Microsoft Word Flora Kidd O Renato(1)

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O ÚLTIMO VERÃO

(The Arranged Marriage)

Flora Kidd

Da janela de seu apartamento Roselle avistava o Rio Sena que,

iluminado pelos últimos reflexos do sol da tarde, serpenteava ao longo
de Paris, como um cálido raio de luz. A beleza do momento tocava seu
coração, pesado de incertezas. A carreira de bailarina tinha sido sempre
seu grande objetivo, sua alegria suprema. E agora, exatamente agora
que ela começava a amadurecer, e ganhar papéis principais, sua alma
parecia fugir, presa em novas emoções. Roselle agora só pensava em
Leon Chauvigny, no verão que haviam passado juntos e no amor que ele
lhe despertou. Mas Leon estava longe, esquecido dela...

Copyright: FLORA KIDD
Título original: "THE ARRANGED MARRIAGE'
Publicado originalmente em 1980 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra

Tradução: MARCELO CORÇÃO

Copyright para a língua portuguesa: 1981
EDITORA EDIBOLSO LTDA. — São Paulo
Uma empresa do GRUPO ABRIL

Composto e impresso nas oficinas da
ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL
Foto da capa: AMEUROPRESS

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CAPITULO I

O restaurante era uma das casas mais antigas e renomadas de

Paris.

Situado no Quai de la Tournelle, tinha janelas grandes que davam

para o Sena e, por trás das cortinas leves de voile havia outras mais
pesadas, de veludo grená, presas dos lados. O mesmo tecido cobria as
cadeiras estofadas que estavam cuidadosamente arrumadas em volta das
mesas cobertas com toalhas brilhantes de damasco. Todos os pratos
tinham filetes dourados com o emblema da casa. As taças de champanhe,
bem como os copos de vinho, eram de cristal.

Numa das mesas de canto, ao lado da janela de onde se avistava os

campanários da igreja de Notre Dame, duas pessoas estavam almoçando,
uma diante da outra. Três garçons vestidos de calça preta e casaco branco
de brim aguardavam discretamente perto dali, até o momento em que o
vinho foi servido e provado. Em seguida, retiraram-se silenciosamente
para o canto do salão.

Roselle apanhou a fatia de pão que estava na cestinha de vime,

passou manteiga e levou-a a boca com um gesto educado. O pão estava
fresco e macio como uma bolacha.

Pequena e delicada, com os ossos do pescoço aparecendo por baixo

da pele esticada. Roselle dava a impressão de alguém que comia como um
passarinho. Entretanto, quando o garçom lhe serviu o pato assado, ela
comeu-o com um apetite de leão.

Adrian estava sentado na cadeira em frente e observava-a com um

prazer evidente.

— Eu não entendo como você come com tanto apetite e é magra

desse jeito.

Roselle colocou o garfo e a faca em cima do prato. Levantou em

seguida os olhos para ele, olhos enormes, muito verdes, que davam a
impressão de serenidade por baixo das pestanas compridas.

— Eu consumo muita energia na dança e necessito de uma

alimentação rica em calorias.

— Em outras palavras, você queima tudo o que come — comentou

Adrian com um sorriso de indulgência.

— Exatamente — concordou Roselle, estendendo a mão para

segurar o copo de vinho. — Que delícia! Você pediu champanhe! Até
parece que estamos comemorando uma data importante.

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— Sua estréia em Giselle é uma data importante — disse Adrian,

levando a taça aos lábios. — Você estava maravilhosa ontem à noite e eu
fiquei muito contente de ter ido ao teatro. Foi um espetáculo inesquecível.

— Muito obrigada. Eu vinha sonhando com este papel desde que

tomei as primeiras aulas de balé. Só fiquei triste por tomar o lugar de
outra garota.

— De quem?

— Estou substituindo temporariamente Anya Merimée, a primeira

bailarina da companhia, que é solista. Ela torceu o pé e está de cama. Em
geral, eu danço no corpo do baile, não faço solos. Espero que Anya possa
reiniciar suas atividades muito em breve.

— Foi sério, o acidente?

— Ela sofreu uma pequena fratura no pé. Seria terrível se ela não

pudesse voltar a dançar. Anya é uma excelente bailarina e René disse que
um dia ela poderá ser tão grande quanto Margot Fonteyn.

— E o que René disse a seu respeito? — perguntou Adrian,

levantando a garrafa de champanhe do balde de gelo e servindo as duas
taças. — Ele não pode deixar que você retorne ao corpo do baile depois de
sua interpretação de ontem à noite como solista. O público delirou durante
a cena da loucura.

— Verdade? — perguntou Roselle com os olhos brilhantes.

— Até parecia que você tinha experimentado na pele a dor da

traição.

Adrian observou-a atentamente, desfrutando a reação que estava

visível nos olhos verdes.

— Quem sabe se eu não experimentei?

— Você está falando sério? — insistiu Adrian com a testa franzida.

— Não, estava brincando — disse Roselle com um sorriso misterioso,

abaixando o copo. — René disse que vai me dar alguns papéis principais
nos próximos balés. Mas isso só no ano que vem. Antes disso eu vou tirar
umas férias...

— Você está precisando descansar um pouco.

— Se estou! Este fim de ano foi uma correria medonha.

— Quantos dias você vai ter de férias?

— Um mês inteirinho, só para mim, sem ter obrigação de espécie

alguma! — exclamou Roselle, recostando-se no espaldar da cadeira e
atirando os braços para cima, num gesto expressivo de liberdade. Como

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se antecipasse os programas que faria durante as férias. — Você já
imaginou?

— Aonde você vai?

Uma leve nuvem de melancolia encobriu momentaneamente a

fisionomia alegre.

— Não sei ainda. Talvez vá viajar.

Roselle não tinha nenhum conhecido que pudesse visitar, a não ser

um parente distante, que não lhe inspirava nenhuma curiosidade.

— Você não quer passar alguns dias comigo na Riviera?

Roselle levantou a cabeça repentinamente e encarou Adrian de olhos

arregalados. Os cabelos louros, que ela estava usando soltos, caídos em
cima dos ombros, refletiram a luz dourada do dia.

— Você está falando sério? Olha que eu vou, hein!

— Eu gostaria muito que você fosse.

— Tem mais alguém na casa?

— Meu pai mora lá o ano inteiro. Minha mãe também vai passar

alguns dias lá. Sem falar no resto da família. Possivelmente minha irmã
apareça com os filhos. — Adrian fitou-a com o rosto sério. — Eu gostaria
muito que você conhecesse minha família. Foi por isso, aliás, que eu fiz
esta viagem a Paris.

Roselle franziu a testa, como se tivesse adivinhado, na fração de

segundo que durou a interrupção, o que vinha em seguida.

— Para me fazer este convite? — perguntou em voz baixa.

— É. E também para apresentá-la em casa como minha futura

esposa.

Ela previa, de uns tempos para cá, que ouviria mais dia menos dia

aquela proposta da parte de Adrian. Era natural que um homem na idade
dele, rico, que ocupava uma posição invejável na sociedade, tivesse
segundas intenção quando decidiu acompanhar uma dançarina de balé por
diversos países da Europa durante a temporada. A única dúvida que
Roselle tinha era quanto ao tipo de relacionamento que Adrian ia propor.
Ela supunha que seria algo menos formal que o casamento.

— Você está me pedindo em casamento? — perguntou com

ingenuidade, a fim de ganhar tempo, quebrando a cabeça para encontrar
uma maneira de explicar a situação a Adrian sem magoá-lo inutilmente.

— Esta seria a maneira mais correta de vivermos juntos —

respondeu Adrian com naturalidade. — Eu sei que sou bem mais velho
que você, que podia ser seu pai, inclusive, mas isto não impede que

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tenhamos um relacionamento harmonioso. Você tem uma profissão que é
a sua paixão. Eu tenho a experiência de muitos anos de vida. Creio que
podemos nos entender perfeitamente bem. Além disso, se você casar
comigo, eu posso lhe dar um tipo de segurança e de conforto que você
dificilmente teria com um rapaz mais moço, que esteja começando a
ganhar a vida agora.

Isso era verdade. Adrian tinha sido de uma generosidade a toda

prova com Roselle. Convidava-a freqüentemente para jantar fora,
mandava-lhe maços de flores para enfeitar a casa, levava-a ao teatro, ao
cinema, às corridas...

Um

dos

garçons

aproximou-se

da

mesa

e

interrompeu

momentaneamente a conversa. Outro aproveitou o intervalo e perguntou
o que queriam para a sobremesa. Roselle hesitou alguns segundos antes
de pedir uma salada de frutas. Ela teria preferido uma musse de
chocolate, mas não queria abusar das calorias. Adrian serviu mais
champanhe nas duas taças e inclinou-se sobre a mesa, fitando-a com
insistência.

— Pense nisso, Roselle. Você não terá que se preocupar com

dinheiro o resto da vida. Não terá mais que morar em apartamentos
minúsculos, nem passará a vida inteira no anonimato do corpo do balé.
Você poderá escolher seus papéis favoritos e só dançará as partes que
forem do seu agrado. E quem sabe se não poderá ter uma companhia
própria? Eu guardei algumas economias para uma eventualidade desse
tipo...

Roselle enxergou as águas límpidas do Sena correndo suavemente

por entre a vegetação exuberante do verão. As árvores do cais e as torres
da igreja de Notre Dame refletiam-se na superfície polida do rio. Fixou
com atenção a paisagem ensolarada, como se esperasse uma inspiração
para a resposta que devia dar ao homem que a observava atentamente do
outro lado da mesa.

A proposta era tentadora, sem dúvida alguma. A verdade é que ela

estava cansada das correrias freqüentes com a companhia de balé pelos
países da Europa. Desejava levar uma existência mais sossegada. Se
casasse com Adrian, podia escolher o trabalho que lhe agradasse. O
casamento no seu caso resolvia uma série de probleminhas que lhe
pareciam insolúveis no momento. Mesmo assim...

Voltou lentamente à cabeça na direção de Adrian. A luz crua do dia

não favorecia as feições do homem à sua frente. Punha a descoberto os
cabelos grisalhos, as rugas, as peles soltas do pescoço. Havia marcas de
idade em volta dos olhos, ao redor da boca. Adrian podia ser seu pai.
Aliás, se seu pai fosse vivo, teria exatamente a idade dele.

Foi por essa razão, inclusive, que Roselle simpatizou imediatamente

com Adrian quando os dois se conheceram. Ele era uma figura paterna.
Lembrava a presença concreta do pai que perdera na infância. Mas isso
não era motivo para casar-se com ele!

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— Você não está muito convencida — comentou Adrian após uma

pausa que se prolongava incomodamente. — Você acha que eu sou muito
velho?

— Não, não é isso — murmurou Roselle. — Eu preciso pensar com

calma.

Roselle estendeu a mão e levou a taça de champanhe aos lábios.

Talvez o vinho borbulhante lhe desse a coragem que necessitava para
contar a verdade.

— Há mais alguém?

Roselle abaixou a cabeça sem jeito.

— Claro que há! — exclamou Adrian com uma risada de homem do

mundo. — Por que eu não pensei nisso antes? Qual é a mulher jovem e
bonita que não tem um namorado?

Roselle levantou a cabeça com vivacidade, como se tivesse tomado

coragem de repente.

— Eu preciso contar uma coisa a você. Talvez você mude de idéia.

Adrian arregalou os olhos com um sorriso de condescendência.

— Que segredo é esse que você vai me confessar? Agora eu fiquei

curioso...

— Eu sou casada.

Ele empalideceu repentinamente e piscou várias vezes.

— Casada? — perguntou com a voz engasgada. — Por que você não

me falou antes?

Era a segunda vez que Roselle apelava para o casamento com Leon

a fim de se livrar de uma situação difícil.

O garçom trouxe o café e a conversa foi interrompida durante

alguns minutos.

— Por que você não usa aliança? — perguntou Adrian, depois que o

garçom se retirou.

— Eu não uso por razões profissionais.

— E foi por esse mesmo motivo que você adotou seu nome de

solteira?

— Foi.

Adrian estava evidentemente magoado com a confissão inesperada

de Roselle, mas procurava manter a linha.

— Qual é o seu nome de casada?

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— Chauvigny.

— Ah, seu marido é francês... Há quanto tempo vocês estão

casados?

— Vai fazer cinco anos.

— Você era uma criança quando casou!

— Eu tinha dezoito anos.

— Aos dezoito anos, ninguém pensa seriamente na vida. Nessa

idade as pessoas vivem mudando de idéias... Os entusiasmos nascem e
morrem em questão de semanas, de dias... Você gostava muito dele?

— Não fui eu que decidi.

— Ah, não? Quem foi então? Sua mãe?

— Minha madrinha.

— Olga Valenska?

— É. Eu já falei com você a respeito dela.

Adrian estalou os dedos.

— Ah, sim, eu me lembro. Olga era uma dançarina russa que veio

morar em Paris antes da guerra. Ela se apresentou durante alguns anos
na Companhia da Ópera de Paris e mais tarde no Balé Real de Londres.

— Ela tinha uma escola de dança em Paris e foi lá que eu aprendi

balé.

— Estou lembrado. Olga tomou-a sob sua proteção depois que seus

pais morreram num acidente aéreo, não foi?

— Exatamente. Eu fui morar com ela em Paris.

— Que idade você tinha?

— Nove anos.

— Você tinha parentes na Inglaterra?

— Tinha, mas nenhum deles estava interessado no meu futuro e

nenhum deles foi tão bom comigo quanto minha madrinha. Ela foi
realmente uma mãe para mim. Meus pais não deixaram nada ao morrer.
Olga pagou meu colégio e fez tudo por mim...

Adrian terminou de tomar o café e limpou a boca no guardanapo.

— E com isso você ficou devendo muitos favores à sua madrinha.

— Pois é.

— E quando ela propôs o casamento você aceitou por gratidão...

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— Não foi bem assim — corrigiu Roselle, procurando lembrar-se do

que acontecera há cinco anos, quando Olga anunciou um dia, à mesa do
jantar, que León desejava pedi-la em casamento, mas não sabia qual
seria sua resposta. — Eu aceitei voluntariamente o casamento. Não fui
forçada por ninguém.

— Como ele se chama?

— Quem? — perguntou Roselle, distraída. Ela continuava com a

atenção voltada para o passado.

— Seu marido.

— León. Ele estava muito doente no dia do casamento. Tinha

contraído malária na África.

— Na África? — perguntou Adrian, espantado. — O que ele estava

fazendo na África?

— Era soldado.

— Soldado? — exclamou Adrian, sem conter mais tempo sua

perplexidade. A narrativa estava começando a bulir com seus nervos e
sua pose de homem do mundo sofria com isso. — Soldado mercenário,
certamente?

— É. Soldado mercenário. Ao terminar os estudos e prestar o

serviço militar, León teve dificuldade em arrumar emprego na França.

Aceitou por isso a proposta que lhe fizeram de ir lutar na África, na

condição de soldado mercenário. Naquela época eu não dei nenhuma
importância ao fato. Para mim, León era um conhecido que vinha de longe
e que contava histórias fantásticas sobre a África.

Roselle voltou à cabeça em direção à janela e lembrou-se das visitas

repentinas de León, o rapaz belo e misterioso por quem se apaixonara
desde o primeiro dia em que o viu.

— Quer dizer que vocês se conheciam há muito tempo?

— Eu conheço León desde os nove anos de idade. Ele também

perdeu os pais quando pequeno e foi morar com a avó.

— Com Olga Valenska?

— É. Ela tinha adoração pelo neto. Quando ela me perguntou se eu

queria casar com León, eu não hesitei um segundo. Aceitei na hora.

— Na casa de Olga?

— Foi. León estava de cama, com quarenta graus de febre.

— A cerimônia foi legal? — perguntou Adrian, mexendo-se com

nervosismo na cadeira.

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— Claro! Nós assinamos a certidão diante de testemunhas.

— León tinha consciência do que estava fazendo?

Roselle voltou novamente à cabeça em direção à janela. Uma brisa

leve enrugava a água tranqüila do rio. O campanário da igreja de Notre
Dame parecia fragmentado em mil pedacinhos na superfície levemente
enrugada.

No dia do casamento, León estava com a barba crescida e balançava

a cabeça de um lado para o outro, de olhos fechados, a testa pegando
fogo.

— Segure a mão dele, Roselle — disse Olga em dado momento, ao

perceber que León se recusava a abrir os olhos. — Fale com ele, minha
filha. Convença-o a repetir o que nós estamos dizendo.

Roselle apertou a mão magra na sua e sentiu a palma úmida. Ela

estava ajoelhada ao pé da cama.

— Por favor, León, abra os olhos. Olhe para mim.

As pálpebras pesadas abriram-se lentamente e os olhos febris a

fixaram, atentos. Um leve sorriso esboçou-se nos lábios.

— Roselle. Ma petite Roselle. Quando você vai crescer, menina?

— Eu sou uma moça, León — murmurou Roselle no ouvido dele. —

Diga ao padre que você quer casar comigo.

— Quem falou que eu quero?

— Sua avó falou.

A testa dele tinha uma ruga comprida que a atravessava de lado a

lado. As olheiras fundas davam um ar sombrio à fisionomia abatida.

León murmurou algo incompreensível e tornou a fechar os olhos.

— León, diga que você quer casar comigo! — insistiu Roselle.

Olga acompanhava a cena com expressão aflita.

León abriu os olhos de repente e encarou o padre que aguardava

uma resposta ao pé da cama.

— Eu quero — disse ele com firmeza.

A partir deste momento, ele respondeu a todas as perguntas com

voz clara. O padre deu por encerrada a cerimônia.

Roselle deu um suspiro e voltou à atenção para a mesa. Adrian a

observava em silêncio, como se quisesse adivinhar os pensamentos que
lhe passavam pela cabeça.

— León sabia o que estava fazendo. Tenho certeza absoluta.

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— É tudo muito estranho — murmurou Adrian, balançando a cabeça.

— Muito original, realmente. Como nesses contos de fada que a gente
ouve em criança. E o que aconteceu depois? O príncipe León ficou bom da
malária e levou a pobre bailarina para morar no seu palácio?

— Se você vai ironizar, eu não conto mais! — exclamou Roselle com

os olhos brilhantes. — Eu devia ter guardado segredo. Não devia ter
contado essa história...

Adrian estendeu a mão e segurou-a no pulso com um gesto

carinhoso.

— Desculpe querida. Reconheço que fui extremamente indelicado.

Perdoe-me. O que aconteceu depois?

— León ficou bom da febre e sumiu de casa.

— Como? Sem mais nem menos?

— É. Eu não fiquei sabendo na época o motivo de sua partida nem o

seu paradeiro. Só muito tempo depois fui informada pelo advogado de que
ele estava morando em Montenay.

— Que loucura! Como o marido abandona a mulher alguns dias

depois do casamento? Você não ficou intrigada com isso?

— Lógico que fiquei. Perguntei a Olga que fim León tinha levado e

ela me respondeu que ele ia voltar um dia, depois que eu tivesse
terminado o meu curso de balé.

— E você acreditou nisso? — perguntou Adrian, sem conter um

sorriso de incredulidade.

— Acreditei. Eu confiava cegamente em minha madrinha. Aliás, para

falar a verdade, eu desejava mais terminar o meu curso de balé do que
viver com León.

— Que menina virtuosa! — exclamou Adrian com ironia. — Quer

dizer que você terminou o curso de balé e não viu mais o marido?

— Só uma vez.

— Ah, sim? Como foi?

— Eu estava trabalhando em Londres, numa companhia de balé,

quando fui informada pelo advogado da família de que minha madrinha
tinha morrido. Entre os papéis e objetos deixados por ela, havia uma carta
para mim, contendo o endereço de León. Eu escrevi para ele uma semana
depois.

— E que resposta você teve?

— Ele foi me visitar em Londres — disse Roselle, corando

ligeiramente.

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O garçom aproximou-se da mesa e perguntou se queriam mais

alguma coisa.

— Mais dois cafés, por favor — disse Adrian.

O restaurante estava mais movimentado do que há uma hora e o

silêncio de antes fora interrompido por conversas em voz alta. Havia um
clima de afobação na sala. O maître recebia os clientes na porta,
providenciava uma mesa vazia, desejava-lhes bom apetite e voltava a
ocupar sua posição anterior, percorrendo o salão com seus olhos
experientes, pronto a atender o chamado de um freqüentador impaciente.

— Quer dizer então que vocês só se encontraram essa vez em

Londres?

— Foi. Logo depois León voltou para Montenay.

— Onde fica Montenay?

— Na Borgonha. É uma região muito fértil. É de lá que vêm os

famosos vinhos tintos.

— Na Cote d'Or? — perguntou Adrian, subitamente interessado no

assunto.

— Não, no departamento de Saône-et-Loire, perto de Tournus. A

fazenda era da família de León há muitos anos, mas o avô paterno
perdeu-a numa partida de pôquer. León tinha seis anos nessa época e
nunca mais se esqueceu das férias que passava na fazenda. Muitos anos
depois a fazenda foi posta à venda. Eu estava morando nessa ocasião em
casa de minha madrinha. León ficou interessadíssimo em adquirir a
propriedade.

— Ele tinha dinheiro?

— Faltava uma parte, que minha madrinha adiantou.

— Ela emprestou ou deu o dinheiro?

— Deu. Pelo menos foi isso o que ela me disse.

— Entendo. Por que você não foi morar com ele na fazenda?

— Porque eu não quis abandonar a minha carreira. Nós achamos

preferível cada um viver para o seu lado.

— Neste caso, não seria mais aconselhável obter o divórcio?

— Pode ser. Eu nunca pensei nisso.

Adrian refletiu um segundo antes de fazer a pergunta seguinte:

— Vocês tornaram a se encontrar depois disso?

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— Não. Em setembro do ano passado, quando me mudei para Paris,

escrevi para León e falei vagamente sobre a nossa situação.

— E aí? O que ele respondeu?

— Ele disse que gostaria de conversar sobre esse assunto

pessoalmente, de preferência em Montenay.

— Que marido atencioso! — exclamou Adrian com um leve ar de

despeito. — Ele não arreda pé do lugar, nem para ver a mulher. Você foi
vê-lo?

— Não deu. Eu estava muito ocupada com a temporada de balé e

não houve jeito de tirar uns dias para ir a Montenay.

— Em outras palavras, você não quis ir vê-lo. Você tem receio de

encontrá-lo?

Roselle hesitou um segundo antes de responder:

— Talvez. León não é uma pessoa muito fácil de conviver. Embora

eu o conheça desde menina, ele continua sendo um estranho para mim.

— Faço idéia — comentou Adrian. — Ele possui uma filiação muito

original. Francês por parte de pai e russo por parte de mãe. De que região
da Rússia é a família de Olga?

— Da Tartária.

— Interessante. Muito interessante. Os tártaros, como você deve

saber, foram sempre muito zelosos de sua independência. E uma das
características da raça é o talento incontestável que têm para a música e
para a dança. Houve grandes dançarinos tártaros no passado. E o marido
de Olga? Também era russo?

— O primeiro, sim. Ele foi preso antes da guerra e mandado para a

Sibéria.

— Não me diga! Por algum crime político?

— Que eu saiba, não. Apenas por suas opiniões liberais.

— E foi então que Olga se mudou para Paris?

— Foi. Ela conseguiu fugir da Rússia e foi morar com a filha em

Paris. Mais tarde, ao saber que o marido tinha morrido num campo de
trabalhos forçados, Olga tornou a casar dessa vez com um francês que lhe
deixou uma pequena fortuna.

— Entendo. Foi esse o dinheiro que ela deu a León para a compra da

fazenda em Montenay — comentou Adrian. — Não deixa de ser uma
história muito interessante. Agradeço a confiança que você depositou em
mim. Minha proposta, contudo, continua de pé.

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Roselle fitou-o com expressão surpresa. Ela tinha certeza de que

Adrian ia voltar atrás ao ser informado a respeito de sua situação
matrimonial.

— Como assim? Eu não entendi...

— Torno a repetir que quero casar com você. Eu aprecio suas

qualidades e não vou desistir facilmente. Confesso que fiquei chocado no
primeiro momento, mas agora estou convencido de que não haverá
nenhum problema em obter o divórcio. Sobretudo porque vocês nunca
conviveram muito tempo.

Roselle abaixou a cabeça, sem saber o que dizer.

— Eu preciso conversar primeiro com León.

— Para quê? Nós podemos resolver o assunto através do meu

advogado. É muito mais prático.

— Há certas coisas que León e eu temos que tratar pessoalmente —

Roselle insistiu. — Não podem ser resolvidas por um advogado.

Adrian bebeu o último gole de café, olhou para o relógio e fez sinal

para um dos garçons que atendia à mesa.

— A conta, por favor.

O garçom afastou-se com um gesto solícito da cabeça.

— Eu tenho um compromisso as três em ponto. Infelizmente não

posso passar o resto da tarde com você.

— Não tem importância. Vou aproveitar para fazer algumas

compras.

O garçom trouxe a conta que Adrian examinou rapidamente e pagou

com um cartão de crédito.

— O que você vai comprar?

— Preciso de roupa de verão, se vamos passar uns dias na praia.

— Gostei muito desse vestido que você está usando hoje — disse

Adrian, examinando com admiração o conjunto de jérsei azul-turquesa, de
mangas compridas e saia rodada. — Você está linda!

Roselle deu uma risada sem querer.

— Muito obrigada.

— Voltando à conversa anterior, posso levá-la de carro a Montenay

na sexta-feira.

— Para quê?

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— Como, para quê? Para você conversar com León sobre o divórcio,

criatura! Você já se esqueceu? Podemos sair daqui na sexta-feira de
manhã e de lá vamos diretamente para a Riviera. Eu gosto muito de viajar
por aquela estrada antiga. No fundo é o mesmo caminho que os romanos
fizeram quando invadiram a Gália. Há alguns lugares lindos, como Sens,
Avalon, Cluny, onde há uma famosa abadia de beneditinos... Podemos ir
parando pelo caminho, desfrutando cada uma dessas relíquias do
passado. Afinal, não temos nenhuma pressa em chegar...

— Impossível. — exclamou Roselle em voz alta, como se acordasse

repentinamente de um devaneio. — Eu tenho que ir sozinha.

— Por quê? — perguntou Adrian com a testa franzida, surpreso com

a resposta veemente de Roselle.

— Por que sim! Eu vou de trem até Dijon e de lá tomo o ônibus para

Montenay. Vou estar de volta na mesma noite. Eu sei me virar muito bem
sozinha — acrescentou Roselle, ao notar a fisionomia contrariada de
Adrian. — Não sou mais criança.

— Tenho minhas dúvidas.

— O que pode acontecer? Eu já andei por regiões muito mais

distantes que essa...

— Não se trata disso. Estou preocupado com o que possa acontecer

na fazenda. Por que você não aceita a minha sugestão? Seria muito mais
seguro...

— Não vejo em quê.

— Primeiro, eu lhe darei o meu apoio moral. Segundo, posso expor

o caso a León. Ninguém mais hoje em dia se casa para fazer a vontade de
uma cartomante russa...

— Olga não era cartomante.

— Desculpe. Uma dançarina russa.

— Minha madrinha sugeriu esse casamento com a melhor das

intenções.

— Eu acredito, mas as boas intenções nem sempre são as mais

aceitadas. Veja no que deu. Vocês estão casados, mas cada qual vive para
o seu lado.

— Olga não tem culpa.

— Eu sei minha querida, e estou procurando analisar a questão

objetivamente. Você está casada apenas por conveniência. Eu lhe ofereço
a oportunidade de remediar essa situação absurda. Se você aceitar a
minha proposta, está tudo resolvido. A única coisa que falta é obter o
divórcio. Eu acho que León não fará nenhuma objeção. Pelo contrário, ele

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está aguardando apenas que você tome a iniciativa, por uma questão de
delicadeza.

— Pode ser.

Era exatamente isso que Roselle pensava quando refletia sobre o

caso. León esperava que ela tomasse a iniciativa para não magoá-la com
um pedido de divórcio. Estava mais do que na hora de tomar uma
decisão, em vez de deixar o assunto se prolongar indefinidamente.

— O que você decide?

— Vou a Montenay amanhã.

— Sozinha?

— É. Sozinha.

— Você não quer esperar até sexta-feira?

— Não. Prefiro tratar desse assunto pessoalmente.

— Você é quem sabe.

Adrian levantou-se da mesa, deixou uma gorjeta no pratinho para o

garçom e apanhou a bolsa de Roselle, que estava pendurada nas costas
da cadeira.

— Vamos jantar juntos hoje à noite?

— Não vai dar. Eu prometi a Anya que iria visitá-la hoje. Telefono

amanhã para você, depois que voltar de Montenay.

— Combinado. Vou rezar para tudo correr bem.

— Vamos ver — disse ela, corando ligeiramente.

Roselle não foi muito bem-sucedida com as compras que fez naquela

tarde. A conversa com Adrian no restaurante mexeu com sua cabeça,
muito mais do que ela deixou transparecer no momento.

Despertou

lembranças

e

reativou

emoções

que

estavam

adormecidas há muitos anos. Era impossível concentrar-se na escolha de
vestidos quando sua atenção estava voltada para outra parte. Após passar
algumas horas circulando por lojas e butiques, desistiu das compras e
voltou para casa.

A primeira coisa que fez foi trocar de roupa e pôr uns chinelos

confortáveis. Em seguida, fez um café e levou a xícara para tomar na sala,
de onde avistava a Torre Eiffel e um pedaço do Sena.

Debruçou-se na janela e deixou os pensamentos divagarem à

vontade.

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No dia seguinte iria rever León, com o pretexto de responder

pessoalmente à carta que recebera dele seis meses atrás, da mesma
forma que León fora visitá-la em Londres ao receber a carta que lhe
escrevera após a morte de Olga.

Apoiou os cotovelos em cima do peitoril da janela e afundou o rosto

nas mãos. A lembrança do dia em que León aparecera no seu
apartamento em Londres estava gravada para sempre em sua memória.
Mesmo agora, dois anos e meio depois, parecia que tinha sido ontem.

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CAPITULO II

A cena estava gravada em sua memória.

Naquele ano, o segundo que passava em Londres, Roselle alugou

um apartamento minúsculo, do gênero kitchenette, numa casa antiga, de
pé-direito bem alto, que ficava situada numa rua transversal a algumas
avenidas de movimento intenso, a uma pequena distância do rio Tâmisa.
No passado, essas casas imponentes eram residências de famílias ricas; a
grande maioria, porém, foi reformada no decorrer dos anos e alugada
para moças ou rapazes solteiros, especialmente estudantes, artistas no
começo de suas carreiras ou outros inquilinos de baixo poder aquisitivo,
que não podiam gastar um dinheirão no aluguel de um apartamento
completo.

Roselle costumava fazer as compras para a casa nos sábados à

tarde. Naquele dia a brisa gelada que soprava do Tâmisa penetrava pela
malha de lã que ela estava usando por cima da calça comprida de flanela.
Tremendo sob as rajadas do vento, Roselle apressou o passo embaixo da
garoa fria que caía, evitando as poças d'água com o andar gracioso das
dançarinas de balé, os pés voltados para fora, o corpo ligeiramente
empinado para trás, acentuando o desenho elegante do tronco.

Ao passar pela portaria, Roselle apanhou a correspondência e subiu

correndo a meia dúzia de degraus que levavam à porta da frente. Em
seguida, atravessou o corredor comprido, escuro, que levava aos quartos
do andar térreo e à escada que conduzia ao andar de cima.

Com os braços carregados de embrulhos, subiu a escada de madeira

prestando atenção aos diversos ruídos e cheiros peculiares que vinham
dos quartos.

No segundo andar, ouviu uma discussão em altos brados entre um

homem e uma mulher. Pelo jeito Lucy e Glen, o casal que morava no
quarto vizinho, estava brigando de novo. Com a testa franzida,
contrariada com o fato, Roselle apressou o passo para fugir da algazarra e
subiu o último lance de degraus.

Deu um berro de susto quando avistou um homem avançar na sua

direção, saindo das sombras da escada.

O homem era de altura mediana, de ombros largos e pele morena.

Tinha o rosto magro e olhos bem pretos. Os cabelos castanho-

escuros caíam sobre a testa, por cima das orelhas e do pescoço.

— León! Que susto você me deu! O que está fazendo aí, escondido

desse jeito? Você quase me matou do coração...

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— Bonjour, Roselle — disse León com um sorriso cerimonioso. — Eu

vim lhe fazer uma visita e responder às perguntas que você me fez na
carta.

León tirou um envelope do bolso do paletó de couro, que estava

usando por cima da malha de gola rulê, e estendeu-o para ela. Roselle
percorreu-o rapidamente com a vista e reconheceu sua letra miúda no
envelope.

— Que surpresa encontrar você aqui! Eu podia esperar tudo, menos

essa sua visita inesperada.

— Você está ocupada?

— Não, de forma alguma. Estou muito contente com a sua visita.

Vamos entrar. Por favor, segure este pacote para mim. Eu vou

pegar a chave.

Depois que entraram no quarto pequeno, onde havia apenas um

sofá-cama, uma mesinha de centro e duas cadeiras, os dois se
observaram um instante em silêncio, com um sorriso nos lábios. Foi León
quem voltou primeiro da surpresa e iniciou a conversa:

— Onde eu ponho isto?

— Em cima da pia, por favor — disse Roselle, apontando para a

pequena cozinha separada do quarto por uma cortina estampada.

Afastou-a para León passar com os pacotes do supermercado. —

Quando você chegou?

— Hoje de manhã.

— Você veio diretamente de Montenay?

— Não, vim de Paris.

— Faz tempo que você está me esperando?

— Uns dez minutos. A dona da casa falou que você tinha saído para

fazer compras e que estaria de volta dentro de uma meia hora. Eu resolvi
esperar, por isso, aqui em cima. — León olhou em volta de si com
expressão interrogativa. — Este apartamento não é muito pequeno para
você?

— É um pouco — confessou Roselle, sem jeito. — No momento,

porém, não posso alugar um maior.

De fato, o apartamento era minúsculo e os dois estavam

constantemente esbarrando um no outro. León observava-a com uma
fisionomia divertida, como se fosse a primeira vez que os dois se viam.

— Você toma um chá?

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— Não, muito obrigado.

— E um café?

Também não, merci.

— Nossa, que homem enjoado! Ah, já sei! Você toma um vinho

tinto.

— Ah, isso sim.

— Só que não é um Borgonha.

— Não faz mal.

Roselle tirou o casaco grosso que estava vestindo, atirou-o em cima

da cadeira e abriu a porta do armário, onde guardava os pratos, os
talheres e algumas latas de conservas. Ela tinha comprado uma garrafa de
vinho tinto para receber um casal de amigos, mas, no último momento,
todos preferiram tomar cerveja. A garrafa continuava por isso fechada. Ela
raramente bebia quando estava sozinha em casa.

— Sirva-se — disse, após colocar a garrafa e os copos em cima da

mesa de centro. — É só o que tenho. Eu não sou muito entendida de
vinhos, mas acho que este serve para comemorar a sua visita.

— Minha visita? — repetiu León com a testa franzida. — O que tem

de mais a minha vinda aqui?

— Você ainda pergunta? Esta é a primeira vez que a gente se

encontra depois de dois anos e meio de casados! Não acha que é uma
data importante?

León colocou a garrafa em cima da mesa e retirou a carta que

estava no bolso do casaco.

— Foi por isso que eu vim aqui. Para tirar a limpo uma dúvida.

Roselle fítou-o com a fisionomia interrogativa.

— Que dúvida?

— Você tem certeza de que nós somos casados?

Roselle deu uma gargalhada nervosa.

— Você já se esqueceu?

León sorriu, sem jeito. Era visível que ele fazia um esforço sincero

para se lembrar da cerimônia realizada alguns anos atrás num quarto
quente e abafado de Paris. Era natural, porém, que guardasse apenas
uma lembrança vaga do ato. Ele estava com quarenta graus de febre e
havia momentos em que mergulhava no delírio e perdia a consciência.

— Onde foi exatamente?

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— Na casa de sua avó, no Boulevard des Chévriers. Você estava

com quarenta graus de febre. Você delirava e dizia palavras sem nexo.
Mesmo assim, houve um momento em que você voltou a si e aceitou
casar comigo. Foi você, inclusive, quem pôs a aliança de sua avó no meu
dedo.

Roselle estendeu a mão e mostrou a aliança de um modelo antigo

que estava no dedo anular da sua mão esquerda.

— Mon Dieu! — exclamou León, examinando a aliança. — Eu tinha

uma vaga lembrança desta cena, mas pensava que era imaginação. Você
tem certeza de que a cerimônia foi legal?

— Absoluta.

— Você desculpe todas essas perguntas, mas vovó era muito

imaginativa e tinha a mania de fazer encenação. Ela adorava criar
situações imaginárias para ver a minha reação. Ela tinha uma verdadeira
obsessão de testar os outros, especialmente a mim.

— Eu me lembro. Neste caso, porém, não houve encenação. A

cerimônia foi autêntica, o padre era de verdade e eu tenho uma cópia da
certidão de casamento assinada por você.

— Por mim? — exclamou León, atônito. — Eu estava em condições

de assinar um documento?

— Estava. Se bem que sua assinatura está um pouco tremida. Você

não tem uma cópia da certidão com você?

— Não sei. Pode ser que sim. Preciso procurar nos meus papéis.

— Procure que você vai encontrar.

León voltou-se para ela com uma expressão fria e distante, a

mesma que Roselle tinha surpreendido algumas vezes no seu rosto. Ela
lembrou, sem querer, que León fora um soldado mercenário na África e
que tinha sido pago para lutar e matar os outros.

— Mostre-me a certidão de casamento — disse ele com frieza. — Eu

quero vê-la.

Roselle abriu a gaveta do armário e retirou de dentro um envelope

pardo, formato ofício, no qual guardava os documentos importantes.

— Olhe, está aqui — disse, estendendo a certidão.

León percorreu-a com a vista com uma expressão de incredulidade

crescente, como se fosse a primeira vez que visse aquele documento.
Tornou a lê-la uma segunda vez e devolveu-a sem dizer uma palavra.

Roselle guardou a folha dobrada no envelope e deixou-o em cima da

mesa.

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León foi até a janela que dava para a rua. A leitura da certidão, pelo

visto, esclarecera qualquer dúvida que ele podia ter a respeito da
legalidade do casamento.

— O que você me diz? — perguntou Roselle, inquieta com o silêncio

que se prolongava há alguns segundos. — Estamos casados legalmente?

León voltou-se bruscamente ao ouvir a pergunta, a expressão

alterada pelo ódio. Roselle levou um susto com a transformação repentina
e recuou instintivamente um passo. Mesmo de perfil, podia ver o brilho
assassino que havia nos olhos dele.

— O que foi? — perguntou assustada. — Por que você está com essa

cara?

León correu os dedos entre os cabelos e deu um suspiro fundo,

como alguém que tem de travar uma luta íntima.

— Desculpe. Eu estava distraído.

— Você ouviu o que eu disse?

— Ouvi. Oui, eu acho que estamos mesmo casados legalmente. A

certidão me pareceu absolutamente autêntica. — Ele deu uma risada alta
e balançou a cabeça. — Imagine! Dizer que estamos casados há dois anos
e meio e eu não sabia disso. Durante todo esse tempo eu podia jurar que
era tudo imaginação, conseqüência da febre alta, pura alucinação
produzida pelo delírio. — Ele a encarou, com atenção. — Por que você não
falou nada? Por que você não me escreveu antes?

— Eu não sabia onde você estava. Você saiu de casa sem se

despedir de mim e minha madrinha disse que você só ia voltar depois que
eu terminasse o curso de balé. Pensei que você tivesse ido para a África.
Foi somente depois que minha madrinha morreu que eu recebi uma carta
do advogado. Entre outras coisas, havia seu endereço em Montenay.

— Minha avó nunca conversou com você sobre o nosso casamento?

— Lógico. Muitas vezes. Por quê?

— Que razão ela dava para o casamento?

Roselle deu um risinho sem jeito.

— Coitada. Ela pensava que o casamento era a melhor maneira de

me deixar alguma coisa como herança.

— Entendo.

— Evidentemente, eu nunca esperei receber uma herança de minha

madrinha e não sei de onde ela tirou esta idéia. De qualquer maneira,
fiquei contente em receber seu endereço e de poder entrar em contato
com você depois de tantos anos.

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— Você nunca leu o testamento de Olga? — perguntou León com o

rosto sério, fitando-a atentamente.

— Não, nunca.

— Você não sabia que ela tinha dividido sua fortuna entre nós dois?

— Não tinha idéia. Nunca ouvi falar da existência desse testamento.

— Foi por causa disso que eu pedi à minha avó o dinheiro que

faltava para comprar a fazenda. Era a minha parte da herança.

— Disso eu me lembro. É lá que você mora atualmente?

— E. Desde que eu saí de casa.

— Esta fazenda não foi de sua família no passado?

— Foi. Esta fazenda ficou na mão de nossa família durante muitos

anos. Até que meu avô a perdeu. Foi por isso que Olga me adiantou o
dinheiro para a compra. Ela queria que a fazenda voltasse para a família.
Ela só impôs, porém, uma condição...

— Qual foi?

— Que eu me casasse com você. Uma parte do dinheiro que ela

adiantou pertencia a você.

— A mim?

Roselle teve a impressão de que León tinha apontado uma pistola

para o seu peito e puxado o gatilho. Ela prendeu a respiração e apoiou-se
nas costas da cadeira, para não perder o equilíbrio.

— Era a sua herança. Ela foi obrigada a modificar o testamento.

Você não sabia?

Roselle limitou-se a balançar a cabeça, com os lábios trêmulos,

incapaz de pronunciar sim nem não.

— Eu também fiquei perplexo com essa idéia da minha avó —

continuou León. — Embora eu necessitasse terrivelmente daquele
dinheiro, fiquei na dúvida se devia aceitá-lo nessas condições. Afinal, você
era muito criança para casar comigo e eu não estava absolutamente de
acordo com os planos de Olga sobre o nosso futuro.

— O que você disse a ela? - perguntou Roselle com a voz sumida.

Ela sentia um nó na garganta e não queria encarar León com os

olhos banhados de lágrimas. Seu sonho de adolescente partira-se em mil
pedaços com a brutal confissão dele. Até aquele instante, ela nutria a
vaga esperança de que León gostasse dela e que tivesse dado
espontaneamente o seu consentimento para o matrimônio.

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— Eu disse o que pensava. Eu estava disposto a tomar uma decisão

quando tive aquela crise de malária.

— Minha madrinha disse que você queria casar comigo — insistiu

Roselle, tentando salvar alguma coisa de sua decepção. — Eu não teria
concordado com o casamento se soubesse que você não estava de acordo.

— Vovó nos levou na conversa — disse León com uma sinceridade

que a desarmou completamente. — De uma coisa eu tenho certeza: eu
não havia concordado com o casamento antes da minha recaída.

— Olga não falou nada depois que você se recuperou da crise?

— Que eu saiba, não.

— Quando ela deu o dinheiro para a compra da fazenda, você não se

lembrou da condição anterior?

— Olhe, para falar a verdade, isso nem me passou pela cabeça. Eu

recebi o dinheiro como sendo parte de minha herança. Minha única
preocupação era comprar a propriedade posta à venda, antes que surgisse
outro comprador. Eu não pensei em mais nada. Levei realmente um susto
quando recebi sua carta mencionando nosso casamento. Vovó nos
aprontou uma boa, desta vez. Ela passou a conversa em nós dois, pode
crer.

Roselle abaixou a cabeça, sem jeito. Cada palavra de León doía no

peito como uma facada.

— Você não a perdoa pelo nosso casamento, não é mesmo? E você

me inclui no seu ódio, como se eu tivesse culpa disso...

León voltou-se de relance e viu as marcas deixadas na face de

Roselle pelas lágrimas recentes.

— Você não tem culpa, petite. Eu fiquei com raiva de vovó por ter

abusado da confiança que depositava nela. Você era uma criança naquela
época e não tinha condição para ser a mulher de um soldado mercenário.
Felizmente minha vida mudou nesses últimos anos. Agora minha única
ambição é cuidar da fazenda, tratar das vinhas, criar porcos e galinhas...
Meu mundo é muito diferente do seu. Vovó cometeu um grave erro
quando nos uniu.

— Ela não teve culpa! — exclamou Roselle com vivacidade. — Eu me

casei por livre e espontânea vontade.

— Ah, sim? — indagou León, fitando-a com atenção.

Roselle apanhou a certidão de casamento em cima da mesa e

guardou-a no armário.

— O que você vai fazer agora?

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— Não sei — respondeu León, evasivo. — Vamos tomar o vinho

agora ou você acha que não vale mais a pena comemorar a minha visita?

— Claro que sim.

— Posso servir seu copo?

— Por favor.

Roselle agachou-se e acendeu a lareira de gás. No momento em que

se levantou, León aproximou-se com os dois copos cheios até a borda.

Ele estendeu um para ela.

— Saúde.

— Para você também.

León apontou para o sofá.

— Vamos sentar?

Roselle bebeu um gole de vinho e abriu uma lata de biscoitos. Em

seguida, sentou-se ao lado dele no sofá.

— Quer?

— Muito obrigado — disse León, apanhando um biscoito. — Você se

lembra de nossas conversas na casa de minha avó, quando eu passava
por Paris?

— Se lembro! Você contava mil histórias da África...

Isso pelo menos León não esquecera. Para ela, aquele tempo tinha

sido o mais precioso de sua vida. As visitas dele eram sempre inesperadas
e causavam nela uma grande emoção.

— Você era uma criança. Não parava de fazer perguntas. "Onde

você andou León?" "O que você fez todo esse tempo?" "Aonde você vai
agora?" "Quando vai voltar?" "Você gosta de mim?"

— Mentira! — exclamou Roselle com vivacidade, — Eu nunca

perguntei isso a você.

León deu uma risada bem-humorada e encarou-a de relance com o

canto dos olhos.

— Que idade você tem agora, petite?

— Vou fazer vinte e um, em abril.

— Como o tempo passa!

— E você vai fazer trinta anos em dezembro.

— Que memória! Como você se lembra do meu aniversário?

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— Eu guardo tudo na cabeça — disse Roselle com um sorriso.

— Estou vendo. — León voltou-se e encarou-a com a fisionomia

séria. — Como vamos fazer? Você quer continuar casada ou quer o
divórcio?

Roselle tomou um gole de vinho e dirigiu um olhar oblíquo a Leon

por baixo dos cílios compridos.

— Prefiro continuar casada. E você?

León bebeu o resto do vinho e colocou o copo vazio em cima da

lareira.

— O problema é que nós nunca fomos casadas de fato. Eu não sei,

por isso, o que prefiro. Mas ouvi dizer que os casamentos arrumados pelos
parentes são mais harmoniosos que os casamentos por amor. Nós, pelo
menos, não temos muitas ilusões...

Roselle ouviu o comentário com um misto de tristeza e de

resignação. León tinha razão, em parte. O casamento arranjado por Olga
tinha essa vantagem: deixava os dois livres para fazer o que bem
entendessem. Não havia nenhum compromisso. A prova disso é que
estavam casados há mais de dois anos e não tinham consumado essa
união até aquele momento.

— No que você está pensando?

— Ah, desculpe. Eu estava distraída.

— O que você decide? — insistiu León.

Por mais insatisfatória que fosse aquela situação, era preferível ao

divórcio.

— Por mim, está tudo bem assim.

— Ótimo! — exclamou León com animação, inclinando-se para trás e

encostando a cabeça no sofá. — Eu também sou da mesma opinião.

León serviu-se de outro copo de vinho e começou a falar com

animação dos planos que tinha para a fazenda. Contou o trabalho que
tivera nos últimos anos para podar as vinhas e ampliar as criações de
porcos e de galinhas.

— Este ano, felizmente, estou mais folgado. A safra foi razoável e o

nosso vinho obteve um bom preço no mercado. E você, petite? Quais são
as novidades? Como vai o balé?

— Muito bem. Fiz muitos progressos nos últimos anos.

Parecia que tudo tinha voltado a ser como antes. León era o mesmo

homem simpático e comunicativo que Roselle conhecera na casa da
madrinha. O olhar cerimonioso do início dera lugar a um sorriso aberto,

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acolhedor. Roselle tinha vontade de abrir-se com ele, contar sua vida nos
últimos anos, as pequenas lutas que travara para abrir um lugarzinho no
corpo de balé da companhia onde trabalhava.

— Você já recebeu alguma parte especial?

— Não, ainda não. Mas espero que um dia eu tenha a oportunidade

de substituir uma grande dançarina. Somente então vou poder mostrar
meus progressos. Eu gostaria de dançar Giselle, o balé da moça que
enlouquece quando descobre que foi traída pelo amante, mas Cinthia, a
diretora da companhia, acha que eu não tenho experiência suficiente para
interpretar esse papel.

— É esse o seu sonho?

— É Por que você está rindo?

— Porque nós dois somos parecidos nesse ponto. Para mim, a maior

ambição na vida é restituir à fazenda o esplendor que ela tinha no
passado. Para você é ser uma grande dançarina de balé.

— Pois é — concordou Roselle em voz baixa, sem muita convicção.

— No fundo, nenhum de nós dois tem tempo disponível para dedicar

ao casamento. Você vai dançar hoje à noite?

— Chi, eu me esqueci completamente da hora! — exclamou Roselle,

levantando-se do sofá com um pulo e colocando o copo vazio em cima da
mesinha de centro. — Eu tenho que sair voando. Você vem comigo? Posso
lhe arrumar um lugar no teatro e depois vamos jantar num restaurante
que eu conheço. Que tal?

— Para mim está perfeito. E depois do jantar?

— Vamos voltar para cá — disse Roselle, desviando o rosto.

— Você gostaria que eu ficasse?

Pela primeira vez, desde que se conheciam, Roselle sentiu

fisicamente a presença de León. Eles estavam de pé, juntos um do outro,
e ela reconheceu o perfume da colônia que León usava na casa de Olga,
quando os dois conversavam no sofá da sala horas a fio, esquecidos de
tudo.

— Gostaria muito — murmurou Roselle, com o rosto corado de

excitação.

— Eu vou ficar então.

Durante um comprido momento eles se observaram em silêncio, no

fundo dos olhos, como duas pessoas que se vêem após uma longa
ausência. Em seguida, com um gesto repentino que a apanhou de
surpresa, León inclinou o tronco e roçou de leve os lábios nos dela.

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Imediatamente o coração disparou e Roselle sentiu as pernas moles,

sem sustentação. Por uma reação instintiva, afastou a cabeça para o lado.

— Você continua assustada como uma criança — murmurou Leon no

seu ouvido. — Mesmo comigo.

— Eu não estou acostumada a ser beijada.

— Você não tem namorado?

— Claro que não! — confessou Roselle com ingenuidade. — Como

posso ter se estou casada com você?

León deu uma risada.

— Não brinque! Você foi fiel todos estes anos?

Ele estendeu a mão e correu o dedo sobre a sobrancelha fina, quase

uma linha minúscula no alto do nariz.

— Você preferia que eu tivesse uma dúzia de amantes?

— Não, de forma alguma! Mas Cinthia tem razão. Para ter

experiência da vida é preciso ter amado alguém. Você só pode interpretar
corretamente Giselle quando conhecer o sofrimento da traição. A
experiência emocional é indispensável na arte, no balé...

— Eu sei disso.

Roselle estava hipnotizada pelo olhar de León, pela curva sensual do

lábio entreaberto. Ela gostaria de ser beijada novamente. Mas Leon não a
beijou. Continuou acariciando a penugem macia do pescoço enquanto a
observava com expressão pensativa.

Subitamente, alguma coisa explodiu dentro dela. Sem hesitar um

segundo, estendeu os braços e segurou o rosto dele entre as mãos, com o
gesto possessivo de uma mulher madura.

— Eu gosto de você, León. Você nem imagina quanto.

Ele estreitou-a nos braços e cobriu-a de beijos. Roselle abriu a boca

com um suspiro, aninhada nos braços dele, e perdeu completamente a
noção da realidade.

Minutos depois ela voltou a si e observou-o por entre os olhos

entreabertos, com a respiração ofegante.

— Agora tenho de ir. Já é tarde.

— Você não pode faltar um dia?

— Eu bem que gostaria, mas não posso. Tenho de ir sem falta. Eu

danço um pequeno solo na primeira parte do balé.

— Vamos, então. Nós temos a noite toda para conversar.

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Naquela noite, tão distante já, consciente de que León estava no

teatro e que a observava com atenção, Roselle dançou melhor do que
nunca e os aplausos que recebeu do público foram uma justa homenagem
ao seu desempenho. Cinthia cumprimentou-a calorosamente depois do
primeiro ato.

— Você estava estupenda. Que bicho te mordeu?

Roselle deu uma gargalhada e deixou a pergunta sem resposta.

Entretanto, a maior alegria da noite foi ouvir os elogios de Leon

quando os dois se sentaram no restaurante.

— Você dançou divinamente.

— Verdade?

— É pena vovó não estar aqui para ver. Ela se orgulharia de sua

aluna.

— E você, orgulhou-se de sua mulher?

— Muito.

Mais tarde, sob a luz dos postes de iluminação que entrava pelas

frestas da veneziana, eles fizeram amor e mataram a saudade de muitos
anos de separação. León dirigiu-a lentamente pelos caminhos dos sentidos
até o momento da comunhão final numa explosão de sensualidade.

Ao acordarem algumas horas depois, conversaram até de

madrugada sobre os compromissos que cada um tinha. León disse que
poderia ficar alguns meses em Londres, porque não tinha nenhum
trabalho urgente na fazenda.

— Você quer que eu fique?

— Quero muito — respondeu Roselle com vivacidade. — Você pode

ficar quanto tempo quiser.

Os primeiros dois meses de vida em comum transcorreram sem o

menor atrito. Roselle estava nadando em felicidade e parecia que o amor
tinha transformado o apartamento minúsculo num palácio encantado.

O encanto partiu-se, porém, numa manhã ensolarada de fevereiro.

Roselle acordou mais tarde que de costume e ficou algum tempo na

cama, espreguiçando-se e fazendo planos para o futuro, até que se
levantou finalmente, vestiu o robe de chambre e foi ao andar térreo
apanhar a correspondência.

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Havia apenas uma carta, endereçada a León. O selo e o carimbo do

correio eram da França e datava de alguns dias atrás. Curiosa, Roselle
virou o envelope na mão e leu com certa apreensão o endereço do
remetente: Adèle Arcenaut, Fazenda Montenay.

Adèle Arcenaut repetiu consigo varias vezes ao subir os degraus da

escada. Esse nome não lhe era estranho. Quem podia ser? Com a testa
franzida, fazendo força para se lembrar, Roselle entrou no apartamento e
foi diretamente à cozinha, onde preparou o café da manhã, como era seu
costume. Em seguida, dirigiu-se ao quarto com a bandeja na mão.

León continuava dormindo a sono solto, se bem que virava a cabeça

de um lado para o outro, como se tivesse um pesadelo, enquanto gemia e
resmungava em voz baixa. Roselle colocou a bandeja em cima da
mesinha-de-cabeceira, sentou-se na beira da cama e pôs a mão no ombro
dele. Respirou aliviada ao constatar que a pele estava com a temperatura
normal e que não havia o menor indício de febre.

Ela sabia que as crises de malária costumavam se repetir com certa

freqüência.

— León, amor, está na hora. Passa das onze.

— Me deixe eu dormir. Não me aborreça — resmungou León com o

rosto fechado.

Desconcertada com a recepção, Roselle inclinou-se e beijou-o no

rosto, por cima da barba crescida.

— Seu café vai esfriar.

Ela não estava preparada para o que aconteceu em seguida.

León levantou a mão com um gesto brusco e afastou-a para longe.

— Vá embora, Adèle! Deixe-me em paz, criatura! Eu já disse que

não quero você no meu quarto. — Ao dizer isso, voltou-se de costas para
ela.

Roselle ficou sentada na beira da cama, aturdida, procurando

acalmar as batidas aceleradas do coração. León expressara-se com tanta
clareza que ela podia jurar que estava acordado. Mas era impossível que
estivesse, caso contrário não a teria confundido com Adèle.

Convencida finalmente de que León estava dormindo ou tendo

algum pesadelo, Roselle correu o dedo pela espinha e murmurou no seu
ouvido palavras de carinho:

— Acorde, amor. Seu café vai esfriar. Abra os olhos, querido.

León virou-se finalmente, esfregou os olhos e apoiou-se na cama

com expressão espantada, as pálpebras pesadas de sono.

— O que foi?

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— Está na hora de acordar. Já passa das onze.

— Ah! Eu tive um pesadelo horrível. Sonhei que estava na fazenda.

— Foi o que eu pensei — disse Roselle, oferecendo-lhe a xícara de

café. — Eu fiquei preocupada, pensando que você estava com uma nova
crise de malária.

León correu os dedos por entre os cabelos revoltos.

— Eu falei alguma coisa?

— Você resmungou, gemeu, me mandou embora. Você não teve

mais nenhuma crise de malária ultimamente?

— Só uma, mas não foi tão forte quanto aquela que tive na casa da

minha avó. O que mais que eu falei?

— Você me confundiu com uma tal de Adèle. Quem é?

León franziu a testa e passou a mão pelo queixo.

— Eu sonhei com a fazenda.- Está na hora de voltar para lá.

Roselle enfiou a mão no bolso do robe de chambre e retirou a carta

que tinha apanhado na portaria.

— Olhe, esta carta chegou hoje de manhã para você.

León colocou a xícara em cima da mesa-de-cabeceira e examinou o

envelope.

— É de Adèle.

— Quem é? É a mesma do pesadelo?

— Adèle é a caseira da fazenda.

— Eu não sabia que você tinha uma caseira. Você nunca me contou

nada. A casa da fazenda é muito grande?

— O que você perguntou?

León interrompeu momentaneamente a leitura da carta e levantou a

cabeça na direção de Roselle.

— Eu perguntei se a casa é muito grande para precisar de uma

caseira.

— É bem grande. E um castelo antigo que foi transformado em

fazenda no século passado. Tem vinte quartos.

— Nossa Senhora!

— Grande demais para um homem solteiro.

— Você não é solteiro — corrigiu Roselle.

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— Desculpe. Eu não me acostumei ainda com a idéia.

— Essa Adèle é parenta dos antigos proprietários?

— Ela é prima em segundo grau de Paul Arcenaut, o filho de

Armand, que herdou a fazenda quando o pai morreu. Foi Paul, aliás, quem
a empregou como caseira.

— Ela mora na casa?

— Sim. Com o filho.

— Que idade ele tem?

— Uns dois ou três anos.

— Ela é moça, então!

— Adèle é da mesma idade que você. Ou alguns anos mais velha.

— O marido trabalha na fazenda?

— Ela não é casada.

— Ah, não?

A última explicação deixou-a pensativa. Pouco a pouco a dúvida

começou a fermentar na sua cabeça. León percebeu que ela estava
calada, mas achou que não valia a pena esclarecer o assunto.

— Que horas são?

— Quase meio dia.

— Está na minha hora. Para chegar a Montenay hoje à noite tenho

que pegar o primeiro avião para Paris.

León pulou da cama, despiu a calça do pijama e vestiu a roupa que

estava dobrada em cima da cadeira.

— Por que você vai embora nessa correria?

— Eu devia ter voltado na semana passada — disse León, abotoando

a camisa. — Preciso estar lá sem falta amanhã para assinar um
documento. — Ele entrou no banheiro e voltou-se da porta com a mão na
maçaneta. — Eu não fui antes porque quis ficar mais alguns dias com
você.

Roselle viu a porta fechar-se na sua frente com a frustração que

experimentava toda vez que León partia de repente, sem dar nenhuma
explicação. Ele fora sempre assim, como ela estava lembrada: alguém que
não se prendia a nada nem a ninguém. Aparecia quando menos se
esperava e ia embora de um momento para o outro, sem nenhuma razão
aparente.

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No fundo, os dois eram um casal de passagem. O casamento não

servira para aproximá-los. León nunca se abrira com ela. Roselle, por sua
vez, nunca lhe confessara nenhum dos seus segredos íntimos. Eles se
davam como dois estranhos que se encontram por acaso numa estação de
águas.

Ela apanhou as xícaras de café e levou-as para a pia. Se aceitara a

estada de León no apartamento era porque estavam casados, legalmente
casados, como ele próprio reconhecera, mas não havia nenhum vínculo
profundo que os unia. León continuava tão evasivo e misterioso como
antes.

O que acontecera com eles podia ter acontecido com qualquer casal.

A atração física os unia durante algum tempo e tornava a separá-los. Isso
não era suficiente para manter duas pessoas juntas a vida inteira. Não
havia afeto nem, muito menos, amor.

Ela vestiu a calça comprida e enfiou uma malha de lã pela cabeça.

Depois de guardar o lençol e o travesseiro na gaveta do armário, dobrou o
sofá-cama e empurrou-o para junto da parede. A carta de Adèle caiu no
chão. Ela a pegou e leu-a:

"Meu querido León. Monsieur LeFèvre, o tabelião, telefonou ontem

para cá e perguntou quando você ia voltar de viagem. Eu disse que não
sabia e perguntei se necessitava de alguma coisa com urgência. Ele disse
que a escritura está pronta e que você deve assiná-la antes do dia 15 de
fevereiro, sem falta.

"Eu não sabia que você ia passar tanto tempo fora. O que

aconteceu? Você está tentando obter o divórcio? Fiquei muito surpresa
quando você me disse que era casado com uma dançarina de balé. Você
não tem cara de homem casado.

"Nem tudo vai bem aqui. Roger caiu de cama, com trinta e oito de

febre — mas já ficou bom, graças a Deus — e eu torci o pé na escada. É
bom você voltar logo para tomar conta da casa e dos colonos que
trabalham na lavoura. A fazenda precisa de um patrão. E eu também.

Adèle".

No momento em que Roselle dobrou a carta, com expressão

pensativa, León entrou no quarto enxugando os cabelos numa toalha de
rosto.

— O que você está fazendo? — perguntou ele com as sobrancelhas

arqueadas.

— Lendo a carta que sua caseira escreveu.

León deu dois passos à frente e retirou a carta da mão dela.

— Ela escreveu com muita intimidade para uma simples empregada

— comentou Roselle com os olhos brilhantes de raiva.

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— Adèle foi sempre assim. Ela é muito dada e adora assumir ares de

importância.

León guardou a carta e abriu a porta do armário onde estava

pendurado o casaco de couro.

Roselle continuou no mesmo lugar, as mãos crispadas. Ela não

estava disposta a ceder facilmente.

— Ela é sua amante?

León não respondeu. Retirou a mala do alto do armário e começou a

arrumar as roupas que estavam nas gavetas.

— Você me disse uma vez que tinha amantes — insistiu Roselle. —

Adèle é uma delas?

O ciúme aumentava com o passar dos minutos, com o silêncio

obstinado que León mantinha.

Ele continuou a arrumar a mala, indiferente às suas perguntas.

— Por favor, León, diga alguma coisa. Responda à minha pergunta.

Ele puxou o zíper da mala e sentou-se na cadeira para calçar os

sapatos.

— O que você quer que eu diga? Uma mentira? Você acha que não

houve nenhuma outra mulher na minha vida a não ser você? Eu não
passei todos estes anos num convento, petite. Fui soldado na África. —
León terminou de calçar os sapatos e levantou-se da cadeira. — Vamos
deixar isso bem claro. Meus assuntos íntimos não lhe dizem respeito, oui?

— Claro que dizem! Eu sou sua mulher, bolas!

— Mas nem por isso você vai tomar conta de mim. Nem muito

menos ler as minhas cartas.

— Neste caso, que direitos me dá o casamento? — exclamou

Roselle, compreendendo finalmente' que os dois meses de convívio íntimo
não tinham significado nada para León. Eles podiam fazer amor, mas cada
qual guardava sua liberdade intacta. — Se é assim, eu prefiro continuar
solteira.

— Eu sabia que você ia se queixar no fim. Você sempre foi

possessiva. Você não se lembra mais como nosso casamento foi
celebrado? Foi minha avó quem arrumou isso, contra a nossa vontade. Eu
nunca insisti para você ir viver comigo em Montenay porque eu sei que
você tem seus compromissos aqui e que seu balé é mais importante que
qualquer motivo pessoal.

— Não é verdade! Você não quer que eu vá para ficar sozinho com

Adèle. E você vai voltar na correria porque ela o chamou de volta. Esta é a
verdade! Você prefere viver com ela do que comigo.

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— Não é nada disso — retrucou León, vestindo a malha preta de lá.

— Eu gostaria que você fosse lá no fim do ano, durante as férias. A
fazenda é mais bonita no verão. As uvas estão maduras nos cachos e você
pode acompanhar os trabalhos da colheita e da preparação do vinho.
Lembre-se de que a fazenda também é sua, comprada com o seu
dinheiro. Você pode morar lá o tempo que quiser.

León a estava tratando com a mesma cortesia distante que usava

quando Roselle era menina. Oferecia-lhe uns dias de férias na fazenda,
como se ela fosse uma adolescente e ele um tio bondoso. Roselle não se
deixou iludir por suas palavras.

— Eu não posso ir no verão.

— Por quê?

Ele vestiu o casaco de couro por cima do pulôver e ajeitou a gola

que estava dobrada.

— Nós vamos fazer uma excursão pela Austrália e Nova Zelândia no

fim do ano.

— Está vendo? Eu não falei? Você tem a sua vida e eu tenho a

minha. — Ele afastou uma mecha de cabelo que caía sobre a testa. Os
olhos escuros lembravam os de Olga. Era um traço de família que os dois
tinham herdado dos antepassados tártaros. — Eu aprovo sua viagem,
petite. E uma oportunidade fabulosa que você não deve perder. Apareça
em Montenay outra vez.

— Quando?

— Quando você quiser. A casa é sua — acrescentou com um sorriso.

— Terei sempre muito prazer em recebê-la.

A ironia velada feriu-a profundamente. Pelo visto, León já se

separara dela mentalmente, estava de malas prontas para atravessar o
canal da Mancha e passar muitos meses sem pensar mais nela.

— Por que você veio aqui? Você não devia ter vindo.

— Eu vim para visitá-la e para saber se nosso casamento era legal.

— Eu sei disso! — exclamou Roselle com os olhos brilhantes de

raiva. — Você veio, passou dois meses aqui, como se fosse meu marido, e
agora vai embora. É muito cômodo...

— O que você queria? Que eu recusasse o convite que você me fez

para passar esse tempo aqui? Qualquer homem teria agido da mesma
forma. Você é uma mulher desejável, petite, e eu me senti atraído a ficar.

— Você é odioso! — exclamou Roselle, sem conter mais um segundo

a fúria que borbulhava dentro dela. — Vá embora. Eu não quero mais
saber de você. Volte para Montenay e para sua empregadinha! Eu não
quero ter mais nada com um soldado mercenário.

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Com o rosto coberto de lágrimas, Roselle virou as costas

rapidamente e correu para a cozinha, onde começou a abrir as portas do
armário à procura de uma panela.

— Roselle!

— Ah, vá embora, vá embora! Não volte mais aqui.

— Eu estou indo. Até a vista, petite. Escreva para mim contando

como foi a excursão com a companhia de balé.

Nas semanas seguintes, Roselle sentiu-se terrivelmente infeliz e

passou muitas noites sem sono, rolando de um lado para o outro da
cama, relembrando em detalhes todos os episódios relacionados com a
visita de León, amaldiçoando a hora em que lera a carta escrita por Adèle.
Se não fosse por causa daquela maldita carta não teria brigado com León,
não teria dito os desaforos que dissera na sua raiva.

As semanas se passaram. Depois os meses. Roselle não recebeu

mais nenhuma notícia de León. Pouco a pouco, convenceu-se de que León
não gostava dela, que apenas se aproveitara da situação cômoda, do
amor ingênuo que Roselle nutria por ele. Com toda certeza Leon tinha
outra mulher, provavelmente Adèle Arcenaut. Se ele gostasse dela, teria
insistido para acompanhá-lo a Montenay. Se a amasse de todo o coração,
não a deixaria sozinha em Londres por nada desse mundo.

A primavera chegou. A temporada de balé terminou. Roselle aceitou

o convite para partir com a companhia numa excursão por diversos países
da Europa. Embora sofresse no silêncio de sua intimidade com o vazio
deixado pela ausência de León, conseguira superar a depressão e
escrevera uma carta para ele contando que estava de partida para a
Austrália e a Nova Zelândia.

No fundo, tinha a esperança de que León surgisse de repente em

Londres, assumisse o papel do marido ciumento e a levasse consigo para
Montenay.

Em vez disso, porém, León escreveu-lhe dizendo que estava muito

contente com a oportunidade que ela tinha de conhecer outros países e
esperava que ela aparecesse um dia em Montenay, para conhecer a
fazenda.

Acrescentava em seguida que estava muito ocupado naquele ano e

que não podia ir visitá-la em Londres. Talvez no ano seguinte desse um
pulo lá, para lhe fazer uma visita. Tudo dependia de ter um tempinho livre
na fazenda.

Roselle deu um suspiro. Esfregou os braços arrepiados de frio e

voltou à realidade, ao presente. O céu estava coberto de manchas

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avermelhadas e, no alto da Torre Eiffel, uma luz muito branca piscava a
intervalos regulares. Paris ia mergulhar na noite dentro de alguns
minutos. Aquela era a hora do dia em que a cidade se tornava mais
romântica e cativante.

León não aparecera mais em Londres desde aquela última e única

vez, nem fora vê-la em Paris quando Roselle escreveu para ele, em
setembro. Por outro lado, ela também não tinha ido a Montenay, como
ficara combinado.

Nesse meio tempo, muitas águas tinham rolado. Ela conhecera

Adrian e sentira-se completamente curada de seu amor por León.

Agora podia encontrá-lo quantas vezes quisesse sem correr o risco

de uma recaída. A traição de León não a levara à loucura, como
acontecera com "Giselle", a heroína do balé.

Entretanto, Roselle amadurecera em conseqüência do sofrimento e

das noites de insônia. Não era mais a adolescente ingênua, deslumbrada
com tudo, que abrira certa vez a porta do seu coração para um estranho
entrar e instalar-se confortavelmente. León não iria mais se aproveitar da
situação desta vez.

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CAPITULO III

O dia seguinte começou mal. Roselle acordou tarde, de péssimo

humor, e perdeu o trem expresso para Dijon. Conclusão: tomou um trem
mais lento, que parava numa porção de estações, e só chegou ao seu
destino por volta do meio-dia. Por cúmulo do azar, o ônibus das onze e
meia já tinha partido para Bezalay, o lugarejo mais próximo de Montenay;
ela foi obrigada a esperar meia hora na estação, sentada num banco duro
de madeira. Com isso sua indisposição se agravou ainda mais.

O motorista do ônibus do meio-dia, por sua vez, não tinha a menor

pressa de chegar ao seu destino. Deu uma infinidade de voltas por
pequenas localidades, parou em cada uma delas para descer ou receber
passageiros e não perdeu a oportunidade de trocar um dedo de prosa com
o fiscal em cada uma das paradas obrigatórias que havia no meio do
percurso.

Após uma hora de viagem, Roselle estava uma pilha de nervos e

profundamente arrependida de ter feito a viagem. Se tudo corresse bem e
não surgisse nenhum imprevisto, chegaria a Montenay por volta das três e
meia da tarde. Como ela tinha a intenção de voltar naquele mesmo dia
para Paris, no trem da noite, teria apenas algumas horas para tratar do
divórcio com León.

Devia ter combinado de encontrar-se com ele em Dijon, em vez de

fazer todo aquele percurso de ônibus. Podiam ter acertado a questão do
divórcio num restaurante da cidade, sobretudo porque havia algumas
casas excelentes em Dijon, renomadas na França inteira por sua comida
típica. Ou então, podia ter seguido o conselho de Adrian e encarregar o
advogado de resolver o assunto por meio de cartas e de telefonemas.
Seria muito mais prático e evitaria um mundo de aborrecimentos.

Lá pelas duas da tarde o ônibus entrou numa cidadezinha que

parecia estar dormindo. Os telhados das casas eram quase planos, dando
a entender que o clima daquela região era diferente da área vizinha a
Dijon, onde os telhados eram a pique. Ali, pelo visto, não costumava
nevar. Nenhum telhado plano resiste ao peso da neve acumulada sem
ceder e criar goteiras. O ônibus deu a volta numa praça pitoresca e parou
diante da agência dos Correios.

— Bezalay — anunciou o motorista em voz alta, se bem que um

tanto cansada, voltando-se para trás a fim de ver se todos os passageiros
estavam acordados.

— Como eu faço para ir a Montenay? — perguntou Roselle,

aproximando-se da porta.

— Você deseja ir à cidade de Montenay ou à Fazenda Montenay? —

indagou o motorista.

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— A Fazenda Montenay.

— Aguarde um pouco mais. Nós vamos passar na frente da Fazenda

Montenay logo mais. Pode sentar-se ali.

— Quanto tempo leva daqui até lá? — perguntou Roselle com

impaciência. Ela estava cansada de viajar sentada no banco apertado do
ônibus.

— Uns vinte minutos, aproximadamente. Não é longe. Eu aviso

quando for para descer.

— Muito obrigada.

Vinte minutos era um cálculo otimista. Meia hora depois o ônibus

continuava dando voltas e mais voltas pela estrada de terra e Roselle não
encontrava mais posição para as pernas doloridas no assento do ônibus.
Começou a pensar que o motorista estava perdido ou que a Fazenda
Montenay não existia na realidade.

Finalmente, após um tempo que pareceu interminável, chegaram a

uma outra localidade, que tinha uma única rua central com casas de
telhados planos dos dois lados. Carreiras de vinhas estendiam-se por
quilômetros e quilômetros de distância, até se perderem atrás do morro.

— Estamos chegando — anunciou o motorista, voltando-se para

Roselle. — Na próxima parada você pode descer.

— Ah, muito obrigada —; exclamou Roselle com um suspiro.

O ônibus arrancou novamente. Alguns passageiros tinham entrado

na última parada, homens e mulheres que trabalhavam em Mâcon.

Após percorrer uns quinhentos metros de estrada poeirenta, o

ônibus deu uma volta fechada e, na curva do caminho, Roselle enxergou
ao longe os muros altos de uma grande propriedade.

— É ali a Fazenda Montenay — disse o motorista, reduzindo a

marcha para estacionar o ônibus no pequeno acostamento. — Basta
seguir esta ladeira até o alto. Boa sorte.

— Muito obrigada. Até outra vez.

— Passe bem.

Roselle desceu do ônibus e olhou para o alto. Que distância havia

dali até a casa? Um quilômetro? Dois quilômetros?

Tomou coragem e começou a caminhar rapidamente na direção

indicada. A tarde estava quente e o ar parecia absolutamente parado.

Felizmente algumas árvores davam sombra de um dos lados da

ladeira íngreme, coberta de pedras miúdas, que dificultavam os passos,
especialmente com salto alto. Roselle foi obrigada a parar diversas vezes

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e enfiar os dedos no interior do sapato, a fim de tirar algumas pedrinhas
que estavam machucando a sola do pé.

O ar estava impregnado com o perfume das uvas pretas que caíam

dos cachos. Estava tudo em silêncio e Roselle não ouvia nenhum ruído, a
não ser o chiado dos sapatos em cima do cascalho.

O calor e o silêncio davam um cunho de irrealidade à paisagem

campestre. Parecia que estava andando no cenário de uma peça.

Estava indo na direção certa? Aquela casa que avistava no alto do

morro, brilhando como uma jóia no meio da vegetação exuberante era
realmente a residência de León? Ou era uma miragem produzida pelo
calor?

Por mais que andasse, ela não se aproximava nunca do portão.

Talvez não chegasse nunca lá. Talvez continuasse subindo a vida toda,
como um castigo por seus erros.

Que horas eram? Roselle olhou para o pequeno relógio de pulso e

franziu a testa. Três e meia. Tinha que andar depressa se quisesse pegar
o trem noturno para Paris. O calor, porém, não dava disposição para
apressar o passo. Estava ensopada de suor. Tinha vontade de tirar o
vestido de jérsei que grudava no corpo, atirar para longe os sapatos de
salto alto que machucavam os pés e sair correndo pelo campo, por cima
das flores silvestres, até o pequeno riacho que corria no fundo do vale.

O salto do sapato escorregou em cima de uma pedra maior e Roselle

deu um grito de dor, como se tivesse torcido o tornozelo. Tinha que tomar
cuidado, ver onde pisava. Não podia fraturar um ossinho do pé,como
acontecera com Anya.

Embora andasse com cuidado, tomou a tropeçar numa pedra. Desta

vez a dor correu perna acima como uma pontada. Roselle deu dois passos
vacilantes antes de sentir as pernas bambas, sem sustentação.

No instante seguinte, caiu de joelhos no chão.

Morta de calor, o suor escorrendo pelo corpo, ardendo nos olhos, ela

se apoiou nas duas mãos e ergueu-se com dificuldade. Limpou o vestido
sujo de poeira e mordeu o lábio com um tique nervoso. Tentou andar
novamente e então percebeu que tinha quebrado o salto do sapato na
queda.

Ah, isso era demais! O dia inteiro fora uma série de desastres. Com

uma careta de dor, capengou até a beira do caminho e sentou-se no
tronco de uma árvore.

Após retirar o sapato do pé, Roselle examinou cuidadosamente o

calcanhar. Um músculo estava visivelmente inflamado, como podia
constatar pela mancha avermelhada em volta do tornozelo. O que podia
ser?

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Não devia ter feito essa viagem. Devia ter voltado de Dijon. Não

valia a pena conhecer a fazenda e encontrar-se novamente com León, se
isso implicava em torcer o pé e arruinar sua carreira de dançarina. O que
ia fazer agora? Voltar? Continuar?

Não havia ninguém a quem pedir ajuda. Teria que ficar sentada ali,

até que alguém passasse, ou que o pé melhorasse um pouco e ela
pudesse subir capengando o resto da ladeira.

Nada saíra certo naquele dia. Tinha a intenção de chegar à fazenda

bem vestida e elegante, como uma mulher de Paris, a fim de provar a
León que não era mais a adolescente acanhada com quem se casara há
cinco anos, nem a garota ingênua que ele seduzira facilmente no
apartamento de Londres.

Em vez disso, contudo, ia aparecer diante dele como um trapo,

coberta de poeira, suada, mordida pelos mosquitos, com o pé torcido, o
salto do sapato quebrado, os cabelos sujos e desgrenhados, o rosto
vermelho e brilhante de suor.

Com um suspiro de desânimo, Roselle abriu a bolsa, tirou o pente e

o espelhinho e começou a pentear lentamente os cabelos. Pelo menos era
uma ocupação que a distraiu durante alguns minutos.

Tinha acabado de guardar o espelhinho na bolsa quando levantou a

cabeça repentinamente ao ouvir o ronco de um veículo que se
aproximava. Ah, estava salva! Pediria uma carona ao motorista.

Roselle levantou-se cambaleante e aproximou-se do meio da

estrada, onde parou com os olhos arregalados. Podia avistar o veículo que
subia a ladeira numa nuvem de poeira. Era um caminhão velho, do tipo
que se usa no interior para transportar frutas e legumes ao mercado.
Roselle acenou com a bolsa e recuou um passo, como medida de
segurança.

Havia duas pessoas sentadas no interior. Uma delas avistou-a de

longe e debruçou-se para fora da janela. No instante seguinte o caminhão
parou ao lado de Roselle, levantando uma nuvem de poeira.

— O que foi?

A mulher de vinte e poucos anos, grande e cheia de corpo, de

cabelos louros caídos em cima dos ombros, olhos claros e faces coradas,
examinou-a com atenção, com a cabeça e os braços para fora da janela.

— Eu torci o calcanhar e não posso andar. Vocês podem me dar uma

carona até a fazenda?

— Mais oui! — exclamou a mulher.

Ela abriu imediatamente a porta do caminhão e pulou na estrada.

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Após examinar rapidamente o pé inchado de Roselle, voltou-se para

trás e gritou para o homem, que estava dentro do caminhão.

— Pierre, dê uma mão aqui! Vamos ajudar a moça a subir no

caminhão.

— Não precisa — disse Roselle com um sorriso sem jeito. — Eu subo

sozinha.

— Não, não faça força — disse a moça de cabelos louros.

— Vamos levantá-la — disse Pierre, aproximando-se das duas.

Ele também era forte, cheio de corpo, extremamente parecido com

a mulher, se bem que os cabelos fossem mais escuros que os dela. Estava
com uma calça desbotada e uma camiseta branca de algodão. Por baixo
do bigode comprido, enrolado nas pontas, os dentes brancos brilhavam
num sorriso aberto.

— Vamos lá.

Pierre enlaçou Roselle pela cintura e levantou-a nos braços como se

fosse uma boneca de pano. A mulher loura subiu no caminhão e sentou-se
ao lado dela. Pierre tomou seu lugar na direção e, após engatar a primeira
marcha, arrancou morro acima. O caminhão trepidava como se fosse
desmanchar.

— É a primeira vez que você vem aqui?

— É. Eu não conhecia o caminho. Faz horas que estou viajando.

— Você veio de Paris?

— Vim. León está em casa?

— Está, sim. Ele está esperando por você?

— Não. Eu não avisei que vinha.

— Ah, bom. Ele não disse mesmo que estava esperando uma visita.

O comentário da moça loura levou Roselle a desconfiar de que ela

fosse Adèle, a caseira, a mesma que escrevera a carta a León quando ele
estava em Londres.

— Como você se chama?

— Adèle. E esse aqui é meu irmão, Pierre.

— Muito prazer — disse Pierre com cerimônia.

— Muito obrigada pela carona, Pierre. Eu me chamo Roselle.

— Ah, não me diga! — exclamou Adèle com o rosto radiante. —

Você é a mulher de León? É você que dança balé?

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— Eu mesma — disse Roselle, sem jeito. — Ele falou alguma coisa a

meu respeito?

— Mais oui! León fala muito em você. Ele me contou que você

morava com a avó dele em Paris. — Adèle voltou-se para o irmão. —
Pierre, esta moça aqui é a esposa do meu patrão. Ela veio visitar a
fazenda.

— Espero que você goste daqui — disse Pierre com um sorriso.

— Eu também — murmurou Roselle em voz baixa.

Ela estava sem jeito diante da alegria espontânea de Adèle.

Lembrou-se de que a acusara na sua crise de raiva de ser a amante de
León. Fora tremendamente injusta no seu julgamento. Adèle tinha a
simpatia e a franqueza de uma mulher do interior.

O caminhão contornou a encosta íngreme do morro, passou por

baixo de um caramanchão e entrou no pátio interno de pedras. Os muros
estavam cobertos de heras e trepadeiras.

Os tijolos descobertos da casa lembravam a cor do vinho tinto.

Pierre transportou Roselle nos braços até a porta da frente.

— Vamos entrar – disse Adèle, afastando-se da soleira para os dois

passarem.

A sala da frente dava para uma varanda coberta e tinha traves de

madeira no teto, como era costume nas casas antigas. Pierre deitou
Roselle no sofá da sala e afastou-se com um gesto cerimonioso da cabeça.

— Muito obrigada, Pierre. Desculpe o trabalho que lhe dei.

— Não foi nada. Se precisar de alguma coisa, estamos aí.

Adèle ajoelhou-se aos pés de Roselle e examinou rapidamente o

tornozelo inflamado.

— Está bem inchado — comentou em voz baixa. — Isso é bom sinal.

Eu vou buscar água quente para fazer uma compressa.

Roselle ficou sozinha na sala silenciosa, perfumada pelo vaso de

flores colhidas aquela manhã no jardim. Embora a sala estivesse bem
arrumada e impecavelmente limpa, a impressão geral era de uso. O tecido
do sofá estava desbotado pelos anos e o tapete estava ruço e gasto em
diversos lugares.

— Esta compressa de água quente vai aliviar a dor — disse Adèle

voltando minutos depois com uma bacia. — Levante um pouquinho a
perna. Assim.

Roselle mergulhou a perna na água quente e sentiu um alívio

imediato.

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— Você disse a León que eu cheguei?

— Pierre foi avisá-lo. Ele está trabalhando no outro lado do campo.

— Ah, bom. Eu não posso demorar muito.

— Você levou muito tempo para chegar aqui?

— Ah, nem me fale! Parecia que não ia chegar nunca.

— Coitada! Você deve estar cansada, com sede e com fome. Eu vou

preparar um lanche. O que você prefere, uma limonada gelada ou um café
com leite?

— Uma limonada, por favor.

Adèle levantou-se do chão, onde estava fazendo massagem no

tornozelo inchado, e saiu da sala com o ar desembaraçado de uma mulher
saudável, cheia de vida.

Minutos depois estava de volta com uma bandeja onde havia um

copo grande de limonada, cheio até a borda, e um pratinho com
sanduíches, biscoitos e brevidades.

— Nossa, quanta comida! — exclamou Roselle, erguendo-se no sofá.

— Tudo isso é para mim? Ou você vai me fazer companhia?

— Muito obrigada. Eu já almocei.

Adèle colocou a bandeja ao lado do sofá e sentou-se num banquinho

de madeira. Em seguida, apanhou uma toalha de rosto e estendeu-a em
cima dos joelhos. Com todo o cuidado, levantou a perna ferida de Roselle
e ajeitou-a em cima da toalha.

— Vamos examinar de novo esse tornozelo. Ah, acho que já

melhorou com a água quente. Vamos enxugá-lo agora e você vai se deitar
com o pé em cima da almofada. Assim. Mais tarde, se você quiser, eu
passo uma atadura na perna. Mas é preferível você ficar em repouso
alguns dias.

— Não posso! — exclamou Roselle com vivacidade. — Tenho que

voltar hoje mesmo para Paris.

— Com essa perna assim? — perguntou Adèle, com os olhos

arregalados. — Você não pode andar.

— Será que eu não arrumo uma muleta?

— Onde?

— Não sei... Numa farmácia, talvez.

— Não há farmácia aqui. A mais perto fica em Tournus, a meia hora

daqui. — Adèle levantou-se com a bacia na mão. — Eu vou apanhar uma
revista para você ler enquanto espera por León. Ajuda a passar o tempo.

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Adèle era muito boa, boa até demais, e era natural que

demonstrasse afeição por León, tanto mais que os dois moravam sozinhos
na mesma casa. Mas que importância tem isso? Pensou Roselle, mordendo
o lábio. Que diferença faz se Adèle e León fossem amantes, como ela
tinha suspeitado desde o início? Não gostava mais dele. Tudo isso lhe era
absolutamente indiferente.

Ela gemeu e afundou o rosto nas mãos. Que idéia ir a Montenay!

Podia ter deixado os dois em paz. Se pudesse andar normalmente, partiria
sem demora da fazenda, desceria a ladeira de pedras que levava à
estrada, tomaria o ônibus para Dijon e chegaria à noite em Paris. Partiria
antes que León voltasse do campo. Assim, pelo menos, evitaria encontrá-
lo outra vez.

Roselle passou as pernas para fora do sofá e tentou ficar de pé. A

dor subiu músculo acima e arrancou-lhe um gemido. Era inútil insistir. Não
podia andar com a perna naquelas condições. Estava presa ali e tinha que
aguardar a vinda de León.

Adèle voltou com uma coleção de revistas velhas que colocou em

cima da mesinha, ao lado do sofá.

— Quer mais alguma coisa?

— Não, muito obrigada.

Roselle apanhou uma revista na pilha e folheou-a distraidamente,

consciente de que as horas passavam e que o sol se punha
inexoravelmente no horizonte. O relógio da sala batia as horas e as meias
horas. Quatro horas, quatro e meia, cinco horas, cinco e meia.

Nenhum sinal de León. Nem de Adèle, tampouco. Estava sozinha na

sala sombria e sua impaciência não tinha fim.

De novo desceu as duas pernas do sofá. Desta vez, porém, não

tentou ficar de pé. Levantou a perna machucada e foi dando pulos até a
janela. Avistou dali as plantações, o pomar bem cuidado, o brilho do
riacho que corria no fundo do vale. Do outro lado havia carreiras e mais
carreiras de vinhas, carregadas de cachos, e, bem mais além, o maciço
azulado das montanhas no céu da tarde.

Onde estava León? Por que não tinha voltado ainda? Por que não

parava o que estava fazendo e vinha correndo ao seu encontro?

Frustrada e irritada consigo mesma, Roselle voltou aos pulos para o

sofá e agarrou-se no encosto. No instante seguinte ouviu passos e vozes
no corredor. A voz de Adèle encobriu por momentos a voz baixa do
homem.

Roselle animou-se e preparou-se para recebê-lo. Era preferível estar

de pé quando León entrasse na sala do que deitada como uma inválida no
sofá. Era melhor recebê-lo com o rosto sereno do que demonstrar
excitação. Afinal, ela não tinha ido à fazenda para fazer as pazes.

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— Roselle! — exclamou León ao entrar na sala. — Que surpresa

encontrá-la aqui. Eu estava com muita saudade de você, petite.

Ele correu ao encontro dela de braços abertos. Adèle estava parada

na porta da sala, presenciando a cena em silêncio. No instante em que
León enlaçou-a pela cintura e beijou-a na boca, Adèle virou as costas e
afastou-se pelo corredor sombrio.

Roselle fechou os olhos e sentiu o cheiro forte de terra e de folhas

esmagadas. O beijo foi tão inesperado que ela ficou tonta e agarrou-se
instintivamente no pano da camisa de algodão, que estava suada e quente
da caminhada.

Ao levantar a cabeça, avistou os cabelos castanho-escuros caindo

sobre a testa, o sorriso de satisfação no,canto dos lábios.

— Eu tinha esquecido o gosto que você tem — murmurou León no

seu ouvido.

Antes que ele a beijasse de novo, Roselle afastou a cabeça e o beijo

foi parar em cima dos cabelos.

— Chega de beijos. Adèle já foi embora.

León fitou-a com a testa franzida e soltou-a dos seus braços.

Roselle perdeu o equilíbrio e colocou o pé machucado no chão. No

mesmo instante deu um grito de dor.

— O que foi? O que você tem?

— Torci o calcanhar na ladeira. Não posso nem encostar o pé no

chão.

— Fique deitada, então — disse León, segurando-a pela cintura.

— É isso o que eu vou fazer.

— Espere. Eu vou levá-la até lá.

Depois de deitá-la no sofá, León sentou-se no banquinho de madeira

e examinou o pé machucado. A mão dele estava quente e parecia queimar
sua pele. Os dedos compridos tocaram de leve no local inflamado e
correram pelo tendão, em direção ao joelho. Roselle ficou toda arrepiada e
retirou a perna com um movimento brusco.

— Está doendo?

— Um pouco.

— Como foi que você caiu?

— Subindo a ladeira. Adèle não contou que me deu uma carona?

— Ela disse apenas que havia uma visita para mim.

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— Você levou um tempão para vir.

— Eu estava do outro lado do vale. Pierre custou a me encontrar.

Por que você não avisou que vinha? Eu podia ter ido buscá-la em Dijon.

— Pois é. Podia. Mas eu resolvi vir de uma hora para a outra.

Contava chegar muito antes, mas tudo saiu errado. Saí tarde de casa e
perdi o trem expresso de Paris. Depois esperei meia hora na estação pelo
ônibus de Bezalay. Por último, torci o pé na ladeira.

— Que azar!

— O pior é que eu tenho que voltar sem falta no trem noturno. Vim

aqui para decidir a questão do nosso casamento.

Ela estava nervosa e excitada, ao mesmo tempo, com a proximidade

de León. Podia ver a pele suada por entre os botões abertos da camisa, os
músculos fortes dos ombros e o cheiro penetrante de terra misturado ao
aroma ácido das uvas esmagadas que tinham manchado a camisa. León
era um homem do campo e transpirava uma sensualidade máscula que
agia sobre ela como um excitante. Era muito diferente dos dançarinos de
balé ou dos homens de meia-idade do tipo de Adrian.

— Eu também pensei nisso ultimamente — comentou León após

uma pausa. — E estou disposto a resolver esse assunto de uma vez por
todas. — Ele tornou a fitá-la com o mesmo olhar de cobiça de antes e
Roselle sentiu-se vulnerável, pronta a ceder ao desejo que lhe mordia o
peito. — Só que não podemos resolver isso na correria. Você tem que ficar
alguns dias aqui.

— E impossível!

— Você precisa repousar uns dias. Essa inflamação não vai ceder de

uma hora para a outra.

— Eu não posso ficar nenhum dia aqui! — exclamou Roselle com

nervosismo. — Tenho que estar de volta a Paris hoje à noite, sem falta.
Eu prometi.

— A quem?

— A um conhecido meu.

— Isso não é problema. Você telefona e conta o que aconteceu. Ele

vai compreender.

— Não adianta você insistir. Eu tenho que ir embora.

— Como você vai fazer para chegar a Dijon?

— De ônibus. Como eu vim.

— O último ônibus para Dijon já passou.

Roselle fitou-o com um misto de frustração e de raiva.

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— Nesse caso, vou pedir a Pierre para me levar até Dijon.

— Pierre já foi embora e Adèle também. Não há mais ninguém na

casa. Como você vê, não há outra alternativa senão passar a noite aqui.
Quem sabe se amanhã seu tornozelo melhorou e você poderá andar
normalmente?

— Eu não trouxe nada comigo. Nem uma roupa.

— Eu também não levei muita roupa quando fui visitá-la em

Londres, mas fiquei lá dois meses. Esse vestido que você está usando é
muito bonito, mas não é próprio para andar na fazenda. Quanto às
sandálias... — León segurou uma delas na mão e deu um assobio. —
Nossa, que salto alto! Foi por isso que você torceu o pé. Como não há
ninguém em casa, você pode andar descalça. — León levantou-se do
banquinho. — Vamos tomar um vinho para comemorar a ocasião?

Sem aguardar resposta, León saiu da sala e voltou um minuto

depois com uma garrafa e dois copos na mão. Roselle lembrou-se da
outra vez em que os dois tinham conversado diante da lareira tomando
vinho tinto. Ela não podia passar a noite naquela casa sozinha com León
de jeito nenhum. Tinha que voltar de qualquer maneira para Paris. Mas
como? Não havia ninguém por perto. Adèle e Pierre estavam longe dali.

— Este vinho é da fazenda? — perguntou Roselle quando Leon

estendeu-lhe o copo cheio.

— Sim. É o vinho da safra de dois anos atrás. A partir de então as

safras estiveram fracas e o tempo não ajudou muito. Mas eu espero ter
mais sorte neste verão.

Roselle deu um gole e fitou-o com atenção.

— León, eu preciso ter uma conversa com você.

— Pode começar. Estou ouvindo.

Como ela faria para explicar o motivo da viagem? Sentado ao lado

dela, com as pernas roçando na sua, León a observava com uma
expressão de cobiça nos olhos. Roselle encarou-o sem jeito, sentindo
novamente as pontadas do desejo na boca do estômago. Ah, por que
tinha que ser assim? Por que León a perturbava daquele jeito? Ela tinha
vontade de estender os braços, segurar o rosto dele entre as mãos, puxá-
lo para si e abandonar-se de novo ao prazer do momento.

Estava tremendo tanto quando levou o copo aos lábios que

derramou sem querer algumas gotas de vinho sobre o vestido novo de
jérsei.

— Ah, que desastre! Veja o que eu fiz!

— Não foi nada — disse León, secando a mancha do vestido com o

lenço. — Isso sai quando lavar. Eu vou apanhar mais um pouco para você.

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— Não precisa, muito obrigada. Eu não quero mais.

León voltou-se bruscamente em direção à porta da sala.

— Quem está aí? Eu ouvi passos no corredor...

No instante seguinte, Adèle entrou na sala com duas muletas na

mão. O rosto corado dela estava radiante de alegria.

— Olhe só o que eu achei!

— Que maravilha! — exclamou Roselle com animação. — Um par de

muletas!

— Eu sabia que tinha visto um par de muletas em alguma parte.

— De quem são? — perguntou León.

— De Gilles. Lembra que ele quebrou a perna num tombo?

Adèle aproximou-se do sofá e estendeu as muletas para Roselle.

— Muito obrigada, Adèle. Você resolveu um grande problema. Agora

posso andar.

— Foi o que eu pensei — disse Adèle com um sorriso de triunfo. —

Só assim você pode voltar hoje à noite para Paris.

— Roselle não vai voltar mais. — León interveio com a voz cortante.

— Ela vai ficar aqui alguns dias, talvez todo o verão.

León apoiou-se no sofá e, de braços cruzados, encarou a caseira

com expressão impassível.

— Nesse caso, eu vou preparar o jantar — disse Adèle no mesmo

instante. Voltou-se para Roselle com um sorriso. — Você não pode
cozinhar enquanto estiver com o pé torcido. Nem mesmo com a muleta...

— Eu vou fazer o jantar — disse León com o rosto sério. — Você

pode voltar para casa, Adèle. Muito obrigado pelas muletas e boa noite.

— Você não prefere que eu fique? — insistiu Adèle, dirigindo-se a

Roselle, que ouvia a conversa em silêncio.

— Quem manda aqui sou eu, Adèle. Volte para a sua casa como eu

falei.

— Pois não, patrão. Já vou indo. Boa noite, Roselle. Espero que sua

perna melhore até amanhã.

— Muito obrigada, Adèle. Uma boa noite para você também.

Depois que a moça saiu, a sala ficou repentinamente silenciosa, com

exceção do canto estridente das cigarras no quintal. León colocou mais
vinho nos copos e estendeu um a Roselle, que começou a tomá-lo

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lentamente, procurando comportar-se com naturalidade. Leon apanhou o
outro copo e foi sentar-se no banquinho em frente ao sofá.

— Por que Adèle não mora mais aqui?

— Porque ela não se conformou em ser apenas uma caseira. Ela

queria ser a dona da casa e dormir na mesma cama que eu. Foi por isso,
aliás, que ela teve um filho com Paul. Ela contava como certo que Paul ia
pedi-la em casamento. Paul, porém, ficou tão assustado com a idéia que
teve um ataque do coração e morreu.

— Ela não quis ter um filho com você?

— Por enquanto, pelo menos, não fez nenhuma tentativa nesse

sentido. De qualquer maneira, eu deixei bem claro que nós continuamos
casados e que não existe a menor possibilidade de ela realizar seu sonho.
Adèle está morando com Pierre, mas vem sempre aqui, com a esperança
de que eu sucumba aos seus encantos.

— Ela é muito atenciosa, de fato.

— Eu não falei?

— Ela deve achar estranho nós dois vivermos separados...

— Ela sugeriu isso uma vez. Deu a entender que você não se

conduzia corretamente comigo, como convém a uma mulher casada.

— Em que sentido? — perguntou Roselle com a testa franzida.

— No sentido em que você não dorme comigo, não cozinha para

mim, não varre a casa para mim, não costura as minhas roupas...

— Você podia ter me falado isso naquela manhã em Londres,

quando conversamos sobre esse assunto.

— Eu deixei claro, naquela ocasião, que Adèle não significava nada

para mim. Mas você não aceitou a minha explicação. Aliás, para falar a
verdade, você estava muito esquisita naquela manhã.

— Claro! Depois de ler a carta dela eu só podia ficar uma onça!

— Antes de tudo, você não devia ter lido uma carta dirigida a mim.

Em segundo lugar, não devia ter feito nenhuma suposição gratuita a
respeito do meu relacionamento com Adèle...

— Pois sim!

— Está vendo só? Voltamos ao ponto de partida. Estamos brigando

de novo por causa de Adèle.

— Eu achei que você tinha me traído, como ainda acho.

— Pois eu podia jurar que você estava contente com a minha estada

de dois meses no seu apartamento. Quem vai entender as mulheres?

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— Se você reconhece que a gente não se entende, a melhor solução

é nos separarmos definitivamente. Foi por isso que eu vim aqui. Para
decidir a questão do divórcio com você.

— Divórcio? Por quê? Para quê?

— Para que o quê?

— Para que você quer o divórcio?

León estava sentado no sofá com o braço apoiado no encosto.

Roselle sentiu o aroma do vinho tinto no seu hálito. Por entre a gola

aberta da camisa avistou os pêlos negros que nasciam no peito. Correu o
olhar cintura abaixo, até os músculos da coxa, visíveis sob o tecido leve
da calça de verão. Ela sentiu subitamente uma pontada forte de desejo.

Nunca sentira vontade de tocar nenhum outro homem antes, dessa

forma incontrolável. Somente León fazia seus ossos derreterem de desejo.
Mas isso não tinha nada a ver com amor. Era um impulso inteiramente
primitivo, animal

— Eu quero me casar de novo — respondeu por fim. — Tenho um

pretendente.

— Só um?

— Um só não basta?

Havia apenas alguns centímetros de distância entre os lábios dele e

os dela. Roselle inclinou a cabeça para trás e observou-o por baixo dos
cílios compridos.

— Uma mulher bonita como você deve ter recebido mais de uma

proposta neste período de dois anos. Você é muito desejável, petite —
acrescentou León, desenhando o contorno dos lábios dela com a ponta do
dedo. — Quando você inclina a cabeça para trás como agora, eu não
resisto à tentação de beijá-la.

Ela ficou momentaneamente tonta com o forte aroma que vinha dos

cabelos suados de León. Os lábios dele estavam pegando fogo e as mãos
desceram furtivamente pelo decote do vestido. Imediatamente Roselle
sentiu o corpo arder de desejo.

— Pare com isso! — exclamou, puxando com toda a força a cabeça

dele para trás, pelos cabelos. — Eu não vim aqui para isso.

León deu um gemido e segurou as mãos dela.

— Você me machucou.

— Bem feito! Quem manda você me agarrar à força? Eu vim aqui

para conversar sobre o divórcio e não para fazer amor com você.

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— Você podia ter tratado disso através do advogado. Não precisava

ter vindo aqui.

— Achei que era mais educado conversar o assunto pessoalmente.

— Muito obrigado pela atenção, querida. Eu fiquei muito contente

com a sua visita inesperada. Estava morrendo de saudade... Você me
deixa louco.

— Não sou eu, querido. E o vinho que você tomou.

— Você custou tanto a vir que eu já estava perdendo as esperanças.

— Eu não teria vindo realmente se soubesse que ia torcer o pé

nessa maldita ladeira e que você ia me tratar com esse pouco caso. Agora
eu estou presa neste sofá, sem poder andar...

— Não seja por isso — disse León, levantando-a no colo com um

gesto rápido. — Eu posso carregá-la pela casa toda. Para onde você quer
ir? Para o nosso quarto?

— Ponha-me no chão! — berrou Roselle, batendo no peito dele com

os punhos fechados. — Eu não quero ter nada com você! Solte- me! Você
está me machucando!

— Mentira — disse León com um risinho irônico. — Eu aposto que

adivinhei seu desejo.

— Eu não quero dormir com você! Não quero!

Apesar dos protestos dela, León encaminhou-se para o quarto de

dormir.

— É ridículo ir para a cama a essa hora do dia — exclamou Roselle,

debatendo-se nos braços dele. — Ponha-me no chão.

— A gente fecha as janelas e o quarto fica escuro — disse ele ao

entrar no quarto de dormir. — Eu prometo que não vou machucar seu pé
torcido.

— Você é um bruto, um animal no cio!

Ele aproximou-se da cama na ponta dos pés e deitou-a

cuidadosamente em cima da colcha. O quarto estava mergulhado na
penumbra. No primeiro instante, Roselle pensou em rolar sobre o colchão
e pular do outro lado da cama, mas a dor que sentiu no tornozelo
inflamado foi tão forte que inundou seus olhos de lágrimas. Com os
cabelos soltos, espalhados sobre o travesseiro, ela parecia uma
adolescente.

León tirou a camisa, soltou o cinto e atirou a calça para longe. O

colchão afundou sob seu peso no momento em que ele se deitou ao lado
dela e correu os dedos pela cintura, à procura do zíper do vestido.

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— Eu não gosto de você — disse Roselle por entre as lágrimas que

rolavam pelos olhos. — Você está perdendo seu tempo à toa. Eu não sinto
mais prazer com você. Você me repugna fisicamente.

— Mentirosa — murmurou León no seu ouvido. — Eu não acredito

em uma palavra que você diz. Você mentiu para mim em Londres e está
mentindo de novo agora.

— Eu estou falando a verdade. Eu não gosto de você.

— O que é o amor? Um desejo irresistível, mais nada. Você me

deseja, eu sei. Foi por isso que você veio aqui.

— Juro que não foi — balbuciou Roselle, a voz abafada pelos lábios

que cobriam sua boca.

Ele desceu a cabeça em direção aos seios e roçou os lábios úmidos

nos bicos intumescidos, por entre o decote fundo do vestido. A excitação
habitual, que ela conhecia tão bem, voltou a cegá-la para tudo o mais. Era
impossível resistir à onda de sensualidade que a envolvia dos pés à
cabeça.

Com os olhos fechados, para não ver o corpo musculoso à sua

frente, a respiração presa, para não sentir o aroma forte que vinha dos
cabelos suados, Roselle procurou manter-se imóvel, fria, sem demonstrar
nenhuma excitação. León não acharia graça em possuí-la dessa forma e a
deixaria em paz.

Entretanto, ao sentir os lábios dele pousados sobre os seus, ela

abriu sofregamente a boca e sorveu o gosto adocicado de vinho que
restava na língua dele. Imediatamente sua cabeça começou a girar e o
coração disparou como se fosse estourar. Seu corpo estava tão contraído
de desejo que chegava a doer.

— Abrace-me, abrace-me com força, com toda a força — murmurou

no ouvido dele, estreitando-o nos braços, esfregando as palmas das mãos
nas costas suadas. — Você me deixa louca!

— Você gosta um pouquinho de mim? — perguntou León com um

risinho.

— Eu o odeio, odeio! Você é um monstro...

No instante seguinte, quando o ardor do desejo atingiu todos os

nervos de seu corpo, os ressentimentos acumulados durante os últimos
meses vieram à tona, sufocando-a. Ela tinha vontade de matá-lo de
prazer por todo o mal que León lhe fizera passar. A agressividade sexual
foi a forma que sua vingança assumiu.

Mais tarde, porém, livre do ódio e da raiva, apaziguada pela

satisfação dos sentidos, ela experimentou o prazer supremo do sexo
acompanhado de uma explosão de alegria.

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Afundou a cabeça do peito de León, em meio aos soluços e às

lágrimas que rolavam pela face corada, até sucumbir finalmente ao sono,
vencida pelo cansaço físico.

Nunca antes, nem mesmo durante os dois meses que León morou

no apartamento em Londres, Roselle tinha experimentado um desejo tão
devastador quanto aquele — seguido pouco depois por uma satisfação
igualmente completa.

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CAPÍTULO IV

— Roselle!

Ela ouviu seu nome ser pronunciado no fundo do sono, chamando-a

para a superfície da consciência. Roselle sonhara muitas vezes que ouvia
León chamá-la dessa forma, com insistência e uma certa impaciência na
voz, como se não compreendesse a razão de seu sono profundo.

Entretanto, ela não queria acordar, preferia continuar dormindo

mais algumas horas. No sono não havia sofrimento, remorso, sentimento
de culpa.

— Roselle, acorde!

Desta vez a voz soou com urgência. Ela voltou a cabeça na direção

do chamado e abriu as pálpebras pesadas de sono.

— O que é?

— São sete horas. O café está pronto.

— Sete horas? É cedo ainda...

— Você dormiu doze horas seguidas, petite. Como uma criança de

colo.

León estava sentado na beira da cama, de lado para ela,

inteiramente vestido. Acabara de tomar banho e os cabelos molhados
estavam assentados na cabeça. De todo o seu corpo transpirava um ar de
saúde e vitalidade. Os olhos escuros, ligeiramente cerrados, fitavam-na
com indolência.

O sol entrava pela janela aberta e tecia desenhos de sombra e de

luz no tapete.

— Que sono, meu Deus! — exclamou Roselle com um bocejo,

puxando o lençol até o pescoço. Ao perceber que estava nua, lembrou-se
no mesmo instante do que sucedera na noite anterior. Bastara apenas
passar algumas hora na casa, sozinha com León, para ceder ao desejo. —
Ah, eu não vou perdoá-lo nunca. Nunca!

— Perdoar o quê?

— O que você me fez ontem à noite.

— O que foi que eu fiz?

— Você sabe muito bem!

— Eu só me lembro de que fizemos amor. O que é uma coisa muito

normal no casamento. A expressão do sentimento mútuo...

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— Sentimento? Você não tem sentimento nenhum. Você é um bicho!

Ela passou a mão nos cabelos com um gesto nervoso ao ver o olhar

de cobiça que León dirigiu para seu corpo seminu embaixo do lençol.

— Você tem toda razão, querida. Eu sou um bicho. Acontece que

você está muito desejável de uns tempos pra cá e eu perco a cabeça...
como um animal no cio. E você, petite? O que você sentiu ontem à noite?
Asco de mim?

— Não senti nada, absolutamente nada. A não ser indiferença.

— Mentira! O desejo estava visível em seu rosto. Você me agarrou,

me arranhou as costas, me mordeu os lábios... Aposto que você sentiu
mais prazer do que eu...

— Pois sim!

— Sabe o que eu pensei hoje de manhã, quando acordei?

— Não sei e não quero saber.

León ignorou a resposta.

— Eu pensei que muitos maridos invejariam a minha sorte. Afinal,

não é qualquer um que tem uma mulher assim...

— Conversa fiada! Nada disso teria acontecido se eu não tivesse

vindo aqui.

— Você está arrependida?

— Muitíssimo.

— Isso passa depois de alguns dias.

— Você está sonhando! Eu não vou ficar nem mais um dia aqui. Vou

voltar hoje mesmo para Paris. Preciso ir urgentemente ao médico. Não
quero ficar aleijada por causa de um pé torcido.

— Você pode ir ao médico em Dijon.

— Prefiro consultar um médico conhecido. Tenho mais confiança

nele do que num estranho.

— Você conhece algum ortopedista em Paris?

— Conheço o que tratou de Anya, uma amiga minha. Ela fraturou

um ossinho do pé.

Roselle contou brevemente o pequeno acidente ocorrido com sua

amiga e acrescentou, por último, a parte que lhe dizia respeito:

— E foi por isso que eu substituí Anya no balé Giselle durante

algumas semanas.

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— Está vendo só? Tudo tem o seu lado positivo — comentou León.

— O que prejudica a um, favorece ao outro. O afastamento temporário de
sua amiga foi a oportunidade que você aguardava para exibir seus
talentos ao público e à diretora da companhia. Com isso você saiu
ganhando.

— Pois é. Agora eu vou ser convidada para outros papéis principais.

E por isso que não quero correr nenhum risco com o meu pé. Gostaria que
você me levasse a Dijon agora de manhã. De lá eu tomo o expresso para
Paris. Você me faz esse favor?

León observou-a um instante em silêncio. Em seguida, levantou o

lençol e examinou o pé inflamado.

— Melhorou de ontem para hoje. Mais alguns dias e você poderá

andar de novo. É tudo uma questão de repouso. — Ele levantou-se e
dirigiu-se à porta. — Eu vou ver como estão as coisas lá fora.

— Você não vai me levar a Dijon?

Ela sentou-se na cabeceira da cama e puxou o lençol até os seios.

— Infelizmente não dá, querida. Tenho muito trabalho à minha

espera. Acho preferível você descansar mais alguns dias.

— Mas eu já disse que preciso voltar. Eu tenho um compromisso...

— Não se preocupe — interrompeu León com indolência. — Eu disse

ao seu amiguinho que você ia passar alguns dias aqui.

Roselle arregalou os olhos e levou a mão à cabeça.

— Que amiguinho?

Ela não podia acreditar que Adrian tivesse telefonado para a fazenda

na noite anterior.

— Seu amiguinho de Paris. Ele telefonou ontem à noite para saber

notícias.

— Como ele se chama? — perguntou Roselle, com a suspeita de que

León estava mentindo.

— Adrian não sei o quê. Pelo menos foi esse o nome que deu.

— Por que você não me chamou?

— Porque você estava dormindo como uma pedra. Você não quis

nem tomar a sopa que eu fiz.

— Ah, que amolação!

— Eu disse a Adrian que você estava dormindo depois de uma

viagem exaustiva. Ele concordou, inclusive, que era preferível deixá-la

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dormir. — León fitou-a com a expressão interrogativa. — Esse seu
amiguinho é o diretor da companhia de balé?

— Não, mas ele gosta muito de música. Ele é consultor financeiro de

diversas companhias.

— Ah, sei. Um homem rico, pelo jeito.

— Muito. Ele tem uma casa na Riviera.

— E tem tempo de sobra para ir ao balé — acrescentou León com

um sorriso irônico. — Por falar nisso, ele parecia muito preocupado com
você. — León aproximou-se da cama. — Ele é seu amante?

Roselle levou as duas mãos à cabeça, num gesto teatral.

— Só faltava essa! Adrian ser meu amante... Não, ele não é meu

amante. Como eu lhe disse antes, eu não tenho amantes. Sou contrária
ao amor livre. — Ela fez uma pausa e voltou-se para León com o rosto
sério. — Ele deixou algum recado para mim?

— Disse que ia passar por aqui na sexta-feira, a caminho da Riviera.

Perguntou se podia lhe fazer uma visita. Eu disse que sim, que não via
nenhum inconveniente. Foi só isso o que conversamos.

Roselle abaixou a cabeça pensativamente. Adrian passaria na

fazenda a caminho da Riviera. Sexta-feira era o dia seguinte. Adrian e
León iam se encontrar... A menos que ela agisse rapidamente e impedisse
esse encontro de se concretizar.

— León, nós precisamos ter uma conversa urgente.

Ela ajeitou-se na cabeceira da cama e passou a mão com

nervosismo entre os cabelos.

— A respeito do quê? — perguntou contrariado, cruzando os braços

em cima do peito numa atitude impaciente de quem não tem tempo a
perder com futilidades. — Sobre nossa condição matrimonial? De novo?

— É, exatamente. Adrian me pediu em casamento.

— Hum! — exclamou León com um assobio. — Quer dizer que foi

Adrian que a pediu em casamento... Ele está informado a respeito de
nossa situação?

— Lógico. Ele não fez nenhuma objeção. Mas eu preciso estar

divorciada para aceitar o pedido.

— Entendi. Você quer o divórcio.

— Eu preciso estar livre para casar com Adrian.

León continuou em silêncio durante alguns segundos.

— Quais são os termos do divórcio? — indagou por fim.

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— Ah, isso não interessa! — exclamou Roselle com impaciência. — O

importante é que a gente chegue a um acordo.

— Sem dúvida.

— Afinal, estamos casados há cinco anos e nunca moramos juntos, a

não ser naqueles dois meses em Londres.

— Isso é verdade — concordou León. — Mas foi devido às

circunstâncias. Você tinha seu trabalho em Londres e não podia se mudar
para cá. Eu, por outro lado, não podia abandonar a fazenda e me mudar
para Londres. Foi por isso que nunca insisti para morarmos juntos. Você
tinha que escolher espontaneamente a melhor solução.

— Eu não vejo motivo para continuarmos casados — acrescentou

Roselle com impaciência. — Você não gosta de mim e nunca gostou.
Casou comigo unicamente para fazer a vontade de sua avó.

— Você tem toda razão. O amor não entrou em nosso casamento e

eu nunca pretendi que entrasse... como você.

— Eu não menti quando disse que gostava de você. Aliás, não teria

aceitado a sugestão de Olga se não gostasse. Nem deixaria você passar
aqueles dois meses em Londres comigo. Você não... Você ficou lá apenas
por comodismo, porque não tinha nada melhor para fazer.

— O que você queria? Que eu largasse tudo por sua causa?

— Isso mesmo!

— Eu tenho que trabalhar para não morrer de fome. Por outro lado,

insisti mil vezes para você vir passar uns tempos aqui. Você não veio
porque não quis.

— Eu preferia não ter vindo nunca! — exclamou Roselle com

irritação. — Só assim não ficaria sabendo de suas aventuras.

— Adèle não é e nunca foi minha amante, e mesmo que fosse isso

não lhe diz respeito. Eu já expliquei claramente a situação. Você finge que
não ouve.

— Você pode explicar quantas vezes quiser que eu não acredito. E,

se não for Adèle, é uma outra qualquer...

— Por que você não fica algum tempo aqui para tirar isso a limpo?

— Porque eu tenho mais o que fazer do que espionar sua vida.

— Você é engraçada. Ontem à noite me acusou de bicho porque eu

queria fazer amor com você, minha legítima esposa. Hoje você me acusa
de adultério. Onde vamos parar?

— É por isso que eu quero o divórcio!

León ignorou o comentário e dirigiu-se à porta do quarto.

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— A conversa está boa, mas eu tenho trabalho à minha espera. A

gente se vê mais tarde.

— Um minuto! — gritou Roselle, virando-se na cama. — Basta você

dizer que aceita as condições do divórcio e eu parto hoje mesmo para
Paris. Nós não podemos continuar desta forma. Você disse uma vez que
não temos nada em comum e não temos mesmo.

— Eu não concordo com o divórcio. Pelo menos no momento.

— Por quê?

— Porque não posso ter nenhuma despesa extra agora.

— Ah, não venha com essa!

— Estou falando a verdade. Como eu expliquei antes, as duas

últimas safras foram um fracasso. O vinho não teve aceitação no
mercado. Eu tive que fazer um empréstimo para cobrir as despesas. Como
resultado, não tenho no momento a quantia necessária para cobrir a sua
parte na fazenda.

— Quem falou em dinheiro? Eu não vim aqui para cobrar nada. Eu

só quero o divórcio. Mais nada.

— Você não leu o contrato que nós dois assinamos? Está escrito

claramente ali que, em caso de divórcio, eu tenho que restituir a sua parte
na fazenda. Consultei um advogado e ele explicou que eu sou obrigado,
por lei, a satisfazer essa cláusula do contrato e que não há maneira de
contorná-la.

Roselle ouviu a explicação em silêncio, refletindo sobre o significado

profundo daquelas palavras. Se León consultara um advogado é porque
pensara antes no divórcio. Para casar-se com Adèle? Ou havia outra
mulher no plano?

— Eu não faço questão da minha parte.

— Como não?

— Não foi por isso que eu vim aqui.

— Já sei. Você só quer o divórcio. Muito bem. Podemos conversar

isso com calma uma outra hora. Eu quero ver primeiro se Adrian será um
marido melhor do que eu.

— Você não tem nada que se meter na minha vida!

— Claro que tenho. Até o momento eu sou o seu marido e costumo

levar minhas obrigações a sério.

— Mentira! Você nunca me levou a sério — acusou Roselle com

raiva. — Você não fez mais do que se aproveitar da situação. Sou eu que

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sei se Adrian será ou não um bom marido para mim. Você não tem nada a
ver com isso.

— Eu só lhe dou o divórcio depois de conhecer Adrian pessoalmente.

Sem isso, nada feito. Vamos aguardar, portanto, a vinda dele.

Roselle encarou-o com os olhos brilhantes de indignação. Se ficasse

mais uma noite na fazenda e fizesse outra vez amor com León, todos os
seus projetos ruiriam por terra.

— Eu não vou ficar nem mais um dia aqui! — gritou em voz alta, ao

ver León afastar-se pelo corredor. — Ouviu?

Durante alguns segundos ela permaneceu na mesma posição, com a

respiração ofegante, olhando fixamente para a porta aberta.

Em seguida, com uma exclamação de raiva, virou-se de bruços na

cama e deu socos com os punhos fechados no travesseiro. A discussão
com León a perturbara profundamente. Estava ferida e magoada, como se
tivesse saído de uma luta corporal.

Quando Roselle acordou, uma hora mais tarde, refeita da crise de

raiva, a primeira coisa que observou, ao abrir os olhos, foi que as paredes
do quarto tinham sido pintadas recentemente e que a cor escolhida
combinava com as cortinas de damasco. Um tapete igualmente novo
cobria o assoalho de tábuas largas. Aliás, o quarto todo transpirava
elegância e luxo. Era provável que no passado a casa tivesse esse ar de
prosperidade, quando a família toda morava ali e as safras anuais
produziam o vinho mais procurado da região.

Seria gostoso passar o dia naquele quarto, até a hora em que Leon

voltasse do trabalho, esperar a volta dele como a esposa aguarda a volta
do marido no fim do dia, sabendo que sua presença na fazenda era
agradável e que podia ficar ali quanto tempo quisesse.

Roselle deixou o pensamento divagar e sonhou que era a

proprietária legítima da fazenda. Tomaria a seu encargo a direção da casa
antiga, que estava precisando de uma boa reforma. Receberia amigos,
daria festas, faria com que a fazenda recuperasse o esplendor do passado.
Criaria os filhos num ambiente harmonioso, os filhos que teria de León,
meninas de olhos pretos e meninos de cabelos claros.

O sonho murchou de repente. Como podia morar naquela casa se

León não gostava dela? León a desejava fisicamente, mas isso não era
suficiente para serem felizes a longo prazo. Tinha que haver um
sentimento mais elevado, um afeto profundo entre os dois.

Adrian, no entanto, gostava dela. Ele podia ser um homem de idade,

mas não era em absoluto um simples "amiguinho", como Leon dera a
entender. Adrian a fazia sentir-se uma criatura especial, à parte das
outras, e isto satisfazia a vaidade feminina de Roselle.

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Ah, se Adrian fosse um pouquinho mais moço! Se ela não se

sentisse na presença dele como na de um tio camarada que fazia todas as
vontades da sobrinha. Se Adrian fosse enérgico, decidido e independente
como León, seria o melhor marido do mundo.

Roselle virou de lado na cama. O que ia fazer agora? Como podia

esquecer o que acontecera na noite anterior? Como podia apagar a
sensação de abandono que lhe ocorria toda vez que León a estreitava nos
braços? A voz dele tinha um som peculiar no seu ouvido, suave e
ligeiramente ofegante, como um suspiro de desejo. Os lábios dele
irradiavam erotismo...

— Bom dia, Roselle. Dormiu bem?

A voz alta de Adèle, no silêncio do quarto, desfez a fantasia erótica

no mesmo instante, como uma ducha fria. Roselle virou a cabeça em
direção à moça de face corada que a examinava com um sorriso nos
lábios.

— Dormi muito bem, obrigada.

— Não estranhou a cama?

— Não, nem um pouco.

Roselle lembrou-se de que estava nua embaixo do lençol e que os

cabelos desgrenhados podiam chamar a atenção de dois olhos atentos e
curiosos como os da caseira.

— Eu trouxe seu chocolate e umas rosquinhas que fiz. Você quer

tomar aí na cama ou na mesinha-de-cabeceira? Posso pôr a bandeja em
cima do seu colo.

— Pode deixar que eu dou um jeito, Adèle. Muito obrigada.

— A manhã está linda — disse Adèle, puxando conversa. — Você

não precisa de mais nada?

— Você me faz um favor?

— Pois não.

— Você apanha a minha bolsa que eu deixei lá embaixo?

— Num minuto.

Roselle aproveitou a saída de Adèle para levantar-se da cama e

vestir uma camisa de León, que encontrou na gaveta do armário. O tecido
grosso de algodão cobria adequadamente sua nudez.

Quando Adèle voltou, minutos depois, ela estava sentada na beira

da cama com a bandeja no colo.

— Pronto, aqui está a sua bolsa — disse Adèle, colocando a bolsa de

couro cru em cima da cama. — Precisa de mais alguma coisa?

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— Não, muito obrigada. Não preciso de mais nada. Você pode me

deixar.

— Eu vou levar a bandeja de volta.

Adèle, pelo jeito, desejava prolongar a conversa mais alguns

minutos. Ao notar que Roselle deixara o armário aberto, ela foi até lá e
fechou a porta. Em seguida, avistou o vestido caído no chão e o apanhou
com uma exclamação de surpresa.

— Mon Dieu! Seu vestido está todo amassado. Ah, que pena! E tem

uma mancha de vinho na saia.

— Pois é. Foi um desastre. O copo escorregou da mão e derramou

vinho na saia. Pode deixá-lo em cima da cadeira. Eu vou vesti-lo assim
mesmo.

— Eu posso lavá-lo num minuto — ofereceu-se Adèle. — Com este

calor, em meia hora ele está seco.

— Não precisa, muito obrigada. Eu não tenho outra roupa para pôr.

Você quer levar a bandeja? Eu já terminei.

Adèle apanhou a bandeja vazia em cima da cama e fez menção de

retirar-se do quarto.

— Se você quiser tomar banho, o banheiro é logo ali, atrás daquela

porta. Foi León quem instalou este banheiro no quarto. Ele teve muito
trabalho com a reforma. Foi ele quem fez tudo, com exceção das cortinas.
Você gostou do quarto?

— Gostei muito — disse Roselle, procurando responder com

paciência às perguntas da moça. — Eu acho que vou tomar um banho
agora. Você pode me deixar.

Adèle porém continuou ao lado da porta, sorrindo angelicalmente e

balançando a cabeça, como se não se cansasse de admirar os cabelos
louros e longos de Roselle.

— Seu filho está sozinho na cozinha? Não tem perigo de ele fazer

uma travessura?

— Ele não veio hoje, felizmente. Você nem imagina as travessuras

que ele apronta quando vem aqui!

— Que idade ele tem?

— Cinco anos.

— Onde ele está?

— Na casa da minha cunhada, a mulher de Pierre. Meu filho precisa

de um pai, alguém que tenha autoridade e a quem ele respeite. Eu preciso
me casar...

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— Você tem alguém em vista?

Adèle deu uma gargalhada sonora.

— Ele é casado.

— Ah, que pena!

As duas ficaram um instante em silêncio.

— Bem, eu vou indo — disse Adèle por fim, fazendo menção de sair

com a bandeja na mão.

— Adèle, eu queria lhe pedir um último favor! — exclamou Roselle

de repente. — Eu preciso voltar sem falta para Paris, se possível agora de
manhã. León está muito ocupado e não pode me levar a Dijon. Eu preciso
consultar urgentemente um especialista. Minha carreira depende disso,
você entende?

— Entendo perfeitamente. O que você quer que eu faça?

— Eu quero que você me ajude a sair daqui.

— Mon Dieu! León vai ficar zangado comigo. Ele mandou eu trazer

seu café e ver se você precisava de alguma coisa. Eu não posso faltar com
a confiança que ele deposita em mim.

No primeiro instante, Roselle ficou irritada com o comentário de

Adèle. Entretanto, havia tanta ingenuidade na fisionomia franca da moça
que era impossível guardar-lhe rancor. Adèle não podia compreender que
uma mulher da cidade pensasse diferentemente de uma mulher do
interior e Roselle não tinha tempo para discutir esse assunto no momento.
Tudo o que desejava era sair rapidamente da fazenda, antes que León
voltasse do campo.

— Você admira muito León, não é verdade?

— Que mulher não admira um homem como ele? Forte, ambicioso,

enérgico. Sem falar que ele é muito bonito — acrescentou Adèle com os
olhos brilhantes de adoração.

Ao contrário do que Roselle podia esperar, a confissão ingênua de

Adèle provocou-lhe um sentimento de ciúme. Ela não teria falado com
mais admiração de León que a moça de olhos brilhantes. Adèle
provavelmente sentia-se tão atraída fisicamente por León quanto ela
própria. Tanto mais que vivia o ano todo na proximidade de León,
desfrutando de uma intimidade de dona da casa. Momentaneamente cega
pelo ciúme, Roselle abriu mão da vaidade e apelou para o sentimento da
moça.

— Já que você gosta tanto de León, você não quer pedir a Pierre

para me levar embora daqui?

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Adèle fitou-a com um sorriso forçado, encabulada provavelmente

com o pedido de Roselle.

— Pierre não veio trabalhar hoje. Ele está doente.

— Doente? — repetiu Roselle com a expressão desfeita. Sua última

esperança ruiu por terra. — O que ele tem?

— Ele bebeu muito ontem à noite e passou mal. Pierre não toma

jeito.

— Você veio de casa até aqui a pé?

— Deus me livre! É muito longe para a gente vir a pé.

— Como você veio, então?

— Eu vim de caminhão.

— Com quem?

— Sozinha, ué!

— Você sabe dirigir? — exclamou Roselle com animação.

— Claro que sei. Eu dirijo o caminhão freqüentemente. Cá entre nós,

eu dirijo melhor que Pierre.

— Você pode me levar até Tournus?

— Posso. Perfeitamente.

— Ah, eu ficaria muito agradecida. Quando podemos partir?

— Quando você quiser.

— Eu vou me vestir correndo — disse Roselle, apanhando o vestido

de jérsei que estava arrumado em cima da cama.

Meia hora depois as duas estavam sentadas confortavelmente no

banco espaçoso do caminhão. O dia estava quente, o céu absolutamente
limpo, os campos exuberantes de vida.

As carreiras de vinhas estendiam-se de ambos os lados da estrada,

sendo que algumas subiam morro acima, enquanto outras afastavam-se a
perder de vista pela planície. Ao longe, as montanhas resplandeciam com
a luz azulada da manhã.

Adèle diminuiu a velocidade ao entrar na pequena localidade de

Montenay. As casas antigas, pintadas de grená, da mesma cor do vinho
tinto produzido na região, agrupavam-se em volta da pracinha arborizada.
Galinhas soltas corriam na frente do caminhão. Algumas donas-de-casa
conversavam umas com as outras na varandinha da frente. Elas

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interromperam um instante a conversa quando o caminhão se aproximou
e cumprimentaram Adèle com um aceno de mão.

Adèle não era imprudente na direção, mas tinha o costume de dirigir

no meio da estrada, o que deixava Roselle nervosa, rezando para não vir
nenhum veículo no sentido contrário nas curvas fechadas do caminho.
Havia pouco movimento, porém, e as duas chegaram sãs e salvas a
Tournus no momento em que o ônibus parou no ponto final para
desembarcar os passageiros procedentes de Dijon.

Adèle acompanhou Roselle até o interior do ônibus para verificar se

ela estava confortável no banco ao lado da janela.

— Muito obrigada por tudo, Adèle. Você foi ótima!

— Não tem de quê. Volte outra vez com mais calma.

Roselle encarou a moça com um sorriso amarelo nos lábios e não

resistiu à tentação de ser franca uma vez na vida.

— Confesse que você está louca para me ver longe daqui.

— Por quê? — perguntou Adèle, surpresa, com a testa enrugada.

— Porque você gosta de León e daria tudo para estar casada com

ele.

— Ah, mon Dieu, o que você está dizendo? Isto é um sonho

irrealizável! A gente nem sempre tem o que deseja.

— Exatamente.

— Alguns casam sem gostar, e outros, que gostam, não casam. —

Ao dizer isso, Adèle voltou-se e desceu do ônibus.

A última coisa que Roselle viu foi o sorriso alegre e bem-humorado

que a moça lhe dirigiu da calçada quando o motorista manobrou o ônibus
e afastou-se da pracinha.

Ao contrário do que sucedera na viagem de ida, a viagem de volta

transcorreu sem nenhum incidente desagradável. O ônibus chegou a Dijon
no instante em que o trem de Paris se preparava para partir.

Duas horas depois Roselle desceu na estação e tomou um táxi que a

levou à clínica ortopédica onde Anya tinha sido tratada antes.

O médico examinou o tornozelo inflamado, fez uma radiografia e

marcou hora para o dia seguinte.

Da clínica, Roselle foi diretamente para casa. Encontrou Cécile, a

moça com quem dividia o apartamento, fazendo as unhas no sofá da sala.

— Você por aqui! — exclamou Cécile, surpresa. — Eu pensei que

você estivesse na fazenda com León. Adrian passou por aqui.

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— Ah, é? — perguntou Roselle, caindo sentada na cadeira. — O que

ele queria?

— Ele me pediu para fazer a mala com suas roupas. Disse que ia

encontrar-se com você na Borgonha, numa cidadezinha chamada
Montenay.

— Ele ficou de me apanhar lá amanhã.

— Mas ele resolveu ir hoje mesmo. Estava muito excitado com a

viagem e passou por aqui na corrida. A essas horas já deve ter chegado
lá. Ele me disse também que você tinha torcido o pé e que estava de
cama.

— Que confusão, meu Deus!

— Pois é. Você chega e Adrian sai à sua procura.

— Eu não entendo mais nada!

— Imagine a cara que ele vai fazer quando chegar lá e não

encontrá-la.

— Ele vai ficar uma onça!

— E não é para menos. Viajar com este calor e bater com o nariz na

porta. Coitado...

Roselle sorriu consigo mesma ao imaginar a cena do encontro entre

León e Adrian. Os dois eram diametralmente opostos e iam se
desentender desde o primeiro minuto. Que confusão medonha ela
aprontara sem querer!

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CAPÍTULO V

A noite estava quente, tão quente que foi preciso abrir todas as

janelas do apartamento. Com isso os ruídos e as vozes que vinham da rua
tornaram-se incômodos e desagradáveis no quarto de Roselle.

Ela, porém, não estava com sono. Ficara muito abalada com a

notícia que Cécile lhe dera do possível encontro de Adrian com León, em
Montenay. O que se passaria entre os dois? Como León reagiria?

E Adrian? Que fim tinha levado? Por que não telefonara para Roselle

ao bater com o nariz na porta? Viajaria no dia seguinte ou naquela mesma
noite para Paris? Ou tinha decidido ir diretamente para a Riviera, sem
levá-la consigo?

Roselle tapou os ouvidos com o travesseiro a fim de abafar os ruídos

estridentes que vinham de fora. Lembrou-se com saudade do quarto em
Montenay, do silêncio que havia na fazenda, da cama grande onde fizera
amor com León e das paredes recentemente pintadas de creme. Do
quintal vinha o perfume de rosas e jasmins. O luar entrava pela janela
aberta, atravessava as cortinas de voile e fazia desenhos no assoalho de
tábuas largas.

A campainha do telefone tocou de repente e ela acordou,

sobressaltada com o ruído estridente. Abriu os olhos e avistou os raios de
sol que entravam pelas frestas da veneziana.

Cécile enfiou a cabeça pela porta entreaberta, os cabelos soltos

batendo em cima dos ombros, o corpo esguio apertado no robe de
chambre.

— Telefone para você.

— Quem é? — perguntou Roselle, colocando as duas pernas no

chão. O calcanhar continuava inflamado, mas não doía mais como antes.

— René. Eu contei que você torceu o pé.

Depois de ouvir um resumo dos acontecimentos, René não perdeu a

oportunidade de criticá-la rispidamente por andar de salto alto numa
estrada de terra.

— Você não tem juízo, menina! Já foi ao médico?

— Fui ontem e vou voltar hoje às onze. Fiz uma radiografia.

— O que deu?

— Eu só vou saber hoje.

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— Eu vou apanhá-la na clínica. Preciso ter uma conversa urgente

com você.

— Sobre o quê?

— Eu explico tudo mais tarde. Vamos almoçar juntos. Vou

apresentá-la a um amigo meu. Um cineasta...

— Mas, René, eu tenho um compromisso para hoje à tarde!

— Desmarque. Este assunto é urgente.

Roselle refletiu um segundo antes de dar sua decisão:

— Está bom. Eu vou com você.

Magro, irrequieto, com uma barbicha pontuda e cabelos ondulados,

René era a imagem da atividade. Estava andando de um lado para o outro
da sala de espera, nervoso com a exigüidade do local, quando Roselle saiu
da consulta.

— Então, o que ele disse? — perguntou René com ansiedade,

segurando-a pelos braços.

— Disse que não é nada muito, sério. Logo que passar a inflamação,

posso praticar alguns exercícios. Enquanto isso, vou ter que andar de
muletas.

— Bem, pelo menos não houve fratura. Isso já é uma boa notícia.

— Eu apenas rompi um ligamento. É doloroso, mas passageiro.

Ao saírem na calçada, René dirigiu-a para o carro esporte que

estava estacionado perto dali.

— Eu tenho grandes planos para você, Rosie. Já ouviu falar em

Anton Charron?

— O diretor de filmes para a televisão?

— Exatamente. Anton mora em Barbizon. Vamos almoçar com ele.

René dirigia o carro esporte com a mesma energia com que dirigia o

balé no palco, costurando, pelo meio dos outros veículos que se dirigiam
para a praça da Étoile, o grande cruzamento de diversas avenidas
dominado pelo Arco do Triunfo, o símbolo da França. René conversava
ininterruptamente, gesticulando com vivacidade, retirando inclusive as
duas mãos do volante, como é costume entre os motoristas franceses.

— Cuidado! — berrou Roselle em dado momento, ao ver o carro

desgovernado aproximar-se da calçada.

— Eu estou vendo. Não se assuste.

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— Ah, você me mata do coração... O que você queria conversar

comigo?

— Anton deseja fazer um filme sobre a vida de uma dançarina de

balé.

— Ah, é? Que simpático...

— Ele leu a vida de Olga Valenska e ficou fascinado com o tema.

Escreveu por isso um conto sobre uma adolescente que estuda

numa escola de balé dirigida por uma velha professora russa. O filme
narra alguns dias na vida da menina. Apresenta as aulas de balé, mostra a
amizade que une a aluna à professora e muitas outras coisas relacionadas
com dança clássica e moderna.

— O argumento é ótimo.

— Você ainda lembra como é? Os altos e baixos da carreira, os

sofrimentos e as alegrias?

— Se lembro... Não vou esquecer nunca.

— O filme é bem realista, se bem que tenha alguns aspectos

poéticos, como têm, em geral, os outros filmes de Charron. Tem
belíssimos efeitos visuais, especialmente nas seqüências de dança, em
que a velha professora orienta as alunas nos movimentos dos braços e
das pernas. Você está interessada em trabalhar nesse filme?

— Lógico que estou! — exclamou Roselle com animação,

influenciada pelo entusiasmo de René. — É você quem vai dirigir as
seqüências do balé?

— É. Anton me convidou.

— Puxa, que legal!

— Aliás, nossa, companhia inteira vai tomar parte no filme. Eu achei

que você podia ser a personagem principal.

— Você acha que eu tenho cara de uma menina de dezessete anos?

— Claro que tem. Embora eu preferisse que você estivesse sem a

muleta.

— Eu também. Mas o que se há de fazer?

— Céus! — exclamou René com um suspiro. — Felizmente, Anton

não vai julgar sua habilidade como dançarina. Isso é minha função. Ele irá
observá-la apenas como possível protagonista do filme, prestará atenção
à voz, à gesticulação, à sua postura e decidirá se você corresponde à
imagem que ele faz da dançarina. Entendeu?

— Perfeitamente. Quando vamos começar?

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— Logo que estiver tudo acertado e que você estiver boa do pé. Os

outros atores já foram escolhidos. Só falta a atriz principal.

— A filmagem vai levar quanto tempo?

— Uns dois meses mais ou menos.

— Eu tinha combinado sair de férias na semana que vem.

René voltou-se para o lado com expressão contrariada.

— Onde? Com quem?

— Com Adrian. Ele me convidou para passar uns dias na praia, em

Cap d'Antibes.

René xingou em voz baixa, com sua sem-cerimônia habitual.

— Eu vou brigar com você se aceitar esse convite.

— Por quê?

— Porque esse filme é muito mais importante para a sua carreira do

que passar uma semana na Riviera. O que foi que Adrian lhe ofereceu?
Um apartamento mobiliado?

Roselle deu uma gargalhada bem-humorada. René, pelo visto, não

queria dividir suas dançarinas com ninguém, muito menos com os homens
ricos.

— Ele me pediu em casamento.

— Mon Dieu! — explodiu René com impaciência. — Isso ainda é pior

do que eu pensava.

Ele atirou as mãos para o alto e o carro desgovernado quase subiu

no meio-fio.

— Cuidado!

— Calma. Eu estou vendo.

— Pois não parece.

— Você acha que um homem da idade de Adrian vai lhe dar

liberdade depois de casado? Nem aqui, nem na China! Ele vai dirigir a sua
vida da mesma forma que dirige as companhias em que é consultor
financeiro. O casamento para a mulher é uma espécie de servidão...
sempre!

— Eu não concordo com você.

— Você diz isso porque nunca foi casada.

— Quem falou?

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René não ouviu o comentário dito em voz baixa e continuou algum

tempo em silêncio, mergulhado nos próprios pensamentos.

— O que você decide? — perguntou por fim, estacionando o carro no

meio-fio. — Você quer conhecer Anton ou prefere aguardar a volta de
Adrian?

Mais uma decisão para tomar e ninguém para consultar, pensou

Roselle, avistando as fábricas que havia ao longo da estrada.

Lembrou-se das palavras que León dissera pouco antes de despedir-

se dela em Londres, dois anos antes: "Você não deve perder a
oportunidade de fazer esta excursão com a companhia de balé. Você
poderá ir a Montenay uma outra vez". O que León diria se ela contasse
que fora convidada para trabalhar num filme?

René estava com o rosto virado para fora, tamborilando com

impaciência na direção do carro. Ela tinha que decidir no mesmo instante.
René não era homem de aceitar uma desculpa.

— Eu vou com você.

— Assim é que eu gosto! — exclamou René com animação. —

Mostre que você é uma mulher decidida e não uma pobre coitada que se
satisfaz com o casamento.

Sem perda de tempo, René arrancou o carro e tomou a pista que

conduzia a Barbizon.

— Que calor terrível! — exclamou minutos depois, ao pararem num

sinal vermelho. — Até parece que estamos no deserto do Saara.

Abra um pouquinho a sua janela, Rosie. Assim. Agora está melhor.

— Onde é que ele mora?

— Quem?

— Anton.

— Numa belíssima casa de campo. Você conhece Barbizon?

— Só de fotografias.

A paisagem da Ilha de França, nas imediações de Paris, era famosa

pelas pinturas dos artistas célebres, especialmente as cenas campestres
imortalizadas por Corot no século passado.

— Você vai conhecer uma das regiões mais bonitas da França —

disse René, dirigindo a vista pela janela aberta.

No calor dourado do verão, os campos à beira da estrada estavam

cobertos de flores. Barbizon era uma cidadezinha minúscula, apenas com
uma rua principal que a cortava de um lado ao outro, onde estavam os
restaurantes e hotéis que recebiam os turistas o ano inteiro.

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René apontou para as casas de Rousseau e de Millet, que tinham

sido tombadas pelo Patrimônio Histórico e que eram atualmente pequenos
museus.

— Que belezinha! — exclamou Roselle, fascinada com os

sobradinhos de jardim na frente, relíquias de um outro tempo.

Uma mulher atravessou a rua com um poodle pela coleira e uma

sombrinha estampada aberta, para se proteger do sol.

— Aquela mulher saiu diretamente de um quadro de Seurat — disse

René com um sorriso.

— E o poodle de um quadro de Rousseau — acrescentou Roselle

com uma risada.

Anton Charron morava numa chácara nos arredores de Barbizon.

Recebeu os dois para um almoço delicioso com um gostosíssimo suflê de
espinafre, que foi servido no terraço coberto com vista para o riacho que
corria nos fundos do quintal.

Hortense, a mulher de Anton, era uma exímia cozinheira e Roselle

não se fartou de elogiá-la pelo almoço.

O vinho estava bom, a conversa animada e, quase sem perceber,

Roselle contou a Anton a experiência que tivera com Olga Valenska
quando fora aluna da grande dançarina russa.

Anton ouviu a narrativa com atenção. Vez por outra fazia uma

pergunta apropriada e, somente depois que o almoço terminou, Roselle
percebeu que tinha sido entrevistada pelo dono da casa de uma forma
discreta e delicada.

— Isso não vale! — exclamou Hortense com uma risada. — Você

está monopolizando a atenção de Roselle faz meia hora. Eu também quero
conversar um pouquinho com ela.

Durante o resto da tarde, ela, René e Anton acertaram os detalhes

técnicos da filmagem. Uma parte do documentário seria rodada nos
estúdios em Paris e uma outra parte numa casa antiga, que fora alugada
com esta finalidade. Outras cenas seriam filmadas diretamente em pontos
pitorescos da capital.

— Não se esqueça de incluir o Jardim de Vincennes — disse Roselle

durante a conversa. — Olga me levava muito lá para passear. Ela dizia
que o Jardim de Vincennes era mais poético que o Bosque de Boulogne.

— Estou de pleno acordo! — René interveio.

Passava das cinco quando René se despediu do casal de amigos e

tomou a estrada que conduzia a Paris. Continuava muito quente e o céu
encoberto parecia anunciar uma tempestade iminente. Após combinar o
programa do dia seguinte com Roselle —fariam uma gravação ao vivo

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num estúdio de televisão — René acompanhou-a até a porta de casa e
despediu-se dela com um beijo.

— Até amanhã, querida. Descanse bastante.

— E isso o que eu vou fazer. Muito obrigada pelo convite.

Roselle entrou em casa e encontrou um bilhete de Cécile em cima

da mesa da cozinha. "Adrian passou aqui. Ele está aguardando um
telefonema seu no hotel. Beijos. Cécile.

Antes de telefonar, porém, Roselle mergulhou na banheira com água

morna a fim de repousar da viagem e das atividades do dia.

Enquanto ensaboava o corpo, refletiu sobre tudo o que ouvira e

dissera na casa de Anton. René tinha razão. Era uma grande oportunidade
trabalhar como atriz principal de um filme que seria exibido numa rede de
televisão no país inteiro. As férias com Adrian na Riviera ficariam para
uma outra vez...

Roselle saiu da banheira, enxugou-se com a toalha comprida que lhe

batia nos pés e vestiu uma túnica indiana de um tecido extremamente
fino, com bordados nas mangas e no peito. Em seguida, sentou- se diante
da penteadeira e escovou longamente os cabelos.

Feito isso, ligou para Adrian. O telefone no quarto do hotel tocou

apenas uma vez. Adrian atendeu-o imediatamente, como se estivesse
sentado ou deitado ao lado do aparelho, pronto a atendê-lo ao primeiro
chamado.

— Alô, quem fala?

— Sou eu, Roselle.

— Ah, que boa você me aprontou...

— Desculpe, Adrian, mas eu não podia adivinhar que você ia à

fazenda antes do dia combinado.

— Vamos conversar sobre isso com calma. Você vai estar em casa?

— Vou.

— Eu vou dar um pulo aí.

— Eu estou esperando por você.

Adrian, pelo visto, está de péssimo humor, pensou Roselle,

colocando o fone no gancho, o que era bastante compreensível, depois da
viagem inútil que fizera a Montenay.

Enquanto aguardava a visita dele, Roselle varreu e espanou a sala

de visita. Em seguida passou uma flanela em cima dos móveis.

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O céu estava escurecendo rapidamente com nuvens negras de

tempestade e, quando o primeiro relâmpago estalou na atmosfera
carregada de eletricidade, Roselle fechou a vidraça, puxou a cortina e
acendeu o abajur.

No instante seguinte a campainha da porta tocou. Ela foi correndo

atender. Adrian estava parado no hall de entrada, segurando na mão a
pequena mala que Cécile tinha arrumado com as roupas de Roselle.

Ele estava abatido, com olheiras fundas e sinais visíveis de cansaço

na fisionomia. Era a primeira vez que Roselle o via tão deprimido assim.

— Por que você não me esperou na fazenda?

Ele não a beijou no rosto como era seu costume toda vez que se

encontravam. Em vez disso, colocou a mala no chão e fitou-a com a cara
amarrada.

— Eu pensei que ia chegar aqui antes de você — disse Roselle,

ajeitando-se no sofá. — Você tinha dito que ia na sexta-feira.

— Pois é, mas eu antecipei um dia. Por que você não voltou na

quarta-feira, como tínhamos combinado?

— Não deu para voltar. Eu torci o tornozelo.

— León me falou.

— Eu fiquei praticamente imobilizada.

— Por que você não me telefonou, então?

— Eu não sabia que havia telefone na fazenda.

Roselle estava começando a perder a paciência com o interrogatório.

Seria assim se ela se casasse com Adrian. Toda vez que saísse de casa,
toda vez que fizesse alguma coisa que desagradasse a ele, teria que
prestar contas de seus atos ao marido. Como René comentara no carro,
nunca mais teria sossego. E se havia uma coisa de que não estava
disposta a abrir mão era de sua liberdade de ação. Ela tinha a mesma
necessidade disso tanto quanto León.

— Não passou pela sua cabeça que eu podia ficar preocupado com o

seu silêncio? Eu telefonei para saber o que tinha acontecido com você. O
telefone tocou uma dezena de vezes antes que alguém atendesse. Onde
vocês dois estavam?

— Não lembro mais — Roselle mentiu, corando ligeiramente. Ela

lembrava-se vagamente de ter ouvido a campainha do telefone tocar
repetidas vezes enquanto estava no quarto com León, mas não podia
imaginar que era Adrian.

— Na segunda tentativa León atendeu e me contou que você tinha

torcido o pé e que estava de cama. Eu pensei em passar lá e levá-la para

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a Riviera, como tínhamos combinado. Ao mesmo tempo, teria uma
conversa com León a respeito do divórcio. Por que você não esperou por
mim? — repetiu Adrian com irritação. — Por que você veio embora nessa
correria?

— Porque eu queria consultar o ortopedista.

— Que ortopedista?

— O mesmo que tratou de Anya. Todas as meninas que fazem balé

consultam ele. Eu não queria consultar um médico desconhecido em
Dijon. Como você tinha ficado de passar lá na sexta-feira, eu resolvi vir
um dia antes. Se você não tivesse antecipado um dia, você estaria aqui
quando eu cheguei e tudo teria dado certo.

— Eu não queria que você ficasse sozinha com León na fazenda.

— Por quê? Que mal podia acontecer?

— Eu tinha receio de que vocês fizessem as pazes — murmurou

Adrian com a voz sumida. Ele estava visivelmente nervoso com a
conversa e passou diversas vezes as mãos nos cabelos. — Eu sei que agi
mal, que me conduzi como um adolescente... Eu fui à fazenda com o
propósito de salvá-la das mãos do seu marido.

— Que idéia! — exclamou Roselle com um risinho nervoso.

— Pois é. Eu sei que me comportei como um perfeito idiota neste

último ano. Andei atrás de você pela Europa inteira, como um bobo. Como
você não recusava minha companhia, eu pensei que você gostasse de
mim...

— Eu gosto de você e não tinha nenhum motivo para recusar seus

convites ou evitar sua companhia. Mas pensei que você fosse se cansar de
mim com o tempo, sobretudo ao perceber que eu não tinha o desejo de
ser sua amante. Eu nunca imaginei que você fosse me pedir em
casamento...

Lembrou-se da insistência de Adrian em sair com ela nos primeiros

tempos. Esperava por ela na saída do teatro e, antes que Roselle tivesse
tempo de recusar, fazia sinal para o primeiro táxi que passava e levava-a
para jantar fora. "Você deve estar morta de fome", dizia Adrian abrindo a
porta do carro. "Você precisa alimentar-se bem para não ficar doente. As
dançarinas de balé consomem muita energia. Você não pode fazer regime
para emagrecer”.

Roselle aceitava os convites com uma certa gratidão, tanto mais que

não tinha a menor vontade de preparar seu jantar no apartamento.

— Foi por isso que você não me disse que era casada?

— Foi. Eu não via motivo para abordar este assunto.

— Você conversou com León sobre o divórcio?

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— Conversei.

— Antes ou depois de fazerem amor?

A pergunta apanhou-a de surpresa. Roselle ergueu-se no sofá com o

rosto vermelho de vergonha. Ela tinha a impressão de ter recebido um
tapa na cara.

— De onde você tirou essa conclusão? De sua conversa com León?

— León não falou nada. Para falar a verdade, ele foi terrivelmente

mal-educado comigo. Tratou-me sem a menor consideração.

— Eu não falei? Era por isso que eu não queria que vocês dois se

encontrassem. O que foi que León disse?

— Ele caiu na gargalhada quando eu mencionei o divórcio.

— Não me diga!

— Nunca me senti tão insultado na vida. Por que você deu a

entender que não havia mais nada entre vocês dois? Não foi isso que eu
notei...

— Não há nada, absolutamente nada, entre nós dois. León não

gosta de mim. Ele casou comigo unicamente para fazer a vontade da avó.
Nós não temos nada em comum.

— Pois olhe, eu achei que há uma ligação muito forte entre vocês

dois, uma espécie de vínculo afetivo que ninguém pode romper. — Adrian
deu um suspiro de desânimo e passou a mão no rosto abatido.

— Eu só sei que essa correria me deixou exausto. Eu não tenho

mais idade nem saúde para passar duas noites em claro. Estou caindo de
sono.

— Você vai embora?

— Vou. Vou embora para sempre. Esqueça que a pedi em

casamento. Esqueça que a convidei para passar alguns dias comigo em
Cap d'Antibes. Minha família, no fundo, não era favorável ao nosso
casamento. Minha filha tem quase a sua idade e não estava vendo com
bons olhos a nossa união.

— Você tem uma filha? Por que nunca me falou isso?

— Eu fui casado duas vezes — confessou Adrian. — Pensei que teria

mais sorte na terceira, mas reconheço agora que tudo não passou de um
sonho impossível. Eu preciso aceitar a realidade. Nós dois aprendemos
uma lição importante com os acontecimentos dos últimos dias. Você
aprendeu a dizer não e eu aprendi que as moças de sua idade têm sempre
um amor no coração. — Adrian puxou a cortina da janela. — A chuva
passou. Vou voltar para o hotel. Adeus, Roselle. Tudo de bom para você.

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— Adeus. Adrian.

Adrian saiu e fechou a porta atrás de si. Roselle passou a mão nos

cabelos e deu um suspiro de alívio. Seu caso com Adrian estava encerrado
para sempre. E León fora o responsável pela separação, como ela previa
quando tentara evitar que os dois se encontrassem.

Minutos depois Cécile voltou da rua e encontrou Roselle deitada no

sofá da sala.

— Como está o pé?

— Um pouquinho melhor, obrigada.

— Recebeu o recado que eu deixei?

— Sim. Adrian acabou de sair. Para sempre, desta vez.

— Não me diga! Vocês brigaram?

— Mais ou menos.

— Como você está se sentindo?

— Como se tivessem tirado um peso das minhas costas.

Cécile explodiu na gargalhada.

— Qual! Você não toma jeito, garota!

— Azar o meu.

— Com isso você perdeu um mês de férias na praia.

— Eu tinha decidido que não ia mais, de qualquer maneira. Sabe da

última?

— René convidou-a para trabalhar num filme.

— Como você adivinhou? — perguntou Roselle com os olhos

arregalados.

— Todo mundo já sabe. A companhia inteira vai figurar no

espetáculo.

— Já imaginou nosso corpo de baile aparecendo na televisão?

— Vai ser sensacional.

— E logo agora eu tinha que torcer esse pé! — exclamou Roselle

com impaciência.

— Por que você não passa uns dias comigo na praia?

— Onde? Com quem?

— Na casa da minha tia.

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Roselle ergueu-se no sofá, os olhos brilhantes de animação.

— Onde é?

— Na costa da Normandia. Perto de St. Malo.

— Eu já estive lá uma vez. É lindo! Visitei o monte St. Michel...

— Você topa?

— Que pergunta!

A mudança de ar era o que Roselle necessitava para ver as coisas na

perspectiva certa. No fim da semana, estava com o tornozelo
praticamente curado, queimada de sol e sentindo-se outra, cheia de
disposição para reiniciar sua atividade no corpo de baile.

No dia seguinte ao que voltaram para Paris, Roselle retomou seus

exercícios, se bem que com uma certa moderação, a fim de não forçar o
pé sensível.

Nesse meio tempo, os preparativos do filme transcorriam num clima

de atividade febril. Todos os dias, no fim da tarde, Roselle e Cécile iam ao
estúdio alugado onde as cenas de interior estavam sendo rodadas e
acompanhavam com atenção os trabalhos de Anton e René, bem como a
montagem dos cenários.

Roselle não teve nenhuma dificuldade em interpretar o papel da

personagem principal, uma vez que aquilo correspondia quase
literalmente à sua experiência pessoal. Além disso, a atriz que
interpretava o papel da professora de dança era muito parecida com Olga.
Roselle tinha a impressão de estar revivendo uma época especialmente
feliz de sua vida. A única diferença era não haver nenhum homem no
filme que a lembrasse de León e de suas visitas inesperadas à casa da
avó.

Aliás, Roselle não tinha nenhum homem na vida real de todos os

dias. León fora praticamente esquecido. Só muito raramente aparecia nos
seus pensamentos ou sonhos.

Um dia, porém, Roselle resolveu escrever uma carta a León.

Contando que seu tornozelo tinha sarado completamente e que estava
fazendo um filme para a televisão, que seria exibido em todo o país. Ela
não mencionou, contudo, o rompimento com Adrian nem a visita deste à
fazenda.

Na semana seguinte, recebeu uma resposta de León. Ele dizia que o

verão fora muito propício à lavoura e que muito em breve as uvas
estariam maduras nos cachos e prontas para serem colhidas. A safra
prometia ser muito boa naquele ano, possivelmente uma das melhores

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que já tivera, e tudo indicava que o vinho de Montenay teria uma
excelente aceitação no mercado. León também não mencionou a visita de
Adrian à fazenda, nem perguntou, como era seu costume, se Roselle ia
visitá-lo proximamente em Montenay.

Roselle ficou profundamente irritada com o tom frio da carta e sua

primeira reação foi rasgá-la e atirá-la ao lixo. Em vez disso, porém,
guardou-a cuidadosamente junto com as outras cartas que recebera de
León no passado. Foi então que encontrou a cópia da certidão de
casamento. Curiosa para ler a cláusula que León mencionara a respeito de
sua parte na fazenda de Montenay. Roselle sentou-se numa cadeira e leu
o documento com toda a atenção.

De fato, a cláusula em questão dizia exatamente o que ele explicara.

Se, por algum motivo, os dois se separassem, León deveria restituir a
Roselle a quantia investida na compra da fazenda e que pertencia a ela
como parte da herança deixada por Olga.

Fora esta cláusula do contrato que enfurecera León na ocasião em

que tomara conhecimento dela. Ele não podia conceder o divórcio porque
não estava em condições, no momento, de restituir a Roselle a
importância que Olga lhe adiantara para comprar a fazenda. Era por isso
que os dois tinham que continuar casados.

Após ler a certidão de casamento, Roselle tornou a abrir a última

carta que Olga lhe escrevera, pouco antes de morrer, com a esperança de
encontrar ali a resposta para o mistério que envolvia seu casamento com
León. Um dos parágrafos dizia o seguinte:

Os casamentos deste tipo são muito freqüentes no meu país e eu

pensei que seria uma excelente solução para vocês dois. León me
preocupava muito ultimamente. Ele estava amargo e torturado com o tipo
de vida que levava na condição de soldado mercenário. Quando surgiu a
oportunidade de adquirir a fazenda que tinha sido da família, eu não
vacilei um segundo. Reuni todo o dinheiro que tinha e dei-o a León para
comprar a fazenda. No meio desse dinheiro foi a sua parte na herança.

Por outro lado, eu não podia ignorar suas necessidades, minha

afilhada. Prometi à sua mãe que tomaria conta de você. Eu aceitei essa
responsabilidade quando assumi a condição de madrinha. Sabia que
depois da minha morte você ficaria sozinha no mundo e por isso eu fiz
questão de que León casasse com você, uma vez que sua parte na
herança foi aplicada na compra da fazenda.

Espero que vocês entendam e aprovem o motivo que me levou a

agir assim. Eu juro que foi meu amor por vocês dois que me levou a
tomar essa providência. Faço votos de que vocês sejam felizes e que
perdoem a velha madrinha por não ter podido fazer mais pelos dois.

Roselle dobrou a carta pensativamente e tornou a guardá-la junto

com as outras. O motivo que levara a madrinha a uni-la a León pelo

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casamento estava perfeitamente claro, embora esta ação pudesse parecer
absurda a princípio.

Entretanto, a esperança de Olga não se concretizara com o passar

dos anos. Os dois não tinham sido felizes no casamento e tudo indicava
que a ruptura definitiva era apenas uma questão de meses. Se a colheita
do próximo ano fosse boa, como León previa, ele teria recursos suficientes
para iniciar a ação de divórcio.

Roselle não pensou mais naquele assunto no resto da semana. René

decidiu montar um espetáculo na última hora, o que tomou todo o seu
tempo livre. O balé narrava a história de um casal que vivia na pele a
ruína do casamento devido às pressões da vida moderna. Como era de
esperar, René confiou-lhe a interpretação do papel principal, a jovem
heroína de vinte e dois anos que assistia impotente ao desmoronar de sua
união com o homem que ela amava.

Como a tarde estava gostosa, Roselle resolveu ir a pé até o pequeno

teatro que ficava localizado numa travessa da Avenue des Champs
Elysées. Os canteiros dos jardins estavam literalmente cobertos de flores.
As folhas de algumas árvores, porém, começavam a amarelecer com a
proximidade do outono, tomando diversas tonalidades de ouro e cobre.

De repente, Roselle lembrou-se com saudade dos dias passados na

Fazenda Montenay e desejou estar ajudando León nos trabalhos da
colheita, partilhando sua alegria com a safra abundante. Quem sabe se
depois da preparação do vinho León iria fazer-lhe uma visita em Paris? Ela
podia mandar-lhe um convite para a estréia do filme a ser exibido num
circuito de cinemas.

Ao aproximar-se do teatro, Roselle sentiu uma ligeira tontura

acompanhada de uma ânsia de enjôo, que ela atribuiu ao fato de estar
praticamente em jejum. Não queria reconhecer contudo que enjôo e
vertigem são prenúncios visíveis de gravidez. Não era a primeira vez que
sentia isso nos últimos dias.

Entrou pela porta dos fundos do teatro, trocou de roupa no camarim

e maquilou rapidamente o rosto com sombra e pó compacto. O penteado
que usava normalmente era o mesmo da personagem do balé. Passou
então um pente nos cabelos antes de entrar correndo no palco, onde René
estava dando as últimas instruções para as três dançarinas que tomavam
parte naquele número.

— Você está dez minutos atrasada — comentou René com a cara

amarrada.

— Desculpe — murmurou Roselle, tomando sua posição no palco. —

Eu perdi a condução.

René estalou os dedos para dar início ao ensaio propriamente dito,

com acompanhamento de música.

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No meio da dança Roselle sentiu-se repentinamente tonta e foi

obrigada a parar e a sentar-se no palco a cabeça entre as pernas, até que
a tontura passasse.

René observou-a com uma certa irritação, mas não comentou nada.

Na segunda parte da dança havia um movimento muito violento em

que o marido rodopiava a mulher no alto da cabeça a fim de expressar
sua decepção com o casamento. Ao sentir o enjôo, Roselle pediu a Albert,
seu par, para parar. Imediatamente René subiu no palco, desta vez
bastante furioso.

— O que você tem, afinal?

— Eu estou me sentindo tonta e enjoada. Gostaria de descansar

alguns minutos no meu camarim. Talvez eu melhore.

— Está bom. Vamos ter um intervalo de meia hora. — René voltou-

se para os outros dançarinos. — Vocês podem sair, se quiser.

Roselle foi até o camarim com Cécile e com as outras garotas que

iam dançar no ensaio seguinte. Estavam todas em volta dela, curiosas
para saber o que ela estava sentindo, quando René apareceu com um
copo de água na mão.

— Olhe, eu trouxe um antiácido para você tomar. Foi só o que

encontrei.

Depois que as outras dançarinas saíram do camarim, René sentou-

se numa cadeira e esticou as pernas, como se estivesse num banquinho.

— Agora me conte qual é o problema.

— E alguma coisa que eu comi — disse Roselle sem jeito,

procurando evitar o olhar penetrante de René.

— Não me venha com essa! Notei que ultimamente você leva

freqüentemente a mão à cabeça, como se estivesse tonta. Eu pensei a
princípio que fosse conseqüência de alguma dor no tornozelo que você
torceu na fazenda, mas agora estou convencido de que se trata de outra
coisa.

— Do quê? — indagou Roselle, levantando a cabeça e fitando René

com os olhos arregalados. Ela não tinha confessado nem mesmo para
Cécile sua suspeita sobre uma possível gravidez.

— Você sabe muito bem a que estou me referindo.

— Juro que não. Diga o que é.

— Você está grávida.

Roselle abaixou a cabeça sem jeito.

— Pode ser. Mas eu não tenho certeza. Eu preciso ir ao médico.

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— Vá amanhã, sem falta. Você quer interromper o ensaio ou acha

que pode continuar até o fim?

— Acho que posso. Eu já estou melhor. O que me deixa tonta é ser

rodopiada no alto. Será que você não podia modificar este número?

— Está bom. Eu vou suspender esta parte até você melhorar —

disse René com paciência. — Pensei que você fosse mais ajuizada e que
tomasse providências para não engravidar.

— Eu não sei como isso aconteceu!

— Uma coisa é certa: você não ficou grávida por obra do Divino.

Algum homem contribuiu para isso. Quem foi o felizardo? Adrian?

— Deus me livre! Eu nunca tive nada com ele.

— Não me diga que você tem outro fã!

— Por enquanto, não — disse Roselle com um sorriso.

René mostrara-se muito atencioso com ela nas últimas semanas e

acompanhava-a freqüentemente até o apartamento depois dos ensaios.
Esse relacionamento mais íntimo principiara com a rodagem do filme.
Roselle pensara inicialmente que o interesse que René demonstrava por
ela era puramente profissional, uma vez que ela dependia dele para a
orientação do seu trabalho, e que René, por sua vez, dependia dela pela
projeção que Roselle vinha obtendo ultimamente como dançarina da
companhia de balé.

— O que você vai fazer agora? — perguntou René, após um

intervalo de silêncio.

As outras garotas riam e conversavam no camarim ao lado. Do palco

vinha o ruído abafado dos passos e pulos de balé. Cécile estava ensaiando
seu número, provavelmente.

— Eu não resolvi nada, ainda.

— Você vai ter esse filho?

Roselle levantou a cabeça com um gesto brusco.

— É evidente que sim.

— Por que evidente? Há outras soluções...

— No meu caso, não. Eu não tenho o direito de tomar uma decisão

sem consultar León primeiro.

— León? — perguntou René, intrigado. — Quem é León? Nunca ouvi

falar em nenhum conhecido seu chamado León.

— León é o meu marido.

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— Seu marido? — exclamou René, perplexo. — Como é que você

nunca me falou nada? Por que fez segredo para mim?

— Nós estamos separados.

— Ah, é? Onde ele mora?

— Numa fazenda, em Montenay.

— Quer dizer que vocês se viram ultimamente?

— Sim. Eu passei um dia lá.

— E isso foi o bastante para você perder a cabeça? As mulheres não

têm juízo. -E eu que pensei que você fosse uma profissional cem por
cento, inteiramente dedicada à sua carreira, como sua madrinha, e que
não deixasse nada nem ninguém prejudicar seu trabalho... — René
encarou-a com uma expressão visível de decepção. — Eu achava que nós
podíamos ser sócios, viver juntos, enfim...

— Ser sócios? Que história é essa?

— O que tem isso de mais? Você sabe que eu sou contra o

casamento, por uma questão de princípios. Considero o matrimônio
burguês uma invenção degradante, uma forma de servidão tanto para o
homem quanto para a mulher, uma instituição tribal... Pelo visto, você é
igualzinha a todas as outras mulheres que eu conheço e está toda
contente porque vai ter um filho do marido...

— Por favor, René, não vamos discutir esse assunto...

— Você ao menos gosta do seu marido?

Roselle abaixou a cabeça e guardou silêncio.

— Não precisa responder. Eu já sei qual é a resposta. Você não

quereria ter esse filho se não estivesse apaixonada pelo seu marido. Por
que vocês dois estão separados?

Roselle explicou brevemente o insucesso do casamento e a visita

recente que fizera a León, em Montenay. René observou-a algum tempo
em silêncio, com a fisionomia pensativa.

— O que você vai fazer agora? — perguntou por fim. — Vai

comunicar o fato a León?

— Eu não decidi nada ainda. Tenho que pensar com calma.

Naquela noite o Balé Godin abriu a temporada com a casa cheia e os

dois espetáculos oferecidos ao público foram recebidos com salvas de
palmas e exclamações entusiásticas da platéia.

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Os jornais do dia seguinte comentaram a estréia com palavras

elogiosas e um dos críticos mencionou especialmente o desempenho de
Roselle no número de dança moderna.

Roselle leu e releu a coluna enquanto aguardava sua hora na sala de

espera do ginecologista. O resultado dos exames foi positivo: ela estava
de fato grávida, como tinha suspeitado.

Após passar uma hora andando sem rumo pelos jardins da cidade,

Roselle dirigiu-se por fim ao pequeno teatro dos Champs Elysées e contou
a René a novidade.

— O médico falou que eu posso continuar a dançar até o fim de

novembro. Ele disse que não há nenhum problema.

— Você pode dançar até quando você quiser — disse René, mal-

humorado. — Mas não no papel principal.

— Por quê? — exclamou Roselle, de olhos arregalados.

— Porque eu já convidei Carlota para assumir o seu lugar. Ela tem

mais experiência que você e não fica tonta quando rodopia de cabeça para
baixo.

— Mas minha tontura vai passar! — insistiu Roselle, com a

esperança de que René voltasse atrás na sua decisão.

— Você me desculpe, mas eu não posso depender de sua disposição

no momento. Você vai dançar no corpo do balé até ter o filho. Depois a
gente vê o que pode fazer... René virou as costas e fez sinal para o
pianista iniciar o número de dança.

Profundamente deprimida, com os olhos úmidos de lágrimas, Roselle

viu Carlota entrar em cena alguns minutos depois. Ela era uma excelente
dançarina. A expressão e os gestos eram perfeitos e Carlota sabia
expressar maravilhosamente bem a felicidade dos primeiros meses do
casamento.

As lágrimas rolaram pela face marcada pelo sofrimento. Sua

experiência como primeira bailarina fora um sonho efêmero que tinha se
partido num abrir e fechar de olhos. Ela perdera a maior oportunidade de
sua vida porque cometera o erro irreparável de fazer uma visita a León na
fazenda. Ela nunca mais voltaria lá. Nunca mais!

— Não chore, Rosie — disse René em voz baixa, colocando a mão

sobre seu ombro num gesto carinhoso. — Você terá uma outra
oportunidade depois que o bebê nascer. Até lá você precisa ter um pouco
de paciência.

Roselle fungou e enxugou os olhos com as costas da mão.

— Você já contou a novidade a León?

— Ainda não.

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— Vai esconder isso dele? — insistiu René.

— Eu não sei ainda o que vou fazer — disse Roselle, afastando-se

rapidamente em direção aos camarins do teatro, onde vestiu o costume
que ia usar no próximo número de dança... na condição de uma simples
figurante do corpo de balé.

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CAPITULO VI

O verão quente e abafado terminou finalmente, dando lugar aos dias

frescos de outubro. As folhas das árvores, nos jardins e ruas da cidade,
amareleceram e caíram, sopradas pelo vento forte de novembro.

À medida que as semanas passavam, o corpo de Roselle

transformava-se

lentamente,

adquirindo

as

formas

visíveis

da

maternidade. Certa manhã ela sentiu o primeiro movimento brusco no
ventre, como a asa de uma ave. No mesmo instante, todo o seu
ressentimento contra a gravidez desapareceu, substituído pelo sentimento
de euforia e gratidão que acompanha a maternidade.

Na tarde daquele dia, Roselle anunciou a René que iria parar de

dançar até ter o filho. René ouviu a notícia com um alívio evidente.

— Você já comunicou o fato a León?

— Ainda não.

— O que está esperando, criatura? — exclamou René com

impaciência.

— Eu não tenho jeito.

— Ah, deixe disso! O marido tem o direito de saber que a mulher

está grávida. Mesmo porque você precisa de alguém para as despesas de
hospital.

— Eu vou me virar sozinha — disse Roselle com frieza.

— Olhe lá. Depois não se queixe.

Na semana seguinte Roselle se mudou do apartamento que dividia

com Cécile porque não conseguia dormir com o barulho que vinha da rua.
Alugou um outro, bem pequeno, numa rua silenciosa de Paris, longe da
vida noturna da grande capital.

Estava chovendo forte quando ela desceu do ônibus e deu uma

corrida até a padaria da esquina. Com o pão e o pacote de leite embaixo
do braço, voltou às pressas para casa, pulando por cima das poças d'água
que havia na calçada. A tarde escurecera rapidamente e os postes de
iluminação estavam começando a se acender com pequenos intervalos.

Roselle parou na porta da frente, sacudiu o guarda-chuva ensopado

para não molhar o assoalho e entrou no pequeno vestíbulo, que se
comunicava com o corredor e a escada que levava aos apartamentos do
segundo andar. O prédio de três andares não tinha elevador e Roselle
alugara o apartamento dos fundos justamente para não ter que subir a
escada.

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Ao levantar a cabeça da bolsa, de onde tinha retirado a chave da

porta, ela arregalou os olhos e soltou uma exclamação de surpresa ao
reconhecer o homem alto que estava conversando com o zelador.

— León! Você por aqui. Que surpresa!

León voltou-se e cumprimentou-a com naturalidade, como se os

dois tivessem se visto na véspera.

— Bonjour, Roselle. Como vai você?

No instante em que Roselle ia estender a mão para cumprimentá-lo,

sentiu a cabeça tonta e apoiou-se instintivamente na mesa da portaria.

León enlaçou-a pela cintura com um gesto rápido, retirou a chave

que Roselle segurava e estendeu-a para o zelador, que acompanhava a
cena boquiaberto, sem saber o que fazer.

— Por favor, abra a porta do apartamento para mim — disse Leon

com autoridade.

— Pois não.

O zelador atravessou o corredor com passos rápidos, abriu a porta

do apartamento e afastou-se do caminho para León passar com Roselle no
colo.

Depois que o zelador saiu e fechou a porta atrás de si, León deitou

Roselle no sofá e retirou o casaco de couro, que estava úmido da chuva.
Era o mesmo casaco que ele usava quando a visitara em Londres uns três
anos antes. Desta vez, porém, ele estava com uma camisa preta de linho
e com abotoaduras de ouro nos punhos. A gravata cinza era visivelmente
de seda natural e terminava num nó grosso junto ao colarinho. León
atirou o casaco molhado em cima da cadeira e afrouxou o nó da gravata.

— Está melhor? — perguntou, ao ver Roselle passar a mão por entre

os cabelos. — Quer tomar alguma coisa?

— Um copo d'água, por favor.

Enquanto León foi apanhar a água na cozinha, Roselle levantou-se

do sofá, retirou a capa de chuva molhada e pendurou-a no cabide atrás da
porta. Em seguida apanhou o pão e o pacote de leite que comprara na
padaria e estendeu-os a León.

— Por favor, ponha para mim na cozinha. Em cima da pia.

— Você está com fome? Quer tomar um café com leite?

— Não, muito obrigada. Eu não quero nada.

Quando León voltou pela segunda vez à sala, Roselle estava sentada

na cadeira de braços com os pés em cima de um banquinho. Leon

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acendeu o abajur, puxou a cortina e foi sentar-se ao lado dela na
poltrona;

— Desta vez eu não posso lhe oferecer um copo de vinho. Não

esperava a sua visita.

— Não tem importância. Faz tempo que você está morando aqui?

— Um mês.

— Por que não me escreveu? Eu custei a achar o seu endereço.

Era impossível saber se León estava zangado ou não pelo tom de

sua voz.

— Eu me esqueci.

— Você estava se escondendo?

— De quem?

— De mim.

— Imagine! Por falar nisso, como você fez para me encontrar aqui?

— Sua amiga me deu o endereço.

— Cécile? Ela não contou nada?

— Ela estava de saída quando eu passei. Contou apenas que você ia

pouco ao teatro ultimamente.

— É verdade. Eu tenho faltado muito.

— E o filme em que você trabalhou? Já está pronto?

— Ainda não. Provavelmente será exibido no mês que vem. Pelo

menos foi isso o que René me falou.

— René?

— O diretor da companhia de balé. Foi ele quem dirigiu a parte de

dança do filme. E você? Quais são as novidades? A produção de vinho
correspondeu à expectativa?

— Ah, oui! — exclamou León com animação. — A safra foi excelente

este ano. Superou as previsões mais otimistas. Eu mandei alguns
garrafões para serem expostos na Festa do Vinho. E uma festa anual em
que comparecem degustadores de todo o país. Os melhores vinhos são
premiados pela banca julgadora. São três dias de farra! Há um desfile de
carros alegóricos pelas ruas da cidade, barraquinhas com comidas típicas
e, naturalmente, vinho a rodo. Eu estou vindo de lá...

— Seu vinho foi bem recebido?

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— Foi. Recebeu uma excelente cotação. Esta festa é uma ótima

promoção para os produtores de vinho, especialmente os novatos como
eu. Um dos membros da mesa julgadora disse que nosso vinho estava
excelente e que podia ser comparado ao da safra de 1929, uma das
melhores safras de nossa produção.

— Que beleza!

— Pois é. Graças a essa opinião, eu vendi a safra inteira para os

grandes atacadistas que estavam lá.

— Quer dizer que você está nadando em dinheiro? — comentou

Roselle com um sorriso.

— Adivinhou! Posso inclusive comprar a sua parte na fazenda. —

León fez uma pequena pausa antes de acrescentar: — E estou em
condições agora de arcar com as despesas do divórcio, se é isso o que
você deseja.

Era a última coisa que Roselle pensava ouvir no momento e a

sugestão gelou-a como uma ducha de água fria. O silêncio pesou de
repente na atmosfera descontraída da conversa.

— O que foi? — perguntou León, estranhando seu mutismo

repentino.

— Nada, já passou.

— Você está sentindo alguma coisa? — insistiu León com a

expressão preocupada.

— Não. Estou bem.

— Cécile me contou que você está esperando um bebê.

Roselle levantou a cabeça e avistou a mecha de cabelos castanho-

escuros que caía em cima da testa dele. Como sempre, o olhar oblíquo
que León lhe dirigiu por entre as pálpebras entreabertas, as linhas
angulosas do maxilar, a curva provocante da boca, acentuada pelo bigode
que ele deixara crescer e pela barba azulada, ligeiramente crescida,
perturbou-a profundamente. Fazia apenas dez minutos que estavam
conversando sozinhos na sala aconchegante e ela não sabia o que fazer
para esconder a sua emoção.

— Faz quanto tempo? — insistiu León.

— Cinco meses.

León calculou rapidamente.

— Neste caso, o filho provavelmente é meu.

Não havia sombra de sorriso nos lábios finos dele, nada que

indicasse estar contente com a notícia.

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— Você tem alguma dúvida?

— Ué, podia ser de Adrian. Você não queria casar com ele?

— Adrian e eu deixamos de nos ver no dia em que eu voltei da

fazenda. Ele não quis mais saber de casar comigo depois da conversa que
vocês dois tiveram.

— Ah, é?

— Ele voltou uma fera e, depois de uma breve discussão,

resolvemos terminar tudo de uma vez.

— Ainda bem! — exclamou León com uma gargalhada. — De fato,

eu fui terrivelmente grosseiro. Mas quem manda ele meter o nariz onde
não é chamado? Você está triste por causa disso?

— Não, de forma alguma. Foi melhor assim.

— Ótimo.

León ajoelhou-se ao lado dela e enlaçou-a pela cintura.

— Se o filho é meu, por que você não mandou me dizer? Você

preferia não ter esse filho?

— Como você pode dizer uma coisa dessas? — exclamou Roselle

com raiva. — Por que você veio aqui? Para me atormentar com suas
perguntas idiotas?

— Eu vim aqui porque estava com saudade de você — murmurou

León no seu ouvido. — Não pude vir antes.

— Já sei! Você não pôde largar um minuto a fazenda para vir me

visitar.

León ouviu a crítica em silêncio.

— Foi muito ruim nestes últimos meses?

— Foi. Foi horrível.

León levantou o rosto dela pelo queixo e fitou-a nos olhos.

— Para mim também. O verão este ano custou a passar.

— Se custou...

— Você não quer morar comigo até ter o filho?

— Onde?

— Na fazenda. Lá você tem tudo. Boa comida, o ar puro das

montanhas, uma empregada para tomar conta da casa. Sem falar que há
uma ótima maternidade em Dijon.

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Pelo visto León estava assumindo a responsabilidade da situação,

como era seu costume, não porque gostasse dela, mas apenas porque era
o marido e o pai do filho.

— Eu prefiro ficar aqui.

— Porquê?

— Porque você está me convidando apenas porque se julga

responsável por mim.

— É verdade — concordou León com um sorriso. — Eu sou o

principal responsável por este nosso filho. Quando você apareceu na
fazenda, em junho, eu fiquei tão excitado com a idéia de fazer amor que
me esqueci completamente das possíveis conseqüências. Você tem esse
efeito sobre mim, amor — acrescentou, roçando os lábios nos dela. —
Você me deixa louco.

— Sossegue — disse Roselle, afastando-se para o canto do sofá. —

Eu não quero que você se sinta responsável por mim. Eu sou
independente e posso tomar conta de mim mesma. Além disso, sei que
você não gosta quando eu vou à fazenda. Você preferia no fundo que nós
não fôssemos casados, como você mesmo confessou em Londres.

León ouviu a acusação em silêncio, com a expressão sombria.

Roselle percebeu que havia atingido um ponto sensível. Ela

precisava, porém, deixar esse assunto bem claro. Se León a queria como
mulher, ele tinha que dizer isso claramente.

— Eu sei agora por que você ficou uma fera quando leu a certidão

de casamento — acrescentou Roselle. — Você foi me ver em Londres com
a esperança de obter a anulação do casamento, não é verdade?

— Muita coisa aconteceu de lá para cá — disse León em voz baixa.

Roselle ignorou o comentário.

— Se você deseja o divórcio, minha resposta é sim. Eu também

quero a separação. Você não precisa continuar casado comigo somente
porque vou ter um filho seu.

Roselle sentiu-se aliviada ao dizer isso, como se houvesse tirado um

peso da consciência. Ela tinha amor-próprio e fazia questão de se conduzir
como uma mulher independente, mesmo nas situações difíceis. Não era o
nascimento de um filho que iria intimidá-la.

— Gostei de ver — disse León com um risinho. — Você defendeu

brilhantemente a posição da mulher emancipada.

— Eu estou falando sério.

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— Eu também. Vamos esquecer esta questão do divórcio até o bebê

nascer. Enquanto isso você vai morar comigo na fazenda. Faça suas malas
enquanto eu vou acertar as contas do mês com o zelador.

León levantou-se da cadeira e fez menção de dirigir-se à porta.

— León, venha cá! — exclamou Roselle, nervosa. — Eu já disse que

não vou com você. Não adianta insistir.

— Você tem certeza?

Ele estava parado no meio da sala, observando-a fixamente nos

olhos. Em seguida, sem dizer uma palavra, tirou a gravata e abriu os
botões da camisa. E, antes que Roselle voltasse a si de sua surpresa,
deitou-se ao lado dela no sofá e enlaçou-a pela cintura.

— Chegue pra lá! — exclamou Roselle, procurando afastá-lo sem

muita convicção. — Eu não posso fazer amor com você. Eu estou grávida
de cinco meses!

— E daí? Você está com ótima saúde e não há nada que impeça um

marido de fazer amor com a mulher durante a gravidez.

— Quem falou?

— Sou eu que estou falando. Você não confia em mim?

— Eu não quero fazer amor com você — exclamou Roselle, quando a

mão dele deslizou sobre a pele macia do seio. — Eu não quero! Chegue
pra lá!

Ela estendeu a mão para afastá-lo dali, mas bastou encostar os

dedos no peito descoberto para sucumbir ao desejo que a consumia.

No mesmo instante toda a sua resistência ruiu por terra.

— Não seja criança, Roselle. Você está com vontade...

— Ah, isso não vale! Você está sempre tirando partido de mim.

No momento em que León a levantou nos braços e carregou-a para

o quarto, ela afundou sofregamente a cabeça no peito dele.

— Ah, eu estava com tanta saudade de você!

— E eu queria tanto que você estivesse na fazenda durante a

colheita, que você provasse o primeiro garrafão de vinho... Você vem
comigo?

— Você sabe que sim — sussurrou Roselle sob seus beijos.

No dia seguinte, às oito horas da manhã, tomaram o expresso com

destino a Dijon. Dali foram de carro até a fazenda.

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À luz pálida de novembro, os muros do antigo castelo, situado no

alto da colina, tinham a cor desbotada de um vermelho sangue lavado
pelas águas das chuvas. Os rebanhos de ovelhas encontravam um resto
de capim ressequido para comer, mas as vinhas estavam completamente
secas, apontando os galhos finos para o alto.

No pátio da casa, as folhas das trepadeiras que subiam pelas

paredes de pedras estavam amarelas e sem vida. O caramanchão da
entrada perdera completamente o viço exuberante que tinha no último
verão.

Nos canteiros, porém, alguns pés de roseiras estavam floridos e

perfumados, ao lado dos crisântemos amarelos.

— As rosas são as últimas que morrem — comentou León ao

surpreender seu olhar.

— Você vê...

Embora Roselle tivesse a sensação de estar chegando em casa após

uma longa viagem, estava ligeiramente apreensiva com a possibilidade de
Adèle surgir de um momento para o outro. Ninguém apareceu, contudo. A
casa estava vazia, silenciosa. Na sala de visita, a poeira de semanas
acumulara-se em cima dos móveis e do piano de cauda. Não havia vasos
com flores no alto da lareira.

Enquanto León foi à copa apanhar uma garrafa de vinho, Roselle

andou de um lado para o outro, espanando isso e aquilo com a ponta dos
dedos, ansiosa para pôr tudo em ordem. Os homens podiam ser muito
trabalhadores fora de casa, mas dentro de casa eram um desastre.

— Está tudo cheio de poeira — disse ela quando León voltou com

dois copos de vinho e uma lata de biscoitos.

— Eu sei disso. Não tive tempo para cuidar da casa.

— E Adèle? Que fim levou? Ela não toma mais conta da casa?

León estendeu o copo e bateu de leve no dela.

— Tintim.

— Tintim.

— Adèle foi embora um pouco depois de sua visita.

— Ah, é? — Roselle sentou-se no sofá de brocado, o mesmo em que

se deitara com o pé torcido no último verão. — Foi por isso então que
você insistiu tanto para eu vir. Para cuidar da casa...

— Também — disse León com um sorriso. — Se bem que já arrumei

uma empregada que vai cozinhar, lavar a roupa e arrumar a casa.

— Quem é?

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— Janette. A mãe de um empregado que trabalha na fazenda.

— Realmente, a casa está precisando de uma faxina em regra.

Quando ela vai começar?

— Hoje mesmo. Por falar nisso, precisamos providenciar o quarto do

bebê.

Roselle lembrou-se do sonho que tivera alguns meses atrás no

quarto de León, pouco antes de voltar para Paris. O desejo remoto de
morar na fazenda e ter uma família estava começando a concretizar-se,
embora ela tivesse a impressão de que faltava alguma coisa essencial no
relacionamento que mantinha com León.

— Por que Adèle foi embora? — indagou após um momento,

voltando ao tema que a inquietava.

— Eu mandei ela embora.

—- Por quê? Ela me pareceu ser uma empregada tão boa...

— Até demais — murmurou León por entre os dentes. Virou o resto

do vinho e serviu-se de um segundo copo. — Adèle julgava-se
indispensável porque lavava a roupa, limpava a casa e cozinhava para
mim. Achava inclusive que podia interferir na minha vida íntima. Eu fiquei
furioso quando soube que vocês duas foram de caminhão até Tournus.

— Adèle não teve culpa. Fui eu que insisti para ela me levar à

rodoviária.

— De qualquer forma, ela não podia dirigir o caminhão na estrada

porque não tem carta de motorista.

— Coitada! Ela quis ser gentil comigo...

— Uma ova! Ela fez isso apenas para se ver livre de você. E logo

depois me aparece aquele tal de Adrian e me pergunta que fim você
levou! Já imaginou? Eu ter que dar contas a um desconhecido do
paradeiro da minha mulher... Eu fiquei uma fera, bem entendido, e o
tratei sem a menor consideração. Também quem mandou ele aparecer
justo naquele momento?

— Adrian brigou comigo por sua causa — disse Roselle com um

risinho.

— Ainda bem!

— Coitado...

— Coitado de mim! — exclamou León, virando um gole de vinho. —

Responda seriamente: você algum dia pensou em casar com ele?

Roselle hesitou um segundo.

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— Adrian me oferecia segurança — disse por fim, evasiva. — Eu

tinha que pensar no meu futuro.

— Só por isso? — insistiu León.

— Eu me sentia bem na companhia dele. O que você quer? Ele

gostava de mim...

— E eu não gosto? — acrescentou León com impaciência. — É isso o

que você está insinuando?

— É, é isso mesmo.

Em vez de responder, León fitou-a de relance e dirigiu-se à porta da

sala.

— Aonde você vai? — exclamou Roselle, apreensiva com a atitude

brusca dele.

— Vou chamar a empregada.

Roselle sentiu-se tentada a acompanhá-lo e a continuar a conversa

interrompida. Entretanto, no momento em que chegou à porta da frente,
León já tinha partido de carro.

Ela lhe dera a oportunidade de confessar o seu amor, mas ele

recuara no último momento, como era seu costume toda vez que se
sentia forçado a abrir o jogo.

Roselle voltou para a sala e pensou nos projetos da reforma. Tinha

que ser comedida e conservar alguns móveis antigos, a fim de que a casa
não perdesse seu aspecto genuíno de fazenda.

Subiu em seguida ao andar de cima, onde dormira na única noite

que passara ali em junho. O quarto de León estava desarrumado e
coberto de poeira. Roselle trocou a roupa de cama e recolheu as camisas
e as calças sujas que encontrou espalhadas pelos cantos.

Em seguida, com a trouxa na mão, foi examinar o quarto ao lado.

Era grande, bem arejado e tinha uma porta que se comunicava com o seu
quarto. Estava perfeito para o quarto do bebê. Faltava apenas pintar as
janelas e trocar o papel de parede por um mais alegre.

Roselle estava descendo a escada com a trouxa de roupa nos braços

quando ouviu León chamá-la em voz alta na porta da frente. Ela foi ao seu
encontro e avistou uma mulher de meia-idade, com um avental
imaculadamente branco por cima do vestido de algodão.

León apresentou-a rapidamente a Janette e tornou a sair pela porta

da frente. Roselle murmurou uma desculpa para a empregada e saiu
correndo atrás dele.

— León, eu preciso falar com você!

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— Agora eu não posso. Tenho que sair correndo.

Roselle balançou os ombros e voltou para a sala da frente, onde a

empregada aguardava suas instruções para iniciar a faxina.

— Posso começar pela cozinha?

— Boa idéia — disse Roselle distraidamente. — O chão está imundo

e há vários pratos sujos dentro da pia.

Ela tinha que se comportar como a dona da casa a fim de inspirar

respeito à empregada. Por isso, acompanhou Janette até a cozinha e
orientou-a no serviço que devia ser feito.

León só voltou para casa no fim da tarde. Nesse meio tempo,

Janette já tinha ido embora na companhia do filho pequeno. Roselle
arrumou a mesa da copa para o jantar e colocou um vaso de flores ao
lado do castiçal de prata que encontrou na sala de jantar.

Satisfeita com a arrumação da mesa, subiu ao quarto; tomou um

banho e trocou de roupa. Depois de secar os cabelos e escová-los
longamente diante da penteadeira, passou uma leve camada de
maquilagem no rosto e pendurou nas orelhas seus brincos favoritos, que
herdara de Olga, sua madrinha. Estava pronta para receber o marido e
servir a carne assada recheada que Janette lhe ensinara a fazer naquela
tarde.

León, porém, não voltou sozinho para casa. Apareceu acompanhado

de Jaques Leroy, o veterinário da fazenda, que fora chamado naquela
tarde para examinar o touro reprodutor que estava ligeiramente
adoentado. Jaques, que era da mesma idade de León, não esperava
encontrar uma parisiense bem vestida e bonita em casa e lhe dirigiu por
isso toda a sua atenção durante o aperitivo que tomaram na sala de estar.

Com receio de que a carne assada passasse do ponto, Roselle

convidou o veterinário para jantar. Jaques aceitou o convite na mesma
hora, sem a menor hesitação. Ele era solteiro e não tinha pressa de voltar
para casa. Demorou-se por isso até tarde na fazenda.

Roselle, por sua vez, procurou ser amável com o convidado do

marido e ouviu com atenção as histórias intermináveis que Jaques contava
sobre as curas milagrosas que havia feito em diversos animais das
fazendas vizinhas. Jaques era muito falante e mantinha a conversa
animada. No íntimo, porém, Roselle estava rezando para o veterinário ir
embora para que pudesse conversar a sós com León sobre as reformas da
casa.

Às dez horas, Roselle despediu-se dos dois com a desculpa de que

estava muito cansada com a viagem e subiu para o quarto. Depois de
escovar os dentes e vestir a camisola de dormir que comprara em Paris
pouco antes de embarcar, deitou-se na cama à espera de León.

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Entretanto, embalada pelo canto dos grilos e dos sapos, ela adormeceu
pouco depois.

Acordou sobressaltada com o ruído de passos dentro do quarto. A

luz do abajur de cabeceira iluminou um vulto perto do armário.

— León?

— Quem você pensou que fosse? Jaques Leroy?

Roselle apoiou-se no travesseiro, magoada com a sugestão. A

agressividade e o ressentimento estavam presentes no comportamento de
León desde o início da tarde, como ela tinha notado.

— Que idéia!

— Vocês conversaram a noite toda como se fossem amigos íntimos.

Pensa que eu não vi?

— Claro. Eu tinha que ouvir as histórias que ele contava. E o mínimo

que se exige da boa educação. Sobretudo partindo da dona da casa...

León deitou-se na cama de costas, sem abraçá-la pela cintura, como

fazia habitualmente quando dormiam juntos.

— Você deu corda a ele, sorriu, fez perguntas. Foi por isso que ele

ficou para jantar.

— Mas não fui eu que o trouxe para casa! — retrucou Roselle com

impaciência.

— Eu tenho o costume de oferecer uma bebida a Jaques toda vez

que ele vem tratar de um animal. Ele é muito atencioso e já me prestou
bons serviços. Foi por isso que o convidei para tomar um copo de vinho,
mas nesse convite não estava incluído o jantar, evidentemente.

— Eu o convidei para jantar unicamente para que a carne assada

não queimasse — disse Roselle. — Mas não esperava que ele fosse
aceitar. Eu não sei de onde você tirou essa idéia de que eu estava fazendo
charme pra ele...

— Eu observei vocês dois durante o jantar. Toda vez que você dizia

alguma coisa, Jaques ouvia-a com os olhos embevecidos, como se fosse a
palavra de Deus. Se isso não é fazer charme, eu não sei o que é...

— Ah, deixe disso! Você está me gozando. Você não pode sentir

ciúme de um homem que eu conheci hoje e com quem troquei uma meia
dúzia de palavras.

— Meia dúzia de palavras? Vocês conversaram a noite inteira... —

León virou-se de lado e puxou-a na sua direção, de modo que Roselle
ficou deitada em cima dele, com o rosto colado ao seu. — Eu morro de
ciúme de você, amor — disse León por entre os dentes. — E se você fizer

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novamente charme para um outro homem, como você fez esta noite para
Jaques, eu não me responsabilizo por meus atos.

— Você está se comportando como uma criança — disse Roselle,

procurando afastar-se de cima de León. O simples contato do corpo
musculoso era suficiente para deixá-la perturbada, sem vontade para
nada. — Além do mais, eu não vou viver trancada dentro de casa só
porque sou sua mulher.

León afrouxou o abraço e fitou-a com uma expressão de quem

aceita o inevitável.

— Já sei. Você está tirando a desforra. Você não me perdoa o que

lhe disse daquela vez. Está bom, eu reconheço que fui indelicado, mas eu
mudei de atitude de junho para cá.

— Por quê? O que aconteceu em junho?

Roselle estava com o rosto colado ao dele, o corpo aninhado nos

braços que a estreitavam.

— Foi em junho que eu descobri que gosto de você — murmurou

León. — Je pense que je t’aime, petite.

— Muito ou pouco? — perguntou Roselle com a voz trêmula, incerta

sobre a resposta que ia ouvir.

Era a primeira vez que León confessava seu amor, embora ainda

mantivesse uma pequena reserva.

— Muito — disse León, afastando-a de junto de si a fim de observá-

la atentamente. — Quando você esteve aqui em junho, eu percebi que
sentia mais prazer na sua companhia do que na de qualquer outra mulher.
Eu queria que você morasse aqui para sempre...

— Se você sentia isso, por que você falou ontem em divórcio?

León refletiu alguns segundos antes de responder. A luz suave do

abajur, Roselle enxergou a ruga funda que lhe sulcava a testa. Pelo visto,
ele lutava interiormente para elucidar seu comportamento de algumas
horas antes.

— Depois que você sugeriu o divórcio, eu pensei nisso durante muito

tempo, durante todo o verão, na realidade. E cheguei à conclusão de que
seria preferível romper o vínculo que nos unia e que não era do agrado de
nenhum dos dois. Não era a primeira vez, naturalmente, que eu
considerava essa possibilidade. Desta vez, no entanto, havia uma razão
extra a favor da separação. Eu não sabia quais eram os sentimentos
verdadeiros que nutria por você, e pensei que seria mais fácil tirar isso a
limpo se estivéssemos separados ou divorciados. Entende agora o motivo
de minha indecisão?

— Entendo.

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— Entretanto, quando eu me encontrei ontem com você, depois de

vários meses de separação, compreendi imediatamente que era
impossível divorciar-me na situação atual. O fato de você estar grávida
era um motivo mais que suficiente para continuarmos casados. Está claro
agora?

— Está.

— E você, petite Por que você disse que não gostava mais de mim

quando esteve aqui em junho?

— Eu pensei realmente que não gostava mais — confessou Roselle

com sinceridade, correndo os dedos pelo peito descoberto de León. — Mas
bastou passar um dia na fazenda para mudar completamente de idéia. Eu
desejei morar o resto da vida aqui, com você. Ter uma família, receber os
amigos, fazer a fazenda voltar a ser como era no passado...

— Por que você foi embora, então?

— Porque eu estava convencida de que você não gostava de mim.

Foi por isso que eu pedi a Adèle para me levar até a rodoviária antes de
você voltar do campo. No íntimo, porém, eu estava morrendo de vontade
de ficar. E, depois que eu fiquei grávida, não quis voltar pra você não
pensar que eu estava querendo responsabilizá-lo pelo filho.

León deu uma risada descontraída.

— E durante todo esse tempo eu pensei que você tinha ido embora

porque gostava mais de Adrian do que de mim.

León afundou o rosto na curva entre o ombro e o pescoço de

Roselle. Ela sentiu o calor de seu sopro na pele e o tremor de suas
pestanas no rosto.

— Esse verão custou muito a passar — murmurou, acariciando os

cabelos dele.

— Parecia que não terminava mais — acrescentou León.

— Isso quer dizer que experimentamos uma coisa em comum,

embora estivéssemos distantes um do outro.

Durante o pequeno intervalo de silêncio, Roselle ouviu os sons

estridentes dos grilos no quintal, misturados com a sinfonia melodiosa dos
sapos no mato.

— Você gostaria de voltar a Paris, depois que nosso filho nascer?

— Gostaria muito.

— Você pode inclusive reiniciar a dança.

— E você?

— Eu vou ficar aqui, esperando você voltar.

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— E o bebê?

— Você pode levá-lo, se quiser. Ou deixá-lo aqui comigo. Eu arrumo

uma babá para tomar conta dele.

Roselle deu uma risada.

— Imagine se eu vou deixar meu filho com uma babá!

— E eu, você deixa?

— Com Adèle? Nem sonhando! Eu não sou ingênua a esse ponto...

— Está vendo? Até que nosso casamento fez alguns progressos nos

últimos três anos...

Roselle lembrou-se das palavras de sua madrinha na última carta

que lhe escrevera pouco antes de morrer. Olga dizia que, com o passar
dos anos, eles aprenderiam a se amar e teriam um casamento
harmonioso e duradouro, mais talvez do que uma união iniciada sob os
auspícios do amor.

— E vai fazer mais progressos no futuro — acrescentou Roselle com

um sorriso.

— Espero que sim.

— Você não disse ainda como gostaria que nosso filho se chamasse.

— Pierre — respondeu León, sem um segundo de hesitação.

Roselle afastou-se dos seus braços e observou-o com a fisionomia

interrogativa.

— Quem disse que vai ser menino?

— Desculpe, amor. Eu sei que você prefere uma menina. Neste

caso, a escolha do nome é sua. Você já tem algum?

Roselle afastou a cabeça pensativamente.

— Não.

— Adèle eu tenho certeza de que não vai ser...

— Ah, não amole! Deixe eu dormir em paz.

No momento em que Roselle se aninhou no peito dele para

mergulhar no sono, dirigiu um agradecimento silencioso à madrinha por
tê-los unido para sempre nos laços do amor.

FIM

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