Guerrilha do Araguaia Memórias de uma guerra suja


GUERRILHA DO ARAGUAIA
Memórias de uma guerra suja
O ministro da Defesa Nelson Jobim
assinou uma portaria criando um
grupo para identificar as ossadas
Trinta e quatro anos depois, novos fatos sobre a Guerrilha do Araguaia (1972-1975)
relevam detalhes sobre um dos períodos mais obscuros da história contemporânea do
Brasil, além de contribuírem para pressionar autoridades pela abertura de arquivos até
hoje mantidos em segredo.
A guerrilha foi o maior movimento armado contra a ditadura militar (1964-1985)
promovido pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), que, Ä… época, estava na
ilegalidade.
Um grupo de 98 guerrilheiros - 78 jovens vindos das metrópoles e 20 camponeses
recrutados no Araguaia - enfrentou o Exército durante trÄ™s anos na floresta
amazônica, na regićo entre os Estados do Pará e Tocantins. Desse total, 68 foram
mortos, incluindo um "justiçado" pelos próprios colegas. Outros 11 militares morreram
em conflitos ou por "fogo amigo .
O Exército deslocou um efetivo de aproximadamente 5 mil homens, na maior
mobilizaçćo militar no país desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em trÄ™s
campanhas. Somente a śltima campanha obteve sucesso, com a ajuda de mateiros da
regićo e militares infiltrados entre os moradores.
Tudo isso, no entanto, ocorreu sem que a populaçćo brasileira soubesse de nada. Os
veículos de comunicaçćo estavam sob censura do regime militar
e nćo podiam relatar a guerra que acontecia no meio da selva amazônica.
Com o fim da guerrilha, os militares firmaram um pacto de silęncio e os documentos
referentes Ä…s ações foram mantidos, desde entćo, em sigilo, deixando as famílias sem
saber em que condições os militantes foram mortos e onde os corpos foram
enterrados.
Campos de extermínio
Em reportagem publicada no śltimo dia 21 de junho, o jornal O Estado de S. Paulo
revelou que 41 guerrilheiros - de um total de 67 mortos pelos agentes do governo -
foram executados após terem sido rendidos e amarrados em bases militares na
Amazônia. Os dados confrontam as informações oficiais, que davam conta da
execuçćo sumária de apenas 25.
A matéria do jornal foi baseada nos arquivos do tenente-coronel da reserva do
Exército, Sebastićo Curió Rodrigues de Moura, o "major Curió", um dos personagens
mais famosos da história do Araguaia. Ele participou da terceira campanha militar que
dizimou a guerrilha.
As revelações sćo importantes porque confirmam uma política de extermínio adotada
pelo Exército. "A ordem superior era nćo deixar rastros da guerrilha, para poupar o
Brasil de uma guerrilha, de uma Farc, um movimento montonero [guerrilha urbana
argentina], um Sendero Luminoso", disse o major Curió em entrevista ao jornal, se
referindo a outras organizações comunistas que recorreram Ä… luta armada na América
Latina
De acordo com os relatos, somente adolescentes que se renderam foram poupados
pelos militares.
Pela primeira vez, em detalhes, foi exposto o método de extermínio empregado pelas
Forças Armadas na regićo. Segundo as anotações do militar, os prisioneiros eram
levados a pé ou de helicóptero para clareiras na mata, onde eram mortos e deixados
em valas. As informações, agora, podem ajudar na busca por restos mortais dos
combatentes.
Roda viva
Para a juventude atual, nascida no Brasil pós-ditadura, pode parecer loucura a atitude
de estudantes universitários que deixaram suas casas para pegar em armas e se
embrenhar na mata, na defesa de um ideal.
Mas nos anos de 1960 o objetivo dos guerrilheiros de implantar um regime comunista,
nos moldes da China, era uma alternativa viável Ä… ditadura militar, que tinha apoio dos
Estados Unidos e era sustentada pelo "milagre econômico".
A luta armada só foi usada como método porque foi a Å›nica opçćo que restou, depois
que o decreto AI-5, em 1968, endureceu a repressćo contra os movimentos político e
estudantil. Com o AI-5, o Congresso foi fechado e as garantias constitucionais dos
cidadćos, suspensas.
Neste período, dezenas de políticos, artistas, professores, sindicalistas e estudantes
foram presos e torturados no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS),
criado para reprimir os adversários do regime, enquanto outros foram exilados do
país. Os casos de tortura foram posteriormente documentados no livro Brasil: Nunca
Mais.
Foi neste contexto que, mal preparados e armados, os militantes começaram a chegar
na regićo do Araguaia em 1966. Eles se misturaram Ä… populaçćo local de pequenos
agricultores, conquistando aliados entre a comunidade. Além dos nativos recrutados,
outros 158 camponeses deram abrigo, alimento e informações aos guerrilheiros.
Quarenta e quatro moradores vítimas das campanhas militares foram indenizados
este ano por determinaçćo da Comissćo de Anistia do Ministério da Justiça, de um
total de 84 casos analisados. Outros 198 aguardam parecer.
Os desaparecidos
No começo dos anos de 1980, com o início das lutas pela redemocratizaçćo do Brasil,
familiares de integrantes da milícia comunista começaram a cobrar, via Justiça, a
abertura dos arquivos militares. Eles queriam localizar os restos mortais dos
guerrilheiros mortos.
O caso chegou até a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organizaçćo dos
Estados Americanos (OEA), que em 26 de março deste ano apresentou uma queixa
formal contra o Brasil pelas prisões, torturas e mortes ocorridas no Araguaia, incluindo
a recusa do governo em abrir os arquivos da ditadura.
Em 29 de abril, o ministro da Defesa Nelson Jobim assinou uma portaria criando um
grupo para localizar e identificar as ossadas, com previsćo para emissćo de um
relatório em um ano.
A Lei da Anistia, promulgada em 1979, impede que crimes de guerra cometidos no
período da ditadura sejam julgados, mas uma interpretaçćo jurídica entende que
crimes de tortura constituem uma exceçćo. Isso, em parte, explica a relutância em
tornar pÅ›blicas as informações sobre o Araguaia.
Saiba mais
A Ditadura Escancarada - As Ilusões Armada (Companhia das Letras): este segundo
volume de uma reportagem minuciosa do jornalista Elio Gaspari retrata o período
mais linha dura do regime militar e inclui o extermínio da guerrilha do Araguaia.
Araguaya - Conspiraçćo do SilÄ™ncio (2004): filme conta a repressćo Ä… guerrilha na visćo
do missionário francÄ™s Padre Chico, que atuava na comunidade local.
* José Renato Salatiel é jornalista e professor universitário.


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