DA HERMENÊUTICA COMO DESVELAMENTO DO OCULTO
BREVES CONSIDERAÇÕES
(*) Glênio Sabbad Guedes
Prolegomena
Linguagem e interpretação são ¨fenômenos¨ incindíveis da
realidade humana. Na verdade, ela, a interpretação, está presente em toda e
qualquer manifestação da linguagem, não havendo sentido sem
interpretação,e, correlatamente, linguagem sem sentido.
Interpretar é, em síntese, atribuir significados a um objeto, seja de
que natureza for. E, nesse momento, deparar-se-nos-ia outra questão
momentosa : o que é o significado? A ela vários lingüistas e filósofos da
linguagem se dedicaram, sendo, ainda, alvo de múltiplas reflexões.
O Direito tem muito que ver com toda essa discussão. Manifestado
em linguagem, exteriorizado por signos técnicos, é, a linguagem, dele
constitutivo, sendo, pois, dela reflexo. Como já se dizia em Roma, uma
palavra mal aplicada poderia significar o malogro da causa, ou, de forma
mais hodierna, quem pede mal, recebe mal, ou não recebe nada.
Mas a Hermenêutica, dita ciência da interpretação, é gênero, do
qual dimanam várias espécies, a saber : a jurídica, a sociológica, a filosófica,
a bíblica, a literária, e até mesmo a dita antiga - compreensiva dos trabalhos
então nascidos em Roma e na Grécia. Portanto, é ela um fenômeno geral,
humano, antes de ser, propriamente, uma daquelas espécies. E é desse
fácies geral que vamos tratar aqui, de forma sintética e reflexiva.
1.
DA HERMENÊUTICA
Fazer etimologia implica desvendar metáforas, implica desenterrar
fósseis semânticos de estratos históricos secular ou milenarmente
imbricados. Hermenêutica provém de Hermes, o mensageiro de Zeus, a
quem se atribuía a nobre missão de estabelecer comunicações, ou de
transmitir mensagens. Paul Ricoeur, filósofo do sentido e da interpretação,
em sua magistral obra Les conflits des interprétations. Essais
herméneutiques, Paris. Ed.du Seuil, bem a definiu, nos seguintes termos :
¨toda disciplina que procede por interpretação, e dou aqui à palavra
interpretação o seu sentido forte : o discernimento de um sentido
oculto num sentido aparente¨. Repare-se a extensão de sentido dado pelo
autor à hermenêutica. As ciências humanas seriam hermenêuticas, pois
todas procedem por interpretação, usam o método da compreensão para
¨explicar¨ os fatos humanos e/ou sociais. Por sua vez, discernir o oculto, no
aparente, é fazer manifestar os sentidos do não-sentido, pois o signo é,
antes de tudo, uma ausência, algo que está no lugar de outra coisa, é, enfim,
uma representação.
Meditemos melhor sobre essa questão. Direito e História, por
exemplo, são, à perfeição, ciências hermenêuticas. Ambas interpretam os
fatos. São deles dependentes. Ambas precisam de documentos, de
evidências. O trabalho do juiz, de fato, assemelha-se ao do historiador : ele
também reconstrói as pistas, para melhor entender o fato. Desenterra
provas. Interpreta indícios. Uma das diferenças está em que o juiz analisa
fatos, interagindo-os com normas que existem, valem e são eficazes.
Normas que podem ser aplicadas, porque vigem, tem vigor. E ele, juiz,
precisa fazer a análise da validade, lato sensu, da norma, diferentemente do
historiador, que não há de se preocupar com a questão da validade. E o
exemplo da História, em relação à Hermenêutica, ainda nos permite ir mais
longe : todo fato, dito histórico, é expresso por meio de um discurso, uma
linguagem, que demanda interpretação. Logo,o fato é interpretado por um
historiador, que vai ser reinterpretado por um leitor. O fato, pois, transitará
por mais de uma via. Mas, note-se bem, não o fato em si, mas sua narrativa.
Fato, e relato do fato, não são a mesma coisa, mas este constitui aquele - a
linguagem é constitutiva do fato, como o é do Direito! Como diria Franz
Goerg Maier, em seu Der Historiker und die Texte, Historische Zeitschrift,
238, 1, 1984, pp.83-94, ¨o texto histórico não é mímesis, mas diegesis¨. Isso
quer dizer o seguinte : ele, o texto histórico, não recria nada, não imita nada,
mas sim elabora a sua realidade! O que nos leva a uma outra ilação : a
verdade não é a dos fatos, mas a da narração dos fatos. A verdade é vertida
em linguagem!
Toda essa reflexão, a que muitos chamam de o ¨giro lingüístico¨
nas ciências humanas e na filosofia, é sobreposse importante para o Direito,
e aqui damos um exemplo bem pragmático : se as Autarquias, com as quais
trabalhamos - Bacen e CVM -, não forem convincentemente narrativas do
fato, se sua diegese não for bem MOTIVADA, a verdade, sua verdade, que
deseja espelhar, fica prejudicada. É uma ¨verdade falsa¨, deficiente,
insuficiente, ¨hipoavitária¨. E, aí, teremos as seqüelas jurídicas já conhecidas,
quais sejam, nulidades, motivação implícita, deficiente, insuficiente, etc.
Feita a reflexão acima, continuemos nossa viagem pela órbita da
Hermenêutica.
Tem ela um forte ligâmen com as epopéias de Homero, com a
explicação de sua Ilíada e Odisséia, na Escola helenística de Alexandria ; ao
estudo e comentário das Escrituras Sagradas da Bíblia, relacionando-se com
a Teologia ; aqui, em terreno cristão, desenvolve-se fortemente em
comunidades protestantes, que, não aceitando a leitura individual
proporcionada pela Igreja, passam a definir um conjunto próprio de regras de
interpretação ; no romantismo alemão, nossa ciência alça vôos mais
intrépidos. Reagindo ao ideólogos da Revolução Francesa, bem como ao
poder infrene do positivismo, a Alemanha, sob forte influência da corrente
romântica, passa a desenvolver estudos em torno do problema do método
nas ciências humanas, possibilitando, com isso, o surgimento das várias
espécies de hermenêutica, como a jurídica, a filológica e a histórica - estava-
se, aí, em pleno século XIX. Era, pois, o século da Hermenêutica Profana,
ou que se secularizava progressivamente..., e que teve sua culminância em
Schleiermacher!
Friedrich Daniel Ernest Schleiermacher ( 1768-1834 ) é
considerado o pai da Hermenêutica moderna. Segundo ele, ela, a
Hermenêutica, é a arte de evitar os mal-entendidos. O mérito deste autor é
grande, e pode resumir-se no seguinte : preocupou-se com o texto, seja ele
qual fosse ; tentou responder à grave pergunta ¨o que significa
compreender?¨; propunha, como método de análise, o estudo da gênese da
obra, o contexto em que ela surgiu, ou emergiu. Os estudos de
Scheleiermacher levaram, de forma irreversível, a uma nova posição
epistemológica das ciências humanas na enciclopédia das ciências. Tornam-
se elas originais!
Ao prógono seguiu-se o epígono : ao grande hermeneuta acima
citado seguiu-se um outro, à sua altura, e que soube bem continuar aquela
tarefa. Foi ele W.Dilthey ( 1833-1911 ), cujo projeto consistiu em estabelecer
o fundamento epistemológico das ciências humanas, distinguindo-as das
ciências naturais, quer quanto ao objeto, quer quanto ao método, ou modelo
de inteligibilidade. Dizia ele que, nas ciências naturais, tem-se a explicação ;
nas ciências humanas, ou do espírito, a compreensão - dualidade ou
separação essa que, hoje, já não pode ser mantida de forma tão absoluta.
Mesmo os seguidores de Dilthey tiveram de recuar, argumentando que em
ambas as ciências pode haver uma interpenetração de forças, uma
variabilidade recíproca de atos de explicação e compreensão ( vide, para
essa análise, a obra de Richard Palmer, Hermenêutica, edições 70, às
fls.111 e 112 ). Contudo, um dado é certo : com Dilthey a Hermenêutica
ganha força humanística, liberta-se do cientificismo de herança positivista
que invadia o estudo científico da época.
Tem-se, em seguida, o nascimento da Hermenêutica Filosófica,
por meio da fenomenologia de M.Heidegger, tributária de Husserl, seu antigo
mestre. O ilustre filósofo passa a enfocar o ser, a questão do ser, e não os
fundamentos epistemológicos das ciências humanas. Sua orientação é
ontológica, e não epistemológica. E toda filosofia passa a ser hermenêutica,
voltada à compreensão do ser. A fundação do ser, o Dasein, o estar-aí
heideggeriano, é o ponto focal de sua tese, argumentando, em substância,
que o tempo é o horizonte do ser, ou o ser é o próprio tempo - daí a famosa
obra intitulada Ser e Tempo, ou Sein und Zeit, 1927. Largam-se os textos,
enfoca-se tão-só o ser.
A Hermenêutica Filosófica, inaugurada por Heidegger, tem seu
epígono em Hans-Georg Gadamer, com seu Warhheit und Methode -
Verdade e Método -, onde constrói ele uma nova hermenêutica filosofia
baseada na ontologia da linguagem. O grande filósofo começa criticando a
Estética Contemporânea, entendendo ser um erro conceber a arte separada
da vida. A arte não é um objeto autônomo, fechado ao mundo, mas sim uma
forma de se revelar o ser ; não é um simples prazer estético, mas uma forma
de conhecimento do mundo. Ela é ontofânica! Como a linguagem, para ele,
também era ontofânica, ou, como diria Heidegger, é ela a morada do ser!
Dizia Gadamer : ¨O nosso próprio mundo de linguagem, este mundo em que
vivemos, não é um recinto fechado que impede o conhecimento das causas
tal como elas são ; antes engloba essencialmente tudo o que a nossa vista
consegue alcançar em comprimento e altura. É certo que uma tradição vê o
mundo diferentemente da outra. Os mundos históricos no decurso da história
diferiram uns dos outros e do mundo de hoje. No entanto, o mundo é sempre
humano, e isto significa que ele é um mundo lingüisticamente criado que está
presente em todas as heranças. ¨
Nesta seqüência, deparamo-nos com o gigante Paul Ricoeur,
filósofo francês do sentido e da interpretação. Para ele, que via na
Hermenêutica uma desmistificadora e reveladora do sentido, a interpretação
é o exercício da suspeita! Partindo da Psicanálise freudiana, entende que
todo desejo atua sob disfarce, e que a tarefa da explicação é levantar a
máscara do sentido, desfazer a ilusão! Baseado em Marx, Freud e
Nietzsche, afirma que é preciso ir-se além de Descartes : não só continuar
duvidando da coisa, mas também duvidar da consciência, como essa vê a si
própria! E, depois de desmistificar, é preciso revelar o sentido, reunir os
dados para o refazimento do significado, então oculto. Assim como os
demais, a importância que ele dá à linguagem é imensa, dada a sua
natureza de constituinte humana.
2.
DOS SENTIDOS TRADICIONAIS DA HERMENÊUTICA
Feita essa breve explicação histórica da Hermenêutica, cabe-nos,
agora, baseados em Palmer, dar os três sentidos tradicionais do termo, a
dizer : a) como dicção, declamação ou proclamação ; b) como explicação ;
c) e como tradução.
Como dicção, ou proclamação, a hermenêutica tem que ver com o
algo de sagrado que há no momento de proferimento de uma palavra, ou
leitura de um texto. E quem diz, está a interpretar! Quem executa uma peça
teatral, ou uma partitura musical, imprime-lhes seus estilo, sua versão
intelectiva, ou sensitiva. E aqui, neste sentido, há outra característica : uma
execução, um desempenho interpretativo, é um ato único ; pode até se
repetir, mas terá outros atributos, outra forma de sentir a mensagem...
Como explicação, define-se a interpretação como a primeira
enunciação de algo, de um objeto, de uma realidade. Essa enunciação,
entenda-se bem, é anterior à lógica, é um juízo prévio, de pré-compreensão,
acerca do objeto enunciado. A análise lógica deriva dessa primeira
enunciação. Toda primeira enunciação já é uma tentativa de interpretação. E,
muitas vezes, nosso horizonte de compreensão pode não coincidir com o
horizonte interpretativo do texto. Por não conhecer o contexto histórico ou
social em que o texto foi transmitido, posso não ter condições de entendê-lo.
Tem-se, então, a necessidade de uma fusão de horizontes, que acontece por
meio, e.g., de leituras sucessivas, reunião de informações, acerca daquele
texto estudado - note-se como o presente sentido de interpretação é
sobremodo importante para a hermenêutica jurídica!
Por fim, a Hermenêutica como tradução. Aqui, importa relevar o
sentido de contextualização da mensagem transmitida. Sabido, como o é,
que as línguas são repositórios de experiências culturais, ou visões de
mundo diferentes, a pergunta que fica é : como passar esse conhecimento
cultural de uma língua para outra? Traduzir é isso : contextualizar culturas
por meio de idiomas distintos entre si. Defende-se, para isso, a idéia de
desmitologização, ou seja, procurar ver no texto traduzido o que hoje,
atualmente, ele pode significar para nós! É preciso, como ainda ensina
Palmer, penetrar a ontologia dos textos, sua metafísica, reconhecer-lhes o
modo de estar no mundo - como ainda diz o autor, para entender a Odisséia
é preciso lembrar que as coisas naturais são dotadas de vida e de intenções,
que cada processo natural é resultado da vontade de um ser sobrenatural,
etc.
3.
CONCLUSÃO
A Hermenêutica Jurídica é apenas uma das espécies de
Hermenêutica. Essa, na verdade, qua fenômeno geral, é geradora e
constitutiva do ser, porque, ao interpretá-lo, dá-lhe forma e conteúdo. Se os
objetos ¨falam¨, é de mister entendê-los, dar-lhes sentido...
Linguagem, sentido, e intepretação, constituem, a nosso parecer,
a trilogia do humano, do ¨circunstancialmente¨ humano. Arte, Religião,
Direito, Filosofia, obras supremas do espírito humano, dependem,
fulcralmente, daquela trilogia, não só para interpretar o mundo, mas também
para hetero-intepretarem-se...
Interpretar o mundo, eis a missão indelegável, ou indeclinável, do
ser humano!
Em 22.12.04
(*)
Procurador da Fazenda Nacional com assento no CRSFN