Fausto Wolff
O acrobata
pede
desculpas
e cai
2
a
. EDIÇÃO
CODECRI
Rio de Janeiro
1980
O ACROBATA PEDE DESCULPAS E CAI
© 1980 Fausto Wolff
1º edição - 1966 - José Álvaro
2º edição – 1980 - Codecri
Orelha (Capa)
A literatura de Fausto Wolff é subjetivista, esse modo de escrever tão maltratado por um pensamento
crítico que durante as últimas décadas julgou que realismo fosse reportagem da sociedade, e que o homem
e suas emoções nenhum interesse apresentavam, uma vez que a única verdade eram "os homens". Hoje,
felizmente, aqueles mesmos críticos se voltam para Joyce, Kafka, Hesse, e atentam para o fato de que
subjetivismo é também realismo e, na maior parte das vezes, muito mais realismo que muitos dos escritos
chamados objetivos.
Partindo de um único personagem — medida de todas as emoções e valores - Fausto Wolff exprime
com calor e violência uma sociedade cruel e hostil que massacra, impiedosa, a individualização do ser.
O personagem não é um revolucionário, ele não se antepõe à sociedade, não quer modificá-la, ao
contrário ensaia todos os esforços para coexistir nela, mas é ela, por toda a sua inautenticidade, que o
repele, o expele, o expulsa.
A nossa ficção não é rica de posições assim. Salvo as grandes exceções, tem tomado o caminho fácil
do naturalismo descritivo. São narrativas de episódios urbanos ou regionais onde quase ninguém existe.
Os "heróis" pretendem ser "livres" ou "revolucionários", mas liberdade e revolução permanecem
aprisionados nos limites de um condicionamento pequeno-burguês, inconformista.
Fausto Wolff não quer ensinar, não faz proselitismo, não pretende demonstrar. Ele exprime. Por isso
faz literatura.
João Rui Medeiros
Orelha (Contracapa)
No seu livro O Acrobata Pede Desculpas e Cai
,
Fausto Wolff se rebela contra um mundo que ele
não sonhou e ao qual foi condenado. Ator e platéia ao mesmo tempo, ele acumula e experiência dos que
se expõem e dos que assistem... Sei que muita gente vai ficar irritada com a linguagem crua de Fausto
Wolff. Eu mesmo me irrito. Sua revolta me lembra a de Ferreira Gullar na fase mais aguda da sua
Luta
Corporal. Fausto trata os seus cordiais inimigos com aquela franqueza pornográfica com que Gullar
invoca o inventor da roda... Da primeira à última página Fausto Wolff nos transmite essa angustiante
sensação de animal acuado... Um livro sério, sincero, bem escrito.
Lago Burnetti
O Acrobata
Pede Desculpas e Cai ou o anjo pede desculpas e desce aos infernos é a visão que
permanece, após a releitura desta obra pungente, escrita e lançada há 15 anos.
Um jovem busca um lugar ao sol na grande cidade c esta condenado às trevas: ele não pode perceber
a crueldade e a cupidez de uma sociedade que estruturou seus valores sobre os símbolos do Poder e da
Riqueza. Este mundo é para ele, de fato, um mundo animalesco. Como quem contempla uma tela de
Ieronimus Bosch, o jovem irá assistir, ao final, o triunfo da morte e da loucura. Não obstante, o jovem,
iluminado pela chama de uma vela em seu quarto — qual Jonas no ventre da baleia —, clama por Deus. E
clama por pão e amor, o que Fausto Wolff faz, neste romance-depoimento, com um timbre poético que
ilumina suas páginas de angústia e alucinação.
Ferdy Carneiro
Contracapa
Fausto Wolff
O anônimo brasiliano
Sem documentos, atestado de ideologia ou checápi moral, o acrobata - acusado de acrobata como
bátavo sempre foi suspeito de batavo - invade grotescamente a reserva dos javalis e encontra o absurdo
zoológico do mundo em que vivemos. 0 acrobata, como tantos, tem fome, fome mortal, e na reserva
comida é o que não falta. Nem comida, nem bebida, nem mulheres tratadas, nem prêmios e tributos. Tem
tudo lá. Mas isso só é dado a quem paga o preço devido - em dinheiro não se fala - que é deixar a pele de
sua individualidade e vestir o couro da pequena comuna (valha o nome para todas as máfias) que detêm o
poder. O acrobata, por um momento - anos - pensa que pode; caminhando no arame, no ar, no alto, no
perigo, no acima, sustentado por uma desesperada ânsia de sobrevivência como ser uno. Mas a atração do
abismo, do vácuo, do reles, do desumano-coletivo é demasiado forte e ele cai. Uma queda que não
termina no chão. É mais uma queda escatológica, no duplo sentido da palavra. Antes, porém, ele pede
desculpas. Se entendi bem, uma ironia.
Trata-se de um desesperado, o acrobata, como poucos o são. Não há convívio possível entre ele e a
manada feroz, embora haja uma estranha atração mútua para o encontro permanentemente frustrado. A
pureza que se compraz em chafurdar num lodo que sabe inexpurgável, e se alimenta de ratos porque
menos nojentos do que as pitanças dos que pretendem cooptá-lo. Não afina com os cooptadores, leprosos
envolvidos em roupas de cristal, vampiros alimentados com plasmas importados, funcionando na sina dos
que, maldidos, só se salvam com a maldição dos poucos que escaparam. Um choque que, nos últimos
milhares de anos, não trouxe qualquer proveito à perfeição do ser humano. O Acrobata Pede Desculpas e
Cai:
uma terrível angústia que se passa em porões podres, antros grã-finos eticamente deliqüescentes, e
em pesadelos que se confundem com a realidade o tempo todo. Tem saída?
Na novela de Fausto Wolff o personagem não tem nome. Talvez o seu nome seja o da capa do livro.
Talvez não seja.
Millôr Fernandes
Este é para
Sarinha,
Urbano
e Diana
“E JÁ TARDE DA NOITE
VOLTA MEU ELEFANTE,
MAS VOLTA FATIGADO,
AS PATAS VACILANTES
SE DESMANCHAM NO PÓ.
ELE NÃO ENCONTROU
O DE QUE CARECIA,
O DE QUE CARECEMOS,
EU E MEU ELEFANTE
EM QUE AMO DISFARÇAR-ME.
EXAUSTO DA PESQUISA,
CAIU-LHE UM VASTO ENGENHO
COMO SIMPLES PAPEL.
A COLA SE DISSOLVE
E TODO O SEU CONTEÚDO
DE PERDÃO, DE CARÍCIA,
DE PLUMAS, DE ALGODÃO,
JORRA SOBRE O TAPETE
QUAL MITO DESMONTADO.
AMANHÃ RECOMEÇO.”
Carlos Drummond de Andrade
Um
O lugar não é alegre e nem eu. O samba vindo da mesa ao fundo é música de repetição aos meus
ouvidos. Uma aranha tece um fio naturalmente invisível e por ele vem a melodia que entra no labirinto e
lá faz o seu carnaval. “Se você jurar que me tem amor, eu posso me regenerar...” Meus dedos estão
sensíveis. Viro-me e me encontro no espelho. Pelo menos, o que eu suponho ser eu. À minha frente, as
mãos sobre as minhas, a moça fala. Longe, muito longe. Diz que eu vou conseguir. Diz que eu tenho
possibilidades. Diz que eu devo parar de me destruir.
A moça fala e penso em meu quarto. Teto vermelho e esperma no chão. (Certas noites eu me
masturbo para vir o sono.) Não há luz, pois eu não pago as contas. Provavelmente, me obriguei à
escuridão. Se houvesse luz não precisaria masturbar-me. Às vezes compro velas, mas esses tempos quase
queimei a casa e eu tenho medo da dor física. Tem sebo por todo o lado e sei que à noite vêm as baratas.
E vêm os ratos, também. Alguns têm olhos azuis, outros, olhos cinzas. Em verdade nunca me interessei
muito pela cor dos olhos dos ratos, embora nossos movimentos se assemelhem muito. À noite, quando eu
estou dormindo, eles vêm me olhar mas eu estou sonhando comigo. Às vezes eles comem a ponta dos
meus dedos enquanto as baratas passeiam pelos meus cabelos. No armário tenho uma camisa muito cara.
Dizem que só existem outras cinco na cidade. Ganhei de uma senhora que freqüenta vernissages. Jesus
Cristo está na parede. Até hoje não sei por que não o retirei ainda. Mas o que vou colocar no lugar?
Também não sei por que devo retirá-lo. A moça entretanto continua falando e pede que eu lhe prometa
que vou dar um jeito. A moça sabe afirmar, inclusive, pois diz que é um absurdo a vida que eu levo.
Pessoalmente, acho esta vida uma merda.
Dois
Tem uma mulher que vem sempre apanhar a minha roupa. Mas não respeita o meu sono. Bate na
porta com muita força e a minha cabeça dói. Viro para o lado e continuo dormindo e ela continua
batendo. Ontem acendi uma vela e ela derreteu sobre a mesinha de cabeceira. O sol passa pela cortina que
está suja há mais de um ano. Agora foi o despertador que tocou e a minha cabeça doeu de novo. Batem na
porta, o despertador toca, o sol entra dentro do meu rosto. Me chamam, pois eu faço parte deles. Não sei
fingir que não jogo o mesmo jogo. Eles acham que eu jogo; que assinamos o mesmo contrato. Preciso
obedecer. Minhas mãos conseguem parar o relógio mas não o tempo nem a massa de que sou feito. A
mulher que vem com duas acompanhantes, pois não sabe se eu sou “de confiança”, diz que eu gasto os
panos “até feder”. Descubro que fedo. Preciso tratar dos preparativos. No armário o meu único terno
decente. Foi com ele que me casei. O pai da minha mulher foi quem indicou o alfaiate. Depois ela foi
embora. Meu terno foi feito para ser usado no inverno mas na cidade só há verão. Sei que vou suar, mas
antes eu devo tomar um banho. Água quente, cabeça quente e cara fria. Consegui uma garrafinha de
uísque que já não lembro mais quem deu. Ponho a garrafa, pela metade, no bolso. Algumas pílulas na
garganta. O mundo já se aproxima e eu preciso entrar dentro dele. Antes tenho que pedir o dinheiro
emprestado para o porteiro. Sei que não perdi a vergonha, mas como explicar-lhe? Poderia, talvez, mas
levaria muito tempo e no meio do caminho eu sentiria fome. Sou quase um rapaz circunspecto. Ontem eu
não tive coragem de me matar. Talvez não fosse falta de coragem mas não teria graça. Talvez um dia eu
ainda me mate. Talvez um dia, quando eu acabar de escrever este livro. Ou talvez não me mate. Confesso
que não sei. Mas hoje eu preciso viver pois bateram no meu quarto. Vou andando. Passo pelo botequim,
ligeiro. O dono vê e, certamente, lembra da conta. Será que ele não sabe que eu gostaria de pagá-la? Ou
será que ele pensa que eu sou um desses estranhos seres que adoram andar fugindo? Autômato, mas com
muito sangue por dentro, eu apanho o ônibus. De uma certa forma, fujo, pois quando viajo de ônibus eu
conto números, ruas, anúncios comerciais, louras, morenas. Fujo em busca da realidade à qual preciso me
acostumar. Sinto que vou vomitar mas não comi nada ontem. Depois não ficaria bem eu vomitar dentro
do ônibus. O motorista me botaria para fora. E ele já me olha com cara de quem está muito atarefado.
Não, não vomitarei. Ficarei olhando para a realidade do estômago e das unhas sujas.
Três
Estou agora no meu trabalho. Trabalharei em muitos outros lugares.
Faço um parágrafo para explicar: escrevo no presente mas isto tudo se passou há algum tempo e
eu não me matei, inclusive.
Mas agora estou no trabalho. E — engraçado — todos me olham. Dizem "mas que elegância!"
para mim e eu não compreendo a brincadeira. Um sujeito que há muitos anos vem gastando as pontas dos
dedos em sujas máquinas de escrever me explica que todos estão olhando para mim porque eu estou
penteado. Não é interessante? Dizem, também, que eu estou penteado e de terno. Mas o que é que eu
posso dizer para eles? Não tenho nada para dizer a eles mas sorrio e falo até sobre futebol. Começo a
escrever e as palavras saem. “X é o chocolate que faz as delícias da família.” Paro. Mas parar ou
continuar dá na mesma. Nada importa muito. Apenas o tempo e depois o fato. Ás vezes eu penso que
gostaria de participar mas não consigo. Escuto vozes que vêm do meio da redação. Falam do Ministério
de Viação e Obras Públicas, dum convite para um baile de carnaval, dum golpe para garantir um posto,
dum apartamento emprestado para uma trepada, duma desculpa para a esposa, duma gravata, de um terno
e de um sorriso escroto no rosto. Com algum talento pode-se ser escroto, mas eles logo descobrem. Olho
para o relógio que está funcionando. Está na hora. Sou obrigado a dizer que vou sair mais cedo para me
desquitar. Apanho o elevador e bato o cartão do ponto. Como descontam horas de mim! Almoço café com
pão e pouca manteiga. A garrafinha de uísque está no meu bolso. As pílulas estão no bolso direito. Cabelo
penteado e sorriso na cara. Nenhum amigo, nenhum advogado do lado. Nenhum tostão no bolso.
Representemos. Uma mulher salta do ônibus comigo. Sinto os lábios nas suas coxas. Fico de pau duro
mas ele vai amolecer logo. Isso também passa.
Quatro
Minha primeira impressão é de que só os miseráveis se separam. Talvez pelo fato da miséria
preferir a lucidez da solidão. Paro no meio da escada do que me informam ser a quarta ou quinta vara
familiar. Identifico os seres humanos pelos seus trajes. Quase todos são pobres, embora haja alguns que
melhor disfarcem. Considero-me um homem bem vestido e o impressionante é que, apesar dessa
consideração, não tenho nada nos bolsos, exceto um par de óculos escuros que no futuro nem saberei
onde os terei deixado. A multidão se comprime e sofre apesar de tomar refrigerantes. E se tivessem que ir
para um campo de concentração ao som das marchas militares? Mas o sofrimento existe na razão direta
da sua proposição. Todos em fila. Pessoas que um dia se conheceram e que, por não saberem dançar
direito, um dia passaram a não se conhecer. De repente, empurrado para um lado e para o outro, me dá
vontade de fazer um comício: "Vamos reinventar as palavras. Existe uma moral? De que tamanho? Qual a
minha parcela dentro dela? Quem presta e quem não presta? Em que tubos de ensaio devo colocar o
caráter?" Imagino uma cena: o Antoninho presta, o Joãozinho não presta; o Antoninho vai ser padre, o
Joãozinho, ladrão e o Pedrinho, puto. O ladrão, o padre e o puto. Pura abstração. Mas não posso me
preocupar com essas coisas, pois também sou uma roda da engrenagem e no momento me chamam para
rodar. E aí vem o oficial de justiça vestido de preto. Dou um beliscão no meu braço e me mostro
interessado. Ele fala; os advogados também. As vozes se misturam.
Enquanto eles falam em pensões, adultérios, gravidez e tantas outras palavras novas para mim; eu
me pergunto: por que não me deram costumes? Por que não fizeram uma estrutura para mim? Por que fui
sempre obrigado a copiá-los? Obrigado a fingir que acreditava? Por que tiram essa mulherzinha de mim?
Eu não era feliz, é claro, mas me bastava. A ela, talvez não, mas que seios bonitos! Concordo com a
minha culpa e eles param de falar. Faz dois meses que não a vejo e ela acaba de entrar na sala. Levanta os
olhos para mim mas a sua atenção se volta para um oficial de justiça que informa ao pedreiro crioulo que
ele tem dois meses para se reconciliar com a mulher. Mas se o mundo não se reconcilia como pode o
negro reconciliar-se? Antropologia não é matéria para ser analisada neste momento, penso. Um advogado
fala baixinho, gordinho coerente, e me informa que pode salvar o meu casamento. Fala em seguida de
dinheiro, de muito dinheiro para mim. Mas eu nunca soube mexer com dinheiro. Aprendi, porém, desde
cedo, que é necessário concordar com as pessoas coerentes. Elas acham que eu sou talentoso; elas me
julgam igual. Mas no futuro eu descobrirei que não sou. Descobrirei que tenho que retirar o meu próprio
pus. Pus que não fui eu que fabriquei. Estão todos parados à minha volta; todos ganhando a vida e
provavelmente vencendo na vida. Querem uma palavra minha. No ventre da menina, outra criança cresce
e eu não consigo lembrar em que noite isso se passou. Mas a criança cresce e até que ponto não estarei
maltratando os seus nervos em formação com o meu silêncio? Até que ponto? Ela é uma pasta gelatinosa
cujo corpo não tem fim e que repousa sobre si mesma. Não sei se já a amo. E se a amo não será nunca o
suficiente. Sempre amei demasiado; sempre amei pouco. Nunca o bastante. O jardim zoológico, à minha
volta, grunhe. Estranhos latidos podem sair das bocas dos homens. Infelizmente só eu sou obrigado a
ouvi-los. Querem que eu assine um documento. Assino. Ela assina também. Penso que, quando garoto,
um pouco menor do que hoje, ainda enganado pelo contrato que assinaram sem a minha permissão,
imaginei que um dia a minha assinatura valeria alguma coisa. Hoje vale. Como a minha vida, como a
minha passagem, a minha assinatura, também, não tem uma forma fixa.
Ela não olhou para mim. Eu, porém, não posso deixar de sorrir. Sorrir, como sempre faço.
Ensinaram-me a sorrir muito cedo. Ela está com um vestidinho cor-de-rosa, de grávida. Sapatinhos
baixos, cabelos negros. Rosto de criança. Uma criança será mãe de outra criança. Eu também sou criança.
Não posso deixar de pensar em Renoir. A adolescente grávida e o pôr do Sol. Mas não tenho nada que
pensar em Renoir nesse momento. Estou aqui para tentar um exorcismo que não pedi, e não para deixar-
me embalar por tintas, telas e pincéis. De repente, ela vai embora. Deixa-me gente no meio da selva. Ou,
talvez, animal no meio da gente.
Cinco
Estou andando em busca de um novo emprego. Atrás de uma vitrina vejo moças e rapazes
vendendo sapatos. Todos os dias, no mundo inteiro, moças e rapazes vendem sapatos. Os pés são os mais
diversos. O que as moças e rapazes têm de fazer é sorrir; apanhar um par de sapatos e calçar num par de
pés. Milhões de vezes eles fazem isso durante anos. Tento descobrir um parafuso, tento descobrir algum
sangue, nada. São apenas moças e rapazes que vendem sapatos. Certamente, também, têm seus mistérios,
mas não são pagos para se preocupar com eles. Vendem sapatos e dizem que também amam. Mas eu
preciso arranjar um emprego e não me preocupar com as moças e rapazes que vendem sapatos. Na minha
frente há um prédio e um enorme relógio marca as horas. Se eu não me apressar elas passarão e ninguém
me deu licença para parar. Subo as escadas para ir áo encontro de um rapaz que conheço e que subiu na
vida. O rapaz talvez me dê um emprego. Eu não vendo sapatos mas poderei ser aceito de alguma forma.
Eu escrevo. Isso não é nada mas há quem pague. Falta-me sofrimento para atingir o olho, o nervo do
desespero. Falta-me talento para continuar sorrindo. Prefiro escrever um bilhete para o rapaz que vence na
vida e desempenha essa função muito bem. O bilhete.
"Preciso ganhar mais dinheiro. Ajude-me. Você é um cara realizado. (No fundo isso é um insulto
mas não quero pensar nisso; quero participar.) Chega de puxação de saco. Ou isso ou o suicídio."
Assino e penso por um momento que sou capaz de ganhar o emprego, pois meu bilhete é bem-
humorado. Mais tarde descobrirei a minha total incapacidade humorística.
Depois de ler o bilhete o rapaz feliz, pois dizem que ele é bem-posto na vida, que tem alguns
filhos, um automóvel e uma mulher que dizem ser adorável, sorri para mim que estou infeliz. Diz que é
favorável ao meu suicídio. Insulta-me bastante; mas eu preciso do dinheiro e há pouco aprendi que é
preciso ouvir insultos dos participantes. Ouço e sorrio. Voltarei todos os dias. Ouvirei tudo novamente.
Vão me chamar de covarde mas isso é fácil. Talvez eu consiga o emprego. Na saída, passo por várias
pessoas que dirigem a opinião pública. Interessante: sempre há quem dirija o opinião pública.
Seis
Estou de novo no meio da rua. Um ar quente, pesado, quase uma bofetada, bate em meu rosto. Um
cego se aproxima de mim. Será um cego medíocre ou conseguirá ele ensinar-me novas cores? Como eu,
porém, ele só quer dinheiro. Eu poderia desmaiar. Sempre há alguém que nos leve para algum lugar.
Teria, porém, que despertar novamente e eu não possuo asas. Em algum lugar, talvez nos Estados Unidos,
um moço morre de fome numa praça pública. "Voa no espaço imenso o ousado rapaz do trapézio
suspenso." Sinto medo. Medo da aranha que pulou no meu pescoço há muitos anos. Nem sei mais
quantos. Deve ter sido uma aranha grávida. Deve ter depositado muitos ovos dentro das minhas veias. Os
ovos se transformaram em novas aranhas e o meu sangue lhes serve de alimento. São as condições. Não
posso pensar nisso. Preciso continuar andando. Preocupar-me. Leio um anúncio numa esquina: "segredos
sexuais, só para homens". Entro e perco-me entre os gritos de buceta cabeluda! Que bundão!, etc. Na tela
um cidadão fala dos malefícios da gonorréia. Roseira dá-me uma rosa. Craveiro dá-me um botão. Criança,
choro no meio do cinema. Criança, choro no meio do mundo, enquanto os edifícios desabam sobre mim.
De olhos fechados, em outro universo, compreendo que preciso escrever uma história e que para
tanto preciso exorci-sar-me. E uma forma de lição e de testemunho. Preciso compreender a minha
colocação na engrenagem mas, talvez, escrevendo, eu possa me libertar da engrenagem. Analiso-me:
nasci torto. Nem comunista sou mais e não o sou há algum tempo. Soube um dia (e creio que isso
ninguém me ensinou) que Deus era feito de capim, de leite e das bobagens que Kant escrevera sem uma
certa humildade de superfície. Neste momento, porém, quero que Deus vá à merda. Vou me arrepender
disso quando sentir dor de dentes novamente. Apesar da fome, da tontura e da ânsia de vômitos, sentado
dentro de um cinema, compreendo que uma cultura estomacal é tiranizante e que antes de mais nada
preciso fazer as pazes comigo mesmo e que isso só será possível através da confissão. Serei o meu
próprio Deus: pecador e confessor, mas ainda não sei se me perdoarei. Preciso socorrer-me. Amar ou
pegar. Agredir ou sorrir mas, antes de tudo, socorrer-me.
Sete
"Da vez primeira em que me assassinaram perdi um jeito de sorrir que eu tinha." Mas ninguém me
assassinou nunca. Eu apenas vivo e não aceito. Vivo e não aprendo. Amo e não a-credito. Puxo-me pelos
cabelos e espero ver alguém como eu passando-me as mãos pelos cabelos. O suor desce pelo meu rosto.
Com as unhas procuro machucar-me. Preciso limpar-me. Tomar um banho. Mas a água, onde achá-la?
Estou no lugar onde moro mas quero tomar banho. Já não tenho mais compromissos com ninguém e por
isso mesmo tenho o direito de tomar banho. Peço um pedaço de sabão ao porteiro e vou andando em
direção ao mar. Passa por mim uma menina. Vai espantada, maravilhada com a primeira menstruação.
Nada temos para nos dizer. O porteiro me previne que a água do mar não faz espuma. Jogo-me na areia,
enterro-me na areia. Tento achar pedaços do meu corpo na areia. Mas sei que nada me falta.
Envergonhado escondo-me na água do mar e passo o sabão por todo o corpo. Constato que, realmente,
não faz espuma. Depois fico olhando para o sol. Tento compreender o seu ciclo. Sentir o seu calor. Já não
sei mais ficar maravilhado. Não lembro de haver aprendido alguma vez.
Os homens que moram no Sol resistem ao calor do Sol e ao mau cheiro da Terra. No Sol os
homens não têm cor e ninguém lhes dá pedras para jogarem qualquer jogo. Eles são raios em constante
vida e em constante amor. O Sol joga-os fora do seu útero mas não os deixa sozinhos. O calor é o cordão
umbilical e os homens-raios se atravessam uns aos outros com amor. A areia se desfaz sob os meus pés e
uma onda joga-me com a cara para baixo. Levanto-me magnetizado por um par de coxas e por um ventre
redondo. Longe, em algum lugar, outro ventre cresce, mas isso, agora, eu já esqueci.
Milhares de grãos de areia grudam-se aos meus pés molhados. A alguns metros de distância, ela
está deitada sobre uma toalha. Gostaria de saber sobre o que pensa. Inútil descrevê-la. Basta dizer que se
trata de uma mulher. As coxas estão abertas e por entre as calças do biquíni deixam entrever alguns pêlos.
A mulher é razoavelmente loura, mas os pêlos são pretos. Respiro sexo e estamos sozinhos na praia. Eu e
a mulher. Devo falar com ela? Mas o que dizer-lhe? Gostaria de foder contigo? Ela, certamente, não
entenderia e me mandaria passear ou — quem sabe — diria: você não se enxerga? E, em verdade, eu
pouco me enxergo, pelo menos neste momento. Mas por que fica assim, de pernas abertas na minha
frente? Será que não percebe que isso me interessa? É um pouco gorda, mas não muito. Não reparo muito
no seu rosto, mas não é feia. Mas o que dizer-lhe? Está fazendo calor, não? Ela roça uma coxa contra a
outra. Ela fala. Diz que me conhece; que eu andava sempre com uma mulher grávida na praia. Mas por
que é que essa puta tinha que falar logo agora na minha mulher? Já não tenho emprego, já não tenho
mulher, já não tenho mais talento para viver. Quando estou pensando na única coisa que tem princípio,
meio, fim e eu entendo e gosto, esta vaca tem que me lembrar. Que merda! Mas não digo nada disso.
Simplesmente, deito-me na sua toalha e prossigo olhando para as suas coxas num vaivém que passa pela
bunda e vai até o soutien do biquíni que, por sua vez, está aberto. E a mulher fala. Tem um amante,
lógico. Velho, lógico. Que a persegue, lógico. Tem ciúmes. Mas o que fazer com os velhos? Incinerá-los?
Remoçá-los? Meto-lhe a mão por entre as calças e descubro, entre uma piada e outra, a sua buceta.
Caímos na água. Quer foder na água. De pé. Eu vou mas não consigo gozar na água. faltamos à areia.
Gozo um gozo de merda. A mulher quer carinho. Mas que carinho tenho para lhe dar? Ela que busque
carinho na sua tradição de hábitos e costumes; vá à missa, se suicide. Eu não tenho tradição, missa ou
talento para o suicídio. Não tenho nada para lhe dizer. Cheio de esperma vou andando para a calçada.
Paro em frente uma loja de discos e ouço uma antiga melodia. Na praia ficou a mulher. Certamente tem
um nome mas o que é que eu tenho com isso? Também tenho um nome e ninguém chama por ele.
Oito
Ainda tenho um emprego que, certamente, não vai durar muito. Estou reescrevendo fatos e
mentiras que nada têm a ver com a vida quando vêm me dar a notícia.
— Seu filho nasceu sexta-feira.
Era segunda. Na quinta me desquitei e na sexta estive na praia com as mãos entre as coxas de uma
mulher (“você sabe fazer um ziriguidum tão gostoso meu bem”) enquanto ela me masturbava. A explosão
foi um pouco violenta demais para o meu gosto, se é que tenho algum. Quero acreditar que acredito no
que penso e às vezes digo. Que o que sinto neste momento (se é que sinto alguma coisa) me faz feliz.
Examinemos essa felicidade. Feliz pelo fato de um médico ter tirado uma criança de dentro da barriga de
uma jovem? Feliz por ter filho? Talvez feliz pelo fato de haver acontecido alguma coisa. Talvez isso seja
a antítese. Mas a antítese de que tese? Hegel explica esse conflito mas é possível que alguém pense em
Hegel enquanto lhe informam o nascimento do filho? Enfim, alguma coisa de diferente acontece. É
preciso tomar uma atitude. Eu não tenho dinheiro mas muita gente também não tem. Não é hora de me
preocupar com quem rouba. Os políticos, os comerciantes, os ricos, enfim, têm algo em comum: são
todos ladrões. Dia chegará em que os ladrões não mais existirão. Nem o vocábulo existirá. Apenas o
roubo. Mas eu já não estarei mais vivo. E esses merdas sem moral, sem dignidade, fora da vida e dentro
do contrato social que eles entendem e adoram (embota ele vá lhes capando a sensibilidade dia a dia)
ficam me felicitando. São, porém, incapazes de me pagar um almoço. E me licitam. Afinal, sou pai. O que
querem que eu faça? Que compre charutos e uma garrafa de Curvoisier (que anos depois eu viria a beber)
e distribua sorriso e diga piadas? Preciso evitar que um dia meu filho me interrogue com o seu olhar e é
nisso que penso. Como poderei explicar-lhe toda uma questão social? Este menino, meu filho, vai querer
ouvir a minha palavra. Certamente que vai. E a minha palavra doente irá de mim direta para o seu ouvido.
E nesta viagem de anos perderá todo o seu sentido. Um sentido fabricado por uma falsa lucidez. O que é
que eu farei então? Compro-lhe um revólver, se tiver dinheiro; digo para ele que está muito elegante, se
estiver vivo? Falarei marciano com o menino da Terra? O menino meu filho vai me interrogar com os
seus olhos. E fui eu que construí essa interrogação. Fui eu que a fiz numa noite que já não lembro. E ele
aguardará quieto. Nasceu há dias e junto com ele nasceu o silêncio do seu olhar que prolongará meu
castigo.
Mas agora é preciso tomar uma atitude. Engraçado: sempre fui um homem de atitudes e agora estou
aqui pensando no que acontecerá: no medo que está no passo que ficou atrás e no medo que continuará
preso ao passo que darei a seguir. Uma atitude. Falar com o patrão. Já como pão sem manteiga de manhã,
de tarde e de noite. Agora nem isso. Retiro todo o meu salário e compro uma dúzia de rosas. As rosas são
bonitas. Uma ou duas dúzias, já não me lembro. Pouco importa. Flor é flor. Sangue é sangue. Vou para a
maternidade mas não sem antes ouvir a exclamação do gerente (deve haver um curso para gerentes — são
crianças que já nascem gerentes) da maior revista de um país de merda.
— Mas você poderia ter se prevenido. Essas coisas não acontecem de repente.
Como posso dizer-lhe que eu não sabia quando o meu filho iria nascer? Como posso dizer que
tenho medo de ter colocado nesse mundo uma engrenagem perfeita que logo estará doente por respirar o
mesmo ar que os gerentes respiram? Mas nâo digo nada. Retiro o dinheiro e vou embora. Os cabelos
compridos e a barba por fazer. Também tenho pouca barba. Vai, Carlos, ser gauche na vida. Neste
momento, até mesmo o conformismo do maior poeta do mundo (o poeta que respeita, que limpa, que
cuida com carinho cada uma das suas palavras) me irrita.
Nove
As palavras formam frases que lutam entre si num quarto pequeno e este quarto pequeno é a
minha cabeça. Preciso ordená-la e a ordeno com cachaça e limão antes de subir à maternidade. Não posso
deixar de ser igual aos outros. O dinheiro, embora fique por pouco tempo no meu bolso, me dá uma
sensação tranqüila e, além disso, a bebida ajuda. As frases se ordenam na mesa do botequim.
Foi pelo telefone que recebi a notícia de que eu ia ser pai. Uma voz quase infantil anunciou: você
vai ser pai — confirmou. Quando garoto assisti muitos filmes americanos desses em que - de repente - a
mulher informa a "novidade" ao marido e ele sai dando pulos pela casa. Confesso que não dei pulos. Seria
pai, e daí? Contei o fato aos circunstantes. Rápidas felicitações que saem da boca, tão rapidamente quanto
um peão come uma dama quando esta se deixa ficar distraída à sua frente. Comida a dama, todos
voltaram à anedota inacabada. Senti-me como um clown sem graça que pede desculpas pelo repertório
que chegou ao fim, enquanto a platéia mastiga a espera. Olhei para os lados e já ninguém mais olhava
para mim. Minha mulher me aguardava em casa de sua mãe. Mãe que — como convém - entregara a filha
ao jovem intelectual. No caso, o jovem intelectual sou eu.
Lembro dos dias que se seguiram e continuaram seguindo:
— Mamãe deu a fraldinha para o nenê. Titia deu o lençol. Papai está preocupado. E você?
Eu também estava preocupado mas não conseguia racionalizar a preocupação. Ou então:
— Você chegou atrasado hoje. Vamos tomar ânimo. Você é um excelente profissional.
Como poderia ser excelente profissional se teimava em não enquadrar-me na engranagem? Se não
conseguia escrever fatos que nada tinham em comum com a vida?
Em casa: quarto, cozinha e banheiro. Todas as peças abafadas e um aluguel maior que a metade do
meu salário.
— Você precisa arranjar outro emprego. Eu não peço por mim mas sim pelo menino que vai
nascer. Não quero ir ao papai. Não quero pedir leite na casa da mamãe. Você precisa se preocupar.
E eu me preocupava.
No trabalho: dezenas de patrões e outros tantos empregados:
— O senhor precisa trabalhar. Não, não precisa falar. Já sei. Vai dizer que não faz outra coisa que
não seja escrever. Não quero saber de nada. Não quero saber de nada. Não quero saber de nada.
Lembro que, após um desses monólogos patronais, tentei estabelecer um diálogo. Julguei que seria
possível explicar alguma coisa. Comecei a falar:
— Mas vocês só sabem dizer piadas. Mesmo o amor virou manipulação egoística a dois. Vocês
não vivem e querem me ensinar a viver. Vocês por acaso são felizes? Felicidade para vocês é dinheiro e
sucesso. Vocês agem na ilusão de que as ações de vocês beneficiam a vocês mesmos. Mas vocês atendem
a todas as necessidades menos a do eu real de vocês. Vocês são a favor de tudo, exceto de vocês mesmos.
Será que vocês não entendem que eu sou um fim para mim mesmo e não um meio para uma autoridade
transcendental?
Mas, evidentemente, as autoridades transcendentais não entenderam, pois tinham muito dinheiro
para tentar entender, a arte de afastamento vivencial prosseguia. Em casa:
— O quilo de carne está custando X. O leite em pó está muito caro. Quando a criança nascer, não
poderemos continuar misturando água com leite.
Os meses passavam rápido. Tão rápidos como o dinheiro que saía do meu bolso para o bolso dos
açougueiros, médicos, dentistas, cobradores. Os cobradores, de um modo geral, eram de livro. E era tão
fácil vender-me livros. Eles viam como eu os namorava. Diziam que era fácil pagar. E eu acreditava.
Dinheiro.
Às vezes chegava em casa tarde da noite e encontrava a minha mulherzinha dormindo. Uma
criança de menos de 20 anos. Lindas pernas, lindo busto, querendo apenas aprender a arte de viver mais
simplesmente; não querendo atacar convenções, mas aceitando verdades absolutas que ainda não haviam
começado a esquartejá-la. Eu tirava o meu terno suado. Tentava lavar-me mas faltava água. Em silêncio,
para não acordá-la, deitava-me na cama. Ela precisava de amor e de carinho. Mas estaria eu em condições
de dar? Também eu era uma criança tentando jogar um jogo perigoso para mim, fora de casa. E era eu
quem ela pretendia ter como professor de vida. Como ousar beijá-la, se durante todo o dia eu nada mais
fizera senão fracassar no jogo da vida? Como ousar ter desejo? Sentir o sexo, com tanta culpa e tanta falta
de talento para o jogo da vida sobre os ombros? Medo de tocá-la. Medo de não poder amá-la e, ainda
assim, amando-a com toda a intensidade. Sua fragilidade, porém, era o espelho da minha própria
fragilidade. Como explicar-lhe a minha falta de condições para o jogo do dinheiro que é o jogo da vida?
Naquele silêncio, feito de calor, suor e noite, eu sentia intensamente a ausência de Deus e sofria
com essa ausência, pois toda a responsabilidade do que ocorreria daquele momento em diante era minha.
E faltava-me força para suportar o peso da minha ignorância. Chorar, também não podia, pois ela acabaria
acordando e como explicar as minhas lágrimas, se elas existiam alheias à minha vontade?
Como dizer-lhe: meu amor a culpa é desses filhosdasputas que tiveram a sorte de nascerem
filhosdasputas; que tiveram a sorte de nascerem acreditando que o mundo é assim mesmo.
Dinheiro, meu amor, é a palavra de ordem, e para não chorar agora é necessário acreditar nele. É por falta
de dinheiro que estou brocha nessa noite.
Também não podia dizer-lhe isso, pois ouviria a sua verdade adolescente e justa:
— Mas, meu amor, você não pode brigar com todos. O dinheiro não faz mal algum. Papai
trabalha, todos trabalham.
Como explicar-lhe que bem cedo deixei de aceitar porradas? Como explicar-lhe que bem cedo eu
tentei estabelecer um valor ético próprio para a criança que fui anteontem, para a criança que era ontem e
para a criança que sou hoje? Como explicar-lhe que não aceitei que me ensinassem o que era bom e ruim
antes que eu mesmo pudesse distinguir o bom do mau? Os adultos muito cedo tentaram me enganar.
Estúpidos animais fabricados numa clicheria de carne, eles aprenderam o que é bom sem nunca haverem
sentido isso. E tentaram ensinar também a mim que, para meu azar, bem cedo descobri suas manobras.
Na escola — meu primeiro contato com a sociedade — tentaram ensinar-me que bom é aquilo
pelo qual a gente é elogiada. Mau é aquilo que faz com que a gente receba puxões de orelha. E as minhas
estão tortas até hoje.
Sim, eu também precisava de aprovação, embora não acreditasse nela. Mas o que devia fazer se
fui feito de outro barro, mais frágil e sensível, apesar de minha natural indiscrição? Mas, infelizmente, eu
tive o azar de, apesar da pressão emocional dos adultos, crescer me interrogando. Crescer perguntando a
mim mesmo. Eu tive o azar que até hoje me acompanha de saber que o que é bom para a autoridade
transcendental, seja ela pai, mãe, professor ou patrão, não é bom para mim. Não me deixaram ser um
cachorro; alguma autoridade transcendental que dorme dentro de mim não me deixou ser í um cachorro,
eu queria tanto ser um. Um bom cachorro, um cachorro bem vestido, um cachorro fodedor, um cachorro
gigolô; um cachorro de automóvel e com algumas viagens a Paris. Um cachorro bom para a autoridade
pois que serve à autoridade. Mas eu mordo, sou um mau cachorro e depois falta-me talento para pedir
desculpas.
Deus me faltou quando lhe pedi que me transformasse num cachorro como os outros. Deus
condenou-me à humanidade.
Dez
Mas volto ao botequim onde procuro organizar a minha culpa. Um botequim sórdido de um
cachorro que encontrou essa forma de viver. Preciso organizar a culpa do cachorro obediente que eu não
soube ser. Meus olhos já vislumbram a beleza das formas de uma suja cortina, tentando estabelecer com
as cores e com as linhas uma simetria que traduz um diálogo subconsciente. As lembranças merdais de
um passado próximo já se afiguram. Beberei mais um cálice de cachaça para ter a coragem de entrar na
maternidade.
O que eu não podia lhe perdoar era o fato dela acreditar em mim. O que eu não podia suportar era
o seu olhar que olhava um Super-Homem. Um Super-Homem com hemorróidas e que gostava de putas,
pois, apesar delas, sofria com elas.
— Não se preocupe, meu amor, um dia tem que melhorar. Vai melhorar. Eu tenho certeza que vai
melhorar.
Teria eu certeza de que algum dia alguma coisa melhoraria? Eu ia de casa para o trabalho. Voltava
do trabalho e para me enganar lecionava filosofia para meninas que achavam o professor bonito mas que
não tinham por que preocupar-se com a filosofia, pois voltavam de Paris adorando o New Jimmy's. E eu
vivia tentando explicar que é necessário explicar a vida, procurando a vida que passou dentro de nós.
Voltava cansado. Os enormes pés doendo.
Um dia descobri um diário:
“Já não amo mais o meu marido como no primeiro dia. Ele é tão sonhador. Tão desanimado. Não
cuida das roupas que veste. Há muito não corta o cabelo.”
O homem que nunca existiu começava a acabar. E faltava a mágica. Faltava o dinheiro.
— Mas há o Instituto.
Sim, havia o Instituto, mas eu não queria entregar a carteira profissional para o cachorro assinar,
pois havia, também, a promessa de um aumento. Se ele assinasse a carteira, jamais me daria um aumento.
E dez mil cruzeiros resolveriam.
A doença também ataca as boas crianças (e choro enquanto escrevo, pois estou sozinho e hoje em
dia a situação mudou, embora eu ainda não esteja num canil).
— Meu amor, eu estou com febre.
Minha mulherzinha estava com febre. O ventre grande, os lindos cabelos suados contra a nuca e o
constante esfregar o chão do sórdido apartamento para onde ela fora comigo.
— Onde está o termômetro?
— Nós não temos termômetro.
E o médico? E vinha o cachorro médico e se ia o cachorro médico com o dinheiro. E as contas? E
os empréstimos com os cachorros colegas de profissão.
— Essa conversa de médico é velha, meu chapa!
Sim, a conversa de médico era velha. Eu mesmo já a havia contado antes quando perdera dinheiro
no pôquer e nas corridas.
Um cachorro explicara:
— É a chance. E a chance de tirar o pé da merda. Um dia:
— Chamam o senhor na seção do pessoal.
Fui com um sorriso feito de sangue desenhado no rosto.
— Estão fazendo uns cortes. O papel aumentou. Mas não se preocupe que foram outros. Foram
outros. Quatro, cinco, seis, sete.
Senti que perturbava o trabalho dos patrões. Discutiram sobre o problema da portaria nº 4.
Não me ensinaram o exercício da humildade e eu sorri, fingindo que compreendia tudo bem.
Minha vontade era gritar chorando, e duas quadras adiante gritei e um guarda me prendeu. O guarda
soubera cumprir seu dever. O mundo tem guardas para prender as pessoas que gritam, e eu gritei:
— Como pode a minha mulherzinha ter orgulho de um homem sem emprego, seus filhosdasputas?
Como pode? E o meu filho que vai nascer?
Mas, ainda assim:
— Tudo vai melhorar, meu amor. Você precisa fazer amizades, sorrir. Vista um terno.
Que terno? Que sapatos?
— Você precisa ir a festas, fazer amigos. Fingir que está trabalhando mesmo quando não está.
Papai não precisa saber de nada.
Onze
Mas eu não fui a festas e não fiz amigos. Fui por aí fingindo-me Carlitos com folhas de árvores no
ombro, sem coragem para jogá-las fora. Agora já não tenho mulher mas sou impelido a ver o filho que
nasceu. Difícil deixar o botequim, pois já estou cantando uma canção vienense para espanto dos bêbados
das três da tarde. Deixo-os para trás, eles me julgando um bosta, e vice-versa, e dirijo-me para o portão da
maternidade. Vivo o momento com a intensidade que o fabriquei. Meus pés abrem pequenos sulcos nas
pedras do jardim e, por covardia, deixo de misturar-me a elas numa tentativa de integrar-me ao objeto à
espera de um artesão que me remodele a forma. Levo flores (porra, não comi, mas levo flores) numa das
mãos e na outra, mistura de suor, vergonha e medo. A enfermeira deixa-me imaginar como serão os bicos
dos seus seios, sob o avental branco, e, em seguida, interroga-me. Peço a informação. O espanto deixa-me
satisfeito.
- Sim, donzelas, sou pai. Acreditem que não foi muito difícil: bastou abrir as pernas da moça e
deixar cair dentro dela um líquido viscoso numa dança de milhões de espermatozóides. Pronto.
Mas não digo nada. Deixo-me ficar parado e pergunto quanto devo. Sei que todo o meu salário
não pagará o parto. Imagino quantos nomes tem o dinheiro: erva, capim, fumo, trigo, milho, grana.
Arrasto-me até o elevador. Fecho os olhos e vou contando até cem. Atinjo o quarto antes de atingir a
realidade. Pelo menos a realidade aparente, aquela que é real porque a vivemos. Esta é a que corta com
mais esportividade. Tenho certeza de que milhões de lâminas de barbear dançam no meu estômago.
E foda! O negócio é ter o dinheiro ou ir à merda. Eu vou à merda. Enquanto assim penso não
posso evitar as lágrimas. Toda a minha vida misturei lágrimas com merda. Levanto a cabeça e vejo a
minha sogra. Tento imaginar rapidamente os seus pensamentos mas em seguida lembro-me que ela já
deixou de pensar há muito tempo.
- Você tem um filho lindo.
Eu quis reclamar; quis perguntar por que não me informaram da data certa. Mas nada adiantaria.
Eu não choro o momento, choro a vida.
- Não chore, meu filho.
Não sei por que penso em Kipling caçando leões na África ou na Índia a dar conselhos ao filho.
Sempre há alguém para nos dar conselhos o resto da vida depois de nos pagar um bife. Kipling e o filho
desaparecem e eu vivo uma eternidade até atingir a maçaneta da porta do quarto. Inicia-se a
representação. Acendem-se os refletores. Spotlights a focalizar o ator central. Edmond Kean vai entrar no
palco. Através das lágrimas vejo a minha mulherzinha deitada sobre a cama. Ao seu lado, o meu filho.
"Que mão viciosa rasgou, estúpida, a tua pureza? Estás perdida no país das maravilhas e cem bruxos
feiticeiros te espiam para te transformar na máscara fria e inexpressiva da antiga menina que ainda és."
O menino está no meu colo. A família assiste ao ato. Devo matar o meu filho, pois muito o amo?
Minhas mãos enormes aproximam-se do seu pescoço recém-moldado. Paro para imaginar as manchetes
dos jornais no dia seguinte. Certamente, ninguém compreenderia o fato de eu evitar que meu filho
participe do cego estágio que logo virá. Neste momento eu também quero a minha mãe. A minha mãe
bonita e inteligente que fabriquei durante a minha infância. Devolvo meu filho ao leito e desmaio. Eu
deveria ter guardado cem cruzeiros do meu salário para comer um pouco. De qualquer forma, alguma
coisa aconteceu.
Doze
Bois de Boulougne, o Sena sujo mas os bons pratos do La Tour D'Argent, o Rockefeller Center,
Beatrice que possui os seios grandes, mas nem por isso caídos e que adora trepar em inglês, o P. J. Clark's
e os hambúrgueres jumbo, o negro senegalês que consegue gozar sem tocar no pau, enquanto que
senhoras da sociedade deliram diante do feito em Saint German de Près, e que eu a levei ao rio pensando
que era donzela e ela tinha marido, nas últimas esquinas toquei seus seios dormidos que se abriram de
repente como ramos de jacinto, o banho de sol em Marbella, o congresso from peace and friendship em
Praga, a sensação de nada sobre a eternidade.
Não quero sonhar este sonho nem voltar para a minha cidade, o porto mais triste e cruel do
mundo. Já conheci a outros, como o de Sidney ou o de Bonifácio. Tenho que sonhar o sonho. Faz muitos
anos e são cinco horas da manhã. Tenho uma vaga noção de que devo acordar-me mas meus ossos dizem
que lá fora faz frio. Sempre sentirei raiva do frio por causa da falta de roupas convenientes. Levanto e vou
gelar meus dedinhos. (Também só tenho seis anos.) Vou gelar meus dedinhos lavando vidros de farmácia.
(Mas não quero sonhar este sonho.) O dono da farmácia bate na minha boca e nunca mais desaparecerá o
gosto do sangue escorrendo pelas gengivas. A boca de uma criança não foi feita para ser maltratada. As
mãos de uma criança não foram feitas para gelar na água fria. Eu sangro e calo, me ensinaram que o
importante é comer e sofrer. Calo e aos domingos vou assistir a um seriado completo e levando escondido
no bolso das calças um revólver de metal vagabundo, vou matando os donos de farmácia que Buck Jones
persegue. A saída do cinema, calo novamente. Mas, agora, sonhando, eu grito. Grito a fraude que sou.
Grito a morte que um dia terei coragem de me proporcionar. Grito o revólver de verdade que um dia
possuirei. Grito que minto e que as mentiras vão me levando à lucidez só conseguida pela loucura. Grito o
medo da velhice e da velha criança covarde que serei. Grito o mundo que esporra e mija sobre mim. Grito
pelas vezes em que morreria por meu pai, pelas vezes em que o matei e pelas vezes em que ele me
assassinou.
A Torre Eiffell, Ezra Pound, Vent-Vert, belas coxas ostentando pêlos que lembram pêssegos
maduros acariciados contra o caminho do vento. Mordo o pêssego e acordo na masmorra, no meu
apartamento, fora do Hospital, longe de Paris. Com fome. O pêssego destila sangue.
Treze
Estou de volta ao meu cenário, tendo como envolvimento este calor filhodaputa. Tenho que achar
graça da própria expressão: o calor é filho do tempo que, por sua vez, tem uma companheira que possui
uma enorme vagina por onde entram os raios do sol. No lado mais quente desta vagina é o meu quarto. É
onde faz mais calor. Divirto-me pensando no tempo em que estive desmaiado. Pelo menos, umas duas
horas, o suficiente para que me trouxessem da maternidade para este fétido buraco sem luz. Com a mão
esquerda, bato no ombro esquerdo e certifico-me que ainda continuo existindo. Talvez não mais como ser
humano, mas, ainda assim, como uma atitude diante de uma situação de fato. Desmaiei junto da cama da
minha ex-mulher na maternidade. Posteriormente o porteiro do edifício me diria que um general e um
paisano trouxeram-me para casa dentro de um táxi e enquanto me empurravam para dentro do elevador
travaram um diálogo bem pouco singular.
— Porra, este sacana só dá vexame.
Deitado sobre o meu vexame (a cama está toda vomitada e eu tenho certeza de que não comi nada;
é o estômago se iludindo) vou tentando fugir à análise que se me apresenta. O momento mais uma vez
exige um gesto. Lá fora, ao som de uma subconsciente música circense, os homens vencem na vida. Aqui
dentro, luto contra o inevitável. E o mais terrível é que neste instante vem-me a certeza de que o
inevitável sou eu. Ao lado da cama há uma revista chamada Busty que um sujeito trouxe para mim dos
Estados Unidos, e na página aberta há uma mulher com uma enorme peitaria para fora de uma camisa.
Um título encabeça a foto: How much is to much? Seios, está aí uma coisa que gosto. Há também um gibi
antigo, contando as histórias do Super-Homem. Não posso deixar de achar engraçado um sujeito que é
super em tudo. Só não é homem. Sim, pois como pode foder com um pau de ferro? Mas o momento exige
um gesto. Ora, não finjamos. E preciso descer ao circo, escrever. Mas, se preciso escrever, por que fico
pensando em seios gigantes e em gibis? Se preciso trabalhar, por que fico assim deitado? Por que não saio
de cima desta cama, deste fedor, destas moscas que andam por cima da minha cara? Todas as mulheres
que conhecerei no futuro, depois da foda dirão: "Mas você não se esforça? Todos estão trabalhando, todos
estão tentando, e você?" Será possível que elas jamais compreenderão que me custa muito ficar deitado
sobre o vômito? Que me custa muito ficar imaginando se a mão que está presa ao meu braço, realmente,
me pertence? Mas não — isso aos já habituados ao canil — deve ser preguiça. Interessante, sempre há
alguém para o cargo de herói e para me dizer que eu não sou herói. Quando desmaiei, um bravo cidadão,
acompanhado de outro bravo cidadão, carregou-me, provavelmente, até a minha casa. Os comentários
gerais: "Mas que homem humano. Está carregando o infeliz nos braços." Ora, pois se fui eu que desmaiei
de fome, fui eu que consegui fazer com que a vida do bravo cidadão tivesse algum sentido. Se eu não
houvesse desmaiado, ele não poderia ter alimentado o seu superego com os comentários sobre o seu
humanismo. Depois o bravo cidadão de merda ainda diz que eu só dou vexame. Pergunto: meu vexame
fere a ele ou fere a mim? Quem é o benfeitor? Ele ou eu? Quem está ao lado de sua mulherzinha,
enquanto ela raspa as pernas, contando como ajudou um infeliz? Eu ou o bravo cidadão de merda? Quem
é o infeliz, porra? Logo, alguém deveria pagar-me alguma coisa pelos atos de heroísmo que proporciono
aos bravos cidadãos, ou não?
Mas vou ficando deitado entre o vômito, os seios impressos, a mosca e o gibi. É a curiosidade do
homem sobre as suas sensações. Trabalho inútil, gratuito, mas — no momento atual — obrigatório. Vou
ficando assim deitado para melhor ver-me (verme) existir. Uma das minhas mãos cresce e torna-se mais
pesada. No fundo estou consciente dessa transformação. Fico, entretanto, de olhos fechados, com medo
de que a minha mão, agora independente, torne-se novamente apenas um meu objeto ao ser surpreendida
pelos meus outros sentidos. Deixemo-la crescer à vontade para ver o que fará. Pelo tato, acompanho o seu
crescimento e o seu peso. Agora, embora colada ao meu braço, sei que já não me pertence. Sei que a
estou a enganar, fingindo que durmo. Ela faz um carinho forte no meu rosto, de outra mão que não a
minha. Como um ser vivo, ela se aproxima da outra mão que permanece dormindo, incapaz de um
movimento. Parece possuir um frágil coração de borboleta que posso matar apenas com o barulho das
pálpebras se abrindo. Mas uma buzinada vinda do meio da rua obriga-me a abrir os olhos e eis que as
surpreende, exercendo o mais puro amor. A esquerda, leprosa, doentia, amarela; a direita, branca, enorme,
forte. Aos meus olhos, porém, a direita se esmilingüe, morre tal qual uma hidra fora da água, enquanto
que a esquerda cresce em doença, em pus e em fedor. Aproxima-se do meu pescoço, quando eu paro a
brincadeira, um tanto impressionado. Lembro-me de uma jovem psicanalista que um dia, enquanto lavava
a bucetinha no bidê do meu apartamento, com pouca água, declarou-me: "Esta aparente fortaleza exterior
busca proteger uma evidente fragilidade interior." Enquanto eu a fodia, momentos antes, entretanto,
pedia-me chorando que eu a chamasse de puta. Eu a chamei, é óbvio, pois tal elogio não me custa nada
fazer. Embora ela não fosse, exatamente, o que se poderia classificar como uma mulher boa de cama.
Quatorze
Consegui levantar-me da cama e dei início ao exorcismo do banho. De um modo geral não gosto
nem da noite nem do dia. Faltam-me sugestões e apelos. Mas não gosto, principalmente, desta hora em
que vivo. Esta hora em que o tempo se faz hermafrodita e adquire uma coloração menstrual sob a minha
cabeça e sob a cabeça da lua que não vejo, mas pressinto. Agora, por exemplo, faz uma boa meia-hora
que estou metido numa posição ridícula, dentro desta minúscula banheira. Faz frio e não paguei o gás
para ter água quente. Se no banheiro está meio escuro, esta água pode bem ser de um açude, pois, se
assim a imagino, também tenho o direito de julgar que assim é (aliás, direito, tenho-os todos, enquanto
estou só). O fato é que estou acocorado dentro de um estúpido monte de água. Eu poderia tentar sair daqui
de dentro. Já o consegui outras vezes. Mas — e isso deve ter acontecido antes — meus ombros não me
obedecem. Deixo-me ficar sentado e já não tento mais. Transformo-me em raiz feita de dor dentro de um
sulco e observo. Confesso que esta calma feita de nervos, depois de tudo que vem acontecendo, me
inquieta um pouco. Neste momento, o mundo já esqueceu que estou dentro da banheira. E há a certeza de
que ninguém me tirará dela; de que serei obrigado a sair por meus próprios esforços. E se eu me
transformasse na banheira? Seria apenas mais um objeto: eu, e o vaso sanitário, o sabonete, as moscas.
Depois de algum tempo eu deixaria de saber como era antes. Como era antes de me transformar num
objeto. Saberia apenas da minha necessidade de permanecer. Talvez assim, azulejo de gesso, areia e cal,
eu conseguisse a calma e a resignação da imobilidade. Mas meu braço já apanha a toalha (lembro-me que
é a última limpa e só tenho duas) e começo a enxugar-me. O gesto.
Quinze
Uma das formas de enganar a fome é ler. Nego-me a ler o gibi outra vez, depois, se começar, não
pararei mais. Sartre diz que os demônios são os outros e em torno disso escreve toda uma obra. Mas
Sartre é vesgo e Simone de Bouvoir jamais pensaria em escrever um volume de ensaios chatíssimos sobre
a mulher se não houvesse sido apanhada pela menopausa. Nietzsche não escreveria e cantaria o super-
homem caso não quisesse ser escravo dele; se não fosse um talentoso bosta de meio-quilo. Mas eu que
não sou vesgo, não sou puto, nada tenho contra a menstruação, também acho que o demônio são os
outros. Os demônios são os outros, pois os outros são dinheiro. Em sendo os outros, por que devo
procurá-los? Eu mesmo respondo: porque tenho fome e porque tenho medo e nada existe de mais forte,
heróico e pouco sutil que a fome e o medo. A propósito, agora torço-me de fome e — entretanto — tenho
medo de pedir fiado mais uma vez ao homem do botequim. Tenho medo que ele me mande à "puta que o
pariu". Tenho medo de sentar-lhe o braço e de que ele chame a polícia, pois já tive experiências anteriores
com ela. Não há ninguém que lute mais contra qualquer coisa do que eu contra o meu medo e, no entanto,
ele aqui está, sorrindo para mim. Zombando dos meus esforços. Posso adivinhar-lhe a cara, pois é a
mesma com a qual me apareceu quando recebi a primeira porrada por não trabalhar direito. Depois da
primeira vieram outras. Creio, porém, que com o decorrer dos anos ou das porradas fui fabricando uma
calma para ser usada às vésperas do desespero. Sim, pois tenho certeza de que esta calma, com que agora
me enfrento, com fome após o banho, não nasceu de repente. Nem me foi dada de presente por algum
parente distante e predestinado. Tenho mesmo a impressão de que se trata de uma calma quase
transcendental. Não sei, porém, quanto tempo nos agüentaremos, pois a imagino como uma granada
dentro de um jardim de infância em manhã de inverno. Com a calma, tento enfrentar o medo que sorri e
aqui está ela, comigo, junto ao silêncio e à noite. A calma à luz de um cotoco de vela que pedi à garotinha
do apartamento 503. (Se ela contar para a mãe, estamos todos perdidos, pois que há muito ela me
pergunta por que não pago a luz.) Comigo a calma desmembra a noite e tal qual um modelo de George de
la Tour quase que posso enxergar através das minhas mãos junto ao cotoco de vela. Da rua vêm ruídos
sem importância — por isso mesmo perdidos — e por isso mesmo viajando até mim que também estou.
Tenho, porém, a certeza de que a calma não me pertence. E uma espécie de acessório com o qual consigo
manter todos os meus membros grudados ao corpo. Uma espécie de fio com o qual são costuradas as
marionetes. Mas, apesar disso, não me pertence e nem faz parte de mim, embora seja minha a matéria-
prima. Para conseguir participar do cego estágio (inútil esforço), eu a construí com pílulas muitas, com
pilhas, líquidos, carne e um estúpido sorriso desenhado a brasa sobre os lábios. Para que o medo não
percebesse, dei-lhe, também, uma certa desatenção — daí por que ela às vezes me abandona e me faz
perder empregos. A calma, porém, é uma granada frágil pois que a fabriquei com os meus nervos doentes.
Agora, tenho a impressão de que, cansada, ela me desafia à espera da sua morte que também será a
minha. A calma definha, enquanto desenho a canivete dentro dela a madrugada do meu passado. Mas a
madrugada é escura e ninguém espera que eu me vista com ela. Os ponteiros da calma arranham o tempo,
tal qual a farpa arranha a unha, e me obrigam a tentar vislumbrar, tal qual um raquítico Rei Lear, um
futuro que ainda não moldei.
A terrível música que fala de uma estrutura de facilidades e que vem do apartamento ao lado
coloca-me dentro desta mentirosa realidade, o que me faz lembrar que, se quero comer, devo botar um
smoking
, apanhar um ônibus e dirigir-me a uma vernissage onde servem um uísque vagabundo e — para
quem chega cedo — alguns sanduíches de pão de ontem.
Dezesseis
Cá estamos eu, a minha calma e o meu medo em mais uma aventura, ou seja, na vernissagem que
não é bem uma vernissagem mas uma exposição de retratos de Proust (um cidadão que morria de amores
pelo chofer que, posteriormente, achou por bem chamar de Albertine, numa demonstração de pouca
sutileza). Cumprimento senhoras e senhores e só ouço grunhidos neste zoológico de traje de gala. Não sei
bem se as pessoas que trocam palavras comigo o fazem para olhar mais de perto o meu surrado smoking
(em verdade não é meu, pois o aluguei um dia e nunca mais o devolvi); para verificar como eu consigo
comer três sanduíches de uma só vez, ou, simplesmente, para perguntar a minha opinião sobre a
exposição do hall do teatro e sobre a peça que será apresentada a seguir. Enfim, agora com o estômago
razoavelmente cheio — parece que resolveram botar uma máquina de costurar dentro dele — nada ou
quase nada me importa. Deixo-me ficar instalado numa cadeira na certeza de que conheço a
circunferência da minha dor. Gostaria de falar sobre ela, mas quem me escutaria neste momento?
Deixemos para a posteridade a dor dos heróis, pois a dos poetas — e bem alimentado me sinto um —
prescinde de explicação. Mas, passada a fome, vem a vergonha pequeno-burguesa e — passada a fome,
eu também me sinto pequeno-burguês — o medo aumenta e a calma torna-se saudável. Fora da
masmorra, sinto que devo participar. Resultado: neste momento, entre a sociedade local, meus ossos
transformam-se em escamas e o meu sorriso, antes brasa, agora nada mais é do que uma pasta gelatinosa.
Na medida em que me curvo para beijar as mãos das senhoras que ousam se aproximar de mim, sinto que
os donos do circo começam a cobrar os sanduíches.
Cobram dando-me corda para sorrir, para andar, para comer e, como pude perceber há pouco
tempo na praia, até mesmo para foder. O que deveria ser um ato de amor, lentamente os donos do circo ao
qual estou aprisionado transformaram em uma manipulação egoística a dois. Estou sufocando e esta falta
de ar que me foi legada, como a calma, não me pertence. Sou um absurdo Dom Quixote lutando contra as
legislações e os manuais. Mas o que posso fazer se — mal escritos — eles se transformam em verdades
absolutas? Eu, também, gostaria de amar estas verdades — penso — enquanto observo as coxas de uma
gorda senhora que olha para a cara efeminada de Proust. Também gostaria de amá-las, mas, sem dinheiro,
como haver amor?
Neste momento, centenas de pessoas bem vestidas passam — algumas com ridículos binóculos em
punho — pela minha cadeira, prontas para assistirem a uma peça de Racine. Tenho certeza de que
ninguém sabe se Racine é uma avestruz amestrada, um jogador de futebol ou um dramaturgo. Mas eis que
se aproxima de mim um veado. Sempre que vou a esses lugares, distraidamente, ele deixa cair a mão
sobre o meu pau. Quem sou eu para tirar-lhe esse prazer pelo qual ele, inclusive, se arrisca a levar uma
porrada? Mas hoje não estou com paciência. Observem o trivial simples:
— Mas olhem quem está aí? Tem andado desaparecido (mão no pau). Racine é divino, não?
— Em primeiro lugar, tire a mão do meu pau, pois eu ainda não aderi. Em segundo lugar, Racine é
uma bosta e representa o pior do teatro francês. Sua única virtude foi ter botado os cornos no seu rei que,
por sua vez, não estava muito preocupado com isso. Nem eu.
O puto vai embora um tanto humilhado. Porra, mas que culpa eu tenho? A humilhação passará logo
que ele conseguir catar outro pau. Além do mais é um veado bem-posto no zoológico. Os animais, em
fila, dirigem-se para a entrada do teatro, impulsionados pela vaidade. Apesar disso, estão bem estribados
sobre o contrato social inventado pelo Poder. Estrangeiro neste jogo, sem hábitos e costumes legados e
aprendidos, sinto o pavor que me distorce a visão, já normalmente distorcida. Os comentários e sorrisos
dos componentes do zoo são feitos de navalha. Esta navalha consegue tirar sangue do meu silêncio e eu
tremo por trás do sorriso. Meu silêncio paralítico tem mãos de ferro que atravessam a minha garganta e
com um único puxão rasgam as minhas vísceras num sinistro bailado interior. E eu — numa última
tentativa de disfarce — continuo sorrindo — tal qual um magro clown, enquanto os belos lábios, os
lindos vestidos, os smokings reluzentes, as conversas sobre grandes empreendimentos vão transformando
aqueles que deveriam ser seres humanos em enormes aranhas, rinocerontes e javalis de verde baba. E nem
entre esses estúpidos animais (que entretanto aprenderam o código da traição a serviço do nada) consigo
sentir-me superior. Também quero, aranha perdida, juntar-me às minhas irmãs, mas que estranhas forças
superiores são estas que agem pelos animais e não podem agir por mim? Quererão enviar-me alguma
mensagem salvadora? Mas aqui, neste teatro? E esta» mensagem? Conduzir-me-á à salvação? À loucura?
Ou à salvação pela loucura? Será que somente dentro da loucura conseguirei fazer o mundo compreender
que estes olhos, os de hoje, os de cera, não são reais e retratam apenas uma realidade de superfície? Que,
entretanto, corta a carne rente aos ossos.
Dezessete
À saída do teatro um cidadão me dá uma carona no seu automóvel. Ele é dono de uma das mais
poderosas agências de publicidade dessa cidade. Um dos, seus prazeres é saber que eu estou na merda,
pois estando nela ele sabe que pode me obrigar a dizer frases grandiloqüentes vazias, mas muito
divertidas (para ele) sobre a situação do país, a burguesia, o comunismo e outros ismos. Ele, então, ri
muito e informa aos circunstantes que eu sou um sujeito inteligentíssimo mas, infelizmente, perdido.
Aliás, ele raciona logicamente: sou inteligente porque sou perdido e estou sempre na merda. Se ganhasse
dinheiro não teria tempo para ser inteligente e deixaria de ser divertido. Ele me explica, enquanto saímos
do teatro:
- Eu, por exemplo, poderia te dar um emprego. Mas se te desse o emprego, deixaria de ser teu
amigo para ser teu patrão, e os meus empregados são todos uns merdas. Sei que você se transformaria em
merda para ganhar um bom salário, mas eu gosto de você assim como você é, ou seja, um fodido
brilhante.
Aí eu rio e digo outras frases. Insulto ele bastante e ele me paga o jantar, me promove e — quando
está de muito bom humor — até me paga uns uísques. Se eu, porém, resolver contar-lhe a minha situação,
ele se irrita:
- Porra, será possível que não pode deixar de pensar em dinheiro? Será possível que você tem que
estragar a noite? Olham as mulheres em volta. Olha só a bunda daquela ali, o que é que você me diz?
Eu volto a fazer piada e ele conta das aventuras que teve em Paris há dias; dos quadros que
comprou; do filho que mandou estudar na Inglaterra “pois o desgraçado aqui só me atrapalhava”.
Este é um meu amigo que se diverte com a minha merda. Sou uma espécie de bufão à espera dos
ossos que caem da mesa. Agora, por exemplo, o meu amigo me leva para o seu clube. E o mais fechado
da cidade. Estamos numa mesa enorme, ao lado pessoas trajadas a rigor que também saíram do teatro.
Para comer, tenho que trabalhar. Pergunto, então:
- Como é mesmo o nome deste clube? Preciso tomar nota para entrar de sócio, pois se há coisa que
eu gosto são de sociedades populares.
Aí então uma puta das mais conhecidas (quer dizer, ela não é exatamente uma puta, pois para
tanto teria que imprimir um certo espírito de missão ao seu trabalho; ela simplesmente tem um contrato
com o marido que lhe permite foder com um político que volta e meia aparece nas colunas sociais e é
muito parecido com um porco que eu vi certa vez quando fui visitar um parente meu no interior) dá um
enorme sorriso:
- Mas ele não é divino?
E eu passo, então, a ser divino, também. Depois de tomar uns três ou quatro uísques e de dizer
muitas besteiras bate-me na cara a certeza de que eu não faço parte do clube e nada tenho a ver com os
homens fortes sentados à minha volta e que se divertem com as minhas frases (eu tenho é que arranjar
dinheiro para comprar uma roupa para o meu filho). Eles — os outros — estão unidos num mesmo jogo
social. São homens fortes que dormem com mocinhas que precisam de dinheiro. Homens fortes que
contam aos gritos que pagam para comer uma bunda. São homens fortes que jogam golfe e vão juntos à
sauna onde tentam tirar a sujeira de corpo embora não possam tirar as fezes que fedem no cérebro. São
homens fortes que se protegem. Homens fortes que acreditam que, se fizerem parte de algo grande e forte,
também eles se tornarão grandes e fortes. E eu estou aqui vendo eles baterem punheta num monstro
chamado Poder que eles pressentem mas que só eu consigo enxergar. O poder é o minotauro invisível que
com seu enorme caralho funciona como uma távola redonda pra os homens fortes que precisam viver em
função do falus do Poder para existirem. Eu não tenho nada a ver com esse jogo mas não posso deixar de
revelar a minha descoberta para eles. Mas eles só riem e dizem que eu sou um cara brilhante. Mas
enquanto isso ganham dinheiro e vão matando como me matam agora, enquanto sorriem vendo-me beber
uísque. E eu, medroso, permaneço só, pensando em meter uma coroa de espinhos na cabeça, do que logo
desisto, uma vez que eles também julgariam isso gozado.
Uma rápida olhada em torno da mesa, porém, vinga-me por alguns instantes. Já comi algumas
mulheres dos homens fortes que discutem entre si a última moda de Cardin, Balenciaga e outros veados.
Sim, comamos as mulheres dos homens fortes, enquanto eles bulinam o Poder. Para elas, eu sou apenas
um desprotegido . . . mas com o caralho suficientemente grande.
Já estou bastante bêbado e paro de falar. Os homens fortes, a esta altura, não se apercebem disso,
pois precisam salvar o país e roubar. Não que eles sejam ladrões, pois esse vocábulo não pode ser
aplicado a eles. Eles apenas roubam. Depois de um estágio, desaparece o adjetivo qualificativo,
permanecendo apenas o verbo. Afasto-me o mais discretamente possível para um canto e de lá observo a
cena. Finjo-me distraído mas por mais que eu pretenda viver aquele momento só para mim, por mais que
eu tente matá-los dentro de mim, não posso ignorar que eles existem. Sim, os javalis existem e estão
reunidos no outro canto. Apelo para a minha calma, agora já robusta, graças ao uísque ingerido, e tento
desconhecer a existência dos animais. Mas, para desconhecê-los, sou obrigado a fechar os olhos, a deixar
de respirar, pois eles fedem e esse cheiro não é humano. Imbecilmente, tento um poema que poderia vir a
ser no futuro uma forma de aproximar-me novamente da minha mulherzinha: “tenha apenas um
pensamento puro...” Mas tenho medo e não consigo achar a unidade da poesia. Tenho certeza de que já
não são homens: são javalis confabulando, refabulando, fabulando. E por alguns instantes o tempo morre
enquanto eles dançam sobre a mesa de mármore. Com negras casacas sobre o pêlo eles decidem sobre o
destino que um dia darão ao meu destino isolado. Mas, agora, tento convencer-me de que eles estão
distraídos: discutem sobre os dentes que mandaram tratar em Paris, sobre o bigode que vão cortar, e,
quem sabe, até sobre o amor que os javalis devem, também, praticar. Eu deveria fugir. Passo por eles,
tomando todo o cuidado para não pisar-lhes os dentes, as caudas ou mesmo os cornos. Inútil esforço.
Rápido eles me descobrem com o seu faro de aço e vêm em galopada sobre mim, tentando comer meu
rosto feito de espanto. Eu sou, então, obrigado a lhes mostrar os meus dentes que nasceram de repente e
que, muito estranhamente, são dentes de javali.
— Mas, como é que é? Estamos sentindo a sua ausência.
— Há muito tempo que eu estou para dizer uma coisa para vocês. Agradeceria, portanto, se
suspendessem os debates e ouvissem. As mulheres são todas putas e só por isso merecem perdão. Os
homens são ladrões. Eu gostaria muito de ser, também, ladrão como vocês mas, confesso, me falta talento
e tradição.
Eles ficam desconsertados e só se dão conta que não brinco quando invisto contra todos com uma
garrafa em cada mão.
- Então, javalis? Não planejavam atacar-me? Não planejavam comer o meu rosto com os seus
dentes de aço? Agora dou-lhes um bom motivo.
Dou-lhes o motivo e eles atacam.
Dezoito
Há muito que os javalis pedem um motivo. Creio que desde que me farejaram pela primeira vez.
Certamente não podem mais suportar a minha arrogante humildade. O momento exige um gesto. O meu
medo fabrica o gesto e a resposta do gesto não tarda. Várias mãos fechadas batem contra o meu rosto;
contra a minha boca; contra o meu nariz; e eu sangro. Sangro e ouço os adjetivos comuns que eu deveria
esperar ao fim da perigosa coexistência pacífica com os animais.
- Moleque, desordeiro, vagabundo, ralé, gentinha. Ou:
- Eu não sabia que este menino quando bebia ficava tão chato.
A morte, imenso rato negro, devora o meu coração, e a imagem desse quadro resume-se numa
palavra: chato; importuno. Entre porradas e sangue descubro aquilo que nunca suspeitei: eu os odeio
porque não posso ser como eles mas eles também me odeiam. E — ironicamente — me odeiam porque eu
represento a culpa de todos. Somente através de mim é que eles podem descobrir-se javalis. Eu sou o
espelho maldito que precisa ser destruído, mesmo que a porradas.
Mas esses desgraçados não param de bater e ninguém faz nada! — Parem de bater. Mas eles estão
rindo. As esposas, as amantes, as filhas, as namoradas, eu não as vejo mas pressinto os olhos. Sei que
estão a um canto vendo-me apanhar e, apesar do horror que estampam nos olhos, conforme viram Liz
Taylor fazer no cinema, elas se divertem com o meu sangue. O estrangeiro precisa morrer e elas sabem
disso, pois — caso contrário — como poderão rezar em paz esta noite? Sei que daqui a pouco vou
desmaiar. Mas não posso! E o grito sai, explode nascido no sangue:
- Meu Deus, eu não posso desmaiar!
No mesmo momento me dou conta do apelo ao absoluto. E o absoluto sou eu, embora me
desconheça:
- Deus que vá à merda!
Agora já não são os javalis-pais que me maltratam, mas os javalis-filhos. Garotos de 18, 19, 20
anos que saíram de dentro do clube onde dançavam hully-gullys e twists e agora dançam outra dança. Esta
bem mais esportiva. Aos socos vão me empurrando para fora, mas o que posso fazer se estou só? Através
do sangue que sai dos meus olhos descubro os olhos de uma jovem; uma menina que há dias perguntava-
me se devia estudar em Paris ou em Londres. Ela tenta um gesto apesar das escamas que já nascem em
seus braços. Mas do desenho do gesto fica apenas um esboço que os que batem tratam logo de apagar.
Quero pedir que parem de bater mas sinto vergonha. Quero que tenham pena mas sinto vergonha. E
preciso bater, portanto, mas o meu braço pesa. É difícil levantá-lo. Levanta braço! Machuca braço! E,
nesta viagem de agressão e vergonha, lembro de outra moça, numa época em que eu ainda não me sabia
maldito. Foi numa época em que eu ainda tentava participar. Já não sinto a dor dos socos. Apenas a dor da
lembrança que me impede de cair; de rastejar. Mas há a possibilidade deles me matarem. É preciso. Eu
quero que eles me matem.
Dezenove
Eu estava com a minha namoradinha num café quando entraram dois javalis (naquela época eu
ainda não sabia identificá-los). A menina precisava acreditar em alguém e acreditava em mim. Pelo
menos esforçava-se para tanto. Eu era — e durante algum tempo, à custa de verdadeiras mentiras, cheguei
a acreditar nisso — um personagem. Os dois javalis sentaram-se numa mesa ao lado da nossa. Eram
jovens e falavam alto. Eu também era jovem. Havia um homem alto e magro sentado na mesa por eles
escolhida. O mais forte dos javalis rosnou:
— O amigo enganou-se de mesa. Esta é nossa.
O homem alto e magro não entendeu e antes que indagasse qualquer coisa foi atirado no chão. Em
seguida jogaram o jornal que ele lia sobre a sua cara. A moça que acreditava em mim olhava para mim.
O homem alto e magro tentou reagir mas bateram com a sua cabeça contra os ladrilhos do chão e
— em seguida — jogaram-no para fora do restaurante. A moça que acreditava em mim olhava para mim.
O garçom reclamou e as poucas pessoas que se encontravam no local aproveitaram para sair. A moça que
acreditava em mim olhava para mim e o seu olhar doía. Os javalis bateram no garçom, um refugiado
húngaro que eu conhecia há tempos e de cuja mulher outros animais cortaram há anos, por brincadeira,
um dos seios. Os javalis bateram no garçom.
A moça que acreditava em mim olhava para mim. De repente ela disse que não agüentava mais e
insultou os javalis. Estes bateram na moça e perguntaram para mim se eu tinha alguma coisa a declarar.
Eu olhava para os javalis. As mãos fechadas dentro dos bolsos; a respiração cortada. Mandaram que eu
levantasse a moça que estava no chão. Quando me curvei, jogaram-me sobre ela. Fiquei deitado no chão
olhando para os olhos da moça que acreditava em mim. Outros javalis menos violentos aproximaram-se
para olhar a cena. Os javalis beliscaram as nádegas da moça que acreditava em mim. Disseram que ela era
puta e eu, corno. E não era verdade. Depois se retiraram do restaurante. Levantei-me. Ajudei a moça que
acreditava em mim a se levantar. O mundo olhava este reerguimento artificial. Deus não fez nada.
— Eu não podia fazer nada.
— Não se preocupe, meu amor. Eu sei.
Fazia calor quando saímos do restaurante. Tentei reencetar, com a moça, a conversa alegre de 15
minutos atrás: o noivado, a viagem de luta-de-mel, a possibilidade do emprego e os muitos filhos que
teríamos.
Mas alguma coisa havia mudado: alguma coisa fedia dentro de mim. Pensei nos heróis e,
principalmente, naquele que estava morto; o cadáver que eu via nos olhos da moça que acreditava em
mim.
Vinte
Isto não pode acontecer novamente. Minha carne está rasgada mas eu estou de pé. Deixo-me ficar
cambaleante — navalha torpor — no espaço. Arrastam-me e meu sangue acompanha-me, tal qual sarna
fiel. Pegam a mangueira e jogam água sobre mim. Por que esta água não entra dentro da minha cabeça?
Tento falar com o porteiro mas o sangue atrapalha. Falo baixo para que eles não ouçam:
— Eu já apanhei que chega. Já aprendi a lição. Não deixe que eles continuem batendo. Você é
como eu. Não compreende isso? Você é um bosta igual a mim. Nós somos irmãos. Nós não fazemos parte
do clube. Por favor, ajude. Mas diante do nojo que vejo nos olhos do porteiro sei que ele não me ajudará.
As lágrimas misturaram-se com o sangue. Sinto a mão do porteiro entrar dentro do meu rosto. Já não
posso falar. Dos dentes quebrados faço um pensamento. O remorso do mundo é pesado demais para as
minhas mãos e eu não pedi o remorso do mundo. Eu quero ir para casa. Eu quero procurar a minha casa
embora não a reconheça mais. Os javalis sabem quem sou eu e eu não tenho casa. Mas deve haver um
caminho fatal para conduzir-me à casa. Deve haver uma estrada crepúsculo interior. Onde está a minha
casa frágil vigiada pelos precipícios?
Amanhã a chuva varrerá o meu sangue, penso enquanto caio. Bato com o rosto no cordão da
calçada. Já não ouço mais risos. Creio que já os diverti bastante. Deixam o acrobata descansar. Ele está
cansado. Ele pede desculpas mas está cansado. Ele pede desculpas mas a cabeça lhe dói. Ele pede
desculpas por ter dado tanto trabalho por alguns sanduíches. Mas sei que ninguém ouve as minhas
desculpas que fenecem entre irônicos aplausos de vidro; entre os risos de ferro, pois o sangue impede a
fuga do perdão. Sei que ninguém vê minhas lágrimas. Apenas eu vejo os confetes de aço, os balões de
pavor. Apenas eu sinto os monstros mastigarem a espera. O acrobata sangra, pede desculpas e gostaria de
morrer. O sangue pinga na água estagnada da sarjeta. Olhando para a água que reflete a massa disforme
que é o meu rosto, vem-me a certeza terrível de que continuarei vivendo a vida que fizeram para mim.
De uma cidade qualquer, talvez a minha cidade, vem o cheiro da lareira; vem o cheiro do
chocolate e o cheiro dos contos de Grimm. O menino foi abandonado na floresta mas algum demônio fez
uma trilha de pão. Quem me levará para algum lugar desta vez? — penso, antes de desmaiar.
Vinte e Um
Creio que ninguém me achou. Certamente ninguém me achou. Ridículo, acordar na esperança de
que alguém me ache. Mas sempre foi assim. As pesadas voltas para casa e a esperança de encontrar
algum recado debaixo da porta. A esperança mesmo dentro da certeza de que nada acontecerá. A
esperança maltratada de tão gasta e diariamente repolida, limpa e enxugada. A esperança de uma visita.
Uma visita, não importa de quem. Uma visita mesmo de fingimento, como a não-vida posta sobre a vida
nos obriga a proceder. Uma visita para a qual possamos mentir e dizer que mudamos muito pouco,
embora continuemos com alguns vícios e ligeiramente irresponsáveis. Mas que nada acontece. Uma visita
para quem possamos mentir que temos informações seguras de que o tempo continua passando e de que
há quem fale em outros mundos e elogie o potencial energético do homem. Mas que nada acontece. Uma
visita para a qual a gente possa mentir; possa mesmo pedir mentindo que não se preocupe; uma visita que
sorria e dê conselhos ao ser informada de que a vida continua nos poupando de tragédias. E se a visita
quiser ir embora tranqüila, nós sempre poderemos dizer a ela que a não-vida tem nos fornecido alguns
dramas de difícil digestão no trivial diário. Mas que, apesar disso, nada acontece. Uma visita para a qual
possamos dizer que sentimos saudades, frisando, também, que isso é natural, pois é bonito sentir
saudades. Uma visita para a qual a gente possa mentir que vai vivendo e que já consegue contar até dois
mil e que — dia chegará — se contará até 10 mil sem nada acontecer. Mas não há visita nem recados.
Não há visita para quem eu, agora, possa sorrir naturalmente e dizer — mesmo estirado na calçada cheia
de barro e sangue, como me encontro neste momento — que o que ela está vendo é muito normal: um
homem que não consegue morrer nem viver.
A verdade é que não há ninguém na rua, e não sei quanto tempo fiquei atirado, sem sentidos, na
calçada depois das porradas. O clube já fechou e o mundo prepara-se para abrir. No momento, apenas
raiva por não poder integrar-me ao barro e ao sangue. Alguns pássaros cantam e isso não muda em nada a
situação. Se eu fosse um detetive particular, com dois tapas limparia o meu terno, passaria a mão pelo
cabelo e sairia à procura do chefe da gang. Se eu fosse um jovem líder político em defesa da liberdade e
do fim das diferenças sociais, eu iria procurar meus companheiros e — sob aplausos gerais — escreveria
um panfleto contra o governo e depois esperaria até transformar-me em governo também, ocasião em que
riria de outros panfletos escritos por outros jovens. Se eu fosse um milionário, instalar-me-ia numa clínica
de repouso onde receberia a visita dos meus amigos fiéis que contar-me-iam dos editoriais dos jornais,
das minhas amantes; das ações da Bolsa que subiram. Eu, entediado, cocaria a barriga e descobriria que
estou ficando gordo, o que me irritaria muito e — certamente — faria com que eu deixasse de me
preocupar com os jovens que morrem no Vietnã.
Mas não sou um detetive e faz muito tempo que deixei de acreditar neles. O smoking que visto
tem muito sangue para que eu possa limpá-lo com duas palmadas. Não tenho a consoladora esperança de
lutar em favor de uma lei e de uma ordem nas quais não acredito e que sempre estiveram contra mim. A
gang é pesada demais para os meus ombros cansados, e dar bofetadas num Deus que se tornou sócio de
um grande mercado, participante desta gang feroz, é pedir demais para quem nada recebeu. Tampouco
sou um jovem político. Odeio a autoridade e há pouco descobri estarrecido que ela também me odeia e o
fato de eu estar aqui atirado na calçada, enquanto sol se aproxima é uma prova, talvez não verdadeira,
mas visual deste ódio. Não há pelo que julgar, mas eu não pretendo fazer as pazes com a autoridade. Já
que não posso matá-la, que — pelo menos — ela me mate. Não quero namorar o Poder, aninhar-me sob
as suas asas sufocantes ou beijar o seu bico venenoso e putrefato. Trago dois tiros na perna, lembrança de
um antigo namoro com o Poder. Dois tiros que nada representam diante do nada de ferro descarregado
sobre as minhas costas. Também um dia busquei o Poder na esperança de encontrar esta paz sempre surda
aos meus apelos e muda às minhas perguntas. Esta nojenta paz mutilada que me mutila também. Agora
quero batalhar, mesmo jogado ao chão. Batalharei — espero — passivamente. Não quero mais ser lúcido,
pois sendo tal, qual a lição que poderei deixar a outros — como eu — surpreendidos neste jogo que
ninguém pediu para jogar. Quero a liberdade da falta de dignidade que é a dignidade total. A liberdade de
ser jogado de um lado para outro. A liberdade do inválido. A liberdade, mesmo que à custa de porradas.
Fazer da minha dependência a minha independência e da minha prisão, a minha liberdade. Ser o oposto, o
contrário. Não quero estar ligado simbolicamente aos animais que ocupam posições. Quero ser o
antônimo dos impotentes fortes que dançam a ciranda em volta do falus do poderoso minotauro: os
homens que dirigem a opinião pública e a própria opinião pública dirigida. Não quero mais a segurança
perdida, mas sim perder e confundir a amada segurança deste Mundo de imitação. Não buscarei mais
auxílio, pois o preço a pagar é muito alto: é o preço da sempre fingida independência dependente de um
beijo, de um pedaço de pão, de uma punheta ou de uma oração. Não mais emprestarei nem tomarei de
empréstimo os pensamentos. Nem tampouco me levantarei desta poça de sangue e sujeira, pois se Deus
está dentro de mim, espero que também esteja sujo, sangrento e ferido. Se há uma humanidade com a qual
preciso identificar-me, que venha ela ao meu encontro, pois eu estou muito fraco para persegui-la; muito
humano para aceitá-la com esta fantasia de louca prostituta com que a vestiram. Que a humanidade afaste
esta sociedade que pinta um sorriso de mel sobre a lepra e venha buscar o seu filho pois ele não sairá
daqui. Já houve alguém que tentou caminhar depois do flagelo e o que conseguiu foi fazer com que os
peixeiros vendessem mais peixe. Já não posso mais olhar para a vida que se joga vence e perde. Estou tão
atolado nela que lhe reconheço todas as promessas. Ainda resta — confesso — o temor que me foi
legado, mas — neste instante —, na postura mais indigna, espero que ele morra e deixe de sacudir a sua
venenosa cauda de espinhos que ainda me machuca um pouco. Prefiro olhar o rato que passa neste
momento pelo meu nariz e me olha, sem medo, com reconhecimento. Ele sabe que os gatos são seus
inimigos e eu sei que os homens são meus inimigos, e nós os ratos não combatemos.
Mais eis que Deus se aproxima descansando sobre as suas cem patas.
Vinte e Dois
Dos edifícios que, agora, tenho certeza, não desabarão jamais sobre mim, abrem-se as primeiras
janelas para mais uma função. Enquanto isso Deus se aproxima de mim. Vem devagar andando sobre as
suas cem patas. Como sempre, não toma conhecimento da minha presença. Está a poucos centímetros da
minha boca e vai caminhando. Há uma perfeita harmonia no seu andar. Embora as suas cem patas estejam
praticamente grudadas umas às outras, jamais se embaraçam. Ao mexer com uma das mãos percebo que
deve estar quebrada. Ela dói, mas a dor é um acontecimento. Levo algum tempo até conseguir alcançar
um pedaço de fósforo, gasto ou jogado fora, como eu, no meio da calçada. Coloco o pedaço de fósforo
diante de Deus e ele, imperturbável, prepara-se para ultrapassá-lo. Quando todo o seu corpo está sobre o
pequeno pedaço de madeira, levanto-o do chão. Agora deixei Deus encrencado, penso. Em verdade, Deus
movimenta as suas patas até o fim do pedaço de fósforo e percebe — quem sabe? — que está no ar. Dá a
volta sobre o seu próprio corpo e retoma até o outro extremo do palito, ocasião em que, novamente,
verifica que falta-lhe o chão. Não há nada a fazer senão ficar aqui estendido na calçada e ver Deus andar
de um lado para outro. Poderia matá-lo, como fiz outro dia com uma lagartixa que achei em casa. Apertei
o meu sapato contra o seu rabo e ele partiu-se. Depois olhei para trás à procura do grito de dor. Mas a
lagartixa não gritou. Tive a impressão de que olhou para mim, surpresa, como que perguntando-me, por
quê? Mas sei eu lá falar a língua das lagartixas? Como, então, poderei falar a língua de Deus? Me diverte
a idéia de fazer Deus andar até morrer, de um lado para outro num espaço de 5 centímetros, condenando-
o como ele me condenou. Mas Deus ama as suas criaturas — penso — pois que ao fim de alguns minutos
ele pára no meio do fósforo. Dou-lhe uma cotucada para fazê-lo andar. Mas ele morreu. Ele está morto.
Enroscou-se sobre si mesmo e caiu ao chão. Eu estou vivo e só. Enquanto nada acontecer, resta-me o
consolo de saber que — no mundo inteiro — somente eu soube da morte de Deus e fui eu o causador.
Resta-me também o consolo de saber que os cogumelos continuam crescendo no jardim da minha
infância. Mas o que é que eu tenho a ver com os cogumelos? Alguma coisa, evidentemente, caso
contrário não estaria dissertando sobre eles. Deixo-me ficar deitado na certeza de que lá fora, sem que o
Mundo perceba, os cogumelos continuam crescendo. Talvez outros saibam, pois, uma vez vivos, os
cogumelos crescem. Mas — neste momento — só eu sei que os cogumelos crescem no jardim e somente
eu estou preocupado com eles. Quem sabe que eu estou aqui atirado no chão sem poder e sem querer
levantar-me? Quem se preocupa com isso? Deus? Mas ele morreu há pouco e, se não morreu, por que não
me mata? Mas eis que se aproximam criaturas de Deus. Tenho medo.
Vinte e Três
Não adianta eu me encolher, pois não desaparecerei. Não passarei desapercebido. As criaturas de
Deus andam aos pares.
- Que porre, hein, meu chapa?
O que será que eles querem que eu responda? Será que eles vão levantar-me? Para onde me
levarão?
- Como é que é? Vamos levantar?
Limito-me a olhar para eles. Preciso dizer alguma coisa. Explicar alguma coisa. Mas o quê?
- Eu acabo de matar Deus.
Mas eles riem. Sinto que vão perder a paciência comigo.
- Como é que é? Vai levantar sozinho ou prefere que nós ajudemos.
- Mas eu estou aqui atirado por causa de vocês. Eles não entendem. Os dois levantam-me do chão.
- Que merda, sujei a farda toda de vômito.
- É sempre assim com esses grã-finos que não sabem beber. Devíamos era deixá-lo atirado aí até a
hora da feira.
Enquanto os dois guardas me arrastam ouço o ruído de caminhões que vêm instalar a feira-livre na
rua. Ouço a voz das primeiras mulheres que saem dos edifícios para as compras. Também eu estou na
feira sendo exibido. Passa por mim uma linda menina dos seus 16 anos. Olha-me e, também, não
compreende (não vende esta flor que nasce entre as coxas tão cedo, na feira, menina; estes milagres são
como flores que aguardam o tempo de florescer). A mãe da menina puxou-a para um lado, como que a
afastá-la de mim, feroz animal. Tento sorrir para a mãe — pedir-lhe desculpas — mas, se tivesse um
espelho, certamente também eu teria medo do meu sorriso. A mãe eu conheço. Há algum tempo dei
algumas conferências sobre jornalismo — notem como eu tentava — e ela assistiu-as todas e ganhou
diploma de freqüência e um dia convidou-me para jantar na sua casa. Fui apresentado ao seu marido,
engenheiro, e discutimos política, ocasião em que ele, sabiamente, disse que eu era utópico. A mulher já
vai longe, puxando a filha. Creio que não me convidará mais para jantar na sua casa. Ela não sabe disso,
mas não me convidará mais porque eu não jogo mais o mesmo jogo. As minhas gracinhas são talvez
violentas demais para uma senhora honesta. Tenho pena desta mulher que se afasta com a filha com nojo
de um homem ferido, embriagado, sujo que sofre. O fato de eu sofrer torna-me indigno do zoológico.
Neste momento, a filha, também, aprendeu a lição.
As criaturas de Deus me empurram:
— Vamos curar o porre na delegacia.
Não posso conter o riso, embora saiba que cuspirei sangue por todo lado. Finalmente, estou
obrigando o mundo a cuidar de mim.
Vinte e Quatro
Para prender as pessoas que se afastam do contrato social, a coletividade paga outras pessoas.
Estas, por sua vez, vestem uma farda a fim de que possam ser distinguidas das outras, caso contrário,
também, correriam o risco de prisão. Aliás, a coletividade paga muito mal a esses cidadãos, haja visto a
violência com que me empurram para dentro de uma camioneta. Durante a viagem para a delegacia
ponho-me a dizer versos de Baudelaire (versos que, por sinal, acho muito ruins, mas houve época em que
decorá-los me parecia necessário). O guarda, ao meu lado, porém, logo acaba com a minha recita,
aplicando-me um violento cascudo.
— Vê se fala na língua da gente, seu.
Bem que eu gostaria, bem que tenho tentado este tempo todo. Não há dúvida que o mundo toma
conta de mim, mas com força. Como a camioneta não tem janelas, não posso contar ruas, números,
louras, morenas, anúncios comerciais. Também não há nada para ver dentro de mim, penso. Não posso
sentir raiva dos policiais. Afinal eles desempenham a sua missão dentro da engrenagem. Eu não
desempenho missão alguma, uma vez que estou fora do lar, da pátria e da família. Aliás, não sei nada
sobre estes vocábulos que sempre me soaram mentirosos. Os que acreditam, vivem. Os que não acreditam
inexistem como eu, neste momento, que — simplesmente — me deixo conduzir. E pensar que é preciso
trilhar um longo caminho de vaidade, estudo e ambição para chegar a esse estágio. Não há dúvida,
alguém colocou um pesado sobretudo sobre mim. Um pesado sobretudo invisível que — quem sabe? —
eu próprio terei tecido com os meus pensamentos, com os quais não consigo formar uma perfeita ciranda,
um desenho ou uma melodia infantil. Talvez até há poucas horas atrás o sobretudo tenha me abrigado
como o hábito abriga o monge. O monge, porém, sabe por que usa o hábito. A mim, somente ensinaram a
tecer o sobretudo, a vestir o sobretudo. Despi-lo, entretanto, sempre foi impossível. Ninguém ensinou-me
a despi-lo. Rasgá-lo também não posso, pois está modelado ao meu corpo de tal forma que o confundo
com a pele, apesar do peso. Agora sei que do homem já nada resta. Talvez apenas os meus movimentos.
Do homem sobrou apenas o sobretudo que — agora vejo — jamais me abrigou. Ao contrário me obriga a
andar agarrado à minha mortalha.
- Chegamos à delegacia - diz a criatura de Deus, enquanto me empurra.
Olho para o guarda e verifico que ele é preto.
- Deve ser uma merda ser preto — penso.
Vinte e Cinco
Um bosta, bosta, bosta, covarde, cretino e palhaço. É isso que eu sou. Então o sobretudo é
impermeável, é? Então, por que não mijo agora na cara do delegado? Por que não dou uma porrada na
cara do guarda? Por que estou com vergonha? Sim, vergonha é tudo o que sinto. Por que briguei? Por que
fiz questão de perder o meu último emprego? Afinal, o que é que eu pretendia? Amanhã todos estarão
falando. Rindo, rindo! E se alguém me vir aqui dentro? Se alguém me vir aqui com assassinos, ladrões,
prostitutas? Onde está o teu sobretudo impermeável que te arrancou para fora do mundo? Minha vergonha
se confunde. Terei vergonha - penso - por estar preso num xadrez onde nunca pensei entrar, ou tenho
vergonha pelo fato de estar sentindo vergonha? Pelo fato de voltar ao medo tão poderoso? Como deixei
que ele se alojasse novamente dentro de mim? E tudo aconteceu no momento em que eu saía da
camioneta. Veio tal qual verme. E eu que pensava há pouco ter me livrado desses vermes chamados
condições. Mas eles voltaram para a minha vida que sempre esteve cheia de condições. Preciso escondê-
las mas elas - viscosas como lesmas - saem dos meus bolsos, risonhas, chorosas e de todas as cores. Olho
para a minha roupa amarrotada, suja de sangue, terra e vômito e verifico que é impossível escondê-las.
Quando me criaram, criaram-nas também e agora elas se apresentam crescidas, como testemunho vivo do
meu ridículo pequeno-burguesismo fracassado. Estão presas na pele, no riso, no choro, no dente e na mão.
Os vermes cansaram de amar entre as veias do meu pulso fraco e agora querem mostrar-se tal como são -
nojentas lombrigas que precisam de dinheiro para manter-se em silêncio e dormir de bucho cheio - e estão
fazendo todo o possível para mostrar-me qual sou.
Ridículo palhaço, aqui estou eu nesta cela, sem talento para participar dos problemas dos meus
companheiros. Sem talento para cantar com eles as suas alegrias e as suas tristezas. Por que não abraço
este bêbado que me abraça e canto com ele o canto que ele insiste em cantar? Por que não enxugo as
lágrimas deste puto que perdeu a cabeleira e cujo batom sobre os lábios possui uma dimensão de tragédia
em contraste com a barba que já cresceu, novamente? Por que não beijo as equimoses desta velha
prostituta que solta palavrões, dizendo que lhe arrancaram o dinheiro que ela tão bem havia escondido na
vagina? Por que não participo deste carnaval que poderia ser meu? Mas, mesmo isso, é impossível.
Apenas o medo, terrível granada, filho de todas as condições, se posta enorme ao meu lado.
— E tu que pensaste que Deus era uma centopéia, imbecil! — grito. Mas ninguém presta atenção
e o meu grito se perde entre as lamentações da prostituta, o samba do bêbado e o ar patético do puto.
Sei que me chamarão daqui a pouco para o sucinto julgamento e com um pontapé na bunda atirar-
me-ão ao mundo. E o mais terrível é que eu não tenho coragem de ficar.
Vinte e Seis
Já passaram-se algumas horas. Estou com a cabeça encostada nas grades e há um terrível cheiro de
mijo dentro da cela. As lágrimas descem pelo meu rosto e fazem nascer novas condições. A loucura tão
buscada dos últimos dias não passou de uma bebedeira. Eu pertenço ao jardim zoológico. Apenas a minha
raça não se dá a conhecer: prefere cultivar vermes. Resta na cela apenas a prostituta que dorme. Daqui a
pouco o delegado mandará me buscar para o julgamento. Há sempre alguém julgando e alguém sendo
julgado. Há juizes no mundo. Não terei um grande tribunal. Receberei apenas aquilo que os homens
lúcidos classificam como lição de moral. Mais uma lição de moral. Serei eu um amoral? A prostituta
ronca, lixando-se para a minha amoralidade. Ronca, minha querida. Descansa. Você tem onde imprimir
um espírito de missão.
Sei que estou sendo julgado. Mas, ao mesmo tempo, sei que não estou presente ao meu
julgamento. Sou um homem ausente. Os punhais atravessam meu corpo mas agora já não mais
encontram sangue. Assisto ao meu julgamento mas não estou presente, pois que não me vêem. São muitos
os juizes. Todos idosos. Vestem belas fardas mas seus corpos são flácidos. Outros vestem longas batas e
estão sentados em semicírculo com as bundas murchas sobre enormes cadeiras. Eles sabem que, quando
dão uma volta rápida sobre seus próprios corpos, as togas flutuam no ar. E acham isso bonito. O povo
bate palmas mas não me vê, embora eu seja o réu. À frente de cada um dos juizes há uma enorme pasta
cheia de papéis narrando, certamente, os meus crimes. Um juiz, que não possui uma das orelhas,
conversa com outro em voz baixa. Este outro, por sua vez, é pequeno mas está permanentemente com o
pescoço esticado. Um terceiro abana o presidente do Tribunal que dorme. Este possui uma longa barba
branca enquanto que aquele que o abana com um diário oficial está sorrindo sempre mas eu não ouço as
suas risadas. Há um último que não move a cabeça envolta numa misteriosa nuvem que me impede de
ver o seu rosto. Aos poucos a nuvem se desfaz e descubro que ele não tem rosto. Tem apenas um elmo.
Fico na dúvida: haverá uma cabeça dentro deste elmo? Há uma ponte entre o povo que aplaude e a mesa
dos juizes. A ponte porém está podre e uma mulher insiste em passar por ela. Um guarda a impede e
distrai a sua atenção com uma revista.
- Seu filho não está aqui minha senhora.
Eu nunca estou onde a minha mãe me procura. Os juizes preparam-se para me julgar. Aguardam
apenas que um deles termine uma anedota. Todos riem e eu não consigo achar graça. Um corcunda
carrega uma cadeirinha para a frente do presidente do Tribunal para que ele consiga depositar seus
imensos ovos. Sei que falam sobre mim mas não posso entender a língua que falam. A mulher lê a revista
enquanto que o público aplaude. Começo a gritar para chamar-lhes a atenção.
- Os cogumelos crescem no jardim. A criança cresce no ventre da mãe. A aranha na teia que fez
na árvore que as folhas balança.
Mas eles não me ouvem. Eles nem me vêem. Eles apenas me julgam.
- As formigas possuem uma cidade. As águias têm altos ninhos. Eu já tive uma namorada que não
tinha nada mas olhava a tudo com atenção.
Mas eles não me ouvem. Eles nem me vêem. Eles apenas me julgam.
- O sol nasce sempre outra vez para a estética transcendental de Kant, para o vigor da idéia de
Shopenhauer e até para o revólver que um dia comprarei para o meu filho.
Mas eles não me ouvem. Eles nem me vêem. Eles apenas me julgam.
- Schweitzer morreu mas eu me lembro. Mayakowiski morreu mas eu me lembro. Drummond,
porém, está vivo e os poetas ainda se reúnem à lareira de Pasternak.
Mas eles não me ouvem. Eles nem me vêem. Eles apenas me julgam.
- A lua já brilha na índia, seus cachorros. Eu observo a mulher nua que perto descansa e que já é
poesia e há muita gente se amando neste momento!
Mas eles não me ouvem. Eles nem me vêem. Eles apenas me julgam.
Onde estão os rostos desses juizes? Mamãe pare de ler esta revista e olhe, pois quero enxergar
com seus olhos. Um menino pequeno, em verdade um bebê, me informa.
- Eles não são juizes. São apenas corpos. As togas comandam os seus corpos. São togas que
jantam, respiram e julgam. As agulhas coseram as batas à carne. Os homens morreram para a lei
nascer. Quem não for lei terá que ser julgado.
Mas eles não me condenam nem me absolvem, meu filho. Eles apenas me julgam e continuarão
me julgando sempre.
- Como é que é, seu moleque? Tá pensando que isso aqui é hotel?
As criaturas de Deus me tiram da cela, pois o delegado me espera.
Vinte e Sete
O delegado é um desses homens que, de um modo geral, classifica-se como um bom pai de
família. E não sei por que presto atenção em todos os detalhes: deve ter l,70m de altura; cerca de 45 anos;
levemente calvo; razoavelmente balofo; veste um terno azul-marinho um pouco fora de moda mas
impecavelmente limpo e passado e sobre os olhos traz uns óculos de grau. Pelo anel no dedo anular da
sua mão direita, vê-se que é advogado. Sua voz é levemente nasalada e seu corpo desprende um cheiro de
água de colônia terrivelmente doce. Deve ter sido o tipo do menino dono da bola que só deixava a
gurizada da rua jogar futebol quando ele, também, era escalado, embora não entendesse nada do jogo.
Engordou, casou, teve três filhos, hoje adolescentes, que ele educa de maneira espartana, ou seja:
obrigação de primeiras notas, missa, bênção, delação. À noite conta-lhes as suas aventuras policiais.
Aliás, deve ter tido boas razões para entrar para a Polícia. Agora, diante de mim, que olho para a sua cara
com um ar abobalhado que não posso reprimir, prepara-se, provavelmente, para uma nova aventura como
bom defensor da lei e da ordem, prepara-se para enfrentar um inimigo público. Eu poderia mandá-lo à
merda mas é preciso jogar. Mandando-o à merda, provavelmente lucrarei apenas umas cacetadas. Mas
não é delas que tenho medo. De que, então? Não sei. Sei apenas que o meu medo nada teme. E mais forte
do que eu e obriga-me a me manter impassível, diante do defensor da lei. Ele olha para mim como quem
diz: “Sim, senhor, hein?” Será que ele me castigará porque ainda há pouco descobriu que não consegue
mais trepar com a sua mulher? Mas uma vez mais tento participar.
- Muito prazer em conhecê-lo, delegado. Sinto apenas que nos conheçamos em situação tão
adversa para mim. Creio, porém, que o senhor compreenderá que um sem-número de razões de ordem
pessoal e, conseqüentemente, emocional, conduziriam-me ao estado lamentável em que os seus guardas
me encontraram ontem.
Ele nada diz. Apenas olha para mim, enquanto abana a cabeça. Em verdade, a sua cabeça começa
a crescer; as bochechas tornam-se gordas e caem sobre o rosto. Duvido dos meus olhos mas as suas
orelhas tornam-se enormes e pontudas, ao mesmo tempo em que a sua boca transforma-se num focinho.
Um focinho de onde escorre sangue. O delegado transforma-se num porco diante dos meus olhos.
Entretanto a sua voz continua perfeitamente nasalada.
- O senhor que me parece um moço bem-educado deveria saber que um bêbado é pior do que um
cachorro. O estado em que o senhor chegou é o último estágio da degradação social.
Devo informar-lhe que ele se transformou num porco? Temo, porém, que ele não acredite e tome a
minha informação como falta de respeito.
- Seus pais devem ter lhe dado uma educação. Devem ter se esforçado para que o senhor cursasse
os melhores colégios, e o que é que o senhor lhes dá em troca? E a sua mulher, o que pensaria ela se o
visse nesse estado?
Enquanto ele abre a boca, vejo restos do que deve ter sido uma mão de criança recém-nascida que
ele mastiga ferozmente. Trata-se de um porco ogre.
- E o senhor não tem nada para me dizer?
Tento participar mais uma vez.
- O senhor há de convir, delegado, que a minha defesa é praticamente impossível, uma vez que
meu aspecto não é dos mais agradáveis. Creia-me, entretanto, que farei o possível para que isso não torne
a acontecer. Em verdade, de hoje em diante, não matarei mais nenhuma centopéia.
O porco, porém, não concorda comigo. Informa-me que as centopéias devem ser mortas, pois são
animais venenosos e, conseqüentemente, nocivos à sociedade. Ele diz que poderia deixar-me passar
algum tempo no xadrez, mas que, levando em conta a minha condição de primário, deixar-me-á em
liberdade. Exige, porém, que eu leia um livro de Cronin onde descobrirei — diz ele — a que ponto um
homem pode chegar por causa do álcool. Prometo-lhe que vou ler o livro mas olhar para a sua cara de
porco dá-me ânsias de vômito. Eu poderia dizer-lhe que conheço o chefe de polícia, mas este é um
porcalhão ainda maior. Aliás, conheci muitos porcalhões e sempre lhes fiz reverência sem nada lucrar
com isso. O porco prossegue mastigando os dedos de criança e — estranho — quanto mais dedos ele
engole, tantos mais nascem para ele mastigar. Manda-me sentar a um canto, enquanto que os seus
auxiliares registram a ocorrência da qual eu sou o protagonista. Belisco-me para dizer ao porco o que
penso mas não consigo. Poderia dizer a ele quão difícil é traçar um limite entre a culpa e a inocência que,
de resto, são palavras sem cheiro e sem cor, feitas antes para tiranizar do que para humanizar. Humanizar
— está aí um verbo para o qual ainda não encontrei um pronome adequado — penso. Entretanto, a tortura
persegue. Sei que o porco me mantém sentado bem à vista das pessoas que entram e saem da delegacia a
fim de apanharem seus atestados de residência, pois todos moram em algum lugar. Sei que o porco me
mantém em exibição. Como bom caçador, quer mostrar a sua presa aos circunstantes. E não há nada pior
do que esta tortura mesquinha e sem rumo estabelecido que faz de mim um cartaz do Actualités des
spectacles
. Esta tortura que mais e mais me confina a ficar sentado a um canto distendendo os nervos à
procura de um prolongamento corporal. Sei que as minhas mãos estão muito machucadas das porradas da
noite anterior mas nem a dor me traz qualquer vantagem. Tenho medo de vomitar na frente de todas essas
pessoas que me olham espantadas, mas tenho ainda mais nojo pela vergonha que sinto e que não deveria
estar sentindo. E eu olho para as pessoas que me cercam como se nada estivesse acontecendo. Como se
— apesar da minha barba, do sangue na minha roupa, do mau cheiro que desprendo — eu também fosse
um cidadão comum em busca de um atestado de residência. Deve haver alguma razão para essa minha
grosseira caricatura de coexistência pacífica. Mas eis que alguma coisa acontece. Uma jovem loura, com
olhos curiosos, que não deve ter mais de 15 anos, apesar dos seios enormes e das belas coxas que imagino
por baixo do vestido, olha-me com ar piedoso e — repentinamente — vejo-me a balançá-la em meus
braços dentro da delegacia. Ouço a minha voz que grita:
- Nós sabemos, não é meu amor? Nós sabemos que as grossas unhas calcificadas ferem a face das
criancinhas que crescerão segundo a lei da navalha. Eu quero a coerência!
E a coerência desce sobre mim. Ou melhor: descem sobre mim as mãos pesadas de duas criaturas
de Deus que afastam a moça e aos empurrões fazem-me sentar novamente na cadeira. A um gesto do
porco, dois guardas empurram-me até a porta da rua. Descubro, então, que fiz mais um herói. Um deles
me diz com ar cúmplice:
- Você deu sorte, meu chapa. O filho do senador telefonou e pediu que o delegado te soltasse. Não
fosse isso, você ia levar uma coca.
Olho para os meus semelhantes e lhes digo:
- Muito obrigado.
Começo a andar mais uma vez por esta cela bem mais espaçosa que um humorista qualquer achou
por bem chamar de liberdade.
Vinte e Oito
Cá estou eu exercendo a minha pesada liberdade. Caminho por uma das mais movimentadas ruas
da cidade; a minha liberdade é a minha prisão. Não tenho dinheiro para apanhar o ônibus e ir para casa
trocar de roupa depois de um banho. Também não tenho dinheiro para passar um telegrama e agradecer
ao filho do senador pela minha liberdade. Isso faz com que as centenas de pessoas que andam pela rua
parem para apreciar o jovem mendigo de smoking. Vem-me a idéia de pedir esmolas mas há o temor de
ser reconhecido e eu — certamente — não desempenharia o papel com a mesma tranqüilidade com que os
arqueiros chineses disparam os seus arcos. Mas se eu fosse um adorador de ídolos tudo seria diferente. Se
eu, pelo menos, tivesse algum ídolo para adorar! Isso aproximar-me-ia dos meus circunstantes. Gostaria
de gritar:
— Eu sou uma mercadoria, senhoras e senhores! Se eu não sou uma mercadoria, ensinem-me a
transformar-me numa. Eu também quero transformar a minha vida num capital. Eu, também, quero
investi-la com lucro. Se eu tiver lucro, então a minha vida, também, terá sentido como a de vocês.
Mas eu sei que ninguém comprará o meu valor, pois este precisa ser reconhecido pelos outros e eu
estou muito afastado da manada. E, mesmo que estivesse próximo, só receberia patadas, pois as manadas
possuem um misterioso sentido que as faz pressentir a presença de um provocador. São bois com antenas
invisíveis. Em direção à minha casa, passo por um grupo de pessoas que se acotovela enquanto olha para
uma vaca mecânica que mexe os olhos e o rabo, dentro de uma vitrina, anunciando as vantagens de
determinada marca de leite em pó. (Meu filho deve estar precisando de leite.) Tento passar pela pequena
multidão mas, ao tocar com as mãos o ombro de um cidadão, sinto ao contato que ele é frio como metal;
como aço inoxidável, talvez. Infantilmente, penso que se trata do Super-Homem vestindo a sua roupa de
mortal. Mas em seguida — verifico que não. À medida em que toco nas pessoas, vou descobrindo que
todas, embora maleáveis, embora possuindo rostos iguais ao meu e pele igual à minha, são feitas de
metal. Terá sido sempre assim? — penso — ou apenas hoje fiz a descoberta? Ou — quem sabe — tudo
aconteceu durante o tempo em que estive na cadeia? Mais uma vez sinto-me sacaneado. Então, houve
uma transformação universal e deixaram-me fora dela para eu continuar diferente? Já não basta eu estar
sujo, rasgado, cheio de marcas de sangue pela roupa, barbudo e fedorento? Agora me arranjam mais essa?
Todos perfeitos, do mais puro aço, e apenas eu vestindo esta ridícula pele mortal? Sou invadido por um
pavor maior do que o meu corpo pode conter. E se eles me descobrirem? Sei como a coletividade reage
para com os diferentes. Se eles descobrirem que eu não me transformei... procuro passar desapercebido
mas isso é quase impossível. Serei eu um produto de ficção científica? Serão eles produtos de ficção
científica? Estarão eles sonhando com um estranho homem de carne? Um sonho coletivo. Ou — talvez —
eu é que esteja sonhando com um mundo de super-homens? Mas a minha mão dói e sinto que esta
história eu não fabriquei. Meus passos conseguem conduzir-me até um beco sem saída onde poucos me
vêem. Aqui esperarei até que venha a noite para, então, tentar chegar ao lugar onde durmo. Mas não terá a
noite também desaparecido? E se de agora em diante só houver o dia para denunciar-me? Fico parado no
beco olhando a manada que passa a alguns metros de distância. Um gato de carne e osso aninha-se aos
meus pés.
Vinte e Nove
Um homem limpo com uma pasta na mão passa por mim. Eu gostaria de ser como ele. Ele
coopera facilmente dentro de grandes grupos que desejam consumir mais e mais e cujos gostos possam
ser facilmente influenciados, padronizados e previstos. Eu quero cooperar, quero consumir, quero ser
influenciado. O homem que se aproxima sente-se livre e independente, não sujeito a nenhuma autoridade,
princípio ou consciência. Não obstante, ele está disposto a receber ordens, fazer o que dele se espera e
enquadrar-se na máquina sem conflito. Eu, também, quero ser assim: livre e receber ordens. Ele — e vejo
seu sorriso de satisfação — pode ser liderado sem líder; movido sem objetivo; guiado sem força. O seu
objetivo é avançar sempre. Eu também quero ser assim. Eu também quero ser governado. Quero que as
minhas ações estejam acima de mim. Quero que as forças da minha vida se transformem em instituição e
— em seguida — em ídolos. Quero — como o patriota que se aproxima sorridente — cultuar o Estado;
cultuar os seus símbolos: uma suástica, uma foice e um martelo, uma enorme bunda. Quero um ídolo,
também. O homem com a pasta está agora a poucos passos de mim e posso vê-lo perfeitamente. Ele,
porém, não tem apenas um rosto. Em verdade, o seu rosto é uma tela cinematográfica por onde desfilam
dezenas, centenas, milhares de rostos. E sobre cada um dos seus rostos quase que invisíveis manchas cor-
de-rosa. A humanidade está com lepra — penso. Mas a lepra é curável. Sabe-se disso há muitos anos.
Também quero contagiar-me mas sei — de antemão — que isso é impossível. Por que não continuei no
Partido Comunista? Ou então — por que não passei-me para a direita? Por que não continuei sócio
daquele clubinho onde, nas tardes de sábados, nós moços nos reuníamos para dançar? Qualquer idiota
sabe que tanto o comunismo como o capitalismo são sistemas de futuro. Ambos progredirão, avançarão e
dentro de 50 anos (eu ainda estarei vivo, por que não?) ambos os sistemas estarão transformados em
sociedades administrativas perfeitas com habitantes bem alimentados, bem vestidos, com seus desejos
satisfeitos e sem anseios que não possam ser atendidos. E meu filho poderia fazer parte dessa formidável
sociedade de autômatos.
Mas sei que estou me enganando. Sei que isso é impossível pois, se é verdade que os autômatos
não se rebelam, também é verdade que se um homem viver como um robô, ele não pode continuar
mentalmente sadio. E há a bomba de 40 megatons e há a peste manejável! E quem maneja a bomba e a
peste são robôs débeis mentais. E eu, sujo, saído há pouco da cadeia, parado neste beco enquanto o
crepúsculo se aproxima, nada posso fazer. Não posso impedir este irresponsável amor feito de bombas de
nêutron.
Trinta
Não há o que fazer. Se me falta talento para viver e para morrer, melhor optar pela solução
covarde e continuar tentando. Para quem, como eu, vem tentando desde as amebas retirar um machado
cravado entre o nariz e a boca, torna-se muito difícil e até mesmo irrelevante diante da dor preocupar-se
com a coerência essencial. Se o mundo precisa de robôs débeis mentais para governá-lo, não sou eu o
único a saber disso — certamente. Participemos mais uma vez. Enganemos o machado. Façamos com que
ele pense que nos afeiçoamos a ele. Ainda tenho algum tempo. Os robôs débeis mentais ainda não
descobriram que a não-vida não faz sentido. Enquanto não descobrirem isso, não destruirão a vida. Falo
nesta vida de merda que eu vivo mas que seria maravilhosa, sadia, caso todos a vivessem. Digo: caso
parassem de aleijar a realidade verdadeira em favor de uma realidade real e, por isso mesmo, mentirosa.
Disseram-me esses tempos que o mundo tem 9 milhões de anos, o que prova a diligência das
amebas. A certeza da matemática deve ser confortadora para os matemáticos. Que importa errar um
bilhão de anos se não o viveremos. Diante dessa certeza divirto-me imaginando cenas. Já lhes disse que
sou um imaginativo? Imagino, por exemplo, enquanto a noite não vem, se um desses autômatos débeis
mentais que governam esse nosso planetóide de quinta categoria chegasse em casa mais cedo e
encontrasse a sua mulher chupando o pau do seu secretário para assuntos intelectuais. Quanto tempo ele
levaria para chegar até o botão que um dia fará explodir o mundo — e eu também e o meu filho também;
eu que nada tenho a ver com a boca da mulher do autômato débil mental. Mas ainda não acabaram com a
noite. Aí está ela e junto com ela vou indo para casa. Há muita gente na rua. Para comprovar a mim
mesmo que nada mudou, toco o mais disfarçadamente que posso na bunda de uma mulher que caminha
ao lado de um canal. Ah, como é bom sentir com os dedos uma bunda de carne e osso; uma bunda que
afunda ao contato da mão. Ela vira-se para mim e sei que não entenderá que só fiz isso para ver se ela era
de carne e osso; para ver se o mundo ainda tinha possibilidade de recuperação. Sei que ela jamais
entenderá o magnífico trabalho involuntário que prestou à ciência e à humanidade. Como explicar-lhe que
a bela bunda que ela esconde tão excitantemente sob o vestido de seda é uma bunda salvadora?
Evidentemente, não lhe digo nada disso, mas o medo de levar uma bofetada do homem que está ao seu
lado, de voltar à cadeia e — então, tenho certeza — nunca mais sair faz com que eu lhe lance um olhar de
cachorro perdido na tempestade. Ela parece compreender e perdoa a indignidade que cometi. Sigo
andando, pois pode ser que eu encontre um bilhete de loteria premiado e perdido no caminho.
Trinta e Um
Hoje em dia, porém, ninguém perde mais bilhetes premiados. Aliás, creio que nunca ninguém
perdeu bilhetes premiados. Ainda há muita gente pela rua. Nem perco tempo em verificar se são pessoas
de carne e osso ou de aço inoxidável. Estou próximo da minha casa e — dentro dela — sei de um
cantinho onde ninguém poderá perturbar-me. Ao atravessar a rua topo com uma igreja. Não há por que
entrar dentro dela mas também não há por que não entrar. Dentro da igreja há cerca de 20 pessoas - que
como eu procuram um milagre. Eu, entretanto, sei que não o encontrarei. Mas — que diabo! -por que não
tentar? O silêncio é razoavelmente confortador. Procuro ajoelhar-me, mas a posição é incômoda. Cruzo as
mãos, sento num banco e fecho os olhos. O padre fala sobre um Deus que sofreu e eu penso na
possibilidade de conseguir mais um emprego. Há aquele velho amigo que tão bem desempenha o papel do
moço que vence na vida e que, caso eu permita que ele me insulte um pouco mais, acabará por me
arranjar alguma coisa. Há uma jovem que diz gostar de mim e que, certamente, me emprestará dinheiro
para o ônibus. Isso não lhe custará nada, uma vez que o seu pai é um advogado razoavelmente bem
sucedido. Entende muito de leis e até mesmo de direito internacional. Para a jovem também será bom
fornecer-me o dinheiro, pois para ela é importante acreditar em mim. Abro os olhos e deparo com o velho
Jesus pendurado numa bonita cruz lavrada em mármore. O padre continua falando num Deus que sofre.
Jesus seria capaz de criar um tumulto neste tempo — penso — e acabaria no xadrez. Uma velhinha toda
empoada, com um enorme véu negro de renda sobre a cabeça, senta-se o meu lado. De repente, pressente
a minha presença, provavelmente pelo olfato, pois nem eu agüento o meu cheiro, e muda-se de banco. E
nenhum deles sabe que eu levantei Deus que caminhava sobre um palito de fósforo. E mesmo que eu
dissesse eles não acreditariam. E não acreditariam pois o destino do homem que lentamente se automatiza
encontra o seu protótipo na paixão por um Deus que sofre na Terra, morre e se eleva aos céus novamente.
Esse Deus permitirá que todos partilhem da abençoada imortalidade. Quero dizer, todos não. Apenas
aqueles que se unirem a ele nos mistérios ou mesmo se identificarem com ele. Porra, mas onde é que eu
vou pregar a sua religião? Nada mais tenho feito senão amar o meu próximo como a mim mesmo, e o que
é que eu tenho conseguido? Já me enchi da igreja e preciso comer alguma coisa. Em casa voltarei a
pensar no assunto e — se não me engano — guardei alguns tocos de vela na gaveta da mesinha de
cabeceira. O chato é que não tem vidro na janela do banheiro e sempre que levo uma vela acesa para lá,
ela acaba apagando e eu sou obrigado a sair debaixo do chuveiro tantas vezes que termino
invariavelmente resfriado. Vou dando o fora da igreja. Na escada encontro um mendigo de longas mãos.
O sacana está pedindo esmolas e me olha com uma cara de quem, realmente, precisa. Tento um papo:
- Meu chapa, honestamente, se eu tivesse uma erva, eu dividia contigo. Mas não há de ser nada.
Você pára aqui todo dia, não é? Amanhã talvez eu arranje um dinheiro e a gente. . .
O mendigo não me deixa terminar:
- Porra, vê se não aporrinha.
Vou embora, pois o sacana tem razão. De qualquer maneira, se eu arranjasse um dinheiro, a
primeira coisa que faria seria esquecer dele.
- Uma esmolinha pelo amor de Jesus, Nosso Senhor!
Ele, também, não sabe que Deus morreu. Engraçado: para os autômatos débeis mentais — penso,
enquanto vou andando para o meu cubículo - a história em torno de Jesus não tem apenas uma função
social. Ela ameniza também aquele pouco de sentimento de culpa que ainda resta aos robôs. O sentimento
de culpa provocado pela desgraça e sofrimento do pessoal que precisa de ídolos, como eu. Se esse pessoal
se identifica com Jesus sofredor, os autômatos podem, eles mesmos, se penitenciar. Podem mesmo se
reconfortar com a idéia de que, como o único filho de Deus sofreu voluntariamente, o sofrimento para
mim é uma graça de Deus. Logo, eu não tenho razão de acusar ninguém. Nem os autômatos têm razão de
acusarem-se por me causar esse sofrimento. Trata-se de uma política muito antiga, que ainda dá resultado,
e até hoje os arrancadores de vísceras dormem descansados sobre o sangue dos inocentes. E quantos deles
não têm lindas cabeleiras brancas? Quantos não são respeitáveis vovôs? E como sabem contar histórias
divertidas dos bons tempos! Desço as escadas do templo pensando nas desvantagens que me tem trazido
esta louca coerência de uma vida que ninguém vive. Mas ela está dentro de mim, apesar das condições.
Está lá no centro nervoso do desespero: é a alma da minha calma feita de nervos. Não há como arrancá-la
e renascer igual. Eu quero acreditar nesta vida-não-vida... Quero acreditar nas coisas ditas e proclamadas
pela maioria. Quero torcer no futebol; pertencer a um partido; acreditar no anúncio que vejo na televisão e
emocionar-me com o problema da mãe-solteira. É preciso amordaçar este estúpido espírito crítico sempre
que eu ouvir a voz da maioria. A voz da maioria é a voz dos autômatos-reis e esta precisa ser a minha
voz. Quando a minha primeira hipocrisia bem sucedida suceder; quando eu deixar de vomitar sobre as
tentativas, escreverei uma carta para a minha mãe. Como qualquer vagabundo que não tem o que fazer
além de sustentar-se sobre as suas próprias pernas, vou formando frases enquanto caminho:
“Perdoa, minha mãe, mas tenho uma notícia: seu filho já é um homem normal. Perdoa, mas faltou-
lhe masoquismo e dinheiro para deixar de ser normal. Seu filho, infelizmente, não é um cristão. Tentou,
mas não é. Tentou muito mas lhe faltou talento. Caso contrário, ele continuaria reagindo contra o
horizonte de aço inoxidável que agora vê à sua frente. Continuaria gritando como Cristo, mas os tempos
são outros, minha mãe. Eu sou suficientemente esperto, hoje em dia, para saber que se eu continuasse
naquele caminho anormal, somente muito depois da minha morte, quando tivessem certeza de que eu
estava mais do que suficientemente morto, os autômatos me reverenciariam. Somente depois da minha
morte poderei ser louvado sem risco. Mas, então, haverá outro alguém se arriscando. Cantem hinos ao
Senhor, minha mãe, meus irmãos, minha mulher, minha namorada. Hosanas, pois o filho é normal. E na
trilha da normalidade acabará - quem sabe, com algum talento? — presidente do banco do seu país ou, até
mesmo, adido cultural em Honduras.”
Mas o modo com que o porteiro do meu edifício me encara bem demonstra que ainda não estou
em condições de escrever a carta. Se eu já não grito, se eu já não reajo, minhas roupas manchadas e minha
cara quebrada, reagem por mim.
Trinta e Dois
Procuro ver nos olhos do porteiro se há algum recado para mim; se fui procurado por alguém, mas
ele limita-se a olhar para um lado, ignorando praticamente a minha passagem. Apanho o elevador e
verifico que é proibido fumar. De qualquer maneira, não tenho cigarros. Mas estou calmo e isso me irrita,
pois a minha calma me faz tremer. Pergunto: o que eu faria, se, de repente, ganhasse uns 100 milhões de
cruzeiros; se, de repente, me convidassem para fazer um cruzeiro pelas Bahamas. Depois dos últimos
dias, creio que não faria nada. Quando sofremos, o próprio sofrimento torna-se um hábito. Enraiza-se na
nossa pele e mesmo ao baque de uma alegre notícia não desmorona. Em realidade, creio que nos
habituamos ao desespero, embora aguardemos sempre uma notícia. Agora, por exemplo, eu poderia
apertar o botão de emergência e fazer o elevador parar entre um andar e outro. Para o mundo isso pode
parecer uma anormalidade. Para mim, porém, trata-se de um acontecimento. Trata-se de um inesperado.
Eu gostaria que o elevador parasse nesse instante, e mais, gostaria mesmo que ele caísse virtiginosamente.
Isso representaria uma trégua entre mim e o mundo. Uma pausa refrescante, como diz o anúncio
publicitário. Sei, porém, que isso não acontecerá, a menos que eu aperte o botão de emergência. Logo,
entretanto, homens e mulheres começarão a gritar, reclamando o elevador e — ato contínuo — serei
obrigado a fazê-lo descer. Descobrirão, então, que fui eu o responsável voluntário pelo enguiço e
reclamarão ao síndico que reclamará ao meu senhorio que por sua vez reclamará a mim e como estou
devendo alguns meses de aluguel facilmente botar-me-á no olho da rua. Não sem antes, é claro, comentar
com a sua mulher:
— Uma pena, um rapaz tão inteligente. Mas sou obrigado a fazer isso.
A mulher, entretida com o programa de televisão, responderá que “é a vida, meu velho”; logo, não
devo apertar o botão de emergência.
Fecho os olhos enquanto abro a porta do apartamento. Ainda de olhos fechados descubro um papel
no chão. Ainda de olhos fechados descubro, pelo formato, que se trata da conta do gás. Fecho a porta e
continuo de olhos fechados, pois mesmo que os abrisse quase nada veria, uma vez que não há luz no
apartamento. Atravesso a pequena sala sem esbarrar em nada pois sei a exata colocação dos móveis,
atravesso o quarto e abro a janela. Medito seriamente sobre a possibilidade de atirar-me ao espaço e
descer seis andares. Relativamente jovem, relativamente culto e sem nenhum defeito físico. E, entrento,
não há nada que me prenda à espécie humana. Nenhum contato com a vida e — ainda assim — persiste a
teimosia de querer agarrar-me a alguma coisa. Não amo ninguém; tenho um filho que vi apenas uma vez e
— ainda assim — procuro encontrar dentro de mim alguma esperança antes de transformar-me numa
massa de sangue, carne, vísceras e ossos na calçada. A idéia não é agradável e há sempre a possibilidade
de eu não morrer. Morre-se por amor; morre-se por falta de amor, mas ninguém morre por não gostar de
viver, simplesmente. De olhos fechados, sento-me na janela e balanço o corpo para a frente e para trás. A
princípio mais para trás do que para a frente. Agora, porém, mais para frente do que para trás. Sou uma
avestruz que não vê o mundo pois está com a cabeça enterrada na areia e — como avestruz — penso que
o mundo também não me vê. Acredito que não me veja. O acrobata pede desculpas mas está cansado. O
corpo balançando muito para frente e um pouco para trás. Muito para frente, muito para a frente, muito
para a frente. Daqui a pouco perderei o equilíbrio mas não posso deixar de imaginar os comentários das
pessoas com que tentei dialogar nestes anos todos. Muito para a frente mas ainda tenho os dois pés firmes
sobre uma estreita faixa de cimento e tijolos. Um dos meus pés resvala e jogo-me com violência, ânsia,
desespero e covardia para o lado de dentro da janela, para dentro, para dentro, para dentro. Caio no meio
do quarto e de olhos fechados vou rastejando até a cama que um dia foi de casal, onde me atiro e choro
qual uma criança que jamais deixei de ser. Choro soluços que não tento abafar, alto. Muito alto. Mas de
que me adianta chorar se não há ninguém para ver? Batem na porta; praticamente arrombam a porta. Não
vou abrir, pois sei que são os vizinhos, os pedestres, os autômatos cujo mecanismo atrapalhei com a
minha palhaçada; com a minha ridícula tentativa de dar fim a uma coisa que nem conheci. Chamam pelo
meu nome e vou atender, tendo na cara o que me parece ser um ar despreocupado. E a moça que diz ser a
minha namorada. Olha-me com o olhar que os adultos costumam lançar às crianças que eles nunca julgam
como crianças, mas como retardadas mentais. Repreende-me. Pergunta onde estive esses últimos dias.
Pergunta se quero deixá-la louca. Saio um pouco para fora do apartamento a fim de que a luz do corredor
bata na minha cara e ela possa olhar os meus ferimentos. Ela, então, joga-se aos meus braços, pergunta o
que houve e diz que me ama muito.
Trinta E Três
Estou pelado dentro da banheira. O homem pelado dentro da banheira numa noite de domingo. É
bom estar dentro da água morna. Chato é que, embora haja uma janela tapando a vidraça quebrada,
sempre entra um pouco de vento que bate sobre a parte do meu corpo que não está dentro da água. Faz-
me lembrar que a vida continua; que a vida me espreita por trás da janela. Além disso o fogo da vela pode
apagar de uma hora para outra e eu terei de me levantar para acendê-la. O medo de que isso possa
acontecer não me deixa gozar inteiramente a paz líquida que me inunda enquanto me mantenho dentro da
banheira bem menor do que eu, numa cômica posição.
A moça que diz que me ama, que é um absurdo a vida que eu levo, que eu preciso parar com essa
mania de autodestruição foi lá para baixo depois que eu prometi ficar quietinho na banheira. Ela prometeu
que me daria um bom banho. Foi lá para baixo estacionar o seu carro direito, pois que subiu às pressas.
Foi, também, comprar cigarros, uma garrafa de vodca e alguns sanduíches. Ela não me disse, mas sei que
está preocupada, pois hoje há uma reunião de família em sua casa e ela não pode faltar. Ela costuma dizer
que não casa comigo pois eu recém me desquitei e os seus pais nunca permitiriam. Creio que ela tem
dúvidas sobre as minhas intenções. Costuma se perguntar se eu a amo ou se simplesmente amo o seu
dinheiro. Certamente eu não amo o seu dinheiro mas também tenho as minhas dúvidas. Penso, por um
instante, como determinadas ridículas compensações fornecidas à minha vaidade macha podem confortar-
me. A moça que foi comprar sanduíches não pode participar da minha vida mas o meu sofrimento tem,
para ela, um lado romanesco que faz com que eu me torne, aos seus olhos, diferente dos outros homens. O
meu sofrimento a atrai e — por outro lado — torna-me dependente dos seus favores. Aprendi há anos na
universidade que a diferença entre os sexos é a base da mais antiga e elementar divisão da humanidade
em grupos separados. Homens e mulheres precisam uns dos outros para a manutenção da raça e da
família, bem como para a satisfação dos seus desejos sexuais. Mas em qualquer situação na qual os dois
grupos diferentes se necessitem, haverá não só elementos de harmonia, cooperação e satisfação mútua,
mas de luta e desarmonia. É mais ou menos o meu caso neste momento. Muitas coisas morreram dentro
de mim, ou melhor, muitas coisas morreram dentro do mundo. Morrem os homens para nascerem as
máquinas e as leis. Eu luto para amar as máquinas e as leis, mas o homem nega-se a morrer dentro de
mim, Estou, portanto, de pau duro dentro da banheira à espera da jovem. Isso ainda me dá satisfação,
talvez mais à minha vaidade de que mesmo ao meu desejo sexual. Há alguém que trabalha em função do
meu sofrimento e que daqui há pouco será devidamente fodida. Ora, o medo de falharem como homens
fez com que estes se transformassem em máquinas, como há pouco tive oportunidade de constatar na rua.
Uma das máquinas, porém, transformou-se em carne ao contato da minha mão. O medo de não conseguir
comer a sua mulher direito faz com que o autômato busque proteção fora da vida. Nessas ocasiões, ele
mata pessoas, rouba, mente e acaba conseguindo muito dinheiro. Tanto dinheiro que o fato de ser corno
não o incomoda absolutamente. Quantas mulheres de autômatos eu já comi com o meu sofrimento
charmoso! Ora, se falhei tentando a vida-não-vida, pelo menos dentro da vida satisfaço a minha vaidade.
Não existe um diálogo interior entre eu e a moça que foi comprar sanduíches mas eu gosto de foder, pois
é uma coisa que tem princípio, meio e fim e eu a compreendo, pois faz parte da vida. Este medo dos
autômatos de falharem sexualmente fez até com que o mito bíblico invertesse as posições, fazendo com
que a mulher nascesse do homem. Para poder superar, portanto, a mulher que tem a capacidade de
produzir naturalmente, o homem resolveu produzir máquinas, ganhar dinheiro e acabar transformando-se
numa máquina. Esta ânsia desesperada fez com que ele perdesse de vista o fim que lhe dá significado,
esqueceu-se: de foder e de portar-se como homem. Eu não esqueci e preparo-me, portanto, para exercer a
única das qualidades que me restou.
Trinta e Quatro
Já comi caviar e gosto de caviar. Também tenho um paladar muito apurado para o melhor uísque,
assim como sei distinguir um Romanée Conti de um Beaujolais. O sanduíche que comi era de pão de
ontem. Mas uma fome antiga e boa torna bons os maus alimentos. A jovem me deu um banho e, em
silêncio, trocamos alguns beijos e eu gostei. Meu estômago está cheio. Não há por que querer investigar a
vida se ainda há pouco resisti ao convite da morte que talvez desvendasse o meu mistério. Finjo procurar
fósforos para acender a vela que se apagou. Sei que eles estão no bolso do meu pijama que há anos não
visto. Quando me decidir apanharei os fósforos. Acenderei a vela e em seguida o cigarro. Por enquanto
viajo no silêncio e finjo procurar os fósforos. Enquanto isso vou andando pelo quarto e aproveito para
observar as reações da moça que está nua debaixo do meu único cobertor. Daqui a pouco vou foder.
Gosto muito de foder, embora foneticamente o verbo soe agressivamente aos meus ouvidos. Fazer amor,
porém, parece-me hipócrita. Em todos os casos, pretendo abraçar-me a esta jovem e sei que ela também
pretende que eu a abrace. Pretendo fazer-lhe muitos carinhos com a língua e com as mãos e sei que ela
também me fará carinhos. Eu — penso — preciso de carinho. Pretendo penetrá-la e gozar muito e depois
— quem sabe? — começar tudo novamente. Talvez isso seja amor. Talvez seja um amor não muito
integrado na vida. Neste momento, porém, sei que poucos estiveram tão perto. Olho para os olhos da
moça; olhos negros que refletem um pobre luar que atravessa a janela que ainda há pouco serviu de palco
para o meu número do suicídio. Essa espera antes do ato, confesso, me diverte muito. Sei que ela —
conscientemente — representa para mim. É o seu papel. Deve, neste momento, estar perguntando com os
olhos por que não subo sobre a cama. Sei também que lá dentro na zona de luz mais clara do seu cérebro
ela pede, ela quer. Ela precisa de mim. Precisa muito mais de mim do que da festa que a espera em casa.
Para a festa que não me convidaram. Ela precisa se testar. Precisa acreditar que é invulnerável. Sabe,
porém, que a sua vulnerabilidade é a minha dependência: ela quer ser penetrada e isto depende de mim. E
eu estou seguro. Sei que não falharei pois a mulher nua sob os lençóis sabe que sofre e isso não a impede
de querer ser penetrada; ela sabe que eu tenho tentado participar e isso não a impede de querer ser
penetrada; ela sabe que eu não sou forte e talentoso e ainda assim quer ser penetrada; ela sabe que eu não
lhe darei presentes, não farei dela uma lady e ainda assim quer. Ela quer o homem que sofre mas que vai
possuí-la, e por isso espera.
Risco um fósforo e acendo a vela. Tiro o pijama e deito-me na cama. Ela olha para mim como
uma cadelinha assustada. Uma cadelinha que eu criei quando era menino. Levantava a mão fingindo que
a espancaria e o animalzinho encolhia-se todo para em seguida abrir os olhos tranqüilos ao ver que a
pancada transformara-se num afago no meio do caminho. A moça sabe que passarei a palma grande da
minha mão sobre o seu corpo com toda a ternura que eu encontrar e sei que me sobrou alguma para essas
ocasiões vitais. Ela acende o cigarro e em seguida apaga a vela. Isso faz parte da encenação. Ela vira-se
de costas. Encolhida aguarda o sacrifício. Dá duas tímidas tragadas e apaga um cigarro contra o cinzeiro
enquanto que acende o outro contra a sua mão pequena que mal consegue agasalhá-lo. Passo uma das
minhas mãos por uma das suas coxas. Sinto um ser humano. Um ser humano que antes de entrar aqui
poderia ter escamas ou placas metálicas. Antes de $ntrar aqui poderia estar com a boca cheia do barro
fétido do pântano social. Mas que agora é mulher. E gosta de ser mulher. E eu gosto do bicho-mulher-nu.
Minha língua toca levemente a ponta de um dos seus seios, um pouco mais que adolescentes. A mulher é
irmã da terra. Ao contato dos meus lábios a terra-mulher vive, existe. De seu interior pequenos pontos
entram em erupção e afloram à pele tal qual um canteiro de flores entre seus seios. Meus lábios acordam
um vento preguiçoso que dormia dentro da terra-mulher e que agora levanta os pêlos das coxas. Os finos
pêlos das suas coxas brincam ao vento como um trigal em fresca noite de verão. A terra prepara-se para
ser semeada. Longe dos juizes, dos javalis, dos autômatos, eu e a mulher existimos fora do mundo real.
Mergulhados no mundo verdadeiro. Neste tempo que vivi organizei um arquivo. Estranho a mim, talvez,
mas não à vida. Ele está localizado numa ilha que não sei situar mas que conheço de cor. Neste tempo que
vivi tentei com mãos, prego, formão, sorriso, lágrima, martelo e um certo sofrimento, quase sempre
despercebido, dar estética ao vazio. E você surgiu sem dizer palavra. E nem precisava. Você bastou
aparecer. O tempo que vivi não cabe neste curto espaço etemo que vivemos. A dura retrospectiva você
venceu com o olhar. Juntos, agora, afogamos a ilha e assistimos ao naufrágio das palavras. Não preciso
delas para te testemunhar. Dentro de ti quero esquecer que amanhã ou daqui a pouco a ilha voltará para o
seu lugar e um horizonte de máquinas e leis nos separará novamente. Daqui a pouco, eu sei, me faltará
força e talento para te convencer a atravessar comigo este horizonte. Silêncio, amor. Não pense.
Trinta e Cinco
O tempo deve ser um grande mestre. Ontem, entretanto, quase matou este seu aluno. De qualquer
forma, sobrevivi a ele. A moça foi embora mais ou menos à meia-noite e prometeu voltar hoje. Deixou
comigo algum dinheiro para que eu pudesse tomar café ao acordar e apanhar condução. Mas, se eu não
pedisse, ela não me daria o dinheiro. Senti-me prostituto ao olhar para o olhar da moça. Sei que ela não
gostou que eu lhe pedisse dinheiro. O dinheiro não lhe faz falta mas tenho certeza de que naquele
momento ela sentiu-se explorada. Mas por que pensa ela que eu sofro? Para fazê-la feliz? Para que ela
possa sentir-se uma amparadora dos aflitos? Acho isso tudo muito engraçado: eu pude desfazer com um
beijo nos seios séculos de convenções pudicas tropicalmente enraizadas; pude penetrar no que de mais
íntimo ela possui e isso não fez de mim um homem menor. Pedir-lhe dinheiro para apanhar um ônibus,
porém, é um crime. É mais forte do que ela e faz de mim, subitamente, um homem que não venceu. A
ilha emerge e se coloca sólida como aço diante do homem e da mulher. Ela nada disse mas há outras
formas de comunicação além das palavras. Voltou o velho cadáver aos olhos de outra moça. Cadáver que
só morrerá quando ela sentir vontade de foder novamente. Depois do coito, ele ressuscitará. Mas ontem,
quando ela estava acordada junto com o mundo; ontem, ao pensar na festa que a esperava em casa, não
havia como explicar-lhe. Não havia como dizer-lhe que sem dinheiro eu não tenho possibilidades para
viver a não-vida que é necessário viver e que o mundo espera que eu viva. Só há uma forma de
transformar-me numa máquina com alguns momentos de remorsos antecipados que já pressinto e que
saberei como curar ao atingir a posição humana: ter dinheiro. Sem sabão, como tomar banho? Sem
dinheiro, como comprar sabão? Sem banho como passar normalmente despercebido? A fita da minha
máquina está cheia de furos. Assim não posso trabalhar. Sem dinheiro, como comprar outra fita para
escrever? Para procurar emprego, preciso de uma camisa limpa. Eu entreguei todas à lavadeira. Sem
dinheiro, como fazer com que ela as devolva? Quero fazer com que a minha mulher tenha orgulho de
mim. Sem dinheiro, como comprar orgulho para ela? Sem dinheiro, como comprar presente para o meu
filho? Sem presente para meu filho, como arrancar um sorriso da minha mulher? Como comprar a
confiança? Preciso procurar um emprego e para tanto preciso apanhar um ônibus. Sem dinheiro, como
apanhar um ônibus? Como falar, como comer, como dormir, como fumar, como andar, como beber, como
pedir, como amar, sem dinheiro?
Mas é preciso viver o momento que passará — isso eu sei por experiências anteriores — tão
rapidamente quanto o dinheiro no meu bolso. O mundo já se aproxima e eu preciso entrar dentro dele.
Estou cretinamente conformado, por enquanto. Já não sinto as pessoas que se aproximam diferentes.
Estou, eu também, automatizado ou terão elas se humanizado? Nós todos temos dinheiro. O porteiro sorri
quando lhe devolvo o que pedi há dias: dinheiro. O dono do botequim, também sorri ao ver o dinheiro.
Vou fabricando sorrisos e ao entrar numa loja de brinquedos para crianças, faço a moça da caixa sorrir ao
lhe exibir a mágica: dinheiro. Compro um boneco de borracha que possui um peso nos pés, o que faz com
que, embora soqueado, empurrado, jogado para o alto, ele permaneça de pé, ele caia de pé: João Teimoso
é o seu nome. Para espanto do dono da loja e para a sua repentina desconfiança, converso com ele. Digo-
lhe que faz calor e ele concorda. Diz que ouviu no rádio que o calor continuará por um bom tempo.
Pergunto para ele como vão os negócios. Ele diz que com a política atual vão muito mal. Os impostos
estão altos. E eu concordo com ele. Digo-lhe que tenho um filho e ele responde que também tem um, mas
já crescido: está estudando engenharia. Eu digo que o país precisa de bons engenheiros e ele concorda
comigo e fala-me do último treino da seleção de futebol: trocamos alguns palpites. Convido-o para
tomar um chope comigo na esquina, mas ele diz que não pode pois tem que atender os fregueses. Digo
que ele pode morrer de uma hora para outra, ter um enfarte ou sabe-se lá que outra doença e que,
portanto, é melhor tomar um chope antes. Ele pensa que estou brincando e começa a falar de doenças. Diz
que a sua mulher teve que fazer uma operação. Negócios de mulher, sabe como é? — pergunta ele. Eu
digo que sei. De repente — como que impelido por um destino só dele — diz que eu fiz uma ótima
compra. O João Teimoso é muito bom e barato. .. e que fiz bem em comprar agora, pois no mês que vem
vai aumentar, o fabricante já disse. Olho para o João Teimoso: é um brinquedo interessante. Foi fabricado
para levar porradas e tem um sorriso na cara, apesar delas. Não cai nunca no chão, está sempre de pé e
sorrindo sempre. O homem pergunta se quero que ele embrulhe o presente. Digo que não precisa e saio da
loja desejando melhoras para a mulher do comerciante. Aliás, saímos sorrindo, eu e o João Teimoso.
Trinta e Seis
Eu e João Teimoso vamos sorrindo pela rua movimentada. Minha mulher, certamente, já voltou da
maternidade e está em casa dos pais. Esperam-me no emprego onde sou pago para tornar o mundo mais
agradável: o automóvel X roda macio; o leite em pó Y desmancha sem bater; lembre-se do dia das mães.
Pagam mal por essas mentiras mas há quem lucre com elas. Estou falando de dinheiro. Há quem fabrique
placa de automóveis; há quem fabrique bisturis para arrancar tumores dos seios; há quem fabrique raios
de bicicleta; há quem fabrique rosas de papel; há quem construa apartamentos; há quem fabrique pilhas
de rádio e aparelhos de televisão. Eu burocrata sedentário estou alheio, sinto-me imprestável neste mundo
de fabricantes. E agora, que a caricatura das pessoas que andam à minha volta parece-me mais razoável?
Devo ir ao emprego mentir ou ver o meu filho que nasceu há dias e tentar mentir-lhe também? Tal qual o
João Teimoso embaixo do meu braço, fabrico um sorriso na cara e vou sorrindo para os meus
semelhantes que devo amar como a mim mesmo. Um ou outro sorri, também. Mas no meio do caminho
me descobrem. No meio do caminho, deixam de acreditar no meu sorriso. Junto a um cinema está uma
mulher com um véu preto sobre o rosto. Em verdade não é um véu. E uma espécie de saco preto com três
buracos para os olhos e a boca. Sei que ela não é feia mas sei, também, que devo afastar-me; devo correr.
Não consigo, entretanto. Ela se aproxima e tira a máscara. Há manchas marrons no seu rosto. Ela sorri e
pergunta de onde roubei o boneco, o brinquedo, o João Teimoso. Tento explicar-lhe que não roubei nada;
que recebi dinheiro emprestado e comprei o brinquedo para o meu filho que nasceu, numa loja há duas
quadras e que o dono da loja falou-me, inclusive, que a sua mulher havia sido operada de uma doença de
mulher. Mas a mulher de manchas marrons sobre o rosto sorri um sorriso cúmplice. Insiste em afirmar
que eu roubei o brinquedo e aproxima o seu rosto do meu. Sobre o marrom, agora, nascem pequenas
estrias vermelhas. Afasto o meu rosto e ela apanha o João Teimoso e tenta tirá-lo debaixo do meu braço.
Eu prendo o brinquedo insistentemente e tento fazê-la compreender:
- Minha senhora, por favor, eu não roubei. Minto:
- Eu sou um jornalista conhecido. Muitas pessoas podem depor a meu favor. Eu seria incapaz de
roubá-lo.
Imploro:
- Cuidado que o brinquedo é de borracha. Se a senhora apertá-lo muito, ele estoura.
A multidão fecha o cerco em torno de nós. A mulher aperta o brinquedo com as mãos. Seguro-lhe
o pulso, tentando afastá-la, mas creio que uso muita força, pois sinto a sua carne desmanchar-se entre os
meus dedos. Horrorizado, olho para a minha mão e verifico que alguns pedaços de carne estão presos a
ela. A mulher não grita. Não sente dor. Ela, simplesmente, ri muito alto, enquanto me denuncia à
multidão:
- Ele é um ladrão. Roubou o brinquedo.
Eu ainda tento explicar. Tento encontrar compreensão nas centenas de olhos que se aproximam.
Olho para as árvores onde os passarinhos cantam uma canção que diz que a terra está ficando quente
demais; que devemos todos emigrar para um lugar mais frio.
- Meus senhores, francamente, olhem como estou vestido? Eu, por acaso, tenho cara de ladrão?
Vocês sabem com quem estão falando? Olhem para mim, eu sou um homem normal. Eu não tenho
necessidade de mentir. Afinal de contas, para que eu roubaria este brinquedo? Eu sou adulto.
Diante dessa minha afirmativa, todos riem muito. Em seguida rasgam a carne dos seus próprios
corpos e começam a jogar pedaços contra mim. Jogam-me pedaços de rosto, de mão, de braços, de seios.
Neste momento, passa na rua um caminhão com um alto-falante, anunciando uma liquidação numa loja
distante um ou dois quarteirões e a multidão se acalma. Uma criança magra e loura atravessa a multidão
de pés descalços. Segura-me pela mão, enquanto a multidão se distrai com as vantagens anunciadas pelo
alto-falante. O caminhão é dirigido por um robô, enquanto que um enorme e gordo boneco de celulóide
fala ao microfone. A camisa do menino está remendada e ele usa calças curtas com um suspensório que
sua mãe fez para ele. Traz a tiracolo uma espécie de mochila onde guarda o seu lanche escolar.
Caminhamos depressa e o menino, sem dizer palavra, indica-me uma escada. Mas a desgraçada da escada
é pequena. E uma escada de criança. Como posso subir nela? E depois o que adianta uma escada se não
temos onde encostá-la. Começo a correr. Tenho medo de olhar para trás. Atrás está o mundo. Na frente,
também, mas deve haver um caminho. Quero gritar mas não sei o que dizer. Há alguma coisa para ser dita
mas sempre que abro a boca saem dos meus lábios apenas grunhidos que eu mesmo não entendo. A
multidão, agora, está na minha frente. Atacam-me por dois lados: reconheço deputados, médicos,
banqueiros, ministros, embaixadores, o porteiro do meu prédio, o simpático dono da loja, cuja mulher foi
operada de um negócio de mulher, a moça que dormiu comigo ainda ontem e todos arrancam pedaços de
carne e jogam contra mim, enquanto riem e gritam que eu sou um ladrão. O menino indica-me uma
pequena rua que nunca vi e em seguida faz com que eu o ajude a abrir a tampa de ferro de um bueiro.
Enquanto pulo para dentro do bueiro olho os olhos do menino, que parecem querer dizer-me alguma
coisa. Digo para ele muito obrigado e pergunto o seu nome. Ele, entretanto, abre a boca e mostra-me que
não possui língua. Passa-me a mão pelo rosto e afasta-se chorando.
Dentro do bueiro os ratos e as baratas parecem não ligar à minha indiscreta presença. Ficarei aqui
até que a multidão se acalme. Depois irei ver o meu filho. De qualquer maneira, não conseguiram tirar-me
o João Teimoso.
Trinta e Sete
A multidão descarnada corre sobre a minha cabeça. Há, porém, uma calçada a proteger minha
cabeça dos pés da multidão. Pouco há para fazer agora. E preciso aprender a esperar. Já tremem meus
ossos e aqui dentro do esgoto está escuro. O medo ajudado pelo frio e mais os pingos de água suja que
caem sobre mim, vindos talvez do barro que a chuva liquefez na calçada não permitem que pare o tremor.
Meu filho também deve estar com frio — penso — pois o tempo que vivemos é muito traiçoeiro. A gente
pensa que vai fazer calor e chove. Mas — quem sabe? — quando eu me dispuser a sair daqui, já terá
passado a raiva da multidão? Quem sabe aqueles que me perseguiam ainda há pouco já terão voltado para
os seus lares ou para os seus negócios? Quem sabe haverá sol depois da calçada ou mesmo uma mulher e
um país? Preciso ter um pouco de calma e aguardar e desta vez aproveitar o tempo; usar o tempo. É uma
pena que aqui embaixo esteja tão escuro, pois, caso contrário, eu poderia ver o meu rosto refletido em
alguma poça d'água. Eu poderia treinar os mais diversos sorrisos e — assim — quando eu subisse de
novo, certamente não me deixaria trair. Se não fosse tão escuro, eu poderia, até mesmo, desenhar um
sorriso sobre o rosto. Assim ninguém se zangaria comigo. Mas, por enquanto, aguardo, pois falta-me
coragem para botar o rosto para fora do esgoto.
O menino andava por cima da vida e a cada passo que dava mais a vida lhe batia. Andando sem
parar o menino se informava: quando chegaria o dia dele poder descansar? Ninguém dizia ao menino
onde encontrar seu destino. Às vezes o sangue indicava uma estrada. Às vezes o riso mostrava um
caminho. Mas os mapas mudos eram todos inúteis. As setas de hoje mostravam apenas o caminho de
ontem. Às vezes buscava disfarce de flor, de pedra, de nuvem, de limo, vapor. E assim se deixava ficar a
esperar, mas logo a vida o vinha acordar.
Meu filho deve estar dormindo e é preciso encontrar um caminho para ele. Um caminho que eu
ainda não tenha trilhado. Acendo um fósforo. O túnel é comprido. Mas por que fizeram isso comigo?
Minha roupa está toda salpicada de barro. A roupa que eu vesti hoje com tanto cuidado. O que é que a
minha mulher vai dizer quando me ver desse jeito? Como é que eu vou explicar a ela que andei pelos
esgotos da cidade em pleno dia? Como ela poderá confiar em mim novamente se eu aparecer nesses
trajes? Mas há uma poça d'água aos meus pés. Molho o lenço para passar sobre o meu terno mas a água
está cheia de excrementos. Preciso ir embora daqui e tratar de inventar uma desculpa qualquer antes de
chegar à casa da minha mulher. Quem sabe lá, apesar do seu olhar acusador, eu estarei seguro? A
multidão talvez tenha desistido de me caçar. Talvez já tenham falado com o dono da loja. Talvez ele haja
explicado tudo; que tudo não passou de um equívoco; que eu paguei pelo João Teimoso e nem tentei
regatear? Mas será que, por azar, o dinheiro com que paguei era falso? Não. Não pode ser. A moça, a
terra-mulher, não me trairia. Ela não me emprestaria dinheiro falso. Ah, que este cheiro aqui embaixo
sufoca. Preciso encontrar o ralo que vai dar na calçada. Preciso sair. Encontro, finalmente, uma escada de
ferro. Subo os degraus e só paro quando as minhas mãos encontram o tampo do bueiro. Mas não! 0 tampo
não abre mais. Eles o soldaram contra a calçada. Eu nunca mais poderei sair daqui. Nunca mais. Abro as
duas mãos e bato violentamente com elas no meu rosto. É preciso descobrir a calma. É preciso vencer o
medo, caso contrário estarei perdido. Caso contrário sairei correndo, possesso, por este esgoto, cairei no
chão e sujarei a minha roupa. Poderei, até mesmo, furar o João Teimoso, e qual o pai que ousa aparecer
diante do filho recém-nascido sem um presente? Eles jamais me perdoariam. Relaxo os músculos, uma
vez que não posso relaxar o mundo. Preciso encontrar outra saída e isso requer calma. Calma. É preciso
tratar a calma com cuidado. Senão ela pode explodir. É preciso ajustar os ponteiros para evitar que eles
arranhem os nervos. Acendo outro fósforo e começo a investigar o labirinto. Nós somos todos do jardim
da infância, crianças lindas da cabeça aos pés. As paredes são escorregadias e o chão do esgoto também.
Mas — descubro espantado — a prefeitura desta cidade tem cada uma? Ao longe vislumbro uma casa.
Uma casa de madeira de dois pavimentos dentro do esgoto. Deve ser para os operários — penso. Vou me
aproximando. Apesar da sujeira, dos excrementos e dos ratos e das baratas, não há uma só mancha sobre a
casa, imaculada. Ela é branca com riscas azuis e mesmo daqui posso ver a lareira, a poltrona e alguns
livros. Quem sabe esqueceram-se da casa? Quem sabe, poderei entrar, tomar um banho, vestir uma roupa
nova e depois avisar a minha mulher e ao meu filho de que já tenho uma casa? Poderei mesmo escrever
em paz. Poderei editar um livro que será traduzido em várias línguas e terei — finalmente — uma
profissão. Ainda estou longe da casa e tenho certeza de que já a vi antes. Mas isso é ridículo. Na medida
em que me aproximo da casa, ela se distancia. Meus pés estão sujos e cansados. Mas não, agora está
perto. O telhado é de telhas vermelhas e — apesar da escuridão — o sol bate sobre ela. Vamos, João
Teimoso, mais um pouco e chegaremos lá. Mais um pouco, vamos. Estou me arrastando e os ratos riem,
as baratas voam. Nós somos todos do jardim de infância, crianças lindas da cabeça aos pés. Mas está
acontecendo um fato terrível. A casa, agora, não se distancia mais, ao invés de crescer na medida em que
me aproximo, ela diminui. Ela sabe que eu estou indo e diminui. Resvalo numa poça d'agua e caio
violentamente no chão. E preciso, porém, não surpreender a casa, João Teimoso. Vou me arrastando de
gatinhas, mas ela continua diminuindo. Já posso tocá-la, mas sou maior do que ela. Mas ainda posso
passar a cabeça pela porta e ver que os móveis são de brinquedo. A casa também é de brinquedo. Consigo
fazer com que João Teimoso atravesse a porta da minha casa de brinquedo. Eu não caibo todo dentro
dela. Mas quem disse que é preciso caber inteiro dentro da casa? Basta que uma parte do meu corpo esteja
dentro dela. Estou muito cansado para me preocupar com um assunto tão sem importância. Com a cabeça
dentro da casa e a cabeça do João Teimoso esmagada contra o meu rosto, chorando para o seu sorriso, sou
apanhado pelo sono. Amanhã acharei uma saída. Os ratos mordem as minhas pernas mas nem isso mais
eu sinto. Vou ver se durmo um pouco e amanhã, depois de ver o meu filho que nasceu há dias, vou tratar
de arranjar um emprego. O importante é que aqui, apesar de tudo, ninguém me descobrirá.
:::: F I M