lá ter daqui a uma

hora. Agora, desaparece.

Não foi necessário repetir-lho. Atravessei a rua a correr em direcção à cabina.

Observei a artéria e não vi ninguém. Quando alcancei o corpo, curvei-me sobre ele e

virei-lhe o rosto para cima.

Já vi gente morrer. No hospital. Numa rua de Nova Iorque, no bosque de

Neuilly e num beco escuro de Marselha. Vi pessoas morrerem de morte natural e de

buracos de balas. Morte natural, de qualquer modo. Agora mesmo, neste momento,

um homem jazia ali, morto bem próximo de mim. Apenas, desta vez, era diferente.

Porque se em qualquer lado morrer é morrer, uma coisa é um pequeno orifício na

linha do coração, por onde a vida foge na forma de um fio de sangue... e outra bem

mais feia de olhar é o efeito de uma .45 que atravessa o crânio de lado a lado. Tudo

fica numa massa horrorosa, para onde não é aconselhável olhar outra vez. Eu sei

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que a guerra é pior. Mas é outra coisa, também. E isto acontecera ali mesmo, a uma

esquina mal iluminada de Nathan Road, Hong-Kong.

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CAPÍTULO III

Não soaram passos no pavimento, ninguém apareceu e nenhuma janela se

abriu. Talvez que o estampido que repercutira rua abaixo não fosse exactamente o

gênero de ruído que pudesse despertar o interesse dos habitantes da zona, porque ali

cada um tinha os seus problemas, e os outros o Diabo que os resolvesse. Talvez

fosse isso.

Procurei desviar a vista do que fora o rosto de um tipo e concentrei-me em

rebuscar rapidamente os bolsos do casaco. Papéis, documentos, qualquer coisa que

o identificasse. O fato era de bom tecido, e o homem não era oriental - isso pudera

eu concluir do rápido relance aos traços da parte superior do rosto, e do tom do

cabelo. E parecia que era tudo o que eu ficaria por enquanto a saber. Porque os

bolsos estavam vazios. Completamente. A busca durara escassos segundos, e ia

sendo tempo de eu me pôr a andar. No último momento, porém, lembrei-me de um

pormenor. Quando o verifiquei, fiquei a saber mais. O homem assassinado devia ser

americano. A etiqueta cosida no forro do casaco era explícita “Bertones - Third

Avenue, New York, N. Y.”.

Dei uma olhadela ao interior da cabina. A porta mantivera-se parcialmente

aberta, porque as pernas do cadáver a tinham conservado assim. A bala atravessara

um dos vidros laterais e apanhara o homem quase de frente, no momento em que

ele fazia uma chamada. Por sinal o auscultador ficara pendurado na suspensão.

Agarrei-o e ergui-o até ao ouvido. Percebi apenas o sinal contínuo. Coloquei-o na

suspensão. Quando ia a sair a sola do meu sapato pisou vidro partido. Baixei-me e vi

que se tratava dos estilhaços de uma lente. Procurei em volta. Os restos dos óculos

estavam caldos no chão.

Saí da cabina e desci a rua, caminhando depressa encostado à parede.

Quando me havia distanciado uns cinquenta metros percebi nitidamente que do

extremo oposto, descendo, se aproximava da cabina telefónica defronte da qual jazia

um homem morto um carro da polícia. Os moradores de Nathan Road iam

assomando, porque a sirene fazia uma barulheira dos demónios.

Transpus a entrada do Bay View cerca das onze e dez.

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O porteiro continuava no seu posto. O movimento do átrio era escasso e o

empregado da recepção fora substituído. Agora era um fulano com a cara macilenta

dos indivíduos que dormem de dia e trabalham de noite, só que os olhos tinham

falta de brilho de quem também não dorme de dia. Talvez dormisse de noite.

Apanhei a chave, retribuí o cumprimento de uma senhora idosa que nunca vira e

subi no elevador. Saí no 4.° andar, e quando alcancei a porta correspondente ao

número quatrocentos e cinco meti a chave na ranhura, ao mesmo tempo que rodava

o trinco. A chave não deu a volta, mas a alavanca do trinco desceu e a porta abriu-

se. A explicação era óbvia - eu esquecera-me de a trancar, ao sair.

Bati a porta com o calcanhar e premi o comutador. Ela estava ali.

No que eu reparei primeiro foi nas pernas. Maravilhosas, pelo menos até

onde a vista podia alcançar - e não era pouco. A saia justa pertencia a um conjunto

preto elegante, feito para alguém que vestisse um número abaixo, mas que ficava a

matar num corpo como aquele, que correspondia a um número acima. Busto

esplêndido, sensacional mesmo, e dizendo que chegava a fazer o quarto parecer

mais pequeno nem sequer fica tudo dito. Rosto a merecer ser apreciado logo depois:

olhos verdes que me fitavam descaradamente, lábios sensuais a comporem um

ligeiro trejeito malicioso e narizinho atrevido. Os cabelos louros estavam puxados

para o alto num penteado extremamente cuidado, como cuidado era todo o

conjunto. Terão nesta altura percebido que estou a falar de uma mulher. Mais

precisamente de uma mulher que o era em elevado nível de perfeição. E que eu não

via pela primeira vez, pois se cruzara comigo horas antes lá fora, no corredor,

quando da minha chegada. Noutra altura qualquer, eu teria sorrido agradavelmente,

dirigir-me-ia à garrafa colocada sobre a mesa e serviria bebidas, depois do que

substituiria a luz pela outra bastante mais discreta da mesinha ao lado da cama e

tomaria lugar junto dela, no sofá verde-escuro de dois lugares, onde tentaria arranjar

maneira de um deles ficar desocupado. Não agora.

- Enganou-se no quarto, miss - disse eu. Os lábios carnudos distenderam-se

um pouco mais, enquanto ela completava o gesto de levar num movimento elegante

o cigarro à boca. Mais nada. Dir-se-ia que quem estava no quarto errado era eu, e

que a ocupante daquele se comprazia em estudar a minha reacção ao dar pela falta

cometida.

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Encolhi os ombros, andei até à garrafa e despejei cinco centímetros de uísque

no copo. Engoli um bom trago, pousei o copo e despi o casaco, que atirei para cima

da cama. Comecei seguidamente a desapertar o nó da gravata, tudo isto sem a

desfitar, na expectativa. Como não conseguisse nada, sentei-me na borda da cama,

desatei os atacadores dos sapatos, descalcei-me, arrumei-os e preparava-me para

começar a desapertar o cinto das calças quando resolvi que não seria má altura de

inquirir:

- Importa-se que me dispa à sua frente ou prefere que o faça na casa de

banho?

Franziu ligeiramente a testa, amachucou a ponta do cigarro no cinzeiro e

proferiu casualmente:

- Não precisa ser ordinário, Chasey... Ela falara. E o seu tom de voz era

aveludado, morno e doce como licor. Aqueceria facilmente quem não se sentisse tão

frio como eu me sentia de há cinco minutos para cá.

- Eu não sou ordinário. Mas acontece que neste momento me apetece fingir

que sou. E se acaso acha que a pergunta que lhe fiz é ordinária, eu esclareço-a de

que isso não é nada e aconselho-a a sair daqui a correr para o pé da mãezinha antes

que eu atente contra a sua virtude. Percebeu, miss?

Recostou-se languidamente e descruzou as pernas, que voltou a cruzar, mas

agora ao contrário. O efeito não era desagradável, mas acontece que como já disse

eu não estava numa noite das minhas. Molhou com a ponta vermelha da língua o

lábio inferior e perguntou:

- E assim que você recebe as visitas, Chasey? Ou será que a sua mãezinha

não o educou convenientemente?

A conversa ia longa de mais. Tratei de ir avisando enquanto despia a camisa.

- Oiça... se você tem assim uma vontade tão grande de se divertir, já devia

saber que existem nesta cidade lugares que lhe fornecem tudo o que quiser a preços

baratos. Ou que talvez lhe paguem, ainda por cima, Portanto, por que não se pira

daqui, antes que eu comece a ser realmente desagradável consigo?

Endireitou o tronco, deixou de sorrir, e o tom em que falou a seguir já não

era aveludado, nem morno, nem doce como licor.

- Vim para ter uma conversa consigo, Chasey. E vou tê-la, porque é

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importante.

- Amanhã, okay?

- Hoje. Agora.

- Uma ova, é que vamos!

- Chasey!

Ergui-me lentamente e dei uns passos até contornar a mesa e ficar

exactamente defronte dela. Mergulhei os meus olhos nos olhos verdes e pronunciei,

marcando bem as sílabas:

- Vou dar-lhe a sua última oportunidade. Que veio aqui fazer?

Deixou cair descuidadamente os braços sobre as coxas num gesto de

desânimo enquanto o sorriso irónico lhe voltava aos lábios. Mirou-me

apreciativamente, como quem avalia mercadoria exposta.

- Você tem um belo peito...

- Tenho. Mas o seu ganha vantagem. Apesar disso vou corrê-la daqui. E já.

Ia agarrá-la por um braço e obrigá-la a levantar-se, pronto como estava a

empurrá-la porta fora, quando na outra mão que desentalara de baixo das coxas vi

algo que não me agradou. Um objecto pequeno e negro. Pequeno, negro e

mortífero. O buraco da arma foi directamente colocado na direcção do meu peito.

- Bem, Chasey... se é assim que quer, é assim que tem de ser. Alguma

objecção, agora?

Sim. Eu tinha uma objecção a fazer. Porque não gosto de armas de fogo

apontadas para mim, principalmente quando quem as empunha é uma mulher que

eu só vi, e de passagem, uma vez, numa cidade que desconheço, numa noite em que

já observei o que uma coisa daquelas pode fazer do crânio de um homem. Eu tinha

uma objecção a fazer. Violenta, talvez. Durante dois segundos cheguei mesmo a

considerá-la. Conclui afinal que sou um curioso. Por isso recuei, contornando a

mesa. Al estava, uma maneira simples de fazer que a situação desse uma volta,

simultaneamente com uma volta da mesa. E o facto de ela me oferecer essa

possibilidade provava que não tinha tanta experiência como isso. Mas não.

Continuei apenas a recuar, até achar-me sentado novamente na borda da cama.

Ela suspirou, e sem me desfitar pousou a arma no assento ao seu lado, abriu

a malinha e tirou lá de dentro um cigarro que acendeu calmamente com o isqueiro.

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Inspirou longamente, soltou uma baforada voluptuosa e começou, com brandura

outra vez:

- O meu nome é Rita Grahame.

- Muito prazer - disse eu.

- E depois?

- Quero falar consigo .

Dei uma olhada à automática, no sofá.

- É óbvio. Riu gostosamente. Eu não. Ela replicou: - Ora, Chasey... eu nunca

seria capaz de atirar num homem desarmado...

“Pois não.” - ...principalmente num sujeito tão simpático como você ...

- Muito obrigado. - ...embora tenha sido bastante desagradável comigo, sem

razão alguma.

Intervim:

- Sem razão alguma? Então uma pessoa de quem eu nem conheço o nome ...

Interrompeu, fingindo-se escandalizada:

- Essa “pessoa” é uma senhora respeitável e o nome é Rita Grahame.

Dois pontos que eu me permitia pôr em dúvida. Mas o facto era que agora já

não me apetecia ser assim tão desagradável, e o que fiz foi continuar o que ela ia

dizendo, sem discutir pormenores.

- E essa pessoa entra no meu quarto, não me dá qualquer justificação e ainda

por cima me ameaça com uma arma. Com franqueza, Miss Grahame, uma senhora

respeitável não procede dessa maneira!

Voltou a abrir a malinha, guardou a arma e abandonou o tom trocista que me

irritava para passar a falar com naturalidade:

- Pronto, Chasey, para começar peço-lhe desculpa, porque reconheço que

exagerei. Resolvera esperá-lo aqui por julgar ser o local mais seguro para a conversa

que desejava ter consigo. Apenas não esperava que a sua reacção fosse essa, de

modo que também eu acabei por perder um pouco a cabeça. Portanto, acalme-se,

ponha qualquer coisa por cima e venha sentar-se perto de mim para conversarmos

como duas pessoas decentes. De acordo?

Lançou-me um sorriso encorajador. Eu permaneci em silêncio durante um

bocado. Acabei por desenrugar a testa, enfiar de novo a camisa e levantar-me para

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arranjar duas bebidas. Estendi-lhe um dos copos e fui sentar-me ao seu lado. Deixei

que ela molhasse os lábios no uísque e mirasse à vontade a marca de bâton que

ficara impressa no rebordo. Tornava-se evidente que o que quer que fosse que esta

dama tinha para me contar, não era coisa que saísse com facilidade, mesmo para

quem estivera tão à vontade até havia momentos antes. Toquei-lhe o braço. A pele

era macia.

- Miss Grahame, perdeu o pio?

Reagiu virando-se para mim, e reparei que as sobrancelhas estavam

levemente arqueadas, fazendo que uma pequena ruga se lhe formasse na fronte.

- Dê-me um cigarro dos seus, por favor.

Estendi-lhe o maço de Crown, do qual ela extraiu um cigarro que eu acendi.

Pareceu a seguir mais à vontade.

- Chasey, vim aqui porque...

- Porque quer conversar comigo, já sei - interrompi.

- Mas primeiro que tudo gostaria de saber como conhece o meu nome.

Fez um gesto com a mão que segurava o cigarro. -Prefiro que me deixe falar.

E mais fácil ... Concordei. Voltara-se completamente para mim, e o rosto não estava

distante mais que quinze centímetros do meu. Perguntei-me como conseguiria

manter o cabelo assim penteado, sem qualquer peça visível a sustentá-lo. Quanto ao

resto, preferi pura e simplesmente abstrair. Isto é, fiz um esforço, pelo menos.

Começou:

- Infelizmente, não lhe posso revelar muita coisa a meu respeito. Trabalho

para uma firma...

- Qual?

- Não posso dizer.

Começava a impacientar-me.

- Miss Grahame, haverá alguma coisa que você me possa dizer?

Vi que, se insistisse, apenas conseguiria enervá-la mais do que ela começava a

ficar. Prosseguiu, depois de levar novamente o copo à boca e entalar por instantes o

cigarro entre os lábios.

- Existe em Hong-Kong uma importante rede de estupefacientes. A minha

firma pretende aniquilá-la. Essa organização de droga actua desde Singapura e

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Hong-Kong até ao Japão e aos Estados Unidos, através do oceano Pacífico,

entrando na América do Norte pela Costa Oeste.

“Recentemente foi chamado do continente um indivíduo, cuja missão seria

precisamente a de funcionar como peça vital no transporte da mercadoria entre

Hong-Kong e São Francisco, além de outros “trabalhos” especiais. Isso, por não ser

ainda uma cara conhecida no “negócio” ... ou pelo menos era o que a organização

pensava. Aconteceu, porém, que ele podia não ser conhecido aqui, mas decerto que

o era por quaisquer outros motivos em Nova Iorque, pois o F.B.I. deitou-lhe a mão

na semana passada. Devido a esse facto inesperado, e à última hora, outro homem

foi designado para substituir o primeiro. Nessa altura a minha firma, que já obtivera

informações sobre o plano geral, conseguiu também os pormenores da viagem deste

último elemento. Pudemos assim interceptá-lo na escala de Carachi. Encontra-se,

portanto, actualmente em nosso poder, e um ponto fundamental para aquilo a que

pretendo chegar é que nós temos a certeza, positiva e absoluta, de que nenhum dos

membros da organização, aqui em Hong-Kong, o conhece.

“E chegamos ao ponto essencial da questão, que é a que lhe vou expor,

depois do que você poderá fazer as perguntas que entender, a fim de esclarecer

quaisquer passagens em que eu não tenha sido bem explícita. E o ponto

fundamental é este: você, Al Chasey, tomará o lugar desse indivíduo. Os riscos estão

calculados, e posso assegurar-lhe que são mínimos se atendermos à possibilidade

que o senhor terá de aniquilar uma rede internacional de tráfico de estupefacientes ...

e de ganhar cinquenta mil dólares, dos quais dez mil já estão depositados no seu

banco de Nova Iorque e o restante lhe será entregue pela minha firma dentro de três

ou quatro dias, espaço de tempo que será suficiente para que possa desempenhar

este trabalho.

“É este o esquema geral. Já sei que a seguir me vai fazer uma quantidade de

perguntas, e estou pronta a satisfazê-las o melhor que puder...

Pois... eu tinha perguntas a fazer. Claro que tinha. Uma, em especial.

Comecei, gentilmente:

- Diga-me por favor, Miss Grahame.

- Sim?

- A sua firma será por acaso a John Walker & Sons ou qualquer outra no

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gênero?

Um rubor intenso corou-lhe as faces, as narinas dilataram-se-lhe e ela pousou

com violência o fundo do copo no tampo da mesa enquanto os olhos me

fulminaram. Pronunciou agressivamente:

- Mister Chasey!

Cheguei mais o meu rosto ao dela, até poder aspirar-lhe o perfume da pele.

- Diga... Rita. Os lábios húmidos tremiam-lhe. - Eu vim aqui para falar

consigo. O mínimo que lhe exijo é que me ouça e se porte correctamente.

Peguei-lhe na mão, sem despegar os olhos dos dela. Pronunciei

tranquilamente:

- Okay, Rita. Ponto número um: ouvi-a; ponto número dois: portei-me o

mais correctamente que me podia ser exigido... dadas as circunstâncias.

- Quais circunstâncias?

- O que se passou ao principio. O seu arrazoado de agora. Isto é uma cena de

malucos, minha querida, e sugiro que a terminemos quanto antes...

Estranhamente, a fúria, a violência e a agressividade desapareceram, mesmo

quando bateu impacientemente o pé no chão. Lia-se só no seu rosto um desespero

enorme, de quem precisa que acreditemos, como o das criancinhas quando nos vêm

contar algo que julgam ter acontecido e que nós negamos terminantemente.

Retirou a mão, passou-a pela face e suspirou fundo. O peito subiu e desceu

num efeito que fez o meu movimentar-se também, porém a desproporção foi

notória, e neste aspecto ela levou vantagem.

- Chasey... eu disse-lhe a verdade. Quero que me faça perguntas ... todas as

perguntas que entender, para que possa ficar com a certeza de que tudo isto é

verdade. Por favor...

Era quase uma súplica. Mas o diabo é que nós não nos podemos fiar em

mulheres... Levantei-me e desatei a andar para trás e para diante, porque o conteúdo

da minha cabeça dava voltas e mais voltas, como nessas alturas em que sentimos

que qualquer coisa de esquisito está para acontecer, e que não podemos evitá-lo

porque é uma força poderosa que nos impede de proferir um “que se lixe!” e atirar

tudo para trás das costas. Tal e qual como naquele momento. Talvez eu devesse

mandá-la embora, depressa, para fora do meu quarto. Mas sabia antecipadamente

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que não ia fazê-lo e ela ali estava, alguém que dizia chamar-se Rita Grahame, uma

mulher sensacional que trabalhava para uma firma que me queria oferecer cinquenta

mil dólares.

Estaquei de repente e inquiri, sem me voltar.

- Por que não a mandou a sua firma ter com a polícia, Miss Grahame?

- Nós temos dados, indicações. Não possuímos provas. É preciso que

alguém entre lá para dentro. A polícia não o pode fazer.

- E apenas essa a razão?

A resposta tardou um pouco.

- Não. Vou ser sincera, Chasey. Você sabe que por vezes, embora não haja

negócios escuros em jogo, existem nas actividades de certo grupo de pessoas

aspectos em que não convém deixar que a polícia meta o nariz. É isso que acontece.

Não pense, portanto, que nós somos por exemplo uma organização de

estupefacientes que pretende destruir uma sociedade rival para adquirir o controlo ...

Interessa-nos liquidar uma organização poderosa que prejudica os interesses de

vários países, incluindo o seu, um verdadeiro sindicato que o seu amigo McDermott

daria um braço para aniquilar. Esta é a realidade dos factos, que será para si fácil de

comprovar.

Tentei ver o caso por este ângulo, e mais de perto. Voltei a ir sentar-me no

sofá, ao lado dela.

- A polícia já anda atrás deles?

- Sim - anuiu. - Às cegas, porém, porque não encontraram ainda o fio da

meada. Como disse, pode confirmar facilmente o que acabo de lhe revelar. Lembre-

se no entanto de que tudo o resto permanece entre nós, porque a partir do

momento em que eu lhe forneça o que falta, o seu amigo John McDermott fica de

lado. Completamente.

Raciocinei, e estranhamente tudo aquilo já não me parecia um arrazoado.

- E o que a faz acreditar que eu não direi que sim senhor, está bem, e que

depois de me ser fornecido esse tal “fio da meada” não sairei daqui direitinho para a

sede da Polícia, a contar tudo o que sei?

Teve um sorriso infantil e as pálpebras semicerraram-se-lhe.

- Nós sabemos muita coisa a seu respeito. Investigamos a sua actividade

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como repórter do Sun, e concluímos que uma das razões porque era o homem

indicado para aquilo que pretendíamos, era exactamente podermos ficar com a

certeza de que a partir da altura em que resolvesse dizer “aceito” manteria a sua

palavra.

Agradeci a moção de confiança.

- Muito obrigado. Mas já agora, se me permite uma pequena objecção: por

que razão a sua firma não se encarrega pessoalmente do caso, em vez de o entregar

a um amador?

- Não é o nosso género de actividade, Chasey, e não possuímos, portanto,

ninguém qualificado. Para si, o assunto não é novo. Sabemos que já nos Estados

Unidos meteu o nariz, por conta própria, em casos semelhantes.

Admiti. Mas apressei-me a esclarecer.

- É verdade... por conta própria. Mas não meti, nunca o nariz em nada deste

gênero, a não ser quando os casos vêm ter comigo e sou forçado a fazê-lo. O que

não é exactamente o caso, pois não, Miss Grahame?

Mostrou os dentinhos, e o sorriso dela era tão tranquilizante ... Corroborou a

minha afirmação, com suavidade.

- Claro que não... Chasey. A decisão é inteiramente sua, e livre.

- Hum... - disse eu. - Vocês tiveram realmente pouco tempo para investigar

tanta coisa a meu respeito, não foi?

- Exactamente dois dias - esclareceu. - Mas nós trabalhamos com eficiência.

Podiam existir muitas dúvidas no meu espírito. Mas sobre o que ela agora

afirmara não subsistiam nenhumas.

- E o que lhes dá assim tamanha certeza de que esse tal indivíduo que devia

chegar hoje a Hong-Kong não é aqui conhecido? Pode perfeitamente ter sido

enviada dos Estados Unidos alguma fotografia, quaisquer elementos de

identificação...

Negou, sacudindo a cabeça.

- Não, Chasey. Os elementos de identificação transporta-os ele consigo, nos

papéis e no cérebro. Quanto à fotografia, sabemos que ele saiu onteontem de uma

clínica de Nova Iorque, onde foi submetido a uma operação de cirurgia plástica.

Fez uma pausa, aguardando a minha reacção.

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- Satisfeito? Não respondi. Quis saber:

- Como me podem assegurar que não levará tudo mais do que os tais três

dias de que me falou?

Retorquiu com segurança.

- Prepara-se qualquer coisa para muito breve, Chasey. Amanhã, ou o mais

tarde no dia seguinte. Algo tão importante que se conseguirmos estar a par do que

se trata ficaremos com a chave na mão. Nessa altura, a policia poderá fazer o resto.

Não esqueça isto: se aceitar, estará a trabalhar no seu próprio interesse, mesmo

profissionalmente falando, e prestará igualmente ao seu amigo John McDermott um

favor que ele não esquecerá. Independentemente de quem quer que nós sejamos. -

Fez uma pausa. - Pode dar-me já uma resposta?

Neguei.

- Não, por agora. Preciso consultar o horóscopo. Quando deveria o tal

indivíduo estabelecer o contacto?

- Amanhã, às duas horas, num local que lhe indicarei assim que me

comunicar a sua decisão.

- Okay - conclui. - Encontro-me consigo amanhã, digamos... às dez e meia.

Onde?.

- Stephens’s Street, no Tien-Tsin. Tomaremos lá o pequeno-almoço. Eu

deixarei o hotel mais cedo. Não convém que nos vejam sair juntos.

Levantou-se, segurando a malinha, e eu conduzi-a à porta. Quando ia levar a

mão ao trinco, ela segurou-me o braço e aproximou do meu o corpo sensacional.

- Chasey... Raios ... e eu que queria evitar aquilo!

Olhei-a, e os olhos encerravam tudo o que uma mulher pode saber.

-Vamos assinar o acordo, sim?...

- Mas...

Os lábios carnudos, vermelhos e húmidos colaram-se aos meus, e não foram

só os lábios mas tudo o resto, ao ponto de eu adquirir a sensação de que estava a ser

absorvido. Tal e qual. Caramba, aquilo não era acordo, mas escritura com assinatura

reconhecida!

Bateram à porta. Ela pareceu não ouvir. Libertei os lábios e consegui num

esforço inquirir roucamente:

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- Quem é?

- Mae - ouvi responderem de mansinho do outro lado.

Rita desprendeu-se, devagar, e todos os seus gestos eram sensuais.

- Até amanhã - murmurou.

Abri a porta para que ela saísse. Mae encontrava-se do outro lado da

ombreira. Lançou a Rita um olhar desprezivo, e Rita correspondeu-lhe, enquanto se

afastava pelo corredor, no seu andar ondulante e seguro de si.

Mae Leung entrou. Ficava ainda mais atraente, assim furiosa como se

estivesse zangada com o mundo inteiro.

- Al... francamente!

Fechei a porta antes que alguém passasse por ali.

- Flor... eu... era uma amiga.

- Vamos deitar, Al. Já é tarde. Acreditem. Hong-Kong é uma cidade quente.

Quente como o Inferno. Ou mais ainda.

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CAPÍTULO IV

Quando abri os olhos e tacteei na cama, no lugar ao lado do meu, não

encontrei nada. E se querem que lhes diga, eu não possuía a noção exacta do que

poderia encontrar. Sabia apenas que faltava qualquer coisa. Não levei muito tempo

para concluir que essa “qualquer coisa” era alguém, e que esse alguém era Mae

Leung. Então, rememorei essa noite. E que noite! O homem assassinado em Nathan

Road; Mae Leung, a “Flor de Lótus”, toda ela um poema oriental, selvagem e meigo;

e Rita Grahame, a mulher sensacional das propostas fora de série.

- Flor! - chamei. - Sua feiticeirinha chinesa, onde é que você se meteu?

Supunha que ela se encontrava na sala de banho contígua, mas ninguém

respondeu ao meu apelo. A luz clara do dia entrava parcialmente pelos estores da

varanda. Consultei o relógio. Nove e meia. Mesmo na hora, atendendo ao encontro

que marcara com Rita. Mas quanto a Mae, onde raio a diabinha se metera? Relanceei

o olhar em redor. As roupas dela não estavam ali. Só depois reparei que na mesinha

ao lado da cama se achava, redigido a esferográfica, um pequeno pedaço de papel:

“Volto à noite. Gosto de ti. Mae.”

“Born”, pensei, “não há dúvida que as garotas destas paragens sabem

exactamente o que querem.”

Atirei com as pernas para fora da cama e tentei equilibrar-me em pé. Não

tivessem sido aquelas cinco horas que dormira ao fim da tarde, no dia anterior, e eu

seria agora um tipo liquidado. Mesmo assim, precisei despender um esforço notável

para calçar os chinelos e percorrer o caminho até à casa de banho.

As agulhas fininhas da água a jorrar de cima, penetrando-me na pele e na

carne, espevitara-me deveras. Segui a técnica do “água quente - água fria - água

quente - água fria” e deixei o chuveiro quase em estado de levitação. Sequei-me bem

na toalha felpuda, na qual saí para o quarto. Sentia um vazio tremendo no estômago,

e ia pegar no auscultador para encomendar o pequeno-almoço quando me lembrei

que combinara com Rita torná-lo em conjunto. “De qualquer maneira”, raciocinei,

“dois pequenos-almoços enchem mais que um e não fazem mal a ninguém.” Ergui o

auscultador, e juntamente pedi o Herald.

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Quando cinco minutos depois me vieram trazer ambos, a primeira coisa em

que peguei logo que o rapaz se despediu foi no jornal. Percorri rapidamente o

noticiário internacional da primeira página, do qual se destacava, no canto inferior

direito, o relato da fuga ocorrida na véspera, para Hong-Kong, de um cientista da

China continental. Folheei as páginas interiores. O assassínio ocorrido em Natham

Road ocupava meia coluna da terceira, com o titulo “Americano não identificado

abatido numa cabina telefónica”. O texto não acrescentava nada de novo. Ausência

de testemunhas, de elementos de identificação e, embora não viesse claramente

expresso, de pistas para os investigadores. Pelos vistos o trabalho do meu amigo

McDermott não era para invejar.

Stephen’s Strect é uma rua estreita paralela a Hogarth Road e que ao fundo

se encurva para ir desembocar nesta. Custou-me exactamente um dólar localizar a

rua, porque foi uma nota desse tamanho que eu dei ao rapazinho que me

acompanhou até lá. O restaurante também ficava devidamente assinalado por uma

tabuleta bem grande de letras verdes em fundo amarelo. Ao lado, no mesmo fundo

amarelo, mas em símbolos vermelhos, alinhava-se na vertical o correspondente

chinês - que o estrangeiro parte sempre do princípio que diz a mesma coisa, mas às

vezes não é bem assim.

Viam-se alguns europeus na rua. Entrei e desci as escadinhas que conduziam

à cave, decorada com bom gosto inexcedível. A frequência era seleccionada e eu

percorri com a vista as mesas quase todas ocupadas na esperança de que Rita

Grahame já ali se encontrasse.

Não foi difícil descortiná-la, porque Rita é o gênero de mulher que dá tanto

nas vistas como um avião à porta de casa. Dirigia-me, por entre as mesas, para o

canto que ela ocupava ao fundo da sala, quando ouvi chamar atrás de mim.

- Al... Al Chasey! Virei-me. Gritei.

- Vikki Allen.

Veio projectar-se de encontro a mim, e os braços rodearam

arrebatadoramente o meu pescoço, ao ponto de me sentir sufocar. Também eu

correspondi com entusiasmo, abraçando-a e dando-lhe um beijo na face, depois do

que me desprendi gentilmente e fiquei a segurar-lhe nas mãos, olhando-a com

ternura.

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- Vikki ... é um prazer tão grande!

- Para mim também, Al... e que surpresa! Os olhos brilhavam de suprema

alegria, e em Vikki todo esse brilho transborda pelo rosto, fazendo-o resplandecer e

transmitindo-lhe aquele encanto extraordinário que sempre fora o seu segredo de

incomparável fascinação. O rosto de Vikki é tudo - intensidade, calor, vibração,

vida! E de tal modo que nós nem reparamos que o corpo é desprovido de atractivos

especiais e que os quarenta anos já começaram a fazer sentir os seus efeitos, porque

quarenta anos não são algum tempo na vida de uma mulher. E especialmente na de

uma mulher como Vikki, que desde sempre viveu apenas o presente, procurando

encontrar em cada dia a sua razão de existir. Só que para ela a razão de existir era

sempre outra, e outra, e a busca não termina mais.

- Senta-te, Al, e conta-me tudo! Puxou-me para a mesa que ocupava sozinha,

e eu sentei-me defronte dela e do copo cujo conteúdo fora decerto o seu pequeno-

almoço.

- Continuas bonita, Vikki - disse-lhe com sinceridade.

- Querido, não tentes enganar-me. Entre nós não é preciso isso.

- Falo a sério - afirmei. - Se Balzac te tivesse conhecido, teria escrito para ti.

Claro que o tempo passa, e todos nós o sentimos. Eu também...

- Ora, Al, tu és novo... muito mais novo que eu. E continuas como quando te

conheci, já lá vão uns dez anos... Nós, as mulheres, sofremos mais que vocês. - Teve

um gesto característico de arrependimento. - Mas deixemos isso, agora. Conta-me

como vieste aqui ter, diz-me tudo! Meu Deus, não nos víamos há tanto tempo...

O empregado veio interrogar-me sobre o que eu desejava. Mandei vir dois

gin-martini. Quando ele se afastou Vikki olhou-me, os olhos semicerrados,

trincando o lábio inferior num esforço inútil para ocultar tudo o que lhe ia lá dentro.

- Como antigamente... - murmurei.

- Sim, Al... como antigamente. Desviou dos meus os olhos humedecidos.

Extraí os dois últimos cigarros do maço, acendi-os, estendi-lhe um e amachuquei o

pacote.

- Tudo isso consegue ainda hoje tomar conta de mim - disse. - Não esperava

que me forçasses as recordações, querido. - Sorriu. - Mas sinto-me apesar de tudo

feliz por o teres feito.

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Chupei o cigarro e expeli o fumo lentamente.

- As recordações existem e permanecem. Em mim, do mesmo modo que em

ti. Nós marcamos na vida um do outro, e ambos sabíamos que havia de permanecer

sempre alguma coisa. Faz parte de nós próprios a lembrança do passado. Não o

lamento. Nem tu. Algo de bom ficou de tudo o que aconteceu.

- Sim, Al. Tenho a certeza que sim. Compôs uma madeixa de cabelo negro e

macio que lhe descaíra para a fronte e soprou a nuvem azulada do fumo do cigarro.

O rapaz chegou com as bebidas e depô-las na mesa. Levei o copo aos lábios. Ela

imitou-me.

- Tenho seguido a tua carreira no Sun - disse-me. -

Rapaz, tu vais por aí fora! Estás aqui em trabalho, ou apenas de passagem?

- Uma coisa e outra - expliquei, e contei-lhe porque o meu director me

mandara a Hong-Kong.

- Uma cidade que te vai agradar, Al. É pena que não possas aqui estar mais

tempo. Mas vamos aproveitar bem estes dias - acrescentou com entusiasmo. -

Temos tanto que conversar! Mostrar-te-ei Hong-Kong. É ópio, meu querido.

Quanto melhor a conhecemos, mais difícil se torna desprendermo-nos dela, até que

se torna quase impossível libertarmo-nos.

- Como nos acontece com certas mulheres... - comentei.

- Sim, Al, é isso... E de alguns homens...

- Da última vez que me mandaste um dos teus postais estavas a trabalhar no

Herald. Que te aconteceu desde aí?

- Tanta coisa! Depois te contarei. Sabes, sou actualmente sócia de uma das

melhores boites da cidade: o Hot Spot. Toda a alta sociedade daqui vai lá parar. Irás

comigo logo à noite. De acordo?

- Encantado - retorqui. - Mas agora, querida, se me dás licença, tenho de te

deixar porque há alguém que se encontra aqui à minha espera. Eu estou no Bay

View. Passa por lá à volta das oito. Tomamos qualquer coisa e saí- mos depois.

Okay?

- Com certeza, Al... Eu também vou andando. Então fica combinado para

logo, às oito, no.Bay View.

Levantámo-nos, eu chamei o criado para pagar a despesa e despedimo-nos.

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- Até logo, querido.

- Adeus, Vikki!

Fiquei a vê-la dirigir-se para as escadas, e depois dei meia volta em direcção

ao extremo da sala.

Miss Rita Grahame não estava nada satisfeita com a demora. Consultou

acusadoramente o relógio de pulso.

- Francamente, Chasey!...

Pedi licença para me instalar e expliquei o que acontecera. Levou meio

minuto para se acalmar. Apesar disso, quando falou foi para inquirir:

- Dormiu bem? Compus um sorriso idiota, como se não percebesse

absolutamente o alcance da pergunta.

- Claro que dormi bem, minha amiga. Ou terá acaso pensado que a sua

despedida de ontem à noite me tirou o sono?

- Não vamos discutir de novo, pois não? - solicitou, mostrando-se irritada.

- Só se for você a puxar a discussão - afirmei.

- Não vou fazer isso - informou sorrindo.

E propôs:

- Vai tomar o seu pequeno-almoço?

Disse que sim, porque não lhe queria fazer outra desfeita. Depois de ter

encomendado ao empregado sumo de frutas, torradas e café, reflecti que ia precisar

adquirir urgentemente algumas pastilhas para o estômago.

Mantivemo-nos calados enquanto o rapaz não voltou. Engoli a custo as

torradas com a ajuda do sumo e acamei depois com café, todos os meus

movimentos seguidos pelo olhar observador dela. Só quando terminei, passei o

guardanapo de papel pelos cantos da boca e acendi um cigarro, Rita falou:

- Então, qual é a sua resposta? Formei da garganta um anel de fumo que uma

vez expelido para cima me fitou a pairar sobre a cabeça.

- Engraçado... - comentou ela, com ironia. - Parece o Santo.

- É - respondi. - E mais engraçado ainda é o facto de você pensar que eu sou

o Santo...

Fitou-me sorrateiramente.

- Por que diz isso, Chasey?

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- Parece-me evidente, a partir do momento em que pretende meter-me em

aventuras rocambolescas. Note - acrescentei - que tenho grande admiração por

Leslie Charteris e o seu herói. Só que o acho bastante irreal, fora portanto de

quaisquer comparações com o que se passe no mundo das realidades em que

vivemos, e em particular em que eu vivo ...

- Falando então de realidades... - interrompeu.

- Deixe-me continuar, Miss Grahame... - E expliquei: - Sabe, eu gosto de

leitura policial.

- Também eu - concordou. - E de espionagem. 007, por exemplo.

Assenti.

- Óptimo. Isso vem ajudar-me imenso, porque encurta o que me preparava

para lhe explicar. Leu certamente From Russia with Love...

- Sim.

- Bem. Se lhe interessa a minha opinião pessoal, penso que no seu conjunto

os livros da série “James Bond” são um autêntico tratado de espionagem. E se não

sabe, dir-lhe-ei mais: que a própria C.I.A. considera essas obras como elementos

valiosos de consulta. Mas voltando ao livro que mencionei - prossegui - deve estar

recordada que a contra-espionagem russa engendra um plano diabólico com o fim

de vibrar um golpe decisivo nos serviços secretos ocidentais. O alvo escolhido, por

ser considerado o de maior interesse estratégico, é o Intelligence Service.

Rita seguia atentamente as minhas palavras, mas era visível que não

compreendia aonde eu queria chegar. Continuei.

- Na frente de choque dos serviços secretos ingleses figura como peça

fundamental o nosso conhecido James Bond. E na impossibilidade de atingir

directamente e no conjunto a espionagem britânica, o SMERSH escolhe 007 como

objectivo, sabendo que aniquilando-o do modo que pretende afectará

profundamente não apenas o Intelligence, mas todos os serviços secretos ocidentais.

Para tal, porém, precisam atraí-lo. Pois bem ... lembra-se em que consistia o plano

elaborado pelos especialistas soviéticos para atingir esse fim?

- Sim - assentiu. - Tratava-se de uma história quase inacreditável...

- Exactamente. A história quase inacreditável da bela funcionária dos serviços

secretos russos, que se apaixona através de um retrato pelo famoso James Bond, e

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que para conseguir despertar o seu interesse “foge” para a Turquia com uma

máquina de cifrar de valor incalculável, a qual entregará apenas a James Bond em

pessoa.

- Mas os serviços secretos ingleses acreditam...

- Não - corrigi. - Os serviços secretos ingleses não acreditaram. Admitiram

desde o principio, como aliás o próprio SMERSH sabia que ia acontecer, que tudo

fosse uma armadilha. Mas a história era tão fabulosa que existia uma probabilidade

mínima de poder ser verdadeira. E se o fosse havia muito a ganhar. Portanto, na

dúvida, só restava uma solução: arriscar.

Fiz uma pausa. Os lábios de Rita compunham um ligeiro sorriso e os olhos

diziam-me que já sabia o que eu ia dizer a seguir.

- É o que vou fazer, Miss Grahame: vou arriscar, porque tudo pode ser

verdade, e se for há-de fazer uma barulheira dos demónios e um tipo que se dedica a

uma profissão como a minha não pode recear o barulho se quiser ser o melhor.

Perguntou, com interesse:

- E você quer ser o melhor, não quer, Chasey?

- Quero - disse sem modéstia. - E provável que não consiga. Mas serei pelo

menos dos melhores.

Segurou-me a mão que eu pousara descontraidamente sobre a mesa.

Chasey, você já é dos melhores. Os olhos estavam cheios de promessas e eu

achei por bem pôr os pontos nos ii.

- Não tente levar-me com palavras e gestos ternos, Rita. Foi precisamente

para isso, para que soubesse porque aceito, que gastei este palavreado todo. Quero

pelo menos que se estiver a tentar enganar-me com esta história, não me chame

depois “patinho” ou coisa no gênero por eu ter “embarcado”.

As palavras não fizeram que a sua atitude se modificasse. Retirei a mão para

agarrar o cigarro pousado no rebordo do cinzeiro.

Falando daquilo a que me referi ontem... Fiz um gesto negativo com a

cabeça.

Se é a questão do dinheiro, a minha resposta é: não aceito.

Ficou extraordinariamente surpreendida e olhou-me como se eu fosse um

marciano a pedi-la em casamento. Por isso fui justificando.

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- Eu vou entrar nisto como repórter. E como tal não posso aceitar dinheiro.

Os riscos que corro fazem parte do meu oficio e as despesas apresentá-las-ei ao

jornal para que trabalho. Compreendido?

Parecia que sim. Pelo menos ela agora olhava-me só como se eu fosse um

crocodilo em trajo de noite. Esperei por uns momentos para que se recompusesse e

quando o rosto dela quase readquiriu a expressão normal, adiantei:

- E agora, antes que me ofereça os pormenores, uma advertência ainda...

Quando me meto ao trabalho, faço-o a fundo. Até esgotar o assunto. Portanto,

referindo-me a este caso concreto, limitar-me-ei a preveni-la de que, se no decurso

do que vou tentar levar a cabo encontrar uma pontinha que seja de.um fio que me

conduza a outro lado qualquer, eu hei-de puxá-lo... e com muita força. - Fixei-a,

significativamente: - Entendeu, Miss Grahame?

- Sim... - anuiu. - Mas ...

- De acordo?

- Sim.

- Okay. E uma vez estabelecidas as bases, vamos então aos dados concretos

que tem para me fornecer...

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CAPÍTULO V

Dado o jeito natural da população chinesa para o negócio, desde há séculos

que Hong-Kong é uma encruzilhada do Oriente. A sua história é agitada. Para os

piratas que há duzentos anos procuravam ao longo da costa da China um lugar

seguro onde pudessem negociar os produtos das suas pilhagens, Hong-Kong era um

refúgio pelas condições geográficas que oferecia.

A partir do século VII, com a expansão árabe para o Oriente, logo seguida

pelos Judeus, Indianos e Persas, o comércio entre a China e o Ocidente foi-se

intensificando. Esse tráfico, no entanto, só passou a efectuar-se regularmente no

século XVI, após a descoberta pelos Portugueses do caminho marítimo para a Ásia.

No século XVII os Ingleses estabeleceram comércio com a China, tendo-se fixado

em Cantão e Amoy.

Veio depois a competição européia, que no entanto não pôde oferecer

resistência à organização britânica, a qual dispunha de barcos muito mais eficientes e

de uma expansão comercial duas vezes maior que a do resto da Europa.

Havia, porém, que encontrar o local em que se pudessem estabelecer

definitivamente. Desde 1793 os Ingleses tudo tentaram para conseguir a autorização

dos Chineses. Em vão, durante cinquenta anos, a persistência britânica enfrentou a

teimosia chinesa. Até que em 1840 a ilha de Hong-Kong foi cedida ao capitão

Charies Elliot, da Marinha de Sua Majestade Britânica.

O que se seguiu foi um desenvolvimento comercial nunca igualado em parte

alguma do Médio e Extremo Oriente. Porque, diga-se o que se disser dos Ingleses, é

incontestável que essa gente sabe fazer as coisas.

A administração britânica teve e tem de enfrentar problemas graves, um dos

quais é o afluxo sempre crescente de refugiados chineses. Até quando será possível

fazer face a essa torrente, é a questão que de há muitos anos mais vem

atormentando as autoridades inglesas. Entretanto o tráfego cresce constantemente.

O movimento diário do porto envolve cerca de trinta mil embarcações de todos os

tipos, incluindo os navios mercantes de todo o mundo que ali fazem escala

obrigatória.

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As ligações entre Kowloon e a ilha de Hong-Kong, na zona mais estreita do

porto, são estabelecidas pelas carreiras normais dos ferry-boats pertencentes à Star

Ferry e outras companhias, e mais recentemente também pelos hovercrafts que

atravessam a baía. Mas não são apenas os ferries que fazem a viagem. Uma

verdadeira frota de juncos, sampans e barcaças sulcam o pequeno mar

transportando pessoas e carga, pois que nos ferries não podem ser levadas

mercadorias. Daí o espectáculo supermovimentado das águas da bala, e se

tomarmos em conta as imensas cidades flutuantes que marginam as costas, tanto de

um lado como do outro, compreenderemos que esse mundo aquático faz parte

integrante da cidade, e que é errado pensar que Hong-Kong é constituída por duas

zonas separadas por um quilómetro de água. A verdade é que a sensação de

continuidade nos é plenamente transmitida... consideradas as distinções inevitáveis.

Eram quase duas horas quando saí do ferry e, integrado no fluxo humano,

atravessei a escada que conduzia ao pontão. A tarde estava esplêndida e, embora o

sol aquecesse bastante, do mar soprava uma brisa suave e retemperadora que

refrescava e nos trazia com mais intensidade aquele odor incomparável feito de uma

mistura de cheiros que não conseguimos identificar, mas que basta para nos fazer

sentir que nos encontramos envolvidos por uma força estranha que penetra e faz

vibrar como em nenhuma outra parte do globo.

De um lado e outro da margem, na extensão de centenas de metros, até

perder de vista, milhares de embarcações estavam fundeadas, encostadas umas às

outras, apertadas casco contra casco, em linhas irregulares, abrindo aqui e ali espaços

vazios que constituem ruelas de uma cidade autêntica. Uma cidade miserável,

colorida, ruidosa e efervescente feita de madeira e gente e enfeitada pelas velas azuis,

amarelas e verdes dos sampans e dos juncos e pelos trapos de tons sujos que

escondem um pouco o que se passa lá dentro. Onde vivem centenas de milhares de

pessoas que habitam ali porque em terra firme já não há espaço.

Deixei-me seguir na torrente até que quase sem dar por isso me vi fora do

edifício do cais. Dirigi-me depressa para a paragem de táxis em Central Road, e ao

alcançar o primeiro da fila enfiei-me no assento traseiro e gritei para o motorista,

que me olhava com curiosidade:

- Jaffé Road, Wanchai.

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- All right, mister - respondeu-me, e arrancou.

O pequeno carro tomou a direcção de Connaught Road e aí introduziu-se

com segurança na corrente de veículos de toda a espécie que percorriam a artéria.

Como não dispusesse de espelho retrovisor, o condutor do táxi via-se obrigado a

olhar continuamente para trás, a fim de satisfazer o seu interesse, quanto a mim

inexplicável, pela minha pessoa, e eu aguardava tenso, na expectativa de a cada

momento me ver projectado no interior de uma montra de alfaiate ou cair sentado

num cesto de verga, com arroz a transbordar dos bolsos. Nada de especial contudo

aconteceu, a não ser o facto de um rapaz de pés descalços que trotava à frente de

um rickshaw encarnado ter sido obrigado a saltar com carro e tudo de encontro aos

tapumes de um edifício em obras. Não percebi o que o rapaz gritou para nós, mas

calculo que em todas as línguas, em circunstâncias idênticas, os sentimentos são

expressos por palavras de significado equivalente.

Mais adiante o táxi dobrou à direita, entrando num rua apertada onde os

vendedores ambulantes e os coolies, de cabeça rapada, esqueléticos e esfarrapados,

se afastavam relutantemente para deixar passar o carro, cujo condutor resolvera

finalmente concentrar toda a atenção no que se passava à sua frente.

O aspecto do baixo de Wanchai não difere essencialmente dos outros bairros

de Hong-Kong de população chinesa. Os prédios são baixos, de tons pardos, num

máximo de três andares, à excepção.de alguns hotéis de Gloucester Road, O’Brien

Road e outras pouco distantes da avenida marginal.

Quando finalmente entrámos em Jaffe Road disse ao motorista que parasse,

porque achei preferível andar o resto do caminho a pé. Foi estacionar defronte de

uma das inúmeras garagens minúsculas que existem por ali, e eu paguei o que ele me

pediu, e sem refilar, o que não vale a pena visto os táxis de Hong-Kong não

possuírem taxímetro. Como me explicara o dono de uma rede deles, no dia anterior,

assim é melhor, porque não se engana o cliente. Pontos de vista...

Jaffe Road está enxameada de boites, dancings e outros estabelecimentos no

gênero. Mas eu procurava um, determinado, cujo endereço me havia sido fornecido

por Rita Grahame. A designação da casa era Wu Tchao, o que correspondia

igualmente ao dono do restaurante, ou lá o que era o local, e este ficava no número

vinte e três.

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Esperei que o carro se afastasse e comecei a andar sob as arcadas dos prédios

sujos, de cujas janelas pendia roupa. É interessante, esta questão da roupa estendida

nas fachadas, porque embora em muitas outras cidades isso seja frequente, a

diferença é que em Hong-Kong a razão desse estendal é obter um efeito

decorativo... aqui para nós de resultados muito discutíveis.

Enquanto caminhava, observando sem querer cada pormenor, sempre

diferente para quem percorre uma rua de Wanchai, o meu espírito ia ocupado em

rememorar os últimos trechos da conversa que tivera com Rita, horas antes, no

Tien-Tsin. Preocupava-me sobretudo fixar todos os dados, porque eu ia a entrar

num palco e representar um papel. Estudara-o com ela, durante o almoço, no

restaurante de um hotel aonde Rita me conduzira, e tudo ficara gravado na minha

cabeça. Mas há sempre aquele nervosismo dos últimos minutos, quando o actor

sente que do outro lado do pano a assistência aguarda a sua entrada, e faz que um

nó se forme na garganta e que a boca seque como se as glândulas parassem de

funcionar. Só que numa representação, em teatro, se o actor tem uma falha, o ponto

encarrega-se de o auxiliar; e se as coisas não correm bem, o pior que lhe pode

acontecer é que o público o pateie e assobie e que no jornal do dia seguinte a crítica

lhe dedique umas linhas desagradáveis. “Não aqui”, pensei, “não nesta

representação. Porque agora não há ninguém na caixa do ponto, e se o actor tem

uma falha, uma só que seja, no dia seguinte o jornal trará na mesma umas linhas a

meu respeito. Desagradáveis, também. Apenas, de conteúdo ligeiramente distinto.

Assim, mais ou menos: ‘Foi encontrado, ontem à noite, numa rua de Wanchai, o

repórter americano Al Chasey, do New York Sun. Tinha um punhal enterrado nas

costas. Estava morto. Morreu por ter o nariz muito comprido.’”

“Deixemo-nos de ideias tolas”, finalizei, para serenar. “Vai correr tudo bem.”

Enfiei a mão no bolso interior esquerdo do casaco, a fim de me assegurar de que os

papéis continuavam comigo. .

O vinte e três chegou depressa, e eu dei uma olhadela pelo exterior enquanto

sentia que as pulsações aceleravam e se tornavam mais intensas. O prédio era

semelhante a todos os outros. Por cima da porta um letreiro perpendicular ao

sentido da rua indicava o nome do proprietário. O estabelecimento encontrava-se

fechado, porém o facto era natural visto muitas das casas de divertimento apenas

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abrirem ao fim da tarde para encerrarem de manhã cedo. A porta pintada de

amarelo ficava no cimo de dois degraus que eu transpus, depois do que agarrei a

aldraba maciça em forma de serpente enrolada e a deixei cair com força.

Dois miúdos seminus que vinham correndo rua abaixo abrandaram a marcha

e por fim estacaram e mirar-me atentamente. Decidiram-se por vir até junto dos

degraus e o mais crescido, que teria aí uns dez anos, arriscou:

- Tem cigarro, mister?

Olhei-o por momentos. Era engraçado e possuía aquele ar sério e

concentrado de pessoa crescida. Reparei que, embora fosse magro, não tinha o

aspecto escanzelado da quase totalidade dos habitantes miseráveis das ruas da

cidade. Das duas, uma: ou o pai era um chinês remediado, ou o rapaz era esperto. O

estado do vestuário fez-se optar pela segunda hipótese. Atirei-lhe o maço

suplementar que anda sempre comigo, e os olhos negros brilharam de entusiasmo

enquanto agarrava agilmente no ar, com uma mão apenas, o pacote. Afastou-se

correndo, seguido pelo outro. Eu sabia o que eles iam fazer com os cigarros, e isso

era impingi-los logo à noite a qualquer indígena.

A porta foi entreaberta sem que eu tivesse sequer percebido no interior

passos a aproximarem-se. Soube a razão quando o vulto se destacou no pequeno

intervalo. O chinês era tão miudinho, insignificante e transparente que mesmo que

caísse de um terceiro andar sobre a superfície esticada de um bombo não se ouvira

nada. Usava a pele da cara minúscula encarquilhada como um pergaminho da

dinastia Nfing, e à primeira vista qualquer pessoa lhe atribuiria cento e sessenta e

três anos.

Não falou, limitando-se a espiar-me através de uns olhos tão encravados nas

órbitas que nós tínhamos a ideia de que se tratava antes de duas cabeças de alfinete.

Resolvi ir dizendo, inclinando-me para diante e destacando as silabas para evitar ter

de repetir tudo outra vez:

- Quero falar com Wu Tchao. Chamo-me Joe Coslow. Venho da parte de

Hernandez.

Resultado nulo. Repeti, indicando-me a mim próprio.

- Coslow. Joe Coslow. - E a seguir, apontando para o interior: - Wu Tchao.

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Nada. Começava a fazer menção de entrar por ali dentro e gritar “está aí

alguém?”, quando soube que alguém se aproximava, porque desta vez ouvi passos, e

bem marcados por sinal. A porta escancarou-se e um tipo de um metro e noventa e

arcaboiço de zebu surgiu diante de mim. O crânio era rapado e a cabeça toda um

bloco trabalhado a escopro e martelo. Fixou em mim o olhar duro e eu adiantei-me

com a mesma conversa de há bocado.

Convenci-me de que não perdera as palavras. O gigante abaixou-se em

direcção ao outro, e por instantes julguei que o fosse apanhar para o meter no bolso.

Não o fez. Limitou-se a soprar-lhe alguma coisa ao ouvido e o pequenino afastou-se

aos saltinhos. O grandalhão falou depois de mim, bem forte:

- Entre. Wu Tchao espera.

As ondas sonoras ficavam a fazer-nos vibrar as membranas do tímpano

mesmo depois de ele se ter calado, mas o inglês percebia-se menos mal. Dei uns

passos à frente e a porta fechou-se-me nas costas.

- Lá dentro.

Atravessei atrás dele a sala grande, que oferecia o aspecto desolador dos

locais de diversão nas horas em que estão encerrados. O lugar era escuro e a única

luz provinha de uma pequena lâmpada vermelha pendurada por cima do balcão,

atrás do qual eu distingui ao passar um chinês que limpava copos à velocidade de

dois por hora. Na extremidade do balcão, no canto que este formava com a parede,

estava colocada uma máquina ultramoderna de discos. Ao longo da parede fronteira,

do lado esquerdo, as cadeiras e bancos de verga empilhavam-se sobre as mesmas.

Chegado à porta do fundo, tapada por um reposteiro de tecido estampado, o

meu guia afastou a cortina e encostou-se à ombreira para me deixar passar. Baixei a

cabeça, encolhi-me e avancei. Vi-me num buraco negro, que ficou iluminado

quando o chinês puxou um cordão que estava ligado a um globo fixo na parede, a

meio das escadas que subiam ao outro andar. Comecei a trepar os degraus, sentindo

a respiração pesada do gigante atrás de mim. No patamar, onde se abriam duas

portas, um toque entre duas costelas fez-me saber que devia enfiar pela da direita, a

qual ficava imediatamente antes do começo do segundo lanço de degraus. Rodei a

maçaneta, e sem esperar nova indicação, que poderia deslocar-me uma vértebra,

entrei.

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Não fui longe. A mão enorme agarrou-me o braço, forçando-me à

imobilidade. Percorri com a vista a saleta luxuosa, em contraste chocante com o que

pudera observar do resto do edifício. Tive mais uma vez a noção de quanto são

desconcertantes estes chineses. E requintados, quando se podem permitir o luxo de

satisfazer sem limitações a sua comodidade e prazer pessoais. Já tenho observado, a

na América e na Europa, que grande percentagem dos que realmente podem gastar

o fazem a maior parte das vezes com uma falta de gosto notória. Não aqui, na Ásia,

tanto quanto pudera constatar no curto espaço de tempo de que dispusera até à

altura.

Interrompi as divagações quando dei conta de que duas pessoas entravam na

sala, surgindo inesperadamente de trás do biombo por onde o homem grande havia

desaparecido. O que vinha à frente trajava um rico roupão bordado a ouro que lhe

descia até às sandálias de tiras douradas enfiadas nos pés nus. Toda a sua pessoa

transmitia um ar de

Pulou um pedaço

UCC 14 - 4 49

rar, dado que não se via ventoinha ou qualquer outro sistema de ventilação.

Devia porém existir, embora dissimulado. No momento em que a minha mão se

dirigiu para a algibeira das calças, a fim de tirar de lá o lenço para limpar o suor que

me começava a humedecer a testa, a cabeça do rapaz movimentou-se na minha

direcção e eu reparei que os olhos estavam atentos, perscrutadores.

Passei o lenço pela face e voltei a guardá-lo, ao mesmo tempo que esmagava

a ponta do cigarro na borda do cinzeiro de laca vermelha.

Eu sabia que Wu Tchao fora investigar a autenticidade do documento. De

qualquer maneira não possuía qualquer ideia. Sabia também que a firma de Rita

Grahame fizera um belo trabalho, substituindo no passaporte de Coslow a minha

fotografia. A falsificação fora efectuada em menos de uma hora, pois fora esse o

tempo que eu aguardara no Tien-Tsin o regresso de Rita. Até que ponto ela poderia

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resistir a uma análise efectuada por um perito, eu não podia garantir, embora me

tivesse sido assegurado que nem um laboratório de polícia poderia dar pela troca.

Era o que se ia ver.

Não pude evitar um estremecimento quando percebi que Wu Tchao

regressava. Era-me impossível vê-lo, pois as costas do sofá ficavam viradas para a

porta de comunicação. Senti-o aproximar-se, sem pressa. Ko Nim olhava na sua

direcção, por sobre a minha cabeça. Por fim o roupão azul passou a meu lado,

roçando-me o braço. Ergui a cabeça.

Wu Tchao sorria tenuemente enquanto voltava ao lugar que ocupava antes.

- Peço desculpa pela demora, Mister Coslow. Mas creio que compreenderá os

cuidados especiais com que sou obrigado a proceder...

Forcei também um sorriso.

- Perfeitamente.

Devolveu-me o passaporte. Guardei-o num bolso, não sei em qual.

- Passarei então a expor-lhe, sem preâmbulos, qual será a sua primeira missão

- começou, juntando as palmas das mãos e entrecruzando os dedos longos, e eu

inspirei fundo, o mais dissimuladamente que pude. Se é que se pode respirar fundo

dessa forma.

Suspendeu-se por instantes.

- Suponho que já conhece as condições em que fica a trabalhar, não é assim?

- Sim, Wu Tchao - assenti. - Mister Sykes esclareceu devidamente todos os

pontos.

- Óptimo. Vejamos, pois, em que consiste esta sua tarefa. - Antes estendeu-

me de novo a caixinha de madrepérola, e eu aceitei outro cigarro. Arrumou-a de

seguida e falou, pausadamente.

- Partirá amanhã para Cantão no comboio que sai de Kowloon às nove e

vinte e cinco. Viajará, naturalmente, com documentos falsificados. A passagem na

fronteira da China, em Shumshum, verificar-se-á cerca das doze e trinta, e a chegada

a Cantão às três e meia da tarde. Terá de contar com os atrasos inevitáveis. Seja

como for, imediatamente após a sua chegada será conduzido por um agente nosso

que o aguarda na estação. Ele lhe entregará as instruções necessárias.

Interrompeu por momentos o discurso, a fim de se certificar de que eu

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seguia totalmente as suas palavras. Não leu certamente o que se passava no meu

espírito, e que era, logo que me visse dali para fora, correr ao encontro de Rita

Grahame a pedir-lhe que me desculpasse, mas que eu tinha a avozinha doente lá na

terra. Precisava, porém, dizer alguma coisa. Por isso inquiri:

- Posso saber quando regressarei, Wu Tchao?

- Na manhã seguinte, às sete e trinta, pela mesma via. Mas virá

acompanhado.

Não acrescentou qualquer pormenor sobre este último ponto, o que quanto a

mim não tinha importância nenhuma.

- Há ainda um facto fundamental para que desejo chamar a sua atenção -

continuou. - Não é fácil entrar na China...

“Completamente de acordo, Mister Tchao”, falei para dentro.

- ...mas ainda é mais difícil sair. Quanto à primeira fase, o problema está

resolvido. Você vai entrar no país com divisas estrangeiras, na forma de papel-

moeda. Deixe--me esclarecer - explicou num breve sorriso - que se trata de dinheiro

falso. Quanto à sua vinda, contará com o auxílio do nosso agente em Cantão e,

acima de tudo, com as suas aptidões, embora apoiadas nas condições que lhe forem

lá transmitidas.

Deu a impressão de ter terminado a exposição.

- Deseja formular alguma pergunta, Coslow?

Se eu devia fazer alguma, ela só podia ser:

- Quem me acompanha na vinda?

- Sinto não o poder informar. Sabê-lo-á amanhã. Mais nada?

Acenei negativamente.

- Bom. Nesse caso Chu Ling entregar-lhe-á agora mesmo tudo aquilo de que

vai necessitar.

Levou uma mão à face inferior do tampo da mesa, calculo que para premir

um botão, pois quase simultaneamente os passos que, embora abafados pela alcatifa,

eu sabia pertencerem ao chinês grande, fizeram-se ouvir nas minhas costas

- Chu Ling - disse Wu Tchao -, traz o material destinado a Mister Coslow.

Chu Ling afastou-se, para regressar logo após. Wu Tchao convidou-me a

levantar.

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Pus-me de pé seguido pelo dono da casa. Ko Nim permaneceu sentado. O

grandalhão transportava, numa mão, uma elegante maleta de pele negra e fecho

dourado e, na outra, um largo sobrescrito azul. Estendeu-me o sobrescrito, que eu

arrecadei no bolso onde guardo a carteira, e passou-me a maleta. Tomei-lhe o peso.

E se tudo o que transportava eram notas de banco, deviam ser notas bem grandes.

Chu Ling dirigiu-se para a porta por onde havíamos entrado enquanto Wu

Tchao me dizia, entregando-me uma pequena chave:

- Tem aí tudo de que vai precisar.

Deixei cair a chave na algibeira superior do casaco, donde assomavam os

óculos de pequena graduação que Rita me havia entregue com a indicação de que os

deveria usar se tivesse de ler algum documento. Apertou-me a mão.

- Desejo-lhe felicidades nesta sua primeira missão, Coslow. E fico a aguardar

ansiosamente o seu regresso. Boa viagem.

Agradeci, correspondi ao aceno do rapazito e encaminhei-me para a porta

acompanhado por Wu Tchao. Fiz uma vénia, antes de a transpor, e fui ao encontro

do gigante que me aguardava nos primeiros degraus.

Quando atravessei a sala do andar térreo o chinês do balcão limpava um

copo. Provavelmente o mesmo.

À porta da rua mostrei os dentes para Chu Ling. O grandalhão repuxou os

músculos da cara num esgar tão feio que devia ser um sorriso. Fiquei melhor

quando a porta bateu.

Desci lentamente os dois degraus, e nunca a brisa suave que sopra da baía me

saberia tão bem. Porém, a subir Jaffe Road, eu sentia-me o palhaço da maleta preta.

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CAPÍTULO VI

Logo que cheguei ao hotel fui direitinho para a cama e deixei-me adormecer.

Vim a arrepender-me, porque aquilo que eu esperava fosse um sono tranquilizante

não passou de uma sucessão de pesadelos e cenas fantasmagóricas, povoadas de

chineses pequeninos como ratos, que soltavam guinchos arrepiantes, e outros,

grandes como dragões, que quando falavam expeliam chamas imensas. Havia

também maletas negras, inúmeras, uma das quais, em particular, eu tentava abrir

com uma chave minúscula. Em vão, porém, ou porque a maleta me escorregava

como um réptil para dentro de água vermelha da baía, ou porque era a chave que

fugia para dentro de um copo besuntado com qualquer substância viscosa, e então

eu não conseguia agarrá-la.

Sentia-me miserável, infeliz, triste, sujo, cansado e dolorido quando despertei.

Tentei sacudir da minha frente as últimas imagens do pesadelo e consultei o relógio.

Marcava quase sete horas. Lá fora ainda era dia, e eu levantei-me e fui como um

autómato até à casa de banho, onde meti a cabeça debaixo da torneira

completamente aberta do lavatório. A dor intensificou-se, primeiro, mas depois

diluiu-se. Enxuguei-me com toda a energia que consegui encontrar, saí e andei de

seguida em direcção à varanda, porque achei que me faria bem apanhar um pouco

de ar.

O telefone retiniu quando eu ia a passar. Deixei-me cair na beira da cama,

com o auscultador chegado ao ouvido.

- Sim?

- Chasey?

- Não está aqui. Foi à varanda.

- Chasey...

- Se desejar eu vou chamá-lo. A menos que ele tenha caído do parapeito

abaixo.

- Chasey!

- Okay, Rita ... de que se trata?

- Você ficou de me telefonar assim que chegasse. Tenho estado desde as

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quatro horas a tentar ligar para aí. Fiquei preocupadissima. Julguei que ... Correu

tudo bem?

- Tudo bem ... lindamente!

- A sério?

- Por que razão não havia de ser a sério, Miss Grahame?

- Posso então ficar descansada?

- Você, sim. Eu, não ...

- Porquê? Soube alguma coisa realmente importante, Al?

- Sim, Miss Grahame. Realmente importante. Mas como não podemos falar

ao telefone, embora se trate de uma ligação interna, dir-lhe-ei apenas que me

arranjou a bonita... Aquilo é explosivo, menina... e eu acabo de acender o rastilho.

- Mas ... Posso ir aí, Al?

- Não. E escusa de tentar, porque não lhe abrirei a porta. Tenho de me

arranjar para sair. Quando voltar, o que calculo seja por volta da meia-noite, passarei

pelo seu quarto. Até lá, vá canalizando toda a sua perspicácia no sentido de apagar o

rastilho.

- Mas ...

- Até logo, querida ... Ah, é verdade, esquecia-me de uma coisa...

- Que é?

- Apresente por favor os meus cumprimentos à sua firma.

Desliguei e tratei de me aprontar. Antes, no entanto, fui certificar-me de que

a maleta negra continuava aonde a depositara, bem no fundo do guarda-fatos.

Quando desci ao átrio faltavam ainda dois minutos para as oito. E, se eu bem

me recordava, dentro de cento e vinte segundos Vikki deveria estar ali, porque ela é

o género de pessoa capaz de fazer o Big-Ben corar de vergonha. É certo que a maior

parte das vezes falta aos encontros. Mas, quando aparece, é assim.

O movimento era tão grande, cá em baixo, que por instantes pensei que algo

de especial acontecera. Mas não.

Tratava-se apenas de gente que saía, para jantar, ou que entrava, para voltar a

sair. Havia ainda os indivíduos que costumam ocupar, horas a fio, os sofás dos

átrios de todos os hotéis do mundo, e a que meu amigo Chandler chama

“moluscos”. Alguns fixam a sua atenção num jornal aberto como um cartaz e outros

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nas pernas das mulheres que passam. Há também os que se limitam a fitar o vácuo,

pensando em nada e fazendo coisa nenhuma.

Um parceiro aproximou-se. -Tem lume, por favor? Usei o isqueiro,

acendendo-o e chegando-o ao cigarro comprido. Reparei então que os olhos do

homem estavam fixos nos meus. Não gostei. Nem da expressão dos olhos, nem do

bigodinho galante aparado para agradar às mulheres. O rosto moreno era quadrado

e o cabelo grudado com brilhantina.

- Obrigado. Tinha uma pronúncia esquisita. O sotaque poderia ser francês.

Afastou-se, e eu fiquei a observar a camisa azul estampada de flores amarelas que

saía por fora das calças cinzentas.

- Chego atrasada, querido?.

Vikki. Beijou-me. Assegurei, passando o meu braço pelo dela:

- Claro que não, Vikki.

E percorrendo-a de alto a baixo:

- Estás maravilhosa!

Soltou uma das suas gargalhadas encantadoras e puxou-me para a saída.

- Onde fica, esse teu Hot Spot?

- É segredo - respondeu-me em tom misterioso. - Mas não é longe daqui,

amor, e além disso vamos no meu carro. Vais divertir-te imenso, Al! Estão lá

dezenas de mulheres bonitas...

- Ora - retorqui -, contigo ao lado, quem pensa noutras mulheres?

A face resplandeceu de contentamento e transmitiu-me a noção exacta de

quanto a minha presença a fazia sentir-se feliz.

Estacionado defronte da saída encontrava-se apenas um Bentley último

modelo, de tom alumínio. Procurei com a vista o carro de Vikki.

- Não fiques aí especado, Al... vamos entrar. Arregalei os olhos para o

motorista fardado que segurava a porta aberta, depois para Vikki, e acabei por

encolher os ombros e entrar atrás dela.

Engoli em seco.

- Caramba! - comentei, reclinando-me no estofo tão macio como um colchão

de penas. - É mesmo teu?

- Mesmo meu, Al - esclareceu alegremente. - Tenho também um Morris

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Oxford. Este é apenas para as ocasiões especiais. E hoje é uma delas, querido -

explicou, olhando-me com ternura.

O carro arrancou silenciosamente.

- Então, o que achas da cidade? Não é espantosa?

Concordei.

-Tal como afirmaste esta manhã, Vikki ... é ópio.

Encarou-me.

- Já alguma vez experimentaste, Al?

- Não. Nem tenciono fazê-lo. E tu?

- Já. E precisei controlar-me, depois. Nunca mais voltarei a repetir a

experiência. Foi a segunda que fiz, em matéria de estupefacientes, durante toda a

minha vida...

- A primeira...?

- Foste tu - replicou.

E, mudando rapidamente de assunto, comentou com animação:

- Tudo isto é tão lindo, não é, querido?

Ela tinha razão. A estrada que seguíamos acompanhava o contorno da baía,

onde brilhavam milhares de luzinhas, reflectindo-se nas águas tranquilas. Do outro

lado a ilha, igualmente iluminada, integrava-se no cenário deslumbrante, irreal.

Quase fazendo-me esquecer a tarde infeliz que tivera. Mas apesar de tudo os

pensamentos desagradáveis continuavam e não havia maneira de lhes fugir. Ou

talvez houvesse... Lembrei-me de John McDermott. Poder-me-ia ajudar? Em que

medida? E, mesmo que pudesse, não seria para mim correr um risco demasiado

grande, maior ainda que continuar?

- Que se passa, Al?

- Há... Quê?

- Rapaz, tu estás preocupado com alguma coisa... Que é?

- Nada... Reflectia, apenas.

Ela não insistiu. Minutos depois entrávamos na zona do porto e o automóvel

seguiu por uma rua entre duas filas de barracões e acabou por ir desembocar num

pequeno cais deserto.

Virei-me para Vikki, surpreendido.

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- Mas...

- Não tenha receio, querido... - tranquilizou-me. - É mais uma surpresa da

sua Vikki.

Devia ser, e estava para além da minha expectativa. O motorista deu a volta,

travou e saiu, afastando-se uns metros até à borda do cais. O sítio estava escuro e eu

não conseguia distinguir os seus movimentos. Não tardou em regressar, e deve ter

feito qualquer sinal, porém Vikki disse para mim:

- Vamos.

Fomos. Apesar dos ruídos da noite, que nos envolviam distantes umas

escassas centenas de metros, o som dos nossos passos fazia-se ouvir bem marcado

no solo de cascalho. Dirigimo-nos para o local que o homem visitara antes, e só

então pude ver que existia ali uma pequena escada de madeira que descia até à água,

onde flutuava um sampan. A bordo equilibrava-se um vulto, segurando o remo

comprido da cauda da embarcação. Vikki desceu com cuidado. Eu segui atrás,

pisando com cautela os degraus, e saltei depois dela para o fundo do pequeno barco.

Quem o dirigia, e constituía aliás toda a tripulação, era uma rapariguinha de

longa trança que lhe descia até à cintura. A sua figura frágil, situada num plano mais

elevado que o da prancha de madeira onde nos sentáramos, debaixo do toldo,

recortava-se como se flutuasse sobre a água. Começou a abanar o remo, para um

lado e para o outro, e o sampan afastou-se rapidamente do pequeno ancoradouro. O

homem não vinha connosco. Vikki segurou-me a mão, e calculei que me tivesse

lançado um sorriso. Sob a lona a noite era mais escura e, embora ao largo flutuassem

dezenas de pontos brilhantes, aqui a única luz era a que a lanterna da proa emitia

tenuemente apenas como o objectivo de sinalizar a embarcação.

A rapariga manobrava com uma facilidade espantosa, fazendo a embarcação

avançar lestamente como se fosse propulsionada por um pequeno motor silencioso.

Daí a pouco podia observar as luzes do porto a afastarem-se, e olhando para trás,

pela abertura anterior da lona, verifiquei que outros barcos estavam já próximos.

A minha companheira seguia calada, como as pessoas costumam estar

imediatamente antes de nos desvendarem uma surpresa que prepararam para nós.

Eu também não dizia nada, mas por motivos diferentes. Possivelmente porque o

marulhar da água fazia que a corrente das reflexões interiores fluísse com facilidade.

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Mas de repente, vendo-me ali sentado, todo contraído, com as mãos nos

joelhos e o tronco direito, sentado no banco do bote que sulcava Victoria Bay, eu

senti-me absolutamente idiota. “Diabo, Al” - disse para mim próprio - “agora

descontrai, deixa correr, e depois logo se vê. As coisas podem não ser agora tão feias

como se apresentam.” Pespeguei como ponto final um beijo enorme no pescoço

macio de Vikki, e acho que o fiz com demasiado arrebatamento porque ela se

desequilibrou para trás, e só não caiu porque se agarrou com força ao meu pescoço.

- Al! - gritou, rindo. - Que bicho te mordeu?

- Falta muito, querida?

- Chegamos - disse ela.

- Quê? - Só então reparei que o sampan se imobilizara. Olhei para baixo, e o

que vi foi água.

- É lá no fundo? - inquiri, embora achasse a surpresa demasiado chocante.

- Não, que ideia, Al! Olha...

Olhei. Do outro lado erguia-se o que a principio julguei ser um enorme

paredão de madeira. Mas subindo a cabeça, de modo a poder alargar o ângulo de

visão, vi o que era. E então eu percebi.

Lá em cima estava tudo iluminado, e o paredão de madeira fazia parte do

casco de um junco bem grande a que a nossa pequena embarcação encostara. Vikki

apertou-me a mão, eu levantei-me, e ela levou-me até à escada que dava acesso ao

convés, uns três metros acima da nossa cabeça.

Subi à frente, agarrando-me firmemente ao corrimão de corda, e a meio do

caminho parei, a olhar para baixo.

- Há tubarões? - gritei, tão alto que eles poderiam ouvir-me.

Como ela me garantisse que não, a metade restante não custou nada a

percorrer. Fosse como fosse, senti-me mais à vontade quando pisei -o chão firme do

convés. Vikki chegou logo atrás e, pendurando-se no meu braço, conduziu-me.

Cá fora, uns metros distantes de nós, havia gente que pelos vistos andava por

ali apenas a apanhar fresco. E, tanto quanto as lanternas e balões profusamente

dispostos ao longo da amurada e nos mastros me permitiam ver, tive a sensação de

que não era gente qualquer, mas sim do género que usa smoking e vestidos de

grande costureiro. Grã-fino, era o que devia ser o sítio.

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Lá de dentro, através da porta, chegava até nós o barulho misturado de

confusão, luzes fortes e música mais ou menos, e foi para aí que nós andamos. As

pessoas voltavam-se para a cumprimentar agradavelmente.

Atravessamos a porta, e de repente o barulho tornou-se tão ensurdecedor

que eu mal dei por que Vikki proclamava, chegando os lábios ao meu ouvido:

- Este é o meu Hot Spot, uma das boites flutuantes de Hong-Kong. Que tal?

Limitei-me a sorrir largamente, abstendo-me de dar resposta imediata.

Porque a gente dar-se logo conta de uma coisa daquelas é como pronunciar-se sobre

um Picasso espiando-o de passagem pelo canto do olho. Acreditem apenas que eu

não estava maluco: Dante já ali estivera, antes de mim.

Toda a população conhecia Vikki, e ela conhecia todos, e apresentava-mos, e

a mim a eles, orgulhosamente:

- Robbie...

- Don...

- Huck...

- Erick...

- Pegu...

- Miff...

- Reg...

- Con...

E por aí fora, até eu julgar que a noite ia acabar assim. De todos os nomes

retive apenas um: o meu próprio.

- Bem, Al... e agora, que já conheces todo o mundo aqui, deixo-te por um

bocadinho. E vocês, tratem-no bem e não mo estraguem!

Puff... desapareceu. E eu também. Tragado, amarfanhado, abafado pela

multidão.

- Estamos a andar! - gritou alguém, entusiasmado.

- Estamos a andar! Vamos entrar em órbita, e Aberdeen é do outro lado, no

Mar da Tranquilidade...

Estávamos realmente a mover-nos. Isso devia querer significar que o junco ia

fundear em Aberdeen Bay.

Disse depressa que sim antes que a boquilha me furasse um olho. Era uma

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boquilha tão grande como cinquenta centímetros, mas um poucochinho mais

estreita que o vestido donde a ruiva emergia.

O meu ar devia ser esquisito, porque ela disse: - Se está deslocado, meu filho,

faça de conta que eu sou a sua mãezinha.

Ia responder-lhe que a minha avozinha que mora em Peoria, Ilinóis, era

muito mais nova do que ela, quando uma de cabelo loiro e rosto meigo chegou

furando junto a mim. E nessa altura, quando ela se encontrava a meio metro,

apenas, pude observar-lhe o corpo, e fiquei quase indignado ante a luta desesperada

que as curvas travavam com o vestuário.

- É você o meu cavalo! - disse apenas, e isso devia ser um elogio fabuloso.

Envolveu com os braços longos o pescoço do cavalo, que era eu, e esborrachou os

lábios carnudos nos meus. O ar faltou-me de repente, porque todas as vias

respiratórias ficaram obstruídas. E aquela pressão tão grande no meu peito!

Despegou-se a tempo, e nessa altura eu verifiquei que o cálice desaparecera

da minha mão. Procurei no chão, e lá estava. Em pedacinhos pequenos.

- Você é o meu cavalo - repetiu ela, mas eu desta vez estava preparado e

aparei a arremetida com ambas as mãos espalmadas. No peito dela, por sinal.

- Oiça, jóquei - tentei dizer -, eu não sou o seu cavalo. Veja, não tenho

número nenhum nas costas. - E virei-lhas rapidamente.

Para dar de caras com “aquilo”. Usava longo cabelo castanho-claro, a

condizer com os olhos, e as faces eram rosadas, macias. Empunhava dois cálices do

tal líquido esverdeado, e só quando me estendeu um, dizendo “É divino! “, eu

estranhei a voz, e reflectindo compreendi que era um homem. Aceitei, de qualquer

modo, porque não desejava ferir a sua susceptibilidade. As bolinhas reapareceram

quando engoli aquilo, e quando se foram embora, pensando melhor, concluí que a

loura não era má companhia e dei outra meia volta. Porém, quem surgiu à minha

frente foi um gorducho careca com um copo enorme apertado nos dedos carnudos,

que se suspendeu ao dar de caras comigo.

- Eh, nós não estivemos os dois no 6.1 de artilharia? Neguei, e o rosto balofo

traduziu um desconsolo tão grande que quase senti pena dele. “No 6.1 de artilharia,

o gorducho”, resmunguei para dentro, afastando-me. “Só para bala de canhão.”

Descobri a lourita lá adiante e perfurei até lá chegar.

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- Meu querido jóquei! - exclamei. - Afinal estive a pensar, e acabei por

descobrir que talvez seja o seu cavalo ... Só que tinha o número arrumado no bolso

das calças.

- Oh! - disse ela, num gritinho. - É tão bom! - e pendurou-se a mim no jeito

de há bocado. - Vamos dançar, cavalinho?

“Dançar?”, interroguei-me. “Mas eu não consigo ouvir nem um bocadinho

de música ... ”

- A música vem lá de baixo - e empurrava-me, entusiasmada. - Sempre lá de

baixo. Vikki é tão espantosa! - ia ela gritando, e empurrando sempre, até que

pudemos parar, e nessa altura soube o que ela queria dizer.

O conjunto que fornecia a tal música mais ou menos não estava disposto

como habitualmente, num pequeno palco, mas sim num reduzido recinto que era

precisamente o contrário. Isto é, uma porção rebaixada no chão como o “poço” nos

teatros. Tudo convenientemente ornamentado.

Três ou quatro pares davam a impressão de parecerem simular fingir que

dançavam, e a garota aparafusou-se a mim. E se aquilo era dançar, o meu intestino

era corda de violoncelo. O conjunto consistia da secção rítmica, composta por

piano, contrabaixo e bateria, além de trompete e saxofone, estes dois últimos

instrumentos repousando ao lado dos respectivos fornecedores de sopro, que se

limitavam a acompanhar adormecidamente o compasso com gestos de cabeça.

- Caramba, meu dono - disse a loura, empolgada esta música e você fizeram-

me dar o mergulho.

E mergulhava mesmo, o corpo todo no meu, como se procurasse

desesperadamente comprovar a quarta dimensão.

- Diga-me apenas, narciso - pediu-me ela, a focalizar-me os olhos: - Também

veio do fundo do mar?

- Claro! - disse eu. - Também sou mergulhador. Profissional e sem

escafandro. A minha vida é todo um mergulho a grande pressão nas profundezas da

teoria das possibilidades.

- Caramba! - comentou, num estremecimento de prazer incontido. - Você é

tão sensacional, e foi fabricado só para mim...

- E - assenti. - Sou um ponto de suspensão na curva assombrosa do

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semiperíodo dos átomos transmutados em toda a sua vida subaquática.

- Oh... ! Oli! - suspirava, arrebatada. - Você é tanto, tanto, que está sempre

mais além e abafa tudo o que fica para trás.

- Tal e qual - concordei.

A certa altura Vikki passou por nós, de fugida, mas ainda me perguntou,

sorridente:

- Estás a divertir-te, Al?

- Como um cavalo de corrida a nadar debaixo de água - informei, agradecido,

mas acho que ela já não me ouviu.

Apareceu depois um rapaz grande com cara de menino, o qual vestia um

smoking a pôr em evidência os seus ombros de atleta. Agarrou-me por um braço.

- Oiça, amigo, você está a dançar com a minha miúda.

Não respondi. Eu achava-me submerso.

- Não ouviu, rapaz? - e puxou com mais força, segurando-me ainda a banda

do casaco.

Virei-me para ele e dei-lhe um safanão no braço.

- Desapareça, parceiro ...

- Ali, sim?

- Pois.

- E eu lhe der uma sova?

- Não, amigo - respondi. - Eu é que daqui a bocado, se você me chateia

muito, lhe esborracho a cara.

- Ah, sim? Isso é que eu gostava de ver!...

- Não, meu filho - retorqui. - Acho que você nem chegaria a ver coisa

nenhuma.

- Ora, Chuckie... - interveio a garota. - Some-te daqui para fora. Eu não

consigo sequer navegar no teu hálito ...

O rapaz grande de rosto de menino pequeno teve uma expressão

compungida e afastou-se aos solavancos.

- Fique aqui, peixe - falou daí a momentos a garota. - Vou ali buscar

combustível para o submarino, e não demora nem o tempo de voltar. Entretanto,

abafe-me bem esse ritmo!

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Fiquei sozinho, com toda a gente à minha volta. Bolas, não haveria ali

ninguém completamente normal? Certamente que sim, pensei, mas seria uma

felicidade demasiado grande encontrá-lo. E foi quando, de um instante para o outro,

senti que estava farto, saturado, e que se não me pusesse a andar bem depressa,

antes de meia hora ficaria completamente chalado.

Caminhei com os cotovelos e de repente vi-me cá fora. Inspirei bem fundo,

uma vez, muitas vezes. Agora não havia ninguém no convés. Pelo menos que eu

visse. Cheguei perto da amurada, no espaço que dava para a escada de madeira que

descia até à água. Lá em baixo estavam dois sampans encostados.

Ia começar a descer, quando alguém chamou:

- Eh, Mister McCullers! Virei-me.

O velhote dirigia-se obviamente a mim.

- Qual a sua opinião sobre a crise do Vietname? Hoss disse-me ontem que

tinha lá estado consigo, na semana passada.

Já com um pé no segundo degrau, respondi:

- Está enganado, meu caro. Hoss realmente encontrou-me, mas isso foi em

Ponderosa, dois anos atrás.

Continuei a descer e entrei na embarcação. Não foi preciso falar, porque a

rapariguinha do leme manobrou imediatamente e o pequeno barco afastou-se, rumo

a terra.

Acendi um cigarro, aspirando um longo trago. Soube-me bem.

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CAPÍTULO VII

Eram apenas dez menos um quarto quando cheguei ao hotel, ainda sem ter

jantado. Era certo que Vikki me convidara para jantar lá, mas depois de observar

aquelas coisas todas, decerto compreenderão que um sujeito mentalmente são possa

ficar com medo de jantar num sítio daqueles. Porque há que admitir que logo de

entrada venha um peixe enorme com uma flor amarela na boca e que de dentro dele

saiam gnomozinhos com chapéus vermelhos de três bicos, e então o parceiro fica

atrapalhado porque não sabe se há-de utilizar o garfo de peixe ou o de carne. Por

isso, quando cheguei a Bay View, apressei-me a subir ao quarto na ideia de

encomendar a refeição.

À saída do elevador, no quarto piso, encontrei-me com alguém que entrava.

Tratava-se de um fulano moreno, entroncado, de bigode malandro e camisa de

ramagens que saía para fora das calças. O tal sujeito com quem eu antipatizara horas

antes, lá em baixo no átrio. Cumprimentou com um sorriso muito seguro de si, o

que eu retribui de mau modo e passei adiante, fazendo tilintar a chave contra a

rodela de metal.

À porta do quarto hesitei por alguns segundos sobre se iria entrar, ou seguir

até ao fundo do corredor, onde Rita Grahame devia estar à minha espera. Como

porém lhe dissera que não voltaria antes da meia-noite, decidi-me por ir primeiro

assentar as ideias sobre a cama, e introduzi a chave na porta. Rodei o trinco,

empurrei e entrei. O anúncio luminoso do outro lado iluminava suavemente a sala, e

sem acender a luz comecei a andar sobre a alcatifa em direcção à varanda.

Não cheguei lá. A razão foi aquela pancada forte, seca e contundente na base

do crânio, que me fez subitamente deixar de ver e tombar desamparado no chão.

A primeira coisa que senti ao despertar foi que segurava uma chave na mão.

Devia tratar-se da chave do Céu. A segunda, foi que o reflexo do anúncio luminoso

continuava ali. E a terceira, que a minha cabeça também. Sobretudo essa. Estalando

aos poucos, a querer rebentar como se algo dentro dela estivesse a crescer, a

aumentar de volume, e o crânio fosse pequeno de mais para conter força

avassaladora. Minha mãe, como a minha pobre cabeça doía. Dor intensa que

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dilatava e descia por ali abaixo, paralisando.

Fiquei estendido sobre a alcatifa, naquele estado de semi-inconsciência. E se

essa semi-inconsciência era já tão dolorosa, eu não queria despertar completamente.

Ficaria ali, esparramado, e a dor havia de se chatear e de sair pela varanda, como os

mosquitos atraídos pela luz.

Não foi assim tão fácil. A dor não foi embora. A consciência total chegou, e

com ela tudo foi mais desagradável ainda. Quem acabou por se chatear fui eu.

Arrastei custosamente um braço até à região contundida e apalpei-a

devagarinho com a mão, no receio de encontrar algum buraco tão grande que ela

entrasse por ali dentro. Os dedos tocaram lá. Não havia nenhum buraco, mas sim

um líquido que não era uísque com certeza, porque o uísque não é assim viscoso.

Mexi depois outro braço, e uma perna, e outra perna. Estava tudo no seu

lugar, e se nenhuma voz me mandou ficar quieto, pôr-me de pé, ou coisa no gênero,

era porque não devia estar mais ninguém ali dentro.

Rodei lentamente sobre o ombro direito, apoiei as mãos no chão e dobrei os

joelhos. Triste como um rafeiro em noite chuvosa. Pus-me de pé, a seguir, mas aos

pouquinhos. Felizmente houve um sofá amigo que me ajudou nessa tarefa difícil.

Quando a posição vertical foi conseguida, percorri com os olhos tudo à

minha volta. Não havia ninguém para ver e a porta estava fechada. Tudo como se a

pancada que me prostrara tivesse sido vibrada por ninguém e vinda de lado

nenhum. E no entanto eu sabia que não fora assim. Alguém estivera ali, à minha

espera. Alguém que tinha razões tão fortes para me fazer aquilo, como forte fora

aquilo que me fizera.

Arrastei os pés até ao comutador, acendi as luzes e entrei na casa de banho.

Antes de pensar a ferida apoiei as mãos na borda do lavatório e olhei para o espelho.

A cara que apareceu reflectida tinha um aspecto tão desagradável de ver que eu

fechei os olhos e abri a água.

Depois de convenientemente tratado fui mudar de camisa. Em seguida abri a

porta do guarda-fatos, tirei para fora a maleta preta, arrumada ao lado da minha, e

transportei-a para cima do sofá, onde a examinei atentamente. A fechadura não fora

forçada. Também não devia ter sido aberta, visto que a pequena chave continuava

onde a metera, entalada entre o soalho e um dos pés da cama. Apanhei-a e enfiei-a

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no bolso. Tive também o cuidado de procurar o sobrescrito azul que Wu Tchao me

havia entregue, e que andara sempre comigo. Extraí-o da algibeira interior e cheguei-

o perto do candeeiro da mesa-de-cabeceira. Não me parecia igualmente que tivesse

sido violado enquanto eu permanecera adormecido, e voltei a guardá-lo.

Liguei o telefone para a recepção.

- Al Chasey, do quatrocentos e cinco. Desejo saber se alguém procurou por

mim, nestas últimas horas.

- ...Não, ninguém, Mister Chasey - respondeu-me o rapaz da recepção.

- Bem - disse eu -, então quem poderia ter entrado no meu quarto, durante a

minha ausência?

- Mas, absolutamente ninguém! - assegurou-me, surpreendido. - As chaves

dos quartos são todas diferentes. - E inquiriu, ansiosamente: - Aconteceu alguma

coisa, Mister Chasey?

- Não. Nada. Apenas uma girafa amarela que deve ter entrado por debaixo da

porta.

Pousei o auscultador, agarrei a maleta, e após ter apagado as luzes saí para o

corredor. Fui até ao quarto de Rita e bati.

A porta não tardou a abrir-se logo que me identifiquei.

- Chasey... Que aconteceu?

Vestia apenas um penteador rosa quase transparente, e nos pés calçava

chinelinhas com borla branca a enfeitar. Se eu não me encontrasse no estado de

espírito em que estava teria prestado mais atenção ao conjunto, e não seria preciso

muito tempo para chegar à conclusão que o corpo dela era realmente magnífico,

excitante e por aí fora. Mas assim limitei-me a responder, mal-humorado:

- Nada. Não aconteceu nada. Foi um rickshaw que me passou com uma roda

por cima quando eu entrava no hotel.

E acabei de penetrar no quarto. Fi-lo tão intempestivamente que ela teve de

se afastar depressa para não ser atropelada.

- Mas ... Al, teve de acontecer alguma coisa!

Atirei a maleta para cima do sofá, voltei-me para ela, que permanecia

imobilizada a meio da sala, e retorqui com rudeza:

- Claro! Teve de acontecer. E você sabe isso perfeitamente, porque quando

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me meteu nisto já possuía a certeza absoluta de que tinha de acontecer qualquer

coisa. Eu apanhar pancada, por exemplo, ou até ir cair nalgum canto com uma faca

cravada nas costas. Mas isso não lhe importa grandemente. Nem nada, mesmo,

desde que o trabalho seja feito, para que a sua estuporada firma fique satisfeita com

a sua habilidade de persuasão e a promova a encarregada das relações públicas.

Okay, Miss Grahame, pode ficar descansada... Tudo está a correr bem. E, a menos

que surja alguma surpresa, eu hei-de acabar aquilo que comecei. Porque sou eu o

único responsável pelos trabalhos em que me meto, e se depois de dizer que sim,

senhora, aceito, vou para a frente e só não chego ao fim se alguma razão bem forte

me impedir de continuar. Mesmo que, como presentemente, esteja arrependido até à

medula dos ossos e a deteste a si e à sua firma, que alguma coisa cá dentro me diz

que cheira mal que tresanda. E se for verdade, Miss Grahame, não se esqueça das

condições do nosso contrato. Porque já lho disse de caras, e repito-lho agora: se o

vosso negócio for sujo, eu hei-de limpá-lo até à raiz. Ouviu?

Estava cansado, quando acabei, e a dor de cabeça aumentara, mas em

contrapartida senti-me um bocadinho mais aliviado. Enquanto despejei aquilo tudo

estive demasiado excitado para atentar bem nas expressões que o rosto dela fora

traduzindo. O que sei, porém, é que a sua reacção foi diferente da que aguardava.

Veio andando , naquele modo provocante, um sorriso tranquilo a bailar-lhe

rios lábios vermelhos. Parou quase encostada a mim, e a mão procurou com

cuidado a ferida na minha nuca. Os dedos correram-me depois ao longo do pescoço

e eu pude sentir as unhas dela roçando-me na pele. A seguir veio a outra mão, e os

braços subiram suavemente, até que me envolveram completamente e o seu corpo

escaldante ficou colado ao meu.

Só então falou, sussurrando as palavras.

- Compreendo o seu estado de espírito, Al... Calculo que algum

acontecimento houve que o deixou assim. Sei que está a levar bem aquilo que se

empenhou em fazer, e você também o sabe. Por isso lhe peço que pare de proceder

como um menino contrariado e venha contar-me tudo, tranquilamente. Talvez eu o

possa ajudar... Está bem?

Era. Ela ia de certeza absoluta ser promovida. Dos cabelos dourados,

penteados como das vezes anteriores, desprendia-se um perfume inebriante, e toda a

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sua presença era perturbadora. Só que neste momento eu estava longe como se um

muro nos separasse. Ou quase. Desprendi-me do abraço, fui sentar-me no sofá

extenso e tirei do maço um cigarro, que acendi.

Rita veio tomar lugar perto de mim. Demasiado perto, a ponto de eu sentir o

calor do peito dela. Agarrou-me a mão.

- Agora, conte-me o que se passou esta tarde, e também o que lhe fizeram.

Ficou aguardando, os olhos verdes de longas pestanas presos nos meus.

Desentalei gentilmente a mão, sob o pretexto de segurar o cigarro, e comecei a falar.

Principiei pela agressão de que fora vítima e descrevi-a rapidamente. Não pareceu

surpreendida, nem abriu mais os olhos grandes, nem nada. Como se fosse tudo

natural.

- Quem pode ter sido, Al? - inquiriu, traduzindo um interesse meramente

profissional. Como um polícia o faria. Apenas ligeiros vincos se lhe desenharam na

testa.

Encolhi os ombros.

- Não sei. E você, tem alguma ideia?

Reflectiu um pouco, acabando por concluir num gesto de desânimo:

- Lamento, Al, mas não consigo ajudá-lo...

Virei o rosto de modo a poder ficar de frente para ela.

- Rita, haverá alguma coisa que me tenha ocultado, algo que julgue não ter

importância, mas que depois disto que sucedeu me possa fornecer um indicio, por

pequeno que seja?

Negou terminantemente.

- Não, Al. Juro que não. Além disso, você conhece perfeitamente o empenho

que existe da nossa parte em que possa resolver tudo do modo mais eficiente

possível. Não seria, portanto, lógico que procedêssemos em contrário, visto que

assim estaríamos a trabalhar contra nós próprios... Não acha?

Sim, isso era verdade. Partindo evidentemente do principio que o negócio era

legal... E visto que não adiantaria insistir naquela nota, passei a desenrolar o resto da

música. Não todo o resto. Quase todo, no entanto, pois que me limitei a omitir dois

ou três pormenores, entre eles o destino da viagem do dia seguinte. Apenas, se

alguém me perguntasse porque não o revelava, eu pura e simplesmente não saberia

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responder.

Rita Grahame aceitou a incógnita depois que lhe expliquei:

- A partir daqui considero que a questão é pessoal. Essa a razão porque

prefiro não a pôr a par de tudo o que está a ocorrer. No fim terá um relatório

completo. E, num aspecto, estou agora convencido de que você tinha inteira razão:

quando me garantiu que algo de importante estava para se desenrolar brevemente.

Julgo que é certo, e que os resultados não tardarão. Embora tenha também a

convicção de que o pior está para vir e que o caso não vai ser assim fácil de arrumar.

Rita passou o braço nu por sobre as costas do sofá, deixando a mão descair

casualmente no meu ombro do lado oposto, e traçou as pernas. O penteador abriu-

se mas ela pareceu não ter reparado. Inclinou-se mais, e se até ali eu estivera

convencido de que alguma peça especial lhe sustentava os seios esplêndidos, soube

que me tinha enganado redondamente.

- Bem - disse eu -, vou-me embora.

- Al... - Os olhos brilhantes diziam tudo o que pretendia que eu soubesse.

Encarei-a.

- Não, Rita. Não hoje. Quando estiver tudo acabado, poderemos falar sobre

isso. Até lá, não.

Puxou-me suavemente, e os lábios quentes tocaram-me a face.

- Está bem, Al. Mas não te esqueças desta promessa...

Levantámo-nos, e no caminho para a sala recolhi a maleta, cujo conteúdo lhe

mostrara no decorrer da conversa. Quando estava já com a mão no trinco ela pediu,

erguendo o rosto:

- Um beijo, Al... Só um beijo de despedida.

Condescendi. Ao principio. Porque depois acabei por dar realmente uma

ajuda, e quando isso sucedeu a maleta preta tombou no chão.

Ao sair, apesar do meu espírito pairar um bocadinho longe do assunto que

me levara ali, ainda resolvi deixar cair uma pergunta.

- Rita... sabes por acaso alguma coisa sobre o tipo que morreu aqui perto,

assassinado, anteontem à noite?

Respondeu-me, enormemente surpreendida:

- Não... não sei nada ...

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Sabia. Saí, fechando a porta.

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CAPÍTULO VIII

Tsimshatsui, no extremo sul da península, é o término da via férrea

Kowloon-Cantão, que se estende mais para norte, até Hankow. O trecho inglês da

linha tem vinte e duas milhas de extensão e é explorado entre Kowloon e Lowu, na

margem sul do rio Shumshum, que constitui parte da fronteira britânica com a

China.

Cheguei à estação cerca das nove. Muito embora não esteja exactamente

dentro dos meus hábitos comparecer quase meia hora antes da partida do comboio,

o certo é que o mesmo nervosismo que não me permitia dormir desde as seis horas

me fizera deixar cedo o hotel.

O movimento no cais, embora não fosse comparável ao de qualquer outra

grande cidade, dava contudo a ideia de que o tráfego habitual era intenso. Havia

quatro plataformas e três vias, mas só uma destas estava ocupada por uma

composição de quatro carruagens e locomotiva diesel lá no extremo. Uma tabuleta

no princípio da plataforma que lhe dava acesso dizia: “KOWLOON-CANTÃO.

Partida às nove e vinte e cinco.” Era o tal. No bolso tinha já o bilhete para a viagem,

o qual constituía parte do conteúdo do sobrescrito azul que Wu Tchao me havia

entregue na véspera. Na mão direita segurava com forca a pega dourada da maleta

preta. A chave respectiva seguia no bolso superior do casaco cinzento-claro. E à

parte isso, os documentos e o dinheiro, que eram o conteúdo restante do tal

sobrescrito, e o resto da roupa, eu não transportava mais qualquer bagagem. Ou, se

quiserem, levava algo mais. Um grande caroço na garganta, o coração contraído e

um montão de ideias baralhadas na cabeça.

Percorri devagar toda a extensão da plataforma, olhando distraidamente as

pessoas e os objectos. As carruagens, pintadas de vermelho-escuro, ostentavam

placas metálicas indicando o número e o destino. Só a da frente era de outra cor,

verde carregado, e o aspecto dessa era: melhor que o das restantes; em vez de uma

sala única estava dividida em compartimentos de assentos estofados. Consultando o

bilhete, verifiquei que se destinava àquela mesma e que o meu lugar ficava no

compartimento número três. Pelo que pude ver cá de fora nenhum deles estava

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ainda ocupado. A porta, junto ao degrau, encontrava-se somente um empregado

chinês de casaco branco e boné na cabeça, que quando passei me endereçou um

sorriso muito mais colorido que o amarelo da cara.

Chegado perto da locomotiva fiz meia volta, e nessa altura reparei que o

quiosque que existia junto à entrada da gare, para venda de publicações, estava a ser

desentaipado por um chinês miudinho rodeado de pilhas de jornais e revistas.

Dirigi-me para lá.

- Um jornal - pedi. Rodou o pescoço e piscou os olhinhos.

- Sim, mister. Qual?

- Qualquer serve, desde que seja escrito em inglês.

- Sim, mister, Li Wong tem o South China Morning Pôst, o Hong-Kong

“Tiger” Standard, o Sunday Post-Herald e o New York Herald Tribune - recitou.

- Okay. Dê-me um de cada.

Entregou-me os quatro exemplares, e em troca dei-lhe uma nota.

- Guarde o troco.

O rosto pareceu de repente ter sido interiormente iluminado por uma

lâmpada de cem velas.

- Sim, mister, obrigado, mister, não quer mais? Li Wong tem revistas,

mulheres nuas, fotografias, tudo, vai gostar, tem chinesas e brancas, tem tudo sem

nada em cima, preto e branco e cores bonitas, barato, está escondido, polícia não

gosta, Li Wong tem...

Podia ainda ouvi-lo, a dez metros. O relógio enorme da estação marcava

nove e quinze. Havia mais gente no cais, e eu comecei a dirigir-me para a carruagem

de 1.ª classe. As outras apinhavam-se de multidão ruidosa carregando cestos, sacos,

embrulhos e filhos. Recusei-me entregar a maleta ao empregado de farda branca.

Polidamente, inquiriu:

- É tudo, sir?

Fiz sinal que sim, e para o contentar entreguei-lhe o bilhete. Foi conduzir-me

ao compartimento três. Depositei-lhe uma nota na mão - é assim que os ricaços

procedem - e ele agradeceu com uma vénia e saiu. Escolhi o lugar do lado da janela,

orientado no sentido da máquina, coloquei com cuidado a mala encostada à parede,

sobre o estofo, sentei-me e pousei os jornais sobre os joelhos.

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- Bom dia, Mister Chasey! Dá-me licença?

Desviei o olhar para a entrada do compartimento. Ali especado, mala na mão

e um sorriso largo a distender-lhe o bigode à galã, estava o tipo que havia falado. E

quem havia de ser, senão o parceiro com quem já havia topado duas vezes na

véspera e do qual não podia gramar nem o cheiro da brilhantina! Não consegui

disfarçar o meu desagrado. Acho até que nem tentei.

- Entre e sente-se. Pode até deitar-se, se entender! No fim de contas o

compartimento tem seis lugares, não é?

Não perdeu o sorriso. Dir-se-ia que o fixara com fita gomada. Entrou, atirou

com a mala de pele branca para cima da rede e deixou-se cair no lugar fronteiro ao

meu.

- Lindo dia para viajar, hem?

- É verdade - disse eu. - E como é que sabe o meu nome?

Esclareceu, com o ar mais natural do mundo:

- Perguntei no hotel. Simples, não é?

- Muito simples - confirmei. - Mas já agora, se não me leva a mal esta

impertinência da minha parte, posso saber por que razão “perguntou no hotel”?

- Simples curiosidade. Tudo simples. Este era um daqueles tipos para quem

tudo é tão simples como uma parede pintada de cor-de-rosa. Eu estava a atingir um

grau razoável de irritação. Mas contive-me o bastante para continuar.

- Simples, não é? Você costuma bisbilhotar a vida de todas as pessoas que

encontra? Hong-Kong é uma grande cidade...

A fiada de dentes brancos e alinhados brilhava tanto que eu se quisesse podia

ver neles reflectidos os meus.

- Um cigarro? Estendia-me um maço de uma marca qualquer.

- Não, obrigado.

- Como queira - retorquiu, sem perder um milímetro sequer aquele sorriso

enervante. Extraiu um da marca ordinária que fumava, e eu entalei igualmente um

dos meus entre os dentes.

- Tem lume, por favor?

Seria que aquele sujeito não tinha três cêntimos para comprar uma caixa de

fósforos? Apontei-lhe o Dunhill aceso, e se o isqueiro fosse uma arma decerto teria

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disparado.

- Obrigado, Mister Chasey. O meu apelido é Fernandes.

Talvez já só possuísse apelido, e o nome próprio tivesse sido gasto no meio

de tanta conversa.

Ouviu-se nesse instante o apito do comboio e passados momentos a

composição punha-se em marcha.

- É espanhol, Fernandes? - inquiri distraidamente. Olhou-me de tal forma

que pensei que tivesse dito alguma asneira. Ele porém limitou-se a explicar:

- Não, Mister Chasey, não sou espanhol. Fernandes é nome português. Eu

sou português. De Macau. Também vai para Cantão?

Tive um ligeiro sobressalto.

- “Também”? Porquê, vai para lá?

- Acertou. - E sempre sorrindo: - Negócios... E você?

Repuxei os músculos, forçando um sorriso tão grande que me deve ter

deixado todos os dentes à mostra.

- Negócios...

Por agora, a conversa ficou por ali. Apenas me levantei para abrir a janela, a

ver se o cheiro horrível do tabaco do senhor Fernandes me incomodava um pouco

menos. Agarrei em seguida um jornal, ao acaso, e comecei a ler.

Claro que de vez em quando o senhor Fernandes tentava engatar conversa,

mas ao ver que não pegava só lhe restava acender outro cigarro e olhar para fora.

Não tinha muito que ver. Após a saída da cidade, delimitada

convencionalmente em Boundary Street, o comboio atravessara o túnel que perfura

as colinas de Kowloon, já nos chamados Novos Territórios. O túnel desemboca

numa pequena planície de solo barrento, e à parte uma ou outra aldeia não há nada

para onde olhar, a não ser as montanhas Taimoshan do lado esquerdo, até longe, ou

ocasionalmente, ao longo das baías de Tide Cove e Tolo Harbour, que constituem

uma extensa reentrância, alguma vila de pescadores. A última, e mais importante, em

que paramos, informou-me o meu companheiro de viagem chamar-se Tai-Po, e eu

agradeci e registei.

Depois o Fernandes sacou de baixo da camisa de flores um jornal que

decerto trazia entalado no cós das calças cinzentas. O jornal tinha um nome

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engraçado, Wah Kiu Yat Pão, e era escrito em chinês. Já me tinham falado neste

diário como sendo o de maior expansão no território.

E com o senhor Fernandes a ler atentamente o jornal dele, e eu a passar uma

vista de olhos pelo Tribune da véspera, os minutos foram passando tão lentos como

lento era o andamento do comboio.

- Eh, Chasey... Chasey!

Abri um olho, e depois o outro.

- Que é, desta vez?

- Chegamos.

- Aonde?

- Lo-Wu. Estamos na fronteira. Não vê?

Olhei pela janela e o que vi foi apenas um pequeno aglomerado de casas,

para lá do pequeno edifício da estação. No cais, onde o comboio se imobilizara,

havia muita gente, e aqui e ali guardas com farda inglesa, camisa e calções amarelos e

quépi preto.

- Vamos andando:

Dobrei os jornais, agarrei na mala e saí atrás dele. Na fachada da estação

havia uma porta que dizia “Alfândega”. A bicha chegava cá fora. Procurei ficar atrás

de Fernandes, a fim de que ele não assistisse à possível conversa que o oficial

britânico iria ter comigo lá dentro. “E mesmo assim”, reflecti, “basta só que o amigo

Fernandes grite o meu nome para eu ficar arrumado.” Porque para todos os efeitos

eu era agora Joe Coslow, e por aqui só já podem compreender o que eu sentia em

relação a este português intrometido.

A bicha tinha, em cinco minutos, avançado cerca de cinco centímetros

quando um dos tais guardas da polícia inglesa, um chinês de cara esperta, se

aproximou de nós e nos disse para o seguirmos.

Fomos, eu e o Fernandes, atrás dele, e entrámos numa outra sala onde a

mobília era uma secretária, cadeiras, um oficial sentado e um sargento de pé. Depois

de nós entraram mais dois europeus, possivelmente ingleses. Tratava-se de um

velhote aprumado, que devia ter combatido na índia ao lado de Churchill, e uma

linda rapariga loira, muito branca, que era por certo neta dele, por ser nova de mais

para ser a filha.

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Não houve problemas com o oficial da inspecção. Nem com o Fernandes.

Este seguiu primeiro, e dois minutos depois estava despachado e saiu sorrindo,

enquanto o chinês fazia sinal para eu avançar.

A pega da mala dava-me a sensação de escorregar por entre os dedos suados,.

e os papéis que seguiam no bolso interior do fato pareciam afectar bastante a zona

do coração. Adiantei-me até à secretária, cumprimentei e estendi a papelada.

- Mister Joe Coslow? - interrogou.

Anui. Consultou o resto dos documentos, estudando-os atentamente. Subiu

novamente o rosto bronzeado para mim.

- Quanto tempo calcula que demorará a transacção, sir?

- Julgo que poderei regressar amanhã. A menos que surja algum contratempo

desagradável - acrescentei.

- Muito bem - disse, devolvendo-me os papéis. - Não tenho objecções a

fazer. Desejo-lhe um resto de viagem agradável.

Agradeci, e dei-me pressa em guardar tudo no sobrescrito e sair. Não muita

pressa, porém, porque estes polícias são desconfiados. No caminho para a porta

encontrei-me com o velhote e a rapariga ingleses. Fiz um ligeiro cumprimento com

a cabeça e ambos corresponderam, a rapariga com um sorriso dissimulado. Bem

bonita que ela era.

Lá fora o Fernandes aguardava-me, de cigarro ao canto da boca.

- Tudo bem?

- Tudo okay - retorqui.

Andei, ao lado dele.

- Prepare-se para uma longa caminhada, amigo avisou.

- Longa? Não temos apenas de atravessar a ponte?

- Pois é, Chasey... São quase dois quilómetros a pé, até ao outro lado do rio

Shumshum... Os alaranjados são assim, amigo... A cortina de bambu atravessa-se a

pé, e tem de se trabalhar bem para o conseguir.

Havia algo que não me entrava no ouvido.

- “Alaranjados”, disse você?

- Exactamente, Chasey. Amarelo mais vermelho dá laranja, não é assim?

- Muito engraçado, amigo Fernandes - comentei, desgostado.

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O rio Shumshum delimita a fronteira com a China, e tal como bem afirmara

o tipo que seguia ao meu lado, era uma fronteira bem larga. Fomos marchando, a

toque de caixa, metidos na longa fila de gente que atravessava a ponte. À nossa

frente podia já distinguir-se nitidamente o território da China, e só esse facto tirava

toda a vontade de responder aos comentários de Fernandes. Porque a passagem de

Lo-Wu fora um obstáculo bem pequeno comparado com o que me aguardava do

outro lado do rio, no posto fronteiriço de Shumshum. “Tudo vai correr bem,

Chasey... Tudo vai correr bem...” E é mau sinal quando estribilhos como este

martelam na minha cabeça.

Afinal, as coisas que aconteceram daquela ponte para diante, e dentro da

hora seguinte, excederam tudo o que eu admitira que poderia suceder. Sobretudo,

foram diferentes.

- Por que será que estes gajos têm todos cara de diarréia? - segredava-me

Fernandes, depois de termos sido interrogados e enquanto éramos escoltados até à

carruagem do comboio que nos transportaria até Cantão.

A inspecção não fora fácil, claro que não, e eu suara um mau bocado diante

do oficial chinês que ora falava secamente para mim num mau inglês, ora se dirigia a

dois parceiros igualmente fardados que o ladeavam cuspindo sons guturais. Os

papéis foram-me vistos e revistos, a mala aberta, o dinheiro contado, e o interior tão

esquadrinhado como se tivessem receio que eu levasse ali dentro o vírus de alguma

terrível doença ocidental. Mas passou.

O primeiro episódio inesperado aconteceu quando Fernandes se adiantou

depois de mim para ser inspeccionado. Eu virava costas, e já ia sair, quando ouvi a

primeira pergunta que lhe fizeram:

- Viaja com o Sr. Coslow?

Todos os músculos do meu corpo deixaram de responder, eu imobilizei-me e

queria andar mas não podia. Mas a resposta de Fernandes veio pronta.

- Sim, chefe. Somos amigos. Porquê? Há novidade?

O chinês retorquiu agrestamente que não, o sangue voltou a circular-me nas

veias e eu continuei a andar para a saída, onde fiquei aguardando a vinda dele.

Quando surgiu, o sorriso brilhante estampado no rosto moreno, o seu único

comentário foi aquele que já referi. Respondi, sorrindo também.

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- Talvez seja do arroz... amigo Fernandes. Notei um brilho agradável nos

olhos negros, quando os fixou por segundos nos meus.

Um quarto de hora depois, já devidamente instalados no compartimento de

1.ª classe da carruagem de mau aspecto dos Caminhos de Ferro Nacionais Chineses,

Fernándes sugeriu:

- Chasey, não seria melhor levarmos qualquer coisa para comer pelo

caminho?

Assenti da melhor vontade.

- Óptimo. Mas... como conseguiremos arranjar isso?

- Existe na estação um restaurante... enfim, uma tasca. Podem preparar-nos

comida para a viagem. No fim de contas, o comboio não parte antes do meio-dia e

meia, e poderemos inclusivamente comer lá.

- Vamos a isso - respondi, e levantámo-nos. Foi então que o segundo

acontecimento inesperado teve lugar. Vi,aquela rapariga entrar por uma porta

pequena, ao lado da sala onde eu fora interrogado. E não sei o que se passou

comigo, mas o que foi fez-me apertar com força o braço de Fernandes, gritar-lhe

“Espere aí!” e precipitar-me correndo para a porta por onde a rapariga chinesa

desaparecera.

Estaquei logo depois de passada a ombreira. A rapariga estava lá, na sala

escura. Conversava com um polícia chinês. Olharam-me ambos, e eu ali parado,

com a respiração suspensa. Andei dois passos e parei de novo. Eles não diziam

nada. Limitavam-se a olhar, como se não percebessem. Sobretudo ela. Como se não

me conhecesse. Mas isso não era verdade.

- Mae - disse eu.

- Como estás?

Ela não respondeu. Fitava-me, apenas.

- Mae... não me digas que não te lembras de mim!

O chinês falou para ela, emitindo aqueles sons guturais. Ela falou depois, na

mesma língua. O homem avançou seguidamente para mim.

- Que quer? - inquiriu de mau modo, em inglês.

- Falar com ela.

- Ela não o conhece. Vá-se embora.

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Não me conhecia? Mae Leung não se lembrava de mim? Ou eu estava doido?

- Mae - chamei, diminuindo a distância que nos separava.

Ela recuou, e o chinês segurou-me com força.

- Vá-se embora. Ou quer arranjar sarilho?

Encarei-o com fúria, desprendi-me, olhei outra vez para ela, e acabei por

voltar as costas e sair. Não me dei conta sequer de que Fernandes vinha ao meu

encontro, e lembro-me só de, quando me perguntou o que sucedera, lhe ter

respondido que não fora nada.

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CAPÍTULO IX

Chegamos a Cantão às três e meia da tarde. Foi o termo da etapa de três

horas que se iniciara em Shumshum. A lembrança do episódio da estação fora aos

poucos ligeiramente amenizada pela conversa do meu parceiro, mas o mal-estar que

a cena me havia provocado não ia desaparecer tão cedo. É certo que eu acabara por

concluir que não podia de facto ser Mae Leung a rapariga do posto fronteiriço, mas

a verdade é que o meu espírito aceitara tal solução com relutância.

O buraco que eu trazia dentro do estômago era bem grande, e isso como

consequência do facto de não ter comido quase nada. Ainda por cima os meus

cigarros haviam acabado, de modo que eu fora forçado a aceitar a oferta de

Fernandes e a fumar aquele tabaco horrível que sabia a alcatrão.

Enfim, a minha forma não era das melhores quando nos apeámos da

carruagem. Fernandes, pelo contrário, continuava igual a si mesmo, conversando

animadamente, rindo e comentando com piada cada pormenor. Julgo que

compreendera o meu estado de espírito, e o que quer que eu pensara a seu respeito,

antes de travar conhecimento com ele, a minha opinião alterara-se de forma notória.

- Bem, Chasey - disse ele. - Você tem para onde ir, não é verdade?

- Sim - respondi. - Ficarei cá pouco tempo. E você?

- Devo regressar amanhã. Entretanto, vou instalar-me no Shangai. Gostaria

que aparecesse.

- Não sei ... Talvez.

- Bom, seja como for, se não puder encontrar-se comigo, lá nos veremos em

Hong-Kong. Foi um prazer viajar na sua companhia, amigo. Mas precisa melhorar

essa disposição! - aconselhou. E estendeu-me a mão.

-Obrigado por tudo, Fernandes - retorqui. - E seja como diz... aqui ou lá,

terei muito gosto em voltar a vê-lo... - e acrescentei: - Espero nessa altura sentir-me

melhor do que estou hoje.

Apertamos as mãos, ele dirigiu-me um último sorriso, daqueles que lhe

deixavam as duas fiadas de dentes à mostra, e afastou-se. Ainda me acenou com um

braço quando já ia distanciado, entre a massa de gente que se canalizava para as

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saídas.

Fiquei ali. Mais só, ainda. Apenas por um minuto. Porque alguém me tocou

de leve num braço, e eu ouvi soprar:

- Mister Coslow ...

O homem tinha a minha altura, o rosto era seco e chupado e as orelhas

pareciam dois abanos. Era chinês e estava enfiado num fato branco que fora

comprado para um tipo com o dobro da largura dele.

- Sim, o meu nome é Coslow. Você deve ser Ying Fai.

- Exactamente. Não foi fácil localizá-lo, Mister Coslow...

Arrastava as palavras, separando demasiado as sílabas. Cumprimentou-me

com um aperto de mão impessoal e uma ligeira inclinação do tronco.

-Podemos ir?

A rua fronteira à estação regurgitava. O meu comité de recepção conduziu-

me a um carro negro estacionado próximo. O automóvel era enorme, antigo, de

marca para mim desconhecida. O homem deu a volta, instalou-se atrás do volante e

destravou o trinco da porta para eu poder entrar. Arrancamos aos esticões e fomos

entalar-nos no tráfego intenso.

- Dificuldades?

- Não - disse-lhe. - Tem aí cigarros? Abriu o porta-luvas e tirou um maço já

aberto.

- Sirva-se. Puxei de um e acendi-o com o isqueiro. O tabaco não era nada por

aí além, mas sempre era preferível ao de Fernandes. Expeli uma baforada.

- É você quem me vai fornecer as informações, ou a sua função é somente

conduzir-me ao chefe?

- Ambas as coisas - esclareceu. - Sou agente de ligação entre Cantão e Hong-

Kong. Era-o pelo menos até agora - emendou. - A partir de amanhã, com a partida

da nossa ama, tudo ficará liquidado.

- Uma mulher? - surpreendi-me. - Quem é?

- Conhecê-la-á, na devida altura. De resto, de nada lhe interessa saber quem

seja. A sua missão é apenas velar pela sua segurança até Hong-Kong. Isso é que

importa, Mister Coslow. Quanto aos pormenores que lhe poderão ser necessários,

esclarecê-lo-emos dentro em pouco.

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Calou-se, dando-me a entender que não adiantaria mais nada. Eu também

não abri mais a boca, a não ser para chupar o cigarro.

O percurso que seguimos foi tão tortuoso e complicado que mesmo

prestando atenção às ruas ser-me~ia impossível encontrar o caminho para voltar

para trás. No quarto de hora mais próximo o carro dobrou dezenas de esquinas, ora

à esquerda, ora à direita, e às tantas eu tinha a impressão de que já passáramos por

ali. Resolvi recostar-me no assento, fechar os olhos e deixar-me ir. Sentia-me

maçado, animado apenas pela expectativa do que viria a seguir.

Devo ter passado pelo sono, porque quando descerrei as pálpebras notei que

havíamos deixado o centro da cidade e que já começara a escurecer. Tentei baixar o

vidro da janela, mas verifiquei que estava empenado, pois a partir de meia altura

recusou-se a descer mais. O ar tornara-se pesado, e não demorou muito que grossos

pingos de chuva começassem a cair e a entrar pelo espaço aberto. Voltei a subir o

vidro. O carro tomou por uma rua larga marginada à direita por uma longa zona

densamente arborizada, e de outro lado por longa fiada de prédios de aspecto

sombrio.

Percorrida uma centena de metros, o condutor rodou rapidamente o volante

para a esquerda e foi estacionar com uma travagem brusca defronte de um dos

edifícios, que eu não saberia nunca como se distinguia dos outros, porque eram

todos iguais e não possuíam qualquer numeração. Deu-me a indicação de que

tínhamos chegado. Abriu a porta, saiu para o pavimento molhado e eu imitei-o. A

chuva cessara. Subi atrás dele os degraus até à porta maciça, do topo da qual, saindo

por um orifício, pendia um arame grosso terminado em argola. Ele enfiou aí os

dedos e puxou com tamanho entusiasmo que me surpreendi com o facto de o

objecto não lhe ter ficado na mão.

Do interior chegou até nós o som da campainha, e tive a certeza absoluta de

que a vizinhança ficaria sabendo que havia visitas. Quem veio abrir foi uma velhinha

encarquilhada. Se ela tinha boca, e olhos, e nariz, era tudo tão miudinho que

ninguém o poderia afirmar de repente. Pela minha parte começava a interrogar-me

por que razão as por tas estranhas me eram sempre abertas por bichinhos assim.

Logo que nos viu alargou mais a abertura, não muito, apenas o suficiente para

podermos esgueirar-nos para dentro. A divisão da entrada era pequena, arranjada

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com requinte, e percebia-se logo que o sítio pertencia a pessoa de bom gosto e que

tinha dinheiro para o satisfazer. Sem exageros, porém. A única particularidade que

observei com curiosidade foi que a luz provinha, por processo indirecto, da junção

das paredes forradas de papel de tons agradáveis com o tecto de tábua de bambu.

A velhinha trocou animadamente com Ying Fai algumas palavras numa voz

cacarejante, e do que disseram só consegui apanhar o nome Coslow. Quando

terminaram ela veio até mim e, dobrando-se até quase bater com a cabeça no chão,

murmurou algo de forma quase imperceptível e de que não percebi patavina, mas

que tomei como saudação respeitosa. O chinês confirmou a minha impressão,

explicando-me:

- Apresenta-lhe as boas-vindas e está-lhe muito grata por ter vindo para levar

a nossa ama a lugar seguro.

Correspondi dobrando a espinha o mais que pude. Ying Fai convidou então:

- Queira acompanhar-me, Mister Coslow.

Segui-lhes os passos ao longo do corredor que se abria em frente, ao fundo

da saleta. O corredor era comprido, atapetado por uma passadeira macia e

iluminado por pequenas lanternas colocadas de um e outro lado da parede, à altura

das nossas cabeças e afastadas uns cinco metros. Fartámo-nos de andar. Não

exagero se garantir que a rua tinha pelo menos sessenta metros de comprido. Numa

reentrância da parede estava arrumada uma mesinha de rodas com algumas garrafas

e copos na parte inferior. Devia tratar-se do posto de reabastecimento para os

caminhantes cansados.

Chegamos por fim. O salão era de tal forma grandioso que bastou olhar em

volta para me tornar mais pequeno. Aquilo que os meus olhos contemplavam era

talvez um dos últimos redutos do esplendor da China antiga, como nós a sonhamos

quando aos dez anos lemos histórias fabulosas do Império do Sol Nascente. Os

móveis esplêndidos, as tapeçarias, os lustres, as estatuetas maravilhosas de laca e

jade, o aquário gigantesco que abrangia toda uma parede majestosa, onde as luzes

estudadas punham reflexos solares na água de tonalidade azul e nos magníficos

peixes irisados de formas estranhas, tudo nos transmitia a noção de irrealidade, de

pesadelo que não desejamos que acabe.

Mas de repente tudo se diluiu. As tapeçarias, as estatuetas, o aquário e os

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peixes, tudo isso passou a ser apenas invólucro bonito, mas sem importância, que se

rasga, pois o que ele contém é só o que interessa. O resto desapareceu quando ela

entrou.

Não sei descrever o que senti. O coração bateu mais forte, mas o sangue não

podia circular porque estava todo no cérebro, e as outras partes do corpo, depois de

percorridas por aquele fluxo que transmite prazer sensual em dose tão forte que

pouco se retém e quase tudo se perde, haviam ficado a flutuar.

Veio andando até mim. Ou foi uma nuvem que me depositou de mansinho

perto dela. Nos meus ouvidos entravam notas suaves de uma melodia oriental.

- Como está, Mister Coslow? Coslow. Quem era? O meu nome era Chasey,

mas Chasey não estava ali.

- Mister Coslow... Que tem? Não sei. Sei lá o que tem o Coslow ... mas gosto

dele.

- O nome é bonito, dito assim...

- Coslow!

- Sou eu. Coslow sou eu. - As palavras saíram-me assim, e soaram muito

distantes. Porque perto de mim estava apenas a visão dos olhos negros, do rosto de

escultura finíssima, emoldurado pelos cabelos sedosos, a reflectirem em tonalidades

preciosas a luz que pairava sobre eles e deslizava em fios dourados pelo tecido que

acariciava com volúpia o corpo deslumbrante.

- Você não está bem, Coslow... Não sabe o que diz. Sente-se doente?

As palavras vieram poisar-se-me no rosto, beijadas pelo perfume dos lábios

sensuais que sorriam levemente. Fiz um esforço muito grande para conseguir

pronunciar roucamente:

- Não... não tenho nada. O meu nome é realmente Joe Coslow. Peço-lhe que

me perdoe aquilo de há pouco, mas creio que fui acometido por uma tontura.

Possivelmente resultado do cansaço da viagem. Acho que já passou.

Não passara nada. Nem se iria embora assim facilmente. Para começar, eu

não queria que fosse. É certo que recobrara a consciência, mas o efeito inicial nunca

poderia parar de exercer-se. Nunca, mesmo muito depois de ela deixar de estar

perto de mim. E ela continuava ali.

- Talvez seja melhor sentar-se...

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- Como? - disse eu.

- Sente-se e descanse um pouco. Vou preparar-lhe uma bebida...

- Não... por favor, não me arranje bebida nenhuma - quase gritei. E

justifiquei-me: - Prefiro nestas circunstâncias não beber nada. Quanto a sentar-me,

sim, minha senhora, acho que me vou sentar um bocadinho.

Tive a percepção de que o meu ligeiro descontrolo a divertia um pouco. Não

como se troçasse, somente achando graça à questão. Eu não encontrava graça

nenhuma, mas se ela achava que tinha, então é porque tinha mesmo, e eu forcei um

sorriso nervoso e sentei-me. O meu corpo enterrou-se no sofá fofo. Ela ficou

defronte, num cadeirão pesado de espaldar muito alto e dois braços terminados em

cabeça humana esculpida. Estão a ver a cena. A rainha no trono e o cachorro recém-

vindo da América repousando no sofá. Mas que diabo, eu não sou tipo de

complexos!

- Minha senhora, se não incomodo muito, seria possível mandar arranjar-me

um cigarro?

A parte inferior do vestido subira até aos joelhos. As pernas eram

maravilhosamente bem feitas, macias, de um leve tom bronze-dourado. E eu ficava

mesmo em linha.

- Que marca prefere?

- Bem, eu fumo Crown, mas acho que...

Evidentemente que ali não havia Crown.

- ... mas serve outro ... americano, de preferência. Ergueu-se e caminhou até

uma estante de mogno embutida na parede. Eu disse que “caminhou” para lá, mas

não foi isso exactamente. Ela não caminhava, nem andava ... Movia-se, fazendo-se

transportar sobre um tapete mágico que deslizava no vácuo, e o movimento das

suas pernas, acompanhado pelo ondular do corpo de deusa, deixara rasto luminoso.

Quando voltou, trazia algo na mão.

- Aqui tem, Mister Coslow.

Arregalei os olhos para o pacote de Crown e em seguida rasguei o invólucro,

meti-o ao bolso e retirei e acendi um cigarro. Pus o maço sobre o braço largo do

sofá, onde descobri que havia um pequeno cinzeiro de metal.

- Vou dar ordens para lhe preparem o banho, Mister Coslow ...

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Foi. Reflecti que era boa ideia, um banho. Refresca o corpo e as ideias. E eu

bem necessitado estava de arejar os poros. Entretanto a minha imaginação andava à

solta entre as espirais do fumo do cigarro. Que mulher! Majestosa, inacessível. Essa

pelo menos era a impressão vincada que eu possuía. Como se uma corrente de alta

voltagem a protegesse a cada instante da tentação dos mortais. Seria?

Embora lhe não tivesse ouvido os passos, pressenti imediatamente a sua

presença quando regressou à sala. Veio ocupar de novo o cadeirão pesado.

- Dentro de minutos poderá subir ao quarto que lhe foi destinado para esta

noite. Entretanto, podemos ir conversando.

Traçou as pernas e eu desviei o olhar e pus-me a fitar uma florzinha lilás de

alcatifa.

- Julgo que Ying Fai lhe entregou a encomenda que trouxe de Hong-Kong... -

falei.

- Sim. Está tudo em ordem, Mister Coslow. Agora pode já tomar

conhecimento completo do objectico da sua viagem a Cantão.

Os meus olhos encontraram-se com os dela. Resolvi brincar com o isqueiro,

tentando desaparafusar com a unha a rosca da botija de gás. Ela começou.

- Seguiremos viagem amanhã, no comboio que sai às sete e trinta e cinco. Wu

Tchao tê-lo-á certamente posto de sobreaviso quanto ao perigo que a nossa saída de

Cantão envolve. Vou explicar-lhe brevemente porquê. O senhor conhece o

conteúdo da mala que transportou. Trata-se de cerca de um milhão de dólares em

notas falsas. Pois bem, esse dinheiro será aqui substituído, e de Cantão para .Hong-

Kong a maleta passará a conter exactamente a mesma quantia, mas desta vez em

notas autênticas. A sua justificação, na alfândega, poderá ou não ser aceite.

Acreditamos que haja grandes probabilidades de o ser. Vejamos ... Mister Coslow,

está a ouvir-me com atenção?

- Sim, minha senhora - apressei-me a dizer, deixando escorregar o isqueiro na

algibeira.

Prosseguiu.

- Como ia dizendo, Mister Coslow, a transacção que a sua firma, a Hong-

Kong Electrical Industries Incorporated, pretendia efectuar com a Chinese National

Electronics Entreprise, Ltd., deveria ser efectuada a dinheiro, porque a transferência

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do seu banco de Hong-Kong para a agência do People’s Government Bank de

Cantão demoraria pelo menos quatro dias, isto é, até sexta-feira, e o negócio tinha

de estar concluído até hoje, dezanove. Esta foi a declaração que o senhor preencheu

na fronteira, e que já deve ter sido confirmada.

Cortou por momentos a explicação, enquanto tirava de uma caixa cilíndrica

forrada de pele um cigarro embrulhado em papel amarelo. Levantei-me para lho

acender, e esse contacto instantâneo da minha mão com a dela foi suficiente para

me produzir um fluxo oscilante na espinha. Comecei a dizer:

- Se é certo o que julgo ter percebido, a conclusão a tirar é que a justificação

que tenho de dar aos funcionários do governo em Shumshum será que a transacção

não se chegou a efectuar, pelo que regresso a Hong-Kong aviado como parti de lá.

Surpreendeu-se, arqueando ligeiramente as sobrancelhas bem desenhadas.

- Foi Wu Tchao quem lho disse?

- Não, minha senhora, fui eu que inventei.

O sorriso que me endereçou soube-me tão bem como a primeira medalha

que me deram na escola.

- As minhas felicitações, Mister Coslow.

- Muito obrigado - respondi. - É exactamente como acaba de... “inventar”.

Só falta agora acrescentar o motivo desse fracasso, e ele é bem simples: a Chinese

National Electronics Entreprise, Ltd., abriu falência esta manhã. A comunicação

sairá no jornal da noite. Tão simples como isto, Mister Coslow, e por isso resultará.

Eu sabia agora tudo o que queria... por enquanto. Nesta altura veio da porta

uma voz esganiçada, que reconheci como sendo a da velha que me apresentara as

boas-vindas.

- O banho está pronto. Pode subir. Tai San vai conduzi-lo ao seu quarto.

Aguardo-o aqui em baixo dentro de três quartos de hora.

O tom em que se me dirigia não era autoritário. Pretendia somente significar

que daí a três quartos de hora eu devia descer, mesmo embrulhado na toalha. Ergui-

me, tive uma curta inclinação de cabeça, e fui na peugada da velha Tai San.

Havia mudado de vestido, quando cheguei cá a baixo.

O que lhe moldava agora o corpo era verde-escuro, coberto por pequeninas

pedras cujos reflexos percorriam todas as tonalidades entre o verde, o azul e o roxo,

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quando ela se movia. Uma fita no mesmo tecido passava-lhe sobre os cabelos, indo

esconder-se por detrás das orelhas delicadas. Além do anel de esmeralda, no dedo

médio da mão direita, não usava qualquer outra jóia ou artifício de maquilhagem.

Nem necessitava. Na minha opinião, prejudicaria mesmo o efeito. Tinha entre os

dedos uma daqueles cigarros amarelos. Pôs-se em pé quando entrei. Fui até perto

dela, como um prego atraído por um electroíman.

- Permita-me que lhe diga que é muito bela - falei sem dar por isso.

Sorriu. Tenho visto mulheres sorrir. Para mim, inclusive. O sorriso mais

lindo que encontrara havia sido o de Vikki. Este, fazia que eu não pudesse lembrar-

me de como Vikki sorria.

- Agradeço-lhe o galanteio - disse-me. - E confesso mesmo que me agradou,

porque não é esse o gênero de elogios que os homens americanos costumam dirigir

às mulheres. Eles preferem... como se diz... ?

- Piropos?

- Sim.

- Como sabe? Riu, pela primeira vez. Decidi que faria os possíveis para que

isso acontecesse mais vezes.

- Mister Coslow, não me imagine uma mulher solitária que passou a vida

encerrada neste casarão... Fui educada em Inglaterra até aos dezasseis anos. Viajei ...

e leio muito. Isto elucida-o?

- Perfeitamente.

Esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro e deu-me a entender que íamos

deixar o salão. No corredor deteve-se, para me explicar:

- Vamos sair, Coslow. Tenciono apresentar pessoalmente as despedidas a

uma grande amiga minha que vive aqui em Cantão. Possui uma pequeno restaurante

na cidade e pretendia vir aqui esta noite. Não julguei no entanto que tal fosse

conveniente, pelo que iremos nós lá. Aproveitaremos para jantar, visto que deve ter

almoçado bastante mal, não?

- Muito bem - respondi, absolutamente entusiasmado. “O diabo é este

corredor” - pensei. - “Mas na companhia dela nem vou dar por isso.” Enganei-me,

porém, porque nós não seguimos por onde eu viera mas sim para o lado oposto,

onde o tal corredor terminava num átrio de colunas de mármore e chão ladrilhado

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de preto e branco. Eu segui-a satisfeito da vida, sentindo-me em plena forma. A

porta devia ter uns três metros de altura e a parte superior era formada por vitrais

verdes e vermelhos compondo um desenho curioso.

- Quer ajudar-me a vestir o casaco? - pediu.

Estávamos perto da sala, ela segurando o casaco leve a condizer com o

vestido. Reparei que tinha os pés pousados num dos quadrados pretos. Tive de a

contornar de modo a poder ajudá-la, e enquanto o fazia ocorreu-me

momentaneamente uma daquelas ideias brincalhonas que nos assaltam quando

estamos bem dispostos, e que me fez murmurar irreflectidamente qualquer coisa

como “o peão come a rainha”.

- Mister Coslow... Foi o tom de censura afável contido nas palavras e nos

olhos que me fez tomar consciência do que dissera.

- Oli, perdão, miss... - desculpei-me rapidamente, e apressei-me a ir abrir o

trinco da porta.

Roçou por mim ao sair e nessa altura acometeu-me uma vontade louca de a

segurar e puxá-la bem forte de encontro ao meu corpo. O que fiz foi puxar a porta

nas costas.

Ying Fai esperava-nos junto do carro, naquele beco lateral. Abriu a porta da

retaguarda, fechou-a logo que nos instalamos e foi tomar o seu lugar ao volante,

pondo o automóvel em andamento.

- Gosto de música oriental, Coslow?

- Sim, minha senhora - menti descaradamente.

- Não me trate por “minha senhora”. E não precisa mentir dessa maneira -

pronunciou, fingindo-se zangada.

- Bom eu... - comecei, encabulado.

- Chamo-me Pamela Wong - e acrescentou logo, adivinhando por certo a

minha surpresa: - A minha mãe era inglesa, e daí a razão por que possuo um nome

europeu. Acha bonito?

- Muito bonito - assenti, sinceramente.

- Não estará a mentir outra vez? - inquiriu, fitando-me num jeito encantador

de desconfiança.

- Palavra que não, Pamela... Posso chamar-lhe assim?

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- É esse o meu nome, não é? - disse com seriedade.

- Sim, Pamela. Juro que acho bonito. E não gosto muito de música chinesa -

confessei.

Sorriu.

- Bem, assim já é melhor. Fiz-lhe aquela pergunta porque, se quisesse,

poderíamos ouvi-la no local aonde vamos...

Atalhei de pronto.

- Quero ouvir música oriental, Pamela. Vou chorar, se não ouvir música

chinesa, percebe? E fico amuado toda a noite. Vamos ouvir música chinesa, okay?

Soltou uma gargalhada maravilhosa. “Parabéns, Chasey, conseguiste de

novo!”

- Okay, Coslow ... não precisa insistir mais - tranquilizou-me rindo.

- O meu nome é Joe - disse-lhe baixo. - Está bem, Joe. “O meu nome é Al,

Pamela. Al Chasey. E o Chasey está completamente louco por ti.” Olhei para fora,

para que ela não visse como os meus olhos deviam brilhar no escuro.

- Está satisfeito, Joe? - perguntou-me por sobre o candeeiro baixo, cuja luz

era filtrada pelo abajur vermelho.

- Completamente. Já não aguento nem mais um pedacinho de comida -

respondi, embora tivesse passado aquela meia hora olhando mais para ela do que

para o prato.

A refeição decorrera naquela mesinha afastada que a dona da casa havia

reservado para nós. Era uma chinesa gorducha, já de idade, os olhinhos e os lábios

constantemente repuxados num sorriso imensamente agradável, e toda ela era a

coisinha mais simpática que se me deparou em dias da minha vida. Passou todo o

tempo que durou o nosso jantar num permanente vaivém, a saber se estava bom, se

gostávamos, se não queríamos mais, e depois ali ficava, as mãos fortes nas ancas, a

mirar-nos embevecida. Acabara de se retirar quando Pamela se me dirigiu. O

restaurante era pequeno e discreto, mas bem frequentado, e estava repleto. Ao

centro das restantes mesas, dispostas em semicírculo, havia um pequeno espaço

onde naquele momento três pares dançavam ao som da música oriental levemente

estilizada que quatro tocadores executavam no palco reduzido, próximo da nossa

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mesa.

- É extremamente simpática, a sua amiga - comentei, acendendo um cigarro.

- Sim - disse Pamela. - É a melhor amiga que já tive. Penso até que é a

principal razão por que terei pena de me ir embora - concluiu, com um pouco de

tristeza na VOZ.

- Quer dançar? - perguntei de repente.

- Quero.

Deixei o cigarro arder no cinzeiro e acompanhei-a até ao meio da sala.

Tomei-a nos braços e, antes de me deixar mergulhar no que deviam ser -as luzes

estonteantes do paraíso chinês, tive ocasião de reparar que todos os olhares

convergiam para nós. A razão não era eu.

Pamela não deixou que eu a puxasse para mim. Não me importei. O simples

facto de a ter nos braços, os seus cabelos a roçarem-me a pele e o contacto do seu

corpo escaldante eram muito mais do que o necessário para compensar qualquer

homem de cinco anos de trabalhos forçados.

- Você é um homem estranho, Joe...

Fitei-a.

- Porquê?

- Não sei, exactamente. Mas acho que... enfim, tenho a impressão de que está

deslocado. Que não é o género de homem que costuma estar... trabalhar neste tipo

de negócios.

Pela maneira como falava, eu quase poderia afirmar que ela o lamentava.

- E você, Pamela... também não é esse gênero de mulher...?

Uma sombra fugaz deslizou-lhe pelos olhos brilhantes.

- Joe...

- Sim?

- Por favor, não julgue apenas pelas aparências... está bem?

Aproximei-a um bocadinho mais, de modo a poder dizer-lhe ao ouvido.

- Está bem, Pamela... Pela minha parte, pedir-lhe-ei o mesmo. E vamos

esquecer isso, de acordo?

O rosto precioso voltou a animar-se.

- Okay...

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A música suspendeu-se, mas teve de ser ela a chamar-me a atenção para o

facto. Voltamos para a mesa. O cigarro estava apagado e eu acendi outro.

Contemplei o fumo, avermelhado sob o efeito da luz. “Que tens, Al? Que se passa?

Nunca te sentiste desta maneira, rapaz... Estás apaixonado? Ela é linda, não é? Mas

trata-se de um sonho... Não o esqueças... apenas um sonho.” Não, não podia ser

apenas um sonho.

- Que tem, Joe? Parece-me preocupado...

Estendi a mão e toquei com os meus dedos os dela. Não teve qualquer

reacção.

- Não é nada, Pamela. Ou antes, é tudo. Você. Vamos dançar?

Fomos. Desta vez foi diferente. Não posso explicar como aconteceu, mas sei

que os meus lábios lhe afloraram a face aveludada, que ela aceitou o beijo

encostando depois o rosto ao meu, e que eu a apertei mais até os nossos ‘corpos se

colarem completamente. Quando a música terminou regressámos à mesa. Voltamos

a dançar depois, mais vezes, muitas vezes. Até que ela disse:

- Joe ... Vamos embora. Temos de nos levantar cedo amanhã.

Custou-me muito dizer que sim. A chinesinha gorducha veio logo, a

despedir-se de nós, e após ter-lhe agradecido todas as atenções afastei-me

discretamente para que Pamela e a amiga ficassem à vontade. Por fim vieram, e à

porta, com o rosto molhado de lágrimas, a dona da casa renovou as despedidas.

Pamela beijou-a nas faces, e eu fiz o mesmo. Ficou a fazer adeus enquanto o carro

se afastava, e nós correspondíamos pelo vidro traseiro.

Eram onze e meia quando entrámos em casa, pela entrada do beco. Ying Fai

seguiu no carro e foi Pamela quem abriu a porta porque, segundo me disse, a velha

Tai San costumava deitar-se muito cedo e as criadas já se haviam despedido nessa

manhã.

Ajudei-a a despir o casaco e subimos depois as escadas para o primeiro

andar.

- Já sabe onde é o quarto, Joe?

- Já - disse eu.

- Bem... - trincou ao de leve o lábio inferior e os dentinhos muito brancos.

- Pamela... - chamei, segurando-lhe as mãos.

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- Joe...

Apertei-a com todas as minhas forças, e os meus lábios procuraram

furiosamente os dela. O beijo foi longo e escaldante.

- Gosto de ti - murmurei-lhe depois, junto ao ouvido.

- Também gosto de ti - sussurrou.

Afastou-se, suavemente, os olhos mais brilhantes ainda, os lábios húmidos e

o rosto levemente corado.

- Até amanhã, Joe.

Entrou no quarto. Eu fiquei ali, não sei quanto tempo. Andei ao longo da

balaustrada até à porta do meu quarto. Estaquei, com a mão na maçaneta. Não

cheguei a entrar. Voltei para trás, andando depressa. Bati à porta do quarto de

Pamela.

- Sim?...

- Sou eu... Joe.

A porta entreabriu-se. Empurrei um pouco.

- Joe... não...

- Sim.

Acabei de entrar. Foi ela quem passado um minuto acabou por encostar a

porta.

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CAPÍTULO X

Apenas Ying Fai nos foi acompanhar de manhã cedo à estação. Pamela

envergava um fato de saia e casaco de linho bege que lhe ficava tão bem como

qualquer outro conjunto que vestisse. A malinha era de pele de cobra, e não usava

qualquer fita no cabelo. Os olhos tinham hoje um brilho especial, o da noite

anterior, e as pálpebras apresentavam-se circundadas por ténues manchas violetas. A

manhã estava bonita e o dia ia ser quente. Fomos ocupar o nosso compartimento,

com o chinês adiante carregando as malas. Faltavam poucos minutos para a partida.

Enquanto Pamela passava um pouco de pó-de-arroz pelo rosto, Ying Fai, do

corredor, chamou-me com um gesto. Fui ter com ele e segui-o até ao extremo da

passagem. Aí, parou e virou-se para mim. Pronunciou num tom neutro:

- Está tudo em ordem, Mister Coslow.

Logo a seguir os traços da cara seca e ossuda movimentaram-se e o rosto

adquiriu outra expressão, menos dura.

- Mister Coslow... - arrancou.

- Sim?

- É acerca de...

A sua atitude era de hesitação, insegurança, e isso em Ying Fai tornava-se

quase incompreensível. Mas eu adivinhava as razões de tal mudança. Ajudei.

- Trata-se de Miss Wong. Okay, sou todo ouvidos. Assentiu, chegou-se

próximo, e começou a falar.

- Mister Coslow, o senhor merece-me toda a confiança. Não pelo facto de ter

sido mandado por “eles”... Mas é que nós, os chineses, aprendemos cedo a avaliar as

pessoas através de um primeiro contacto, e raramente erramos. Eu posso estar

enganado, mas confio na inspiração interior. E por isso que até certo ponto estou

tranquilo e lhe entrego a nossa ama. Isto, no que diz respeito ao senhor. Quanto à

devoção que ela, a minha ama, nos merece, não será preciso dizer mais que isto:

qualquer de nós, os que servimos aqui, estaria disposto a dar a vida por ela se tal

fosse necessário. Mas agora ela fica entregue a si. E é a si que eu peço, por tudo:

proteja-a em qualquer provação, Mister Coslow. E se o fizer, que os deuses o

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protejam, ao senhor.

Os olhos, normalmente de um brilho mortiço, haviam adquirido, durante o

pequeno discurso, certa vida que só seria possível neles descortinar em circunstância

muito especial.

Limitei-me a pousar-lhe a mão sobre o chumaço do casaco, que lhe dançava

sobre o ombro, e proferi:

- Certo, Ying Fai. Acho que pode confiar em mim. Farei tudo o que puder. A

sua ama chegará toda inteirinha ao outro lado. Ou então ficaremos ambos na banda

de cá.

A boca abriu-se-lhe, deixando à mostra as gengivas que seguravam os dentes

gastos, e a mão direita veio de encontro à minha.

- Obrigado, Mister Coslow. Agora, se dá licença, vou prestar as últimas

homenagens à minha ama.

Rodou, rumo ao compartimento de Pamela. Eu conservei-me onde estava.

Acendi um cigarro, afastando-me para dar passagem a passageiros que entravam.

Duas pessoas que tinham viajado desde Hong-Kong no mesmo comboio que eu - o

velhote reformado que combatera na Índia e a neta amorosa de rosto de virgem. O

primeiro cumprimentou serenamente e passou adiante com as malas, carregando-as

corredor fora com os restos da agilidade dos bons tempos. Ela vinha depois, e a face

ruborizou-se-lhe intensamente ao sentir a minha vista percorrer-lhe o corpo. Eu

permanecia indolentemente encostado à entrada, o cigarro pendente do, canto da

boca. Ela deteve-se, distante vinte centímetros. Durou alguns segundos apenas.

Muita coisa no entanto eu soube em tão pouco tempo. O lábio inferior tremeu-lhe

ligeiramente, houve um estremecimento quase imperceptível em todo o seu corpo

que se manifestou com mais intensidade no movimento dos seios pequenos e

redondos, e uma mensagem perpassou fugazmente nos meigos olhos azuis.

“Chasey”, disse eu para mim, “aqui está alguém que precisa de alguém.”

A minha mão subiu lentamente até os dedos roçarem ao de leve a pele macia

do rosto de anjo. As pestanas compridas baixaram um pouco para que eu não visse

o que os olhos transmitiam, mas o breve contacto da mão que veio tocar o meu

pulso foi como lâmpada vermelha a avisar que aquilo era central atómica pronta a

iniciar a contagem decrescente para descarga fulminante.

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- Viva, meu caro! - disse a voz vinda da plataforma. Torci o pescoço,

agradavelmente surpreso.

- Fernandes!

- Dê um jeitinho, sim?

A garota recuara de um salto, desaparecendo pelo corredor, e eu curvei-me

de bom grado para funcionar como guindaste na elevação da mala grande pousada

no degrau. Pesava tanto como a minha consciência naquele momento.

- Venha um abraço, meu amigo ...! Os bons juntam-se de novo, não é?

Apertou-me as costelas com gana, e eu esforcei-me por não ficar em

inferioridade. Quando consegui soltar-me, pronunciei vivamente:

- Alegra-me que tivesse vindo, Fernandes.

- Ena, rapaz! Vejo que você até acabou por simpatizar m bocado comigo...

- Caramba, não foi assim tão difícil! - observei a rir.

- Uma coisa, amigo... - falou com entusiasmo, e acompanhou com uma

piscadela -, aquilo que eu vi foi mesmo, ou estarei enganado?

Aquele sorriso não se diluiria nunca?

- Um caso pendente. Só isso - foi o que eu disse.

- É, não é? Um bom pedaço, amigo Chasey... - e o bigodinho prolongou-se

imenso para ambos os lados.

- Você pertence ao gênero de tipo que não censura Eva por ser a culpada do

pecado original, não é verdade, amigo Fernandes?

- E você?

- Gosto de maçãs - foi a minha resposta.

- Assim verdes? - gargalhou. - Em que compartimento é que está? - inquiriu

já a caminho.

Projectei-me, e agarrei-o por um braço.

- Ei, um momento...! As sobrancelhas arquearam-se-lhe ao reparar na minha

expressão.

- Chasey... não?! - pronunciou com solenidade.

- Não, quê? Apontou receosamente o corredor.

- Você não...

- Raios, diga lá!

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- Não vai... quero dizer... aquela garota. Contive a custo uma explosão de

riso.

- Não é nada disso, Fernandes. Trata-se somente de que viajo acompanhado,

e ...

- Aquela dama? - interrompeu de pronto.

- Nada disso! Uma senhora... Quis avisá-lo. Compreende, não convém que se

desçaia ...

Forçou uma expressão séria. Pouco tempo, claro. Veio logo o distender dos

lábios e do bigodinho, com os trinta e dois dentes à mostra.

- Claro, Coslow! Nem precisava ter avisado

Recomeçou a andar, e eu conduzi-o ao compartimento.

- É aqui - disse-lhe, indicando a porta fechada, a que Ying Fai havia descido

os estores interiores.

Fernandes deitou a mão ao fecho .

- Bom, amigo Coslow, sempre quero ver esse material.

Correu a porta e deu um passo. E mais nada. O amigo Fernandes não estava

ali, e aquilo era a estátua dele esculpida para perpetuar a sua pessoa. Porque o amigo

Fernandes, após aquele passo, ficou petrificado como o Príncipe Bonitão ao ser

tocado pela varinha traiçoeira da Fada do Bosque. Ou como se tivesse sido

submetido instantaneamente a uma temperatura de duzentos graus negativos. A

razão era óbvia. Pamela.

Ying Fai vinha a sair e teve de se arrumar à ombreira para conseguir passar.

Aparentemente não dera pelo que ocorrera, ou pelo menos não atribula qualquer

importância à situação. Curvou-se numa reverência ao chegar junto de mim.

- Ying Fai vai deixá-los, Mister Coslow. Tudo está em ordem. A partir deste

momento, ela fica inteiramente entregue a si. Mas há ainda uma coisa que eu lhe

queria dizer - acrescentou, baixando o tom de voz. - Um agente nosso encontra-se

em Shumshum, para o caso de haver “ novidade”...

- Como o localizarei?

- Ele encontrá-lo-á. - E terminou: - Adeus, Mister Coslow. Que tudo corra

bem.

Apertou-me rapidamente a mão e foi-se embora, as orelhas de abano dando

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a impressão de quase roçarem as paredes do corredor e o corpo escanzelado a

dançar dentro do fato branco . Dirigi a minha atenção para o que se passava no

compartimento. Fernandes dizia:

- Ehhh...

Pamela olhava-o candidamente como uma criança a apreciar brinquedo novo

na montra. E eu entrei e disse:

- Pamela, este é Fernandes, que viajou comigo desde Hong-Kong. É

português e veio a Cantão tratar de negócios. - E para ele: - Miss Pamela Wong.

Viaja comigo.

Os olhos vidrados deslocaram-se um pouco, e a língua moveu-se

percorrendo o céu da boca escancarada. Pamela cumprimentou.

- Muito prazer, Sr. Fernandes.

- Não deve estranhar, Pamela, mas é que os negócios correram mal ao meu

amigo, e em determinadas alturas, ao sofrer o mais ligeiro choque psicológico, ele é

vítima de acentuada perturbação nervosa que se traduz numa paralisação temporária

dos movimentos e da fala. Não é assim, Fernandes?

A língua moveu-a para baixo e para cima, e podia verificar-se a tensão a que

ficaram submetidas as cordas vocais à medida que as palavras iam sendo compostas

e em seguida articuladas num esforço que me fez transpirar.

- Sss ... Sim. É.

- Miss Wong lembra-lhe a sua irmãzinha que emigrou há cinco anos para S.

Paulo, Brasil, não é isso?

- É - disse ele. - Posso ... sentar-me?

Sentou-se. No lugar fronteiro ao dela, e ao fazê-lo deu-me a impressão de ter

um furúnculo no traseiro. Tirei-lhe o jornal de baixo do braço e arrumei-lhe a

bagagem, após o que me arrumei também, ao lado de Pamela. Ela levantou-se para

baixar a janela, a fim de dizer um último adeus a Ying Fai, que estava postado do

lado de fora. Eu ajudei-a a puxar o vidro, o que coincidiu com o sinal da largada. Fiz

um gesto ao chinês. Ele respondeu e ficou depois a acenar a Pamela, o enorme

lenço amarelo que agitava tornando-se daí a pouco cada vez mais pequeno e o largo

fato branco a confundir-se com o resto da paisagem amalgamada do cais. Só quando

os últimos armazéns da estação passaram por nós Pamela voltou para dentro e me

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pediu para fechar a janela. Como se pretendesse cortar as recordações, desligar-se o

mais depressa possível do mundo em que vivera. A sua expressão traduzia tristeza e

abatimento. Procurou desviar o fio do pensamento, na pergunta que dirigiu ao

nosso parceiro.

- Sente-se melhor, Sr. Fernandes? Este não despegara os olhos, por um único

segundo, da figura dela. E eu não gostava do que lia neles. Nem um pouco. Nada.

mesmo.

- Sim, minha senhora... - falou ele. - Já estou assim, assim. Espero amanhã

sentir-me melhor, e daqui a um mês encontrar-me completamente recuperado.

Um fiteiro da pior espécie, é o que ele era. Claro que a reacção da minha

companheira não se fez esperar, e foi exactamente o resultado que ele pretendia

obter, com o seu ar simulado de carneiro-mal-morto, este conquistador de uma figa!

- Mas ... Sr. Fernandes, isso é assim tão prolongado?

A resposta veio, com um suspiro melancólico.

- Infelizmente, minha senhora... e o pior é que não está nas minhas mãos

evitá-lo.

Grande pulha. Fiz uma tentativa para fazer lograr a encenação, ao chamar a

atenção de Pamela para o sistema de carregamento da botija de gás do meu isqueiro,

mas ela nem reparou, penalizada com o sofrimento atroz do energúmeno, e eu pus-

me então a desatarrachar a rosca com o indicador. A única coisa que consegui foi

partir a unha.

Entretanto, a história trágico-maritíma do Fernandes arrastava-se tocando as

raias da tragicomédia.

- Deverei então eu considerar-me um pouco responsável? - inquiriu Pamela,

meio divertida já com aquele caso único de esquizofrenia.

- Com o devido respeito, ouso dizer-lhe, minha querida senhora...

Agora já metia mais uma palavrinha pelo meio.

- ...que é causa única do complexo avassalador que sofro neste momento.

Acredita na paixão súbita, Miss Wong?

Comecei a sentir náuseas, e por isso me levantei para ir até ao corredor

apanhar um pouco de ar fresco.

- Vai visitar a sua amiguinha, Coslow?

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A insinuação peçonhenta mordeu-me as costas. Ah, Fernandes, se a janela

não estivesse fechada!

- Não - expeli sem me virar. - Vou mandar parar o comboio, para vir uma

ambulância buscá-lo.

E saí. Quando regressei, dez minutos depois, Pamela seguia interessadíssima

o relato absorvente de como um tipo de apelido Fernandes atravessara sozinho,

num jipe em segunda mão e com um pneu rebentado, o continente africano, em luta

permanente e titânica contra intempéries, canibais e crocodilos dos pântanos da

Guiné.

- Pois... - disse eu casualmente da entrada - , e o chefe da tribo ao descobrir

que o Fernandes era aldrabão obrigou-o a casar com a macaca gigante da aldeia, e

eles tiveram três filhos, que agora comem um cacho de bananas por dia no Jardim

Zoológico de Lisboa. E...

A boca fechou-se-lhe. Hermeticamente. E ele levantou-se, devagar. Depois

sorriu. Trinta e dois dentes acertadinhos, num “até já” para Pamela. Eu segurei-me

bem à ombreira e flecti um pouco as pernas. Precaução, somente.

Mas o que Fernandes fez foi vir até mim, dar-me uma palmadinha

tranquilizadora no braço e cochichar ao meu ouvido.

- Okay, amigo. Já percebi. Eu vou andando ... Qual é o compartimento?

- Qual compartimento?

- Ora... maçãs!

Sorri-lhe de volta.

- O segundo, depois deste.

- Bom, bom ... até já. Eu vou andando.

Observei-o até ele alcançar a outra porta.

- Cá vou - disse ele, e entrou.

Eu também. Para ir ter com Pamela. A sério ... eu simpatizava mesmo com o

fulano.

A viagem prosseguia penosamente, uma paragem aqui, outra ali, dando mais

a impressão de se destinarem a descanso da máquina ofegante que ao carregamento

de passageiros. O dia aquecera mais que o da véspera, e o tom avermelhado das

terras barrentas que atravessávamos acentuara-se sob o bombardeamento dos raios

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solares.

O meu relógio marcava um quarto para a uma. Baixei mais o estore da janela.

Duas moscas ficaram a zumbir nervosamente no espaço junto ao vidro.

Pamela adormecera encostada a mim, com uma das minhas mãos presa entre

as dela, e a fronte levemente humedecida tocava-me a face. O peito arfava

docemente ao ritmo da respiração tranquila. Beijei ao de leve o rosto que não me

cansara de contemplar, lembrando a cada minuto a noite inesquecível da véspera.

Os meus olhos caíram por acaso no jornal deixado por Fernandes. Havia

escorregado por entre a junção do assento com o encosto e eu desentalei-o. Tratava-

se do Tiger Standard da véspera. Provavelmente o exemplar que eu adquirira na

estação de Kowloon, ao embarcar. Percorri desinteressadamente a primeira página e

fui passando devagar, com a mão livre, as folhas deitadas sobre o estofo. Nada que

pudesse prender a atenção, a não ser a fotografia de uma estrelinha do cinema

japonês sorrindo para mim, de dentro de um fato de banho cujas dimensões

estavam exactamente na razão inversa dos seus atributos físicos. Mas, ora, quem se

ia deter na fotografia daquela beleza levando ali mesmo ao lado alguém que com um

simples entreabrir de lábios pulverizaria qualquer modelo do mundo?

Virei para a última página. Havia noticias encimadas por títulos de caixa alta.

Mas a que fez o meu braço distender-se, apanhar bruscamente o jornal e chegá-lo

bem perto da vista turvada, foram meia dúzia de linhas das “últimas noticias”. Li,

sem poder compreender, e tornei a ler, mais uma, duas vezes. E às tantas eu não

podia já duvidar de que aquilo estava ali impresso com todas as letras, e de repente

elas gravaram-se-me no cérebro como se impressas pelo granel de chumbo.

Encontrada morta esta madrugada, num armazém abandonado da zona leste,

entre as Ruas O’Malley e Canal, uma mulher. Os documentos encontrados

revelaram tratar-se de Miss Rita Grahame, de nacionalidade inglesa, naturalizada

americana. Investigações rapidamente efectuadas pela polícia, cujos resultados

conseguimos obter às seis horas desta manhã, permitiram concluir que Miss

Grahame se encontrava hospedada há cinco dias no Bay View Hotel, em Cameron

Road. O capitão da divisão de Detectives, John D. McDermott, no rápido contacto

telefónico que com ele tivemos, a essa hora, afirmou-nos tratar-se de assassínio. A

morte terá sido provocada por projéctil perfurante cravado na nuca. A arma do

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crime não foi encontrada. A polícia espera descobrir brevemente uma pista.

Sim, era o que a notícia dizia, e não devia haver engano. Rita Grahame.

Morta. O zumbido das moscas no vidro da janela parecia ter aumentado

enormemente como se partisse mesmo de dentro dos meus ouvidos, e o conteúdo

da minha cabeça pôs-se a rodopiar, até que eu não saberia exactamente dizer qual o

sentido do andamento da composição. Atirei sobre o estofo o jornal amachucado,

desprendi-me com suavidade do contacto de Pamela, que dormia ainda, levantei-me

e caminhei aos tombos até ao corredor, cerrando a porta sem ruído.

O cenário lá de fora era o mesmo. Um grupo de camponeses surgiu a dada

altura na paisagem que desfilava, e fez adeus. Mas o meu espírito estava com Rita.

Na recordação do seu rosto, dos cabelos loiros cuidadosamente penteados para

cima, dos seus olhos verdes, enormes, de brilho malicioso, que me fitavam

sorrateiramente através das longas pestanas. Presentemente esse brilho desaparecera,

e os olhos de Rita já não deviam ser bonitos de ver. Assim como a vida chamejante

que brotava do seu corpo admirável não era agora mais que passado de presente

sombrio. Eu, porém, continuava a ver Rita como ela fora, na sua beleza exuberante

e sensual de quando me havia dito, da última vez: “Não te esqueças dessa promessa,

Al... “Não, Rita, eu não me esqueceria nunca da minha promessa. Apenas, teria de

ficar eternamente em dívida. “Mas”, reflecti, “ter-te-ás tu portado comigo de modo

que eu deva sentir assim?” Talvez não. Mas ela era um ser humano. Uma mulher

que eu conhecera. Interessante mais que o suficiente para que eu simpatizasse com

ela. E isso bastava.

O curso do pensamento derivou então, subitamente, na forma da pergunta

que surgiu com violência, sacudindo-me o cérebro. Quem? Quem a matara?

Porquê? E de repente tudo assumiu para mim outro aspecto, porque eu passara a

considerar a mesma questão sob um ângulo inteiramente diverso. Mais frio, lógico e

racional. E era aí que me devia concentrar. O choque puramente emocional havia-se

até aqui sobreposto a uma visão lúcida do facto, mas embora os resultados dessa

primeira reacção permanecessem, devia alhear-me dela e raciocinar sob o ponto de

vista prático. Porque, afinal de contas, a minha vida também estava em jogo. No

jogo para que Rita Grahame me convidara a entrar. E, se ela perdera, as

probabilidades eram agora todas contra mim.

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- Eh, amigo... o que se passou ali dentro?

Rodei lentamente o pescoço e aguardei que o rosto de Fernandes ficasse

devidamente focado. Notei que tinha a garganta seca, ao falar, e por isso a voz me

saiu rouca.

- Talvez você saiba... não?

Não sorria, neste momento.

- Talvez eu saiba, o quê, Chasey?

Corri a porta e entrei para apanhar o jornal. Pamela despertou num

sobressalto e inquiriu, estremunhada:

- Que horas são, Joe?

- Uma e dez.

Estendeu preguiçosamente um braço na minha direcção.

- Onde vais?

Segurei-lhe por instantes a mão, que levei aos lábios.

- Estou lá fora com o Fernandes, querida. Não me demoro.

Saí com o jornal apertado na mão e fui ao encontro de Fernandes, as páginas

dobradas de forma a enquadrarem apenas a notícia que interessava que ele visse.

Coloquei-lha defronte dos olhos.

Isto. Limitou-se a localizar o rectângulo, do qual desviou J

imediatamente a vista sem ler uma linha sequer. Porque ele já sabia. Encarou-me.

- É assim tão importante, Chasey?

- Sim. Muito importante.

- De acordo - assentiu. - Se quiser, podemos falar. Tem aí um cigarro?

Sacudi um para fora do maço, e estendi-lho. Acendi também um para mim.

- Pode falar - disse eu. Deslocou com o auxilio da língua o cigarro para o

canto da boca.

- Tem razão, Chasey. É verdade eu saber que você estava envolvido com essa

dama, e que portanto a notícia lhe interessaria. Engana-se no entanto em dois

pontos fundamentais. Primeiro, não conheço o que havia de comum entre vós,

embora tivesse um palpite de que não se trataria de relações de amizade. Segundo,

tencionava falar-lhe disso . não para o informar, porque pensava que você já teria

conhecimento do ocorrido, mas sim porque, por uma pura questão de curiosidade

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pessoal, pretendia observar a sua reacção. Cheira-me que você está enterrado até ao

pescoço numa trapalhada infernal, mas quer acredite quer não, estou inteiramente

alheado do que se passa. Simpatizo consigo, e ajudá-lo-ei se precisar de mim. Talvez

que a minha atitude lhe pareça absurda e a explicação que lhe dei falseada. Contudo,

não posso explicar-lhe as coisas de outra maneira. E peço-lhe que aceite um

conselho, Chasey: se não quer seguir o caminho errado, oriente os seus raciocínios

noutro sentido. Quanto à minha pessoa, limite-se a deixar-me de lado. Considere-

me um zero à esquerda. Pela minha parte não interferirei consigo, mas cá estarei

quando precisar. Compreendido?

Enquanto ele falara eu mantivera-me a olhar pela janela aberta, com a mão

que empunhava o cigarro pendida para fora, observando a combustão do papel

activada pelo vento forte. Quando vi que terminara recolhi a mão e coloquei-me de

forma a poder fitá-lo a direito. Fiquei assim um bocado, a observar-lhe os traços do

rosto, ao mesmo tempo que analisava o que me dissera. Acabei por concluir, num

trejeito que era quase um sorriso:

- Bem, Fernandes, parece que não tenho outra alternativa senão aceitar as

coisas assim ... não é?

Mostrou os dentes.

- Acho que é isso, tal e qual. E agora, prefere continuar a falar sobre o

assunto, ou que eu o deixe sozinho com os seus pensamentos?

Fiz um gesto para abrir a boca. Não foi preciso. Ele possuía o sentido da

antecipação.

- Está bem ... está bem ... eu vou-me embora outra vez! Mas se quiser falar, já

sabe onde me encontro.

- Como vai a conquista? - inquiri desinteressadamente.

- Está no papo, amigo - retorquiu a transbordar malícia. - Só é pena o

velhote. Acho que daqui a pouco o vou fechar nos lavabos. - Riu. - Até já, Chasey.

Ali, e ainda outro conselho: com aquilo ali dentro, eu deixaria os problemas para

depois! A vida é curta, meu caro, e há que aproveitar cada minuto ...

Foi-se embora. Eu finquei os cotovelos no rebordo e pus-me a olhar para

longe. Para bem longe. Para lá dos extensos arrozais que a linha de ferro sulcava, à

entrada da província de Kuangtung. O meu fito era uma chave. Uma chave apenas,

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que viesse ajudar a abrir caminho para a solução. Mas é realmente difícil encontrar

uma chave entre os arrozais da China. Depressa cheguei à triste conclusão de que

teria de a fabricar eu próprio, à base dos pedaços soltos e desencontrados

desordenadamente arquivados na minha cabeça. A não ser assim, não haveria outra

forma de atingir a saída. Isto é, a saída que eu pretendia alcançar. Porque existiam

outras.

Desatei a apanhar os pedaços e a tentar reuni-los. Durante meia hora peguei

neste, naquele, juntei-os aos três e aos quatro, e às vezes os primeiros ligavam uns

com os outros, mas logo o seguinte não se ajustava e eu tinha de separá-los todos

outra vez, atirá-los para o canto, baralhá-los bem e recomeçar. Quando a cabeça me

começou a doer eu desisti e fui para dentro, ter com Pamela. O Fernandes era capaz

de ter razão.

Quinze e quarenta e cinco. Shumshum. A excitação da chegada. Alívio para

todos os outros e inquietação para quem, como nós, esta paragem podia ser muito

mais que o fim de uma etapa. Pamela conseguiu não deixar transparecer na

fisionomia a perturbação que no entanto eu lhe lia através do simples contacto das

nossas mãos. Tínhamos vindo a conversar durante um pedaço de tempo, contudo

de há meia hora para cá o mutismo que guardáramos de parte a parte era só por si

bem significativo da intranquilidade que nos invadia gradualmente.

Empunhei com firmeza a pega dourada daquela diabólica maleta negra, de

um lado, e a mala grande dela, do outro.

- Vê se não te esqueces de nada - adverti, antes de passar a porta.

Por toda a parte só se ouvia falar chinês. Pamela apertava o meu braço,

andando num passo saltitante de forma a poder acompanhar o meu. Não

descortinei Fernandes nem os ingleses, na gare, o que era natural no meio de toda a

barafunda. A nossa escolta não se fez demorar, na forma de um policia cuja

expressão lembrava imediatamente o focinho de um rato-da-índia desgostoso ... Foi

o mesmo oficial chinês que nos recebeu, na sala de inspecção. Os dois tipos

fardados que o ladeavam também eram os do dia anterior, e dir-se-ia até que não

tinham saldo dali desde então, porque nem sequer as posições haviam sido alteradas.

- Mister Coslow - tossiu o chefe.

- Sou eu. Como está?

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- A sua bagagem.

Entreguei as duas malas ao cara de rato, ou antes, deixei que ele mas

arrancasse das mãos. O mesmo sucedeu com Pamela em relação à malinha que

trazia consigo e ao cesto que a velha Tal San nos atafulhara de comida, mas que nós

nem sequer abríramos.

- Documentos.

Atirei a papelada, minha e de Pamela, para cima da secretária. O polícia

cuspiu uma série de sons guturais para o subalterno que nos trouxera. Este fez-nos

um sinal brusco com a cabeça, indicando uma porta lateral. Seguimos para lá. Era

um cubículo escuro, húmido como um pântano e quente como um forno. Um

banco de ripas de madeira que percorria toda a largura da parede à direita constituía

toda a mobília. A porta fechou-se e nós ficamos sozinhos. Segurei Pamela pelos

ombros, aproximei-a de mim e interroguei nervosamente:

- Percebeste o que ele disse?

Rodeou-me o pescoço com os braços.

- Acalma-te, Joe. É apenas o tempo de a documentação ser examinada.

Ofereceu-me os lábios tentadores, inclinando um pouco a cabeça para trás.

Não me fiz rogado. Saboreei-os longa, profundamente, como se pretendesse possuí-

Ia através daquele beijo.

No chão de cimento repousavam já meia dúzia de pontas de cigarro

queimadas, quando a porta se abriu e o rato-da-índia assomou num chamamento

guinchado. Passamos de novo à sala da inspecção. Parei a um metro da secretária,

onde o chinês riscava gatafunhos num papel pardo. Levantou por fim os olhos

raiados, que manteve presos intensamente nos meus durante meio minuto, sem

proferir palavra. Aguentei, sem mover um milímetro sequer qualquer músculo do

meu corpo. Só Deus sabia como eu me sentia por dentro. Acabou por pronunciar,

marcando com rudeza cada sílaba:

- Mister Coslow, vamos deixá-lo partir ... Caramba! -...não que nos agrade

fazê-lo, unicamente, repito, unicamente porque não desejamos, sem possuirmos

dados concretos, provocar qualquer conflito com as autoridades britânicas. Pode

sair.

Raspei-me dali, com Pamela e as malas. No momento em que transpunha a

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porta, a campainha do telefone sobre a secretária começava a retinir. Apressei o

passo. A ponte ficava a vinte metros somente. Vinte metros. Um ... dois ... três ...

quatro ...

- Mister Coslow.

Estaquei, sem me voltar. As pernas tremiam-me. Pamela, junto de mim,

ficara petrificada e a cor fugia-lhe das faces.

O ruído de botas cardadas começou a aproximar-se, correndo. Segundos

depois dois guardas agarravam-me fortemente, um de cada lado. Outro ocupou-se

de Pamela. Um deles pronunciou:

- Mister Coslow, venha!

- Para onde?

- Preso.

Fui brutalmente arrastado. Pamela tentou acompanhar-me, com as lágrimas a

escorregarem-lhe pela face. O que lhe prendia fortemente o pulso não permitiu que

ela se soltasse.

- Joe... - soluçou nas minhas costas. - Joe ...

A entrada da sala da polícia, ouvia ainda a sua voz.

O oficial chinês ergueu-se e contornou a secretária para vir ao meu encontro.

Empunhava um bastão de couro. O sorriso que lhe repuxava os lábios era cínico e

repulsivo. Bateu com o pequeno chicote na coxa, e murmurou, entre dentes:

Agora, sim, Mister Coslow, podemos retê-lo. Não à sua companheira, nem

ao dinheiro que transportava, visto não termos em nosso poder provas de ambos se

encontrarem envolvidos neste assunto. Mas quanto a si, mister, está-nos nas mãos.

- Porquê? - indaguei, ainda.

Os dentes podres mostraram-se mais, num esgar asqueroso.

- Por assassínio de um agente dos nossos serviços secretos. Uma mulher que

você conheceu pelo nome de Mae Leung. Lembra-se dela?

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CAPÍTULO XI

Apanhei o púcaro que alguém introduzira pelo postigo minúsculo e bebi de

um trago o liquido infecto. A casota era a pocilga mais imunda em que eu já me

encontrara metido desde que uma vez, no México, o chefe da policia de Rosarina

descobriu que a mulher se andava a fazer a mim. E se o Inferno é assim quente

como afirmam, eu devia andar por lá próximo. Sítio escuro, também. Labaredas

erguiam-se, dançando diante dos olhos, mas apenas na minha imaginação. Dentre as

labaredas saiam mulheres. Passavam por mim relanceando uma olhada de

comiseração, sem se deterem. Nem sequer Mae. Nem Rita. Passaram. Olhei.

Chamei. Desapareceram. Eu estava só, naquela casota das traseiras da estação

fronteiriça de Shumshum, China. A porta encontrava-se trancada. Do lado de fora

havia uma sentinela, porque eu ouvia os passos, para cá e para lá. Passos pesadões.

Talvez não fossem assim tão pesados. Só que a minha cabeça jazia em tal estado que

até o tiquetaque do relógio de pulso martelava nela. Consultei o mostrador.

Passavam cinco minutos das seis horas da tarde. O traseiro doía-me porque o chão

onde me sentava era duro. A garganta doía-me. E a cabeça. E as pernas. Eu estava

pronto. O meu nome é Chasey. Al Chasey. Não é? E aquilo ali são gaivotas a

apanharem peixinhos nas ondas.

Não sei exactamente dizer se o que me despertou foi o ruído ou se o facto de

os ruídos terem cessado. Refiro-me aos passos pesadões da sentinela lá fora. Acho

que foi isso mesmo. Deixei de os ouvir. Estranhamente, deixei também de ouvir o

tique-taque do relógio. Sei apenas que me amparei à parede sobreaquecida e me pus

de pé o mais depressa que pude, como se soubesse que alguma coisa ia passar-se. E

assim foi, na realidade. Tudo sucedeu depressa. A porta abriu-se. A claridade do

exterior impediu-me de ver logo quem sussurrava.

- Depressa...

Eu não tinha pressa nenhuma. Eu não ia sair dali. Dormir, apenas. Deixem-

me dormir um bocadinho, raios os partam..

- Vamos ... depressa! - insistiu a voz, agitada pela ventania entre a folhagem.

- Quem é você? - A garganta ardia-me. Ali, é verdade, quero água também. E

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dormir.

- Um amigo. - A voz agarrou-me o braço e puxou-me.

Um amigo. Tinha razão. Eu sou amigo de toda a gente mas toda a gente não

gosta de mim. Este parecia que gostava. Pelo menos queria tirar-me do Inferno, e

um parceiro vai à frente, ou vai atrás. Eu fui atrás. Antes de transpor a porta

tropecei num corpo estiraçado. Amparei-me ao meu amigo. A porta fechou-se. Sim,

ainda bem que eu saíra. Cá fora estava-se melhor. Mais arejado e fresquinho. A

sentinela desaparecera. O meu amigo desatou a correr, obrigando-me a fazer outro

tanto, e eu tive de obedecer porque quem ia atrás era eu. Corremos muito. A

amizade é um sentimento muito forte, e daí a pouco era eu que queria correr mais e

ele não, de modo que me deixei empurrar para cima do camião, ser atirado dentro

do buraco, e a escuridão voltou. O barulho também. Mais forte. Muitíssimo mais

forte. Trovão, como no fim do universo. Por isso o Inferno acabara. Muitos séculos

haviam decorrido. Caramba, como o tempo passa!

- Eli ... sente-me melhor?

- Há ... quem?

Duas vozes. Uma delas podia muito bem ser a minha. Tentei de novo,

subindo as pálpebras. Não foi difícil. Ver é que ia custar um pouco mais.

- Sim, melhor ... Onde estou?

Que gosto horrível na boca! Gosto de insectos apodrecidos em água suja. A

vista iniciou nova tentativa. O rosto surgiu no écran, completamente desfocado. De

qualquer forma, já não era mau. Agora quanto à desarrumação que os meus miúdos

sofriam cá dentro, isso era o pior de tudo.

- Já passou, não?

- Melhor um pouco. Onde estou?

Esta fala já se parecia mais com a minha.

- Nos territórios de Hong-Kong, amigo. Correu tudo bem, não foi?

Sei lá. Tudo bem, o quê? E quem falava comigo? Eu tinha o direito de saber,

diabos!

Aguentei os braços de encontro ao solo, apoiados desde os cotovelos até às

palmas das mãos, e concentrei neles todos os resíduos de energia. Resultou. Vi

quem falava comigo, lá de cima. E posso garantir-lhes que, se aquele tipo era meu

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amigo, então eu tinha ali um grande amigo. Enorme, mesmo. O maior amigo que já

tivera em toda a vida. Assim acocorado, este parceiro chinês era a representação

viva das imagens gigantescas de Buda que a gente vê nos mosteiros orientais, só

com a diferença de que o tronco descomunal estava embrulhado numa camisa

amarela, que cortada em tiras daria para enfeitar em toda a extensão a grande

muralha da China, com laçarotes de dez em dez metros. Quanto ao rosto, se

pegarem no focinho de um buldogue, ampliarem três vezes e lhes puserem os olhos

em bico, ele aí está. O cabelo era tão raro como a água numa banheira vazia, e isso

fazia que o seu crânio apresentasse o aspecto do fundo da mesma banheira.

- Está bem, ou quer dormir mais?

Devia possuir um filtro especial para a voz, porque esta não correspondia de

modo nenhum à fachada. Era quase tão melodiosa como uma harpa birmanesa com

cinco cordas partidas e a restante desapertada. Uma fala apagada, quero eu dizer.

Apesar de tudo, agradável, porque me fazia sentir melhor.

- Quer então dizer que já passamos a fronteira?

De orelha a orelha, passando pela boca, ia uma distância apreciável, mas foi

essa precisamente a que os lábios se distenderam.

- Sim, senhor - acenou furiosamente com a cabeça.

- Sim, senhor. Satisfeito, não?

Sorri o melhor que me foi possível.

- Muito.

- Bem. Estamos em Shatin. Isto é o meu camião. Sempre a dormir, veio o

senhor. Apanhou pancada, lá? - Os olhos rebolavam nas órbitas cavadas fundo, e o

movimento deles acompanhava o enrolar da língua na projecção dos sons

pessimamente articulados num inglês que eu não aprendera na escola.

- Não, amigo - retorqui. - Não me deram pancada. Deitaram-me só meio

quilo de droga num púcaro. Você observou os resultados, com certeza.

O ruído cresceu como terramoto sacudindo montanhas e acabou por

explodir estrondosamente no que percebi ser uma gargalhada. Era o gigante que ria,

comprimindo as manápulas sobre o ventre descomunal. - Se vi, mister?... Eu

carreguei com eles!

Novo crescendo assustador. Apressei-me a interromper, antes que o

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fenômeno se repetisse.

- Okay, okay. Quem é você, quem o mandou, como se chama, e tudo o mais.

Vai responder-me a estas perguntazinhas, não vai, amigo .

“Bolas...”, comentei para mim, “ainda bem que ele era a-mi-go!” - Sim,

senhor. Vou explicar. Eu estava em Shumshum. Chamo-me Fu Ling. Ying Fai

mandou-me.

Fazia-se luz no meu cérebro convalescente.

- Eh, você era então o agente que Ying Fai lá mandou para prevenir qualquer

eventualidade...

- Para quê?

- Para endireitar as coisas - expliquei-me.

Abanou a cabeça, para baixo e para cima, em sacudidelas violentas.

- Pois. Endireitar. Tudo bem agora, não está?

- Penso que sim - assenti. - Vai ajudar-me a sair deste buraco?

Ele não me ajudou, antes realizou todo o trabalho, elevando-me apenas com

um braço. Os sacos de sarapilheira onde acabou por me depor sempre eram mais

cómodos. Percebi que o local onde os meus ossos enfeixados repousavam era a

caixa coberta de um camião. Alguns pormenores da fuga da estação de Shumshum

acudiram-me repentinamente.

- Diga-me tudo o que se passou - pedi.

- Conto tudo. Mas a gente vai jantar. Não tem fome?

Lembrei-me que sim. Precisava desesperadamente encher o buraco vazio que

era o meu estômago naquele momento. Só a ideia me deu alento.

- Vamos a isso! Torne a dar aqui uma ajuda. Saí apoiado a ele, e

possivelmente pelo esforço que mesmo assim fui obrigado a despender, os

intestinos refilaram poderosamente. Dobrei o tronco e desatei a vomitar.

O gigante carregava-me no pescoço e eu vomitava que nem um desalmado.

Quando acabei adquiri a impressão de que no meu interior não havia absolutamente

nada.

- Pronto. Foi melhor. Aliviou - comentava o homenzarrão. - Agora vamos

encher outra vez.

Segui pendurado a ele, e o meu andar devia assemelhar-se muito ao de um

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cágado. O caminho que trilhamos era deserto, mas pouco abaixo, a umas dezenas de

metros, havia casas, pois se distinguiam as luzes. Continuei a andar, um pé à frente

do outro, mecanicamente, arrastando as solas. Simplesmente miserável.

Eu comi o que pude engolir da comida asquerosa daquela tasca do lugarejo

de pescadores. Fu Ling, esse atascou o bandulho até mais não. Quando acabou,

limpou a boca aos pêlos das costas da mão. Eu procurava no bolso do casaco

estropiado o que devia restar do meu maço de Crown, quando o observei nas patas

do Moby Dick.

- Quer um?

Aceitei.

- Ena, muito obrigado! Você é amável...

Acendi-o na ponta da vela de estearina que ardia no canto da mesa. A

garganta e os pulmões arderam-me estupidamente às primeiras fumaças.

- Podemos conversar? - disse eu.

- Sim, senhor - anuiu de pronto, entre dois arrotos.

- Bom. Explique-me como se passaram as coisas.

Começou.

- Eu trazia o camião...

- Desde o princípio - atalhei.

- Pois. Eu trazia o camião para carregar mercadoria do comboio que chega a

Shumshum às seis e um quarto. É como faço duas vezes por semana, para

transportar os carregamentos desde a fronteira até Tai-Po, onde tenho o meu

negócio. Depois, de Tai-Po até Shumshum, levo peixe.

- Quer dizer, também tem negócios na região de Shumshum...

Assoou-se com força a um trapo extraordinariamente porco que extraiu da

algibeira. Respondeu:

- Sim.

- E nas horas vagas trabalha para Ying Fai

- Sim. Para Ying Fai. Um comerciante de recursos. Prosseguiu:

- Nunca transportei pessoas no fundo falso do camião. Mas ontem Ying Fai

falou de Cantão a dizer para eu estar pronto se alguma coisa má acontecesse. Por

isso eu estava lá.

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- Sozinho?

- Não. Fu Ling tem empregados Uma organização em grande.

- Mas hoje actuou sozinho...?

- Sim. Melhor, sozinho. Mas tinha empregados perto, para se fosse preciso.

- Sabe o que sucedeu a Miss Wong?

Espevitou as orelhas, franzinho o sobrolho.

- Quem?

- A senhora que vinha comigo percebeu.

- Ah, a senhora. A senhora continuou viagem. A mala também.

- Quer dizer ... só eu é que não.

- Pois. Mas Fu Ling estava à espreita. Chegou o comboio da mercadoria às

seis e meia. Carreguei o camião. E carreguei o senhor.

- Por que não o fez antes?

Encolheu os ombros.

- Não tinha pressa.

Com que então não tinha pressa!

- Porquê?

- Porque o camião da polícia só chega a Shumshum às sete e meia da tarde, e

mister só ia ser tirado dali a essa hora.

Eu principiava a vislumbrar uns lampejos sérios de inteligência transmitidos

de dentro do crânio granítico do gigante chinês. E começava a compreender que,

para um tipo como aquele que ali estava, uma empresa quase impossível podia

transformar-se em tarefa bem simples. Quis ainda saber:

- Que aconteceu à sentinela, Fu Ling?

Três notas sincopadas vindas das profundezas:

- “ Ho! Ho! Ho!” - E depois: - Adormeceu.

Estava a resposta dada. Simples e impressiva.

- Só mais uma questão, amigo. Você tenciona voltar a passar aquela

fronteira?

- Por que não, mister? Ninguém viu. Ninguém ouviu. Fu Ling é um honesto

comerciante. Amigo de toda a gente. Tem negócio, e continua.

Pronto.

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-Vamos embora?

- Vamos.

Chegamos a Kowloon pouco depois das onze. O camião foi deter-se por

indicação minha na entrada de Cameron Road, para quem vinha de Nathan.

- Para onde vai, mister? - interrogou o meu amigo Fu Ling.

Encarei-o.

- Vou para o hotel. Porquê?

Encolheu os ombros.

- Por nada. Wu Tchao quer vê-lo assim que chegar.

- Há tempo! - retorqui. - Primeiro vou tomar banho, depois logo se vê. E

você?

Bateu as manápulas no volante e todo o veículo estremeceu.

- Vou para o negócio, mister. Já fiz o que mandaram fazer .

- Okay - retorqui, estendendo uma mão, e já com a outra no fecho da porta. -

Obrigado por tudo, Fu Ling. Você portou-se admiravelmente.

Os olhos luziram no escuro.

- Quer dizer que Fu Ling é bom?

- É o maior - esclareci com sinceridade.

- Obrigado, mister.

Aguentei firme o aperto. Também, um osso partido a mais não fazia grande

diferença e ele merecia tudo. Abri a porta, apeei-me e atirei com ela. Esperei que o

camião arrancasse. Fê-lo com estrépito e afastou-se. Antes de contornar a esquina

acenei pela última vez ao gigante, que abanava desajeitadamente o braço fora da

janela.

Eu comecei a descer tristemente Cameron Road. Muita gente se cruzava

comigo. Cem metros abaixo distinguiam-se com nitidez as letras de néon do Bay

View Hotel. E quando, mesmo à frente, os meus olhos tropeçaram no letreiro

luminoso do Golden Bamboo, um fluxo avassalador esquentou-me o cérebro e todo

o corpo. Um pedaço incandescente da chave que eu procurava desesperadamente

fabricar. E, enquanto ia descendo Cameron, a forja laborava em plena actividade na

minha desgraçada cabeça.

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CAPÍTULO XII

É extraordinário como em tão curto espaço de tempo tanta coisa pode passar

pela cabeça da gente. Acontece nos sonhos, com maior intensidade. Mas também na

vida real. Algo faz accionar um botão, e pronto. Neste caso haviam decorrido três

minutos, o tempo preciso de chegar desde a esquina de Nathan Road até à entrada

do Bay View. O botão fora accionado pelo letreiro de néon do Golden Bamboo. E

essas coisas todas que me passaram fulgurantemente pela cabeça conduziram a um

resultado: dourados, brilhantes pedacinhos de chave. Pedaços que acertavam entre si

e conduziriam portanto a algum lado. E isso para mim era fundamental, e decisivo.

Simples, não é? Só que um pequeno ponto não batia certo. E que este jogo não era

aquele em que eu apostara. Porque a chave que eu acabara de elaborar não era a que

procurava. Aonde me conduziria este novo caminho? Primeiro que tudo, tratava-se

de descobrir a porta que dava para ele. A porta que eu já podia, agora, tentar passar.

O porteiro fardado arregalou os olhos no instante em que, após a menção

nítida de me correr a pontapé, me reconheceu. É verdade que eu devia encontrar-

me num estado lastimoso. Nunca porém me havia ocorrido que chegasse a esse

ponto.

No átrio foi pior ainda, mas não liguei e dirigi-me à recepção. Não estava lá

quem eu procurava. O tipo que funcionava por detrás do balcão era o empregado da

tarde.

- Mister Chasey!...

- Pois, pois, sou eu. Dê-me uma informação, amigo: onde pára o seu colega?

- Mister Chasey!...

A boca abria-se e fechava-se como as guelras de um peixe.

- Deixe-se de conversa, parceiro. O seu colega, onde se meteu?

Leu-me com certeza no rosto a decisão firme de o puxar pelas bandas do

casaco, porque tratou de responder, o mais depressa que pôde:

- George ... há ... foi para casa.

- Não era o turno dele, esta noite?

- Há...

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- Era, ou não? - gritei-lhe.

Passou a andar mais depressa que um expresso.

- Sim, Mister Chasey. Mas o George não se sentia bem, acho eu. Foi para

casa. Ficou de me substituir amanhã à tarde. Não compreendo o que...

- Não há nada que compreender, amigo. A morada dele. Depressa.

Não chegou a levar dois segundos.

- 65, King Lam Street, Shamshuipo.

- Obrigado, rapaz.

Fazia tenção de abalar quando o gerente surgiu nas minhas costas.

- Que se passa aqui?

Voltei-me.

- Passou bem?

Cada olho deu dois pulinhos.

- Mister Chasey!...

- É, não é? - retorqui, e disparei porta fora por entre as pessoas que se

afastavam para me dar passagem.

Depois de me apear e bater com a porta do táxi, considerei que talvez

devesse ter dito ao motorista para esperar. Aquela hora nem pessoas por ali

andavam, quanto mais automóveis. Por outro lado, no entanto, eu não fazia a mais

pequena ideia do tempo que o assunto iria demorar. Podiam ser cinco minutos.

Podia levar a noite inteira, até.

O prédio tinha dois andares, e o mais estranho era como o segundo se

conseguia aguentar por cima do primeiro. A porta da entrada estava aberta. Ou pura

e simplesmente a entrada não usava porta. E, se cá fora era noite, lá dentro era

negro. A madeira do chão não gostou de ser pisada e foi refilando com as solas dos

meus sapatos. Foi possivelmente por essa razão que a luz da escada se acendeu e

que o olho veio instalar-se na fresta da porta que se entreabriu à minha esquerda.

- Boa noite - disse eu. - Peço desculpa de incomodar, mas quero falar com o

meu amigo George, que trabalha no Bay View. Pode dizer-me em que andar é que

ele mora?

O olho piscou meia dúzia de vezes. A porta abriu-se um pouco mais,

deixando surgir outro olho igual ao primeiro e enquadrando o rosto pregueado.

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- George quem? - quis saber.

Tinha voz de mulher e grunhia inglês. Devia ser uma mulher inglesa.

- George não sei - esclareci. - É exactamente o que venho saber. Deu apelido

errado no hotel onde trabalha, e eu sou da inspecção.

- Há ...

- Exactamente, minha senhora. Quer fazer o favor de me indicar onde posso

encontrar o George, ou vou acordar toda a gente e chamar a polícia?

A porta afastou-se mais um bocado. A mulher estava embandeirada num

roupão cor de porcaria e o cabelo assemelhava-se a um monte de esterco.

- Eu não tenho medo dos chuis - foi avisando. - Mas o George mora no

segundo, porta em frente. E já agora, se é de alguma inspecção, diga a esse filho da

mãe para pagar o que deve.

- O que eu vou dizer ao George é cá comigo, minha senhora, e por isso faça

o favor de ir para o raio que a parta.

A porta bateu com tamanha violência que os, alicerces do edifício

estremeceram, e eu comecei a trepar a escada, tratando de tactear primeiro a tábua

de cima, porque algumas encontravam-se podres e luz não havia. Os degraus eram

tão altos que ao passar ao seguinte o joelho quase me tocava o nariz. Descansei no

vão do primeiro andar, e continuei a subida. Ao outro patamar já chegava alguma

claridade que passava da clarabóia. A escalada até ao segundo foi mais difícil. Porta

da frente, dissera a velha. Detive-me uns momentos para retomar o fôlego e deitei a

mão à maçaneta. Foi só rodar, empurrar de mansinho e entrar. A janela que devia

dar para as traseiras tinha os estores levantados, o que me permitiu uma percepção

quase completa da espelunca. Na cama de topo gradeado ressonava um animal. O

animal chamava-se George e ia cantar para mim. Pus a porta no seu lugar e dei uns

passos por ali. Pode-se conhecer uma data de pormenores sobre a mentalidade de

um tipo quando se entra na casota dele. E sobre a de George podia eu desde já

concluir que era um javardo de todo o tamanho.

Próximo da janela existia um lavatório que despejava para um balde, e ao

lado estava pousado um jarro de água. Certifiquei-me de que estava bem cheio.

Agarrei-o, cheguei-o até à beira da cama onde o bom do George devia sonhar com

mulheres nuas, ergui o recipiente até à altura da cabeça e virei-o às avessas. O efeito

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foi o das cataratas de Níagara, em ponto pequeno. George deu um esticão, abriu

lateralmente os braços, esticou as pernas e rebolou para o chão. Finquei-lhe um pé

em cima e puxei o cordão da luz. A lâmpada do tecto veio ajudar a alumiar a

pocilga.

- Olá, George? Está húmido aí em baixo, não?

Fez uma tentativa gorada para se levantar. O meu pé, carregando mais, não

deixou. Como única reacção possível, o fulano dardejou-me com um olhar que era

uma solução saturada de ódio. O rosto apresentava um aspecto bem desagradável.

Expressão assassina, se quiserem. De modo que eu fiquei cheiinho de medo. Curvei-

me, e se ele usasse casaco de pijama eu tê-lo-ia apanhado pela gola. Mas como ele

dormia de tronco nu, só com as calças enfiadas, o único remédio foi agarrá-lo pela

pele do pescoço, como se faz aos gatos, a fim de o içar para cima do colchão.

George uivou de dor. Eu gostei, porque essa nota aguda veio dar-me a certeza de

que George iria cantar que nem um canário. A minha mão permaneceu apertada

como um torno em volta do pescoço delgado.

- Okay, filhote. Começa.

Alarguei um bocado a pressão, porque não se pode exigir que um tipo fale

com as cordas vocais emaranhadas.

Não devia ter feito tal. O rapaz era teimoso. Ergueu subitamente um joelho,

fincando-mo no pescoço. Mais do que a violência do golpe, foi a dor que me

projectou para trás e me fez cair no chão. O filho de uma cadela aproveitou-se para

introduzir rapidamente a mão na gaveta da mesa-de-cabeceira. Não teve tempo para

a retirar, porque a gaveta foi fechar-se-lhe brutalmente sobre o pulso, accionada pela

extremidade do meu pé. Berrou que nem um danado, como se chamasse pela

mãezinha, e eu voltei à vertical e ao pescoço do safado, enquanto a outra mão

extraia o objecto da gaveta. O objecto era uma Walter, cujo buraco negro se dirigiu

sem perda de tempo para a cabeça do marmanjo. Aguardei que ele recuperasse o

pulso maltratado e se pendurasse a ele aos grunhidos. Falei então, tranquilamente:

- Rapazinho, aceita um conselho que dá o pai Chasey: tu não és parvo

nenhum, e por isso basta olhares para mim para saberes que não vou pedir licença

para te lixar os miolos. Vim aqui para te ouvir falar, e portanto é só isso que tu vais

fazer, e depressinha, porque eu tenho a minha vida e não posso perder muito tempo

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a brincar aos tesos com gajos da tua laia. - Martelei-lhe o topo da testa com a ponta

da arma. Largou outro uivo. - Percebeste, ou é necessário que eu me zangue

contigo?

Cheguei mais a minha cara à dele.

- Filho, fala mais alto, que eu assim não te ouço.

Teve finalmente um gesto de concordância. Contrariado, mas, enfim, fazia os

possíveis para confirmar a opinião pessoal que eu formara sobre a sua esperteza.

- Bem, então vamos a isso. Mae Leung.

Faz-me um poema sobre ela.

- Quem? - acabou por rosnar.

O cano da automática descreveu exactamente a mesma trajectória de há

pouco. Tive dó dele, mas valeu a pena, visto que aquele jeito matizão se esfumou e a

voz saiu mais meiga, lamuriosa mesmo.

- Eu não conheço nenhuma Mae...

- E eu daqui a bocado não conheço nenhum George, porque o que conhecia

estará morto - avisei gentilmente.

Molhou penosamente os lábios com a língua e apalpou com um esgar o galo

da testa.

- Bem, que quer saber?

É assim mesmo que eu gosto deles. Francos, leais. Abertos, dispostos a

cooperar. Comecei.

- Quem te mandou indicares-me o Golden Bamboo?

Cerrou os dentes. Armava em parvo outra vez. Desta feita foi a coronha que

com uma pancada seca lhos fez abrirem-se. Não reparei se continuavam lá todos,

pois me interessou muito mais o que saiu através deles, entre dois gemidos:

- Foi ela - rouquejou.

- Ela quem?

- Miss Leung.

- Que te disse ela?

Tentou endireitar o tronco. O cano da Walter não lhe permitiu o movimento

para além de escassos centímetros.

- Posso fumar?

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- Não. Agora só podes falar. Depois, se ainda tiveres vontade, dou-te um

cigarro. E é possível que se te portares bem te ofereça o maço inteiro. O que te disse

ela?

- Que lhe aconselhasse o Golden. Bamboo. Foi só isto, Mister Chasey. Juro.

- Não juras nada, nem me tratas pelo meu nome, senão tenho vergonha de

continuar a usá-lo. Adiante. Já a conhecias?

- Não, Mister Chasey. Não, senhor. Juro.

- Não juras coisa nenhuma. Respondes só ao que te pergunto, e os

comentários sou eu quem os faz. Bom, julgo que já assentamos provisoriamente em

dois pontos:, não a conhecias, e ela disse-te apenas que me aconselhasses o Golden.

Bamboo. Repara que eu disse “provisoriamente”, porque ainda não tenho a certeza

de que estejas a falar toda a verdade. Mas é melhor que estejas, rapazinho. Vamos

no entanto voltar ao principio e rever tudo outra vez, com os pontos em cada i.

Percebes a ideia?

Percebeu. Rapaz esperto. A língua desenrolou-se-lhe, e George desenrolou a

história. Não era nenhuma novela mas compensava o tempo que eu perdera para

conseguir obtê-la.

- Eu não a conhecia, mister...

- Podes tratar-me por Chasey - condescendi.

- Eu não a conhecia, Chasey...

- Mister Chasey - disse eu.

- Eu não a conhecia, Mister Chasey.

Berrei.

- Caramba, já ouvi! Okay, não a conhecias, e pronto, não conhecias. Desata a

língua, rapaz, ou queres que ta puxe com um alicate?

Garanto-lhes, por vezes este método psicológico dá um resultadão. Não

prossegui, se não daí a bocado o pobre do George era capaz de desatar a chorar.

- Ela apareceu aqui em casa no domingo passado, de manhã. Eu ainda estava

a dormir. Ela disse-me que estava disposta a pagar-me um pequeno trabalho para

que precisava de mim. Eu respondi que dependia do gênero de trabalho, e então ela

explicou-me o que eu devia fazer, e era aquilo que fiz: visto que o senhor ainda não

tinha vindo a Hong-Kong, era natural eu alvitrar-lhe um sítio aonde ir nessa noite.

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- E quanto te pagou ela por esse “trabalho”?

- Cem dólares americanos... metade nesse dia e metade depois.

Dei um estalinho com a boca.

- Cem dele, hem? Não é nada mau, pois não, badameco?

- Mas, Mister Chasey, eu garanto-lhe que não sabia nada do que se tratava...

Cortei.

- Está bem, está bem, e quando é que recebeste os segundos cinquenta?

- Hoje à tarde...

- Hem...!

- Hoje à tarde. Foi por isso que eu meti dispensa, porque ela tinha ficado de

mos vir aqui entregar e...

Não posso adivinhar o que o George observou no meu rosto, mas devia ser

algo de esquisito, de muito estranho, mesmo. Coseu-se de encontro à s grades da

cama e pôs-se a tremer.

- Não ... por favor! - implorava, e eu mal o ouvia.

Só falei um bom minuto depois.

- Ela veio, George?

- S ... sim ... Veio. Às cinco.

- Tens a certeza, George? Tens a certezinha, absoluta?

- Tenho, mister. Era ela mesma. A oriental que foi ter consigo ao hotel, nessa

mesma noite... Chama-se Mae Leung, não chama?

- Como sabes? Ela não to disse, pela certa. Há?

A arma estremecera na minha mão, e certamente na testa dele também. Os

olhos abriram-se-lhe desmesuradamente e as palavras vieram entaraineladas.

- Não... não disse. Descobri eu.

- Descobriste tu, George... Porquê? Como raio descobriste tu uma coisa

dessas, George?

- Eu... eu quis saber. Ela saiu do seu quarto na manhã seguinte, às sete

horas... à hora que eu largava. Quis saber quem era, só isso, e fui atrás dela.

- Porquê, George, rapaz esperto?

- Porque... eu...

- Querias ver se podias jogar com um pau de dois bicos, não, rapazinho

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habilidoso... A coisa cheirou-te mal, e tu reflectiste que pelo sim pelo não talvez te

viesse a ser útil descobrir o outro lado do jogo. Mas não te serviu de nada, pois não,

George?

- Não - respondeu ele -, ela foi ontem embora.

- Pois foi, rapaz. Voltou hoje, no entanto, para te entregar a massa. Podias ter

continuado o jogo de escondidas. Por que razão não o fizeste?

- Ela ameaçou-me, Mister Chasey. Desconfiou que eu podia ter ideias e

ameaçou-me...

Agora, sim, eu conhecia a história. Nada que eu não esperasse. A não ser o

desfecho. Mae Leung em Hong-Kong. Esta tarde. Só me faltava uma achega.

- A morada dela, George.

- Não... por favor ela... ela...

- Sim, George. A morada dela. E não tens de recear, rapaz. Porque eu vou

daqui direitinho falar com a dama, e se tu sabes utilizar a experiência própria hás-de

raciocinar que depois da minha conversa com essa senhora ela não ficará com

vontade de te vir incomodar. Compreendes o que quero dizer, não compreendes?

Assentiu, conformado. Presentemente, este estava por tudo.

- Sim ... a morada é 210, Narchang Street.

Aliviei a pressão e acabei por retirar a Walter da testa dele. Apostaria que o

líquido que lhe encharcava o rosto distorcido não era só água. Levantei-me da borda

da cama, guardando a arma no bolso do casaco.

-Okay, amigo. Continua a dormir. Obrigado por tudo.

Andei para a porta. Detive-me com a mão no trinco, a fitá-lo

pensativamente.

- Tens ainda os cinquenta dólares, não tens? Fez que sim com a cabeça. -

Bom - disse eu. - Chega e sobra para pagar a arma.

Saí, puxando a porta. Pobre George. A Walter fazia chumaço no bolso. Já ia

a descer quando me ocorreu uma coisa. Tornei a subir, e abri a porta para atirar o

maço de tabaco para cima da cama. Gosto de cumprir o que prometo.

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CAPÍTULO XIII

Encetei o maço suplementar, sacudi um cigarro para a boca e acendi-o. Só

depois premi o botão dourado da campainha.

Quem veio abrir foi um miúdo chinês muito cómico. Mirou-me de baixo

para cima, e em sentido inverso quando alcançou o topo. Baixei-me.

- Miss Leung - soprei-lhe, juntamente com uma baforada que o fez tossir.

- Miss Leung não pode atender - anunciou ele em voz tão fina que me entrou

por um ouvido e saiu pelo outro.

- Ah, não? - disse eu, ao mesmo tempo que encostava a biqueira do sapato à

ombreira. - E porquê?

- Miss Leung toma banho - esclareceu.

Observei:

- Óptimo. Então talvez eu possa ir falar com ela à banheira! - Espetei o dedo

mínimo no ar. - Só uma palavrinha...

- Está bem. Eu ir avisar. - Mas anunciou: - Porta fechada. - E tentou cumprir.

A biqueira não deixou.

- Há, há - disse eu, brincalhão. - Porta aberta.

-Ir dizer a miss! - e desapareceu correndo.

Introduzi-me e fechei a porta. Porta fechada. Os meus olhos passearam em

redor. Miss Leung vivia bem. Até à altura, pelo menos. Esta era a sala de entrada,

que devia servir para receber as visitas. Confortável. Estilo oriental americanizado,

com todos os ingredientes - televisão, bar, gira-discos, sofás estilizados e ar

condicionado. O apartamento pelos vistos não era grande, e se eu não me enganava

aquela porta ao fundo dava para o quarto dela, e contígua a este devia existir a casa

de banho.

Andei sobre a alcatifa até à entrada do quarto. Era decorado em estilo

oriental puro, com biombos, cama de dossel, arca riquíssima e tudo o mais. O

barulho que reconheci como sendo de água a cair de chuveiro parou, no momento

preciso em que o miúdo sala de lá afogueado. Ficou sem respiração ao dar comigo

ali. Quando recuperou o fôlego ameaçou, apontando o banheiro:

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- Miss vem pôr lá fora!

- Okay - tranquilizei-o. - Sabes o que é isto aqui? - inquiri

despreocupadamente, abrindo a porta do pesado guarda-vestidos.

- Roupeiro - gritou. - Não mexe!

- Está bem, não mexo. Mas se queres ver a coisa mais engraçada deste

mundo, chega cá.

Veio desconfiado, mas chegou-se. Era o que eu pretendia. Peguei-o pelos

fundos das calças e pela gola do casaco, enfiei-o lá dentro e fechei a porta à chave.

O que se seguiu foi uma barulheira infernal que logo deu lugar a um choro

convulsivo. Tive dó dele. À cautela observei os orifícios que se abriam no cimo.

Não haveria novidade.

Desviei a vista para a saída da casa de banho exactamente na altura em que

Mae saía de lá, o corpo esguio embrulhado numa toalha felpuda que apenas lhe

cobria metade. Os cabelos negros e compridos caíam-lhe molhados ao longo da

face, e gotículas de água escorriam-lhe sobre a pele dos braços e das pernas bem

feitas.

Mae não teve um gesto ao ver-me. Um ligeiro estremecimento, somente. Os

lábios carnudos disseram: “Al”, e ela ficou ali, parada, sem acreditar.

- Sim, Mae. Sou eu. Al Chasey. Desta vez reconheceste-me ...

Deu um passo, outro, e outro, até ficar perto de mim. Pude aspirar-lhe o

perfume do sabonete no corpo nu.

- Al...

Desentalei o cigarro de entre os dentes, conservando-o preso entre o polegar

e o indicador.

- Precisamente, “Flor”... sou eu. Ou tenho de te mostrar o passaporte?

Os lábios distenderam-se devagarinho para comporem o sorriso, que lhe

deixava os dentes muito brancos e pequeninos à mostra.

- É que... Al... eu não esperava. Como soubeste a minha morada? É uma

surpresa tão grande.

Grande víbora.

- Essa foi pelo menos a minha intenção - afirmei.

Ela readquiria a presença de espírito muito mais rapidamente do que eu

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poderia esperar. No guarda-fatos o rapazinho continuava a choramingar. Mae olhou

para o móvel e depois para mim, com as sobrancelhas arqueadas.

- Al... não me digas que...

Pretendeu dirigir-se para lá. Encontrou a minha perna atravessada no

caminho.

Deixou-se estar, o corpo encostado ao meu, e eu comecei a sentir a excitação

aumentar gradual, intensamente. Não precisamente o gênero de excitação que ela

me provocara, dois dias atrás. Era diferente. Desejo, sim, doseado com repulsa e

desprezo. Não era ódio sequer. Nós não odiamos um réptil. Podemos, no entanto,

desejar a pele de uma cobra para mandar fazer uma carteira. Mais ou menos isto, eu

sentia em relação a Mae. Uma víbora. Em gestos perfeitamente controlados

abandonou o corpo num relaxamento sensual e deixou que a toalha escorregasse um

pouco, ao mesmo tempo que falava roucamente, pronunciando algo a que eu nem

cheguei a prestar atenção, porque associei as atitudes e o som das palavras ao que

ficara para trás. O nosso encontro no Golden Bamboo. A cena preparada com os

marujos franceses. As frases doces de Mae. “Gosto de ti, americano. Por isso vou

contigo. Não é por dinheiro.” Claro que não era pelo meu dinheiro. Mas quanto lhe

pagara o governo chinês?

A raiva penetrou-me nas veias e apossou-se-me de cada fibra. Todo eu fiquei

de súbito tenso como uma corda esticada e nesse preciso instante, numa fracção de

segundo, toda a energia acumulada se descarregou na forma da bofetada bestial que

a minha mão direita vibrou na cara dela. A pancada apanhou-lhe com violência a

região do ouvido. Ela soltou um grito de dor atroz e foi brutalmente atirada ao

chão. Ali ficou, o corpo liberto da toalha, as mãos a comprimirem a cabeça,

gemendo em estado de semi-inconsciência.

Eu recuperei o domínio de mim próprio. Curvei-me, apanhei-a por um braço

e deixei-a tombar em cima da cama, a soluçar. Esperei um bocado. Em seguida

agarrei-a pelos cabelos molhados, de forma a voltar-lhe a cabeça para cima. O rosto

alterado virou-se para mim e os olhos cobertos por espessa cortina de lágrimas

procuraram os meus, exprimindo dor, surpresa e angústia.

- Mae, minha linda, escusas de continuar a comédia. Eu sei tudo. E tu sabes

que eu sei.

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Limitou-se a continuar com o choro, agora silencioso. Levei o cigarro à boca

e chupei-o até a ponta incandescente se tornar maior e mais brilhante. Fui à beira da

cama e sentei-me, inclinado sobre ela, o cigarro apertado nos dedos apontando-lhe o

rosto.

- Mae. Viu a ponta em brasa, e a cabeça e o tronco tiveram uma contracção

desesperada. Segurei-lhe o pulso com força, torcendo-lho. Deixou escapar um

gemido.

- Al - soltou num murmúrio dolorido. - Como sabes?

- Não interessa. Não vim aqui para responder, mas sim para saber as

respostas. E és tu que as vais dar. Não vais, “Flor”?

Rodou lentamente. A respiração descontrolada fazia os seios perfeitos

agitarem-se. Levantei-me para ir buscar a toalha ao chão e cobri-Ia. A cadela tentou

então o que nunca lhe devia ter passado pela cabeça. Fugir. Para onde, não sei.

Talvez chamar alguém, ou buscar uma arma. Eu rodei num reflexo, finquei os pés e

catapultei o corpo. Quando ela ia a passar a porta, os meus braços arrebataram-na

pela cintura e Mae rebolou na alcatifa, acabando por imobilizar-se com as pernas

dobradas em posição estranha e os braços estendidos por cima da cabeça.

Ergui-me, pisei com a ponta do sapato o cigarro que caíra e levei a mão à

fivela do cinto. Desprendeu-se rapidamente. Dei um puxão e a fita de couro saiu.

- Levanta-te.

Custou a pôr-se de pé. Mas acabou por o conseguir, apoiada ao fecho da

porta, a expressão aterrorizada deformando-lhe a face. Apanhei a toalha do chão e

atirei-lha. Enrolou-se nela e caminhou custosamente até à borda da cama, onde se

deixou tombar, o corpo sacudido por tremores convulsivos.

Agitei o cinto, vagarosamente.

- Vais falar, não vais, Mae?

Trincou o lábio inferior com os dentes pequeninos e brancos.

- Que queriam eles de mim?

O lábio adquirira um tom esbranquiçado. As faces, desde o principio que

haviam perdido a cor.

- Tens dez segundos, “Flor”.

Observei no relógio o movimento rápido do ponteiro. Passaram sete, oito,

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nove segundos. No seguinte o cinto descreveu um longo arco no ar e foi marcar-lhe

a pele das coxas num estalo seco que ecoou nas paredes do quarto, quase

coincidindo com o grito lancinante que ela soltou. Teve uma contorção súbita, e as

mãos levou-as desvairada ao sítio da ferida. Não tardou muito que o vergão

adquirisse uma cor arroxeada. Cor feia destoando na pele morena.

- Isto não é nada. Sei fazer muito pior. Portanto, Mae: que pretendiam eles de

mim?

- Não, Al... não! - gritou numa súplica histérica. - Não...! Eu falo, digo-te

tudo. Mas não faças isso... Por favor, Al - implorou entrecortadamente por entre os

soluços.

- Okay. Estou à espera.

- Foram... eles... que me mandaram ...

- “Eles” quem?

- Os serviços... do governo.

- Serviços, de quê?

- De segurança.

- Que queriam eles de mim?

Ajustou mais a toalha em torno de si, como se os arrepios que a percorriam

fossem de frio.

- Nada ... em particular, Al. Pensaram unicamente... que tu poderias... ter

interesse.

Soltei uma gargalhada. Soou-me mal, porque eu não tinha vontade de rir.

- E por que diabo havia de eu ter interesse para vocês?

- Porque... - fungou, limpando os olhos na ponta da toalha. - Porque ...

- Queres um cigarro?

Disse que sim, e eu estendi-lhe um que saía parcialmente do maço, e dei-lhe

lume. Inspirou nervosamente um bom bocado, expelindo a pouco e pouco o fumo

pelo nariz e depois pela boca. Aparentemente, foi um tranquilizante, pois em breve

os tremores diminuíam e a aparência do seu rosto normalizava-se. Meti o cinto no

lugar, apertei a fivela e acendi outro cigarro para mim. Precisava também de

afrouxar a tensão.

- Continua, Mae.

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Prosseguiu, mais calma já, embora a espaços um soluço lhe subisse na

garganta abafando-lhe a voz.

- Eu trabalho na secção de Hong-Kong há três anos. Não sou importante lá

dentro, embora por vezes, como neste caso, me encarreguem de dirigir uma ou

outra missão de mais responsabilidade. Conheço bem a língua inglesa ...

Sim, uma coisa era certa: o inglês que ela agora falava era muito mais perfeito

que o americano com sotaque de há oito dias.

- Há três dias eles tiveram conhecimento de que, para o Congresso em que o

teu jornal tomava parte, o Sun enviara, em lugar do seu correspondente no Extremo

Oriente, um repórter criminal. isso despertou certas suspeitas, e o teu nome foi

investigado. Os serviços descobriram que tu já estiveras por diversas vezes em

contacto com departamentos da vossa secretaria de Estado. Foi razão suficiente

para me mandarem seguir os teus passos e procurar saber o que na verdade te

trouxera a Hong-Kong.

Era de gritos! As minhas orelhas pareciam radares, a querer captar cada onda

sonora. Ih, mãezinha, o que a malta se ia fartar de rir lá em casa!

- De que te ris, Al?

Caí em mim, e apertei os dentes.

- Nada. E depois?

Chupou o cigarro e sacudiu os cabelos para trás das orelhas.

- Depois, coube-me representar o papel... - confessou.

- E de que maneira! - comentei. - Nunca experimentaste o teatro, Mae?

Ergueu bruscamente a cabeça e prendeu aos meus os olhos ainda húmidos,

brilhando com um fulgor inesperado. Pronunciou com firmeza:

- Vou continuar a falar. Mas antes, quero que tu saibas uma coisa, Al. Senti

por ti aquilo que te disse, nessa noite. Estás no direito de acreditar ou não. No

entanto, mesmo que não acredites, e me batas por julgares que eu estou a mentir,

não retirarei o que acabo de afirmar. Gostei de ti. E tenho a certeza de que não és

mau. Tentaste parecê-lo, para me obrigar a falar, e és capaz de continuar a fazer-me

mal, como disseste. Mas eu sei que, lá por dentro, isso te desgosta. Esse é um dos

motivos porque gosto de ti.

Conservou ainda por segundos os olhos presos aos meus. Depois disse:

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- Continua a perguntar.

- Vamos por ordem. A agressão, no hotel - sugeri.

- Mandei agentes nossos revistarem-te o quarto. Descobriram o sobrescrito

que continha, entre outros documentos, o passaporte falsificado destinado à tua

passagem para a China.

- Por que razão não me impediram de prosseguir viagem, e se limitaram a

dar-me uma sova?

Acenou negativamente a cabeça.

- Nós não queríamos impedir-te de transpor a fronteira, mas apenas

conhecer o que te levava lá. A agressão aconteceu simplesmente porque os

surpreendeste quando não o esperavam, e não tiveram outra alternativa. Nós

queríamos que tu fosses, visto que era o único processo de descobrir qual a tua

finalidade, e o melhor para te apanharmos...

Boa. Possuíam miolos, os demónios, e sabiam como usá-los. Ocorreu-me

uma ideia.

- A maleta do dinheiro.. Deram com ela, certamente. Por que não a levaram?

- Não nos interessava fazê-lo. Primeiro, porque isso te levaria a modificar os

planos para a viagem. E segundo, porque era dinheiro que entrava no país.

Verdadinha, que eu estava a apanhar uma barrigada de gozo! Os espertalhões

não haviam topado sequer que o dinheiro era falso...

- Passemos a falar dos contactos que estabeleci à minha chegada a Hong-

Kong. Rita Grahame e Wu Tchao. Se me seguiram todo o tempo, investigaram-nos

pela certa...

- Sim - anuiu. - Superficialmente, no entanto, visto que não podíamos

levantar suspeitas e, desde que soubemos da tua ida a Cantão, todo o nosso interesse

se concentrou em ti. Tu bastavas para nos levar ao que pretendíamos. Aos outros,

os que estivessem envolvidos, poderíamos deitar-lhes a mão mais tarde. Por isso, o

primeiro objectivo eras tu.

- Não elaboraram então um dossier sobre os outros?

- Não.

- Vieram a descobrir contudo que o assunto não tinha nada com

espionagem... ?

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- Sim.

- Quando?

- Em Cantão. Investigamos tudo o que se relacionava com Pamela Wong.

Inspirei fundo. O cigarro chegara ao fim. Acendi outro na ponta deste e fui

amachucar o que restava no cinzeiro da mesa-de-cabeceira. Mae seguiu-me com o

olhar.

- Okay. O que nos leva a Shumshum. Que fazias tu na estação?

- Tinha-te seguido desde Kowloon.

- Aquilo foi um descuido imperdoável da tua parte, não foi, Mae?

- Foi - admitiu. - Não contava que voltasses a sair da carruagem.

- Bom - disse eu. - Continuemos em Shumshum, ou antes, passemos de novo

por aí, na viagem de volta. Por que motivo me detiveram, sob aquele estúpido

pretexto, uma vez que haviam concluído de não estar metido nesse negócio da

espionagem? Podiam tê-lo feito com muito maior limpeza sob a acusação de ter

entrado na China ilegalmente, ou de participar em actividades ilícitas, como seja essa

transacção engendrada...

Reflectiu antes de dar a resposta. Esta principiou com uma pergunta.

- Al... soubeste da fuga daquele cientista do meu país para Hong-Kong, num

grupo de outros refugiados?

Aquela notícia do jornal de há três dias... era a isso, precisamente, que ela se

referia. Assenti. Adiantou:

- Era muito importante para o meu governo. Extremamente importante, pela

posição que ocupava, política e cientificamente. Precisávamos reavê-lo, custasse o

que custasse. Sabes como se resolvem esses assuntos - por troca. Necessitávamos de

ter em nosso poder outra ou outras pessoas importantes, ou pelo menos de certo

valor, para podermos estabelecer conservações com o governo britânico. Aí surgiste

tu. Se por um lado a actividade a que estavas ligado não apresentava para o meu país

interesse nacional, por outro nós tínhamos em ti alguém que poderíamos utilizar em

troca.

Profundamente lisonjeado, era como eu me sentia Eu, importante. Vejam lá

onde um tipo chega sem dar por isso! Abstive-me de qualquer comentário,

limitando-me a observar:

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- Bem, isso explica porque me prenderam, e não o pretexto de que se

serviram para o fazer, ou a fita de me deixarem passar e só depois desatarem a

correr atrás de mim.

- Foi tudo estudado, Al. Preparado até ao mínimo detalhe. Assim, os Serviços

decidiram que a detenção, sob o pretexto da tua entrada ilegal no país com a

finalidade de levar a cabo actividade ilícita, não poderia de forma alguma ser

apresentado às autoridades ocidentais, nomeadamente às britânicas. Nós sabíamos

perfeitamente que, se te encontravas relacionado com tais actividades, se trataria de

um episódio do teu trabalho profissional. Não passaria pela cabeça de quem como

nós investigara a tua carreira, e até questões de aspecto pessoal, que logo à chegada a

Hong-Kong te viesses meter em negócios de estupefacientes. Portanto, se nós é

ramos os primeiros a não o aceitar, os serviços ingleses rir-se-iam de nós, e mesmo

que insistíssemos investigariam o caso e acabariam por acusar-nos de te ter

raptado...

Muito interessante. Faltava no entanto assentar no resto.

- O pretexto inventado...

- Era bom como qualquer outro, Al... desde que não fosse verdadeiro e não

houvesse por conseguinte possibilidade de ser investigado. E não a haveria, com a

minha saída, hoje mesmo, de Kowloon.

Fui formando anéis de fumo sobrepostos, até o meu cérebro ter

compreendido e registado tudo e sinalizando quais as falhas que ainda existiam.

Havia-as, e importantes.

- Não detiveram o dinheiro, nem Pamela Wong

- Não - concordou. - Quanto à questão do dinheiro, suspeitávamos tratar-se

de uma fraude, contudo realizada com tal perfeição que não conseguimos obter

provas.

- Vocês, quando não possuem provas, forjam-nas.

Negou.

- Não num caso como este. Repara, a transacção foi efectuada através de

uma firma de comprovada honestidade, em Hong-Kong... Quanto a Pamela Wong,

passava a ser, desde que transpusesse a fronteira, uma refugiada. No caso de virmos

a arranjar provas da sua participação como responsável, que julgamos ser, no

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contrabando de drogas, não será difícil para o governo chinês, tal como em relação a

Wu Tchao, conseguir que seja repatriada.

- A cena da prisão, em Shumshum?

- Apenas um processo de iludir a tua companheira de viagem...

- O assassínio de Rita Grahame, também foi obra vossa?

- Não - negou terminantemente. - Nem sabemos para quem trabalha.

- Fernandes. Que sabem sobre ele?

- Nada, praticamente - declarou. - Negócios legais, ocasionalmente, para uma

empresa de Kowloon.

Mae despejara tudo o que sabia. E mais do que a lógica, uma sensação

interior confirmava-mo. Pressentiu que eu dera por terminada a conversa e

levantou-se, segurando a toalha felpuda que lhe embrulhava o corpo e contornava as

formas. Dei com os seus olhos, negros, brilhantes, lindos. Entreabriu os lábios.

Encontrava-se próxima. Demasiado.

- Que vais fazer de mim, Al?

Reflecti, e acabei por concluir:

- Dou-te duas possibilidades, Mae: ou rediges imediatamente uma declaração

contendo tudo o que acabas de me contar, incluindo o nome de todos os principais

elementos da espionagem dos serviços secretos do teu país actualmente em Hong-

Kong, e voltas amanhã para lá; ou decides ficar, e não terei outra solução que não

seja entregar-te às autoridades. E o mais que posso fazer por ti, é atestar a tua

colaboração. A escolha pertence-te. Aceitarei a tua palavra pela decisão que tomares.

Semicerrou as pálpebras e os lábios distenderam-se num sorriso trémulo.

- Não tenho muito por onde escolher, pois não, Al?

- Não - concordei. - Acho que não.

Correu a mão pelos cabelos, puxando-os para trás, e ergueu a fronte.

- Fico - disse ela.

O silêncio caiu sobre nós, ali quietos, em frente um do outro. Fui eu quem o

cortou.

- Dás-me a tua palavra?

Acenou afirmativamente.

- Dou.

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- Está bem. É contigo. - Falei sem a olhar. - Adeus, Mae.

Demorou algum tempo antes que eu ouvisse, sumidamente.

- Adeus ... Al.

Do guarda-vestidos não chegava qualquer ruído. Pelos vistos o miúdo

adormecera, cansado de choramingar. Rodei sobre mim próprio e afastei-me

depressa na direcção da sala. À porta do quarto detive-me ainda, e virei-me. Mae

permanecera no mesmo sítio, seminua, os cabelos pretos e compridos escorrendo-

lhe ao longo do rosto. Sobre os ombros descobertos, o rosto belo de olhos negros

enevoados. Pronunciou, roucamente.

- Gosto de ti, Al...

Atravessei a porta, rumo à saída.

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CAPÍTULO XIV

A aragem que vinha de Victoria Bay era bafo quente que nos envolvia. Fui

descendo sem pressa pelo passeio do lado esquerdo. Um carro de matrícula inglesa

passou por mim no momento em que eu parava para acender um cigarro e sumiu-se

rua abaixo. A chama do isqueiro tremia no contacto com a ponta do cigarro. Talvez

efeito da aragem. Ou da mão que o sustentava. Continuei a andar, e se alguém me

perguntasse para onde, eu diria que tanto calhava, e um raio que partisse os

curiosos.

- Eh, mister... psst!

Aquilo era comigo, e a voz era de rapariga, uma voz débil que me chamava

numa rua onde eu não via ninguém. Mas a voz vinha de trás, e portanto foi para aí

que eu olhei, quando ela corria já para mim, saída das trevas de uma porta igual às

outras. Era uma miúda oriental, com duas longas tranças penduradas dos lados e um

vestido europeu que não era dela, mas que servia perfeitamente para o efeito que

pretendia. Porque quando se acercou de mim, agarrando-me a mão, percebi que não

se tratava exactamente de uma miúda. Teria talvez os seus dezassete anos. Mas para

uma rapariga de Hong-Kong essa idade é a de uma mulher que sabe como obter o

que precisa.

- Mister... vai com pressa?

Mergulhei os meus olhos nos dela, e o mergulho foi mais fundo e frio que

nas águas da bala.

- Sim, vou com pressa.

Saltitava ao meu lado, sem me largar a mão, porque eu recomeçara a andar

chupando o cigarro com força.

- Espere, venha comigo!...

- Não. Tenho pressa.

- É barato, mister... para si...

- Não.

- Dois dólares de Hong-Kong... só.

- Não.

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A mão puxou-me a manga com mais força.

- Menos... um dólar e meio.

Estaquei de novo, fitando-a. Os olhos negros e brilhantes quase imploravam.

São bonitas, as mulheres de Hong-Kong. Mesmo estas. Especialmente estas. Até aos

vinte e cinco, um pouco mais talvez, mas não muito. E elas sabem-no bem, e por

isso o cérebro é uma máquina, e o coração deixa cedo de estar lá porque é apenas

uma peça a entravar o raciocínio.

- Não - disse eu. - Procura outro, porque eu tenho pressa, e além disso não

gosto de mulheres que vêm atrás de mim, porque quando quero uma sou eu a

escolher. Percebido?

Soltei o braço, levei-o ao bolso e tirei de lá uma nota que lhe passei para a

mão delgada.

- E agora, põe-te a cavar ...

- Mas...

- Cava!

- Sim, mas ... não gosta de mim, não?

- Não.

- Mas eu posso arranjar outra, mister... Em Mongkok, a minha irmã. É mais

velha. Melhor do que eu... Não quer outra?

- Não. Nenhuma. Nem sequer tua irmã. Percebeste de uma vez, ou queres

levar um par de estalos?

Calou-se e ficou parada. Mire -a de soslaio.

- Entendido?

Sacudiu a cabeça negativamente, e as tranças balouçaram.

- Não. Atirei fora o cigarro, cuja ponta se desfez de encontro às pedras em

faíscas vermelhas, e encolhi os ombros.

- Então, boa noite!

Pus-me a andar. Ela ficou, durante um bom bocado, porquanto quando

alcancei o extremo da rua e olhei para trás ainda se conservava no local onde eu a

deixara.

Jaffe Road ainda lá estava. Não se podia dizer que se encontrava exactamente

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como dois dias antes, quando eu lá estivera, mas o certo é que a rua era a mesma, e

os prédios também, só que o que faz uma rua não são os prédios, mas sim as gentes

que por lá circulam, e então Jaffe Road era bem outra. Como qualquer rua de

Wanchai difere da uma da tarde para a uma da manhã. Agora era uma da manhã. E

eu seguia por Jaffe Road, Wanchai. O meu destino consistia num certo local que

dava pelo nome de Wu Tchao. Agora eu já sabia onde era, e fui andando para lá.

Mais devagar também que na antevéspera, porque um tipo não pode andar por cima

das pessoas nem passar por baixo delas. Tem de contorná-las, se for educado, e foi

isso o que eu fui fazendo, com muito jeito para não ser pisado por outros tipos que

não são tão bem educados como eu.

Desta vez ainda foi preciso subir os degraus até à porta, residindo a única

diferença em que o sítio era agora um local público, e portanto a porta não estava

fechada. Por isso não foi preciso bater para atrair o chinês miudinho e transparente

que dava saltos e gritinhos. O fumo saía lá de dentro como se houvesse incêndio no

interior. A juke-box fornecia música de jazz, em volume mais alto que o conjunto

poderia produzir se estivesse desdobrado em quatro por todos os cantos da sala, e o

espaço desocupado, silencioso e vazio do outro dia parecia ter sido invadido por um

bando de viquingues em excursão costeira para se embebedarem e violarem

raparigas que até gostavam da festa.

Rodei a vista semicerrada em redor na intenção. vaga de topar alguém

conhecido que só podia ser o chinês matulão e careca, o qual acabei por descobrir

ao balcão sustentando a cabeça enorme nos punhos descomunais. Fui-me

aproximando custosamente através da compota que os homens e as mulheres

faziam, até que cheguei junto dele.

- Ouça, amigo... - disse eu.

Não obtive resposta. Aparentemente o gigante dormia a sesta, e a ser assim

eu estava ao pé de um tipo que na guerra era capaz de se deitar a dormir com

granadas a rebentarem-lhe à volta.

Chamei o chinês do balcão, o qual desta vez não se encontrava a limpar

copos, vagarosamente, mas sim a sujá-los rapidamente com o líquido de mau

aspecto vertido de uma garrafa castanha.

- Eh - falei quando chegou perto -, não se importa de acordar aqui o seu

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amigo, que eu preciso de falar com ele?

Esfregou vagarosamente as mãos no trapo que devia ser o da limpeza do

chão, enquanto simultaneamente meneava a cabeça numa lentidão contrastante.

- Pode ser que sim, mister, mas eu cá não acredito - pronunciou em tom

desalentador. - Já chupou três de há meia hora para cá, e se quer que lhe diga uma

coisa, acho que três é muito mesmo para um homem como Chu Ling.

Percebi ao que o bicho se referia com aquele “três”, mas só quando me

estendeu um cigarro embrulhado em papel escuro, inquirindo:

- Quer um?

- Não, obrigado - retorqui.

- Quero é falar com o gajo.

Teve um gesto de conformismo.

- O problema é seu. O meu é encher copos.

E foi-se embora, deslocando-se miseravelmente para o outro extremo do

balcão. Quanto a mim decidi acordar o zebu, e para isso resolvi que o que tinha a

fazer era aplicar-lhe um murro valente nas costas.

Procedi exactamente desse modo, e embora o meu punho direito não tenha

ficado em muito bom estado, não me arrependi. O grandalhão começou com um

leve estremecimento, como se tivesse sido incomodado por uma mosca, mas logo a

seguir o pescoço, se é que ele o tinha, rodou pesadamente, transportando a cabeça

grande. Quando os holofotes raiados de vermelho ficaram na minha frente rebolou-

os desagradavelmente, escancarou a bocarra num bocejo horrivelmente ruidoso, feio

e malcheiroso, espreguiçou-se agarrado ao balcão, mas cuidadosamente, sem o,

arrancar sequer do lugar, e por fim focalizou-me:

-Wu Tchao? - roncou.

- Wu Tchao - confirmei.

Apeou o traseiro do banco alto e aguentou-se de pé, cambaleando. Se o

parceiro se estatelasse nós íamos todos parar à cave. Não caiu.

- Venha.

Fui. Arredou o reposteiro estampado, deixou-me entrar e ultrapassou-me

para trepar os degraus à minha frente. A porta do lado direito do patamar estava

fechada. Chu Ling bateu com suavidade notória, e do interior alguém respondeu que

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podia entrar, de forma que nós entrámos, eu adiante e ele atrás, depois do que a

porta bateu e o ferrolho foi corrido.

Na sala havia pessoas, e a todas elas eu conhecia. No sofá ornado de

almofadas com desenhos exóticos reclinava-se o imponente Wu Tchao, as pernas

traçadas por debaixo do roupão bordado de ouro, saboreando um cigarro entalado

nos dedos bem tratados. Sorriu ligeiramente, inclinando um pouco a cabeça. Mas

não fora nele que eu havia reparado assim que transpusera a porta. Pamela Wong

encontrava-se ali, de pé por detrás do sofá, e a sua presença era o bastante para

eclipsar do meu espírito tudo o resto, porque nessas circunstâncias os outros e os

objectos passavam apenas a ser “o resto”. Envergava colado ao corpo o vestido

recoberto de pedras que a luz artificial do aposento fazia transitar por tonalidades

estranhas, tons que o esplendor dos olhos dela ofuscava. O olhar dirigia-se para

mim, intensamente, e as pestanas longas foram descendo, as pálpebras a

semicerrarem-se devagarinho.

Tive um pequeno estremecimento e desviei rapidamente a vista para o outro

ocupante da sala, o jovem Ko Nim, o qual tomava o seu lugar ao lado de Wu Tchao.

Correspondi à vénia curta com que me cumprimentou e fiquei de pé, aguardando,

enquanto Chu Ling desaparecia por detrás do biombo.

Foi Wu Tchao quem tomou a iniciativa, convidando em tom impessoal:

- Queira sentar-se, Mister Coslow.

Ocupei o lugar que me indicou, perto da mesinha baixa, e ao fazê-lo notei

que Pamela se movimentava igualmente, em direcção ao sofá no outro extremo da

mesa.

- Não deseja alguma bebida? - inquiriu o anfitrião. Fiz que não com a cabeça

e agradeci. - Podemos então falar, não é verdade?

Remexi-me um pouco no assento, a sensação de desconforto que me

assaltara à entrada acentuando-se com a expectativa.

- Certamente, Wu Tchao. Foi para isso que vim, Fu Ling comunicou-me que

o senhor desejava ver-me assim que chegasse.

- Sim - concordou. - Transmiti na realidade essas ordens. - E acrescentou

friamente. - Creio no entanto que não foram rigorosamente cumpridas. Não

concorda, Mister Coslow?

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Anuí.

- É verdade, Wu Tchao, e peço desculpa pelo atraso. Havia no entanto certos

assuntos pessoais que eu tinha absolutamente de tratar antes de vir para aqui.

Wu Tchao inclinou o tronco para diante e a mão alcançou a cigarreira de

madrepérola, sobre cuja tampa começou a desenhar com o dedo indicador

arabescos invisíveis, enquanto foi pronunciando secamente, num modo sacudido:

- Permito acentuar-lhe um ponto a que não esperava ter de vir a referir-me

tão cedo, Coslow. - Suspendeu os desenhos para volver os olhos frios para mim. - A

partir do momento em que passou a pertencer à organização, não vejo que assuntos

pessoais o possam ocupar. Quer ter a bondade de me explicar este assunto?

Lancei uma mirada furtiva a Pamela Wong, que inesperadamente desviou a

vista para a janela. Tentei um esforço para recuperar o descontrolo momentâneo.

- Trata-se de uma rapariga, Wu Tchao. O nome dela é Mae Leung e trabalha,

ou antes, trabalhava para os serviços secretos-chineses. Travou propositadamente

conhecimento comigo, quando da minha chegada, na suposição de que eu poderia

apresentar interesse para o governo chinês. Fui me até Shumshum, e exclusivamente

ao facto se deu que fui retido na fronteira, no regresso a Kowloon. Foi esse o

assunto que eu tive de arrumar à chegada, e por não apresentar ligação com o

trabalho que acabo de efectuar para a organização rotulei-o de “particular”. Espero

que a explicação, embora superficial, o tenha satisfeito. No entanto, se desejar,

poderei expor em pormenor tudo o que aconteceu...

Quando interrompi o discurso, e embora nesse momento toda a minha

atenção estivesse concentrada em Wu Tchao, pude sentir os olhos de Pamela fixos

sobre a minha pessoa e, sem que qualquer factor palpável me induzisse em reflexões

desagradáveis, o certo é que a tensão crescia gradualmente, de um modo físico, a

provocar um estado normal de inquietação que procurei dissimular. Entretanto, Wu

Tchao pronunciou-se. Duas frases apenas. Curtas, duras e frias.

- Não é necessário. Nós conhecemos todos os pormenores... Mister Chasey.

Eu esperava aquilo. Desde que entrara que eu esperava aquilo, ou algo

semelhante. Talvez não exactamente assim. Porque se muitas vezes somos nós que

escolhemos as situações, não podemos nunca prever como a partir delas os factos se

irão desenrolar. Neste caso foram duas frases apenas. E não obstante o meu cérebro

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se encontrar conscientemente prevenido, o corpo teve um esticão incontrolado,

como se as molas do sofá houvessem atravessado o assento, sem que no entanto os

circunstantes se tivessem apercebido, e depois disso quedei-me tranquilamente,

tracei as pernas e perguntei a Wu Tchao.

- Dá-me licença que tire um cigarro?

- Certamente, Chasey. Sirva-se.

Estendeu-me a caixa aberta e eu peguei nela, extrai um cigarro e voltei a

depô-la sobre o tampo. Depois cheguei-lhe a chama do isqueiro, inspirei

profundamente, soltei de seguida uma longa espiral azulada e encarei o chinês a

direito.

- Bem, Wu Tchao, e agora?

Ele distendeu os lábios finos, sem me desfitar, ocupou-se por segundos em

rodar o esplêndido anel do dedo mínimo da mão direita, e após tê-lo feito regressar

à posição inicial falou ironicamente:

- Julgo que o problema é mais seu do que nosso, não, Chasey?

Dependurei o cigarro dos lábios, e as palavras saíram-me envoltas em fumo.

- Permita-me que discorde. Não existirá igualmente para si um problema a

resolver?

- Qual?

- Por favor, Wu Tchao, não vamos jogar com palavras, porque nesse campo

as probabilidades seriam de dois contra um a seu favor. Portanto, tratemos a

questão a direito. Como descobriu?

Pamela permanecia na mesma posição, e dir-se-ia que o espírito se

encontrava ausente, porquanto o seu corpo era o de uma escultura sem vida. Apenas

os olhos transmitiam imperceptivelmente uma mensagem demasiado profunda para

eu naquela altura tentar ou querer decifrar.

- Você possui um sangue-frio notável para um ocidental, Chasey - comentou

Wu Tchao no mesmo tom irónico.

- Não é para surpreender - expliquei. - Se eu lhe contasse a minha vida desde

pequenino, até você era capaz de deixar cair uma lágrima. Quanto à justificação da

minha atitude nestas circunstâncias, pode chamar-lhe preparação psicológica, ou se

preferir designe-a, como eu costumo fazer, por um “não te rales, irmão, porque a

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vida é o mar cujo fundo, mais tarde ou mais cedo, todos irão descobrir”.

Ele manifestou algum interesse pela minha prosa, porém cortou

imediatamente as divagações formulando uma pergunta:

- Que pretenderia que eu lhe revelasse (para além do muito que conhece,

evidentemente) e por que razão deseja que o faça?

Procurei o cinzeiro, que não encontrei, e como o cigarro chegara ao fim

havia primeiro que tudo que resolver essa questão.

- Pode indicar-me um cinzeiro, Wu Tchao?

- Como?

- Um cinzeiro, se não se importa - traduzi, apontando o cigarro.

Pamela ergueu-se e veio caminhando suavemente para mim, com um

cinzeiro de jade róseo que depôs no braço do sofá. E quando se inclinou para mim,

aproximando por uma fracção seu rosto do meu, pude aspirar-lhe o um perfume

incomparável, e observar o arfar suave das narinas e o ligeiro tremor das mãos.

Durou apenas curtos momentos, durante os quais as veias se me dilataram e pelo

cérebro me perpassou a recordação da noite anterior, em que a tivera nos braços,

completamente. E agora ela encontrava-se longe de novo. Tão distante como o

outro lado da sala. Mas já Wu Tchao me chamava polidamente a atenção.

- Fiz-lhe uma pergunta, Chasey.

- Sim, é verdade - disse eu, ao mesmo tempo que amachucava o filtro do

cigarro no cinzeiro. - E vou responder-lhe. Primeiro, desejo esclarecer que já nasci

assim curioso. Já a minha avozinha, que vive em Peoria, Ilinóis, se fartava de me

censurar esse horrível defeito. E foi possivelmente a mania da contradição uma das

razões que me levaram a esta profissão. A minha avozinha é que ficou desgostosa.

- Refere-se ao jornalismo. Que o leva igualmente a meter-se onde não deve...

- Perfeitamente. Segundo, gostaria de saber como e desde quando têm

conhecimento da minha identidade.

O chinês descruzou as pernas e compôs o roupão. Começou:

- É um mundo pequeno, este em que vivemos, caro senhor. A frase não é de

Confúcio, porque quando Confúcio viveu o mundo era tão grande como a sua

curiosidade. Não que pessoalmente considere a curiosidade um defeito. Chamar-lhe-

ei antes, portanto, o “desejo de saber”. E o desejo de saber tem sido a perda de

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muitos homens. Será a sua. Você é jornalista. Tem deveres e obrigações. Perdoar-se-

ia uma intromissão passageira. Nunca uma iniciativa pessoal que tem por fim servir

os interesses escuros de terceiros na aniquilação de uma sociedade organizada. Foi

isso exactamente que causou a sua perda. Uma sociedade organizada à escala

internacional tem de conhecer a imprensa à mesma escala. O New York Sun é um

órgão conceituado. E dentro do Sun existe um nome que em determinado sector

granjeou justa reputação. O nome vem lá. E a fotografia também. Encima as

crónicas assinadas por esse repórter. É o seu rosto que lá figura, reproduzido. E o

seu nome é Chasey. Al Chasey. Estará correcto o raciocínio?

Assenti.

- Tem razão, Wu Tchao. É um mundo pequeno, sem dúvida. Mas passou a

tornar-se ainda muito mais pequeno, para si, a partir do momento em que eu fiquei

dentro de certos aspectos dos seus negócios...

Wu Tchao levantou-se em gestos perfeitamente controlados, e pausadamente

contornou a mesa e veio colocar-se perto de mim, um pouco atrás do sofá que eu

ocupava. O meu campo de visão ficou assim limitado a Ko Nim e Pamela, ambos

dando a impressão de ausência, sobretudo Pamela, o que me fazia sentir

absolutamente só, triste e infeliz.

- Engana-se, Chasey. É você apenas quem irá sofrer as consequências.

Porque a partir do momento em que o senhor desapareça, a nossa organização

continuará, e com uma garantia que nos foi proporcionada por si: a de que

desaparecerão os competidores.

Rodei o pescoço para o encarar, porém a posição resultava demasiado

incómoda, de maneira que tornei à pose anterior.

- Não será abusar da sua paciência, Wu Tchao, se lhe pedir que me troque

isso por miúdos?

- Absolutamente. Aliás, você sabe perfeitamente onde quero chegar. Alguém

o encarregou de nos aniquilar. Pois bem, o tiro saiu pela culatra. Não sei se me

compreende agora...

- Rita Grahame? - deixei cair.

Silêncio. Depois:

- Por exemplo, Chasey. Vejo que faz progressos.

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- Liquidaram-na, não foi?

- Por favor... não empregue essa palavra. É demasiado... violenta. Digamos

antes que...

Dei um safanão no sofá e levantei-me de um pulo, virado para o chinês.

- Vá para o diabo, seu assassino, com as suas palavras escolhidas! O diabo

que o carregue, e mais aos seus maneirismos, chinês de uma figa. Diga-me só uma

coisa: por que raio não me liquidaram a mim também, hem?

A minha cara não devia ser bonita de ver, mas o esgar que lhe deformou o

rosto também não convidava. Eu espumava ódio, o ódio que viera avolumando, e

dentro o tão em pouco iria explodir e não ficaria um pedaço inteiro de chinês ali

dentro.

O amarelo pronunciou: - “Chu Ling”, ao mesmo tempo que os dedos se lhe

sacudiram num estalido seco. Então, dois movimentos se produziram na sala.

Coincidindo com a saída de Pamela e de Ko Nim, deu-se a entrada do grandalhão

de cabelo rapado. Materializou-se de trás do biombo, o corpo de gorila balouçando,

e com ele as mãos grossas penduradas ao longo das pernas. As mãos não

empunhavam qualquer arma, mas também não vinham nuas. A direita, sobretudo. E

a placa de metal de pontas aguçadas que lhe protegia os dedos não constituía apenas

decoração.

Wu Tchao pronunciou entretanto, nervosamente, num esforço nítido de

autodomínio.

- Vou-lhe dizer porque o poupamos, Chasey. Porque sabíamos que iria

desempenhar-se capazmente da missão de que o incubiríamos. Portanto, até ao seu

regresso, a sua experiência apenas nos poderia ser proveitosa. Até este momento.

Até já, Mister Chasey.

E para o grandalhão

- Chu Ling, leva-o para baixo. E sabes o que tens a fazer.

O gigante soltou um ronco de prazer e deu duas passadas na minha direcção,

fazendo festas nos nós da mão direita. Wu Tchao saiu. Os meus olhos

concentraram-se nas pontas de aço. A minha perna direita recuou, e depois a

esquerda, cedendo apenas a reflexos comandados pelos nervos tensos do corpo que

sustentavam.

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- Vamos descer - grunhiu o gorila.

- Quem disse, seu filho da mãe?

A bocarra escancarou-se num jeito de animal selvagem, e o arcabouço pôs-se

a balouçar mais. Cuspiu na placa de ferro e poliu-a com os pêlos do braço esquerdo.

- Disse Chu Ling, americano. Vamos descer. Apontou o maxilar para a porta.

- Vai à frente.

- Ora essa - discordei delicadamente. - Você primeiro.

- Vai à frente.

Fui adiante.

- Abre.

Corri o trinco e escancarei a porta. O barulho vindo de baixo chegou até nós,

e com tal intensidade que nem o tiro de uma Mauser se conseguiria fazer ouvir no

andar térreo. Considerei as probabilidades, espiando o chinês pelo canto do olho. E

as probabilidades eram todas contra mim. Porque na mão esquerda dele encontrava-

se bem apertada uma arma, que eu não sabia donde surgira, mas o que interessava

era que o buraco escuro estava bem apontado para mim.

- Para a esquerda. Abre a porta.

Encolhi os ombros, levei a mão à maçaneta, rodei-a e empurrei.

- Entra.

Fiz isso mesmo. Mas logo a seguir estaquei, porque lá dentro estava mais

escuro que as noites de Chicago.

- Ouve cá, meu estupor, não vejo nada!

- Escada - proferiu.

Simultaneamente o objecto fez-me pressão entre duas costelas, e eu passei a

ver melhor.

As escadas desciam. Não me dei ao trabalho de testar os degraus, porque os

degraus estavam podres e o que em primeiro lugar me interessava era chegar ao fim,

e depois logo se via.

Chegamos ao fim daí a um bocado, e então eu dei-me conta de que aquela

era a segunda vez em doze horas que me metiam num buraco negro, desconfortável

e malcheiroso. Tropecei num caixote, ou lá o que era, e fui esparramar-me de gatas

no chão de cimento, depois de uma marrada na esquina de outro volume que não

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devia ser um caixote, ou então a madeira era dura de mais.

- Acenda lá a luz, ó filho de um dragão com cornos! resmunguei entre meia

dúzia de palavrões, enquanto fazia força para me pôr de pé. Quando o consegui já a

luz se acendera numa vela de estearina que o chinês inflamara, possivelmente com

um sopro. Aproveitei para dar uma olhadela pelo ambiente. Não gostei. Chão, tecto

e quatro paredes, tudo de cimento, do rijo. As escadas conduziam de um dos cantos

até acima, e a porta lá de cima devia ser forte e encontrar-se bem trancada. A

mobília era pobre. Dois caixotes para dar comodidade, e uma viga de ferro do chão

até ao tecto e que servia para eu dar cabeçadas no escuro.

Virei-me para o zebu, o qual se encontrava a um metro de mim. A arma

desaparecera, mas o arcabouço e as mãos descomunais e peludas haviam ficado. E

as pontas de aço também.

- Ouve cá, meu filho, se a gente vai pintar as paredes o melhor é começar já,

que eu tenho mais que fazer.

O gorila arquejou num rugido fenomenal, o peito alargou-se-lhe todo, de tal

modo que o oxigénio do cubículo pareceu de repente ter sido todo consumido, e o

braço incrivelmente grosso inchou mais antes de se projectar repentinamente direito

ao estômago. Valeu-me estar de sobreaviso, mas apesar do salto com que me

desloquei lateralmente o punho resforçado raspou as costelas do lado esquerdo, e a

dor entorpeceu-me. O instinto da conservação é porém demasiado forte, e foi ele

que me elevou até acima de um dos caixotes. Então, aproveitando a leve vantagem,

concentrei toda a energia na perna direita e catapultei-a para diante, em direcção à

fuça do chinês.

O barulho produzido foi pouco inferior ao do rebentamento de uma garrafa

de gás butano, porém o efeito reflectiu-se com muito maior violência na minha

perna do que na anatomia bestial do gigante, Isso porque o disparo falhou o alvo,

indo antes atingi-lo no paiol do oxigénio, e o único resultado do lado de lá consistiu

num suspiro mais ou menos prolongado. Foi aí que eu senti que não havia nada a

fazer. Nem o karate valia a pena tentar, porque o karate pode pulverizar tijolos mas

nunca derrubar muralhas. Foi essa a última reflexão profunda que me ocorreu antes

de o pontapé estrondoso destruir o caixote onde eu me empoleirara, fazendo-me

cair desamparado para a frente, o maxilar inferior como que atraído por um iman de

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encontro às pontas aceradas do punho que me aguardava.

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CAPÍTULO XV

A chamazinha bailava-me defronte da vista turvada. Uma chama frágil ao

princípio, mas que a pouco e pouco se foi tornando mais e mais intensa, até que as

proporções excederam o que os olhos podiam abarcar e a chama passou a ser

quente, escaldante, e principiou a devorar-me no rosto, dilacerando-o de

queimaduras que torturavam terrivelmente. Quis fugir-lhe, arrastar-me para longe,

porém se é o cérebro que coordena os sentidos, no meu caso algo tão forte como as

labaredas que me consumiam haviam desligado a corrente que comanda os

impulsos. E eu permaneci sem saber onde, tendo apenas a noção de que as chamas

me envolviam e não existia qualquer possibilidade de me libertar do seu

estrangulamento,

O pior era a dor. Dessa infelizmente possuía percepção nítida, e a dor subia

pelo peito acima, crescendo nos maxilares e na nuca para ir estoirar no crânio, frágil

como casca de ovo. Havia depois o líquido. Aquele fluido de composição viscosa,

que -se espalhava no queixo e por debaixo das labaredas para gotejar sobre o

pescoço, escorrendo depois pelo peito abaixo. Acho que era o líquido que afastava

as chamas, visto que a partir do momento em que tomei consciência dele o fogo

deixou de torturar como até ali. Apenas lambia. Forte e dolorosamente.

Os membros não doíam. Ou porque já não estavam lá, ou então

encontravam-se de tal modo entorpecidos que o sofrimento não queria nada com

eles. Fosse como fosse, havia que tirar a cabeça de dúvidas.

Não devia tê-lo feito. Ui, mãezinha, em que triste estado o meu pobre corpo

devia estar! Os braços e as pernas permaneciam, era certo, mas eu quase desejei que

tal não sucedesse, porque me senti tão miserável que até o estômago se revoltou

contra a minha sorte e os vômitos treparam até à boca, trazendo um gosto

desagradável a bílis.

Tudo isso fez que eu fosse tomando conhecimento de factos básicos, tais

como quem era, como me chamava, onde me encontrava e o que acontecera. Pouco

após ter alcançado esse ponto de discernimento, os objectos começaram a adquirir

nitidez através das picadas agudas no rosto.

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As chamas não existiam. Ou antes, existia uma apenas, e essa era bem

insignificante e provinha da vela de estearina. O tamanho desta reduzira-se

aproximadamente de uma hora. Os caixotes permaneciam, um deles suportando a

vela e o outro transformado em pedaços de madeira rebentada. E eu, ali

esparramado no chão de cimento, o tronco e os membros percorridos por tremores,

mas, a sobrepor-se aos tremores, o estado penoso do queixo rebentado a escorrer

sangue em fio. Quis apalpá-lo, porém desisti, porque não é fácil levar as mãos ao

queixo quando elas estão bem presas, algemadas atrás das costas.

Tentei dominar a dor física, a fim de poder raciocinar sobre a situação. Não

foi tão fácil como desligar o botão do rádio, mas a massa encefálica engrenou e a

partir daí as reflexões afluíram. Tudo para, ao fim do espaço de tempo relativamente

curto para o trabalho que deu, alcançar uma conclusão firme: havia que sair dali.

O como custou mais cinco difíceis minutos, no entanto valeu a pena. E o

plano foi elaborado. Plano ingênuo, que por isso mesmo podia resultar. Para o pôr

em prática havia apenas que resolver dois problemas: acumular energias e em

seguida atrair alguém lá de fora. Ambos se me afiguravam problemáticos, mas não

impossíveis. Quanto ao primeiro, era questão de aguardar algum tempo; quanto ao

segundo, eu apostaria em como do lado de fora da porta, ao topo da meia dúzia de

degraus, um parceiro fora postado de guarda. E era bem melhor para a minha saúde

que houvesse apenas um, e ainda melhor se esse não fosse o zebu.

Deixei o tempo correr de mansinho, e com ele as pingas de cera e o sangue

que me empapava o queixo e o pescoço. Foi quando ouvi tossir lá fora que a energia

afluiu decisivamente, e eu ignorei as dores e decidi arrastar-me até à barra de ferro.

Fi-lo penosamente, interrompendo por duas vezes o percurso de cerca de três

metros, até que Finalmente a alcancei e consegui sentar-me no chão de encontro a

ela e de frente para as escadas, o tronco de tal modo encharcado em suor que a

camisa rasgada se colava à pele. O contacto da caixa craniana com o metal frio

soube-me agradavelmente, se é que em certas ocasiões um sujeito pode sentir

alguma sensação agradável.

E logo depois comecei a pôr em prática o plano, materializado na forma de

um roçar das algemas na barra de ferro. O maxilar inferior estava agora dormente, e

eu aproveitei para esfregar com mais força. E com barulho também. Porque era

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preciso que o ruído chegasse aos ouvidos do parceiro lá de fora. O esforço foi

crescendo, e com ele o som de roçar de metal contra metal. Não calculo quanto

tempo me entretive assim distraído, mas sei que, ou a distância a que o outro se

encontrava-se é que do lado de fora havia realmente alguém - era considerável, ou a

chiadeira que eu fabricava não convencia. Nessas circunstâncias fui acometido por

um arranque de grande decisão. Sempre encostado à barra logrei alcançar a posição

que os homens usam, e já de pé iniciei um friccionar que dentro em pouco faria

saltar faísca. Isso sem mencionar o barulho que se repercutia pelas paredes. E que

chegou ao exterior do cubículo. Tão certo quanto os meus ouvidos perceberam o

ruído da porta a abrir-se, e imediatamente soube que alguém pesadão descia a

escada. E quem havia de ser?

O grandalhão veio gingando sobre as mesmas pernas grotescas, os mesmos

braços de macaco pendurados ao longo do arcaboiço, a mesma fuça de guarda de

campo de concentração. Os lúzios examinaram-me e a boca cavernosa alargou-se

até às orelhas de abano para deixar sair um riso explosivo que fazia lembrar um

vulcão do Pacífico em plena actividade. O gigante ria. “Vai gozando, irmão”,

reflecti, enquanto ia enchendo os pulmões de ar.

- Não és esperto, filho de uma cabra americana - rugiu o chinês, meneando a

cabeça com comiseração.

Encolhi os ombros, desprendidamente.

- Paciência, irmão. Um tipo tem a obrigação de tentar, não é?

Roncando sempre, começou a aproximar-se. Precisamente o que eu desejava

que ele fizesse. Rezava para que isso acontecesse.

E aconteceu assim. Veio sem pressa. Fitou-me nos olhos. E depois começou

a contornar-me. Ia examinar as algemas. Os meus nervos tensos começavam a dar

de si. Os pulmões inchados rebentavam e toda a energia que conseguira acumular se

concentrou-nos pulsos doloridos. Intensamente. Então o chinês veio atrás. Dei uma

mirada rápida. Inclinava-se para observar. Tinha de ser agora.

Tornar-se-ia interessante medir todo o potencial de força que um corpo

inferiorizado pode ainda conter dentro de si. Foi essa força que impeliu

selvaticamente, num disparo fenomenal, os pulsos algemados para cima, e que fez o

ferro maciço das algemas embater estrondosamente no queixo do meu adversário.

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O golpe resultou fulminante, porque desta vez eu não subestimara o seu poder. O

aço amassou-lhe o queixo, verticalmente de baixo para cima, Penso que teria sido, o

suficiente, porquanto os ossos estalaram, e a despeito de o choque brutal se haver

reflectido nos meus pulsos, os ossos desfeitos não me pertenciam. Mesmo assim,

para confirmar, dei uma rotação rápida, elevei o joelho, que afundei com fúria

imensa na pança do suíno, e logo que ele se dobrou para a frente, de língua pendida,

o outro joelho atingiu o ‘maxilar no mesmo sitio. O resultado fulgurante não se fez

esperar. Os olhos já parados reviraram nas órbitas e o corpanzil contorceu-se para

aos poucos se abater, até se ir esmagar violentamente de encontro ao cimento. Ali

ficou, imóvel, de borco, o focinho amachucado no chão.

Não havia quinze segundos a desperdiçar. Enfiei a biqueira do sapato sob a

queixada do animal e revirei-o de barriga para o ar. Agachei~me em seguida e,

apesar de ter os movimentos presos, consegui arranjar maneira de lhe apalpar os

bolsos. Procurava algo que não encontrei. Uma chave que me pudesse libertar das

algemas. Topei somente a arma, entalada no cós das calças, e apoderei-me dela. Não

que constitua empresa fácil um tipo disparar de costas, porém com um pouco de

boa vontade arranjei processo de conseguir mantê-la apertada na mão direita e

deslocar lateralmente ambos os braços de forma que o cano curto emergisse para

diante, apoiado na cintura. E isso já constituía uma vantagem.

Foi quando me preparava para abandonar o local que o som de passos leves

me chegou aos ouvidos, de início confiantes, depois suspensos, e por fim

cautelosos, à medida que se aproximavam da porta. Os passos iniciaram depois a

descida dos degraus, lentamente. E eu levei o dedo ao gatilho e apertei com mais

força a coronha.

Então os sapatos surgiram, em seguida as pernas e logo todo o resto. A

tensão aliviou. Não a pressão na coronha. Quem vinha descendo era uma mulher.

Que eu conhecia. Pamela Wong. Cravou os olhos, primeiro no meu rosto, depois na

arma que eu empunhava com dificuldade.

- Al...

- Sim?

Deu uma breve corrida na minha direcção, sem se importar com o corpanzil

estendido, nem com a arma. Como se apenas eu lhe interessasse. O corpo

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aproximou-se do meu, mais e mais, até se colarem, e os braços avelulados rodearam-

me carinhosamente o pescoço para em seguida as pontas acariciantes dos dedos

macios deslizarem pela face massacrada. Podia sentir-lhe o coração bater fortemente

sob o seio palpitante que se comprimia de encontro ao meu peito. A cabeça descaiu-

me sobre o ombro, os cabelos sedosos roçaram-me a cara, e a sensação transmitida

por aquele simples contacto físico era tão agradável e reconfortante que o ânimo

abatido foi recobrado depressa.

- Al... querido, que te fizeram eles? - inquiriu num murmúrio soluçado, após

o que o rosto lindo voltou a fitar o meu, os olhos humedecidos aguardando

ansiosamente que eu falasse. Afastei-a um pouco, meigamente.

- Nada de importante, Pamela. Apenas isto - e indiquei o maxilar rasgado. -

Mas isso não importa. Neste momento o que interessa é cavar, e quanto mais

depressa melhor. Podes ajudar-me?

Fez que sim, enquanto uma das mãos se introduzia numa abertura do vestido

para logo sair segurando um pequeno objecto que exibiu triunfante.

- Trouxe isto, Joe... Al... a chave. Estava pendurada na parede, lá fora...

Volta-te.

Virei-me. As mãos de Pamela trabalharam agilmente, e daí a quinze segundos

eu esfregava activamente os pulsos magoados, auxiliado por ela. Os vincos

arroxeados não desapareceram, mas sem dúvida que em quaisquer circunstâncias,

desagradáveis ou não, eu queria continuar a ter aquela mulher bem perto de mim.

- Onde vais, Al?

Falei rapidamente.

- Depende do que tiveres para me dizer. Quem são “os outros”?

- Não sei, querido. Juro-te que não sei - pronunciou enquanto me passava.

pelo rosto um lenço molhado que ficou todo sujo de sangue. - “Eles” não

pronunciaram à minha frente uma palavra sobre o assunto, e pela minha parte

poderia tornar-se perigoso mostrar curiosidade. Depois de Chu Ling te trazer para

aqui, Wu Tchao saiu e ainda não voltou.

- Como conseguiste vir até cá?

- Estive todo o tempo acordada, à espera que algo acontecesse. Sozinha não

podia fazer nada. Decidi por isso que fosses tu a tomar a iniciativa. Sabia que farias

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alguma coisa, e nessa altura eu viria ajudar-te. Quando senti Chu Ling abrir a porta,

percebi que devia ter chegado a oportunidade. Oh, Al, como eu sofri, enquanto lá

estiveste em cima, sem poder avisar-te, e depois, enquanto esperava!

A despeito dos esforços não conseguiu conter os soluços, que lhe

embargaram a voz.

- Mas quero que saibas uma coisa, querido. - E concluiu com determinação: -

Teria feito o que fosse preciso para te tirar daqui, em qualquer circunstância...

- Eu sei, amor - disse, e só no instante que se seguiu me dei conta da palavra.

-Vamos sair, já - aconselhou após curta pausa. - Eu vou à frente e se o

caminho estiver livre chamo-te. Não é preciso atravessares a sala do bar. Há outra

saída. É mais seguro.

Concordei. Ela afastou-se. Esperei que subisse as escadas, e ouvi-a chamar.

Por precaução, antes de abandonar o cubículo, deixei cair a vista no fardo que

começava a dar indícios de vida, na forma de um arquejar animal. Abaixei-me,

apanhei as algemas, segurei por uma extremidade e fiz a outra descrever um arco

que teve início acima da minha cabeça e terminou abruptamente de encontro à do

chinês. Reflecti por um momento, e quando concluí que já tinha a sua conta dei-lhe

as costas e rumei para onde Pamela me aguardava.

Respirei fundo quando cheguei ao patamar.

- Sai por aqui - sussurrou, indicando-me uma porta baixa que se abria na

parede a meio do segundo lanço de escadas.

Segurei-lhe a mão, que apertei com força.

- Okay, Pamela. Obrigado. Tens a certeza de que não corres perigo, ficando

aqui?

- Não. Chu Ling não se deu conta de nada, e podias perfeitamente ser tu a

desembaraçar-te das algemas.

Um pensamento súbito me ocorreu.

- Mas ... nesse caso eu deixá-las-ia cá em cima, e não onde ficaram!

- Não te preocupes, Al - tranquilizou. - Eu trago-as para cima.

- Bem...

- Para onde vais?

- Não sei ... Dentro da cabeça tenho tudo em desordem! Acho que primeiro

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que tudo vou para o hotel, pôr um aspecto apresentável. Que horas são?

- Três. Três da manhã... Bonita noite!

- Achas que podes ir ter comigo, Pamela? - perguntei, numa decisão

incontida.

- Sim - respondeu-me imediatamente. - Quero ir ter contigo. Antes disso

tenho de tratar de uma coisa importante, mas depois vou ter contigo, aonde

quiseres.

- Sabes a que horas fecham os bares de Kowloon? inquiri.

- Penso que a maioria se mantém aberta até às seis, ou sete. Porquê?

- Porque não é aconselhável ires ao Bay View. Poderias antes encontrar-te

comigo no Golden Bamboo. Fica na mesma rua, em Cameron Road, um pouco

mais acima. Às quatro e meia, pode ser? Espero-te num reservado.

Acenou afirmativamente.

- Está bem. Às quatro e meia. Colden Bamboo, não é?

Confirmei e fiz menção de me pôr a andar. Sustive-me entretanto.

- Ouve, Pamela: sobre aquilo que me disseste teres de resolver... não te metas

em mais sarilhos por minha causa, ouviste?

- Está bem, querido. Dá-me um beijo?

Quem poderia, mesmo num covil de leões, resistir àqueles lábios? Beijei-a.

Muito ao de leve, porém. Quer dizer, fiz por beijá-la.

- Toma cuidado contigo, Al - pediu, quando as nossas bocas se descolaram.

- Sim. E tu também. Até logo.

- Até logo. E... tens a certeza que ele não acorda?

- Hum - respondi negativamente. - Nem mesmo contigo ao lado.

Sorriu-me em despedida. Rodei o fecho e saí.

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CAPÍTULO XVI

Decididamente o empregado da tarde do Bay View, o tal que esta malvada

noite substituía o desgraçado do George, não ia tão cedo poder voltar a trabalhar

fora de horas. O átrio encontrava-se deserto e eu tive de tocar a campainha para

acordar o rapaz. Quando abriu os olhos, os braços acompanharam a deformação do

rosto num gesto horrorizado, como se o que estava na sua frente se tratasse de visão

de pesadelo saída do sonho.

A boca movimentou-se como a de uma truta fora de água até conseguir

articular:

- Mister Chasey!...

- Pois, amigo. Sou eu. Quer fazer a fineza de me passar a chave?

- Hem ... como?

- A chave. Aquela coisinha ali pendurada que serve para abrir a porta do

quarto, percebeste?

- Há...? Ah, pois claro, a chave!

Procurou-a atarantado, e após prolongado esforço acabou por dar com ela.

- Foi... George...? - gaguejou, ao estender-ma.

- Não, filho. Não foi George. Até logo, rapaz. Volta para o teu sono e

esquece que me viste, okay?

Colei-lhe à palma da mão suada uma nota de cinco. E se até à altura o tipo

podia não estar absolutamente em si, o que posso afirmar é a que a partir do meu

gesto a caixa passou a funcionar perfeitamente.

- Ena, Mister Chasey... Muito obrigado! Claro, com certeza, pode ficar

descansado, por cinco dólares eu nem me recordo do seu nome ... Muito obrigado!

Os agradecimentos acompanharam-me até ao elevador, onde premi o botão

do quarto andar.

Aparentemente os aposentos não haviam recebido durante a longa ausência a

visita de estranhos. No entanto, nunca se sabe... De qualquer modo, esse aspecto

não me preocupava. O mais que poderiam ter levado era a mala que continha as

vestimentas e os chinelos que deixara debaixo da cama. E como ambas as coisas ali

se achavam escolhi a muda de roupa, tirei de cima da pele tudo o que trazia e formei

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um embrulho que atirei para o canto, dirigindo-me directamente para a casa de

banho.

Teria sido preferível não encarar assim tão de repente o espelho. Eu deveria

ter espreitado, aos poucos, e nesse caso veria reflectido um primeiro golpe escuro,

feíssimo, sujo de sangue coagulado, que rasgava desde o canto da boca até ao

queixo. Ao aproximar mais um pedaço surgiria o segundo, a rebentar o lábio e a

triturar a cova situada por debaixo dele. E por fim o terceiro, um bocado mais

fundo que os anteriores, e que apanhava toda a zona entre o canto direito e o

buraco do nariz. Deste ainda escorria sangue, custosamente, por causa da massa

coagulada que o entupia.

Foi na realidade este o espectáculo que se me deparou, só que eu não o

observei aos poucochinhos, mas todo de uma vez, e nesse momento compreendi a

reacção do rapaz da recepção e até estranhei que ele não me tivesse vomitado para

cima. Eu estava repelente.

Dei-me por isso pressa em meter a cabeça debaixo de água morna, iniciando

assim um série de operações que levaram meia hora e terminaram em quatro pensos,

um duche quente e um copo meio de uísque que emborquei, já vestido, no quarto

de dormir, o qual quanto a mim não merecia absolutamente tal designação.

Preparava-me para estender em cima da cama o que restava da configuração,

a fim de restabelecer dentro do possível o corpo amassado, quando ouvi baterem.

“Pamela”, pensei. “Mas porquê aqui?” Ocorreu-me então que podia não se tratar de

Pamela, e a mão remexeu nervosamente o bolso das calças descuidadamente atiradas

para o canto em busca da arma que subtraíra ao chinês.

As pancadas repetiram-se, mais rápidas e violentas.

- Já vou! - soltei num berro.

Segui para a porta, a automática firme na mão.

- Quem é?

- Mister Chasey, abra, sou eu, Ko Nim!

Raios me partissem se eu percebia alguma coisa! Corri cautelosamente o

trinco, recuei um metro e convidei:

- Pode entrar... Devagarinho!

A porta foi empurrada, e Ko Nim deslizou silenciosamente. A arma

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continuava grudada aos dedos e eu não tencionava largá-la tão depressa.

- Que queres?

Os olhos vivos do rapaz miraram-me. O peito subia e descia, ofegante, e a

testa vinha coberta de suor. Trajava à ocidental, o que lhe conferia uma aparência

quase irreconhecível.

- Que queres daqui? Foi Wu Tchao quem te mandou?

- Por favor, Mister Chasey, deixe-me entrar ...

- Seguiste-me?

Assentiu com a cabeça.

- Foi a minha mãe quem mo pediu. Eu tive conhecimento do que o senhor

pretendia saber e ...

- Eh, alto aí! Só uma pergunta: quem é a tua mãe?

A face denotou estupefacção.

-O senhor conhece-a! Trouxe-a de Cantão. O nome dela é Pamela, Pamela

Wong, não se lembra...? E eu ...

Diabos, quem é que estava a delirar?

-Como? Que parvoíces estás para aí a dizer...?

- É verdade, Mister Chasey. Julguei que sabia E preciso que me acredite!

Pamela é minha mãe, e mandou-me vir dizer-lhe aquilo que lhe perguntou e a que

ela não soube ...

A interromper-lhe as palavras aconteceu algo tão rápido, inesperado e

desconcertante que dificilmente pude depois coordenar. Ouviu-se um “plof”

abafado, como de rolha a saltar, a frase quebrou-se como fita de gravação, o jovem

Ko Nim imobilizou-se para no instante seguinte tombar para diante, de encontro a

mim, e a porta foi fechada bruscamente, puxada do corredor.

Também eu, nos momentos imediatos, fiquei como que paralisado, sustendo

o corpo leve de Ko Nim contra o meu, sem atingir o que se desenrolara. Só

decorridos uns dez segundos, quando o depositei suavemente sobre a alcatifa e lhe

notei por altura da omoplata esquerda o orifício minúsculo donde escorria um fio de

sangue, a razão me voltou ao cérebro e eu compreendi que alguém disparara do lado

de fora, pelo intervalo da porta aberta, usando silenciador na arma de que se servira.

Ajoelhei ao lado de Ko Nim e segurei-lhe o pulso. O rapaz vivia, o que não,

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era de surpreender dado que o ferimento não devia apresentar gravidade de maior,

isso porque o criminoso dispusera de um ângulo difícil. Pus-me de pé num salto,

lancei a mão ao fecho da porta e precipitei-me para o corredor.

De um lado e outro não se tornava perceptível qualquer movimento, e eu

corri para o elevador e carreguei desesperadamente o botão de chamada. A seta

luminosa indicou que o ascensor subia. Chegado ao andar onde eu aguardava

febrilmente, as portas abriram-se. Entrei e comandei para o átrio. Enquanto descia,

um perfume estranho e agradável penetrou-me nas narinas. Alguém se utilizara do

elevador. Não certamente o criminoso, o qual além do mais, a esta altura, devia já

ter-se posto a milhas. Porque ele contara com o meu descontrolo e indecisão.

Quando alcancei o hall pude verificar que continuava deserto. Apenas a

coberto do balcão o rapazote dormitava. Abati o punho fechado no tampo. O tipo

saltou.

- Chama a polícia. Pede uma ambulância. Está um rapaz ferido no meu

quarto. Apanhaste?

Os olhos embaciados fitavam-me parados. Debrucei-me sobre o rebordo,

apanhei o gajo pelas bandas do casaco, puxei-o até a fronha ficar junto da minha, e

como não gostei do hálito dele sacudi-lhe o sono com um par de chapadas que

ressoaram pelo vasto átrio e lhe fizeram a cabeça desarticular-se.

- Ouviste? - gritei.

- Sim... Polícia... Vou já chamar, Mister Chasey!

Atirou-se ao PBX e fez nervosamente a ligação. Certifiquei-me de que se

desempenhava do recado, após o que interroguei:

- Alguém passou por aqui depois de mim?

A pergunta tornava-se obviamente inútil.

- Sim ... passou, realmente!

- Quem?

- Miss Cynthia Roberts. Subiu para o quinto.

Uma ova. Cynthia era prima da esposa do governador, informação que

obtivera casualmente através de Fernandes.

- Mais ninguém?

- Não senhor... quer dizer, acho que não...

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- Tens a certeza? Absoluta?

- Bem, Mister Chasey, Miss Cynthia pediu a chave...

- Quer dizer, é possível que alguém tivesse subido sem que tu o tivesses

notado, visto que o criminoso não te pediria a chave, não é? Tal como sucedeu com

o rapazito que se dirigiu ao meu quarto!

- Um ... rapaz?

Apeteceu-me esmurrá-lo. Desisti.

- Passa para cá a nota!

- Mas...

- A nota de cinco. Depressa!

Estendeu-ma relutantemente, e eu virei as costas, em direcção à saída.

Um velhote britânico regressava, mais grosso que um marinheiro. bêbado.

No passeio, na altura em que ia voltar para seguir para o Golden Bamboo, um frear

de travões rente à berma obrigou-me a olhar. Tratava-se de um Bentley prateado, e

da porta traseira emergiu Vikki Allen, sorridente. Acenou-me efusivamente.

- Viva, Al? Vinha buscar-te. Por onde tens andado? Aonde é a ida?

Correu saltitante até ao sítio em que me encontrava especado, o rosto

fechado ao que me rodeava.

- Al, meu Deus...! Que sucedeu?! Querido, fala, diz qualquer coisa...!

Acabava certamente de reparar no meu estado. As mãos enluvadas

percorreram com suavidade a zona coberta de pensos, e a face traduzia enorme

ansiedade.

- Nada, Vikki, nada... Desculpa, mas tenho de ir.

Prendeu-me carinhosamente o braço.

- Mas, querido, eu vinha buscar-te! Liguei para o hotel uma dezena de vezes,

a última há mais de duas horas, e como ainda não tinhas aparecido assustei-me.

Resolvi passar por cá, a saber o que se passara. Que aconteceu, Al? Por favor, diz-

me...!

Olhei-a quase sem lhe prestar atenção, pois que o meu espírito não estava ali.

Notei vagamente que trajava uma elegante saia e casaco cinzento-claro, e pendurada

do lado direito uma carteira de pele amarela, talvez grande de mais e que destoava

do resto do conjunto. Prendi-lhe a mão.

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- Desculpa, querida. Amanhã explicar-te-ei tudo. Neste momento não posso.

Perdoa, Vikki, mas estou metido numa embrulhada enorme e tenho de ir.

Compreendes, não?

Concordou com um gesto de desalento, e rugas de preocupação a

desenharem-se-lhe na testa.

- Está bem, Al, se preferes assim. Mas peço-te, amor: não te metas daqui para

diante em nada que possa ser perigoso, está bem?

- Lamento desapontar-te, Vikki - disse -, mas já estou enterrado até aqui. Até

amanhã, sim?

- Boa noite, Al. Eu vou para o Hot Spot. Se precisares de mim, estarei lá.

Soltei a mão e recomecei a andar. Pouco depois o Bentley ultrapassou-me.

Distingui a luva branca de Vikki a acenar-me, e correspondi. O carro desapareceu

rua acima. Prossegui, mais depressa, quase a correr. A uma vintena de metros do

Golden Bamboo chegaram até mim as sirenes da polícia, vindas da parte baixa de

Cameron Road. Gritar aflitivo, lancinante. E aquele estupor de perfume que

apanhara no elevador, e que não me saia das narinas... Um perfume esquisito.

Estranho... Agradável? Já não... Mais intenso, desde há momentos... Um perfume

QUE NÃO ERA NOVO PARA MIM!

Só quando arredei o reposteiro do Golden Bamboo, onde desejava

ardentemente que Pamela já houvesse chegado, os mínimos entalhes da chave que

viera a fabricar tomaram num repente brutal uma forma definitiva. A chave entrava

na fechadura, e rodava o trinco, permitindo-me escancarar a porta e abranger tudo.

Como um filme que se desbobinasse à velocidade do pensamento. Uma excitação

nunca antes experimentada, misto de euforia e angústia, apoderou-se de mim, e foi

nesse estado de espírito que descobri Pamela no terceiro “reservado”. Adivinhei a

impaciência e nervosismo com que me aguardava, porém o rosto sempre belo

mantinha-se sereno, embora pálido, como marfim amorosamente trabalhado.

Cerrei a cortina e sentei-me defronte dela. Os seus lábios entreabriram-se.

- Falaste com Ko Nim?

- Sim, Pamela. - As palavras tinham dificuldade em sair. - Falei. É certo que

ele é teu filho?

- É. - Suspendeu-se para pedir um cigarro, que eu acendi. Soprou o fumo e

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continuou, ligeiramente inclinada para diante. - Ko Nim é meu filho, e eu adoro-o.

Essa foi a razão por que depois da morte do meu marido, que só então soube ser o

chefe da organização, Wu Tchao o conservou consigo, com o fim de poder

controlar-me, e ao dinheiro que recebi da parte da herança que me coube. Nunca

amei o homem com quem me casaram. Mas ele foi muito bom para mim, e até à

morte ocultou-me todas as suas actividades ilegais. O único erro que cometeu foi ter

confiado em Wu Tchao.

O rosto adquiriu subitamente uma rigidez que era ódio, puro e simples. De

águia a quem arrebataram a cria.

- Agora, graças a ti, Wu Tchao está liquidado. Ele e os “outros”. E Ko Nim

pertencer-me-á outra vez. - Entrelaçou os dedos nos meus, e um arrepio de prazer e

desconforto percorreu-me. A pergunta inevitável ia surgir. - Onde o deixaste, Al?

Despejei o saco rapidamente.

- O teu filho foi ferido, Pamela. Quando tentava dizer-me o que sabia. - Senti

a pressão crescer sobre a minha mão poisada no tampo e vi os nós dos dedos dela, e

o rosto, ficarem brancos. Os dentes trincaram com força o lábio inferior até quase o

fazer sangrar.

- Está ... mal? - murmurou com a voz sufocada. Disse o que sabia, e mais o

que não sabia mas que desejava firmemente acreditar. Falei com uma tranquilidade

falsa.

- Não, querida. A arma utilizada foi de pequeno calibre, e o projéctil apenas

lhe perfurou a omoplata, sem gravidade. Acaba de ser transportado numa

ambulância da policia. Agora, sim, está salvo, porque no sítio onde se encontra

ninguém se atreverá a procurá-lo. Vai recuperar facilmente. Daqui a pouco poderás

ir vê-lo.

A pressão abrandou e a palidez diluiu visivelmente.

- Sabes quem foi?

- Sim, Pamela. Sei. Como conheço o nome que ele pretendia comunicar-me.

- Vikki Allen?

- Vikki Allen.

- Como descobriste?

- Fica para depois. Neste momento desejo apenas dizer-te a verdade. - Fixei

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o reposteiro. - Fui eu o culpado do que se desenrolou. Não acreditei nele. A porta

ficou entretanto entreaberta. E o criminoso aproveitou-se do facto.

Pamela puxou-me levemente para si.

- Não te censuro, Al. Eu é que não devia ter-lhe pedido aquilo. Tomei essa

resolução porque mal saíste fui ao quarto de Ko Nim e ele me revelou o que ouvira

antes da salda de Wu Tchao. Entretanto este regressou e disse que queria falar

comigo. Era preciso avisar-te. Por isso mandei Ko Nim. - E concluiu, com tristeza e

desalento: - Afinal, era desnecessário...

- Não, querida - discordei. - Também não podias lá deixar o teu filho. Deste

modo, tens a certeza de que ele está salvo. - Procurei dissimular a sensação

extraordinária de mal-estar. - E tu também. Agora vou dizer-te o que tens a fazer.

Vais procurar, no Departamento do Quartel-General da Polícia, aqui em Kowloon,

o chefe da Divisão de Detectives, capitão McDermott. É provável que ele não se

encontre aí, mas pedes para te porem em comunicação com ele, para casa, e se lhe

disseres que é da parte de Al Chasey daí a um quarto de hora ele está lá. Comunicas-

lhe que pedi para ele ir ter ao Hot Spot com um punhado de homens. Eu estarei no

junco. Ao mesmo tempo, poderás tranquilizar-te a respeito do estado do teu filho.

Acompanho-te à polícia e sigo imediatamente para o Hot Spot. Okay?

- Não, Al! - tentou protestar. - Não quero que vás sozinho. Vamos os dois à

policia e ...

Interpus:

- Vou eu adiante, e a polícia depois. Um assunto particular, compreendes?

Pela determinação com que falei percebeu que não valia a pena acrescentar o

que quer que fosse. Levantámo-nos, paguei a despesa que ela fizera e saímos.

Notei que o ar era mais abafado, amolecendo os corpos ao penetrar pelos

poros. Caminhamos por Nathan. Pamela enfiou o braço no meu, cosendo-se a mim.

Experimentei uma ternura infinita. Passei-lhe o braço pelos ombros, sob os cabelos

sedosos, e apertei-a.

- Pamela...

- Sim...?

- Como pudeste acreditar em mim, apesar de tudo?

Sem me fitar, pronunciou simplesmente:

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- Amo-te. Amar-te-ia, quer te chamasses Joe, ou Al, ou outro nome qualquer.

E se senti isto por ti, foi porque acreditei sempre que tu eras alguém a quem podia

amar e entregar-me. Dir-me-ás tudo mais tarde, se puderes. Neste momento apenas

tenho a certeza de que me queres, e de que me vais ajudar, e ao meu filho. Vamos

depressa, sim?

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CAPÍTULO XVII

O sampan acostou de mansinho, demonstrando que o cérebro pequeno do

chinês enfezado que o conduzia assimilara perfeitamente as instruções que lhe havia

dado. Decerto a nota que transitara do meu bolso para o dele constituíra factor

decisivo.

A escada de madeira fora recolhida e substituída por outra, de corda, que

pendia da amurada. A certa distância do junco certificara-me de que apenas as

lanternas da proa e da popa localizavam a embarcação e de que embora o horizonte,

para lá de Victoria Peak, se tingisse já de um tom avermelhado, não se divisara

qualquer vulto no convés.

Agarrei-me com força às cordas ásperas, verifiquei que a arma continuava

entalada no cinto, e quando senti os pés bem firmes no primeiro troço despedi o

sampan com um gesto. A pequena embarcação afastou-se tão silenciosamente como

viera.

Trepei pelas cordas, tentando evitar a todo o custo que o extremo inferior

das escadas batesse de encontro ao casco. Chegado à extremidade superior, assomei

a cabeça cautelosamente por sobre o rebordo da amurada. Um tipo encontrava-se

imóvel, enroscado no mastro pequeno. Talvez dormisse. Ou talvez não. Só que eu

não podia arriscar.

- Eh, psst! - chamei num volume não demasiado elevado, suficientemente

audível para atrair a atenção do parceiro no caso de ele afinal estar acordado. Era o

que sucedia na realidade, porquanto ao chamamento iniciou um movimento em

direcção aonde eu me achava.

Sumi depressa a cabeça, segurei a arma pelo cano e aguardei. Os seus passos

dirigiam-se para cá. Logo o rosto surgiu.

- Quem...?

A coronha da automática era razoavelmente dura e o golpe foi bastante rude

para o adormecer instantaneamente. O homem ficou na posição que escolhera,

dobrado sobre a amurada, a cabeça pendida para fora.

Saltei para o convés, conservando a pistola na mão. E andei sem barulho até

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à portinhola pela qual penetrara da outra vez que ali estivera.

A sala infernalmente barulhenta e agitada apresentava-se desoladoramente

vazia e silenciosa, dando a impressão de se haver tornado mais ampla. O mobiliário

espalhado em desordem indescritível fazia imaginar que a noite anterior devia ter

sido igual a todas as outras, Ao fundo, na parte rebaixada do soalho, amontoavam-se

a esmo os instrumentos da orquestra, e por cima do buraco, para a direita, abriam-se

três janelas altas, de batentes a imitar vitral formando desenhos de composição à

base de azul, vermelho e dourado. As duas dos lados estavam fechadas, porém a do

meio ficara entreaberta, e pelo intervalo, e através dos vidros, coava-se a

luminosidade fosca do alvorecer.

Dei alguns passos até ao meio da sala, para o pé do bar medonhamente

varrido, os copos sujos entornados sobre o tampo, alguns ainda vertendo restos de

líquido que pingava o chão, onde igualmente se espalhavam cacos de garrafas de

uísque partidas.

- Vikki! - chamei, bem alto, a ouvir-se em todo o barco.

Uma porta bateu algures.

- Vikki! - gritei, mais alto ainda, e senti as cordas esticarem.

Aguardei em silêncio, os braços descaídos e a arma na mão. Uma garrafa

meio vazia achava-se próxima. Agarrei-a, meti o gargalo à boca e deixei correr um

bom gole. A garganta e as entranhas arderam. O líquido derramou-se por todo o

corpo e entrou nas veias.

- Vikki! Anda cá! - Levei de novo a garrafa às goelas, e depois de a retirar

passei as costas da mão pelos lábios molhados. - É o teu querido, Al, Vikki!

Lembras-te?

Atirei a garrafa pelo ar, com força. Deu três reviravoltas e acabou por ir

espatifar o enorme espelho cor-de-rosa atrás do balcão.

- Estou aqui, Al.

Os dedos crisparam-se-me na coronha da automática. Rodei o corpo e fiquei

de frente para ela. Sorria para mim. Um sorriso diferente. Não era bonito, como

anteriormente ela sabia sorrir. Manchas roxas circundavam-lhe os olhos, agora de

um brilho que não emitia os reflexos habituais, antes era mortiço, sem irradiar

aquele calor que lhe fazia resplandecer a face. Vikki Allen. A que ali estava, era

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apenas uma mulher de mais de quarenta anos, arruinada súbita e irremediavelmente.

Não estava só. Atrás dela, dois parceiros entroncados apontavam-me a

artilharia pesada que transportavam duas “calibre” 12 mm. Decidi que seria perda de

tempo prestar-lhes atenção de maior e volvi a vista outra vez para Vikki.

- Porquê eu, Vikki? - inquiri roucamente. Os lábios sem pintura tiveram um

trejeito quase imperceptível, e falou tão baixo que mal percebi.

- Podia talvez ser outro... mas preferi que fosses tu, Al. Servias melhor que

ninguém para ajudar a destruir os meus adversários... E chegaste na altura exacta ...

Senti as veias do pescoço inchadas. Como se de um momento para o outro

fossem estourar.

- Que te levou a crer que aceitaria? A boca repuxou-se numa tentativa vã de

dar firmeza às palavras.

- Conheço-te. Como poucas pessoas te poderão conhecer, Al. E tinha a

certeza de que na dúvida não te arriscarias a desperdiçar uma oportunidade.

- O perigo que iria correr... nada disso te apoquentava ao ponto de te impedir

de seguires o teu caminho, pois não? Apesar dos velhos tempos, das recordações e

de tudo o resto ...

Sacudiu a cabeça.

- Preferi convencer-me de que com a tua experiência os riscos seriam

pequenos... e de que nada de mal te sucederia. Como podia desejar que algum mal te

acontecesse, Al?

Não contive um palavrão, que expeli brutalmente. Era inútil prosseguir. Mas

tornava-se-me impossível parar, também.

- Mandaste-me Rita Grahame, e ela morreu. Nem isso te deteve, no meu

regresso de Cantão?

- Estavas próximo do fim, Al. E era demasiado tarde. Deter-te nessa altura

seria trair-me.

Cerrei os dentes com fúria.

- E preferiste isso ao pior que me podiam ter feito?

O corpo vibrou e ela desviou o rosto para não ter de suster o meu olhar.

- Não sei. Acho... que não. Eu... eu gosto de ti, Al. Sei que não podes

compreender. Mas, por favor, não me perguntes aquilo a que sou incapaz de

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responder!

Não ouvi. Continuei a falar, mas a voz não se parecia nada com a minha.

- Foste tu também quem matou o verdadeiro Joe Coslow em Nathan, dentro

da cabina telefónica? Foi por acaso que o fizeram mesmo debaixo da minha vista?

A fisionomia transtornada denotou espanto que podia ser autêntico.

- Joe Coslow, em Nathan Road? Não era ele, Al Coslow, temo-lo em nosso

poder... Mas não foi assassinado. Tens de me acreditar ... Esse era outro. Não matei

ninguém, juro-te!

Tanto se me dava. Claro que, se Coslow tivesse mesmo sido despachado, o

dedo que puxara o gatilho não pertencera a Vikki Allen.

- E o rapaz, no Bay View? Ko Nim. És capaz de jurar que não foste tu?

Seguiu-se silêncio, após o que admitiu, baixinho.

- Sim... Fui eu. Como... descobriste?

- O teu perfume, Vikki. É único. Soube-me bem respirá-lo, das vezes que

estive contigo. Agora dá-me náuseas. Desde que o notei no elevador, e depois cá

fora, logo que te deixei. E a mala amarela. Ficava-te mal, e tu vestes bem. A rapariga

mais elegante de Denver, e depois uma das mulheres mais elegantes de Nova

Iorque, lembras-te? Aqui, igualmente. Aquela mala grande demais, onde guardaste a

arma e o silenciador. Diz-me só: porque voltaste ao hotel?

- Queria ... desejava certificar-me de que ele não falara. E disse-te para onde

vinha, porque no caso de poderes ainda descobrir queria que fosses tu a procurar-

me.

- Eu já sabia, quando te encontrei à saída - menti. - Já tinha conhecimento do

teu nome, antes sequer de entrar no ascensor, como sendo o de quem dirigia a

organização rival da de Wu Tchao.

Foi sacudida por um sobressalto tremendo.

- Mas... como podias saber? Quem foi, Al? Só se... o rapaz? Só podia ser

ele...!

-Sim, foi o rapaz - menti outra vez. Apetecia-me mentir. Sujar-me um

bocado na lama. - Está vivo. Foi ele quem mo disse.

O pânico apoderara-se inteiramente dela.

- Então... a polícia...

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- Exacto - completei. - A policia já sabe. E vem a caminho.

Levou as mãos à boca, e o rosto neste momento era feio. Um rosto que não

agradava olhar.

- Meu Deus...!

Um dos guarda-costas falou.

- Que fazemos, patroa? Liquidamo-lo?

Vikki Allen encarou o que abrira a boca e permaneceu assim um minuto,

como se o cérebro se houvesse tornado demasiado obstruído para qualquer

reflexão. Depois pronunciou:

- Vão-se embora. Avisem os outros e fujam daqui.

- Isso não, patroa - interpôs o outro. - Nós não vamos sem si.

A voz dela ergueu-se com firmeza inesperada, e as palavras coincidiram com

o ecoar afastado de sirenes.

- Quem dá as ordens, Mike? Os rapazes entreolharam-se, a ponderarem o

que haviam escutado, e acabaram por virar costas e sair lentamente. Ela voltou-se

para mim. Envelhecera muitos anos.

- Ficas comigo, Al.

- Não.

A cortina de névoa transformou-se em lágrimas soltas que escorreram pelas

faces sulcadas de rugas. As vedetas da polícia aproximavam-se velozmente, porque

os silvos chegavam de muito mais perto. Ela deu dois passos inseguros na minha

direcção.

- Al... querido... apesar do que te fiz... sinto o mesmo por ti. Por amor de

Deus, fica! - implorou.

Recuei, a pistola apontada.

- Fica onde estás, Vikki Allen. Sabes, ainda me resta um bocado de estômago.

E tenho comida lá dentro. Não acredito que seja capaz de aguentar, se te chegas a

mim.

Não podia escapar-me por onde viera. As vedetas deviam vir perto e não

tardariam a cercar o junco. E eu não desejava permanecer ali. Por várias razões.

Havia outra saída - uma das janelas do fundo, a que continuava aberta. O mergulho

até lá abaixo não devia ser grande. Dirigi-me para aí, escancarei a vidraça e passei as

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pernas para fora. A manhã rompia. Lancei um, último relance para trás. Vikki Allen

permanecia no meio da sala, a face sem vida e os olhos sem verem.

Deixei-me cair, de pé, para as águas turvas da baía. A distância afinal era

maior do que previra. O contacto brutal com a superfície e o mergulho de uns três

metros que se lhe seguiu comprimiram-me violentamente os pulmões, cortando-me

a respiração.

O impulso trouxe-me ao de cimo, em estado de semi-inconsciência. Não

calculo qual poderia ter sido o desfecho da aventura se o pequenino bote que divisei

a cortar a água tivesse tardado.

Dois braços possantes pescaram-me com facilidade e depositaram-me no

fundo, com jeitinho. A medida que fui recuperando o fôlego, e com ele a

consciência total, tive a noção de que as remadas poderosas faziam o bote

distanciar-se. Daí a algum tempo resolvi erguer as pálpebras.

- Viva, amigo Chasey! - saudou com sentimento a cara conhecida de sorriso

transbordante e bigodinho malandro. - Ena, rapaz, como você está molhado!...

Costuma fazer esta ginástica todos os dias, ou foi hoje por acaso?

Finquei os cotovelos nas travessas, soergui o tronco, e não me perguntem

como, mas a verdade é que os meus lábios estragados se distenderam e ocorreu-me

a ideia estúpida de que sorria.

- Olá, amigo Fernandes! - rouquejei a gorgolejar água salgada. - Por aqui a

estas horas?

Ah, como era agradável à vista a bonita camisa estampada de flores a sair

fora das calças!

- É verdade, Chasey! - As remadas não perdiam o vigor. - Cada qual com as

suas manias, não é?

- Certo - concordei. - O dia vai pôr-se lindo, não vai?

Contemplou o horizonte, de onde o Sol emergira já, fazendo que a

madrugada fosse dia.

- Lindo, de verdade! A baía é magnífica, não é?

- Sim - disse eu. - Gosto disto, a esta hora. E você é um tipo fixe. Havemos

de passear aqui mais vezes, está bem?

- Hum... - discordou.

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- Que é?

- Bem, amigo. Se quer que lhe diga, acho que não. Desde que você arranjou

uma companhia daquelas, quando é que vai querer passear comigo?

- Hem?! - fiz eu, franzinho o sobrolho.

- Desejo apenas tranquilizá-lo, amigo. Pamela está bem. E o filho não sofreu

nada de grave. - E rematou, em duas fiadas de dentes esplêndidos e uma piscadela

requintadamente carregada de significado profundo: - Afinal de contas, amigo

Chasey, você é um tipo de sorte... Porque, além do mais, se quer saber, posso

passar-lhe uma informação confidencial...

- Diga... Raios o partam... Depressa!

- Bom, aí vai ... Ela pediu-me para lhe dizer que esperava por si no hotel.

Endireitei-me de esticão, e o barco quase virou.

- Diabos o levem! - berrei. - Amigo Fernandes, o senhor não é capaz de

remar um bocadinho mais forte?

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