Jorge Despedir se a francesa

background image

Guilhermina Jorge

Despedir-se à francesa / filer à l’anglaise

REFLEXÕES EM TORNO DA TRADUTOLOGIA DAS

CONSTRUÇÕES FRASEOLÓGICAS NA PERSPECTIVA

INTERLÍNGUAS

Resumé

La phraséologie constitue un élément important d'une langue naturelle, un

véhicule privilégié des référents culturels qui enrichissent les relations entre
générations, entre peuples, entre cultures. Nous réfléchirons aux problèmes de
traduction posés par la phraséologie dans le passage d'une langue source à
une langue cible.

Marchons d'un pas ferme vers l'avenir
Avec la complicité des mots
Ils ont la force de métamorphoser
Les objets qu'ils touchent
Les soucis qu'ils frôlent

(Anacoana, Métellus)

O tema deste número da revista – As línguas vivas: diálogos

interculturais – encontra um objecto privilegiado no domínio da
fraseologia. As expressões idiomáticas (EIs)

1

, bem como as outras

1

Para uma definição da EI cf. os trabalhos de Gross (1982), Danlos (1981),
Greciano (1983), entre outros. Vários estudos tentam definir a expressão
idiomática, e as dificuldades são comuns aos vários autores e prendem-se
com a ausência de uma tradição idiomática no domínio da Gramática, que na
maioria dos casos omite estes lexemas da descrição de uma língua natural.
Os últimos vinte anos, pela literatura publicada, apontam para a importância
destas estruturas como parte integrante da língua.

polifonia

, Lisboa, Edições Colibri, n.º 1, 1997, pp. 33-43

background image

construções fraseológicas, estabelecem um diálogo activo com as
outras componentes da língua, favorecendo uma maior expressividade
e fomentando uma relação imediata e espontânea entre o sujeito e a
linguagem. O uso de uma EI num determinado contexto pressupõe
uma construção da língua enquanto elemento social, é pois o discurso
que elas ilustram. Por outro lado, o seu uso neutraliza a literalidade das
palavras, incutindo sentidos cristalizados e partilhados pelos sujeitos,
aumentando o grau de subjectividade, definindo as marcas idiolectais,
construindo valores mais perenes a uma linguagem em constante
mutação, deixando, ao longo de anos, de séculos de história, os traços
de um passado actualizados no presente. Elementos de uma partilha
social e sincrónica, mas também uma partilha de gerações, entre o
passado e o presente, entre a língua de ontem e a língua de hoje, as
EIs reflectem o movimento, a evolução da língua, as metáforas do
passado, os desvios lexicais, sintácticos e semânticos. Estas «palavras»
enriquecem a linguagem pelo seu poder criativo, pelas referências
culturais, pelas histórias que encerram.

A tradução intralíngua e interlínguas, como todo o acto de escrita,

pressupõe uma paixão pelas palavras, que ultrapassa a simples lineari-
dade, para realçar a sua história cultural. Na operação tradutiva, a
cultura do outro manifesta-se como uma frente de resistência muito
sólida à tradução, pois abre a possibilidade da estranheza e entra em
confronto directo com a outra cultura. O tradutor deve estabelecer
uma ponte entre as duas culturas. A tradução da poesia e dos jogos de
linguagem na publicidade pressupõe uma tradução criativa, uma outra
maneira de expressar a mesma realidade. No entanto, a nível das
relações interculturais, os problemas de (in)tradução podem surgir.

A reflexão incidirá sobre vários tipos de construções fraseológicas.

Veremos exemplos de poesia contemporânea, de publicidade e expres-
sões idiomáticas. O nosso objectivo prende-se com uma chamada de
atenção para as dificuldades que os tradutores enfrentam no domínio
da fraseologia. Por um lado, a importância do reconhecimento dessas
estruturas na língua de partida, e o seu interesse enquanto elementos
expressivos, testados e partilhados pelos falantes, ou enquanto elemen-
tos subversivos (criação de autor, deturpação da construção atestada –
veja-se, por exemplo, os jogos de linguagem na publicidade «Não há
bela sem limão» (produtos dietécticos) que subverte a expressão «Não
há bela sem senão»), reconhecidos como tal pelos falantes dessa
língua. Por outro lado, defende-se que esses mesmos efeitos se
reencontrem na língua de chegada, o que exige que o tradutor, no
domínio da fraseologia, seja um leitor activo e criador neste processo
de «translação».

background image

Deste modo, a visão tradicionalista do tradutor que executa a sim-

ples transposição linguística ou que tem como tarefa a procura de cor-
respondências linguísticas está inadequada a este tipo de tradução.

Partindo do pressuposto que falar de construções fraseológicas é

falar de «pedaços» de discurso que se integram no discurso em geral,
então a tarefa do tradutor é a de transpor «discursos», adaptando-os a
uma nova situação de comunicação que o acto tradutológico implica,
tendo em conta todos os parâmetros – linguísticos e extra-linguísticos –
da língua de partida e da língua de chegada.

Aos «pedaços» de discurso, que referimos anteriormente, junta-se a

forte carga cultural que detêm, o que dificulta ainda mais o tradução da
fraseologia, porque à comparação de línguas substitui-se a comparação
de discursos, e isto pressupõe a comparação entre culturas, a
comparação dos homens subjacentes a essas culturas.

Vejamos o seguinte excerto de um texto de uma poetisa contempo-

rânea francesa

2

:

9959: l'ébauche de la maquette de l'architecture du moderne de la querelle
de l'enseignement
9960: le tournassage de l'ébauche de la maquette de l'architecture du
moderne de la querelle
9961: le potier du tournassage de l'ébauche de la maquette de l'architecture
du moderne
9962: l'argile du potier du tournassage de l'ébauche de la maquette de
l'architecture

Os textos da Michèle Métail apresentam-se como uma navegação

pela linguagem, uma viagem sem fim, uma espécie de desejo inquie-
tante de esgotar o léxico, mas também uma vontade de recuar ao infi-
nito esse esgotamento e todas as fontes são utilizadas nesta viagem
sem fim de complementos do nome. Embora, aparentemente, a
tradução desses versos não levante muitos problemas, deparamos no
2º verso com um neologismo (criação da poetisa) – «tournassage» –
que deverá obedecer, na língua de chegada, do nosso ponto de vista,
aos mesmos critérios de formação.

Le Professeur

tête d'étude
figure de pensée
sens figurée
voix passive

2

Cf. Michèle Métail, Compléments du nom («publicação» oral).

background image

tronc de cône
par coeur
vaisseau-école
main de maître
jambe de compas
pied de la lettre
corps enseignant

Este texto

3

insere-se num conjunto de retratos-robots (Portraits-

-Robots) que a mesma autora elaborou, partindo de construções
fraseológicas que se constroem com um elemento do corpo – tête,
figure, sens, voix, tronc, coeur... –, no entanto, nem todas a expressões
correspondem a expressões da língua, por vezes são inseridas
construções da própria poetisa, o que dificulta o seu reconhecimento.
Pensar numa equivalência numa outra língua pressupõe ter em conta
os vários parâmetros elaborados pela autora e postos em prática
nestes retratos, isto é traduzir todas as estranhezas sentidas na língua
de partida. Trabalho árduo e onde a equivalência enfrenta sérias
reticências. A correspondência linguística é raramente possível, mas
quando se torna possível facilita a tarefa do tradutor (alguns exemplos
acima referidos permitem-na – sentido figurado e voz passiva – e
estas correspondências linguísticas são também óptimos exemplos, na
medida em que preenchem os requisitos da lexicalização e da
referência a uma parte do corpo humano). Os exemplos que não
permitem a correspondência linguística, terão de ser adaptados, tendo
sempre em conta os requisitos acima enunciados.

Vejamos o exemplo «tête d'étude». A tradução literal «cabeça de

estudo» insere neste conjunto de expressões uma construção subver-
siva na língua portuguesa, enquanto elemento fraseológico, no entanto,
tal construção torna-se aceitável se considerarmos que o mesmo suce-
de na língua francesa (isto é, a construção também não existe enquan-
to elemento fraseológico na língua francesa).

Deste modo, embora inicialmente a tradução do poema acima

enunciado levantasse inúmeros problemas, poder-se-ia propor uma
tradução aceitável para o português, respeitando os vários parâmetros,
mas adaptando alguns exemplos, jogando com as noções de correspon-
dência e de equivalência: [cabeça de estudo / figuras de estilo / sentido
figurado / voz passiva / tronco da árvore / de cor / vaso de flores / mão
de mestre / perna de compaço / pé da letra / corpo docente].

Com este exemplo pretende-se mostrar que a tradução deste tipo

de estruturas fraseológicas não corresponde a uma simples literalidade,
mas exige do tradutor um conhecimento profundo das regras pragmá-

3

Cf. Michèle Métail, Portraits-Robots («publicação» oral).

background image

ticas que estão na origem da sua construção, e um conhecimento pro-
fundo das duas línguas em causa. Por outro lado, o tradutor deverá
reconhecer as estranhezas e depois reproduzi-las na língua para que
traduz, tendo em conta as restrições do texto original.

Os slogans de Maio 68 integram a fraseologia.

«Soyez réalistes, demandez l'impossible»
«Plus je fais l'amour, plus je fais la révolution»
«Vivre sans temps morts, jouir sans entraves»
«Ne faites jamais confiance à quelqu'un de plus de trente ans»

O leitor reconhece esses slogans como um todo, uma ideia, um

conjunto de palavras lexicalizadas, cujo sentido advém das restrições
das combinatórias lexicais. Reflectem os valores culturais de uma dada
geração, num tempo e num espaço determinados, são o reflexo dos
ideais dos jovens de Maio 68. A tradução destes slogans para outra
língua, perderá o impacto se os novos leitores não reconhecerem neles
os slogans de Maio 68. A perda de informação poderá ser
compensada por notas explicativas do tradutor.

Os exemplos seguintes

4

subvertem títulos de obras literárias ou de

filmes e encontramo-los no discurso publicitário:

Swann un amour de parfum (Swann, parfum)
A la recherche du teint perdu (Ethnodex)
Les jeux de l'amour et de l'histoire (Le Livre de Poche)
Les mousquetaires de la distribution (Euromarché)
Uno Bianca. Belle de jour (Fiat)

Estes jogos de linguagem não permitem a mera transposição lin-

guística, fazem apelo à memória cultural do leitor e a força expressiva
do slogan advém do jogo entre o título original e a sua subversão. Na
passagem para outra língua haveria facilmente perda de informação.
Claro que as opções do tradutor estarão sempre condicionadas pelo
contexto comunicativo em que a tradução se insere e será esse
contexto que determinará os elementos a privilegiar.

O mesmo acontece com os slogans publicitários que subvertem ex-

pressões atestadas na língua e que fazem parte da bagagem cultural
dessa língua:

4

Exemplos extraídos de Les mots de la publicité de B.Gruning.

background image

Devenir maître ébéniste, c'est simple comme kity (Kity)
Ils vont changer la soif du monde (Chivas)
Oeil pour oeil son pour son (Ampex)
Idée toute fête (Chocolat Meunier)
Je suis dans tous mes Etam (Etam)

Nestes exemplos, a subversão opera-se na substituição de um ele-

mento lexical que remete para o objecto da publicidade (bonjour/kity;
face/soif; dent/son; faite/fête; états/étam). Para lá da simples substitui-
ção, veja-se, por exemplos a importância dos jogos fonéticos
(faite/fête).

Os exemplos acima referidos desafiam a existência de uma equiva-

lência directa de uma língua para a outra. A tradução não é só uma
equivalência de vocábulos ou expressões, mas é também uma equiva-
lência de culturas o que pressupõe conhecer todas as ressonâncias,
presentes ou longínquas, das palavras e expressões. Por outro lado,
algumas construções especificam e/ou enriquecem o seu sentido
quando integradas num contexto, o que dificulta a noção de
correspondência linguística.

Tal como os jogos de linguagem, a ironia, o humor, as construções

adulteradas para efeitos publicitários ou outros, as expressões idiomá-
ticas levantam inúmeros problemas de correspondência (de tradução)
e desafiam as regras de uma correspondência literal. Nestes casos a
adaptação é crucial e pressupõe um óptimo conhecimento cultural das
duas línguas. A fraseologia – um mundo criativo, metaforizado, des-
construtor, um mundo de palavras de hoje e de ontem – estabelece
com a linguagem redes de subversão e de conivência; um mundo de
estranheza, para uma outra estranheza, na procura incessante de mais
expressividade, de mais cor para transpor para a linguagem os fios dos
sentires, as várias matizes, a força e a fragilidade, o amor e o ódio – a
paleta completa das variações da expressividade.

As expressões idiomáticas descrevem, pelas imagens que sugerem,

o mundo real, os lugares, as experiências quotidianas, mantêm intacto o
colorido de um povo, constituem uma voz rica de sabedoria, que soube
imprimir na linguagem a sua experiência. As EIs ilustram uma parte
desse saber, desse colorido. Conhecê-las implica conhecer o povo, a
cultura que lhes deu vida, estabelecer entre elas e os homens relações,
conhecer mais profundamente as línguas e as suas múltiplas formas de
expressividade.

As expressões integram o melhor sistema de símbolos para repre-

sentar uma cultura. As expressões constituem um objecto importante
da língua, uma manifestação de um saber plural, um enriquecimento do
idiolecto do sujeito, facilitam a comunicação, estabelecem com os ou-

background image

tros falantes da língua uma certa conivência, uma partilha. Por outro
lado, permitem instituir um diálogo, aproximam e salientam interrela-
ções fundamentais, permitindo uma interpenetração com a experiência
humana, com a sociedade, propiciando à língua uma certa humaniza-
ção.

Reflectiremos, agora, sobre a riqueza cultural da linguagem, trazida

pelas combinatórias de palavras que se vão cristalizando ao longo de
anos, de séculos de história, enriquecendo o património de uma língua.
Abordaremos especificamente as expressões idiomáticas e, de entre
estas, aquelas que ilustram alguns dos problemas de tradução que de
seguida ilustraremos.

Imaginemos um tradutor que se debate com o seguinte texto

5

:

«Em lugar de ir chatear Camões, o melhor é ir chegando. José Maria Pincel
pode não ser un José Quintolas. (...). Mandar par a Casa Pia deve ser
punido com ser mandado para a gaiola. (...). A Maria das Pernas Compridas
pode dissolver uma Maria da Fonte. Mata-Grande é Lisboa; Mata-Limpa é
Coimbra. A menina do olho não é só o singular da menina dos olhos. Moer
torresmos é de fazer moer os fígados. (...).»

Decerto, enfrentaria inúmeras dificuldades na transposição para

outra língua.

O texto é composto por um conjunto de expressões, mas também

por jogos linguísticos entre elas. O tradutor poderia ser fiel ao valor
idiomático das expressões e parafrasear esse sentido, no entanto, o
texto perderia a sua energia e a sua expressividade. Por outro lado, a
escolha de expressões que ilustram ou referem traços da cultura portu-
guesa agrava ainda mais o processo tradutológico. Tarefa ingrata! O
trabalho do tradutor não se coadunaria com a mera procura de equiva-
lências ou de sentidos.

Debrucemo-nos atentamente sobre os referentes culturais

expressos nas expressões, o que as torna pertença de um povo, de
uma determinada cultura. Qual o papel do tradutor? Encontrar na outra
língua expressões com a mesma carga cultural explícita? Será que
nestes casos se deve privilegiar o sentido? Optar por outra expressão
ou pela neutralização da expressão?

Surgem inúmeras dúvidas e que não poderão ter uma única respos-

ta.

Não existe uma teoria única da tradução, como também não existe

uma solução única para a tradução das expressões idiomáticas, ou da
fraseologia em geral. A literatura em torno da tradutologia das expres-
sões não apresenta consenso e os autores divergem quanto aos

5

José Sesinando, Jornal de Letras, 3/9/91.

background image

elementos a privilegiar no acto de tradução. Berman

6

afirma que

procurar uma equivalência para uma expressão é etnocentrismo, «(...)
même si le sens est identique, remplacer un idiotisme par son
équivalent est un ethnocentrisme (...)». O autor fala ainda do absurdo
que seria personagens de outra língua exprimirem-se com imagens
francesas. Nestes casos propõe não a simples literalização, ou a
tradução palavra a palavra, mas um jogo entre a literalização, o
sentido, o ritmo e os jogos fonéticos. «Traduire n'est pas chercher des
équivalences». A tradução de uma expressão por outra expressão
equivalente na outra língua nem sempre é a melhor solução. Cada caso
deverá ser ponderado em particular.

Vejamos o exemplo citado no título:

despedir-se à francesa / filer à l'anglaise

De um ponto de vista meramente formal e idiomático as duas ex-

pressões são equivalentes. Não existe entre as duas expressões
nenhuma correspondência lexical, mas existe correspondência
estrutural. No entanto, elas aparecem como equivalentes semânticos,
que é dado pela ausência de composicionalidade entre os elementos
que as constroem. São, pois, duas formas de expressão, dois pedaços
de culturas diferentes, duas metáforas mortas. Do ponto de vista tra-
dutológico, a uma expressão corresponde uma outra expressão na
outra língua, e pressupõe o seu conhecimento como um todo, como
uma «palavra». O falante apercebe-se da existência da lexicalização e
da originalidade semântica de dada estrutura na sua língua materna,
mas terá mais dificuldades em reconhecê-la e interpretá-la na língua
estrangeira. Deste modo, o falante enfrenta várias dificuldades no
domínio da fraseologia:

– dificuldades de reconhecimento (a EI pode confundir-se com

frases não idiomáticas);

– dificuldades de interpretação (o sentido literal pode preceder o

sentido idiomático e substituir esse);

– dificuldades de produção (o falante pode sentir dificuldade em

reutilizar a expressão num contexto).

De um ponto de vista semântico, podemos considerá-las como equi-

valentes semânticos. No entanto, cada uma das expressões, além do
seu valor actual, oferece referentes culturais, que o falante pode não
deter, que divergem de uma cultura para a outra. Isto é, a expressão
acarreta com ela a sua história diacrónica. A expressão despedir-se à

6

Berman (1985) propõe uma reflexão sobre a tradução da fraseologia e tece
algumas considerações sobre a noção de correspondência.

background image

francesa

7

, que inicialmente indicava um acto de cortesia (mas que

hoje adquire um valor oposto – falta de educação, descortesia), cons-
truiu-se por imitação das regras sociais francesas (a expressão é ates-
tada com este sentido nos dicionários do século XIX), isto é sair de
uma reunião social sem aviso prévio para não interromper os outros
convivas. Ora a expressão filer à l'anglaise

8

, indica, por imitação das

regras sociais da Inglaterra, que se saia discretamente também (note-
-se que em Inglaterra temos to take french leave, como em portu-
guês), sem cumprimentar os hospedes dessa cerimónia social, contra-
riamente ao hábito francês, que impunha (no século XVIII) que se
cumprimentasse pelo menos os hospedes da casa. Deste modo, todas
as expressões, embora com referentes diferentes, acabaram por
aquirir um mesmo sentido, o que pressupõe uma interpenetração
cultural que ultrapassa as fronteiras nacionais, criando zonas de
miscegenação cultural.

Vejamos agora os seguintes exemplos:

Passar as passas do Algarve
Ser mais velho que a Sé de Braga
Ser do tempo da Maria Cachucha
Mandar para a Casa Pia
Meter o Rossio na rua da Betesga
Ficar a ver navios do Alto de Santa Catarina
Cair o Carmo e a Trindade
Andar a pintar os tectos do Rossio

Ou para o francês:

Avoir l'air de revenir de Pontoise
Avoir l'âne de Buridan
Faire son cours à Asnières
Se porter comme le Pont-Neuf
Donner une réponse de Normand
Faire une promesse de Gascon

Cada língua tem um número importante de expressões que referem

explicitamente traços intrínsecos e marcantes do seu povo, e, neste
caso específico, referentes geográficos. Traduzir para outra língua
expressões deste tipo (a tradução de que falamos pressupõe a
contextualização das expressões, a sua inserção num texto), levanta
alguns problemas:

7

Exemplo referido e comentado no Dicionário das origens das frases feitas
de O. Neves.

8

Cf. Le bouquet des expressions imagées.

background image

– Será licito o tradutor encontrar expressões equivalentes na outra

língua, perdendo, como é óbvio, os referentes geográfico-cultu-
rais expressos na expressão?

– Poder-se-ia substituir os referentes geográfico-culturais de uma

língua pelos da língua para que se traduz?

– Nesse caso, será que o tradutor tem a legitimidade de adulterar

os referentes culturais, substituindo, desta maneira, o saber ge-
nuíno de um povo pelo de outro povo?

– Por outro lado, não será absurdo fazer este tipo de transposi-

ções, transpondo para a boca ou a sensibilidade de um povo
imagens de um outro povo?

9

Mas então que soluções restam ao tradutor?
Berman, como já referimos, sugere que se mantenha a expressão,

privilegiando os jogos de palavras, as sonoridades, os ritmos e os efei-
tos porque como ele diz existe em nós uma consciência da
lexicalização que nos permite reconhecer as expressões. Deste modo,
mantinham-se intactos os valores culturais.

Misri

10

propõe, para estes casos, uma neutralização ou banalização

da imagem inicial, registando-se perda da informação. O tradutor po-
deria optar por parafrasear o sentido da expressão

Bouchard

11

sugere a substituição da expressão por outra expressão

equivalente da outra língua, na medida em que a perda da expressão
banaliza o próprio texto e destrói a sua força expressiva. Mas como já
referimos, a equivalência nem sempre é melhor solução.

Do nosso ponto de vista, não existe uma solução única, nem uma

tradutologia das expressões idiomáticas. As várias soluções propostas
pelos autores não se excluem, tudo depende do tipo de texto e dos
elementos a privilegiar para que a tradução seja o mais perfeita possí-
vel, isto é, produza os mesmos efeitos na língua de chegada.

As expressões fraseológicas seguintes serão equivalentes?
La semaine des quatre jeudis / quando as galinhas tiverem dentes
Pode-se falar de uma equivalência semântica. O valor semântico

das expressões pode resumir-se a nunca. Mas a substituição da
expressão francesa pela portuguesa acarreta perdas culturais, sentidas
e percebidas por um falante de língua francesa e incompreensíveis
para um português, porque não faz parte do seu referente cultural.
Porquê jeudi? A quinta era o feriado escolar, quatro dias de aulas e
um feriado (a expressão subverte essa realidade cultural). Para o leitor

9

Por exemplo, pôr na boca de um personagem francês «Passei as passas do
Algarve», ou na boca de um personagem português «Se porter comme le
Pont-neuf».

10

Cf. Misri (1990).

11

Cf. Bouchard (1984).

background image

português, esta realidade é desconhecida porque não faz parte dos
seus hábitos escolares. As imagens, enquanto elementos lexicalizados,
estão intrinsecamente ligadas ao povo que lhes deu vida.

Referências bibliográficas

Berman, Antoine (1985): «La traduction et la lettre ou l'auberge du lointain»,

Les tours de Babel, Mauvezin, Trans-Europ-Repress.

Bouchard, Ch. (1984): «La locution: problèmes de traduction», Le Moyen

Français, 14/15.

Danlos, L. (1981): «La morphosyntaxe des expressions figées», Langages, 63.

Duneton, Cl. (1990): Le Bouquet des expressions imagées, Paris, Seuil.

Greciano, G. (1983): Signification et dénotation en allemand: la sémantique des

expressions figées, Metz, Centre d'Analyse Syntaxique.

Gross, M. (1982): «Une classification des phrases figées du français», Actes du

Colloque de Rennes, Amsterdam, Benjamin.

Gruning, Blanche (1990). Les mots de la publicité, Paris, Presses du CNRS.

Jorge, G. e S. Jorge (1997): Dar à língua, da comunicação às expressões

idiomáticas, Lisboa, Cosmos.

Lederer, M. (1994): La traduction aujourd'hui, Paris, Hachette.

Misri, G. (1990): «La traductologie des expressions figées», Etudes traduc-

tologiques, Paris, Minard.

Neves, Orlando (1992): Dicionário das origens das frases feitas, Porto, Lello &

Irmão-Editores.


Wyszukiwarka

Podobne podstrony:
Onetti, Jorge Siempre se puede ganar nunca
Dzieci ofiary przestępstw se
Cómo se dice Sugerencias y soluciones a las actividades del manual de A2
wniosek racjonalizatorski icp koliberII(1), ( ͡~ ͜ʖ ͡°) rozwiń horyzonty
rok IV se zimowa t?
Se laver
ms+excel+a+prace+se+vzorci+cz N3VZFNCF44ZMVBX7PGJOYQMEBIWIY54GYV6NZYA
La Regola Francescana
SE, pedagogika
20'', Politechnika Lubelska, Studia, semestr 5, Sem V, Sprawozdania, sprawozdania, Sprawozdania, Lab
Protel 99 SE projektowanie Obwodow Drukowanych
Mercedes Lackey SE 6 Spiritride
hleda se zdravy clovek
14'''''''''', Politechnika Lubelska, Studia, semestr 5, Sem V, Sprawozdania, sprawozdania, Sprawozda
Macintosh SE, ● Mója Kolekcja Zbiorów komputerów Zabytkowe
Le taux? chômage atteint un niveau historique en France
Sześć najlepszych akcji sezonu 11 w SE
Se

więcej podobnych podstron