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Flora Kidd

Selva de Prata

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Selva de Prata

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Selva de Prata

(Flora Kidd)

Copyright: Flora Kidd
Título original: Night of the Yellow Moon
Publicado originalmente em 1977 pela Mills & Boon Ltda.
Londres, Inglaterra
Copyright para a língua portuguesa: 1987
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Digitalizado: Polyana
Revisado: Anicieli

RESUMO: Sons sinistros enchiam a noite, em plena selva amazônica, fazendo

Nancy estremecer. Ali estava ela, pálikda de medo, ouvindo o rugido de invisíveis

feras e contemplando a luz intensa da Lua, refletida nas águas do rio.
Por amor a Edmund, viera disposta a enfrentar todos os perigos da floresta. Tinha

que reconquistar seu marido, o único homem que a fizera vibrar de paixão, mas que

a julgava adúlteral. Só que, em contraste com o calor que exalava da terra, o

coração de Edmund estava frio como o gelo...

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Selva de Prata

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CAPÍTULO 1

Com uma freada brusca, Brian Collins parou seu carro esporte logo atrás do

Jaguar branco estacionado em frente à casa dos tios de Nancy.

— Parece que seus tios estão com visitas hoje, Nancy — comentou ele, sem

desligar o motor.

— Provavelmente alguém da Universidade ou algum ex-aluno do tio Roy.

Lembro-me de tê-lo ouvido mencionar que um deles se encontrava na vila e talvez

viesse passar o fim de semana conosco — disse Nancy, enquanto pegava a raquete

de tênis e a cesta de bolinhas. — Obrigada pela carona e pela parceria no jogo.

— Não quer sair conosco hoje à noite? — perguntou-lhe Sue Martin, a garota

que estava sentada ao lado de Brian. — Vamos todos a uma discoteca que está

sendo inaugurada em Southleigh. Vai ser espetacular.

Nancy ficou indecisa por alguns instantes. As pessoas a quem Sue se referia

eram outros dois casais, que também frequentavam o clube. Conhecia-os há muitos

anos, desde que se habituara a vir passar os fins de semana e feriados com seus

tios Roy e Marsha.

Ao que tudo indicava, seria novamente a única garota desacompanhada —

papel tedioso que a aborrecia cada vez mais.

— Obrigada pelo convite, Sue. Mas acho que hoje, para variar, vou bancar a

anfitriã — ela respondeu, afinal.

— Ora, Nancy, não perca seu tempo. Com certeza o tal visitante é um

daqueles médicos velhos e chatos que vai ficar falando sobre seus clientes o tempo

todo... Ou então é jovem, mas casado, e trouxe a esposa com dois ou três

monstrinhos para conhecerem a praia.

— De qualquer forma, pretendo correr o risco. Vejo vocês no próximo mês,

durante minhas férias. Está bem?

Ainda rindo das suposições malucas de Sue, Nancy caminhou até a porta de

entrada da casa tentando imaginar qual dos dois tipos encontraria ao entrar. Esguia,

de compleição delicada e graciosa, Nancy possuía cabelos lisos e longos num tom

castanho, com reflexos aloirados que brilhavam sob os raios de sol.

Do pequeno saguão de entrada, todo decorado com vasos de cobre cheios de

plantas e vários estribos de latão nas paredes, Nancy podia ouvir a voz estridente de

sua tia conversando animadamente na sala. Antes de subir para tomar um banho e

tirar o short, ela resolveu ir até lá a fim de ser apresentada ao hóspede e avisar os

tios de seu regresso. Frequentemente recebiam amigos nos fins de semana, quase

sempre um professor ou algum conferencista da Universidade onde ambos trabalha-

vam: Roy era professor de fisiologia na Faculdade de Medicina, e Marsha, socióloga

no Departamento de Ciências Sociais.

Com um brilho malicioso nos olhos verdes, Nancy concluiu que a visita só

poderia ser um homem, pois lá estava sua tia jogando charme e encanto para cima

da pobre vítima, sem se importar com a presença de tio Roy.

Abrindo uma pequena fresta da porta, Nancy sentiu um arrepio percorrer-lhe a

espinha ao deparar com a figura atraente sentada no sofá. Usando uma calça jeans

e uma camisa azul-marinho aberta até o peito, o desconhecido tinha o rosto bem

barbeado e queimado de sol, testa alta e larga, maçãs salientes e queixo quadrado.

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Os cabelos aloirados e cheios de reflexos mais escuros estavam penteados

displicentemente para trás. Resumindo: um homem de tirar o fôlego! Não era para

menos que Marsha estivesse tão empolgada!

Ele, porém, não parecia estar prestando muita atenção ao seu falatório. Sua

expressão era de aborrecimento e seus olhos permaneciam fixos no copo em suas

mãos, enquanto brincava com o gelo.

Naquele momento, Marsha acabara de lhe fazer uma pergunta e, pela

maneira assustada como ele lhe voltava os olhos muito azuis e expressivos, Nancy

percebeu seu embaraço. Depois de um breve momento de silêncio, um sorriso se

formou em seus lábios carnudos e sensuais.

— É evidente que eu só posso concordar com sua opinião, Sra. Halton. A

selva não é exatamente o lugar apropriado para uma mulher acostumada às

comodidades da vida moderna.

Roy Halton soltou uma sonora gargalhada e bateu as mãos nos joelhos em

sinal de satisfação.

— Ora, Edmund, sempre achei que você havia escolhido a profissão errada.

Devia ser um diplomata em vez de médico.

Sem ao menos se importar com o comentário do marido, Marsha continuou a

tagarelar, provocando uma nova expressão de desagrado no rosto do visitante.

Nesse instante, Nancy entrou na sala lentamente, atraindo sobre si a atenção

de todos. Como um ímã, seu olhar foi atraído pelos olhos penetrantes daquele

homem que parecia também dominado pelo mesmo magnetismo.

— Até que enfim você chegou, querida — disse Roy, levantando-se para

fazer as apresentações. — Este é o dr. Edmund Talbot, um dos meus melhores

alunos alguns anos atrás.

— Muito prazer em conhecê-lo, dr. Talbot — falou Nancy, subitamente

corada, sentando-se ao lado de Marsha.

— Vou servir-lhe um outro drinque, Edmund — disse a tia rapidamente,

levantando-se para pegar o copo vazio de Edmund.

Alta, cabelos escuros e curtos, ela usava um vestido amarelo colado ao

corpo. E, ao retornar com a bebida, curvou-se com exagero para entregar o copo a

Edmund, exibindo, através do decote ousado, os seios fartos e bem-feitos. Em

seguida, sentou-se ao lado dele, cruzando as pernas numa atitude provocante

demais, na opinião de Nancy. Estava bastante evidente que sua tia pretendia

monopolizar toda a atenção do jovem doutor. Aliás, aquela não era a primeira vez.

Agia sempre assim, especialmente quando se defrontava com alguém do sexo

oposto que fosse atraente e mais jovem do que ela.

Embora já passasse dos quarenta anos, Marsha ainda conservava uma

silhueta esbelta e bem conservada. Dinâmica e cheia de vida, provavelmente ela

considerava um tanto monótono seu casamento com tio Roy, que era quase vinte

anos mais velho. Por várias vezes Nancy suspeitara de seus casos amorosos, e

agora não tinha dúvidas: seu próximo alvo era o dr. Edmund Talbot!

— Não há perigo em nadar nesta praia aqui em frente? — perguntou Edmund

interrompendo uma discussão sobre doenças tropicais.

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— Ora, mas é claro que não — respondeu Marsha sorrindo. — Você gosta

de nadar, Edmund?

— Muito, principalmente no mar. Vocês se importariam se eu fosse dar um

mergulho?

— Fique à vontade e faça o que desejar enquanto estiver aqui. Nancy lhe

mostrará o caminho para a praia, não é mesmo querida? — disse Roy, passando o

braço ao redor do ombro da sobrinha.

No mesmo instante Marsha levantou-se e segurou a mão de Edmund.
— Venha comigo. Vou mostrar-lhe o seu quarto para que possa mudar de

roupa — prontificou-se ela. — Nancy espera por você aqui.

Subindo logo atrás deles para vestir o biquini, Nancy dirigiu-se ao quarto do

sótão, onde costumava se hospedar. Pequeno, mas muito aconchegante, ele

possuía o teto inclinado, o que lhe proporcionava um aspecto charmoso. Embora

Marsha o tivesse decorado com muito bom gosto, Nancy colocara ali alguns objetos

pessoais que lhe davam a impressão de ser a dona daquele cantinho.

Alguns minutos mais tarde, quando saiu para o corredor, ouviu a voz de

Marsha no quarto de hóspedes e fez uma careta de reprovação. Sua tia não

precisava demonstrar tanta intimidade e nem permanecer tanto tempo conversando

com Edmund em seus aposentos.

Quase meia hora se passou antes que ele surgisse. Juntos, percorreram em

silêncio as alamedas floridas do jardim até atingirem o barranco de acesso à praia,

que ficava num nível bem mais baixo que o da casa. Pequena e bem pitoresca, era

toda rodeada por rochedos, em cujos altos se podia ver a vegetação escura

destacando-se sob o céu muito azul.

Completamente descontraído, Edmund tirou a camisa e a calça e correu para

a água, mergulhando o corpo atlético com charme e elegância. Embora desapontada

por ter sido deixada para trás, Nancy o seguiu sem hesitar. Ele nadava muito bem, o

que a incentivou a também mostrar suas qualidades de exímia nadadora. Em vão!

Finalmente, cansada de ser tratada com indiferença, ela voltou para a praia,

sentando-se na areia quente a fim de observá-lo. Em toda sua vida jamais se sentira

tão perturbada por um homem como naquele momento. O magnetismo que

emanava daqueles olhos azuis a deixava cada vez mais fascinada e confusa. Alguns

instantes depois ele voltou e deitou-se de costas ao seu lado, apoiando a cabeça

sobre os braços.

— Ah, agora me sinto bem melhor! Sua tia me preparou uma bebida muito

forte e eu não estou acostumado com álcool.

— Não acha arriscado nadar nestas condições?
— Pelo contrário, a água fria me fez bem. Para falar a verdade, estou bem

melhor do que alguns instantes atrás, lá na sala. Houve um momento em que me

senti um tanto desorientado — ele sorriu e encarou-a. — Então você é a filha de

Frank Fenwick? Acho difícil de acreditar!

— Por quê?
— Nunca imaginei que ele fosse casado, quanto mais que tivesse uma filha!
— Você o conheceu bem?

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— Sim. Assisti a uma série de palestras dele, dez anos atrás, sobre a

necessidade de protegermos os povos primitivos, como certas tribos isoladas da

Indonésia e da América do Sul. Na verdade, seu pai foi o responsável pela minha

decisão de especializar-me em doenças tropicais.

— E você já se comunicou com esses povos de que ele falou? — perguntou

Nancy, entusiasmada pelo fato de Edmund ter conhecido seu pai, sobre quem ela

própria sabia tão pouco.

— Sim, acabo de chegar da África, onde trabalhei para uma Organização

Internacional de Saúde.

— Pretende voltar para lá?
— Só se for requisitado. Minha intenção é ficar em Londres por uns tempos e,

preferivelmente, em companhia de alguma mulher atraente. Está interessada?

Sem esperar por uma resposta, ele fechou os olhos. Àquela hora a praia

estava praticamente deserta e silenciosa, pois, como bons ingleses, os banhistas

não dispensavam o chá da tarde, nem mesmo num dia quente como aquele.

Ouviam-se apenas o quebrar das ondas na areia e o pio de alguma gaivota

pousando sobre os rochedos.

Intimamente, Nancy sentia-se lisonjeada com o elogio indireto de Edmund.

Embora estivesse tentada a aceitar a proposta dele, a inexperiência a impedira de

responder com entusiasmo, pois não desejava dar a impressão de estar ansiosa por

se atirar em seus braços.

Por alguns instantes ela observou aquele corpo seminu e musculoso, coberto

de pequeninos grãos de areia cintilando ao sol, como minúsculos diamantes. Ali

estava um homem cuja beleza física dava asas à imaginação de qualquer garota,

quanto mais à uma mulher vibrante como sua tia...

— Acha tia Marsha atraente? — perguntou ela, tentando demonstrar

indiferença.

— Claro! É muito conservada para a idade que tem.
— Ela já está com quarenta anos — observou Nancy, querendo mostrar-lhe o

quanto Marsha era mais velha do que eles.

— Dez anos a mais do que eu. E você, que idade tem?
— Vinte e um.
— Graças a Deus! Começava a pensar que ainda era uma colegial.
— Talvez você prefira mulheres mais maduras...
— Bem, admito que, em certas ocasiões, a experiência compensa a ausência

de juventude — respondeu ele, com um sorriso irônico.

— Foi o que pensou de tia Marsha quando ela lhe mostrou o seu quarto? Ouvi

vocês conversando muito animados lá dentro...

Ele não reagiu de imediato, mas quando o fez pegou-a totalmente

desprevenida. Num movimento rápido, sentou-se e segurou-lhe o queixo com os

dedos firmes, obrigando-a a encará-lo.

— O que está tentando insinuar?

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O coração de Nancy disparou, mas ela não desviou os olhos do olhar frio e

penetrante de Edmund.

— Ainda não percebeu nada? Ela está a fim de ter um caso com você. Para

ser sincera, não é a primeira vez que a vejo agir desta forma. Daí os drinques tão

fortes que preparou. Sua intenção era descontraí-lo para poder seduzí-lo, mais

tarde, em seu quarto...

— Chega! — disse ele com firmeza, sem no entanto erguer a voz.
Estavam tão próximos que Nancy sentia-lhe a respiração morna como uma

carícia em seu rosto. Deslizando a mão até sua nuca, Edmund segurou uma mecha

de seus cabelos entre os dedos, e continuou suavemente:

— Não aconteceu nada do que você está pensando em meu quarto. Além do

mais, sei como devo agir e não sou tão ingênuo a ponto de não perceber quando

uma mulher pretende me seduzir. Acho bom você controlar essa sua imaginação

antes que acabe se envolvendo em encrencas, sua gata ciumenta!

— Não estou com ciúmes! — protestou Nancy, tentando inutilmente livrar-se

da mão que pressionava cada vez mais fortemente seus cabelos.

— Se não está, então por que se perturbou tanto com a atitude de sua tia?
— Eu... eu não gosto de vê-la se comportando dessa forma, principalmente

diante de meu tio. Ele é um homem muito bom e não merece isso.

— Será que o motivo é só esse? Talvez você não suporte a idéia de me ver

com Marsha e gostaria de estar no lugar dela!

— Oh, mas como você é convencido e presunçoso! — disse Nancy, irritada

ao notar o quanto ele se divertia com a situação. — Por favor, solte-me!

— O que é isso, sereia? A verdade dói tanto assim?
— Pare! Você está me machucando!
— Não diga! — murmurou, chegando ainda mais perto de Nancy. — Hum...

você está com um perfume delicioso de sândalo.

— E você está cheirando a rum!
— Talvez, mas para ser sincero este seu aroma está me deixando mais

perturbado do que os aperitivos de Marsha... — dizendo isto, ele a beijou

inesperadamente. A princípio, com delicadeza, no canto da boca, e em seguida,

cobrindo-lhe os lábios totalmente, num beijo violento.

Nancy tentou esquivar-se virando a cabeça de um lado para o outro, porém

sua reação apenas contribuiu para aumentar o desejo que de repente se apossara

de Edmund. Deitando-a sobre a areia, ele pressionou-lhe os seios macios e quase

totalmente descobertos com o corpo forte.

Aos poucos, ela foi cedendo, até entregar-se com abandono e prazer àquelas

mãos que a acariciavam. Era como se flutuasse, ao sabor das ondas, num mundo

desconhecido. Os lábios dele tocaram seu pescoço e seu ombro, e chegaram aos

seios rijos de desejo. Era uma intimidade que nunca havia experimentado antes e a

força das emoções provocadas atingiu-a com violência.

— Você é linda, Nancy! Doce e delicada como uma flor que acaba de

desabrochar. E seus olhos são verdes como o mar. Por que eu desejaria Marsha,

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tendo você por perto? Quando nos veremos novamente?

Nancy mal podia acreditar que não estava sonhando. Seria mesmo real

aquela sensação de estar no paraíso? Como num passe de mágica aquele homem

maravilhoso entrava em sua vida e queria vê-la de novo!

— Eu moro e trabalho em Londres — murmurou, perturbada, acariciando de

leve o rosto dele.

— Isto é ótimo. E em que você trabalha, Nancy?
— Numa agência de publicidade, na redação da revista Geografia Ilustrada.
— Seguindo os passos de seu pai?
— Gostaria muito, mas por enquanto estou apenas aprendendo a escrever.
— Onde você mora?
— Divido um apartamento com uma amiga em Kensington.
— É longe de Knightsbridge?
— Não muito. Por quê?
— Vou morar lá enquanto estiver em Londres. Um amigo meu, Peter Manson,

emprestou-me seu apartamento por um mês e meio, período em que estará em

férias no Mediterrâneo. Mas... e você? Fale-me de sua família.

— Marsha, irmã de minha mãe, é minha única parente. Mamãe morreu

quando eu tinha apenas doze anos. Como papai estava sempre viajando, fui

educada num colégio interno, mas, durante as férias, eu vinha para cá.

Provavelmente você deve saber que meu pai morreu num acidente de helicóptero na

Etiópia, não é?

— Sim, eu li nos jornais.
— E você? Tem família?
— Meu pai também faleceu há alguns anos. Minha mãe se casou de novo e,

atualmente, mora na Itália.

— Não tem irmãos?
— Não. Mas tenho uma infinidade de tios e primos — depois de fixar o olhar

ao longe por alguns momentos, perguntou-lhe subitamente: — Gostaria de voltar

para Londres comigo amanhã? Se quiser, sairemos daqui bem cedo, para ficarmos

longe dos olhares indiscretos de sua tia. Ela nos observa de binóculos, lá da janela,

faz algum tempo!

— Oh, não! — exclamou Nancy, levantando-se com rapidez ao constatar que

ele tinha razão.

Mais tarde, naquela noite, quando Nancy se preparava para dormir, Marsha

entrou em seu quarto.

— Parece que você está se entendendo bem com Edmund, querida. Só

espero que não leve a sério esse súbito interesse dele por você.

— E por que não? — perguntou Nancy, irritada com a intromissão dela.
— Escute, querida! — pediu Marsha, sentando-se à beira da cama. — Tentei

substituir sua mãe desde que ela morreu, mas talvez eu não a tenha orientado com

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franqueza sobre os homens.

— Tem razão, tia. Mas não há motivo para preocupações. Sempre soube

tomar conta de mim mesma e não sou tão ingênua como você pensa.

— Eu sei, querida, mas você ainda é muito inocente quando se trata de julgar

as pessoas. Pode estar cometendo um terrível engano quanto a este doutor. Ele não

é o que aparenta ser. Sob aquela máscara de simpatia e charme, existe um homem

frio e rude.

— Ora, você só está dizendo isso porque não conseguiu impressioná-lo como

planejava, tia!

— Não entendo suas insinuações maldosas. Apenas quero lhe avisar sobre o

outro lado da personalidade de Edmund. Ele jamais se prenderá a alguém ou a

qualquer coisa além de seu trabalho. Por isso, seria bom você não se envolver com

ele. Edmund adora viver em lugares selvagens, entre tribos primitivas. Agora, seja

sincera, não é o tipo de homem que serve para você. É?!

— Não me importo com o que ele faz ou deixa de fazer. Amanhã voltaremos

juntos para Londres, onde pretendemos continuar nos vendo!

Marsha levantou-se bruscamente e dirigiu-se até a porta, de onde lançou-lhe

um olhar maldoso.

— Você é mesmo uma tola, como sua mãe sempre foi. Um dia se

arrependerá de não ter me ouvido, e quando isto acontecer não adiantará nada vir

correndo pedir a minha ajuda...


CAPÍTULO II
Nancy jamais estivera tão atraída por um homem quanto por Edmund.

Embora, verdade seja dita, poucos tivessem sido os rapazes com quem saíra desde

a adolescência. O regime rígido e severo do colégio interno não lhe permitira e,

quando tivera a chance de morar sozinha, não houvera oportunidade de conhecer

alguém assim tão charmoso.

Em Londres, convencida de que os conselhos de tia Marsha eram fruto de um

profundo despeito, Nancy ignorou-os por completo. Assim, na semana seguinte

encontrou-se com Edmund todos os dias. Numa sexta-feira, não resistindo mais,

acabou lhe confessando todo o seu amor.

Naquela noite, sentados no sofá do luxuoso apartamento de Peter Manson,

Edmund a envolveu nos braços, murmurando com ternura:

— Hoje você fica aqui comigo, sereia.
— Eu... eu... não posso, Edmund — respondeu, embora sentisse cada

centímetro de seu corpo ansioso por concordar.

— E por que não, meu amor?
— Não sei explicar o motivo, mas não posso.
— Então mentiu sobre seus sentimentos por mim? — disse ele, erguendo-se

bruscamente.

— Oh, não, não é isso! Eu te amo muito, só que não devo me entregar a

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você, a menos que...

— A menos que haja uma aliança de ouro na sua mão esquerda e você use o

meu sobrenome. Não é o que está tentando me dizer? Que tolo eu fui! Pensei que

você fosse diferente das outras...

Nancy percebia o quanto o havia desapontado mas era incapaz de ceder,

pois estava insegura com relação aos sentimentos e intenções dele. Levantou-se e

pegou o casaco, jogando-o nervosamente sobre os ombros.

— Se me amasse com a mesma pureza que eu o amo, Edmund, teria antes

me pedido em casamento — falou com tristeza, enquanto caminhava em direção a

porta.

Mas, antes que pudesse alcançá-la, Edmund bloqueou-lhe a passagem,

apoiando o corpo forte sobre o batente.

— Aonde pensa que vai?
— Eu não sei! Por favor, deixe-me passar!
Ele se aproximou e, tomando-lhe o rosto entre as mãos, encarou-a por alguns

instantes. Seus olhos estavam totalmente inexpressivos; não havia neles alegria ou

frieza, apenas algo indefinido que Nancy não conseguia captar. Então, ele sorriu.

Um sorriso terno e ao mesmo tempo provocante.

— Tudo bem, sereia, será como você quer. Mas a cerimônia deverá ser

simples e rápida, pois quero você morando comigo enquanto eu permanecer por

aqui.

— Oh, Edmund.
No momento seguinte estavam um nos braços do outro como duas crianças

perdidas na escuridão.

— Oh, Nancy querida, o seu perfume e o seu corpo me perturbam tanto que

eu já nem sei mais o que estou fazendo. Você me tirou a razão.

Embora não compreendesse exatamente o sentido daquelas palavras, Nancy

não as questionou. Estava feliz demais para refletir sobre qualquer coisa que não

fosse o fato de que logo estaria casada com aquele homem adorável!

As duas primeiras semanas do casamento de Nancy foram as mais felizes de

toda sua vida. Edmund provou ser o amante que ela sempre imaginara em seus

sonhos mais românticos. Exigente, no entanto sempre consciente de seus mínimos

desejos, ele a levou a descobrir um mundo novo de emoções e a realizar-se como

mulher.

No dia anterior à chegada de Peter Manson a Londres, Edmund foi a Oxford

tratar de assuntos referentes ao seu trabalho junto às tribos primitivas.

Nancy voltou mais cedo do escritório a fim de encaixotar suas coisas, pois

pretendiam mudar-se para o apartamento que haviam alugado ali perto. Acabara de

fazer as malas quando ouviu o barulho de alguém entrando. Certa de que fosse

Edmund, correu para recebê-lo. Com uma exclamação de espanto, parou

abruptamente ao deparar com um homem alto e atraente, cabelos muito escuros,

verificando a correspondência sobre a mesa da sala.

Ele também se surpreendeu ao vê-la, mas, quando Nancy lhe contou quem

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era e o porquê da sua presença ali, o estranho ficou simplesmente estarrecido.

— Edmund, casado?! Ora, você deve estar brincando! Escute aqui, não é

preciso inventar toda esta história de casamento só para encobrir um caso entre

vocês. Não fico nem um pouco ofendido pelo fato de estarem morando juntos em

meu apartamento.

— Mas nós estamos casados! — protestou Nancy indignada. — Se não

acredita, dê uma olhada nisto. — Ela levantou a mão esquerda e mostrou-lhe a

aliança.

— Incrível! — exclamou ele, atirando-se na cadeira mais próxima. — Você me

desculpe, mas continuo achando tudo isso inacreditável! Edmund sempre viveu

única e exclusivamente para sua medicina tropical! Há quanto tempo você o

conhece?

— Seis semanas.
— Oh não! Não me surpreenderia nada se você também me dissesse que

desconhece quase tudo a respeito da vida dele.

Levantando-se, Peter Manson caminhava preocupado de um lado para o

outro.

Aquela atitude estranha a irritava cada vez mais.
— Ora, sei o que me interessa! Conheço os gostos de Edmund. Sei a idade

dele, e acho isso o suficiente!

— Ah, uma garota do tipo romântico! Quer dizer, então, que ele não lhe

contou nada?

— Contou o que? — Nancy começava a ficar alarmada. Edmund já teria

sido casado antes e não lhe dissera nada a respeito? Talvez fosse este o motivo de

tanta hesitação em pedí-la em casamento.

— Ele não lhe disse que é herdeiro de uma imensa fortuna desde a morte de

seu pai?

— Bem, pelo que pude observar, dinheiro não lhe falta. Embora ele não

possua muita coisa além de algumas roupas boas e o Jaguar, que aliás não é um

carro barato...

— Para ser mais exato, ele possui uma fortuna bastante razoável. Nunca

ouviu falar nos Caramelos Talbot?

— É claro que sim, eu os adoro. Mas o que isso tem a ver com Edmund?
— Ele é um dos donos. Na verdade, não sente o menor interesse pela fábrica,

por isso quem toma conta de tudo são alguns primos. Edmund é considerado o

excêntrico da família e, para desgosto do pai, jamais quis assumir a empresa. Desde

que se formou em medicina, ele só tem olhos para a profissão e, atualmente, é onde

emprega parte do dinheiro herdado. Já imaginou o que vai fazer quando ele a deixar

para ir viver no meio das tribos primitivas, infestadas de malária, na África ou no

Brasil?

— Irei com ele.
Peter olhou-a com uma expressão de pena.

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— Se o conheço bem, Edmund não a levará junto. Ele é de opinião de que

quem vai sozinho chega mais depressa.

— Mais uma vez você está enganado a respeito dele, sabe? Pensou que ele

jamais se casaria e, no entanto, aqui estou eu.

— E vem daí a minha preocupação com você. Ainda desconhece a

verdadeira personalidade de Edmund... Talvez tenha sido esta sua ingenuidade que

o tenha enfeitiçado. Ele não é o tipo de homem caseiro, e talvez deseje a sua

companhia apenas enquanto estiver aqui em Londres.

A expressão de tristeza no olhar de Nancy era tão profunda que Peter se

arrependeu de ter sido tão cruel. Aquela jovem parecia ainda muito iludida pelos dias

românticos da lua-de-mel.

— Sinto muito, Nancy. Não pretendia magoá-la. Eu deveria, sim, ter lhe

desejado felicidades, mas, pode estar certa, faço isto agora com a maior

sinceridade. Acredita em mim?

Ela, porém, se sentia perturbada demais com as revelações que acabara de

ouvir para conseguir responder. Meneou ligeiramente a cabeça, evitando embaraçá-

lo ainda mais.

Quando finalmente Edmund chegou, a paz voltou outra vez ao coração de

Nancy, e todas as dúvidas despertadas por Peter foram esquecidas por completo.

Mudaram-se para um lugar só deles, onde ela se abandonou à convivência tranqüila

e cheia de amor ao lado do marido.

Por três meses viveram na mais completa felicidade. Nancy continuou

trabalhando para a agência de publicidade, enquanto Edmund viajava diariamente

para Oxford, onde se dedicava a uma pesquisa sobre doenças tropicais.

Por essa ocasião, Nancy pôde descobrir um pouco mais sobre a

personalidade daquele homem tão complexo. Embora gostasse de viver com

simplicidade, ele não hesitava em gastar somas enormes comprando-lhe presentes

caros sem motivo algum. Porém tornava-se arredio quando ela tocava no assunto

relacionado à herança, que, em grande parte, era doada para algumas instituições

de caridade dedicadas a povos mais carentes. Certa vez, criando coragem, Nancy

perguntou-lhe por que ele nunca havia mencionado o fato de ser herdeiro dos

Caramelos Talbot, mas surpreendeu-se com a frieza da resposta.

— Não queria que você se casasse comigo apenas pelo meu dinheiro. Quase

fui enganado uma vez e não pretendia correr esse risco novamente.

— Esteve prestes a se casar com outra antes de me conhecer?
— Sim, mas tive a felicidade de descobrir a tempo que minha ex-noiva era

uma interesseira.

— Deve ter sido um choque terrível, querido!
— E uma grande desilusão também.
— Gostava muito dela?
— Não tanto quanto de você, meu amor.
Apoiando a cabeça no ombro dele, Nancy sentiu o coração bater mais forte.

Como era bom ouvi-lo dizer que a amava! Gostaria de poder dizer a tia Marsha o

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quanto ela se enganara a respeito daquele homem tão terno e maravilhoso, e de

como estava feliz a seu lado.

Um dia Edmund chegou em casa e, sem rodeios, comunicou a Nancy que

havia sido requisitado pela Cruz Vermelha. Faria parte de uma equipe com destino à

Indonésia, onde dariam assistência a milhares de pessoas vítimas de um terremoto.

— Posso ir com você? — ela perguntou timidamente.
— Não.
— Mas por que não?
— Só irão médicos, enfermeiros e alguns assistentes sociais. Além disso,

ficarei bem mais tranqüilo deixando-a segura e confortável em Londres, longe do

perigo de contrair alguma doença contagiosa. Quero-a esperando por mim sã e

salva...

Era terrivelmente doloroso vê-lo partir, mas Nancy concordou sem contestar.

Enquanto Edmund esteve fora, Peter Manson mostrou-se amigo e solidário, levando-

a algumas vezes ao teatro ou para jantar. "Recomendações de seu marido", dizia

ele, alegando estar cumprindo ordens.

Para desespero de Nancy, Edmund só retornou da viagem sete meses

depois. Estava bem mais magro e abatido e as poucas roupas que levara voltaram

tão estragadas que ela as jogou no lixo. Embora com o rosto ainda marcado pela

tristeza, em consequência da tragédia que havia presenciado, Edmund demonstrou

muita alegria ao revê-la. Foi pessoalmente falar com o chefe de Nancy, Ben Davies,

a fim de pedir-lhe para dispensá-la por quinze dias, pois queria tê-la a seu lado o

tempo todo.

Seis semanas depois, Edmund foi novamente requisitado para uma outra

expedição. Desta vez para a América Central, onde outro terremoto havia destruído

grande área na selva.

Novamente Nancy pediu para acompanhá-lo, mas ele se negou

terminantemente. E, pela primeira vez, tiveram uma discussão séria, desde que

haviam se casado. Quando ele partiu, ela sentiu um profundo aperto no coração, um

medo estranho. E se ele não regressasse?

Como da outra vez, Peter manteve-se fiel à solicitação do amigo no sentido

de cuidar de Nancy, procurando distraí-la e inventando mil programas.

Era um domingo e Peter havia sugerido que fossem ao litoral para mudarem

um pouco de ares. De volta ao apartamento de Nancy, ele subiu para um drinque,

como geralmente fazia ao levá-la para casa depois de um passeio. Já estava

escurecendo e a sala se encontrava na penumbra quando se sentaram no sofá,

exaustos pelo dia movimentado.

— Em momentos como este, eu desejaria que você não fosse casada com

Edmund... — ele disse.

Nancy não se surpreendeu com aquele comentário. Há algum tempo vinha

notando o interesse crescente demonstrado por Peter. Entretanto, com receio de

que ele fosse longe demais, preferiu mudar-se para outra cadeira. Mas, mesmo

antes que pudesse levantar-se, sentiu suas mãos presas entre as dele.

— Já deve ter percebido o que está acontecendo comigo, não? Estou

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Flora Kidd

Selva de Prata

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apaixonado pela esposa do meu melhor amigo! Não posso calar meus sentimentos

por mais tempo, Nancy...

— Não, Peter, por favor, não faça isso — murmurou desesperada, tentando

afastá-lo ao perceber que ele tencionava beijá-la.

Respirando com dificuldade, Peter a envolveu num abraço, aproximando o

rosto dos lábios dela. Nancy virou rapidamente o rosto e o beijo tocou-lhe apenas os

cabelos. Neste momento, olhando para o quarto, Nancy estremeceu! Viu a sombra

de uma figura familiar parada na soleira da porta. Seria Edmund? Ou apenas uma

alucinação causada por aquela situação tão embaraçosa?! Na semi-escuridão, ela

fixou os olhos novamente, mas a sombra já havia desaparecido.

Percebendo o quanto Nancy estava trêmula, Peter a libertou, afastando uma

mecha de cabelo que caíra em seu rosto.

— Sinto muito se a assustei, Nancy. Você é tão linda e adorável, mas está

sempre triste. Precisa urgentemente de um pouco de carinho. Por que não me deixa

ficar aqui para confortá-la?

— Por favor, Peter, não diga mais nada! Vá embora, sim? — ela suplicou,

desesperada.

— Está bem, eu vou. Mas fique certa de que voltarei. Eu a amo e a quero

para mim!

— Está perdendo seu tempo. Eu sou casada e...
— Mas esta é uma situação que pode ser remediada, você sabe. Não se

pode chamar de casamento uma união em que o marido passa mais tempo fora do

que em casa.

— Pare, Peter, não quero ouvir mais nada! Quer ter a gentileza de sair, sim?

— disse ela, aflita, abrindo-lhe a porta.

— Você é mesmo uma tola em manter-se fiel a Edmund! Tem alguma

garantia de que ele age da mesma forma em relação a você?

— Boa noite, Peter — ela dispensou-o, secamente.
Uma raiva crescente a dominava, embora admitisse que a insinuação de

Peter despertava-lhe uma certa intranqüilidade em relação a Edmund. Lembrando-

se da visão de momentos antes, correu para o quarto, ansiosa por verificar se teria

sido real ou apenas fruto de sua imaginação. Abriu a porta lentamente e encontrou o

quarto às escuras, iluminado apenas pela luz da rua. Com o coração acelerado,

percebeu que havia alguém em pé junto à janela.

— Edmund...? — ela perguntou, acendendo o abajur de cabeceira.
Como que paralisado, Edmund fitou-a com um brilho de aço no olhar. Nancy

também não ousou aproximar-se para dar-lhe boas vindas. Sabia que ele

presenciara parte da cena ocorrida na sala e provavelmente estava fazendo um

conceito errado dela.

— Há quanto tempo você chegou? — ela perguntou, sentindo-se culpada por

não ter ficado em casa para recebê-lo depois da longa viagem.

— Faz uma hora mais ou menos — respondeu ele friamente. — Estava

tomando banho, por isso não ouvi quando você voltou. Só percebi que tinha

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Selva de Prata

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chegado quando saí do banheiro e ouvi a voz de Peter na sala.

— Sinto muito não estar aqui para recebê-lo! Não o esperava tão cedo, por

isso fomos passar o dia na praia.

— Ele já foi embora? Ou tem o hábito de ficar a noite toda com você, quando

fazem algum programa?

Mesmo ofendida com aquela acusação injusta, Nancy aproximou-se e tocou-

lhe o braço suavemente, numa tentativa de explicar o mal entendido.

— Por favor, Edmund, não fique assim! Eu posso explicar o que aconteceu lá

na sala. Não é o que você está pensando, nunca houve nada entre mim e Peter.

— Como posso saber se está dizendo a verdade? Sabe-se lá como você se

comporta quando eu não estou aqui...

— Não faço nada demais. Apenas volto do trabalho para casa e fico

esperando por você. Edmund, querido! Não pode nem imaginar como sinto sua falta!

— Não foi essa a impressão que me deu hoje. Cheguei em casa certo de

encontrá-la à minha espera. No entanto você estava se divertindo com Peter por aí...

— Foi você quem disse a ele para cuidar de mim.
— Sim, mas não para tomar posse do que é meu!
— Como pode dizer uma coisa destas? Você me conhece e sabe muito bem

como sou! Jamais seria capaz de traí-lo.

— Esta é uma certeza que eu nunca poderei ter!
— E quanto a mim? Fico aqui sozinha esperando você voltar, nem ao menos

saber se ainda está vivo. Quem me garante que não tenha uma mulher em cada

canto do mundo?

Assim que acabou de falar, Nancy percebeu que havia cometido um grave

erro. Suas palavras causaram a Edmund o efeito de uma explosão num barril de

pólvora.

Movendo-se como um animal ágil e enfurecido, ele a atirou sobre a cama

antes que tivesse tempo de fugir. Em seguida, deitou-se sobre ela e, segurando-lhe

o rosto entre as mãos, beijou-a de modo insolente e violento.

O peso do corpo viril a machucava, impedindo-a de mover-se. Amedrontada

pela fúria crescente que o dominava, Nancy debatia-se desesperadamente querendo

se libertar, mas sua resistência aumentava ainda mais a onda de raiva e o desejo

desenfreado. Pela primeira vez, desde que haviam se casado, não houve nem um

instante de ternura ou consideração por seus sentimentos, quando ele a possuiu

agressiva e arrebatadoramente.

Quando tudo terminou, Edmund levantou-se e a olhou friamente antes de se

retirar.

— Agora acho que você já sabe a quem pertence. A mim, o seu marido! Na

próxima vez, quando eu voltar, espero encontrá-la em casa e um pouco mais

receptiva e amorosa!

Mais tarde Edmund voltou ao quarto, trazendo-lhe uma xícara de chá. Nancy

já se vestira, e estava sentada em frente à penteadeira, escovando os cabelos com

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lentidão. Lágrimas de tristeza corriam por suas faces. Ele se aproximou e, tocando-

lhe o queixo com ternura, induziu-a a encará-lo.

— Perdoe-me, Nancy.
Entretanto, ainda muito perturbada e exausta face ao que acabara de ocorrer,

Nancy reagiu violentamente àquele carinho.

— Não me toque!
— Não pretendia magoá-la, acredite!... Isso nunca aconteceu comigo! Acho

que fiquei desapontado por chegar aqui e não encontrá-la. Consegui um jeito de

voltar a Londres antes do tempo só porque queria estar a seu lado. Imaginei

encontrá-la em casa, radiante com a supresa!

Nancy não movia um só músculo da face. Sua expressão era de quem tinha

diante de si um homem que lhe era totalmente desconhecido.

— Por Deus, Nancy! Pare de me olhar como se eu fosse um monstro! Já lhe

pedi desculpas! O que mais preciso fazer para você me compreender? — Ele tentou

aproximar-se novamente mas ela recuou assustada.

Nancy só conseguia pensar que aquele não era o seu Edmund, o homem

maravilhoso por quem se apaixonara perdidamente.

— Oh! Droga! Você precisava voltar justamente hoje? — desabafou ela,

lembrando-se do quanto ansiava por aquele momento! — Você estragou tudo com

esta maldita surpresa!

Mais uma vez, Nancy havia empregado as palavras erradas! Subitamente

entrou em pânico, cobrindo o rosto com as mãos.

— Oh, Deus, não pretendia dizer-lhe isto! Não aguento mais, estou tão

confusa! — Correu para o armário, de onde tirou uma jaqueta e vestiu. Queria sair

dali o mais rápido possível, ficar sozinha por alguns instantes e colocar as idéias em

ordem.

— Aonde você vai, Nancy?
— Não sei. Preciso ficar sozinha! Não percebe que estragou tudo?!
Desta vez Edmund nada fez para impedí-la.
Respirando com dificuldade, Nancy entrou no elevador, e, ao chegar à rua,

não sabia o que fazer. Por instantes pensou em voltar para o apartamento, mas uma

força maior a impediu. No primeiro ônibus que viu passar, subiu sem ao menos ler o

destino e, imersa em seus pensamentos, permaneceu sentada ali até o ponto final.

Durante o percurso de volta, já se sentia bem mais calma. Quando retornou

ao apartamento, Edmund não se encontrava mais lá. Esperou-o até o amanhecer,

sentada no sofá da sala, mas ele não regressou.

Na manhã seguinte Nancy seguiu para o trabalho, sentindo os olhos arderem

pela noite mal dormida. Tinha esperanças de que Edmund lhe telefonasse para irem

almoçar juntos. Pensando nisso, não conseguia se concentrar no trabalho, atenta à

campainha do telefone. Ligou várias vezes para o apartamento, não obtendo

resposta, e, numa atitude de desespero, discou o número de Peter.

— Você sabe onde está Edmund? — ela perguntou, envergonhada por ter de

admitir que ignorava o paradeiro de seu próprio marido.

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— Sim, eu sei. Para dizer a verdade ele acabou de sair daqui.
Nancy suspirou aliviada.
— Oh, que bom! Então ele logo estará aqui.
Peter respirou fundo e limpou a garganta.
— Sinto desapontá-la, Nancy, mas não será possível! Ele viajou novamente e

deixou um recado para você. Que tal eu lhe transmitir pessoalmente? Afinal, não é o

tipo de coisa para se falar ao telefone.

Nancy não pôde ouvir mais nada! Atirou o telefone para o lado, rompendo

num choro convulsivo e interminável!


CAPÍTULO III
O sol brilhava com intensidade no céu azul, refletindo raios dourados sobre a

asa do pequeno avião Cessna em que Nancy viajava.

Lá embaixo, a floresta densa, onde as copas das castanheiras destacavam-se

com soberania, estendia-se como um infinito manto verde. Sobrevoavam o alto

Xingu, uma região com inúmeros rios de águas barrentas, ao redor das quais

concentrava-se a fauna e flora brasileiras na sua mais esplendorosa exuberância.

A viagem de Nancy ao Brasil era de caráter estritamente oficial. Fora recebida

no Aereoporto do Galeão, no Rio de Janeiro, por membros da Funai, um órgão

governamental encarregado de assuntos indígenas. E, depois de ter passado a noite

no Copacabana Palace, seguiu bem cedinho para Brasília, em companhia do

professor Cláudio Rodrigues, um antropologista muito dedicado ao Serviço de

Proteção ao Índio.

Naquele momento estavam quase chegando ao destino pretendido: o Posto

Diauarum, no Parque Nacional do Xingu, habitado por nove tribos indígenas. Ao

contrário da maioria das pessoas que se aventuravam àquela região, considerada a

maior floresta tropical do mundo, Nancy não estava muito entusiasmada. Tinha sido

uma decisão tomada às pressas e agora sentia-se pouco disposta a enfrentar aquela

vida selvagem no meio de cobras, lagartos e escorpiões.

— É melhor colocar o cinto, Nancy. Desceremos em poucos minutos —

avisou-a gentilmente o professor Rodrigues, um homem de meia-idade, que a olhava

através das grossas lentes de seus óculos.

Aos solavancos, o avião aterrissou na pista de terra, estreita e curta. Vista do

alto, era apenas um traço vermelho na imensa floresta. Sem chances de arremeter,

o piloto precisava ser muito hábil para pousar naquela região, e os passageiros,

bastante corajosos!

Assim que desceu, Nancy viu-se cercada por inúmeros índios seminus,

alegres e barulhentos. Entre eles, chamou-lhe a atenção um senhor de cabelos e

barba grisalhos, trajando apenas um short e uma leve camisa de algodão. Ao lado

dele, um jovem muito atraente, vestido da mesma forma, e uma bela mulher de

longos cabelos negros presos na nuca. O tom dourado de sua pele era algo que

jamais vira antes.

O homem mais velho aproximou-se, segurou-lhe a mão e, num gesto

inesperado, passou os braços ao redor de suas costas, dando-lhe dois ruidosos

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beijos, um em cada lado da face. Era o famoso abraço brasileiro, recepção calorosa

da qual Nancy muito ouvira falar!

— Bem vinda, Nancy! Muito bem vinda! É um grande prazer conhecer

finalmente a filha do meu saudoso e velho amigo Frank Fenwick! Sou Luís Santos e

este é meu sobrinho Manuel Santos. Ele é sociólogo e trabalha aqui conosco. Esta é

sua esposa, Rita!

Nancy cumprimentou-os amavelmente e, dirigindo um olhar ansioso à sua

volta, percebeu a ausência de Edmund. Não havia o menor sinal dele.

— Está procurando por Edmund? Ele não pôde vir. Ficou na enfermaria,

cuidando de alguns doentes — explicou Luís. Aproximou-se, baixando o tom da voz

com um ar cúmplice. — Tive todo o cuidado para manter o nosso segredo! Ele ainda

não sabe que a jornalista encarregada de fazer a reportagem sobre o nosso trabalho

é você. Não contei nem mesmo a Rita e a Manuel.

Voltando-se para os sobrinhos, o simpático senhor explicou-lhes rapidamente

que Nancy era a esposa de Edmund. Os dois a fitaram com uma expressão

divertida, deixando-a pouco à vontade.

— Mas esta será uma bela surpresa para Edmund! Ainda outro dia estávamos

imaginando como seria essa jornalista! — exclamou Rita, num inglês carregado de

sotaque americano.

— Como está Edmund? — perguntou Nancy, não conseguindo conter sua

preocupação.

— Vamos até a vila e no caminho eu lhe conto. Não é aconselhável você ficar

sob este sol por muito tempo — preveniu Luís, tomando-lhe o braço.

Entraram num jipe, rodeado por indiozinhos curiosos, onde se encontravam a

bagagem de Nancy e diversas caixas com medicamentos e suprimentos destinados

ao Posto.

— Edmund já está bem melhor do que quando lhe escrevi aquela carta —

contou-lhe Luís. — Mas ainda está muito magro e se cansa facilmente. Talvez você,

como esposa dele, tenha mais sucesso do que eu em convencê-lo a ir para Brasília

ou para o Rio a fim de descansar um pouco. Ele é teimoso e insiste em permanecer

aqui até concluir sua tarefa.

Nancy olhou-o de soslaio. Realmente Luís não tinha a menor idéia da

verdadeira situação entre os dois.

— Como foi que me descobriu, se Edmund não contou nada a ninguém sobre

o nosso casamento?

— Ah, isto foi fácil! Quando ele chegou aqui no Posto, depois de passar vários

dias caminhando na selva, estava muito doente. Por isso achei melhor comunicar

seu estado à família. Procurei pelo passaporte dele, e o seu nome era o primeiro de

uma lista de pessoas a serem avisadas em caso de emergência.

A carta de Luís havia sido tanto uma surpresa quanto um choque para ela.

Era a primeira notícia que recebia de Edmund desde que ele a deixara, dezesseis

meses antes. Ao sabé-lo doente, sua reação imediata foi querer voar para junto dele

o mais de pressa possível.

Sem saber o que fazer, Nancy passou noites e noites sem poder dormir,

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caindo numa depressão profunda. Aquela ansiedade acabou por afetar sua vida

profissional, até que um dia Ben Davies a chamou para alertá-la sobre alguns erros

básicos em um de seus artigos. Nancy não resistiu e rompeu em prantos, desaba-

fando o seu tormento.

Ele a ouviu pacientemente e, após ponderar por alguns instantes, perguntou-

lhe em tom paternal:

— Gostaria de ir para perto do seu marido, não é mesmo, menina?
— Oh, sim! Mas não vejo como isso seria possível. Além dos gastos com a

viagem, receio que Edmund, quando souber da minha ida para o Brasil, desapareça

outra vez.

— Ele não precisa ficar sabendo. Ok?
— Mas como...?
Ben sorriu com carinho.
— O objetivo de sua viagem será encontrar-se com Luís Santos e não com

Edmund. A partir deste momento você será nossa correspondente. É sua chance de

escrever reportagens sobre assuntos geográficos para nossa revista e assim seguir

a mesma carreira de seu pai.

— Mal posso acreditar!
— Enviarei uma carta a Luís Santos avisando que você vai fazer uma série de

artigos sobre o trabalho do governo brasileiro junto às tribos indígenas. De qualquer

forma, seria bom você colocá-lo a par da situação e pedir-lhe para guardar segredo

absoluto sobre sua verdadeira identidade. Você gostará muito dele. Foi um grande

amigo de seu pai e ficará contente por você.

— E com relação a Edmund... Sabe que tipo de trabalho é o dele, lá no

Brasil?

— De acordo com o sr. Santos, Edmund faz uma espécie de avaliação para a

organização em que trabalha. O objetivo é arrendar dinheiro para mandar

medicamentos e outras provisões para os povos mais pobres. O avião em que

Edmund viajava caiu na floresta e ele ficou perdido por várias semanas. Quando

conseguiu chegar ao Posto Diauarum estava fraco e muito doente.

— Doente?! O que poderia ser?
— Provavelmente malária. Mas não se assuste, menina. Com certeza ele já

estará curado quando você chegar lá. Agora deixe-me pensar qual seria essa tal

organização... Já sei! Deve ser O.S.P.P., Organização de Socorro aos Povos

Primitivos. — Ele pegou o telefone. — Entrarei em contato com eles agora mesmo

para confirmar. Talvez se interessem pelos seus artigos. Agora me diga, quando

acha que poderá embarcar?

Agora, ali estava ela, num campo de pouso em plena floresta Amazônica, o

coração batendo acelerado diante do iminente reencontro com seu marido!

Tudo indicava que a chegada de um avião da Força Aérea brasileira era um

verdadeiro acontecimento social. Reunidos na pequena sala de um barracão de

madeira, Rita e Luís serviram aos recém-chegados o tradicional cafézinho brasileiro.

Nancy já havia experimentado durante o vôo e achara uma delícia.

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Depois de um longo bate-papo, Luís escoltou o piloto e o professor Rodrigues

até o avião, enquanto Rita levou Nancy para conhecer o quarto onde iria dormir.

— Você fala um pouco da nossa língua? — perguntou-lhe Rita enquanto

caminhavam.

— Apenas algumas frases ensaiadas antes de vir para cá. Entretanto, não fui

capaz de compreender uma só palavra que me disseram desde que cheguei. A

minha sorte é que vocês sabem falar inglês, senão estaria em apuros. Como

aprendeu?

— Em casa. Minha mãe nasceu nos Estados Unidos e nos ensinou desde que

éramos bem pequenos. Mas fique tranqüila. Acabará aprendendo a nossa língua só

de conviver conosco. Além disso, poderei traduzí-la para você sempre que tiver difi-

culdade. Edmund, por exemplo, já sabe conversar fluentemente.

Chegaram a um outro rancho todo rodeado por uma varanda onde havia

várias portas. Subiram uma pequena escada de madeira e caminharam até a última

delas.

— Este é o quarto de Edmund — disse Rita. — Havíamos planejado que você

e eu dormiríamos juntas enquanto Manuel ficaria aqui com Edmund. Mas como você

é a esposa dele a troca é desnecessária, não é? Tenho certeza de que não fará

nenhuma objeção em dormir com seu marido — acrescento Rita, sorrindo com

malícia.

— Não, não, é claro que não — respondeu Nancy, pensando se Edmund

gostaria da idéia.

O quarto, simples, era escuro e abafado porque a janela, além de pequena,

possuía uma grade fixa de madeira. A mobília era composta apenas de duas camas

de campanha cobertas por cortinados para protegê-los contra pernilongos e outros

insetos. Em um dos cantos havia uma porta que dava para um pequeno banheiro.

Além da sua bagagem, que já se encontrava ali, havia apenas a mala de Edmund.

Nenhum enfeite ou objetos pessoais.

— Jamais deixamos nada à vista ou nossas malas destrancadas — explicou-

lhe Rita. — Não porque as pessoas aqui tenham o hábito de roubar, mas os índios,

acostumados a repartir seus pertences, simplesmente não entendem o direito da

propriedade. Viver na cidade é competir, mas numa aldeia é sentir, perceber, trocar

e ser. Por isso, não espere, inclusive, muita privacidade. Dê uma olhada lá fora.

Nancy ficou surpresa ao deparar com vários índios, sentados na varanda

olhando para elas. Eram altos e fortes e intensamente bronzeados. Alguns usavam

os cabelos lisos, soltos até os ombros, com uma faixa na cabeça, na altura da testa,

para mantê-los no lugar; outros os haviam cortado muito curtos, em forma de cuia.

Eles mantinham o olhar fixo em sua mala e ela assustou-se quando um deles

aproximou-se e tocou, curioso, o tecido de sua blusa, seus cabelos e, por fim, o

cordão de ouro em seu pescoço.

— Eles estão esperando pelos presentes — falou Rita, notando o ar atônito

de Nancy. — Trouxe alguns com você?

— Si... sim — respondeu Nancy, apressando-se em abrir a mala e retirar um

saco de caramelos Talbot, distribuindo-os rapidamente entre eles. E, quando os viu

afastarem-se, respirou aliviada.

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— Com certeza você deve estar querendo arrumar-se um pouco antes de ver

Edmund — disse Rita — Dê uma batida na porta quando estiver pronta. Estarei no

quarto ao lado.

Nancy sentiu-se bem melhor após ter lavado o rosto e trocado a blusa por

uma mais leve, de algodão, que lhe deixava os ombros nus. Olhou-se no espelho

que havia sobre a pia, invejando o bronzeado da pele de Rita.

Sua palidez a fazia sentir-se nua quando ambas dirigiram-se para uma

espécie de quiosque coberto com folhas de palmeiras sustentado por grossas toras

de madeira, onde se prendiam várias redes. Ao vê-las aproximarem-se, Luís e

Manuel, que ali conversavam e fumavam displicentemente, levantaram-se para

recebê-las.

— Trouxe seu livro de anotações? — perguntou-lhe Luís. — Vou levá-la para

um primeiro reconhecimento do nosso centro.

— Uma boa redatora jamais anda sem lápis e papel — respondeu Nancy,

animada, mal podendo esperar o momento de encontrar-se com Edmund.

— Então vamos lá, mas não se apresse ou acabará se sentindo mal por

causa do calor. A temperatura aqui gira em torno dos 25° o ano inteiro, o dia todo, e

em quase todos os lugares. E, chove tanto que, às vezes, temos a impressão de um

dilúvio!

— Tanto assim?
— Há um velho ditado amazônico que diz: "No verão chove todos os dias; no

inverno, o dia todo".

Nancy simpatizava cada vez mais com aquele homem que, por alguma razão

desconhecida, a fazia lembrar seu próprio pai. Talvez fosse pelo fato de ambos

terem sido amigos e de haverem lutado pelas mesmas causas: o respeito e a

preservação dos povos primitivos.

— Este é o Posto Diauarum, um dos vários no Parque Nacional do Xingu,

uma grande reserva criada em 1961 — continuou ele, entusiasmado. — Esse

parque abrange uma área de mais de vinte mil quilômetros quadrados e foi fundado

com o objetivo de reunir diversas culturas aqui existentes há muitos séculos. De

costumes extremamente ricos, elas estavam em processo de extinção. O que seria

uma grande perda, não só para os brasileiros, pois há muitos estrangeiros que

também estão preocupados com o destino do nosso índio.

Nancy ouvia tudo com atenção e tomava notas ocasionais em seu bloco.

Chegaram a uma pequena construção que Luís lhe explicou ser o hospital para onde

os índios enfermos eram trazidos de suas aldeias às vezes até de avião. Dispunham

de uma pequena sala de cirurgia, e isso os tornava orgulhosos porque podiam

oferecer aos nativos um atendimento mais eficiente do que os outros postos.

Entraram e, após Luís ter trocado algumas palavras com a enfermeira, ela os

conduziu a um dos quartos de um comprido corredor. Aparentemente calma, Nancy

tinha as palmas das mãos suadas de nervoso. Ao entrar no aposento, viu duas

fileiras de camas de ferro, quase todas ocupadas por pacientes. Curvado sobre um

deles, uma figura muito familiar quase fez seu coração parar.

O sol entrava por uma das janelas, refletindo os raios dourados na vasta

cabeleira clara de Edmund. À maneira dos índios, ele havia amarrado uma fita

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colorida na testa a fim de manter os cabelos longe dos olhos. Vestia uma camisa

branca, de algodão e mangas curtas, e uma bermuda desbotada feita de uma velha

calça jeans.

— Olá, doutor! — saudou Luís ao se aproximarem. — Quero apresentar-lhe a

nossa jornalista.

Edmund ergueu a cabeça e pousou em Nancy os olhos muito azuis, em

contraste com a pele bronzeada pelo sol tropical.

Ela sentiu as pernas fraquejarem. Por alguns instantes perma- neceram em

silêncio, hipnotizados pela emoção e pelo forte magnetismo de seus olhares.

— Olá... Como vai? — perguntou Nancy por fim. — Bem — respondeu ele,

sem despregar os olhos dos dela.

— E você?
— Eu estou ótima!
Estranhando aquela maneira formal de se cumprimentarem, tão diferente da

dos brasileiros, Luís os olhava atônito, sem entender nada.

— E então, Edmund? Não foi uma bela surpresa? Sua esposa veio fazer uma

reportagem sobre nós para a revista onde trabalha em Londres.

— Verdade? — ele perguntou muito sério a Nancy.
— Sim.
— Parabéns! Sempre achei que você merecia uma oportunidade dessas! Isto

pode significar um grande passo para sua carreira de jornalista.

— Obrigada.
Se havia algo de que Nancy jamais poderia se queixar em relação a Edmund

era sua falta de interesse pelo trabalho dela. Pelo contrário, ele sempre incentivara

seus propósitos de tornar-se uma escritora.

— Por que não me contou que Nancy estava vindo para cá? — perguntou

Edmund friamente a Luís.

— Fui eu quem pedi a ele para não lhe dizer — Nancy apressou-se em

responder, percebendo o embaraço do outro. — Mas eu posso explicar tudo!

Saíram em seguida da enfermaria, deixando Edmund cuidando de seus

pacientes. Nancy ficou tentada a olhar para trás a fim de verificar se ele a observava,

porém o orgulho não lhe permitiu. Não queria demonstrar o quanto ficara perturbada

ao vê-lo depois de tantos meses de separação.

Do lado de fora, a claridade intensa obrigou-a a colocar os óculos escuros.
— Não consigo entender — disse Luís, balançando a cabeça de um lado para

o outro. — Vocês nem sequer se abraçaram! Não ficou feliz em rever seu marido?

— Oh sim, muito! Mas é que... nós ingleses não costumamos demonstrar

nossos sentimentos com tanta espontaneidade quanto vocês brasileiros.

— Ah!, entendo. As expansões de carinho estão reservadas para mais tarde,

quando ficarem a sós. Cheguei a pensar que aquele reencontro não tinha significado

nada para vocês.

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Nancy suspirou aliviada. Pelo menos não havia mentido ao admitir que ficara

feliz em ver Edmund. Aliás, para ser mais exata, estava tão radiante que não sabia

como pudera controlar-se para não se atirar em seus braços e beijá-lo com ardor.

— Agora vou levá-la para conhecer um "tapíri" por dentro, liste que é um dos

nomes dados pelos índios às cabanas onde vivem. Cada tribo tem seus próprios

hábitos e costumes e, aqui na Reserva, eles convivem em paz e harmonia,

respeitando e sendo respeitados por seus companheiros.

Luís a conduziu a uma pequena cabana em forma de colméia,

recomendando-lhe que abaixasse a cabeça ao passar pela abertura estreita e

arredondada em que consistia a porta de entrada.

Estava muito escuro lá dentro e Nancy levou alguns segundos para

acostumar os olhos. No ambiente fresco e agradável, um perfume suave e

adocicado pairava no ar. Duas redes pendiam das paredes laterais, e um homem e

uma mulher estavam sentados no chão, diante de uma panela de barro sobre as

brasas ardentes de uma fogueira no meio do tapíri. No centro do teto, leito de folhas

de buriti apoiadas em grossos troncos, um buraco servia de chaminé para a fumaça

que se desprendia da panela.

Luís conversou com o casal na língua nativa, provocando risos em seus

rostos redondos e morenos. Desde sua chegada ao Posto, Nancy observara,

achando bastante curiosa a facilidade com que os índios sorriam a todo momento,

numa expressão quase infantil, a despeito de suas idades.

O caminho de volta foi penoso. O calor e a umidade a envolviam como uma

grossa manta de lã entrepondo-se entre ela e o mundo ao seu redor. A cada passo,

tinha a impressão de seus pés pesarem uma tonelada. Por isso, quando Luís

sugeriu que ela descansasse um pouco numa das redes do quiosque, enquanto ele

iria conversar com o chefe de uma das tribos, Nancy sentiu-se aliviada.

Apoiou-se numa das extremidades daquela estranha tira de pano e

escorregou o corpo para dentro, quase caindo do outro lado. Sentiu vontade de rir

enquanto tentava ajeitar-se de alguma maneira. Foi então que percebeu alguém a

seu lado.

— Tire os sapatos quando for deitar-se numa rede — disse-lhe Edmund no

seu habitual tom autoritário.

Sentando-se com dificuldade, Nancy desamarrou as alpargatas enquanto

observava Edmund fazer o mesmo com as deles, antes de acomodar-se habilmente

na outra rede. Esticou-se, preguiçosa, e uma deliciosa sensação de bem-estar a

envolveu. A brisa agradável soprava da direção do rio, que corria mansamente a uns

dez metros dali. Podia vê-lo por entre os ramos das árvores, formando um lindo

parque. Naquele ponto o rio alargava-se, transformando-se numa pequena lagoa

contornada por bancos de areia, lembrando uma praia. O canto sonoro dos pássaros

e o matraquear de bandos de periquitos soavam aos seus ouvidos como uma

canção alegre, como se a natureza quisesse lhe prestar uma homenagem.

— Como soube que eu estava aqui? — Edmund perguntou-lhe, depois de

longo silêncio.

— Eu não tinha idéia de onde você se encontrava até que fui informada sobre

seu estado de saúde depois de ter ficado tantos dias perdido na floresta. Por que

ficou tanto tempo sem me dar notícias? Por que não me contou sobre sua vinda para

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o Brasil?

Ele a olhou intrigado.
— Honestamente, você me surpreende, Nancy. Da última vez em que a vi

não parecia nada feliz com a rninha chegada.

— Não foi bem assim.
— Ah não?! Então por que foi embora depois de atirar na minha cara que eu

havia estragado tudo ao lhe fazer uma surpresa? Eu a esperei por várias horas e,

como você não voltava, deduzi que não queria mais me ver.

Naquela noite Nancy havia ficado realmente muito confusa com tudo o que

acontecera. No entanto, voltara depois, mais calma, e querendo fazer as pazes.

Edmund, porém, tinha ido embora. Fora doloroso ter que acreditar em Peter, quando

lhe dissera que Edmund a havia deixado. E, pior, ter que admitir sua culpa. Ah, se

pudesse voltar atrás.

Edmund interrompeu aquelas lembranças tristes.
— Estou surpreso por ainda estarmos casados. A esta altura pensei que já

tivesse solicitado o divórcio para se casar com Peter.

— Como eu poderia me divorciar de você, se nem ao menos sabia do seu

paradeiro?

— Não por isso, minha cara. Peter é um hábil advogado e com toda certeza

teria meios de resolver esta situação.

— Realmente ele se ofereceu, mas eu... eu não quis.
— Por quê?
— Bem... não sei dizer.
Nancy sentia-se a mais miserável das criaturas. Não esperava do marido um

comportamento tão frio e tão distante. Voara ao Brasil para cair em seus braços e

justificar-se por seu procedimento tão infantil naquela noite, mas a hostilidade dele a

feria, inibindo-a de qualquer tentativa de aproximação. O som alegre de risadas

chamou sua atenção quando uma família de índios, todos seminus, passou correndo

por ali em direção ao rio. Sentiu inveja deles, desejando poder usufruir a mesma

liberdade e despreocupação daquelas criaturas tão felizes!

Edmund levantou-se e calçou os sapatos, enquanto ela o observava

disfarçadamente. Ele parecia um "hippie" com aquelas bermudas desbotadas, a

camisa aberta mostrando o peito forte e bronzeado, e os cabelos longos presos na

faixa colorida. As palavras de sua tia Marsha ecoaram de repente em seus ouvidos:

"Edmund gosta de viver em lugares selvagens, no meio de povos primitivos". Talvez

ele tivesse encontrado neste lugar o que muitos ainda estão procurando: paz, uma

vida simples e pureza no coração das pessoas.

— Você está pálida por causa do calor. Não quer nadar um pouco?
— Não há perigo?
— Não. A correnteza é leve e a água muito limpa. Só precisa se lembrar de

manter os pés sempre em movimento, pois podem haver algumas raias no fundo.

Sabe onde está a sua bagagem?

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Flora Kidd

Selva de Prata

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Encabulada, Nancy respondeu baixando o olhar:
— No seu quarto. Rita me disse que eu ficaria lá. Você se importa?
— Por que eu me importaria? — ele disse dando de ombros — Agora vá se

trocar, mas não tire os sapatos. O caminho até o rio é cheio de espinhos.

Um grupo de índios estava sentado na varanda junto à porta do quarto. Nancy

entrou em pânico quando eles a seguiram em alvoroço, apontando para sua mala e

murmurando palavras indecifráveis. Lembrou-se então dos doces em sua sacola, o

que, provavelmente, era o motivo de toda aquela algazarra. Distribuiu-lhes alguns

deles e depois trancou a porta rapidamente enquanto todos se retiravam satisfeitos.

— Pelo jeito você arranjou um bando de admiradores — brincou Edmund ao

vê-la surgir, já de biquini, seguida pelos índios.

— Não é bem em mim que estão interessados. É nos caramelos Talbot! Por

que eles gostam tanto assim de doces?

— Na sua alimentação não há quase nada doce. Não conhecem o açúcar e

muitos não possuem frutas frescas na região em que moram. Mas, por favor, não

lhes dê tudo, eu também gostaria de ganhar alguns.

Aproximaram-se do rio. Do outro lado da margem, lindíssimas borboletas

amarelas coloriam os galhos das árvores, de onde ramos pendiam sobre a superfície

da água. Na pequena praia, Nancy esperou Edmund tirar a bermuda e a camisa,

colocando-as ao lado de sua toalha sobre a areia.

A agua estava muito fria, mas agradável. Ela se deitou de costas, flutuando

por alguns momentos ao sabor da correnteza. Como era bom estar ao lado de

Edmund, partilhando do mesmo prazer.

De repente, viu-se cercada por um grupo de meninos queimados do sol,

pulando e espirrando água por todos os lados. Pareciam peixes nadando e

brincando com uma bola de borracha que corria de mão em mão, em meio aos gritos

de alegria. Quando se deram conta, Nancy e Edmund entraram na brincadeira,

participando da euforia dos indiozinhos.

Meia hora depois, ofegante e feliz, Nancy deitava-se exausta na areia, sobre

a sua toalha. Agora se sentia fresca e leve, livre do calor sufocante.

Edmund sentou-se ao seu lado.
— Não é um banho tão bom quanto no mar, mas não deixa de ser uma

delícia! Quando estive perdido, me lembrava das nossas praias. Pensei que fosse

enlouquecer com tantos insetos me mordendo e o suor cobrindo meu corpo por

causa da febre. A impressão que eu tinha era de que só o sal do mar me traria

algum alívio.

— Deve ter sido uma coisa horrível!
— Os piores momentos foram quando o avião caiu e constatei ser o único

sobrevivente. Tive muita sorte em encontrar a bússola ainda intacta. Sem ela jamais

teria chegado ao posto.

— Quantos dias ficou perdido?
— Luís afirma que foram três semanas. Perdi a noção do tempo naquela

ocasião, mas, de qualquer forma, me salvei! Isso é que importa. Algumas pessoas

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Flora Kidd

Selva de Prata

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levam até dois anos para conseguir escapar da selva!

— Quem mais estava com você no avião?
— O piloto e mais duas pessoas que, como eu, haviam vindo para o Brasil a

serviço da O.S.P.P.. Voltávamos da ilha do Bananal, onde passamos por

experiências fantásticas junto a algumas tribos. Por isso, nenhum de nós queria sair

de lá, o que tornou o acidente ainda mais dramático. Era como se fosse um aviso!

— E quanto à sua pesquisa? Pretende dar continuidade?
— Sim. Apesar de que, com Ingrid e Neil mortos, tenho que concluí-la

sozinho.

— Eles também eram especialistas em doenças tropicais?
— Não. Neil era um antropólogo formado nos Estados Unidos e Ingrid uma

socióloga, sueca. Ela era a pessoa mais surpreendente que já conheci... Até hoje

custo a acreditar na sua morte.

Nancy sentiu uma pontada de ciúme diante da intensa emoção que havia na

voz de Edmund. Embora nem tivesse conhecido a tal Ingrid, imaginava-a uma bela

mulher loira, atraente e sensual que, caminhando corajosamente pela selva,

despertara a atenção de Edmund.

Nancy olhou-o com ternura. Ele estava tão próximo que bastaria estender a

mão para tocar sua coxa musculosa e bronzeada. Aquele homem sedutor jamais

deixara de exercer sobre ela uma atração irresistível. Fazendo um esforço extremo

para controlar-se, ela se levantou subitamente.

— O que houve? — indagou Edmund.
— Nada... eu... eu estou pensando em voltar para me vestir. Está ficando

muito quente aqui.

Ele se ergueu, rápido, e entregou-lhe a toalha.
— Vou com você. Também quero mudar de camisa.
No percurso de volta, encontraram Rita, que estava justamente à procura

deles para avisá-los de que o almoço já estava pronto.

— Por que não nos contou que era casado com uma mulher tão bonita,

Edmund? — brincou ela antes de seguir para o refeitório.

Para alívio de Nancy não havia nenhum índio nos arredores do galpão. No

entanto, a situação tornou-se embaraçosa quando se viu sozinha com Edmund no

quarto. Embora ele demonstrasse estar completamente à vontade trocando de roupa

em sua frente com a mesma naturalidade dos primeiros meses de casados Nancy

não ousou imitá-lo. Sabia que seria atentamente observada por ele. Preferiu pegar

suas roupas e se trocar no banheiro.

Ao sair, irritou-se por encontrá-lo tranqüilamente sentado numa das camas,

lendo o jornal que ela trouxera especialmente para ele. Afinal, por que ele mexia em

seus pertences sem pedir permissão? Refletindo melhor, resolveu não comentar

nada. Talvez Edmund estivesse tão integrado à maneira de viver dos índios que

tinha adotado suas mesmas atitudes.

Edmund ergueu a cabeça e a fitou por um momento, enquanto ela se

aproximava.

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Flora Kidd

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— Rita tem razão, você é muito bonita. Eu já havia me esquecido o quanto...

Ben Davies deve ser um louco mandando você para um lugar desses.

Nancy olhou-o, inquieta. Talvez fosse melhor contar-lhe o verdadeiro motivo

daquela viagem e sobre a carta que Luís lhe escrevera. No entanto, Edmund não a

encorajava, sempre frio e hostil mesmo quando a elogiava. Precisava ter dito que já

havia se esquecido do quanto ela era bonita? Não, aquele não era o momento para

abrir seu coração...

— Por que acha Ben Davies um louco? Trabalho para ele há tempo suficiente

para que me confie essa reportagem. Afinal, já estava na hora de merecer essa

chance.

— Concordo plenamente e fico feliz que tenha conseguido. Ninguém seria

mais competente, mas continuo achando que Ben deveria tê-la mandado para um

lugar mais civilizado. Você é frágil demais para aguentar a vida dura da selva.

Nancy ficou furiosa.
— Pois você está redondamente enganado! Muitas mulheres vivem aqui sem

nenhum problema. Agora mesmo você acabou de mencionar a socióloga que o

acompanhou à ilha do Bananal! Posso lhe garantir que tenho condições de aguentar

esta vida tanto quanto ela!

O rosto de Edmund contraiu-se e ela percebeu que havia tocado num ponto

sensível.

— Ingrid era uma pessoa excepcional — ele disse, voltando atenção para a

leitura.

— E eu? Quer dizer que não sou?
— Não no mesmo aspecto.
— Pois não acredito que essa sua opinião tenha alguma coisa a ver com a

vida rude da selva. Você simplesmente não me quer aqui.

— Isto não vem ao caso. — Edmund virou mais uma página do jornal. — De

qualquer forma, você não devia ter vindo para cá.

— Não entendo você! Nunca me deixou fazer parte da sua vida. Manuel

Santos trouxe a esposa para cá, no entanto, você... jamais me desejou ao seu lado!

Fui, temporariamente, alguém para você, alguém para ficar à sua espera na

Inglaterra porque simplesmente não gostava de dormir sozinho. Jamais desejou ter

uma esposa de verdade e, por mais que eu me esforce, não consigo compreender o

motivo de ter se casado comigo.

Sentindo que as lágrimas estavam prestes a saltar de seus olhos, Nancy

mordeu o lábio inferior procurando a todo custo manter-se calma. Não conseguindo,

pôs-se a chorar na frente de Edmund, odiando-se por sua fraqueza.

Ele ergueu-se de súbito da cama e, bruscamente, caminhou em direção a

Nancy. Assustada, ela estremeceu e recuou instintivamente.

— Pode ficar tranqüila — ele disse, ofendido com aquela atitude inesperada.

— Não pretendo tocá-la. Não me lembrava do quanto você é bonita, mas jamais

poderei me esquecer da maneira como reagiu na última vez em que estivemos

juntos. Também me lembro perfeitamente do por quê nos casamos. Tenho a

impressão de que o mesmo não ocorre com você... E agora, se já está pronta, é

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Flora Kidd

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melhor nos apressarmos pois estão nos esperando.

Quando Edmund retirou-se, apressado, Nancy enxugou o rosto rapidamente

antes de correr atrás dele, pois não sabia onde ficava o refeitório.

Sentindo-se a mais infeliz das criaturas, ela o seguia cambaleante, como se

estivesse bêbada, pois os olhos, ainda marejados de lágrimas, a impediam de ver

onde estava pisando. Tropeçou várias vezes sem que Edmund tomasse o menor

conhecimento! Se não fosse pelo fato de parecer indelicada com Luís, Manuel e

Rita, teria permanecido no quarto. Detestava ter que andar atrás desse homem cruel

e insensível como uma índia submissa.

Durante o almoço, sentou-se ao lado de Rita, cujo encanto e simpatia a

fizeram esquecer a tristeza e a raiva de minutos atrás. Acostumada com refeições

leves e de baixa caloria, Nancy ficou assustada com a quantidade de comida que

fora colocada em seu prato. Além de arroz com feijão, que ela já havia

experimentado no Rio de Janeiro, conheceu o sabor da mandioca, uma raiz deliciosa

considerada a base da alimentação dos índios, como lhe explicara Rita.

— Procure dormir um pouco, Nancy — Rita recomendou, conforme um hábito

que era indispensável ali. — Mais tarde, quando refrescar um pouco, iremos a uma

aldeia, aqui perto, visitar um homem doente. Você vai achar interessante conhecer

uma outra tribo, com hábitos diferentes das que moram aqui.

Mas Nancy não conseguiu relaxar. Estava muito abafado e um redemoinho de

idéias povoava sua cabeça.

Edmund não viera para o quarto, como os outros, talvez para não ficar perto

dela. Tinha sido uma loucura vir ao Brasil atrás dele! Como pudera ser tão ingênua a

ponto de esperar uma recepção calorosa? O tempo passara depressa, colocando

uma enorme distância entre eles. Edmund, agora, era quase um estranho. Mas, e

ela? Será que também não havia mudado?


CAPÍTULO IV
Apesar do intenso calor daquela tarde e do tumulto que havia em seu

coração, Nancy acabou adormecendo. Horas depois, acordou assustada ao ouvir

uma leve batida na porta. Confusa, levou algum tempo para se lembrar de onde se

encontrava. Rita abriu a porta de mansinho e a chamou com delicadeza.

— Nancy! Descansou bastante? Já está na hora de sairmos para ver aquele

índio doente.

— Estarei pronta num minuto. Acha que devo mudar de roupa ou posso ir

assim mesmo?

— Você está ótima, o importante é sentir-se confortável. Procure usar sempre

roupas leves e velhas enquanto estiver por aqui, e não se esqueça de levar o seu

caderno de notas e a máquina fotográfica. Ah, seria bom, também, alguns presentes

para distribuir entre os índios.

— O que você sugere?
— Eles gostam de qualquer coisa: cigarros, doces ou algum sabonete. Tudo é

recebido com muita alegria.

— Há quanto tempo está aqui no Posto, Rita? — indagou Nancy, enquanto se

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Flora Kidd

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dirigiam ao jipe.

— Quase seis meses. Manuel adora o trabalho dele com o tio, porém sinto-

me dividida entre permanecer aqui com ele ou ficar com nossos filhos, no Rio de

Janeiro.

— Você tem filhos?!
— Três meninos: um com oito, outro com seis e o menor com quatro anos.
— Mas com quem estão eles?
— Com minha mãe e minha irmã. Mesmo sabendo que estão em boas mãos,

fico aflita por estar longe deles.

— Por que eles não vêm para cá, durante as férias?
— Manuel adoraria, mas acho arriscado. Muitas pessoas acabam contraindo

malária. Luís já adoeceu várias vezes, e até mesmo Manuel e eu não escapamos.

Para uma criança, isso poderia ser fatal.

— Mas agora já existem meios de combater a malária. Trouxe um vidro de

comprimidos e os tenho tomado desde que cheguei ao Brasil.

— Sim, eu sei, mas, às vezes, ficamos mais tempo do que planejamos e os

remédios acabam. Como você sabe, estes me-dicamentos custam caro, e é

justamente por isso que seu marido está aqui. Ele está fazendo um levantamento de

fundos necessários para nos abastecer. E pretende levar um relatório da nossa

situação quando voltar para a Inglaterra, a fim de conseguir ajuda junto à O.S.P.P..

Infelizmente, não temos muitas esperanças quanto a esse objetivo, pois outros

grupos já estiveram aqui, com essa mesma finalidade, sem resultado algum.

— Tenho certeza de que Edmund não permitirá que isso aconteça novamente

— disse Nancy, surpreendendo-se pelo tom enfático de suas próprias palavras.

No jipe Rita sentou-se ao lado de Manuel, no banco da frente, enquanto

Nancy e Edmund acomodaram-se atrás, ao lado de Jekaro. O índio usava um

chapéu de palha com abas largas e mantinha entre os joelhos uma espingarda e

uma pequena bolsa de couro cheia de balas. Além de jovem e bastante simpático,

sabia falar português.

— Para que o rifle? — Nancy perguntou, curiosa, a Edmund.
— Uma das regras básicas aqui na floresta é jamais sair sem uma arma.

Você pode se perder e, nesse caso, precisará matar para comer.

Nancy olhou-o meio assustada mas, ao notar o olhar tranqüilo de Edmund,

achou que não havia motivo para alarme. Ele estava usando um chapéu semelhante

ao de Jekaro e, apesar das roupas descoradas, conservava aquele ar elegante que

o diferenciava dos demais.

— Você tinha uma arma quando se perdeu na selva?
— Sim, havia uma no avião. Coloque seu chapéu, Nancy. Há muitos insetos

nas árvores e algum deles pode cair sobre sua cabeça.

Nancy obedeceu e eles penetraram na mata densa, sombreada pelas copas

das árvores gigantescas e envoltas por cipós entrelaçados. A trilha por onde

seguiam, um estreito caminho sinuoso e escuro por entre as folhagens, mal dava

para passar o jipe. O ar fresco e agradável tinha um forte aroma de terra molhada

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que a deixava encantada. Havia ouvido falar de histórias apavorantes sobre aquele

mundo misterioso, traiçoeiro e tão ameaçador. No entanto, inexplicavelmente não

estava nem um pouco amendrontada.

De repente, percebeu alguma coisa sobre sua perna. Com uma expressão de

repulsa, soltou um grito agudo e agarrou-se a Edmund, tremendo, apavorada.

— Pelo amor de Deus, fique calma, e não toque nela. — berrou

Edmund ao vê-la tentar fazer um gesto para se livrar da enorme taturana coberta de

pêlos. — Ela é muito venenosa e poderá causar-lhe queimaduras horríveis.

Tirando uma faca da bainha, Edmund, cuidadosamente, desprendeu a lagarta

da calça de Nancy, jogando-a depressa para fora do jipe.

Rita e Manuel, no banco da frente, caíram na risada, fazendo Nancy corar de

vergonha.

— Eu sabia que você acabaria se assustando aqui na mata — disse Edmund

—, mas não acha que exagerou um pouco ao gritar daquela maneira?

— Desculpe-me, eu não pude evitar. Tenho pavor de taturanas.
— Eu também não as aprecio, mas daí a fazer uma cena...
— Não foi uma cena. Além do mais, acho que você está sendo indelicado.

Afinal, é a primeira excursão que eu faço à floresta, e ainda não houve tempo para

provar que posso me sair bem.

— Pois, se depender de mim, você não terá esta chance! Amanhã mesmo

pedirei a Luís para mandá-la de volta a Brasília, ou para qualquer outro lugar. Eu lhe

direi que você não tem condições para permanecer aqui.

— Pois vai perder seu tempo! Estou em plena forma. Aliás, como médico,

você já deveria saber que as mulheres são muito mais resistentes do que os

homens.

— Algumas são, mas isto não quer dizer que você seja uma delas. Pode ter

uma disenteria ou até mesmo contrair malária, apesar dos comprimidos.

— Até parece que você se importa... — murmurou Nancy, lutando contra as

lágrimas.

— Aí é que você se engana, eu me importo e muito! A equipe daqui do Posto

já tem trabalho demais cuidando dos índios doentes. Não queremos mais um

paciente na enfermaria.

— Se quer saber, pode dizer o que bem quiser a Luís. Eu não vou embora

daqui enquanto não tiver material suficiente para minha matéria. Não vai ser assim

tão fácil livrar-se de mim, Edmund, porque Luís está do meu lado.

Ele nada disse. Apenas olhou-a por alguns instantes antes de voltar sua

atenção para a paisagem. Naquele momento chegaram a uma clareira no meio da

mata, cujo solo havia sido cultivado e o milho crescia desordenadamente. Edmund

explicou-lhe que ali era a roça pertencente aos índios, o lugar onde faziam suas

plantações. Mudavam de local todo ano a fim de aproveitarem melhor a fertilidade da

terra.

Um pouco mais adiante, surgiu uma nova clareira com três grandes cabanas

redondas dispostas em torno de uma outra, em formato retangular. À medida que o

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jipe se aproximava, três cachorros bem magros começaram a latir, atraindo a

atenção de algumas crianças que vieram correndo para recebê-los. Logo depois,

chegaram os índios adultos, homens fortes e musculosos, usando tangas e adornos

de penas nos braços. Tinham o rosto todo pintado com tinta vermelha e preta e

pequenos espetos de madeira enfiados na orelha.

— Eles estão preocupados com um velho índio doente — explicou-lhe Rita,

quando Manuel e Edmund os acompanharam a uma das cabanas. — Venha comigo.

Jekaro vai nos levar para conhecer os arredores.

Nancy lembrou-se dos presentes que trouxera consigo e os distribuiu entre as

crianças e mulheres, emocionando-se com a alegria com que os receberam, apesar

de serem coisas simples e corriqueiras. Lágrimas vieram aos seus olhos quando

recebeu de uma das índias, em retribuição, uma cesta confeccionada por suas

próprias mãos com folhas de palmeira buriti. Aquele gesto espontâneo de carinho a

fez compreender os sentimentos que Edmund nutria em relação àquela gente pura e

meiga.

Quando entraram numa das cabanas, algumas mulheres trabalhavam

sentadas no chão. Duas jovens índias balançavam-se suavemente nas redes,

enquanto amamentavam seus bebês. O ambiente fresco e arejado transmitia uma

tranquilidade quase irreal aos olhos de Nancy.

— Em cada cabana moram mais ou menos vinte pessoas —explicou-lhe Rita,

traduzindo as palavras de Jekaro. — Cada família tem sua própria área e suas

provisões, e apetrechos de caça são armazenados naquele galpão, no centro da

aldeia.

— Estou impressionada com as crianças, Rita. São tão quietinhas, não as

vejo chorar.

— Você tem razão. O som de um choro raramente é ouvido por aqui. Os

índios têm uma maneira muito especial de tratar suas crianças. Geralmente, não as

punem, apenas as amam e lhes dedicam quase todo o seu tempo.

— Que maravilhoso! Sinal de que temos muito que aprender com eles.
— É o que Manuel costuma dizer, e eu lhe dou toda razão. Oh, Nancy, não

pode imaginar quanta falta sinto dos meus filhos! Não sei o que fazer! Se deixo

Manuel aqui e volto para junto deles, ou se os trago para cá, mesmo correndo o

risco de vê-los contrair alguma doença. Este tem sido o meu maior dilema.

Nancy ficou com pena da amiga. Talvez o problema de Rita fosse ainda mais

grave do que o seu. Pelo menos, ela e Edmund não possuíam filhos. A felicidade em

jogo, no seu caso, restringia-se apenas ao casal.

Ao voltarem, Manuel e Edmund conversavam com um índio perto do jipe.
— Aquele é o chefe da tribo — informou Rita, enquanto aguardavam pela

hora da partida. — Sabe, Nancy, estive refletindo sobre você e Edmund. Acho que

você se encontra numa situação semelhante à minha.

— Como assim? Nós não temos filhos.
— Eu sei disso, mas nossos maridos estão lutando pelo mesmo ideal.

Ambos amam essa gente, à qual pretendem dedicar-se. O serviço de proteção aos

índios, do governo, tem encontrado dificuldades em conseguir médicos capacitados

e que estejam dispostos a abandonar o conforto da cidade por essa vida. E, ao

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mesmo tempo, também não têm dinheiro para pagá-los. Por isso, a maior parte dos

que vêm aqui são voluntários jovens e inexperientes. Há muito poucos com a

experiência e capacidade de Edmund.

Nancy sentiu uma ponta de orgulho.
— Ouvi dizer que o professor Rodrigues pediu a Edmund para considerar a

hipótese de ficar permanentemente aqui no Posto Diauarum — continuou Rita. — Se

Edmund concordar, você terá que escolher entre voltar para a Inglaterra ou ficar a

seu lado, não é mesmo?

— Sei disso — respondeu Nancy, ciente de que Rita a observava

atentamente. Intimamente, porém, sabia que na verdade não tinha escolha, já que

Edmund demonstrara claramente que não a desejava ali nem para uma breve visita.

No percurso de volta para o Posto Diauarum, Nancy sentiu-se mais deprimida

do que nunca. A esperança de reacender a chama do amor que existira entre ela e

Edmund tornava-se cada vez mais remota. Agora, como se não bastasse a frieza

com que a recebera, Edmund acomodara-se no banco da frente, ao lado de Manuel,

como se não lhe interessasse nem mesmo sentar-se a seu lado.

Melancolicamente, Nancy ficou observando um grupo de índios caçadores

que retornavam à aldeia trazendo o sustento de suas famílias. Eles vinham com

suas bordunas, arcos, flechas e rifles pendurados nos ombros. Pareciam figuras

românticas e misteriosas, que sumiam quase tão subitamente quanto haviam sur-

gido, confundindo-se com as sombras da floresta.

Durante o jantar, Luís anunciou a Nancy:
— Amanhã iremos até o Posto Leonardo pelo rio. Você vai conhecer uma das

mais belas paisagens que a natureza nos oferece. Levaremos uns dois dias para

chegar, por isso durante o trajeto dormiremos acampados.

— E por quanto tempo ficaremos lá? — ela perguntou-lhe, entusiasmada.
— Outros dois dias. Voltaremos para cá de avião, a tempo de você pegar o

próximo vôo para Brasília. Enquanto estivermos no Posto Leonardo, você e seu

marido terão oportunidade de voar para um local fantástico da região e conhecer

uma tribo selvagem muito interessante. O primeiro contato com ela foi muito difícil,

pois são muito belicosos. — Ele olhou para Edmund e sorriu. — E, quando

voltarmos, meu caro amigo, será tempo de planejar o seu retorno à civilização a fim

de preparar aquele relatório pelo qual estamos todos ansiosos.

Edmund acendeu um cigarro e inalou a fumaça com calma antes de

responder:

— Ainda não resolvi se quero ou não voltar para Londres. Pela primeira vez

em minha vida estou próximo do que sempre desejei: viver com simplicidade, junto à

natureza. — Ele deu uma longa tragada e ficou observando os anéis de fumaça

saindo de sua boca. — Em várias ocasiões, principalmente na ilha do Bananal,

pensei estar vivendo num paraíso terrestre.

— Ah, não! — discordou Luís com um sorriso nos lábios. — O verdadeiro

paraíso você verá quando fizer a viagem de barco até o Posto Leonardo e depois

quando forem à aldeia de que lhes falei. Será uma segunda lua-de-mel para vocês

dois. E agora, Nancy, sugiro que vá para a cama porque amanhã sairemos de

madrugada.

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Embora relutasse em deixá-los a sós, temendo que Edmund persuadisse Luís

a mandá-la de volta, Nancy foi vencida pelo cansaço. Disse um boa-noite a todos e

atravessou o pátio calmamente, sob o clarão da lua cheia, cujo brilho intenso

dispensava o uso de lanternas.

O pequeno quarto, iluminado apenas pela luz fraca de uma luminária presa na

parede, ainda estava quente e abafado, devido ao calor do dia. Antes que ela

tivesse tempo de se preparar para dormir, as luzes do galpão apagaram-se,

fazendo-a supor que alguém havia desligado o gerador. Deitou-se rapidamente,

mas, apesar da exaustão, não conseguiu dormir. Lembrou-se das palavras de Luís:

"Uma segunda lua-de-mel!" Que chances teria de ter uma segunda lua-de-mel ao

lado de Edmund? Aqueles meses de separação haviam criado um abismo entre

eles, tornando quase impossível uma reconciliação.

Calculou mentalmente o tempo de convivência com seu marido: apenas

quatro meses em dois anos e meio de casados! Talvez por este motivo o

conhecesse tão pouco. Mas teria alguma vez se esforçado para isso? Não. Tinha de

admitir a si mesma que esta fora uma falha imperdoável de sua parte. Em todo o

tempo em que estiveram juntos, jamais tentara uma aproximação maior. Para ela, tê-

lo a seu lado era suficiente. Bastava que ele voltasse para casa depois de suas

viagens e que fizessem amor todas as noites. Nada mais parecia importante!

A primeira vez em que Edmund a tratara com aspereza, ou demonstrara o

lado violento de sua personalidade, fora tola o bastante para fugir dele como uma

criança imatura. Nem ao menos lhe dera uma chance para explicar o motivo daquele

comportamento incompreensível.

Entregue a seus pensamentos, Nancy assustou-se quando o marido entrou.

Tateando no escuro, ele procurou uma vela e, depois de acendê-la, foi ao banheiro,

de onde saiu pouco depois.

Nancy ouviu-o despir-se antes de se deitar, sentindo uma vaga ansiedade

ao notar que ele acendera um cigarro.

Por alguns momentos, nenhum dos dois ousou falar. Na calada da noite,

apenas o coaxar dos sapos e o ruído estridente dos grilos lá fora quebrava o silêncio

que reinava no quarto.

— Nancy! — sussurrou ele por fim — está acordada?
— Sim.
— Por que pediu a Luís para não me contar sobre a sua vinda para cá?
Nancy umedeceu os lábios subitamente secos. Gostaria de ter coragem para

contar-lhe toda a verdade, no entanto, sentia-se insegura. Tinha medo de irritá-lo e

de ser rejeitada.

— Bem, eu... eu achei que você partiria daqui se soubesse da minha vinda.
— E isto faria alguma diferença?
— Acredito que sim. Há muitas pessoas dependendo da conclusão da sua

pesquisa para a O.S.P.P.

De fato, Nancy não estava mentindo. Antes de deixar a Inglaterra tivera uma

entrevista com o presidente da organização para a qual Edmund estava trabalhando.

Ele lhe dissera que, de maneira alguma, Edmund poderia ser perturbado ou persua-

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dido a interromper seu trabalho junto às tribos brasileiras. E contava com o apoio de

Nancy para convencer Edmund, assim que ele terminasse a pesquisa, a voltar para

Londres o mais breve possível e apresentar os relatórios. No entanto, Edmund não

se convencia.

— Tem certeza de que é só por este motivo?
— Mas é claro! Eles precisam do seu relatório o mais breve possível.
— Entendo. Já estou providenciando para que o recebam dentro do tempo

combinado.

— Então não pretende voltar para a Inglaterra?!
— Não, se eu puder evitá-lo.
Ela não conteve seu desapontamento.
— Mas você precisa, Edmund!
— Ora! Preciso por que?
— Para expor o seu trabalho.
— Posso perfeitamente enviá-lo pelo correio.
Aflita, Nancy sentou-se na cama, procurando dar maior ênfase às suas

palavras.

— Não seria a mesma coisa e você forçosamente tem que concordar comigo!

Haverá maior impacto se você levá-lo pessoalmente a Londres, e foi o que sr. Tyson

me pediu para dizer-lhe.

— Psiu! Fale mais baixo, as paredes são muito finas. Manuel e Rita poderão

nos ouvir no quarto ao lado.

— Pois que ouçam! — irritou-se, abaixando a voz de qualquer forma. — Por

que não quer voltar para Londres?

— Não vejo nenhuma razão para isso. Não há nada me esperando na

Inglaterra, ao passo que aqui sinto-me útil, posso trabalhar no que gosto. E, o que é

mais importante, tenho condições de fazê-lo sem precisar ser pago para isso.

Nancy caiu num silêncio profundo, fechando os olhos como se acabasse de

ser atingida por um punhal. Lágrimas de tristeza rolaram por suas faces e ela

mordeu os lábios para abafar um soluço de desespero. Não havia nada à espera

dele na Inglaterrra... Como podia ser tão cego? Nem ao menos se lembrava de que

tinha uma esposa que ainda o amava.

— Ah, a propósito — disse ele com voz sonolenta —, pedi a Luís para levá-la

de volta a Brasília mas, sabe-se Deus por que, ele se recusou. Não tive coragem de

dizer-lhe que nenhum de nós está interessado numa segunda lua-de-mel — Ele deu

uma breve risada. — Você já imaginou quanta ironia, Nancy? Nós nem sequer

tivemos a primeira! Boa noite.

Nancy não conseguiu dormir logo. Atormentada por um sentimento de

rejeição, rompeu num choro convulsivo, abafando os soluços sobre o travesseiro,

com medo de que Edmund a ouvisse. Depois de rolar na cama por quase uma hora,

decidiu tomar um tranquilizante que trouxera consigo. Despiu a camisola e deitou-se

nua sob o lençol, numa tentativa de aliviar o calor intenso e sufocante. Aos poucos

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Selva de Prata

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foi se libertando da angústia e em pouco tempo mergulhou num sono profundo até

o dia seguinte. Com grande esforço Nancy abriu os olhos devagarinho ao perceber

que Edmund a sacudia, tentando acordá-la. Num gesto inesperado, ele puxou-lhe o

lençol, provocando sua reação imediata. Lembrando-se de sua nudez, ela se cobriu

rapidamente, olhando-o irritada.

— Por que fez isso?
— Foi a única maneira de acordá-la. Lembre-se de que temos um

compromisso hoje, por isso é melhor levantar-se e arrumar sua mala. — Ele se

inclinou sobre ela e a olhou bem nos olhos. — Você estava dormindo pesadamente,

e parece que está meio tonta... Andou tomando algum remédio?

— Sim. Estava com dor de cabeça e não conseguia dormir.
— Costuma tomá-los sempre?
— Às vezes, quando tenho insônia.
Ele olhou para o vidro sobre o criado-mudo e, sem dizer nada, segurou-lhe o

pulso com um ar preocupado.

O suave toque daqueles dedos causou-lhe uma sensação deliciosa. Estavam

tão próximos um do outro, que bastava estender os braços e puxá-lo de encontro a

si para sentir-lhe o calor do corpo viril e sensual. Estremecendo de forma

incontrolável, Nancy puxou a coberta até o pescoço, tentando afastar aquela peri-

gosa tentação.

— O que há agora? — ele perguntou, notando que ela se esquivava.
— Na... nada — respondeu Nancy com a voz lânguida.
— Está se comportando como se nunca tivesse sido examinada por um

médico antes — comentou ele com um sorriso irônico.

— Ora!... Eu estou ótima, dr. Talbot. Não se atreva a dizer o contrário a Luís!
Ele a olhou fixamente enquanto lhe tomava o pulso.
— Suas pulsações estão lentas, mas isso é natural depois de ter tomado esse

calmante. Cuidarei para que não faça mais esse tipo de loucura — avisou ele,

enquanto lia a bula do remédio. — De quem é a receita?

— De um médico, em Londres.
— Por que motivo? Esteve doente?!
— De uma certa forma, sim.
— Não estou entendendo. Esteve ou não?!
— Não importa. De qualquer maneira não pretendo mesmo contar a você.
— Mas vai. Vamos, diga logo.
— E por que eu deveria? Você nunca me conta nada a seu respeito, qual o

motivo desse seu interesse por mim agora? É de origem profissional ou porque é

meu marido?

Ele exitou por alguns momentos com um olhar enigmático, mas o queixo

cerrado denunciava sua tensão.

— Esteve doente recentemente?

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Selva de Prata

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— Não vou lhe contar.
A obstinação de Nancy criou um clima desagradável entre ambos.

Permaneceram calados durante alguns minutos, avaliando-se em silêncio como

duas feras prontas a se atracarem. Edmund por fim levantou-se, dirigindo-se ao

banheiro.

— Muito bem. Faça como quiser, mas estas pílulas você não tomará mais.
Antes que Nancy tivesse tempo de impedí-lo, jogou-as todas fora e atirou o

vidro na cesta de lixo.

— Oh, seu monstro prepotente! Você não tinha o direito de fazer isto comigo!
Ignorando-a por completo, ele pegou a valise de Nancy e despejou todo o

conteúdo sobre a cama.

— Vejamos se trouxe mais alguma...
— Não! Apenas comprimidos contra febre amarela! — gritou Nancy; sem se

importar que Rita ou Manuel a ouvissem.

Impassível, Edmund continuou vasculhando cuidadosamente seus pertences,

desdobrando peça por peça.

— Olhe o que você fez! Droga! Amassou todas as minhas roupas!
— Poderá arrumá-las depois do café. Agora vamos, e não se esqueça de

calçar suas botas! Jamais vá a parte alguma sem elas!

— Nunca imaginei que pudesse ser tão prepotente e arrogante!
— Pois agora já sabe. Aliás, eu também desconheço muitas coisas sobre

você. Quem sabe esses próximos dias juntos não possam ser interessantes? Afinal,

teremos a oportunidade de descobrir muito a respeito um do outro. Agora venha,

vamos tomar nosso café da manhã antes que acabe.

Indignada, Nancy seguiu-o através do pátio. Devia ter chovido muito naquela

noite, pois o chão se achava coberto de poças de lama, de onde a neblina branca se

dispersava sob o calor do sol já quente àquela hora da manhã. Araras e periquitos

no madeirume do galpão emitiam sons estridentes, num matraquear incessante. Não

havia porém o menor sinal de Rita,Manuel ou Luís.

— Pensei ter ouvido Luís dizer que sairíamos de madrugada — disse Nancy,

sentando-se à mesa.

— Então será daqui a umas quatro ou cinco horas. Se você fosse uma

brasileira, não se espantaria tanto! Aqui na selva não há horário para nada... Não há

trem ou ônibus para nos fazer correr. Tenho a impressão de que estes dias no Brasil

farão muito bem a você. Pelo menos não precisará mais tomar aqueles

tranqüilizantes para diminuir essa sua tensão tão evidente.

Nancy irritou-se. Se Edmund tivesse idéia do que originara essa tensão... A

preocupação quanto à saúde dele e a angústia causada por aquela separação eram

motivos suficientes para ficar nervosa.

— Mudou de opinião, então? Ontem, queria que eu fosse embora...
— Isto foi ontem, hoje eu penso diferente. Você está aqui, vamos viajar juntos

e não há nada que eu possa fazer para mudar os planos. — Ele deu de ombros e

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sorriu para ela. — Seja o que Deus quiser!

Era a primeira vez que o via sorrir tão espontaneamente desde que chegara,

e Nancy sentiu uma emoção indescritível.

— Trouxe uma camisa de manga comprida? — perguntou ele gentilmente. —

O barco no qual viajaremos não possui abrigo de proteção, por isso será preferível

sentir um pouco de calor do que expor-se ao sol durante tantas horas.

Que homem mais contraditório! Ele não a desejava ali, no entanto mostrava-

se preocupado com seu bem-estar como se isso fosse algo de sua responsabilidade,

pensou ela, fitando-o longamente.

Era incrível como a vida na selva acentuara ainda mais os traços marcantes

do rosto dele. Parecia mais maduro e sábio, porém também mais triste. Sim, era

isso! Enfim conseguira definir a mudança sutil que vinha observando nele desde que

o vira! Era a mesma expressão de tristeza que havia também no semblante de Luís.

Qual seria a causa? O convívio com aqueles povos primitivos, despojados de sua

cultura e de suas terras pelos homens brancos? Ou o trágico acidente com o avião

no qual perdera seus companheiros? Ou o principal motivo teria sido a morte de

Ingrid?

— Onde fica a ilha do Bananal? — indagou ela, distraidamente.
— A leste daqui. É a maior ilha fluvial do mundo; fica no meio do rio Araguaia.

Aliás, ela é maravilhosa!

— O paraíso terrestre?
— Talvez um dos lugares mais bonitos que conheci. Morar lá significa estar

totalmente isolado do resto do mundo. Não há vôos regulares ou rádios de

comunicação. O tempo perde todo o significado...

— Ingrid também pensava como você?
— É provável que sim — ele respondeu, estranhando aquela pergunta. —

Embora eu nunca a tenha ouvido falar sobre isso.

— Como era ela? — perguntou Nancy num impulso.
— Que diferença faz para você? Ou será que você tem ciúmes de uma

pessoa que já morreu?

Totalmente desprevenida, Nancy sentiu as faces corarem diante do

comentário sarcástico de Edmund. Não pretendia deixar transparecer seu interesse

pela pessoa de Ingrid. E muito menos o seu ciúme.

— Muito bem, se quer mesmo saber, vou lhe contar tudo sobre essa moça —

Edmund resolveu, notando o embaraço de Nancy. — Ingrid era do tipo mignon, e

muito delicada. Seus cabelos eram curtos, mas uma mecha sobre a testa obrigava-a

a jogá-los constantemente para trás. Esse gesto lhe era muito peculiar, e se tornava

mais repetitivo quando ela estava excitada. Seus olhos castanhos enormes

possuíam um brilho especial de ternura e bondade. Os dentes muito brancos

estavam sempre à mostra, num sorriso largo e franco. — Ele se interrompeu por

alguns instantes, cobrindo o rosto com as mãos, e depois murmurou suavemente. —

Ela era bonita em todos os sentidos. Neil e eu a amávamos.

Nancy sentiu o mundo desabar sobre si. Com as mãos trêmulas, pegou um

cigarro e levou-o à boca sem acendê-lo.

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— Era o que você desejava saber, não era? — indagou ele riscando um

fósforo. — Como aconteceu uma vez com Marsha. Bem, agora você já sabe que eu

amava Ingrid, assim como todos os que conviveram com ela. Isto não significa,

contudo, que tivemos um caso de amor. Muito pelo contrário, nosso relacionamento

foi de uma amizade muito pura, num clima de trabalho e cooperação. Além disso, ela

era doze anos mais velha do que eu. Está satisfeita ou ainda está imaginando

coisas?

— Minha imaginação não é muito maior que a sua. Certa vez você me acusou

de o estar traindo com Peter. Lembra-se?

— O que, ainda hoje, pode muito bem ser verdade. O que você não sabe é

que eu tive provas para fazer as minhas deduções. Vi vocês dois prestes a fazer

amor...

— O quê?!... Este é o maior absurdo que já ouvi!
— Ah, é? Então me diga, o que faziam vocês dois juntos no sofá, numa sala

praticamente às escuras?!

— Eu ia explicar-lhe tudo naquele dia, mas você não quis me ouvir!
— Ouvir o que? Seu "amiguinho" me fez um relatório completo da relação de

vocês.

— Peter?!
— Sim, ele mesmo. Fui vê-lo mais tarde para saber se ele tinha alguma idéia

de onde você se encontrava. Pareceu-me surpreso e ao mesmo tempo satisfeito

com a minha pergunta. Sugeriu que tivéssemos uma conversa civilizada e fez-me

ver que o nosso casamento havia sido um erro desde o começo. Não tive outra

alternativa a não ser concordar com ele, pois sempre soube que o meu

temperamento livre e sem raízes não condizia com um compromisso mais profundo.

— E isso foi tudo?
— Não. Peter me falou que você estava infeliz.
— E você acreditou nele?! Oh, Edmund, como pôde?!
— Não foi difícil depois do que houve entre nós no apartamento. Você me

tratou como se eu fosse um estranho e não seu marido. Mesmo depois de ter

passado quase um mês longe, convivendo com uma tragédia horrorosa, jamais

pensei em traí-la. Fui fiel nas duas vezes em que me ausentei. No entanto, de que

adiantou tudo isso? Em troca, recebi apenas a sua desconfiança e o seu desprezo.

— Você parecia tão enfurecido que eu fiquei apavorada. Nunca o havia

visto assim! — Ela se defendeu, pensando que possivelmente não estariam

separados agora se tivessem conversado com calma, quinze meses atrás.

— Naquela época, senti-me no pleno direito de ficar zangado. — Ele deu um

sorriso amargo. — Sabe, talvez aquela tenha sido a primeira vez em minha vida que

agi de uma forma tão convencional, ou seja, a clássica reação do marido traído que

chega em casa e encontra a esposa nos braços do amante.

— Peter não era meu amante! — ela protestou com veemência.
— Segundo o que ele me disse, sim.
— É mentira! Jamais houve nada entre nós, Edmund. Saí com Peter algumas

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vezes, é verdade, rnas porque ele me garantiu ter sido você quem lhe pediu para

que tomasse conta de mim.

— Talvez eu lhe tenha dito casualmente para cuidar de você, mas não para

tomar o meu lugar ao seu lado. Quando estive na Indonésia não me importei muito

com as saídas de vocês porque confiava nele e em você. De repente, me vi

envolvido numa situação muito traumatizante para mim. — Ele a fitou seriamente

através da mesa. — Vi meu pai passar pela mesma situação duas vezes.

— Você quer dizer que... sua mãe?! Eu não sabia...
— É evidente. Jamais lhe falei a respeito.
— O que foi uma pena, porque talvez eu tivesse compreendido melhor a sua

reação. De qualquer forma, Peter fez muito mal em dizer-lhe que eu estava infeliz.

Sabe por que ele chegou a essa conclusão?

— Bem, ele me disse que você esperava bem mais de um casamento do que

o que eu podia lhe oferecer. Disse ser o tipo de marido ideal para você: estaria

sempre a seu lado, compraria uma linda casa com jardim e teriam muitos filhos. Não

imagina que belo discurso! Quando terminou, eu estava convencido de ter cometido

um pecado casando-me com você. Portanto, sumi da sua vida para não torná-la

ainda mais infeliz.

— Peter não tinha esse direito. Como pôde acreditar?! Por que foi embora

sem me avisar, Edmund?!

Ele deu um sorriso sarcástico.
— Eu a abandonei, minha querida. Peter não lhe falou a respeito? A idéia era

tornar as coisas mais fáceis para que você conseguisse o divórcio. — Ele se

levantou, impaciente. — Preciso ir até à enfermaria ver alguns pacientes antes de

partirmos. Acho melhor você arrumar suas malas antes que Luís apareça.

Nancy serviu-se de mais uma xícara de café, enquanto observava Edmund se

afastar. Agora ela sabia o verdadeiro motivo do seu abandono. Peter, o melhor

amigo dele, o havia envolvido num emaranhado de mentiras e intrigas, nas quais ele

acreditara piamente. Mas Peter não era o único responsável por Edmund tê-la

deixado. Tinha plena consciência de que Edmund não teria sido tão facilmente

ludibriado se ela não o tivesse deixado naquela noite.

Nancy cobriu o rosto com as mãos, numa atitude de desespero e remorso. Se

ao menos pudesse voltar atrás... Se houvesse se mostrado mais amorosa, mais

compreensiva... Se, ao invés de ficar amedrontada... Se... se... Droga! Lá estava ela

se lamentando, quando deveria criar coragem e tomar uma atitude.

O que fazer? Como mostrar a Edmund o quanto já sofrera culpando-se por

aquela separação? Como aproximar-se dele, quando tudo a fazia crer que Edmund

não a amava mais? E, por fim, como desfazer a trama maldosa arquitetada por

Peter? De uma coisa estava certa: amava-o e tinha que lutar por ele!

— Como é Nancy, já está pronta? — perguntou-lhe Luís, que acabava de

entrar acompanhado de Manuel.

Ela estremeceu, assustando-se com a chegada de ambos.
— Quase. É só um minuto...
— Traga pouca roupa e não se esqueça de deixar o restante trancado.

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Mandarei Jekaro ajudá-la a levar sua bagagem para o barco.


CAPITULO V
O barco, que viajava rio acima, embora tivesse dez metros de comprimento

dava a impressão de ser pequeno nas curvas largas do rio. O motor de centro ficava

protegido por um teto de madeira sustentado por quatro grandes esteios, dando um

aspecto antigo à embarcação. A impressão era de um passeio de domingo, e não de

uma viagem de trabalho. Na cabine, além de dois bancos para passageiros,

encontravam-se a bagagem e algumas caixas de remédio destinadas à enfermaria

do Posto Leonardo.

Cansadas de ouvirem as conversas de seus respectivos maridos sobre

antropologia, Nancy e Rita resolveram aproveitar o espaço sobre o abrigo para

admirar a paisagem. Enquanto isso, Manuel, Jekaro e Mejai se revezavam entre o

timão e a observação de bancos de areia submersos.

Nancy usava um chapéu de palha com abas largas para proteger-se do sol,

ao qual ainda não se acostumara, e trazia à mão, como sempre, sua máquina

fotográfica e o caderno de notas. Rita vestia um short de náilon e uma camiseta

amarela bem cavada, deixando à mostra a pele bronzeada e já curtida pelos raios

solares.

— Olhe que curioso, Rita! Quando passamos por aquele afluente, a água

mudou de marrom-claro e transparente para turva e embarrada. Você sabe por quê?

— Existem dois tipos de rios na selva. Este em que estamos navegando, mais

esverdeado, contém maior número de parasitas e insetos transmissores de doenças

do que o outro. O perigo de contrair malária se torna maior, por isso é bom não

esquecer de tomar seu remédio todos os dias.

— Ainda bem que você me lembrou. Está em minha bolsa.
— Daqui a pouco Jekaro fará um cafezinho bem brasileiro, e então poderá

tomar o remédio. Mas... não acha uma delícia deslizar tão suavemente na água?

— Você tem razão. Nem parece que estamos navegando contra a correnteza!
Também era agradável ver a paisagem repleta de árvores com grossos

troncos e a infinidade de nuances verdes que tingiam a água do rio com seus

reflexos. Em alguns lugares, as margens tornavam-se barrancos de terra vermelha

formando manchas carmesim. Nas regiões onde o rio se alargava, era comum

aparecerem bancos de areia, onde, cintilando como jóias, enxames de borboletas

dançavam, incansáveis. Preguiçosos jacarés aqueciam-se estáticos ao sol, mas, ao

ouvirem a aproximação do barco, arrastavam-se indolentemente para dentro da

água. Martins-pescadores voavam de galho em galho, e garças brancas, com seu

pescoço curvo, planavam em longos vôos pelo céu azul.

Apesar do calor, Nancy sentia-se bem, dentro das calças compridas e camisa

com mangas, pois sua pele, muito sensível, não suportaria as queimaduras do sol,

apesar dos cremes protetores. Ali, sem nada a fazer, e fascinada por aquela beleza

natural, ela mergulhava numa calma incrível! Mas logo o calor tornou-se in-

suportável, obrigando-a a resguardar-se na cabine. Entretanto, o barulho do motor e

o cheiro de óleo queimado deixaram-na enjoada. Luís e Edmund tiravam uma

soneca tranqüilamente, estirados nos bancos. Ela resolveu não incomodá-los,

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voltando para a companhia de Rita com a ideia agradável de nadar na convidativa

água fresca do rio.

Naquele exato momento, o motor do barco começou a tossir, parando de

funcionar em seguida. Manuel destampou-o para examinar as velas e esvaziar o

carburador, e o barco foi lentamente arrastado pela correnteza, tornando a

temperatura ainda mais sufocante.

— Não podemos nadar, Edmund?
— Aqui não. Esta água ferve de piranhas — respondeu Luís, escutando-a de

longe.

— Mas elas somente mordem quando sentem cheiro de sangue —

argumentou Edmund. — Em Bananal costumávamos nadar em rios infestados por

elas.

— Escute, meu amigo, enquanto estiverem sob minha responsabilidade,

ninguém entrará na água!

— Muito bem, mas então o que fazemos? Rita e eu estamos mortas de calor!
— Nancy, por que não vestimos nossos maiôs e pegamos água do rio com

uma vasilha?

— Que idéia maravilhosa!
Com a ajuda de uma lata arranjada por Manuel, as duas moças jogavam água

fresca uma na outra, aliviando-se do calor infernal. Depois, comeram com muito

mais apetite o ensopado feito com carne seca e mandioca cozida. De sobremesa,

tiveram goiabada caseira e o café adocicado de Mejai.

Finalmente, o motor reiniciou sua batida compassada e a marcha foi

retomada. Decidida a arriscar-se, Nancy espalhou bronzeador sobre sua pele, na

esperança de adquirir o bonito tom moreno de Rita. Nesse momento ouviu seu

nome. — Nancy! Sobressaltada por aquele chamado, abriu os olhos e viu Edmund.

— Vista depressa suas roupas ou vai se arrepender! Não sabe que pode até

ficar com desidratação? Onde está seu bom senso? Será que preciso dizer-lhe a

todo instante o que fazer, como a uma criança desmiolada!

Nancy tentava entender o motivo daquele comportamento hostil pois, além de

lhe jogar farpas, num gesto de mau humor, ele a encarou fria e duramente sob a aba

do surrado chapéu de palha, com aqueles olhos tão azuis. Toda paz de espírito que

a envolvera durante o agradável passeio subitamente desapareceu, dando lugar à

depressão! Farta de ser tratada como se fosse uma criança, Nancy vestiu-se com

gestos bruscos e raivosos, desabafando:

— Alguém lhe pediu para fazer alguma coisa por mim? Posso muito bem

cuidar de minha vida sozinha! Tenho plena consciência de seu horror à

responsabilidade... pelo menos, este tipo de responsabilidade! Esta é uma razão por

que não queria se casar, não é? Tinha medo de um compromisso mais sério, de ter

que zelar por outra pessoa que não fosse você mesmo! Que grande corajoso!

— Puxa... até que enfim você entendeu! Pena não tê-lo feito antes de se

casar comigo. Realmente, fez uma péssima escolha, pois, embora eu tenha tentado

me adaptar, nunca fui do tipo caseiro.

— Viajando para lugares distantes, sem ao menos me mandar notícias?! Foi

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assim que você tentou se adaptar?

— Apenas faço o trabalho para o qual nasci e fui treinado: ajudar a resolver

os problemas de pessoas necessitadas. Esperava que você, mais do que ninguém,

pudesse me compreender. Afinal, seu próprio pai levava essa espécie de vida,

também viajava, passando muito tempo longe.

— Esqueceu-se de acrescentar que minha mãe o acompanhava sempre,

mesmo após o meu nascimento.

— Por isso morreu de uma febre desconhecida, contraída nas selvas do

Congo.

— Quem lhe contou?!
— Marsha comentou comigo, naquele dia em que nos conhecemos. Disse

mais ainda: que a selva não é lugar para mulheres, culpando seu pai pela morte da

irmã.

— Marsha o odiava! Costumava dizer que ele sacrificava mamãe com seu

idealismo louco.

— Consciente da minha maneira de viver, jurei a mim mesmo jamais dar

motivo para uma acusação semelhante.

Nancy ficou pensativa, observando o movimento da correnteza com seus

redemoinhos assustadores em meio às águas barrentas. De repente, bandos de

papagaios e maritacas cruzavam o rio, procurando o aconchego de uma árvore

frondosa para descansar. A tarde caiu e o céu inteiro incendiava-se como uma

enorme labareda. Fogo semelhante ardia no íntimo de Nancy, ao desabafar:

— Pelo menos meu pai amava tanto minha mãe que lhe permitia tomar suas

próprias decisões. Jamais tive esta chance!

Estavam sentados tão próximos um do outro que Nancy pôde senti-lo

estremecer sob o impacto de suas palavra.

— Está querendo dizer que não a amo?! Que nunca a amei?
— É isso mesmo! — suspirou ela, ansiando intimamente que ele contestasse

aquela dolorosa afirmação.

— Então, pode me explicar por que ainda está casada comigo? Pois se

acredita mesmo num absurdo desses, devia ter se divorciado de uma vez e não ter

vindo até aqui para me ofender — disse Edmund, com voz trêmula de ódio.

Uma bofetada teria doído menos do que aquelas palavras pronunciadas com

tanto desprezo.

Incapaz de conter as lágrimas, Nancy deixou escapar um soluço. Naquele

instante, Mejai, para sua sorte, gritou algo de seu posto de observação, desviando a

atenção de Edmund sobre ela. Jekaro girou o timão, alterando o curso do barco, até

colocá-lo de frente para a baía apontada por Mejai. Aqueles poucos segundos foram

suficientes para que Nancy se recuperasse e pudesse enfrentar o homem enfurecido

bem à sua frente.

— Estou aqui exclusivamente porque Ben mandou-me fazer uma reportagem,

lembra-se? Não tenho culpa se você não suporta minha presença! Não espera que

eu me afogue no rio, não é mesmo? Mas pode ficar tranqüilo que saberei muito bem

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me cuidar sem a sua ajuda!

Felizmente os óculos escuros impediam que Edmund pudesse ver as

lágrimas teimosas rolando-lhe pelas faces. Com o coração cheio de ódio e mágoa

Nancy afastou-se dali, aproximando-se de Mejai.

O colorido brilhante do pôr-do-sol desaparecera rapidamente; minúsculas

estrelas pontilhavam o céu escuro e uma enorme lua dourada brilhava! A

aproximação do barco mostrava a baía, muito maior do que se podia imaginar, vista

de longe. Jekaro chegou com a embarcação o mais perto possível da terra e Mejai

saltou para a praia, atando a corda de proa a um enorme tronco de jatobá. De três

em três, os passageiros foram levados à praia na canoa que viera rebocada,

carregando consigo somente os objetos mais necessários para passarem a noite.

Enquanto os índios limpavam a área do acampamento com um facão e

amontoavam a lenha para as fogueiras, Luís, Manuel e Edmund penduravam

diversas redes entre as árvores mais próximas. Concluídos os primeiros

preparativos, Jekaro retornou ao barco para pescar alguns peixes para o jantar.

Curiosa, Nancy o seguiu entusiasmada, pois nunca tivera oportunidade de pre-

senciar uma pescaria à noite. Da praia, podia vê-lo colocando a isca na ponta do

anzol e atirá-lo na água. Passados alguns segundos, a linha esticou-se e Jekaro deu

um puxão brusco, fazendo-a sibilar, sinal de que o peixe fora fisgado. Ele, então,

recolheu-o devagar. Preso ao anzol, um peixe, de forma arredondada e não muito

grande, debatia-se na tentativa desesperada de escapulir. Deixava à mostra uma

carreira de dentes pontiagudos, assustando Nancy.

— Que peixe é este, tão furioso? — indagou ela a Edmund, que estava a seu

lado.

— Uma piranha. Já imaginou se aqueles dentes encontrassem suas pernas

embaixo da água?! Elas devoram tudo com uma rapidez impressionante! — disse

ele apenas para provocá-la e, em seguida, entrou na canoa.

Nancy ficou ali, sozinha, na praia, contemplando a paisagem que surgia como

se fosse um lindo quadro: a lua cheia com seus raios prateados refletidos na água e

aqueles dois homens eretos sobre a canoa, pescando concentrados e

silenciosamente. Homem e natureza pareciam integrados numa perfeita e sublime

harmonia.

— Olá, Nancy, admirando o luar? — perguntou-lhe Rita, que acabava de

chegar. — Não quer pegar um pouco de água para nós? Vou preparar um arroz para

comer com o peixe.

Mergulhando a vasilha que Rita lhe trouxera, Nancy observava alguns troncos

escuros flutuando suavemente à sua volta nas águas rasas. Num movimento brusco,

um deles avançou em sua direção, retrocedendo em seguida. Instintivamente, ela

deu um salto para trás, jogou a vasilha na areia e ficou a observá-lo atentamente. Ao

constatá-lo imóvel, achou estar imaginando coisas. Retomou a vasilha, afundando-a

na água novamente. Desta vez, aquilo que parecia ser apenas um tronco atacou-a

com violência. Horrorizada, Nancy gritou, quase caindo de costas, pois sem sombra

de dúvidas tratava-se de um jacaré enorme, bem à sua frente!

Jekaro e Edmund, que voltavam da pescaria com a fieira carregada de

peixes, largaram tudo imediatamente e correram até o acampamento para buscar a

espingarda.

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— O que vão fazer? — perguntou Nancy apavorada.
— Matá-lo, é claro! — respondeu Edmund irritado. — Não quer ver?
Nancy não estava bem certa se teria coragem de assistir à matança do

animal, mas, se pretendia escrever artigos emocionantes para sua revista, teria de

prestar atenção a tudo. Embora bastante assustada, correu atrás de Edmund em

direção à canoa. No instante seguinte Jekaro a soltava.

— Pegue depressa a lanterna e ajude-nos — ordenou Edmund rispidamente.
Seguindo as instruções dele e contagiada por sua excitação, Nancy movia o

facho de luz lentamente, de um lado para outro. A finalidade da caça era obter

comida, à maneira primitiva dos índios, por isso não era hora para sentir pena do

animal. Pela primeira vez percebeu a importância da caça para os silvícolas.

— Lá está ele! — gritou Edmund apontando na direção de dois faroizinhos

vermelhos que cintilavam no rio. — Mantenha a luz sobre a cabeça dele, Nancy!

Ela ouviu trêmula o clique da arma, a seguir a forte explosão do tiro.
— Acertei-o bem no meio da testa! — exclamou Edmund, exultante. Depois,

sem perder tempo, pegou um dos remos para ajudar Jekaro na difícil tarefa de remar

contra a correnteza.

Mais tarde, Edmund contou a Nancy que o jacaré afunda com rapidez quando

é atingido, por isso fora necessário resgatá-lo rapidamente. Chocada, ela procurava

auxiliá-lo sem queixar-se. Enquanto os dois homens uniam suas forças para içar o

jacaré para dentro da canoa, conservava a luz diretamente sobre seus movimentos.

Emitindo um grito de euforia, Jekaro externava seu contentamento como um garoto.

Na volta dos caçadores ao acampamento, houve uma verdadeira festa em

comemoração ao tiro certeiro de Edmund! Passada a euforia, Mejai se ocupou em

limpar o jacaré, retirando sua pele cuidadosamente e temperando-o em seguida.

O jantar estava sendo preparado em duas fogueiras. Enquanto as cebolas e

os tomates assavam numa espécie de grade de metal colocada sobre algumas

brasas, os peixes, enfiados em espetos improvisados e fincados no chão, próximo

ao fogo, exalavam um aroma delicioso.

Exausta e ainda um pouco atordoada pela emoção da caçada, Nancy sentou-

se sobre uma tora, aguardando o jantar.

— Levante-se rápido! — gritou-lhe Edmund no mesmo instante. — Esta

madeira está cheia de formigas venenosas.

Nancy deu um salto e, ao iluminar a tora com a lanterna, percebeu milhares

de criaturinhas ferozes correndo nervosas de um lado para outro.

— Antes de sentar-se em algum lugar, é bom dar uma olhada, primeiro! —

alertou Edmund. — E, caso haja formigas, mantenha os pés em constante

movimento para evitá-las.

Com um simples gesto de cabeça, Nancy concordou irritada. Ainda não se

esquecera da maneira ríspida como ele a tratara no barco. Não ignorava ter muito

que aprender sobre como se comportar na selva, porém estava decidida a

demonstrar-lhe ser bastante esperta. A exemplo da mãe, saberia como provar sua

capacidade de absorver tudo o que fosse necessário. Talvez assim Edmund

compreendesse o quanto desejava ficar a seu lado.

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Jantaram rapidamente e o peixe grelhado foi a refeição mais deliciosa que

haviam feito até então. Saciada a fome, o cansaço do dia transparecia nas feições

abatidas de todos. Luís atirou-se na rede, de roupa e tudo, dormindo de imediato.

Manuel e Rita seguiram caminhando abraçados pela margem do rio, ansiosos por

alguns momentos a sós. Aquela visão dos dois, enlaçados com tanto carinho,

despertou inveja em Nancy, que procurou localizar Edmund. Mas, com certeza, ele

preferia ficar sozinho pois não o encontrava em parte alguma!

Uma sensação de desamparo a invadiu. Não tinha com quem dividir alegrias

e tristezas, por isso estava melancólica. Reduzida à solidão, restava-lhe apenas

deitar-se e tentar conciliar o sono. Porém não conseguiu dormir com aquele cheiro

de peixe nas mãos e o corpo melado pelo calor!


Pegando de dentro da sacola a toalha e a bolsinha com os objetos de uso

pessoal, Nancy caminhou para o rio em direção oposta àquela tomada por Rita e

Manuel. Levava consigo uma varinha, que ia balançando à sua frente para espantar

possíveis cobras e outros animais rastejantes, seguindo o conselho de Edmund. Mas

os sinistros sons noturnos da selva ao seu redor amedrontavam-na. O pio triste da

coruja, o exército de insetos com seus insistentes zumbidos, grilos com seu

cricrilado estridente e o coaxar das rãs e sapos compunham as mais diversas

melodias características da floresta! Outros sons ainda se ouviam e, como moça da

cidade, ela não os identificava. Ao deparar com a luz prateada da lua, refletida sobre

as águas do rio, esqueceu seus temores para contemplar deslumbrada aquele

cenário maravilhoso!

Tranqüilamente, aproximou-se até a beira da água, tirando a calça e a blusa.

Hesitou um instante antes de livrar-se do maiô, mas conservou a bota de borracha.

Afinal, estava na selva. E ela precisava usufruir dos seus prazeres, apesar dos

perigos ao redor. Deu um passo indeciso, molhando somente as pernas. Após um

dia tão quente, a água estava tépida, mas deliciosamente refrescante. Não

conseguindo resistir a tal prazer, ela se ensaboou lentamente com uma calma vinda

da serenidade da noite. Como não se entregar à sensação relaxante que o banho

lhe proporcionava? Deliciada, mergulhou todo o corpo, mantendo unicamente a

cabeça acima da superfície. O movimento natural da correnteza tirou a espuma de

sua pele e ela levantou os braços sobre a cabeça como se estivesse participando de

algum ritual pagão em homenagem à lua. Durante alguns instantes, permaneceu

parada, a face iluminada pelo luar, os seios pequenos enrijecidos numa oferenda de

si própria. Percebeu, então, que seus instintos primitivos começavam a desabrochar.

De repente, a lembrança de que estava só, impossibilitada de partilhar com

alguém a beleza repousante do lugar, encheu seus olhos de lágrimas. O banho

perdeu todo o seu encanto e Nancy resolveu voltar para o acampamento.

Foi quando sentiu alguma coisa roçando em sua perna e, aproveitando a

claridade esmaecida da lua, viu milhares de peixinhos grudados em sua pele alva,

como sanguessugas. Sacudindo o pé, desesperada, tentou livrar-se deles e subir o

barranco liso e escorregadio, mas não conseguiu. Muito nervosa, procurou firmar-se

na terra mole, entretanto seu corpo deslizava novamente para dentro da água a

cada vez que se aproximava da margem. Ainda esforçando-se para erguer-se,

Nancy pressentiu uma sombra longa e sinistra atrás de si. Em pânico, tentou galgar

o barranco, mas escorregou mais uma vez. Os cabelos caíram sobre a testa,

obscurecendo-lhe a visão e, subitamente, o terror a impedia de raciocinar.

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Selva de Prata

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Respirando fundo, procurou acalmar-se até que, afinal, conseguiu firmar o pé. Mas,

de novo, seu coração começou a bater descompassado no peito, quase explodindo:

uma outra sombra ameaçadora destacava-se, em pé, na praia enluarada. Era de

alguém que a estivera observando esse tempo todo!

— Quem está aí?! — perguntou tremendo de medo.

— Sou eu! O que pensa que está fazendo?! — Edmund respondeu-lhe

rispidamente.

O som daquela voz trouxe-lhe conforto imediato. Pelo menos tinha sido ele

quem a vira banhando-se nua, e não um outro qualquer.

— Estava acabando de tomar um banho quando escorreguei do barranco —

ela explicou, caminhando com dificuldade em direção ao marido.

— Você ficou louca?! Precisava tomar banho a essa hora e ainda por cima

nua? — ele repreendeu-a enquanto estendia a mão para ajudá-la.

— Estava morrendo de calor e, além do mais, não pretendia demorar muito

tempo. Fiquei nervosa quando apareceram alguns peixinhos grudando em minhas

pernas.

— Peixinhos?! Você os viu?! Tem certeza de que não eram sanguessugas?!

— exclamou ele, passando as mãos pelas pernas de Nancy.

Ela arrepiou-se dos pés à cabeça. O toque tão familiar daquelas mãos fortes,

percorrendo-a do tornozelo ao quadril, causava-lhe um efeito delirante.

— Pronto, não há mais nenhuma — disse ele calmamente. — Eu estava

vigiando você, pois já esperava alguma loucura de sua parte.

— Há quanto tempo está aqui?! — quis saber Nancy, aparentemente irritada

mas no fundo lisonjeada com a curiosidade de Edmund.

— Pode estar certa de que adorei sua reverência à lua! Vi quando se afastou

da clareira e como não voltava, resolvi seguí-la a fim de protegê-la.

— Mas quanta gentileza... Muito obrigada.
— Em vez de me agradecer, aprenda de uma vez por todas que não se pode

andar por aí sozinha, num lugar como esse, principalmente à noite! Não podia ter

deixado o banho para o dia seguinte?

Uma sensação de cansaço invadiu Nancy. Por que tudo que fazia dava

errado? A tentativa de provar que podia viver na selva tão bem quanto ele falira

desde o início.

— Me desculpe, Edmund — murmurou ela aproximando-se para abraçá-lo,

completamente esquecida da sua nudez. Ansiava por aquele corpo másculo contra o

seu. Desejava-o com tal urgência e intensidade que esqueceu suas mágoas.

Alheio aos sentimentos de Nancy, Edmund afastou-se, iluminando ao redor à

procura das roupas espalhadas pela margem. — Vamos, vista-se — ordenou ele

jogando-lhe a blusa. O impacto daquelas palavras fez com que ela quase perdesse o

equilíbrio, mas Edmund, largando a lanterna, amparou-a rapidamente. Assustada,

agarrou-se à camisa dele, sentindo-a rasgar-se em suas mãos. Pôde, então, sentir o

contato da pele cálida. O corpo inteiro de Nancy respondeu intensamente àquele to-

que inesperado e delicioso. Aos poucos sentiu as mãos vigorosas perderem a

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Flora Kidd

Selva de Prata

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rigidez, os dedos relaxarem, acariciando sensualmente sua pele sedosa. Mais e

mais ele explorava-lhe as curvas até alcançar o seio rijo, pressionando-lhe as

costas, para prendê-la junto a si.

Numa ânsia incontida, Nancy tocou o peito másculo, afundando os dedos no

cabelo espesso e ondulado. Levantou o rosto para o marido, os lábios entreabertos,

num pedido mudo.

— Você me enlouquece — murmurou ele, beijando a boca de Nancy com

ardor.

Envolvidos numa espécie de magia causada pelo ambiente selvagem e

primitivo, entregaram-se àquele abraço com sofreguidão.

Subitamente Edmund separou-se dela com violência, rompendo aquele

momento sublime. Ao vê-la cambalear, apenas ajudou-a a firmar-se e, com os lábios

cerrados e a respiração ofegante, explodiu furioso:

— Droga! Vista logo esta roupa e vamos embora senão acabaremos

devorados pelos insetos! Não poderia ter escolhido um lugar pior para extravasar

seu romantismo?

— Não fui à única a ser romântica...!
— Não comece a fazer deduções precipitadas! Foi apenas um momento de

fraqueza, muito compreensível. Desafio qualquer homem com sangue nas veias a

manter-se impassível quando alguém, como você, nua ao luar se joga em seus

braços!

— Não tente pôr a culpa só em mim, Edmund! Não me atirei sobre você...

Apenas queria... Oh! Por que é tão maldoso e cruel comigo? — gritou ela,

exasperada.

— Em defesa própria, minha querida, uso todas as armas ao meu alcance.

Não cometa o erro de ver algum significado no que aconteceu aqui esta noite.

A zombaria feriu-a profundamente, como uma faca tocando o centro

sensível de uma ferida aberta. Ela estremeceu agoniada diante de tanta

agressividade.

Por que insiste em se defender de mim, Edmund? Por que

não podemos voltar a ser como éramos no início do nosso casamento? Fomos

tão felizes!

Felizes enquanto tudo corria às mil maravilhas, não é o que quer

dizer? A realidade agora é outra, Nancy. Nós nos ferimos demais e isso leva

tempo para ser esquecido e perdoado — disse ele num tom de mágoa,

mantendo no olhar uma expressão fria e calculista.

Nancy não ousou dizer mais uma só palavra.
— Venha! — tornou Edmund. — Aqui neste lugar não há condições para

discutirmos nosso relacionamento. Vamos dormir que é melhor, amanhã teremos

um dia cansativo. E cuidado para não acordar os demais!

Nancy pegou a toalha e o seguiu em silêncio. Um frio estranho percorria-

lhe o corpo, e suas pernas e mãos começavam a tremer incontrolavelmente.

Apertando os lábios com força, esforçava-se para não chorar, pelo menos não

na presença dele.

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Na clareira, o fogo crepitava de mansinho, mantido assim apenas para

evitar a aproximação dos animais. O clarão alaranjado das brasas iluminava

ligeiramente as redes penduradas entre as árvores, e as duas únicas

desocupadas eram as mais afastadas.

O ideal é conseguir entrar na rede por baixo do mosqueteiro sem

levar junto um exército de insetos — cochichou-lhe Edmund apressadamente.

Posso me trocar? — ela perguntou simplesmente, com apatia.

Claro, dormirá melhor sem estas roupas grossas e incômodas. Voltarei

num instante para ajudá-la a deitar-se,

Nancy escondeu-se atrás da rede para vestir sua camisola leve de

algodão, pois escutara o ruído de Mejai levantando-se para reaviver o fogo.

— Conserve as botas no pé até estar dentro da rede e depois as passe

para mim. Vou pendurá-las junto às outras roupas. E, lembre-se, nunca deixe

nada no chão, pois as aranhas saem à noite! Já está pronta?

Nancy assentiu com a cabeça, sentindo as mãos quentes de Edmund

através do tecido fino da camisola, enquanto a ajudava a subir na rede.

Se deitar de atravessado, o balanço da rede diminuirá um pouco.

Tem um cobertor, não? Costuma esfriar durante a madrugada. Boa noite.

Boa noite e obrigada — despediu-se ela com um sussurro enquanto

as lágrimas há tanto contidas, fluíam livremente.

Não foi fácil arrumar o cobertor, mas, depois de muita luta, ajeitou-o de

maneira confortável. Olhando para as estrelas que brilhavam por entre os galhos

escuros da árvore, Nancy tentava impedir que lembranças amargas do passado

viessem à tona e estragassem sua noite.

No entanto, como poderia dormir se as emoções de momentos antes ainda

tumultuavam seu coração? Edmund a rejeitara, da mesma forma como ela o

repelira há dezesseis meses. Haviam se ferido demais, dissera-lhe ele, e só

agora ela percebia o quanto o magoara deixando o apartamento naquela tarde

distante. Ele, porém, bem poderia ter impedido sua partida. Mas por que não o

fizera?! Se ao menos Edmund não tivesse procurado Peter, ou lhe dado

ouvidos. Ela própria fora vítima do charme persuasivo daquele homem falso e

por isso entendia, perfeitamente que Edmund também se deixasse enganar.

Humilhado e rejeitado, como devia ter sofrido! Pois não fora difícil acreditar nas

maldades que a língua venenosa e ferina de seu amigo de tantos anos falara a

respeito dela, apesar de conhecê-la há tão pouco tempo!

Nancy tolamente também havia acreditado em Peter quando lhe

afirmara que o mais sensato seria divorciar-se, já que Edmund convencido do

enorme erro daquele casamento, pedia-lhe que desse andamento no divórcio.

Quando tudo terminar, você estará livre para se casar comigo —

Peter concluíra uma tarde, ao visítá-la.

Mas não quero me casar com você! Para mim, só existe Edmund! Eu

o amo e lhe darei a liberdade, mas isso não significa que eu queira me casar

com você,

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Por alguns segundos, ele parecera surpreso e confuso, e recobrando a

maneira educada, sentara-se a seu lado, tornando-lhe as mãos entre as suas.

— É natural que pense assim, Nancy. Afinal, não faz muito tempo que

Edmund partiu e o divórcio é uma experiência traumatizante para a maioria

das mulheres, mesmo quando casadas há tão pouco tempo como você. Tenho

presenciado diversos casos iguais ao seu em minha profissão. Edmund está

decidido e nada o fará voltar atrás para tentar uma reconciliação. Como vê, está tudo

em suas mãos.

— Tem idéia de onde ele possa estar? — perguntou-lhe Nancy esperançosa.
— Sim, mas ele me pediu para não revelar a ninguém e não posso trair sua

confiança. Está de partida para outra expedição e talvez fique longe por um ano. Isto

vai se repetir sempre, Nancy, ele a deixará sem o menor remorso.

Tia Marsha tinha razão ao dizer que Edmund era do tipo de homem que não

assume um relacionamento.

— Oh!, se ao menos tivesse certeza de tudo. Se ao menos pudesse falar-lhe

ou escrever-lhe — suspirou Nancy desanimada.

— Esqueça, fato consumado — insistira Peter com paciência. — Edmund

arrependeu-se de ter casado com você e quer reparar a falta tão rápido quanto

possível. Não tolera ver ninguém sofrer e reconhece que é culpado do seu

sofrimento. Siga o meu conselho, Nancy, pelo seu bem, por sua paz interior.

Entretanto, ela adiara aquela decisão ao tomar consciência das mudanças em

seu físico. Contara as semanas em que Edmund estivera em casa entre os dois

períodos de ausência, o primeiro na Indonésia e depois na América Central...

Haviam se passado três meses! Temendo a possibilidade de estar grávida, marcara

uma consulta, na qual o médico lhe confirmara suas suspeitas: carregava no ventre

uma criança de Edmund e a idéia do divórcio teria de ser descartada!

A rede balançava de um lado para o outro enquanto ela se relaxava,

procurando afastar essas lembranças amargas. As pílulas para dormir lhe faziam

muita falta. Se ao menos Edmund não as tivesse jogado fora!

Aqueles comprimidos haviam sido prescritos para os momentos insuportáveis

de ansiedade, como quando perdera o bebê. Qual seria a reação de Edmund se

soubesse a razão pela qual os tomara? Ele nem imaginava o quanto ela havia

sofrido durante aquela época, sem poder se abrir com ninguém.

Agora, naquela cama exótica e desconfortável, no meio da selva, precisava

meditar sobre o desgosto passado e encará-lo de frente. Desejou subitamente estar

de volta ao quarto protegido e quente do Posto Diauarum, com Edmund deitado na

mesma cama, a seu lado. Poderia quem sabe falar-lhe sobre a experiência daqueles

meses de solidão, abrir-se com o marido no escuro e talvez encontrar alívio para sua

dor. Superar, com a ajuda dele, o profundo trauma causado pela perda do menino

nascido prematuramente e que morrera logo após o parto.

A satisfação de estar carregando um filho de Edmund teria sido bem maior se

tivesse tido a chance de lhe dar a feliz notícia. Não confiando em Peter, preferira

manter a gravidez em segredo, alimentando sempre a esperança de localizar o

marido.

Perguntara a Peter sobre o paradeiro de Edmund e ele lhe respondera com

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voz suave, fingindo solidariedade:

— Não faço a menor idéia de onde ele se encontra agora, mas, por você, vou

tentar me informar.

Depois disso, ela própria começou a investigar sobre o país aonde Edmund

fora.

Na sede da Cruz Vermelha, para a qual talvez ele estivesse trabalhando

como voluntário, ninguém soube dar-lhe qualquer informação. No Instituto de

Investigação, onde ele também trabalhara, tudo que conseguiu foi o endereço de

seu tio avô Justin Talbot, de quem Nancy jamais ouvira falar. Enviou então uma

carta a Edmund, aos cuidados do tio, e, após quinze dias, recebeu-a de volta

juntamente com uma do velho tio, na qual ele manifestava sua surpresa em saber

que Edmund havia se casado e que infelizmente, não sabia informar onde estava o

sobrinho...

Vencida pelo cansaço, Nancy acabou afinal adormecendo, entretanto foi um

sono intranqüilo e agitado. Acordou de manhã, quando os outros já estavam em

plena atividade na claridade mística da alvorada.

Apenas uma xícara de café morno, peixe e arroz frio restavam para seu

desjejum. Ela olhou enjoada para a comida, mas, dominando-se, comeu um pouco

para não ficar faminta mais tarde. Em seguida, a exemplo dos outros, levou seus

pertences de volta ao barco, que pacificamente reiniciou seu percurso no rio.

Uma brisa agradável batia na proa da embarcação e uma névoa branca como

neve, envolvendo tudo, subia da água aquecida pelos primeiros raios de sol. Nancy

sentou-se ao lado de Luís com o bloco de anotações sobre os joelhos. Ia tomando

notas ocasionais, à medida que ele lhe contava de sua dedicação às tribos

indígenas. Era um trabalho que lhe exigiu um esforço contínuo para receber e

despertar segurança no índio, assim como entrosá-lo no mundo moderno, pelo qual,

lenta e quase impiedosamente, tinha sido surpreendido.

— Forneço aos índios ferramentas úteis como machado de aço para que

substituam os de pedra; espingardas e apetrechos de pesca, para serem usados no

lugar do arco e flecha. Quanto à comida e às vestimentas, só lhes dou quando me

pedem. No passado, essa gente foi desmoralizada e repudiada pelo homem branco

que invadiu suas terras tomando-lhe tudo, até mesmo a cultura e a religião. Meu

principal objetivo é encorajá-los a manterem os costumes tribais — danças, rituais e

artesanatos.

A sinceridade de Luís expressa em suas palavras e gestos, despertou em

Nancy uma admiração profunda. Conversaram durante muito tempo, inclusive sobre

o pai dela, que em muito tinha colaborado com as tribos, publicando artigos e livros a

respeito dos índios. Falaram também sobre Edmund...

— Gostaria muito que seu marido se decidisse a ficar aqui para nos ajudar.

Ele não comentou nada com você, Nancy?

— Não, ainda não.
— É uma decisão difícil e, só agora que a conheci, posso compreender. —

Seus olhos escuros piscaram num gesto brincalhão. — Um homem solteiro, como

eu, não tem com quem se preocupar, mas espero que vocês firmem um

compromisso conosco, da mesma forma que Rita e Manuel. Ambos assumiram um

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casamento, amam um ao outro e, unidos no mesmo ideal, entregam-se de corpo e

alma ao bem da comunidade.

Como no dia anterior, o calor da atmosfera e o brilho ofuscante do sol sobre a

água tornaram-se insuportáveis, e Nancy agradeceu o fato de ter o abrigo da casa

do motor para ficar, apesar da fumaça. Encostando-se à bagagem amontoada, ora

cochilava, ora escrevia. Rita viera conversar diversas vezes, mas Edmund, como

sempre, continuava indiferente, ignorando-a por completo.

No meio da tarde, um aguaceiro desabou do céu. Os pingos grossos

estalavam nos arvoredos e na madeira do barco, produzindo um ruído

ensurdecedor. Navegavam às cegas pois uma cortina cinzenta de água obstruía-

lhes totalmente a visão. Foi uma pancada rápida, mas forte — a famosa chuva-de-

verão —, encharcando tudo com fúria. De repente, as nuvens desapareceram, como

por encanto, e a terra se iluminou outra vez. O barco fez uma curva larga, na direção

de um aglomerado de cabanas de palha, dispersas no alto de uma colina verdejante,

em pleno coração da selva. Destacando-se na infindável floresta, a aldeia surgia

como um borrão colorido quebrando a monotonia verde das imensas árvores.

Jekaro necessitava de ajuda na luta contra a correnteza que os empurrava

para longe. Por isso, Edmund e Manuel, munidos de longas varas, giraram o barco

na direção certa. Próximos o suficiente da terra, Mejai atirou a corda para um

homem alto, que, puxando-a, arrastou a embarcação até um pequeno cais de

madeira.

Vários indígenas, a maioria de short e camisa, olhavam da praia,

misteriosamente silenciosos. De repente, um grito agudo e forte quebrou o silêncio e

uma mulher idosa, usando um vestido simples de algodão, apareceu. Aos berros, ela

batia com as mãos no peito, enquanto as lágrimas corriam de seus olhos

embaçados. Jekaro, então, deu um salto até a praia. A mulher, parando de chorar,

pegou-o pelo braço e conduziu-o devagar em direção à aldeia e os índios,

expandindo uma alegria esfuziante, abraçaram Luís e carregaram Manuel no colo.

— O que significa tudo isso? — quis saber Nancy.
— A velhinha é a mãe de Jekaro e chorava todos os dias em que o filho ficou

ausente da vila. Todos deviam permanecer em silêncio até que o ritual de boas-

vindas terminasse. Podemos descer, agora.

Nancy adorou pisar em terra firme, e depois de um dia inteiro flutuando ao

balanço do barco o chão duro parecia mover-se. Desequilibrando-se, teria caído se

não fosse aquele estranho segurar em seu braço. Era um rapaz alto e magro, de

traços perfeitos, e que corria para ela murmurando palavras incompreensíveis. Devia

ter pouco mais que trinta anos. Com seus olhos escuros, quase negros, examinava-

a com admiração. Atordoada, Nancy tentou balbuciar uma palavra de agradecimento

na língua nativa.

Notando o embaraço da moça, ele se adiantou num inglês cheio de sotaque.
— O prazer foi todo meu.
Naquele instante, Luís surgiu saudando o rapaz:
— Olá, Carlos, não esperava encontrá-lo por aqui. Quero lhe apresentar

nossa nova companheira: Nancy Talbot. É a jornalista que veio fazer uma

reportagem sobre nossas tribos.

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— Talbot?! — perguntou ele, surpreso, estendendo a mão para Nancy.
— Sim.
— É inacreditável! Há quanto tempo está casada com Edmund?
— Dois anos e meio.
— Olhem, vejam só!... Tenho transportado Edmund a diversos lugares todos

esses meses e ele nem sequer mencionou que era casado. Meu nome é Carlos

Silveira e eu sou piloto nessa região.

Mal o rapaz se apresentara, com um sorriso largo nos lábios, e uma jovem

esguia e elegante aproximava-se em sentido contrário ao deles, pela trilha estreita.

Aparentava ter somente alguns anos mais do que Nancy, e o conjunto safári lhe

assentava graciosamente. Numa olhada rápida, Nancy reparou nos longos cabelos

pretos que emolduravam o seu rosto moreno. Parando perto de Carlos, ela começou

a lhe falar no idioma deles, gesticulando o tempo todo de forma bastante calorosa.

Respondendo na mesma língua, ele pronunciou o nome completo de Nancy com um

sorriso irônico nos lábios.

— Não sabia que Edmund tinha uma esposa! — disse a jovem, desconfiada.

— Sou a dra. Sônia Meirelles. Cuidei de Edmund quando pegou malária, depois de

ter se perdido na selva.

— Muito prazer — disse Nancy, estendendo a mão com simpatia.
Após um frio cumprimento, Sônia murmurou algumas palavras e depois saiu

apressada em direção ao barco, deixando Nancy sem ação e sem saber aonde a

outra iria com tanta pressa.

De maleta na mão, Edmund vinha subindo distraído quando Sônia o

atropelou. Imediatamente, ele parou e, num sorriso franco, murmurou-lhe alguma

coisa que Nancy não pôde ouvir. Em resposta, a brasileira envolveu seu pescoço

com os dois braços e beijou-lhe as faces três vezes. Rindo muito, Edmund apoiou a

maleta no chão a fim de melhor corresponder ao abraço caloroso.

Nancy pensou que fosse desmaiar de tanto ciúme. Desviando o olhar,

deparou com o de Carlos, que parecia estar achando muita graça naquela cena. Daí

para a frente, caminharam em silêncio, até chegarem ao topo da colina.

— Vocês dividirão esta cabana com Manuel e Rita — Luís explicou para

Nancy, mais tarde. — Aqui, não temos as mesmas comodidades do Posto

Diauarum. Dormiremos em redes e, se quiserem tomar um banho, o chuveiro fica na

cabana ali ao lado.

A cabana na qual passariam a noite era grande e arejada. No centro, um

enorme esteio sustentava o telhado, feito de folhas de palmeiras trançadas, num

belo trabalho artesanal. Duas paredes de meia altura erguidas de forma oposta

deixavam um vão livre para facilitar a penetração do oxigênio. E uma única lam-

parina a querosene, feita de lata e pavio, clareava ligeiramente o ambiente.

Quando Nancy entrou, dois índios penduravam as redes e, ao vê-la,

apontaram para sua sacola, fazendo sinais com a mão. Ela deu-lhes então algumas

balas e cigarros, que eles receberam felizes, saindo apressadamente.

Nancy aproveitou a oportunidade para trocar de roupa, colocando uma blusa

limpa e refrescante. Naquele momento apenas um pensamento a atormentava: onde

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Selva de Prata

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estaria Edmund?!

A lua brilhava no céu e um leve perfume de laranja enchia o ar enquanto Rita,

Manuel e Nancy seguiam pela trilha que os levava ao refeitório, perto do rio. No

fogão a lenha, pedaços grandes de carne eram cozidos em panelas de ferro.

— Que delícia! Hoje passaremos bem! Os caçadores da tribo tiveram sorte,

mataram vários porcos-do-mato.

Na imensa sala onde fariam a refeição, alguns índios, sentados ao lado de

Luís, narravam com grande entusiasmo e mímica as proezas da caçada. Na outra

cabeceira da mesa, comprida e estreita, estavam sentados Edmund e Sônia.

— Alguém já lhe apresentou a dra. Sônia? — sussurrou Rita ao tomarem os

lugares em frente a Luís.

— Sim — respondeu Nancy. — Aliás, ela me pareceu muito jovem para ser

médica. Ela é voluntária? — perguntou, tentando disfarçar a curiosidade.

— Sim, veio de São Paulo especializar-se em doenças tropicais. A família

dela é muito importante.

Nancy sentiu um aperto no estômago. O que mais teria Edmund em comum

com esta jovem doutora?

— Você a conhece há bastante tempo?
— Mais ou menos. Escute, Nancy, sou sua amiga há apenas alguns dias,

mas gosto de você. Por isso quero ser-lhe sincera e espero que você não fique

chateada: tenho a impressão de que Sônia está apaixonada por seu marido.

Uma raiva intensa tomou conta de Nancy e ela olhou para os dois. Com os

braços cruzados sobre a mesa e um cigarro entre os dedos, Edmund escutava Sônia

bastante interessado. Vendo-os conversarem tão animados como se mais ninguém

existisse no mundo, era de se supor que a Medicina era o assunto mais delirante do

mundo!... E até mesmo engraçado.

Durante o dia inteiro Nancy se sentira ignorada por Edmund e, agora, tinha de

agüentá-lo desdobrando-se em atenções para com aquela doutora, que o recebera

como se ele fosse seu grande amor! Nancy estava determinada a não demonstrar o

quanto se magoara e, quando ia retomar a conversa com Rita, viu Carlos a seu lado,

com uma expressão maliciosa nos olhos escuros.

— Sabe que estou surpreso? Como é que Edmund pôde vir para o Brasil

agüentando ficar tanto tempo longe de você? Ele não deve estar... digamos,

regulando bem da cabeça — disse Carlos.

Nancy não pôde deixar de rir.
— Oh! Não brinque!
— Ora, somente um doido deixaria uma esposa tão bonita sozinha e tão

distante! Mas, perdoe-me a indiscrição, por que permitiu que ele viesse?

— Não pude detê-lo.
— Não mesmo?! Olhe, garanto que, se realmente desejasse, o teria

segurado. Ou será que o seu é um desses casamentos modernos, cada qual para o

seu lado e encontros ocasionais, quando nenhum dos dois estiver muito ocupado

consigo mesmo?

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Selva de Prata

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— E, por acaso, você é contra?!
— Na verdade, não. Mas... se fosse casado, minha mulher teria de ficar em

casa, cuidando de mim e dos filhos.

— Suponhamos que seu trabalho o obrigasse a viajar sempre.
— Bem, aí ela me esperaria de braços abertos e me cobriria de carinho

quando eu chegasse.

Carlos olhou de relance para Edmund e Sônia e, inclinando-se até quase

encostar sua cabeça à de Nancy, cochichou-lhe no ouvido.

— Ela está sempre falando de si própria, que é uma ótima profissional e não

sei mais o quê. Com esse falatório todo, não deve lhe sobrar tempo nem para beijar!

Nancy deu uma gargalhada gostosa. Sem dúvida, Carlos a divertia muito!

Enquanto saboreava a carne macia e cheia de torresminhos, distraiu-se ouvindo-lhe

os casos, ora gozados, ora arrepiantes, ligados à sua profissão de piloto na selva.

Ele absorvera de tal forma sua atenção que ela até se esquecera do aborrecimento

pelo qual passara poucos minutos antes.

Logo após a refeição, todos os visitantes sentaram-se ao ar livre para assistir

a uma demonstração de dança dos índios. Com cocares e colares feitos de penas

de pássaros, pintados de diferentes maneiras e cores, seus corpos nus pareciam

vestidos de uma estamparia exótica. Formando um meio círculo, carregavam lanças

e batiam um pé só, todos ao mesmo tempo, marcando o ritmo.

Carlos explicou-lhe que aquela era uma dança de guerra e que estavam

bravos por causa da estrada em construção que atravessava a selva, prejudicando

algumas tribos. No desenrolar da dança, os guerreiros empunharam as lanças, num

gesto agressivo que atemorizou Nancy. Quando, finalmente, se dispersaram, ela

voltou à sua cabana em companhia de Carlos. Uma brisa suave soprava as folhas

das árvores molhadas de orvalho e enormes morcegos voavam na noite clara de

luar. A temperatura baixara bastante e o ar tinha um cheiro de terra molhada.

Influenciado, talvez, pelo romantismo que os cercava, Carlos tomou-lhe a mão

e, levando-a até os lábios, beijou-a ternamente.

— Boa noite, e obrigado pela sua companhia, Nancy. Amanhã nos veremos

— ele murmurou roucamente, sumindo depois na escuridão.

No interior da cabana, a lamparina ainda queimava, formando sombras

ameaçadoras na parede branca. Nancy vestiu a camisola e deitou-se na rede com

dificuldade. Balançava-se gentilmente enquanto ouvia as vozes de Rita e Manuel,

que conversavam no outro canto da cabana. Fechou os olhos tentando dormir,

embora soubesse que não o conseguiria enquanto Edmund não chegasse.

Quando, por fim, escutou seus passos lentos e percebeu os movimentos

cuidadosos enquanto ele tirava a roupa e se deitava respirou aliviada. Queria ter

coragem suficiente para perguntar-lhe onde tinha estado e o que estivera fazendo.

Estavam muito próximos, mas Nancy sentia-se a quilômetros de distância. O abismo

entre eles aumentava cada vez mais. Principalmente agora que sabia o verdadeiro

motivo que levava Edmund a querer permanecer no Brasil: a dra. Sônia Meirelles!


CAPÍTULO VI

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Selva de Prata

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Nancy tinha acabado de sair da rede para procurar uma toalha a fim de tomar

um banho quando, de repente, Edmund perguntou-lhe num tom impessoal:

— Há um homem muito doente numa aldeia isolada no meio da selva. A tribo

dele enviou um mensageiro para pedir um médico. Carlos vai me levar até lá.

Gostaria de vir comigo?

Ela parou instantaneamente, como se tivesse levado um choque. Será que

ouvira bem? Estaria mesmo sendo convidada para acompanhá-lo numa viagem?!

Virou-se e o olhou intrigada. Os cabelos dele estavam molhados, e deduziu que

Edmund já havia tomado uma ducha ou estivera nadando no rio. O rosto recém

barbeado e muito moreno ganhara um aspecto mais saudável depois daquele

passeio de barco sob o sol escaldante, e seus olhos azuis a fitavam cheios de vida.

Mas as olheiras que os circundavam denunciavam uma grande verdade: ele não

havia dormido bem naquela noite!

— Gostaria que eu fosse? — perguntou-lhe, mal disfarçando a ansiedade.
— Não sei por que você é sempre tão complicada! Eu apenas lhe fiz uma

pergunta e você me responde com outra. Luís avisou-me que a viagem seria muito

interessante para sua reportagem e, como está sobrando um lugar no avião, vim

avisá-la. Quer ir ou não?

Nancy deu um suspiro profundo diante da impaciência de Edmund. Acordara

com dor de cabeça e pontadas no estômago e teria dado tudo para voltar à rede e

ficar dormindo até sentir-se melhor. Contudo, o desejo de estar perto dele e provar-

lhe que tinha condições de acompanhá-lo a qualquer lugar a fez esquecer

rapidamente o mal-estar.

— Eu adoraria ir junto, Edmund. Quem mais irá além de Carlos, você e eu?
— A dra. Meirelles. Para ela também será uma ótima experiência. Muito bem,

direi a Carlos que você irá conosco. Esteja no refeitório dentro de quinze minutos.

Edmund afastou-se antes que ela tivesse tempo de perguntar-lhe se não

estava nervoso por causa da viagem de avião, afinal, fazia bem pouco tempo que

sofrera um acidente. De qualquer forma, mesmo que estivesse, dificilmente o

admitiria. Dando de ombros, pegou suas roupas e dirigiu-se à cabana onde ficava o

chuveiro. No teto do pequeno cubículo havia um tambor e, quando Nancy puxou a

cordinha abrindo o registro, uma agradável chuva de água fresca caiu sobre seu

corpo. Embora o método fosse um tanto precário, proporcionou-lhe uma sensação

agradável. Bem mais disposta, devorou com apetite o farto café da manhã com

saborosos pãezinhos de milho, ovos frescos mexidos e mamão da Amazônia.

A calorosa recepção de Carlos, assim que a viu, demonstrou o quanto ficara

contente ao saber que os acompanharia. Passando o braço ao redor dos seus

ombros, ele falava sem parar, fornecendo detalhes sobre a viagem enquanto

caminhavam até a pista. Nancy achou-o bastante atraente, com calça e camisa de

brim cáqui e botas de cano longo. À cinta ele levava um revólver e sobre o ombro

esquerdo um rifle.

— Sempre levo este arsenal em caso de haver um acidente — ele apressou-

se em explicar, notando o olhar assustado de Nancy. — Pelo menos não

passaremos fome.

— Você está me deixando com medo...

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Selva de Prata

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— Oh! Por favor, não se preocupe. Na verdade, essas armas nunca foram

usadas! Olhe, quero que você vá a meu lado, na frente. Além de mais confortável,

poderá ter uma visão melhor da paisagem. — Ele exibiu um largo sorriso. — Isto

sem falar no prazer da sua companhia...

Naquele momento, chegaram Sônia, Edmund e Luís, acompanhados por um

grupo de índios. Enquanto entrava na cabine, Edmund perguntou a Nancy,

secamente:

— Por que vai na frente?
— Fui eu quem a convidou, Edmund — respondeu Carlos antes de Nancy. —

Fique tranqüilo, ela estará bem aqui comigo. Assim, você poderá conversar mais à

vontade com a dra. Meirelles.

Edmund lançou um olhar resignado para a jovem médica, já instalada toda

sorridente no banco de trás. Mas logo depois procurou disfarçar seu

desapontamento.

— Tudo bem! Como queiram...
Carlos pilotava o avião com perícia e segurança. Como um grande pássaro

planando ao sabor do vento, ora mergulhavam em vôos rasantes sobre o rio,

surpreendendo o descanso indolente dos sinistros jacarés, ora arremetiam acima de

árvores gigantescas. Do alto, podiam ver as araras coloridas, como pequenas

manchas azuis e vermelhas destacando-se no verde intenso da selva.

— Como vai fazer para achar a vila? — perguntou Nancy, deslumbrada com

aquela paisagem formidável.

— Este é um mistério que, como sempre, preciso desvendar. É como estar

num labirinto. Vamos por um lado, depois por outro, com os olhos sempre na

bússola. Quando finalmente avistamos um anel de fumaça saindo do meio das

árvores, a conclusão é uma só: onde há fumaça, há vida. — Ele se inclinou para

perto de Nancy, baixando o tom de voz. — Esta é a primeira vez que Edmund entra

num avião depois do acidente. Gostaria de saber como ele está reagindo.

Nancy aguardou alguns instantes antes de olhar discretamente para trás.

Edmund e Sônia mantinham-se calados. Ela apreciava distraída a paisagem através

da janela, enquanto ele, ao seu lado, olhava fixamente para a frente com uma

expressão muito séria. Nancy sentiu uma sensação de desconforto. Edmund parecia

zangado.

Voltando-se para a frente, Nancy aguardou uma aproximação de Carlos,

ciente de que Edmund ainda a observava.

— Como está ele? — perguntou-lhe Carlos, depois de algum tempo.
— Parece bem.
— Melhor assim. Isto significa que ele superou a crise com naturalidade.

Agora, olhe lá para baixo. Vé uma fumaça? É a nossa aldeia.

Dirigindo o olhar para o local apontado por Carlos, Nancy viu uma pequena

clareira no imenso verde e percebeu que o avião preparava-se para pousar. À

medida que inclinava, fazendo uma curva longa e aberta, ela avistou um grupo de

índios correndo para a pequena pista improvisada no meio das árvores; curta e

estreita, não atingia mais do que duzentos metros, o que obrigou Carlos a fazer

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outra volta de aproximação antes de pousar.

Tão logo a porta da cabine foi aberta, várias mãos rudes e bronzeadas

estenderam-se, oferecendo ajuda para que a equipe descesse. Nancy já se

acostumara à recepção festiva dos índios toda vez que chegavam a uma aldeia,

mas, desta vez, notava um certo exagero na maneira excitada com que

gesticulavam e falavam ao redor dos recém-chegados.

Irritado com aquela algazarra e sem conseguir entender uma só palavra do

que diziam, Edmund acabou perdendo a paciência:

— Por que eles estão gritando dessa forma? Não irei a parte alguma

enquanto não souber o motivo de tanto alvoroço.

Sob o sol escaldante e com todas aquelas pessoas falando à sua volta,

Nancy sentiu as pernas fraquejarem e a vista escurecer. Apoiou-se no avião

enquanto Carlos lhe traduzia a complicada explicação de um jovem índio.

— Todos estão muito contentes com a nossa presença, mas o chefe da tribo

deseja logo a presença do doutor na cabana do homem doente.

— E onde fica? — perguntou Edmund.
— Lá do outro lado da aldeia. Ele lhe mostrará o caminho.
— Está certo, mas não posso ir sozinho. Preciso de um intérprete — lembrou

Edmund.

— Tenho certeza de que Sônia sentiria um prazer enorme em ajudá-lo, não é

mesmo, doçura?

— Mas é claro — respondeu ela com um sorriso amarelo nos lábios.
Edmund não desprendia os olhos de Nancy, deixando-a aflita. Conhecendo a

capacidade dele adivinhar tudo o que se passava com ela, Nancy procurou disfarçar

com um ligeiro sorriso as dores cada vez mais intensas no estômago e na cabeça.

— Você está bem? — indagou ele com uma suavidade inesperada.
— Oh! sim! —, respondeu Nancy, exultante. — Talvez eu até tire algumas

fotos por aí.

— Fique tranqüilo, Edmund. Levarei Nancy para conhecer a aldeia e cuidarei

bem dela — prontificou-se Carlos, indiferente à expressão de desagrado do médico.

— Muito bem. Voltarei o mais rápido possível. — Ele se voltou para o chefe,

disse algumas palavras e em seguida ambos seguiram para ver o doente.

— Não vai com eles?! — perguntou Carlos rispidamente a Sônia, vendo que a

médica não se movia do lugar.

— Ora, não me aborreça! Você está sempre querendo me dar ordens. —

Contrariada, pegou a maleta preta com os instrumentos e seguiu ao encalço de

Edmund, batendo os pés.

— Vamos nos sentar um pouco à sombra — sugeriu Carlos conduzindo

Nancy a uma grande castanheira, a única árvore bem no meio da clareira.

Assim que se acomodaram no banco rústico, ao lado do alto tronco de quase

dois metros de diâmetro, foram rodeados por um grupo de nativos curiosos.

Lembrando-se dos presentes que trouxera em sua valise, Nancy os distribuiu,

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achando uma graça enorme nas expressões felizes, quase infantis, daquelas

criaturas ingênuas. Já havia aprendido como era importante para eles o contato

físico, e, com muita paciência, permitiu que algumas índias lhe tocassem os cabelos,

as mãos, sua aliança de casamento e a medalha de ouro pendurada no pescoço.

Sorriu, e elas retribuíram o sorriso timidamente. De repente, as mulheres trocaram

algumas palavras entre si e logo após ofereceram a Nancy uma cuia cheia de

castanhas.

Agradecendo, Nancy provou algumas, apesar de estar um pouco indisposta,

para não lhes fazer uma desfeita.

— Elas gostaram de você! — disse Carlos. — Isso é muito bom, pois esta

tribo é considerada das mais arredias.

— Por outro lado, soube que são bastante criativos. Será que poderíamos ver

alguns de seus trabalhos?

— Sem dúvida! — Ele se levantou, olhando em direção à cabana do doente

— Olhe só!... não é possível! Sônia já desistiu!

Nancy olhou através da clareira e viu que a médica saía às pressas de dentro

da cabana. Carlos tentou bloquear-lhe o caminho, mas, em disparada, ela passou

direto, com o rosto pálido, os olhos arregalados e a mão comprimindo a boca.

— O que há com ela? — indagou Nancy assustada.
— Com certeza não gostou muito do que viu lá dentro — respondeu ele com

sorriso maldoso — Ora, ora, que utilidade pode ter essa doutora se passa mal

quando vê um doente? Sendo assim, jamais deveria ter vindo para cá, pois, pelo que

se vê, está longe de ter a mesma dedicação de Edmund. Sabe, a princípio eu não

simpatizava muito com seu marido. Julgava-o um desses ricaços que, cansado de

uma vida sofisticada, estivesse à procura de emoção aqui na selva. Com o tempo

aprendi a admirá-lo. É um homem sensível, preocupado com o destino dos menos

favorecidos. Demonstra ter muita fibra, senão não teria sobrevivido ao acidente na

floresta.

— Veja! Ali está ele, na porta da cabana, acenando para nós — disse Nancy

começando a caminhar em direção ao marido.

— Onde está a dra. Meirelles? — perguntou Edmund asperamente, assim

que se aproximaram.

— Passando mal atrás de algum arbusto por aí — respondeu-lhe Carlos. —

Precisa de ajuda?

— Não consigo entender a língua deles. Parecem querer dizer alguma coisa

relacionada com um certo pássaro. É melhor você não entrar, Nancy.

— Mas eu quero.
— Pode se impressionar.
— Não me importo.
— Pois então, vamos.
Dentro da cabana estava muito escuro. Ouvia-se apenas o choro abafado de

algumas mulheres em torno de uma rede, onde Nancy percebeu a frágil figura de

uma criança. Contudo, chegando mais perto, constatou bastante chocada que se

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tratava de um adulto.

— O que aconteceu?! — murmurou ela consternada. Carlos traduziu as

palavras do cacique.

— Ele é um índio jovem que saiu para caçar e ficou sem suas armas. Em

busca de água, embrenhou-se pela mata e acabou se perdendo. Com sede e

faminto, foi finalmente encontrado pelo pássaro Ananu, que o carregou para o topo

de uma árvore, e, ontem, trouxe-o de volta para sua aldeia.

— Mas, afinal, o que é este tal pássaro Ananu? — sussurrou Edmund com o

olhar fixo no pobre homem doente.

— Existe uma crença entre o povo desta tribo segundo a qual sempre que um

índio sai para caçar e se perde na floresta surge Ananu, um animal metade homem,

metade pássaro, que o carrega para seu ninho, mantendo-o lá por algum tempo.

Quando por fim o pássaro se aborrece com a presença do índio, costuma picá-lo

com seu bico enorme e o trás de volta à sua gente.

— Entendo! — disse Edmund. — É um mito criado por eles à fim de poder

explicar aquilo que não conseguem compreender. Sem dúvida, este homem está

desnutrido e com desidratação. Precisamos levá-lo o mais depressa possível para o

Posto Diauarum. — Edmund refletiu alguns instantes antes de prosseguir. — Carlos,

diga-lhes que você é o Ananu e vai levá-lo embora outra vez, para depois trazê-lo de

volta completamente curado.

— É uma boa idéia, meu amigo! Mas não tenho condições de executá-la: meu

avião está meio velho, não aguentará levantar vôo numa pista tão precária se estiver

mais carregado do que já veio...

— Ora, Carlos! Aquele índio pesa menos que uma criança.
— Sei disso, mas tem mais um detalhe: ele não írá sozinho. Seu irmão, o

cacique, e sua mãe com certeza desejarão acompanhá-lo. É o costume dos índios.

Edmund enxugou o suor de sua testa, aborrecido.
— Droga! Vamos sair deste lugar abafado e discutir isso lá fora. Não há nada

para a gente beber?

Carlos trocou algumas palavras com o cacique antes de encontrar-se com

Nancy e Edmund à sombra da castanheira onde Sônia estava.

Enciumada, Nancy irritou-se ao ver Edmund perguntando gentilmente à

doutora se ela havia melhorado. Logo depois, algumas mulheres vieram trazer-lhes

suculentos maracujás e, por alguns instantes, todos ficaram em silêncio, apenas

sorvendo o suco fresco e agradável da fruta.

— Temos que decidir quem de nós ficará aqui. Carlos com certeza não será,

pois precisará pilotar o avião — falou Edmund com voz autoritária.

— Há duas alternativas: ou ficam as duas mulheres, ou você, Edmund, e uma

delas — sugeriu Carlos olhando para Nancy e Sônia.

Depois de um breve silêncio, Nancy prontificou-se a ficar, percebendo que os

dois esperavam delas algumas manifestação.

— Eu não me importo. Seria até uma oportunidade para conseguir uma

excelente matéria para meus artigos.

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A reação de Sônia deixou todos atônitos. Inconformada com a decisão de

Edmund, ela se pôs a gritar e a gesticular como uma louca, deixando até os índios

assustados.

— O que deu nela agora? — perguntou Nancy a Carlos.
— Quer ficar com Edmund e está dizendo para você vir comigo. Ela é mesmo

uma tola!

— Por mim tudo bem... — falou Nancy, sem muita convicção.
— De forma alguma! Cabe a Edmund decidir — disse Carlos, olhando para o

médico com um sorriso malicioso. — Ou, então, as duas ficam e você volta comigo,

Edmund.

— Não! Sou o mais pesado, portanto ficarei. Sônia vai com você porque o

paciente poderá precisar de cuidados médicos durante o vôo.

— E quem lhe dirá isso?!
— Deixe comigo! Como seu superior, ela terá de me obedecer. Conseguirá

estar de volta para nos apanhar antes do anoitecer?

— Duvido. É melhor se prepararem para passar a noite aqui. Falarei com o

cacique para acomodar vocês.

— Então está combinado. Só falta locomover o rapaz para o avião. Peça ao

chefe uma rede para que possamos transportá-lo.

— Está bem — concordou Carlos, afastando-se.
Edmund foi conversar com Sônia enquanto Nancy sentou-se num banco ali

perto, pensativa, observando algumas crianças jogarem bola. A situação que estava

passando chegava a ser cômica, concluiu ela. A poucos passos dali, estava

Edmund, seu marido, desdobrando-se em explicações para com uma estranha,

tentando fazê-la entender por que era necessário que ela embarcasse enquanto ele

permaneceria ao lado de sua própria esposa. Não pôde deixar de sorrir diante de

tamanha incongruência.

Carlos voltou pouco depois, em companhia do cacique, da esposa dele e de

um homem cheio de adornos no pescoço, que lhes foi apresentado como sendo o

pajé da tribo:

— Já está tudo arranjado — disse-lhes Carlos. — Eles têm uma cabana

especial para convidados e que está à disposição de vocês. Agora vamos buscar o

nosso doente.

— Ótimo! — exclamou Edmund, erguendo-se rápido. — Você espere aqui na

sombra, Nancy.

— Não posso ajudá-los? — indagou ela suavemente. Edmund fitou aqueles

olhos por alguns instantes e, num gesto inesperado, estendeu a mão, quase tocando

seu rosto. Nancy sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, aguardando ansiosa por

aquele gesto de carinho que, no entanto, não chegou.

— Por enquanto não — respondeu ele, antes de seguir atrás de Carlos e do

chefe.

Sentada na outra ponta do banco, a médica também observava Edmund

afastar-se. Subitamente aproximou-se de Nancy e, num péssimo inglês, perguntou-

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lhe abruptamente:

— Por que você tinha de vir para o Brasil? Precisava seguir Edmund até

aqui?

— Eu não o segui! — protestou Nancy, indignada por ter de dar satisfações

àquela criatura irritante, que a olhava como se ela fosse a amante de Edmund e não

sua esposa.

Arrependida pela resposta intempestiva que dera, Nancy resolveu ser sincera

e desabafou:

— Vim para ficar ao lado de Edmund, porque ele é meu marido e eu o amo!
— Mas ele não a ama! Caso contrário não teria ocultado de nós o fato de ter

uma esposa. Se quer saber, ouvi-o apenas uma vez pronunciar o seu nome: foi

quando esteve doente e delirava por causa da febre! Chamou também por um tal de

Peter, provavelmente seu amante. Pobre Edmund! Se não fossem os meus

cuidados, ele não teria sobrevivido...

Com as mãos crispadas de encontro aos joelhos e os dentes cerrados, Nancy

sentia o sangue ferver-lhe nas veias. Num esforço supremo, procurava conter o

ímpeto de atirar-se sobre aquela doutorazinha atrevida, arranhar-lhe o rosto,

arrancar-lhe os cabelos, enfim, esganá-la! Que criatura petulante e insuportável!

Como se não bastasse tentar descaradamente conquistar Edmund, ainda se

vangloriava pelo fato de ter sido a responsável por sua cura.

— Eu lhe agradeço muito essa sua dedicação a Edmund — respondeu

Nancy, controlando seu ódio.

Sônia soltou uma gargalhada estridente.
— Não precisa agradecer. Não fiz isso por você, minha querida, mas por mim!

Conheci Edmund no Rio de Janeiro, durante um jantar em casa de meus pais, e

depois encontrei-o mais uma vez em Brasília. Decidi então me oferecer como

voluntária ao Serviço de Proteção ao Índio, na esperança de reencontrá-lo. Estou

apaixonada por Edmund e sei que ele também está por mim! É por isso que me sinto

no direito de permanecer aqui, ao lado dele. Eu o amo mais do que você.

— Pode até ficar, se quiser. Mas não espere que eu vá embora. Sou a esposa

dele, lembra-se? Quanto a você...

Deixando que a outra deduzisse o resto, Nancy afastou-se, embora soubesse

estar desobedecendo às ordens de Edmund para manter-se na sombra. No entanto,

era impossível suportar por mais tempo a companhia daquela mulher. Caminhou

sem rumo através da clareira, atormentada pelas palavras de Sônia martelando em

seu cérebro: "Eu o amo mais do que você... e ele também me ama". Talvez aquilo

fosse verdade e, como ela já suspeitava, era Sônia a verdadeira razão pela qual

Edmund desejava permanecer no Brasil. Mas não tinha motivo para se surpreender.

Afinal, ambos possuíam tanta coisa em comum... Além disso, ela salvara a vida de

Edmund!

Sem se dar conta do quanto já se afastara da aldeia, Nancy embrenhou-se

por um atalho, contornando as frondosas árvores, cujas folhas cintilavam ao brilho

do sol. A seu redor, bandos de macacos barulhentos saltavam de galho em galho

fazendo alarde, mas ela parecia ignorá-los.

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O suor lhe escorria pelas costas e pernas, e a cabeça latejava cada vez mais

quando percebeu que nem ao menos sabia onde se encontrava. E isso por acaso

importava? Nada mais fazia sentido agora que sabia do amor de Edmund por outra

mulher. Talvez Sônia estivesse blefando, mas o estranho comportamento do marido

eliminava tal hipótese. A maneira como a rejeitava, a tentativa de convencê-la a

voltar a Brasília, o repúdio dele quando a beijara na noite anterior e, enfim, a

indiferença com que a vinha tratando todo esse tempo... Tudo isso comprovara que

Sônia lhe dissera a verdade.

Cega pelas lágrimas, Nancy tropeçou na raiz de uma árvore, estatelando-se

no chão e sem forças para levantar-se. No mesmo instante, uma dúzia de mãos

vieram em seu socorro e ela se viu rodeada por um grupo de jovens índias, todas

nuas, que a olhavam com uma expressão de ansiedade. Uma delas tocou-lhe o

braço suavemente, procurando chamar sua atenção para algum ponto entre as

folhagens. Nancy percebeu então o reflexo do sol nas águas do rio.

Gesticulando sem parar, a índia tentava transmitir-lhe o convite para que se

banhasse, em companhia delas, naquelas águas tranqüilas. Nancy balançou a

cabeça concordando e, pouco depois, também se despia. Por sorte lembrara-se de

vestir o biquini por baixo da roupa, embora aquelas duas minúsculas tiras de pano

causassem nas mulheres um espanto maior do que se estivesse nua.

Por algum tempo Nancy esqueceu-se completamente de seus problemas.

Nadou e brincou alegremente, cativada pela espontaneidade daquelas criaturas tão

naturais. Sentou-se com elas na areia da praia e ensinou-as a desenhar castelos e

outras figuras, no chão úmido, com um pedaço de galho seco. Depois, unindo-se a

um grupo de crianças, participou de suas brincadeiras, exultando com elas por

aquele contato alegre e descontraído. De repente ficou imóvel e seus olhos

arregalaram-se ao notar uma enorme sombra, parecida com um peixe, próxima a

seus pés. Ainda paralisada pelo medo, abriu a boca para gritar por socorro quando,

de repente, o monstro emergiu espirrando água por todos os lados e, quase ao

mesmo tempo, Edmund surgiu à sua frente.

— O que está fazendo aqui?! — indagou ela, perplexa.
— Estava procurando por você — respondeu ele, esfregando os olhos para

eliminar o excesso de água — Você está louca? Por que se afastou sem avisar

ninguém? Faz um tempão que estou tentando encontrá-la!

— Eu... eu... não pude agüentar mais os absurdos que Sônia estava me

dizendo. Pensei melhor e... Bem, decidi voltar para o Posto Diauarum com Carlos.

Ela pode ficar aqui com você, se é o que deseja.

Edmund franziu as sobrancelhas, olhando-a com um ar divertido.
— O que deu em você agora? O avião já partiu há mais de uma hora. Carlos

não podia esperar que a encontrássemos pois precisava levar logo o índio enfermo.

Mas o que Sônia lhe disse para deixá-la assim tão furiosa?

— Desejava ficar aqui com você no meu lugar. Ela acabou indo embora?
— Mas é claro! Seria inútil continuar insistindo em ficar. Além disso, ela está

acostumada a obedecer ordens. Não é como você... Cheguei a pensar que você

estivesse perdida na mata.

— Eu...

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— Não se atreva a repetir uma loucura dessas, está entendendo?
— Pelo que vejo, esse privilégio é só seu, não é mesmo? Você pode sumir

por semanas, meses ou até mais de um ano sem me dar a menor notícia, ao passo

que eu, alguns minutos que desapareça das suas vistas, torno-me imediatamente

motivo para confusão! — retorquiu ela, quase afundando na areia, por ter se

esquecido de movimentar os pés.

— Que lugares estranhos você escolhe para discutir! — zombou ele

afetuosamente.

— Foi você quem veio aqui atrás de mim, lembra-se? E eu não estava

discutindo, apenas expondo o meu ponto de vista. Agora pode entender como me

senti quando desapareceu? Pode imaginar o quanto fiquei preocupada e ansiosa,

sem ter a menor idéia de onde você se encontrava? E não foi só por uma hora,

não... Mas por dezesseis longos meses!

— Era só ter perguntado a Peter. Ele sabia — afirmou Edmund, deitando-se

de costas para boiar.

— Foi o que fiz várias vezes! Mas ele sempre se esquivava, garantindo que

você pedira para não me contar. Algum tempo depois, disse ignorar seu paradeiro

tanto quanto eu.

Ela começou a nadar de volta à praia. Edmund fez o mesmo, mantendo-se a

seu lado até atingirem a areia. As índias então aproximaram-se de Nancy e,

tomando-lhe gentilmente a mão, conduziram-na para trás de uma árvore.

Tranqüilamente ela se deixou levar pois pressentia algum tipo de homenagem. De

fato, com humildade, as mulheres a enfeitaram com alguns colares e pulseiras feitos

de sementes e penas coloridas. Em seguida, trouxeram-na novamente para o lado

de Edmund, formando um círculo em volta deles.

— Acho que elas estão esperando alguma manifestação da minha parte.
— Talvez devesse pintar o rosto com tinta preta e vermelha e colocar penas

nos cabelos — brincou Nancy, encabulada com aquela situação.

— Gostaria mais de mim, assim?
Surpresa com o tom suave da voz de Edmund e com aquela pergunta

inesperada, Nancy sentiu o coração acelerado.

— Não. Gosto de você desse jeito, como sempre foi!
Edmund inclinou-se e beijou-a longamente nos lábios. Pelo resto do dia

Nancy sentiu-se flutuando no mundo encantado dos sonhos!

Voltaram para a aldeia acompanhados pelas índias e suas crianças; que

caminhavam excitadas como se exaltassem um casal de noivos através da floresta

fascinante.

Um dos chefes, que falava um pouco da língua deles, conduziu-os até as

cabanas, e Nancy teve a oportunidade de conhecer a maravilhosa arte daquela tribo.

Conhecidos como "fazedores de potes", trabalhavam o barro com muita habilidade,

produzindo peças de linhas harmoniosas e bastante decorativas. Alguns potes eram

enormes e neles serviam mandioca e milho. E os graciosos cântaros bojudos

serviam para transportar água. Esculpiam também no barro algumas figuras

decorativas como jacarés e onças. Fascinada com tanta beleza, Nancy não

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conseguia conter uma exclamação de surpresa a cada peça que lhe mostravam.

— Não se entusiasme em levar muita coisa ou vai acabar tendo problemas

com a alfândega quando voltar à Inglaterra. — Apesar do aviso de Edmund, não foi

possível recusar a enorme quantidade de presentes que haviam recebido. Depois

apreciaram um suculento peixe assado na brasa e por fim foram homenageados

com uma demonstração de dança executada no terreiro, sob o clarão da lua cheia.

Sentados num velho tronco de árvore, Nancy e Edmund admiravam os

movimentos cadenciados dos incansáveis dançarinos ao som do tambor. Eram seis

homens vestindo tangas feitas de palha amarela e usando cocares de penas

coloridas. Pulavam e batiam os pés no chão sob os olhares de admiração da platéia.

Não resistindo àquela dança frenética e contagiante, uma criança juntou-se a eles,

provocando o riso dos demais, até que sua mãe a pegou no colo e a levou para

longe.

Nancy estava tão hipnotizada pela beleza daquela apresentação que só bem

depois tomou consciência da proximidade de Edmund: a coxa forte e musculosa

pressionava a sua e, subitamente, aquele contato criava um clima de mistério e

magia. Seu coração quase explodiu quando ele passou o braço ao redor de sua

cintura, provocando-lhe uma deliciosa sensação. Num gesto extremamente sensual,

ele pressionou os dedos em seu corpo, de maneira sugestiva, puxando-a para perto

de si, para a cama — ele sussurrou com a voz rouca de desejo.

— Sim, aliás, onde fica a cabana que nos foi oferecida? Você sabe qual é?
— Sim, fica do outro lado da clareira.
— Não acha melhor avisá-los de que vamos nos recolher? Podem ficar

ofendidos se sairmos antes da dança terminar.

— Não se preocupe, o chefe já sabe que não ficaremos até o fim. —

Edmund sorriu com malícia, provocando em Nancy um arrepio de prazer.

— Ele foi muito compreensivo. Venha, vamos!
Segurando-a pela mão, Edmund a conduziu por entre as cabanas,

escolhendo os locais mais escuros para não serem vistos retirando-se.

Estava quente e abafado dentro da cabana, iluminada apenas pela débil

chama da lamparina à querosene.

— Oh!, só há uma rede! — exclamou Nancy, desapontada ao olhar para a

cama de tecido sob o cortinado de tule — É melhor voltarmos e pedirmos duas.

— Não há necessidade — disse ele tirando a camisa — Esta aqui é grande o

suficiente para nós dois.

— Você quer dizer...
Percebendo que ela estava indecisa, Edmund aproximou-se com um sorriso

tentador e perguntou suavemente:

— Pretende se deitar com estas roupas ou quer que eu a ajude a tirá-las?
— Você tem certeza? - indagou ela desabotoando a blusa.
— De quê?
— De que deseja dormir comigo. A noite passada você...

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— Esqueça a noite passada — disse ele, bruscamente, enquanto pendurava

as roupas de Nancy na corda da rede — Nossa maior dificuldade, como sempre,

será deitar neste ninho sem deixar entrar esses malditos pernilongos. Já está

pronta?

— Estou.
Com movimentos rápidos e precisos Edmund abriu uma pequena fresta do

cortinado e ajudou-a a acomodar-se na rede. Para sua surpresa havia duas cobertas

macias, feitas de algodão. Uma para forrar o leito e outra para se cobrirem.

— Tire as botas e passe-as para mim — ordenou Edmund.
De repente, como se não tivesse vontade própria, Nancy obedecia,

completamente submissa, às instruções que Edmund lhe dava com calma e

naturalidade.

Instalada confortavelmente, Nancy sentia a maciez do tecido de encontro à

pele. Sua impressão era de que as batidas rápidas de seu coração ecoavam dentro

da cabana como o som dos tambores lá fora. Ainda doía-lhe um pouco a cabeça,

mas preferiu ignorar o ligeiro mal-estar.

A rede era de fato bastante larga para acomodar duas pessoas bem juntas,

uma nos braços da outra. O simples pensamento de que dormiria ao lado de

Edmund fez seu coração bater mais forte e sentir um desejo intenso queimando-lhe

a pele.

A lâmpada de querosene se apagou, deixando no ar um cheiro acre de

fumaça, fazendo-a espirrar.

— Espero que esta coisa toda não despenque no meio da noite — disse

Edmund rindo.

Nancy sentia o calor das pernas fortes de encontro as suas, e um arrepio

percorreu-lhe o corpo todo quando ele passou os braços ao redor de seus ombros,

aninhando-a no aconchego do peito másculo.

— Está confortável? — sussurrou ele com ternura em seu ouvido.
— Sim, obrigada.
— Sim, obrigada! Não, obrigada. Você tem sempre que ser tão educada

assim?

— Não posso evitá-lo. É um hábito que me foi incutido na escola desde

pequena. E por tia Marsha também.

— Você a tem visto ultimamente?
— Não. Ela me qualificou de um caso perdido quando não dei ouvidos aos

conselhos que me deu sobre você.

— Ela a preveniu contra mim?! Quando?
— Naquele dia em que nos conhecemos em Southleigh. Tia Marsha

aconselhou-me a não me envolver com você e, quando me recusei, chamou-me de

tola.

Houve um breve silêncio antes que Edmund falasse novamente.
— Talvez ela estivesse com a razão. Você estaria mais feliz agora se tivesse

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Flora Kidd

Selva de Prata

65

se casado com um homem como Peter. Ele faria tudo por você, estaria sempre a

seu lado, construiria um verdadeiro lar... Não compreendo por que não pediu o

divórcio ainda!

— Eu não podia. Não sem vê-lo antes, Edmund.
— Peter garantiu-me não ser necessário, uma vez que eu havia concordado

com a separação. Prometeu manter-me informado sobre o andamento do processo.

No entanto, não me mandou nenhuma notícia.

— Escreveu a ele?!
— Poucas vezes. Você sabe como sou quando se trata de correspondência...
— E por que não me escreveu?
Ele demorou alguns instantes para responder.
— Achei que não queria mais saber de mim, depois do que aconteceu —

murmurou, enrolando entre os dedos uma mecha dos cabelos de Nancy. — Oh,

Deus, se soubesse o quanto me sentia miserável...

A sinceridade dele comoveu Nancy.
— A culpa foi minha, Edmund. Confesso que estava amedrontada, mas não

devia ter me comportado daquela forma. Não fiz nenhum esforço para me aproximar

de você, para entendê-lo. Nós nos conhecíamos tão pouco e depois... depois, Peter

me fez acreditar que você provavelmente não me era fiel quando viajava.

— Peter. Peter, Peter! Parece que ele está sempre entre nós. Nós nos

comunicávamos sempre através dele, em vez de falarmos diretamente um com o

outro.

— Sei disso. Naquela noite, voltei ao apartamento bem mais calma, para

dizer-lhe o quanto estava arrependida, mas você não voltou. E no dia seguinte

também não... Oh! Edmund, foi horrível.

As lágrimas rolavam livremente por seu rosto. De repente, sentia-se mais

leve. A angústia e o sofrimento causados por tantos meses de solidão e remorso

pareciam ter desaparecido como por encanto. Enfim, podia falar com toda

sinceridade, abrir seu coração, admitir sua culpa por ter agido tão imaturamente.

Aquele era um momento mágico, o tempo havia parado e nada mais existia.

Edmund a estreitava nos braços, murmurando palavras de ternura e compreensão.

Beijou-a carinhosamente a princípio, para em seguida tornar-se mais exigente, cheio

de desejo e paixão. Os lábios dele desciam-lhe pelo pescoço, sugando-o, enquanto

as mãos deslizavam pela pele macia de suas coxas. Fechando os olhos, Nancy

limitou-se a gozar aquelas carícias ardentes que reavivavam cada centímetro de seu

corpo.

— Nancy... você sabe que eu a quero, mas tem certeza de que também me

deseja? Não pretendo assustá-la novamente.

Nancy apertou-se contra ele, queimando de desejo.
— Oh, sim, por favor, Edmund, faça amor comigo. Agora, meu bem! Tenho

esperado tanto por esse momento... Há muito tempo! Foi por isso que vim para o

Brasil, porque quero ficar a seu lado, amá-lo e ser amada.

Edmund então não esperou mais. Com uma ânsia febril, buscou os seios

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Flora Kidd

Selva de Prata

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macios, aprisionando os bicos duros e eretos em sua boca, fazendo-a gemer de

prazer. Pouco a pouco, foi percorrendo os lábios por todo o corpo macio de Nancy,

que se debatia, suplicando que ele a possuísse.

Num movimento rápido, Edmund puxou-a para cima dele. Os longos cabelos

de Nancy formavam uma cortina de seda sobre seu rosto. Segurando-a firmemente

pelas nádegas redondas e sensuais, ele a penetrou com sofreguidão, levando ao

delírio aquele corpo ardente.

Naquela noite ela amou e foi amada de uma maneira diferente. O balanço da

rede com seu ritmo indolente, o soar dos tambores numa cadência perfeita, os sons

misteriosos que ecoavam da floresta... tudo os envolvia numa sinfonia mágica e

exótica, acompanhando-os naquela dança febril cujos passos, jamais ensaiados mas

plenos de harmonia, os conduziam ao clímax do prazer.


CAPÍTULO VII
Sem entender o que estava acontecendo, Nancy despertou com terríveis

pontadas no abdome, que a faziam contorcer-se e encolher as pernas de dor. Lá

fora, o estrondo de um trovão anunciava uma tempestade. Tentando ignorar a

ambos, movimentou o corpo suavemente, procurando distrair-se com o vaivém da

rede. A seu lado, Edmund dormia, com a cabeça apoiada em seu peito, totalmente

relaxado e entregue a um sono profundo. Nancy sorriu para si mesma. Ah, que noite

maravilhosa! Valia a pena o braço adormecido e doído só pelo prazer de ter Edmund

junto a si. Apesar do pouco espaço, tinha de admitir que aquele reencontro, pleno de

harmonia e prazer, não deixara nada a desejar. Pena não ter sido sempre assim,

desde o primeiro dia em que chegara ao Posto Diauarum. Mas... Edmund estava

certo. Precisaram de tempo para esquecer e perdoar os erros de ambos. Haviam

sido ingênuos em acreditar em Peter, cujo ciúme doentio quase destruíra aquele

casamento. Era preciso que, dali para frente, tivessem um relacionamento baseado

na confiança mútua, removendo os possíveis obstáculos que sur-gissem.

Um novo clarão iluminou o interior da cabana e Nancy estremeceu de pavor.

A dor continuava intensa, mas, agora, vinha acompanhada de náuseas

insuportáveis. Tinha de levantar-se, e, não querendo acordar Edmund, retirou o

braço com cuidado. Ergueu-se lentamente, procurando sair da rede sem movimentá-

la. Não houve tempo para vestir-se ou calçar as botas, e apenas jogou a camisa

sobre os ombros e correu descalça para fora da cabana.

Um raio iluminou o caminho e ela divisou facilmente uma árvore sob a qual se

escondeu. Bem mais agradável seria se estivesse no Posto Diauarum com o

conforto de um banheiro, coisa que mais necessitava naquele momento.

Tremendo de frio e de fraqueza, segurou-se num galho para não cair. Sua

cabeça latejava tanto que ela mal conseguia ver ou raciocinar. Um pouco mais

aliviada, pensou em voltar para junto de Edmund, mas foi outra vez invadida por

uma onda de enjôo.

Depois de várias tentativas, retornou cambaleante sob a chuva forte que

enfim desabava.

— Onde esteve?! — perguntou Edmund, assustado, quando a viu toda

molhada e muito pálida.

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Flora Kidd

Selva de Prata

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— Eu... eu estou mal.
Ele se levantou rapidamente, pegou um dos cobertores para aquecê-la e

deitou-se com ela, envolvendo-a nos braços.

— Esteve indisposta o dia todo, não é?
— Sim. Acordei muito enjoada e com dor de cabeça.
— Então, por que insistiu nesta viagem?!
— Eu... eu queria estar com você. Foi a primeira vez que me convidou e... eu

não podia recusar só por causa de uma indisposição à toa.

— De qualquer forma foi uma imprudência de sua parte. Só a convidei

porque, caso contrário, Carlos o faria. Aliás, para ser sincero, eu tinha pressentido

alguma coisa errada em você há muito tempo.

— Por outro lado, se eu não estivesse aqui, nós não... Ai, a dor está voltando!
Edmund a estreitou mais procurando confortá-la.
— Foi um erro não ter deixado você ir embora com Carlos, em vez de Sônia.
— Ela está apaixonada por você.
— Como sabe?!
— Ela mesma me confessou. E mesmo que não o fizesse, qualquer um teria

percebido pela maneira como o recebeu no Posto Leonardo.

— Ora, que bobagem! Aquilo foi apenas um abraço. As pessoas daqui

sempre se cumprimentam desta forma quando se encontram.

— E o que me diz do jantar no Rio de laneiro, em casa dos pais dela? E

também não sou cega: vi o seu entusiasmo ao conversar com ela ontem à noite.

— Quis apenas ser educado. Na verdade, mal ouvia o que ela falava. — Ele

deu uma risadinha. — Estava ocupado demais observando você e Carlos. Pela

maneira como ele a monopolizou até pareciam velhos amigos se reencontrando.

Teve até a petulância de beijar a sua mão ao dizer-lhe boa-noite!

— Como sabe? Você nem estava lá.
— Pois está enganada. Eu me encontrava bem atrás de vocês.
— Pensei que tivesse saído com Sônia.
— Não. Fiquei conversando com Carlos depois que você foi se deitar.
— Ele é muito gentil.
— Está insinuando que eu não sou?
— Para falar francamente, com os outros você é, mas comigo não. É por

causa de Sônia que não quer voltar para a Inglaterra, não é? Responda, Edmund,

eu preciso saber...

Ele pousou a mão sobre a testa de Nancy.
— Você está com febre.
— Minha pele está ardendo e sinto a boca seca. Por favor, arranje-me um

pouco d’água e me diga o que deseja de mim. Por favor, por favor... diga-me!

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Flora Kidd

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— Você está delirando e não sabe o que diz, Nancy.
— Sei sim — afirmou ela, desesperada. Era preciso fazê-lo entender o conflito

em que estava vivendo. — A verdade é muito importante para mim, Edmund!

Preciso saber antes de voltar à Inglaterra.

— Saber o quê? Não estou entendendo.
— Se quer realmente o divórcio para casar-se com Sônia. Ah, Edmund,

aonde vai? — perguntou ela, aflita, sentando-se na rede.

— Arranjar um remédio para abaixar a sua temperatura e outro para aliviar

essa dor. Não me demoro.

Extenuada, ela se deitou novamente. Tudo girava à sua volta, e ela não

enxergava mais nada. Sentiu alguém segurar o seu braço mas, apesar do esforço,

não conseguiu identificar quem era. A cabeça tombou para trás e perdeu a

consciência.

Quando voitou a si, estava sendo carregada numa improvisada maca, feita

com uma rede presa a duas hastes de madeira. Ao seu redor o luxuriante verde das

bananeiras desenhava figuras exóticas sob o azul do céu. No momento em que a

colocaram no chão, um rosto surgiu à sua frente, exibindo um par de olhos negros e

um largo sorriso afetuoso. Era Carlos.

— Bom dia, Nancy, está melhor? Pena ter ficado doente, mas ainda bem que

acordou. Está em condições de subir no avião com a minha ajuda?

— Onde está Edmund?
— Estou aqui — respondeu ele, segurando-lhe a mão.
Ela o olhou com ternura. Apesar da pele bronzeada, Edmund tinha um

aspecto abatido, com olheiras profundas. Luís havia lhe contado que ultimamente

ele se cansava com facilidade e que estava precisando de umas férias.

— Edmund, você devia dormir um pouco. Está muito pálido.
— Não se preocupe, Nancy, farei isso quando chegarmos ao Posto Diauarum.

Aliás, você também irá para a cama. Agora deixe-me ajudá-la a levantar-se.

Mover-se exigia tamanho esforço que Nancy jamais o teria conseguido sem

os braços fortes do marido.

— Estou péssima, Edmund. Vejo tudo rodando à minha volta.
— Está dopada, querida. Dei-lhe uma injeção ontem à noite para aliviar a dor.

Mas você logo ficará boa, não se preocupe. Agora vou erguê-la e passá-la para

Carlos. Ele a acomodará no banco de trás.

Dentro do avião, Edmund sentou-se ao lado de Nancy. Mesmo sob o efeito do

remédio, ela pôde ver vagamente os índios acenando-lhes em despedida. Gostaria

de ter se despedido pessoalmente daquele povo tão simpático e acolhedor, porém

mal conseguia erguer a mão para lhes responder. Ao se distanciarem da clareira,

seus olhos se turvaram e ela mergulhou novamente num estado de inconsciência.

Quando Nancy acordou estava deitada em sua cama, no pequeno quarto do

Posto Diauarum. A luz estava acesa e já havia escurecido. Aninhando-se no

aconchego dos lençóis limpos e macios, uma deliciosa sensação de conforto a

invadiu. Alguém a vestira com uma das camisolas de algodão que deixara em sua

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mala antes de partir para o Posto Leonardo. Subitamente um ruído de papel chamou

sua atenção para a pequena mesa na qual Edmund escrevia, muito concentrado.

— O que está fazendo, Edmund? — ela perguntou.
— Olá! Finalmente acordou. Estou redigindo o resultado da minha pesquisa.

— Ele se levantou e foi sentar-se à beira de sua cama. — Como se sente?

— Tenho a impressão de ter emagrecido uns dez quilos. É como se estivesse

vazia por dentro, como naquele dia em que perdi o bebê.

Ele ficou pálido e a olhou incrédulo.
— Que bebê?! — perguntou, segurando-a pelos ombros. Assustada com

aquela reação inesperada, Nancy não conseguia responder.

— Vamos, Nancy, me diga! Que bebê?!
— O... o nosso.
— Não posso acreditar...
— Oh, Edmund, sinto muito não ter lhe dito antes. Ele nasceu prematuro,

viveu apenas algumas horas.

— Mas por que diabos não me contou? Vamos, fale por que não contou, eu

preciso saber!

— Eu tentei, juro. Deus sabe como eu o procurei para lhe contar tudo, mas

ninguém sabia me informar sobre seu paradeiro! Recorri à Cruz Vermelha e àquele

Instituto para o qual você trabalha, entretanto também nada sabiam. Deram-me

apenas um endereço em Hampshire, para onde eu escrevi, mas...

— Peter sabia onde eu me encontrava.
— Sim, mas de que adiantaria? Já disse a você, ele se recusava a me

revelar. Sempre que eu tocava no assunto, alegava não poder contrariar a sua

vontade de se manter escondido, e oferecia-se para levar o meu recado a você.

Quando percebi suas verdadeiras intenções, insistindo em realizar o nosso divórcio,

afastei-me dele definitivamente, ocultando-lhe a minha gravidez. É verdade que você

lhe pediu para não me dizer onde se encontrava?

Com o rosto contraído de dor, Edmund balançou a cabeça de um lado para o

outro, negativamente. Em seguida, levantou-se e foi até a janela, permanecendo de

costas para Nancy.

— Apenas pedi para me comunicar sobre a sua decisão a respeito do

divórcio. Jamais exigi segredo quanto à minha vinda para o Brasil. — Ele se voltou

para ela com um olhar acusador — Se eu soubesse, teria voltado imediatamente

para o seu lado e cuidado de você... Quem sabe nem tivesse perdido o bebê...

Quando lhe perguntei outro dia se havia ficado doente você me respondeu muito

vagamente que sim. Estava se referindo ao bebê?

Nancy meneou a cabeça, concordando. Muito fraca e com medo de falar,

surpreendia-se com aquela atitude de Edmund, de tanta mágoa e pouca

compreensão.

Outra vez Edmund a fitou como se a odiasse por ter escondido dele a sua

gravidez.

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— E ainda por cima teve a coragem de me dizer que não era do meu

interesse! Por que não me falou a verdade quando lhe perguntei? A criança também

me pertencia, era uma parte de mim...

— Eu não podia. Você já havia me recebido com tanta hostilidade quando

cheguei que poderia pensar tratar-se de uma chantagem emocional para forçá-lo

a voltar para mim. Nunca imaginei que pudesse ficar tão magoado!

— Magoado?! Afinal, o que você pensa de mim?! Que sou feito de pedra?!

Sou um ser humano e tenho tanta sensibilidade quanto você. Não devia ter

escondido de mim algo tão importante para nós dois. — Ele se interrompeu e a

olhou com um sorriso cínico — Talvez o seu conceito sobre a importância de um

filho seja diferente do meu... Quem sabe até não desejasse esse bebê! — Dito isso,

retirou-se batendo a porta com violência.

Com o rosto banhado em lágrimas, Nancy permaneceu imóvel na cama, com

a sua dor, até adormecer.

Quando acordou, o sol já havia nascido e os periquitos em algazarra

matraqueavam empoleirados nos caibros do terraço. No banheiro, o som da água

escorrendo era acompanhado pelo assobio de Edmund. A cama dele estava desfeita

e, sobre ela, a mala aberta com suas roupas espalhadas por todo lado: camisas e

calças sujas amarrotadas e bem gastas. Era a alta moda da selva!

Nancy sorriu enternecida, desejou ir até o rio e lavar tudo, como havia visto as

índias fazerem. Desceu de sua cama e pôs-se a examinar as roupas dele com mais

cuidado. Realmente estavam em mísero estado; quase todas rasgadas e puídas,

precisando dos cuidados de mãos femininas.

— Estou vendo que não posso me afastar nem por um minuto sem que você

invente logo alguma novidade. Volte para a cama imediatamente, ainda não está em

condições de se levantar!

— Eu estou ótima. As suas roupas é que estão péssimas.
— E daí?
Vestindo apenas um jeans desbotado e muito justo que lhe colocava em

evidência as coxas musculosas, Edmund parecia lindo como um deus, mas frio e

arrogante como um demônio. O peito atlético coberto de pêlos ainda molhados

revelava sua virilidade. Com os olhos gelados e um sorriso irônico, ele continuava

olhando-a.

— Deixe isso! — ordenou bruscamente quando ela dobrava uma de suas

camisas. — Não precisa arrumá-las.

— Não me custa nada! Afinal, sou sua esposa e tenho esse dever.
— Como minha esposa deveria ter me acolhido com amor há dezesseis

meses atrás e me contado sobre o nosso filho. Agora volte para a cama, sra. Talbot!

— Oh, Edmund não me olhe assim, por favor. Você parece estar sempre me

acusando, mas não imagina como estou sofrendo pelo que aconteceu. Sinto muito.

Realmente!

— Me lembro de ter feito o mesmo apelo a você uma vez... Deite-se logo,

vamos!

— Mas a sua camisa... Está bem — ela cedeu por fim. — Sua camisa está

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sem nenhum botão.

— Claro. Você arrancou todos na outra noite, lembra-se? — Ele vestiu outra

camisa mais apresentável, enquanto Nancy agora deitada, pôs-se a observá-lo.

— Você tem idéia do que me causou esse mal-estar? — ela perguntou-lhe.
— Provavelmente a carne de porco-do-mato. É um alimento muito forte e

gorduroso e às vezes causa problemas em quem não tem o hábito de comê-lo. Está

com fome?

— Ainda não.
Edmund lhe falava de maneira fria, quase brusca. Seria possível que já

houvesse esquecido da noite passada a seu lado, na rede? Provavelmente não tinha

significado nada para ele, a não ser o prazer físico desprovido das emoções

profundas sentidas por ela. Ah!, como desejava que ele se sentasse a seu lado,

segurasse sua mão e a beijasse com ternura! Sentia-se a mais carente das

criaturas, ansiando por um pouco de carinho e de conforto num momento de aflição.

Parecendo adivinhar os seus desejos, Edmund foi sentar-se à beira de sua

cama, segurando-lhe a mão. Mas, para seu desapontamento, sua intenção era

apenas tomar-lhe o pulso. Alheio à sua angústia e muito sério, ele mantinha o olhar

fixo no relógio, concentrado na contagem das batidas.

— Está tudo bem agora, mas aconselho-a a comer alguma coisa senão ficará

muito fraca. Mas não exagere! No começo, nada de arroz e feijão, apenas uma sopa

de mandioca ou um caldo leve. Amanhã mesmo você embarcará para o Rio, de volta

à civilização.

Uma sensação estranha percorreu-lhe a espinha.
— Você não volta comigo?!
— Não! — respondeu ele, terminando de guardar suas coisas na mala —

Estou indo para a ilha do Bananal com Manuel, partiremos daqui a cinco minutos.

— Mas por que precisa voltar para lá?!
— Alguém avisou Luís sobre um surto de gripe entre as tribos da ilha. Embora

seja uma doença banal para nós, para os índios ela é fatal e muitos já estão

morrendo.

— Leve-me com você, Edmund, por favor!
— Não. O avião da Força Aérea chega amanhã e você e Rita partirão nele. Já

está tudo arranjado. Ela deseja rever os filhos e a convidou para hospedar-se em

sua casa até recuperar-se. Será ótimo para você, pois precisa de repouso.

— Você também está precisando. Não há outro médico que possa substituí-lo

nesta viagem? Talvez a dra. Meirelles?

— Ela também vai — disse ele, secamente. — Agora preciso ir pois estão me

esperando. Você vai ficar melhor indo com Rita para beira-mar.

Desesperada, Nancy levantou-se e segurou-o pelo braço com força, tentando

impedí-lo.

— Mas eu é quem deveria acompanhá-lo, e não Sônia!
— Mas eu não a quero junto de mim — disse ele, afastando-a de si. — Agora

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volte para a cama.

A crueldade daquelas palavras a fez cambalear com uma pontada de dor no

estômago. Percebendo sua intensa palidez, Edmund, aflito, largou imediatamente as

malas no chão para poder ampará-la.

— Parece que a estou sempre magoando, não é, Nancy? Escute, eu tenho

que ir! Sou um médico e meu dever é atender essa gente ou qualquer ser humano

que necessite de mim. Seria o mesmo se morássemos na Inglaterra, eu sempre teria

de deixá-la quando fosse chamado.

— Mas aqui é diferente, Edmund. Eu poderia ir com você. Se gostasse

mesmo de mim não me impediria, mas você não me ama, jamais me amou de

verdade!

Edmund se irritou novamente.
— Não posso mais perder tempo com discussões. Não percebe que é

arriscado levá-la para a ilha nestas condições? Você poderia pegar malária e eu me

sentiria responsável se algo de grave lhe acontecesse. Quanto à sua acusação

sobre meus sentimentos, posso usar o mesmo argumento: se tivesse amor por mim,

me deixaria partir, sem todo este espalhafato — ele sorriu com ironia. — Parece que

já passamos por isso antes, não é verdade?

Ele pegou as malas e dirigiu-se novamente para a porta, sendo seguido por

ela.

— Quando o verei outra vez?
— Não sei. Talvez dentro de uma semana. Irei para o Rio assim que houver

uma possibilidade.

— Meu vôo para Londres está marcado para a próxima quarta-feira. Também

tenho um trabalho lá, você se lembra?

— Tentarei chegar antes de sua partida, mas não prometo nada. Tudo é

muito imprevisível neste país, principalmente em relação às datas. — Ele abriu a

porta e antes de sair dirigiu um olhar bastante significativo para Nancy. — Se você

realmente me ama, ficará esperando por mim no Rio.

Dez minutos mais tarde, Nancy ouviu o ruído do avião decolando. Imersa em

seus próprios pensamentos, só percebeu a presença de Rita quando ela se sentou a

seu lado na cama. Ao ver a tristeza de Nancy, a amiga procurou consolá-la com pa-

lavras de carinho, embora tivesse o rosto banhado em lágrimas.

— Manuel e eu sempre choramos quando nos despedimos — Rita justificou-

se, comovida. — Mas você e Edmund são diferentes de nós: ambos estão tristes,

mas procuram não demonstrar o sofrimento que lhes causa o adeus, não é mesmo?

Nancy balançou a cabeça, ensaiando sorrir, entretanto não pôde.
— Pedi tanto a Edmund que me levasse à ilha, mas ele se recusou a fazer

isso. Tenho certeza de que foi por causa de Sônia.

— Ora, que absurdo você está dizendo! — Rita pousou a mão sobre a testa

de Nancy, como se consultasse a sua temperatura. — Não!... Você não está com

febre, no entanto está delirando!

— Não estou delirando, não. Edmund não me ama, ele...

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Selva de Prata

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— Como pode pensar dessa forma depois de toda essa preocupação com

você? Só não permitiu que o acompanhasse com receio de que você adoecesse

outra vez.

— É engano seu! Edmund se preocupa com todos os seus pacientes. Ele não

me ama e nunca me amou. O que sentiu por mim foi apenas uma atração física, por

isso apreciou os momentos de prazer que tivemos juntos. Na verdade, ele só ama o

seu trabalho.

O olhar de Rita era de compreensão quando apoiou a mão sobre o ombro de

Nancy, num gesto amigo.

— Eu entendo a sua desconfiança. Mas, olhe... Manuel não é diferente de

Edmund, não! No fundo, os homens são todos iguais... Sempre respondendo

evasivamente às nossas perguntas! Quando ele volta? Não sei. Agora só me resta

esperar — Rita sorriu, com paciência. — O que mais se pode fazer, não é mesmo?

— Sim, mas...
Ela colocou um dedo sobre os lábios de Nancy.
— Nem mais, nem menos... Agora você vai se alimentar um pouco. Está

muito deprimida, e se sentirá melhor quando tomar uma sopinha leve e depois

dormir um pouco.

— Estou sem fome.
— Eu sei, mas é preciso. Amanhã voaremos para o Rio, e lá vamos passear e

nos distrair bastante enquanto nossos maridos não chegam. Está bem? — Ela se

levantou e, com um ar maroto, deu uma piscada para a amiga. — Não se preocupe

com Sônia, Edmund jamais trocaria você por ela! Agora, vou preparar alguma coisa

para comermos.

Embora mais animada pelas palavras de Rita, Nancy ainda se sentia

insegura. Edmund viajara magoado com o que ela lhe contara sobre o bebê e isto a

preocupava. Lembrava-se de uma vez em que ele partira, depois de uma discussão,

e da angústia que sofrera, temendo não vê-lo mais. Todavia Edmund retornara. Mas

ela não se encontrava em casa, e sim passeando o dia todo em companhia de outro

homem! Como estava arrependida! Sem dúvida, Peter também fora o responsável

pelos desentendimentos entre ela e Edmund. Entretanto, apesar de tudo, quase

tiveram a chance de uma segunda lua-de-mel. Seria possível que agora deixasse os

ciúmes de Sônia arruinarem aqueles momentos tão felizes?! Faria a tolice de

permitir a intromissão de uma terceira pessoa entre eles outra vez?! Não iria cometer

os mesmos erros do passado. Sônia que fosse para o inferno! Confiaria em Edmund,

seu marido, e esperaria por ele, não importando o quanto demorasse.

Com os olhos cheios de lágrimas, Nancy recebeu os presentes das mãos de

índios da tribo com a qual convivera no Posto: pentes feitos de madeira, cestas de

palha e até uma daquelas faixas coloridas igual à que Edmund usava. Todos lhe

pareciam bem mais valiosos do que os caramelos, sabonetes e cigarros distribuídos

por ela.

Sua aventura na selva chegava ao fim. Porém não estava segura quanto ao

resultado. Conseguira encontrar Edmund, mas ainda não tinha a certeza do seu

amor. Haviam se despedido às pressas e, considerando seu estado de espírito

bastante perturbado ao partir para a ilha do Bananal, era impossível fazer qualquer

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Selva de Prata

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suposição.

Chegaram a Brasília momentos antes de tomarem um vôo regular para o Rio

de Janeiro, onde a irmã de Rita, Maria Martins, as aguardava em companhia dos

sobrinhos. O reencontro entre mãe e filhos foi maravilhoso e Nancy não pôde deixar

de comover-se vendo-os abraçarem-se com tanta euforia.

No pequeno carro de Maria, dirigiram-se para a residência de seus pais, do

outro lado da cidade. Durante o trajeto, Nancy ficou entusiasmada com a beleza

exótica e deslumbrante daquela cidade maravilhosa. Estranhou o trânsito

intempestivo do Rio de Janeiro, bem diferente do trânsito calmo e controlado de

Londres. Arrepiava-se, assustada com a impressão de que fossem bater a qualquer

momento. Maria, no entanto, permanecia tranqüila, conversando e rindo com a irmã

enquanto dirigia, como se estivesse sozinha na pista.

A casa dos pais de Rita, situada num dos bairros mais elegantes do Rio,

ficava no alto de um morro, bem de frente para o mar. Rodeada por um imenso

jardim, possuía a fachada toda em arcos, no estilo Mediterrâneo.

Rita explicou a Nancy não poder apresentar-lhe o sr. e a sra Martins porque

eles estavam viajando e só retornariam no Carnaval, dali a duas semanas. Assim,

foram recebidas por Dalva, a governanta, uma mulher morena, gorda e sorridente,

que usava um uniforme cor-de-rosa com detalhes com organdi branco.

O calor intenso e a longa viagem deixaram Nancy ansiosa por um bom banho,

antes de descansar um pouco. Como que adivinhando seus pensamentos, Rita

conduziu-a ao quarto de hóspedes no andar de cima. O aposento era muito bonito e

amplo, guarnecido por duas camas de solteiro, um pequeno terraço com vista para o

mar, e um banheiro privativo.

Mergulhando o corpo cansado na água morna da banheira, Nancy

abandonou-se ao prazer de um banho demorado e reconfortante. Ali, envolta pela

espuma perfumada, pensou em Edmund enfrentando o calor da ilha e importunado

pelos mosquitos. Comparado ao desconforto da selva, ela se sentia agora no

paraíso.

Desfez a mala que havia deixado em Brasília quando viajara para o Posto

Diauarum. Depois, escolheu uma saia de algodão estampada de verde e azul e uma

camiseta branca sem mangas. Ao olhar-se no espelho, foi invadida por uma

sensação de desânimo: estava muito magra e abatida. Nem mesmo a maquilagem

disfarçava as olheiras e a palidez de seu rosto.

— Alguns dias aqui e você estará em forma outra vez, Nancy — disse-lhe

Rita, sorrindo, enquanto jantavam. — Iremos à praia todos os dias e nos

bronzearemos ao sol. Garanto-lhe que será o suficiente para lhe abrir o apetite.

Pretendo levá-la para conhecer os nossos principais pontos turísticos: o Corcovado,

o Pão de Açúcar e outros lugares lindos! Quando menos esperar, Edmund e Manuel

já estarão de volta, você vai ver!

Nos dias seguintes Nancy mal teve tempo de respirar, pois Rita cumpriu sua

palavra à risca. Excursionaram por todos os recantos da cidade, desde os mais

elegantes até os mais pobres e simples.

À medida que o fim de semana se aproximava, Nancy foi ficando tensa outra

vez. "Será que Edmund chega na quarta-feira?", ela se perguntava na calada da

noite, sozinha em seu quarto. Não conseguia pensar em outra coisa, embora

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Selva de Prata

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procurasse concentrar-se no texto que estava redigindo para a sua revista.

Enfim chegou o dia tão esperado! Animada, Nancy levantou-se cedo,

arrumou-se toda e foi para a cidade, com Rita, fazer algumas compras. Depois de

almoçarem num ótimo restaurante, cuja especialidade eram frutos do mar, voltaram

para casa. Procurando manter-se tranqüila, Nancy suportava cada minuto daquele

dia interminável, tentando não se deixar dominar pela aflição da espera.

À tardezinha, resolveu levar as crianças até a praia, procurando distrair-se e

relaxar banhando-se nas ondas frias do mar até quase anoitecer. Ao retornar à

mansão, entrou esperançosa, certa de que seria recebida por Edmund e Manuel.

Mas não havia ninguém e também nenhuma chamada telefônica fora feita para ela.

A tão ansiada quinta-feira chegou, mas foi-se embora sem que os homens

dessem a menor notícia. Nancy cancelara o vôo para Londres e telegrafara a Ben

explicando o motivo de ter adiado a viagem: esperar Edmund.

O dia seguinte amanheceu mais quente e abafado do que qualquer outro

desde sua chegada ao Rio. Triste e melancólica, Nancy sentou-se à mesa para

tomar o café da manhã, sem ânimo nem mesmo para cortar o pão.

— Ora, o que é isso, Nancy? Não fique tão deprimida, eles logo estarão de

volta — Rita tentou reanimá-la com um sorriso.

— Hoje vamos a Petrópolis visitar os pais de Manuel.
— E onde fica Petrópolis?
— Nas montanhas. O clima lá é bem mais fresco e você se sentirá em seu

ambiente. Além do mais, será ótimo para fazer o tempo passar mais depressa: tanto

para mim, quanto para você.

— E se por acaso eles chegarem enquanto estivermos fora? Edmund poderá

pensar que eu voltei para a Inglaterra na quarta-feira, conforme estava marcada a

minha passagem.

— Não se preocupe. Dalva lhes dirá para onde fomos e quando voltaremos...

— Rita sorriu e deu uma piscada marota — e, para variar, desta vez "eles" ficarão à

nossa espera. O que acha?

Nancy ficou alguns instantes pensativa. Talvez Rita estivesse com a razão. A

viagem ajudaria a distraí-las e, desde que Dalva os avisasse, não havia motivo para

preocupação.

Assim, mais uma vez Nancy abandonou-se ao prazer de desvendar as

belezas daquele país cuja grandeza parecia não ter limites. A casa dos pais de

Manuel era muito rústica e sem luxo. Encravada na montanha verdejante, dava a

impressão de um velho chalé inglês, o que a deixou fascinada. As duas amigas

dormiram ali, naquela noite, e passaram quase todo o dia seguinte com a mãe de

Manuel, que insistia para que ficassem pois queria usufruir a companhia dos netos

por mais tempo. No sábado chegaram finalmente ao Rio, quase na hora do jantar:

Nancy subiu ao seu quarto, ansiosa para estar sozinha. Mais dois dias haviam se

passado e nada de Edmund! Quanto tempo ainda teria de esperar por ele?

Procurando não se atormentar mais com perguntas inúteis, ela tomou um demorado

banho de chuveiro. Escolheu um elegante vestido de malha verde de gola alta, para

a noite, que lhe caía perfeitamente bem, modelando seu corpo e acentuando as

suaves linhas dos quadris e das coxas.

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Selva de Prata

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Os dias de descanso e lazer haviam embelezado os traços do rosto e ela

exibia um bronzeado intenso nos ombros nus e nas pernas bem torneadas,

reveladas pela fenda do vestido. Sandálias brancas e confortáveis completavam o

traje descontraído. Ao descer as escadas, Nancy ouviu vozes na sala de visitas. Seu

coração deu um salto no peito, sentindo as pernas trêmulas, mal conseguia

caminhar.

— Oi, Nancy, eu já ia chamá-la — exclamou Rita ao vê-la. Veja quem está

aqui!

Sentados no sofá, Carlos e Manuel conversavam animados enquanto bebiam

cerveja.

— Onde está Edmund?! — perguntou ela, desapontada. No mesmo instante,

Carlos levantou-se e veio ao seu encontro, envolvendo-a num longo e carinhoso

abraço.

— É tão bom vê-la de novo, Nancy! Como eu gostaria que não fosse casada

com aquele homem insensível! Você bem poderia ser a minha esposa...

— Ora! Não brinque, Carlos. Onde está meu marido?
— Para falar francamente, pensávamos encontrá-lo aqui com vocês. Edmund

e Sônia deixaram a ilha do Bananal na quarta-feira cedo, rumo à Brasília. De lá

deveriam ter tomado um avião comercial para cá. Edmund estava aflito para chegar

ao Rio.

— Mas então o que teria acontecido?!
— Não sabemos. Mesmo se ele só tivesse conseguido passagem para o dia

seguinte, já deveria estar aqui desde ontem.

Nancy tinha as palmas das mãos geladas e a garganta seca. Olhou para Rita

com um ar de desespero.

— Alguém nos procurou enquanto estivemos fora?!
— Perguntei a Dalva e ela me disse que ninguém esteve aqui, mas houve um

telefonema para você.

— Para mim?! Então deve ter sido Edmund!
— Não. Era uma voz de mulher.
— Uma mulher?!
— Sim. Perguntou se você estava aqui, mas desligou antes de Dalva lhe dizer

quando voltaríamos.

— Não posso imaginar quem possa ser. Não conheço ninguém aqui no Rio

além de você e sua família.

— Talvez fosse a moça da companhia aérea, desejando saber sobre a sua

reserva.

— Não acredito — falou Carlos muito sério. — Uma pessoa desse tipo teria

deixado algum recado para Nancy.

— Mas quem seria então?! — indagou Nancy, à beira de uma crise nervosa.
Carlos olhou para Rita com as sobrancelhas franzidas.

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— A mulher falava em inglês ou em português?
— Português é claro. De outra forma Dalva não a entenderia.
— Tinha sotaque?
— E como posso saber, Carlos?! .
— Pergunte a Dalva. Se ela era mesmo brasileira, tenho um pressentimento

de que sei quem telefonou: Sônia.

— Sônia?! — exclamaram todos ao mesmo tempo.
— Sim — confirmou ele, com um brilho estranho no olhar
— Aquela mulherzinha é mais maquiavélica do que vocês imaginam. Acho

melhor telefonarmos para ela e verificarmos se está lá. Os dois deixaram a ilha do

Bananal juntos, portanto Edmund ainda deve estar com ela. — Ele olhou para

Nancy, percebendo a palidez em seu rosto. — Oh!, desculpe-me, Nancy, às vezes

falo sem pensar. Provavelmente não há nada de errado, mas precisamos saber

porque seu marido não apareceu por aqui. O único jeito de saber é perguntarmos

para Sônia.

— Pode deixar comigo — exclamou Rita no mesmo instante.
— Vou telefonar agora mesmo para a casa dela. Manuel, por favor, prepare

um drinque para Nancy, ela está precisando.

Sentada sobre o braço da poltrona, Nancy bebericava um conhaque,

esperando ansiosa pelo resultado do telefonema. Estava completamente muda. A

hipótese de Edmund tê-la abandonado por causa da tal médica brasileira a

atormentava. Com os nervos à flor da pele, viu Rita e Carlos aproximarem-se com

uma expressão preocupada no olhar.

— Ela estava lá, Rita?! Falou com ela?! —- perguntou Nancy, impaciente.
— Sim, mas Sônia não sabe onde Edmund está. Não o vê desde ontem pela

manhã. Houve uma alteração nos horários dos vôos, por isso só puderam sair de

Brasília na quinta-feira.

— E foi mesmo ela quem ligou para cá? — perguntou Manuel.
— Sim. Sônia ofereceu-se para falar com Dalva porque Edmund teve

dificuldades em falar o português. Ele queria saber se Nancy estava aqui...

— O resto é fácil deduzir — disse Carlos com cinismo. — Sônia deve tê-lo

feito acreditar que Nancy havia ido embora.

Num gesto de desespero, Nancy cobriu o rosto com as mãos.
— E Edmund provavelmente está pensando que eu parti para a Inglaterra

sem esperar por ele!

— Não fique assim, querida — Rita passou o braço ao redor de seus ombros,

tentando consolá-la. — O importante agora é localizarmos Edmund. Para onde ele

teria ido?

— Temos que procurar saber se embarcou para Londres — opinou Manuel,

mais objetivo.

— Mas como?!

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— Se vocês me emprestarem um carro, irei com Nancy até o aeroporto, a fim

de verificarmos as listas de passageiros das companhias internacionais com vôos

para a Inglaterra nestes últimos dias — ofereceu-se Carlos.

Embora dirigisse com rapidez, o tráfego intenso decorrente dos preparativos

para o Carnaval obrigava Carlos a parar o carro constantemente. Sentada ao lado

dele, Nancy olhava fixamente para fora, alheia ao espírito de alegria em que se

envolvia a cidade.

— Que motivo teria Sônia para agir dessa forma? — indagou ela, num fio de

voz.

— As mulheres quando amam são ciumentas e se comportam das maneiras

mais estranhas. Sônia está apaixonada por Edmund e, de repente, viu uma

oportunidade para se livrar de você. Ela sabia o quanto seu marido ansiava chegar

ao Rio antes de sua partida para a Inglaterra, por isso agiu de forma a fazê-lo

acreditar que você já tinha embarcado. Provavelmente estava certa de tê-lo

conseguido só para ela, no entanto enganou-se. Edmund a deixou sem ao menos

dizer-lhe para onde ia — ele a olhou rapidamente. — Talvez isto prove uma coisa

muito importante.

— O quê?!
— Edmund não ama Sônia.
— É o que eu espero.
Assim que chegaram ao Galeão, Nancy foi direto ao balcão da "British

Airlines" para se informar se Edmund estava entre os passageiros do primeiro vôo

com destino a Londres, dali a alguns instantes.

— Não — respondeu-lhe a recepcionista. — Não há nenhum Edmund Talbot

no próximo vôo.

Desanimada, Nancy verificou junto às outras companhias aéreas e, depois de

muita insistência, além de ter de provar ser a esposa de Edmund, tomou

conhecimento de que ele partira para Londres no dia anterior.

— Oh, Deus, o que faço agora?! — ela perguntou, dirigindo um olhar

desesperado a Carlos.

— Gostaria que ficasse aqui no Brasil e passasse o Carnaval comigo... —

exclamou ele com um sorriso nos lábios. — Mas, para provar o quanto gosto de

você, aconselho-a a embarcar no primeiro avião para a Inglaterra.


CAPÍTULO VIII
Nancy deixou o Rio de Janeiro no dia em que começavam as comemorações

do Carnaval. Durante o percurso para o aeroporto do Galeão, ainda pôde apreciar os

grupos alegres fantasiados, preparando-se para o grande desfile na avenida.

O momento da despedida de seus novos amigos brasileiros foi um misto de

risos, lágrimas e muitos abraços. Apesar de ansiosa para chegar a Londres, Nancy

sentia-se um tanto melancólica, sem saber se por causa da despedida daquelas

pessoas tão simpáticas e gentis, ou se pela incerteza que sentia em relação ao seu

futuro.

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Durante o vôo, longo e tedioso, ela mal pegou no sono. Ao chegar finalmente

à Inglaterra, a temperatura estava baixa e o ar, úmido. O aeroporto de Heathrow

achava-se lotado com passageiros à espera de seus respectivos vôos, além das

pessoas que aguardavam a chegada de parentes ou amigos, porém, não havia

ninguém à sua espera.

Contendo-se para não chorar de desapontamento, Nancy comprou uma ficha

telefônica e entrou numa cabine para ligar para Ben Davies. Havia lhe telegrafado

avisando de seu regresso, pedindo-lhe para tentar entrar em contato com Edmund.

Provavelmente Ben não o encontrara, ou então seu marido havia decidido romper

com ela definitivamente.

— Olá, menina, já era tempo de voltar para casa. Como está? — perguntou

Ben ao atender o telefone.

— Um pouco cansada da viagem. Recebeu meu telegrama, Ben?
— Sim. Que diabos você e Edmund andam fazendo? Brincando de esconde-

esconde?

— Ora, não caçoe, Ben. Houve um mal-entendido e nós nos desencontramos

no Rio. Edmund não ligou para você para saber se eu já estava de volta?

— Não, mas sei que ele está na Inglaterra porque telefonei para a O.S.P.P.

assim que recebi sua mensagem. Informaram-me que Edmund esteve lá na sexta-

feira à tarde, e que só voltaria quando concluísse o relatório sobre as tribos

indígenas do Brasil.

— E ele não mencionou para onde ia?
— Sim. Disse que precisava resolver alguns assuntos de família. Espere um

minuto... Ah, aqui está, o nome do lugar é Chance Court, Hampshire. Significa

alguma coisa para você?

— Oh, sim! É onde mora o tio-avô de Edmund, Justin Talbot. Irei para lá

imediatamente.

— Calma, garota! Você tem idéia de como chegar a este lugar?
— Bem, não exatamente. Sei que fica entre Winchester e Salisbury, perto de

um lugar chamado Middle Dene, no condado de Wiltshire.

— Era o que eu imaginava. Uma região localizada ao Sul, bem distante de

Londres. Como pretende ir até lá?

— Talvez pegue um trem até Winchester e depois um ônibus para Middle

Dene. Ainda não sei bem...

— Em pleno domingo, no inverno?! Você está maluca! Duvido que haja

ônibus trafegando num lugar como aquele, com esse tempo. É melhor você ir de

carro. — Ben refletiu alguns minutos antes de acrescentar. — Escute, Nancy, fique

onde está, vou buscá-la para almoçar conosco. Depois poderá ir a Chance Court no

carro de Andrey.

— Não vou incomodá-los? Andrey pode precisar do carro e...
— De forma alguma. Ela está aqui ao meu lado e insiste para que venha

matar a saudade do nosso típico rosbife acompanhado de yorkshire pud. Se quiser,

ligue daqui para Edmund a fim de verificar se ele está mesmo em Chance Court.

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Emocionada com a preocupação de Ben, Nancy desligou o aparelho bem

mais tranqüila. Estava muito cansada e sem disposição para se aventurar numa

viagem daquelas, num trem que poderia demorar a noite toda para chegar a

Hampshire. O almoço com os Davies e o carro de Andrey vinham em boa hora.

Sentou-se num restaurante, pediu um café e ficou aguardando a chegada do querido

amigo.

Enquanto dirigia, Ben explicava-lhe o melhor trajeto para chegar a Chance

Court, pois, como homem de espírito prático, consultara um mapa rodoviário antes

de pegar Nancy no aeroporto. A seu lado, ela escutava-o atenta, embora seus olhos

estivessem fixos na cidade lá fora. Uma névoa úmida e cinzenta encobria a torre do

castelo de Windsor e as árvores completamente desfolhadas lembravam o cenário

lúgubre de um filme de terror. Parecia incrível que fizessem parte do mundo do qual

ela acabara de chegar. O céu azul, o sol escaldante e o verde luxuriante da selva

eram agora imagens remotas de um sonho fantástico.

— Chance Court é uma dessas imponentes mansões da Inglaterra —

explicou-lhe Ben. — Os jardins e algumas dependências costumam ser abertas ao

público durante o verão. Você sabia disso?

— Não. Edmund jamais tocou em assuntos relacionados a sua família.
— Que rapaz mais estranho! Como foi o relacionamento de vocês lá no

Brasil?

— Pensei que estivesse indo tudo bem, até contar-lhe sobre o bebê.
— Ele não se conformou?
— Não só não se conformou como também me censurou por não ter lhe

contado antes. Mas eu não tive culpa!

— Deve ter sido um grande choque para ele, mas com o tempo acabará

compreendendo. Você vai ver!

Ben e sua esposa moravam numa antiga casa do século XVIII que havia sido

restaurada. Situada em uma pequena vila perto de Ascot, ficava próxima de uma

igreja normanda.

Andrey os esperava na porta.
— Como você ficou bonita, Nancy! Está com um bronzeado maravilhoso!

Aposto que já está morrendo de saudades do Brasil.

— Olhe... não é fácil sair de um lugar tão quente, cheio de sol e céu azul, para

enfrentar este frio daqui!

— Gostaria de tomar um conhaque para se aquecer?
— Aceito. Obrigada, Andrey.
Como todas as vezes em que almoçara com os Davies, Nancy achou tudo

delicioso, saboreando a refeição com prazer. Logo depois, com o auxílio da

telefonista, conseguiu o número de Chance Court. A pessoa que atendeu o telefone

informou que o dr. Talbot encontrava-se hospedado ali mas estaria fora a tarde toda.

— Gostaria de deixar algum recado? — perguntou, num tom frio, a voz do

outro lado.

— Diga-lhe, quando voltar, que Nancy telefonou — pediu ela, desligando. Em

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seguida voltou-se para Ben, com os olhos brilhando. — Ele está lá!

— Ótimo. Então é melhor não se demorar, Nancy. Já são quase três horas, e

você levará umas duas horas e meia para chegar lá! Com esse tempo ruim, é melhor

não viajar à noite.

— Muito obrigada, Ben. Vocês são uns amores! — disse Nancy, com

lágrimas nos olhos.

— Ora, o que é isso, menina? Caso não tenha onde passar a noite, venha

para cá — brincou Ben, com uma risadinha maliciosa. — E vá devagar, as pistas

estão lisas!

— Não se preocupe, Ben. Adeus.
O carro de Andrey era um pequeno Austin vermelho. Depois de receber

instruções sobre algumas peculiaridades do automóvel, Nancy pôs-se a caminho,

mais animada do que nunca. Na estrada para Winchester, apesar dos conselhos do

amigo, dirigia no limite máximo da velocidade permitida. Por causa do mau tempo, o

tráfego era tranqüilo e logo chegou ao cruzamento onde, segundo Ben, deveria

seguir a indicação para Storton, uma pequena cidade onde poderia parar um pouco

para descansar e reabastecer o carro.

A estrada, estreita e sinuosa, era bastante acidentada. Nancy subia as

escarpas da cordilheira, mergulhando abruptamente nos vales nebulosos. Passou

por vilarejos pontilhados de cabanas com telhados de palha contornadas por pastos

e árvores. A cada curva Nancy esperava avistar a cidade de Storton, que parecia

não surgir nunca! O cansaço já começava a mexer com seus nervos, os olhos

ardiam e as pernas estavam geladas por causa do frio.

Parou numa estalagem, onde lhe serviram o chá da tarde. A proprietária, uma

simpática senhora de meia-idade, informou que se encontravam a dezesseis

quilômetros de Middle Dene e que Chance Court ficava oito quilômetros adiante.

Pouco a pouco a estrada foi se tornando mais tortuosa, exigindo dela uma

concentração maior. Começava a escurecer e a chuva fina que caía dificultava a

visibilidade, mas Nancy acreditava estar no caminho certo. Passou por uma seta

com o nome "Chance Court", diminuiu a velocidade e continuou atenta à procura de

uma bifurcação, onde deveria virar à direita. O tempo, entretanto, piorara e, apesar

do esforço para exagerar, Nancy acabou ultrapassando a entrada, tendo que

retornar de marcha-a-ré.

Cada vez mais nervosa com aquela situação, calculou mal a distância do

barranco e, para aumentar sua aflição, acabou entrando na valeta do acostamento.

Respirando fundo, engatou a primeira e tentou sair. Por mais que acelerasse, o carro

não se movia. A roda apenas girava em falso, espirrando lama por todos os lados.

"Oh! que ódio!", pensou Nancy, desesperada. Por que tinha que acontecer

aquilo justamente agora? Parecia até que o destino mais uma vez preparava-lhe

uma cilada, impedindo-a de reencontrar Edmund e reconquistar o seu amor!

Nancy tentou recuperar o autocontrole. Não estava tão longe de Chance

Court e poderia prosseguir a pé. Enrolou o cachecol na cabeça para proteger-se da

chuva, saltou do carro, trancou as portas e pôs-se a andar pela estrada. A tabuleta

com o nome "Chance Court" surgiu novamente à sua frente. Ela caminhava beirando

um imenso muro de pedra coberto por musgos e trepadeiras espinhosas. De

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repente, ouviu atrás de si o barulho de um carro se aproximando. Colou-se à parede

úmida, a fim de lhe dar passagem. Enfureceu-se com o banho de lama causado pelo

automóvel, quando, de repente, notou que o motorista havia brecado e agora

manobrava em marcha-a-ré. Parando a seu lado, ele abriu a janela e falou numa voz

rouca, bastante familiar e muito querida:

— Está indo em direção à mansão, senhorita? Não quer uma carona?
O coração de Nancy deu um salto no peito. Edmund não a reconhecera!

Trêmula de emoção, ela deu um passo à frente, enfiou a cabeça pela janela e olhou

bem dentro daqueles olhos azuis tão amados, que a fitavam como se tivessem

deparado com um fantasma.

— Sim, querido! Eu aceito sua carona, obrigada. Estava indo exatamente

para Chance Court, procurá-lo.

Parecendo não acreditar no que via, ele permaneceu imóvel. Nem sequer

piscava.

— Ei, acorde! Sou eu, Nancy! — disse ela, rindo da expressão incrédula de

Edmund. — Por favor, deixe-me entrar no carro, estou morrendo de frio!

Edmund.. como que voltando a si, abriu-lhe rapidamente a porta e ela entrou

no mesmo instante. Tirou o cachecol, sacudindo a cabeça para os lados a fim de

soltar os cabelos.

Dentro do Jaguar estava quente, e a melodia suave de uma música romântica

soava como um convite para que se atirasse nos braços de Edmund, mas ela se

conteve. Ele estava diferente da última vez em que o vira! Sobre a camisa de linho

branco, com o colarinho aberto, Edmund usava um cashmere bege com decote em

"V" e um casaco de camurça marrom, do mesmo tom da calça. Apesar de discretas,

aquelas roupas revelavam fina procedência, talvez as lojas sofisticadas da

Burlington Árcade. Ele nem parecia o mesmo homem da selva!

— Como chegou até aqui? — perguntou, ainda atônito.
— De carro, mas ficou atolado na outra estrada.
Diminuindo o volume do rádio, Edmund ligou o pára-brisas e deu a partida.

Antes de acelerar, olhou novamente para Nancy, com um ar frio e crítico.

— Não quero parecer muito curioso, mas se incomodaria em dizer o que

andou fazendo desde que saiu do Posto Diauarum?

— Ora, fui para o Rio, com Rita, conforme combinamos.
— Mas não estava lá na quinta-feira — disse ele, pondo o carro em

movimento.

— Não. Rita e eu havíamos ido a Petrópolis.
— Onde fica esse lugar?
— Nas montanhas, próximo ao Rio de Janeiro.
— Não poderia ter me esperado um pouco mais?
Nancy mordeu os lábios, numa atitude nervosa. Não era assim que imaginara

aquele reencontro! Edmund não parecia nem um pouco feliz em revê-la.

— Eu o esperei, sim. Mas você não veio. Então Rita sugeriu que fôssemos a

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Petrópolis visitar os pais de Manuel. — Ela o olhou com uma expressão magoada.

— Se soubesse como é horrível ficar esperando por alguém, entenderia por que

procuramos preencher o nosso tempo saindo um pouco de casa. Deixamos um

recado com a governanta para que os avisasse, caso chegassem primeiro. Você é

quem deveria ter me aguardado!

Edmund ficou em silêncio. O carro avançava suavemente, até que chegaram

a um enorme portão de ferro, preso por duas enormes colunas de pedra onde os

brasões com as armas da família estavam esculpidos. Ele diminuiu a velocidade e

por uma alameda, ladeada por velhos carvalhos, que levava à imponente mansão

feita de pedra. Localizava-se numa pequena colina em meio a um imenso gramado.

— Que lugar adorável! — exclamou Nancy, encantada. Edmund permanecia

mudo. Entrou numa velha estrebaria transformada em garagem, desligou o motor

e a olhou seriamente.

— Bem, já que veio até aqui, é melhor entrar e esclarecer tudo de uma vez.
— Muito obrigada — murmurou ela, enquanto saltava rapidamente do carro

para que ele não visse seus lábios trêmulos.

Um homem alto, magro e pedante, vestindo um traje austero, veio recebê-los.
— Boa noite, senhor — cumprimentou ele, lançando um olhar de curiosidade

para Nancy.

— Boa noite, Jonas — respondeu Edmund, colocando o braço ao redor dos

ombros dela. — Esta é minha esposa, Nancy. Jonas é o mordomo, e trabalha aqui

com o tio Justin há quase trinta anos.

O empregado inclinou a cabeça, respeitosamente.
— Estou contente por conhecê-la, madame. Posso guardar seu casaco?
— Claro! Obrigada.
Nancy abriu o zíper de sua jaqueta e permitiu que ele a retirasse de seus

ombros.

— Toma um chá, senhora?
— Sim, por favor.
— Na sala de visitas?
— Bem, não sei se...
— Não — interrompeu Edmund bruscamente. — Sirva-nos na sala do café

da manhã. Espero que não tenha se esquecido de acender a lareira, Jonas. Este

lugar está um gelo!

O mordomo baixou a cabeça, tentando não se mostrar ofendido, e retirou-se

levando o casaco de Nancy.

— Você foi muito brusco com ele, Edmund!
— Não estou nem um pouco preocupado com isso. Jonas não gosta de mim

porque, segundo ele, jamais me comportei como um verdadeiro descendente da

família Chance. Agora vamos logo para perto do fogo. Depois de todo aquele calor

tropical, você deve estar se ressentindo, tanto quanto eu, do frio da Inglaterra.

Nancy o acompanhou até uma encantadora sala com paredes de carvalho.

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Uma mesa oval e cadeiras de espaldar alto em estilo Windsor decoravam o local

aconchegante. Edmund colocou duas cadeiras de balanço com almofadas perto da

lareira e convidou-a para sentar-se.

— Você é mesmo um membro da família Chance? — perguntou-lhe Nancy.
— Sou. Minha bisavó foi a última a carregar este importante nome, aqui na

Inglaterra. O pai havia perdido quase tudo, mas conseguiu salvar esta propriedade.

De toda a imensa fortuna dos Chance, esta foi a única herança que lhe restou.

— E você acha pouco?!
— Sim, pois de que adianta possuir uma mansão como esta sem ter

condições para mantê-la?

— É... você tem razão!
— E foi justamente a essa conclusão que minha bisavó chegou. Por isso

casou-se com Mortimer Talbot. Queria conseguir o maldito dinheiro para preservar

este lugar. Aliás, quase todos os homens da nossa família têm sido vítimas de

mulheres interesseiras. — Ele deu um sorriso amargo. — Quando minha bisavó

morreu, deixou Chance Court para o filho caçula, Justin, que parecia ser o único

interessado nesta mansão. E, agora, a menos que eu tome alguma providência

rapidamente, Tio Justin me fará seu herdeiro.

— Você!
— Uma ironia do destino, não acha? Justamente eu que sempre fiz questão

de levar uma vida simples e despojada...

— Mas ele não tem filhos ou netos para quem deixar a mansão?
— Tio Justin nunca se casou, e eu sempre fui seu sobrinho predileto. Desde

criança costumava vir visitá-lo com meu pai e sempre existiu entre nós muita

afinidade, além de uma grande afeição. — Ele ficou olhando pensativo para a lenha

queimando na lareira. — Pobre tio Justin! Sofreu um derrame e agora está muito mal

no hospital. Estive com ele esta tarde e duvido que consiga sobreviver...

— Quando soube sobre o seu tio?
— Assim que cheguei a Londres. Havia um recado para mim na O.S.P.P. E

quanto a você? Como me encontrou aqui?

— Também foi através da O.S.P.P. Ben havia ligado para lá a fim de

comunicar-lhe sobre a minha chegada e foi informado de que você se encontrava

em Chance Court. Quando liguei para Ben do aeroporto, ele me contou. Edmund,

por que pediu a Sônia para telefonar a Rita, em vez de ligar você mesmo?

Ele a olhou de soslaio.
— Mas eu telefonei. Falei, ou melhor, tentei me comunicar com a governanta

duas vezes. No entanto, foi impossível compreendê-la. Então Sônia ofereceu-se

para me ajudar. Ela me disse que você havia ido embora e que Rita não estava em

casa. Então pensei... — ele cobriu o rosto com as mãos. — Oh, Deus!, você nem

imagina o meu desespero. Eu havia feito tudo para chegar ao Rio a tempo de

encontrá-la, angustiado com os atrasos dos vôos e as conexões, para, depois,

confirmar minhas suspeitas.

— Você achou mesmo que eu não o esperaria?!

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— Tinha esperanças de que sim, mas não acreditava. Fiquei tão nervoso que

larguei Sônia falando sozinha. Coitada, deve ter pensado que eu estava louco. Só

não entendo por que a empregada não transmitiu inteiramente o recado.

— Ela não deu todo o recado porque Sônia desligou antes.
Edmund fitou-a, intrigado.
— Ora! Por que ela faria uma bobagem dessas?
Nancy ia responder mas uma leve batida na porta a interrompeu, e o

mordomo entrou seguido por uma mulher alta, vestida de preto. Logo após, acendeu

as luzes, esperando que ela colocasse a bandeja de prata sobre a mesa. Depois,

com muita elegância, serviu o chá em finíssimas xícaras de porcelana chinesa. Com

uma expressão de resignação, Edmund levantou-se, fazendo novamente as

apresentações.

— Esta é a sra. Mills, a governanta de meu tio. Sra. Mills, esta é Nancy,

minha esposa.

— Bem-vinda a Chance Court, sra. Talbot — disse ela sorrindo. — Trouxe

alguns sanduíches, um prato de trifle e bolo de frutas. Achei que estaria faminta

depois de um dia de viagem. Gostaria que acendessem a lareira do quarto, sr.

Talbot?

Edmund fez uma cara de espanto.
— E isto é possível?
— Oh, sim!
— Então seria ótimo. E quanto a você, Jonas, quero que providencie para que

tragam o automóvel da sra. Talbot para cá. Está atolado na estrada para

Fallowdene. Que marca é o seu carro, Nancy?

— É um Austin vermelho. Não está muito longe daqui... Olhe, aqui estão as

chaves.

— Obrigado, madame. Mais alguma coisa, senhor?
— Isto é tudo, Jonas. Agora a sra. Talbot e eu gostaríamos de tomar o nosso

chá sem mais interrupções, sim? Estou sendo claro?

— Sim, senhor.
O mordomo e a governanta retiraram-se imediatamente, fechando a porta

atrás de si.

— Não sei como Jonas pode dizer que você não sabe se comportar como um

membro da família Chance! — Nancy sorriu. — Agora mesmo você me pareceu um

perfeito lord! Ou, talvez, o senhor da mansão.

— Diz isto porque não conhece Jonas. Se eu não fosse tão áspero com ele,

passaria a me ditar ordens, como tem feito com meu tio há trinta anos!

— Ele me pareceu tão discreto!
— Ao contrário. Às vezes, consegue ser bastante desagradável, é muito

curioso, quer sempre saber tudo o que se passa nesta casa e, pode estar certa,

daqui a pouco arranjará alguma outra desculpa para voltar até aqui, apesar das

minhas ordens.

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Flora Kidd

Selva de Prata

86

— Talvez ele se sinta responsável pela mansão.
— Também, mas no momento ele está interessado em saber o que estamos

fazendo.

Sorrindo, Nancy levantou-se e serviu-se de mais um sanduíche. Eram feitos

de pão preto com um recheio cremoso de camarão.

Uma delícia!
— Quer mais um? — ela ofereceu a Edmund.
— Quero, obrigado — respondeu ele com um ar preocupado.
— O que há? .
— Estive pensando no que devo fazer se tio Justin insistir em me deixar esta

mansão. Eu não a quero!

— Poderia morar aqui, ou, pelo menos, numa parte da casa, como tem feito

seu tio.

— Pelo amor de Deus! Não posso nem imaginar viver num lugar tão grande

como este. Mesmo se... — ele se interrompeu bruscamente e deu uma mordida no

sanduíche.

— Se...?
— Ora, não importa. Mas do que falávamos quando fomos interrompidos? Ah!

sim... de Sônia. Por que ela teria desligado o telefone antes que a governanta

terminasse de falar?

— Bem, segundo ela mesma disse a Rita, pensou que a governanta já

houvesse dito tudo. Carlos, no entanto, não acreditou. Achou que ela desligou de

propósito.

— Carlos?! Então ele também estava lá?!
Ela apenas balançou a cabeça afirmativamente, ao perceber o ciúme de

Edmund.

— E posso saber por que ele chegou a uma conclusão tão absurda?
— Sim. Carlos acha que ela sentia ciúmes de mim, assim como Peter sentia

de você. Sabendo que você esperava me encontrar no Rio quando chegasse da ilha

do Bananal, Sônia decidiu fazê-lo acreditar que eu já havia ido embora. Pretendia,

talvez, convencê-lo a ficar com ela. — Nancy esperou que Edmund dissesse alguma

coisa, mas ele permaneceu calado.

— Gostaria de um pouco de trifle ou bolo de frutas? — ela perguntou.
— Trifle, mas pode deixar que eu mesmo pego. — Ele se levantou, colocou o

doce em dois pratinhos e ofereceu um deles a Nancy. Sentou-se novamente,

saboreando em silêncio o finíssimo creme com frutas e bolachas embebidas em

vinho. De repente, meneou a cabeça de um lado para o outro, num gesto de

censura, com uma expressão divertida no olhar.

— Não sei de onde Sônia tirou essa idéia maluca! Jamais estive interessado

nela, sempre a vi apenas como uma médica que, por sinal, não era das mais

dedicadas! Ela não se preocupava verdadeiramente com os índios e, durante todo o

tempo em que permanecemos na ilha, não ajudou quase nada.

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Selva de Prata

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— Ela me disse que se ofereceu como voluntária apenas para ficar a seu lado

e que salvou a sua vida quando sofreu o acidente de avião.

— O quê?! Ela teve a coragem de lhe dizer um absurdo destes?! Que mulher

mais convencida! Pode estar certa de uma coisa: eu teria me recuperado mais

rapidamente se não a tivesse por perto com todos aqueles exageros, medindo a

minha febre a cada cinco minutos, ou colocando toalhas sobre a minha testa.

— Não estava gostando deste tratamento tão especial?
— Quase fiquei maluco, isto sim! Sônia conseguia somente me importunar

com tantas futilidades à minha volta. Quando queria dormir um pouco precisava

pedir-lhe para sair do quarto. Não sei por que acreditei nela quando me disse que

você havia ido embora.

— O mesmo aconteceu em relação a Peter. Você se deixou influenciar pelas

palavras de seu amigo e esqueceu-se de que a base de um casamento é a

confiança mútua. Eu também errei, pois não confiei em você: devíamos ter

conversado, procurado nos conhecer melhor. Mas eu não quis ouvi-lo quando tentou

se explicar.

— Banquei o tolo por duas vezes, mas penso que aprendi a lição. Talvez a

maneira simples como tenho encarado a vida seja a responsável pela minha

ingenuidade em relação às pessoas.

— O que fez ao deixar Sônia?
— Fiquei desesperado, andando sem rumo, sem saber para onde ir. Então,

tomei um táxi para o Galeão e, por sorte, consegui lugar num vôo que saía naquele

dia. Quando cheguei a Londres, fui direto para o nosso apartamento, mas, ao encon-

trá-lo vazio e todo empoeirado, percebi que você não tinha estado lá. Passei depois

pela O.S.P.P. e voltei novamente ao apartamento. Como você não aparecia, decidi

telefonar a Ben no escritório, porém não obtive resposta. Deviam ter fechado para o

fim de semana.

— Por que não ligou para a casa dele? Ben sabia onde eu estava.
— Eu não tinha a menor idéia de onde ele morava, por isso vim para cá. —

Ele ergueu-se para colocar o prato sobre a mesa. — Mais chá?

— Não obrigada — respondeu Nancy, levantando-se também.
— Por que desejava encontrar-me?
— Queria saber por que motivo não me esperou lá no Rio. Ela o encarou

desanimada.

— Oh, Deus! Quando penso que, se você tivesse confiado um pouco mais em

mim, nada disso teria acontecido... — desabafou, inconformada com tantos

desencontros. — Se tivesse tomado um táxi até a casa de Rita em vez de telefonar,

saberia que eu ainda não tinha voltado para a Inglaterra. No entanto, você preferiu

acreditar em Sônia, em Peter... — Ela respirou fundo novamente, cheia de dúvidas

que há muito a atormentavam. — Não acredito que me ame. Se gostasse mesmo de

mim, teria... — De repente, interrompeu-se, recuando assustada. Edmund

aproximara-se e suas mãos estendiam-se para agarrá-la pelo pescoço.

— É bom mesmo que tenha medo — murmurou ele suavemente. — Da

próxima vez em que ousar me dizer um disparate desses vou estrangulá-la.

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Selva de Prata

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— Edmund, queria tanto acreditar que...
Ele manteve as mãos ao redor do pescoço frágil de Nancy, numa suave

carícia.

— Você está sempre me acusando injustamente, Nancy. Se me casei com

você foi porque a amava e, se a deixei, foi pelo mesmo motivo. Não podia suportar a

idéia de que fosse infeliz por ter se casado comigo. Por isso quis lhe dar uma chance

de se divorciar.

— Mas eu...
— Psiu!, fique quietinha e me deixe terminar. Fui para um lugar bem distante

na esperança de romper com todos os laços que me prendiam a você e afastá-la

dos meus pensamentos. Mas foi tudo inútil. Quando pensei ter conseguido esquecê-

la, você apareceu no Posto Diauarum, foi se apossando do meu coração e, quando

me dei conta, já era dona dele outra vez.

Nesse momento, o barulho de uma tosse alta e forçada chamou-lhes a

atenção e ambos olharam imediatamente para a porta. Em pé, ereto e muito

empertigado, Jonas aguardava permissão de falar.

Irritado, Edmund afastou-se de Nancy, colocando as mãos nos bolsos.
— Pensei haver dito que não queria mais interrupções, Jonas! — ele

repreendeu-o, irritado. — O que há desta vez?

— O carro da sra. Talbot, senhor. Price, o motorista do sr. Justin, já o trouxe

para cá.

— Senhora, não quer mais nada?
— Não, obrigada — respondeu ela tentando reprimir o riso.
— E o senhor?
— Também não, Jonas! Pode ir agora, e não volte mais! Ele se retirou,

deixando a porta ligeiramente aberta.

Nancy e Edmund esperaram até não ouvir mais seus passos.
— Oh, eu a feri novamente! — exclamou ele tocando de leve a pele

ligeiramente avermelhada abaixo da orelha de Nancy.

— Acho que estou sempre machucando você. No entanto, eu a amo demais!

Deixei a ilha do Bananal, mesmo tendo muito trabalho ainda pela frente, só para ir

ao seu encontro no Rio. Depois, vim correndo para a Inglaterra, pensando que já

estivesse em Londres. E, se a impedi de me acompanhar nestas minhas viagens

loucas a lugares tão primitivos, foi por medo de que contraísse uma doença fatal.

Nancy, eu te adoro! Tenho vivido num inferno nesses últimos dias, sem saber onde

você se encontrava e arrependido por não ter sido mais compreensivo quando me

falou do bebê. É também porque a quero demais, morro de ciúmes quando a vejo

perto de outro homem... — Ele fez um gesto de desânimo com as mãos. — O que

mais preciso lhe dizer para provar o meu amor por você?

— Não diga mais nada, Edmund. Você já me convenceu — murmurou ela

entre risos e lágrimas de alegria. — Eu também te amo, meu querido. Esta é a única

razão que me trouxe até aqui. Quero ficar a seu lado para sempre. Por favor,

Edmund, posso dormir aqui esta noite?

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— Não estava pensando em deixá-la dormir em nenhum outro lugar — disse

ele envolvendo-a num abraço. — E então? Começamos tudo de novo, meu amor?

— Pensei que já tivéssemos começado... — sussurrou ela mansamente,

aninhando-se nos braços de Edmund. — No embalo de uma rede em plena selva.

— Sim, a nossa segunda lua-de-mel...
Abandonando-se às carícias pelas quais ansiara durante tanto tempo, Nancy

sentiu os lábios dele cobrirem seu delicado rosto com beijos cheios de ternura.

Pouco a pouco foram se tornando mais ardentes e logo um desejo intenso os

consumia.

Nada mais parecia ter importância ao redor deles. Naquele instante era como

se o passado deixasse de existir. Os longos meses de afastamento e os

desencontros foram esquecidos completamente, e selaram a promessa de uma nova

vida cheia de amor e esperança com um longo beijo apaixonado.

Alheios ao mundo, nem ouviram uma leve batida na porta, seguida de uma

tossinha familiar.

— Com licença, senhor.
Os dois separaram-se imediatamente e Edmund olhou para o mordomo com

uma expressão de raiva.

— Nós... quero dizer, Prince e eu estávamos pensando se a sra. Talbot não

vai precisar do carro ainda hoje. Caso contrário, Prince o colocará na garagem junto

ao seu. Está uma noite muito úmida e não é recomendável deixá-lo ao relento.

— Está certo, aqui estão as chaves. — Ante o olhar indignado do mordomo,

Edmund atirou-lhe as chaves e acrescentou friamente. — A sra. Talbot ficará nesta

casa e não só esta, mas todas as noites em que eu estiver aqui. Mais algum

problema, Jonas?

— Não, senhor. Penso que não.
— Pois então, até amanhã, Jonas!
O mordomo inclinou a cabeça, disse boa-noite e retirou-se discretamente.
— Vamos para o quarto, Nancy — falou Edmund rapidamente, puxando-a

pela mão. — É o único lugar onde estaremos livres desse bisbilhoteiro. Pelo menos

lá espero que haja uma fechadura com chave na porta.

Pouco depois entraram num elegante aposento todo revestido com papel de

parede em tons suaves de azul e branco. Ao lado da lareira, já acesa, uma poltrona

confortável e uma pequena mesa redonda com um abajur de opalina davam encanto

ao ambiente requintado. A enorme cama de casal, coberta por uma colcha de cetim

pérola, chamou a atenção de Nancy pelo seu tamanho exagerado.

— Uma cama tamanho família, Edmund?!
— Cabem seis — respondeu ele, tirando o casaco. — Isto é para compensar

aquela nossa rede na selva, com os tambores soando do lado de fora da cabana. E

então, não está melhor assim? — ele perguntou com um ar maroto.

— Jamais me esquecerei daquela noite. Oh, Edmund, — ela lembrou de

repente. — Não tenho nenhuma camisola aqui comigo.

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Selva de Prata

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— Não faz mal, eu também ainda não comprei pijamas. Basta tirar a roupa e

entrar debaixo das cobertas bem depressa! Vou me deitar primeiro para esquentar

os lençóis para você.

Apenas abraçados, sem fazer amor, desfrutaram aquele momento íntimo,

felizes por estarem juntos novamente.

— Ainda não acredito. Você está aqui mesmo, nos meus braços, querida?
— Pois é bom ir se acostumando.... Quanto tempo acha que ficaremos em

Chance Courí?

— Não sei e nem quero pensar nisto agora. Temos algo muito mais

importante para fazer.

As mãos dele deslizaram pelo corpo de Nancy, acariciando a pele delicada e

arrepiada de desejo.

— Antes de fazermos amor preciso saber uma coisa, Nancy. Você deseja ter

um outro bebê?

— De todo o coração. E você?
— É o que mais quero no mundo. Você vai ser uma mãezinha adorável.
— Não está mais magoado?
— Não. O que passou, passou... Agora só quero pensar em fazê-la feliz!
— Mas, e se você precisar viajar outra vez? Não foi convidado para continuar

trabalhando no Posto Diauarum?

— Ainda não pensei a respeito, mas, de qualquer maneira, não pretendo

deixá-la sozinha se estiver grávida. Amanhã falaremos sobre isto e sobre o que você

quiser, hoje não.

— Amanhã, amanhã... Parece até um brasileiro falando!... — ela brincou,

lembrando com saudades do Brasil.

— Hum!... mas que perfume delicioso! — Ele roçou os lábios ao longo de seu

pescoço, sugando-o devagar. — Você sempre se arrepia assim, quando a beijo

aqui... ou aqui.

Nancy teve um estremecimento ao sentir-lhe os lábios tocarem seu mamilo

enrijecido, mordiscando-o de leve.

— Sempre — ela gemeu.
— Pois então saiba que esta sua reação causa um efeito devastador em mim.
Era este o Edmund que ela conhecera e por quem havia se apaixonado.

Meigo, gentil, espirituoso e sempre atento aos seus menores desejos.

— Oh, Edmund, eu te amo tanto!
— Eu também te amo! — sussurrou Edmund ao seu ouvido, tomando-a nos

braços fortes, ansioso por possuí-la.

Naquele instante, esqueceram-se de tudo! Abraçados e aquecidos, perderam-

se no tempo e no espaço para se entregarem apenas à plenitude daquele imenso

amor!

* * * *


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