O PRINCIPE DESAPARECIDO Frances H Burnett

background image


Frances H. Burnett

O Príncipe Desaparecido
























background image






Infanto-Juvenil

Círculo de Leitores

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à

leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos
de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em
parte, ainda que gratuitamente.


O PRINCIPE DESAPARECIDO
Tradução de Maria José R. Martins
Capa de José Antunes
Ilustrações de João Pedro Cochofel
CÍRCULO DE LEITORES

background image




Os novos inquilinos da Praça Philibert


Há em certas partes de Londres muitos quarteirões sombrios, de casas

feias, mas de certeza que não existe nenhum mais horrível do que a Praça
Philibert. Diz-se que já foi um local bem atraente, mas há tanto tempo que
ninguém se lembra. Ficou na memória pelos seus jardins descuidados cujas
vedações rebentadas deveriam protegê-los do tráfego constante de uma estrada
congestionada com camionetas, táxis, furgonetas e outros veículos pesados e
também com a constante passagem de pessoas vestidas pobremente, que tanto
podiam ir para o trabalho como estarem a regressar ou ainda andarem à
procura de uma ocupação para não morrerem de fome.

As fachadas de tijolo das casas estavam escurecidas pelo fumo, as janelas

quase todas sujas e com cortinas baratas ou até mesmo sem cortinas. Os
canteiros, onde outrora deviam ter existido flores, eram agora constituídos por
terra seca, onde nem as sementes germinavam. Um deles era utilizado como
pátio de cantaria, onde estátuas, cruzes e placas com inscrições como “Em
memória de...”, estavam à venda. Outro tinha pilhas de madeira velha e outro
ainda exibia mobília em segunda mão, cadeiras desengonçadas, sofás com o
estofo a sair pelos buracos e espelhos rachados. O interior das casas era tão
triste como a sua fachada. Eram exactamente iguais umas às outras. Em cada
uma delas, uma entrada escura conduzia às escadas estreitas que iam dar aos
quartos do primeiro andar, ou a degraus estreitos que desciam para as cozinhas
na cave.

O quarto das traseiras dava para pátios sujos e pequenos, onde gatos

escanzelados lutavam ou se sentavam nos muros esperando por uma pequena
nesga de sol para se aquecerem; as casas da frente davam para a tal estrada
barulhenta, permitindo que o ruído entrasse pelas janelas.

Mesmo nos dias bonitos, era feio e sem vida e era o local mais horroroso

de Londres nos dias chuvosos de nevoeiro.

Era isto que pensava um rapazito, sentado na beira do passeio,

observando quem passava, na manhã seguinte àquela em que, juntamente com
o seu pai, se instalou no quarto das traseiras do n.o 7, e que é quando esta
história precisamente começa.

Tinha cerca de doze anos, o seu nome era Marco Loristan e era um rapaz

que chamava à atenção. Em primeiro lugar, era alto para a sua idade e de forte

background image

constituição, com ombros largos, pernas e braços compridos e fortes. Estava
habituado a ouvir dizerem-lhe:

Mas que belo rapaz. A sua tez era mais escura do que a dos ingleses ou

americanos, de traços fortes, e espesso cabelo preto, com olhos grandes e
profundos que apareciam pelo meio das fartas pestanas. Era o mais diferente
possível dos ingleses, e um bom observador via logo pelo seu olhar calmo que
era pouco falador.

Isto notava-se especialmente nessa manhã, porque os seus pensamentos

eram de tal natureza que provocariam essa expressão adulta a qualquer rapaz
de doze anos. Pensava na viagem longa e apressada que tinha feito desde a
Rússia, com o pai e o seu criado Lazarus, um antigo soldado.

Tinham atravessado o continente a correr, enfiados numa carruagem

apertada de 3. a classe, como se algo muito importante ou terrível os
conduzisse. E agora, aqui se encontravam instalados em Londres, como se fosse
para sempre, no n.o 7 da Praça Philibert. No entanto, sabia que embora
pudessem ficar um ano, era mesmo muito provável que, a meio de qualquer
noite, u seu pai ou Lazarus o viessem acordar e lhe dissessem: Levanta-te e
veste-te depressa; temos de partir imediatamente. Dias mais tarde, tanto podia
estar em Petrogrado como em Berlim, Viena ou Budapeste, desterrado numa
casa tão pequena e desconfortável como este n.o 7 da Praça Philibert.

E com estes pensamentos passou a mão pela testa, continuando a observar

os autocarros. Mas embora a vida estranha e a íntima ligação que tinha com o
pai, o tivessem feito parecer mais velho, era somente um rapaz e por vezes o
mistério das coisas pesava muito nele e obrigava-o a pensar profundamente.

Em nenhum dos muitos países por onde tinha passado encontrara

ninguém que tivesse tido uma vida como a sua. Os outros tinham sempre lares
onde viviam ano após ano; iam regularmente à escola, brincavam uns com os
outros, falavam das coisas que lhes tinham acontecido e das viagens que tinham
feito. Quando alguma vez ficava num local tempo suficiente para fazer amigos,
nunca podia esquecer que toda a sua existência era uma espécie de segredo,
cuja segurança dependia do seu próprio silêncio e discrição.

Acontecia-lhe isso devido às promessas que tinha feito ao pai e que

tinham sido a primeira coisa que se lembrava de ter feito. Não que alguma vez
se tivesse arrependido de algo relacionado com o pai. Ao pensar nisso erguia
orgulhosamente a cabeça. Nenhum dos rapazes tinha a sorte de ter um pai
assim, nem sequer um só. O pai era para ele um ídolo e um chefe. Mal se
lembrava de o ter visto com outras roupas menos pobres e coçadas, mas, apesar
disso, era sempre o mais distinto.

Quando ele passava pela rua, as pessoas voltavam-se para o ver, muito

background image

mais vezes do que se viravam para olharem para Marco, e o rapaz pensava que
isso não se devia ao facto de o pai ser um homem alto, fino e de tez escura, mas
porque ele parecia de algum modo ter nascido para comandar exércitos, e a
quem ninguém ousaria desobedecer. Contudo, Marco nunca o tinha visto
comandar ninguém, e eles sempre tinham sido pobres e andado mal vestidos e
mesmo muitas vezes subalimentados. Mas onde quer que estivessem, as poucas
pessoas que o viam, tratavam-no com deferência e quase sempre se levantavam
quando estavam na sua presença, a não ser que ele os convidasse a sentarem-se.

Com certeza, é porque eles sabem que é um patriota, e os patriotas são

sempre respeitados, pensava o rapaz.

Ele próprio queria ser um patriota, embora nunca tivesse visto o seu país,

a Samávia. No entanto conhecia-o muito bem.

O pai tinha-lhe falado muito dele, desde aquele dia em que tinha feito as

tais promessas. Ensinara-o a reconhecê-lo, ajudando-o a estudar mapas
detalhados com as suas cidades, montanhas e estradas. Contara-lhe os males
que tinham sido infligidos ao seu povo, os seus sofrimentos e lutas pela
liberdade e, acima de tudo, a sua inabalável coragem. Quando conversavam um
com o outro acerca da história do seu país, o sangue corria velozmente e ardia
nas veias de Marco, e ele sabia que o coração do pai também batia forte, pelo
fulgor que lhe perscrutava no olhar. Os seus compatriotas tinham sido
roubados e morrido aos milhares em consequência de sevícias e fome, mas
nunca lhes conseguiram conquistar a alma; e através de todos aqueles anos, em
que países mais poderosos foram subjugados e aprisionados, eles nunca
pararam de lutar para reaverem a liberdade que tinham gozado durante tantos
séculos.

- Porque não vivemos nós lá? - gritou Marco no dia em que fez as

promessas. - Porque não voltamos para lá e lutamos? Quando for crescido serei
soldado e morrerei pela Samávia.

- Nós somos dos que têm de viver para a Samávia, trabalhando dia e noite

- respondeu o pai. - Esquecendo-nos de nós próprios, treinando corpo e espírito,
aprendendo o que for melhor para o nosso povo e para o nosso país. Até
mesmo os exilados podem ser soldados samavianos. Eu sou um deles e tu
deves ser outro.

- Nós somos exilados? - perguntou Marco. Um estranho olhar perpassou

pela cara do pai.

- Não - respondeu, e não disse mais nada. Marco, que o conhecia bem,

sabia que não devia repetir a pergunta.

As palavras que o pai proferiu a seguir foram acerca das promessas que

tinham acabado de fazer. Marco era ainda muito pequeno nessa altura, mas

background image

percebeu a solenidade delas, e sentiu-as como uma honra, como se fosse já um
homem.

- Quando fores homem, saberás tudo o que agora queres saber - disse

Loristan. - Agora és ainda uma criança, e a tua cabecinha não deve ser
sobrecarregada com muita coisa. Mas tens uma missão. Por vezes uma criança
esquece-se de que as palavras podem ser perigosas. Tens de prometer que
nunca te esquecerás disto.

Onde quer que estejas, se tiveres colegas, tens de permanecer silencioso

acerca de muitas coisas. Não podes falar do que eu faço, nem das pessoas que
me visitam. Não deves mencionar as coisas da tua vida que a tornam diferente
da dos outros rapazes. Tens de te lembrar que existe um segredo, e que uma
simples palavra o pode trair. És um Samaviano, e houve Samavianos que teriam
dado a vida milhares de vezes para não terem de trair um segredo. Tens de
aprender a obedecer sem fazer perguntas, como se fosses um soldado. E agora
tens de prestar juramento de obediência.

Levantou-se e dirigiu-se para um canto da sala. Ajoelhou-se, arrastou o

tapete, levantou uma tábua do chão e tirou algo que se encontrava debaixo. Era
uma espada; e, ao voltar para ao pé de Marco, desembainhou-a. O pequeno mas
forte corpo da criança empertigou-se e os grandes olhos faiscaram. Ia prestar
juramento de obediência sobre uma espada, como se fosse um homem. Não
sabia que a sua pequena mão abria e fechava num aperto de entendimento,
porque os do seu sangue tinham transportado durante séculos espadas e
combatido com elas.

Loristan entregou-lhe a grande espada desembainhada, e colocou-se

aprumado diante dele.

- Repete todas as palavras que eu disser! - ordenou.
E à medida que as pronunciava, Marco repetia-as em alto e bom som.
- Na minha mão a espada, pela Samávia! No meu peito o coração, pela

Samávia! A vivacidade do meu olhar, os meus ideais, a vida da minha vida,
pela Samávia! Aqui se faz um homem pela Samávia. Deus seja louvado!

Nesta altura Loristan colocou a mão no ombro da criança, e o seu rosto

moreno irradiava orgulho. - A partir deste momento - disse ele -, tu e eu somos
companheiros de armas.

E, desde então, até ao dia em que se achou por detrás do gradeamento do

n.o 7 da Praça Philibert, Marco nunca mais se esqueceu disso.

background image




2
Um jovem cidadão do mundo


Marco já tinha estado em Londres mais do que uma vez, mas nunca nos

alojamentos da Praça Philibert. Quando o traziam para uma cidade ou capital
pela segunda ou terceira vez, já sabia que a casa para onde seria levado ficaria
num bairro que ainda não conhecia, e que não tornaria a ver as pessoas que
tinha encontrado anteriormente. Quaisquer traços de ligação que o unissem a
outras crianças tão pobres e maltrapi lhas como ele, por mais frágeis que
fossem, eram imediatamente quebrados. O seu pai nunca o tinha proibido de
fazer amizades fortuitas.

Havia-lhe até dito, na verdade, que tinha as suas razões para não querer

que o filho se mantivesse indiferente aos outros rapazes. A única barreira que
devia existir entre eles, devia ser a de manter silêncio em tudo o que dissesse
respeito às suas deambulações de país para país. Os rapazes tão pobres como
ele, não faziam viagens constantes, portanto nem davam por isso, quando ele
não as referia, ao conversarem uns com os outros. Se estava na Rússia só devia
falar dos locais russos e do povo russo com os seus costumes. E devia fazer o
mesmo quer se encontrasse em França, na Alemanha, Áustria ou Inglaterra.

Quando aprendeu inglês, francês, alemão, italiano e russo, não sabia para

que lhe serviria isso. Parecia-lhe ter crescido no meio de línguas em constante
mudança, mas habituara-se a todas, tal como as crianças

se adaptam aos

idiomas dos locais em que vivem. Contudo, lembrava-se que o seu pai sempre
prestara atenção à sua pronúncia e à sua maneira de falar fosse qual fosse o país
em que estivessem a viver na ocasião.

- Não deves parecer estrangeiro em nenhum país.
É necessário que o não pareças. Se estiveres em Inglaterra, não podes saber

francês, alemão nem nenhuma

outra língua além do inglês.
Uma vez, quando ele tinha sete ou oito anos, um rapaz que ele conhecera

perguntara-lhe qual era o trabalho que o pai fazia.

- O pai dele é carpinteiro, e ele perguntou-me se o meu também era - foi

assim que Marco contou a história a Loristan. - Mas eu disse que não.
Lembrei-me que o pai está quase sempre a escrever e a desenhar mapas, e então
disse que era escritor, mas que eu não sabia o que é que escrevia, e que o pai

background image

tinha dito que era uma profissão pobre. Tinha ouvido o pai dizer isso uma vez a
Lazarus. Foi uma coisa acertada, o que lhe disse?

- Sim. Podes sempre dizer isso quando te perguntarem.
Foi isto que Loristan lhe respondeu, e desde aquela altura, se, por

qualquer razão, perguntavam a Marco quais eram os meios de sobrevivência do
pai, era muito simples, e quase verdade, dizer que ele escrevia para ganhar o
pão de cada dia.

Estava muito aborrecido nessa primeira manhã. Desejava ter algo para

fazer ou alguém com quem falar. Londres, tal como a olhava em Marylebone
Road, parecia um sítio horrível. Era suja, miserável e cheia de pessoas com ar
triste. Além disso já não era a primeira vez que via as mesmas coisas, o que o
fazia sempre desejar ter algo com que se ocupar.

De repente afastou-se do portão e entrou em casa para falar com Lazarus.

Foi encontrá-lo entretido no seu cubículo sombrio, no quarto andar nas traseiras
da casa.

- Vou passear - comunicou-lhe. - Por favor diz isso ao meu pai, se ele

perguntar por mim. Ele agora está ocupado e não devo interrompê-lo.

Lazarus estava a remendar um casaco velho, como costumava fazer com

todas as coisas, até mesmo, por vezes, com os sapatos. Quando Marco falou, ele
levantou-se logo para lhe dar atenção. Era muito caprichoso e minucioso nestas
questões de delicadeza. Nada deste mundo o faria ficar sentado quando
Loristan ou Marco estivessem ao pé dele. Marco pensava que era por ele ter
sido treinado para soldado com tanto rigor. Sabia que o seu pai tinha tido
imenso trabalho para o desabituar de fazer a costumada saudação quando
falassem com ele.

- Talvez - ouvira Marco uma vez Loristan dizer quase severamente,

quando ele se tinha esquecido e se pusera a fazer a saudação, no momento em
que o seu amo atravessava um portão desengonçado que dava para a entrada
de uma casa igualmente com ar desprezado que estava para arrendar -, talvez te
consigas lembrar se eu te disser que não é seguro, nada seguro mesmo! Podes
pôr-nos em perigo!

É claro que isto ajudou o bom homem a controlar-se. Marco lembrava-se

que nessa altura ele ficara pálido, batera na testa e dissera de enfiada uma série
de palavras em samaviano, como que a servir de desculpa. Mas, se nunca mais
os tinha saudado em público, não deixara todavia de usar outras maneiras de
mostrar consideração e cerimónia, acostumando-se por isso o rapaz a ser
tratado como se ele, Lazarus, não passasse de um pobre tipo de casaco
remendado.

- Sim, senhor - respondeu Lazarus. - E onde gostaria de ir?

background image

Marco levantou um pouco as sobrancelhas escuras, tentando recordar-se

dos sítios de Londres, em que estivera da última vez.

- Visitei tantos lugares e vi tantas coisas desde que aqui estive, que devo

começar a fixar novamente as ruas e os prédios de que já não me consigo
lembrar.

- É verdade, senhor - disse Lazarus. - Passou tanto tempo, e só tinha oito

anos quando cá esteve da última vez.

- Acho que vou ver se descubro o Palácio Real, e depois vou andar por aí a

tentar decorar os nomes das ruas - disse Marco.

- Sim, senhor - respondeu Lazarus fazendo desta vez a sua saudação

militar.

Marco levantou a sua mão direita em sinal de agradecimento, como se

fosse um jovem oficial. A maior parte dos rapazes poderia ter parecido
desajeitado ou ridículo ao fazer este gesto, mas ele fê-lo com à-vontade, porque
se tinha familiarizado com esta prática desde a infância. Observara oficiais a
retribuir as saudações dos seus subalternos, quando se cruzavam por acaso nas
ruas; vira príncipes levando calmamente a mão aos seus capacetes, em sinal de
agradecimento, quando passavam por entre as multidões que os aplaudiam.
Tinha visto muitos cortejos reais, mas sempre e só como um rapaz mal vestido
despercebido entre a multidão. Embora pobre, um jovem cheio de energias não
pode passar o tempo a ir de um país para outro, sem se acostumar a ter
conhecimento da vida pública de realezas e grandes senhores, como se isso não
passasse de um mero acontecimento do dia a dia. Marco assistira já à visita de
imperadores em países do continente. Nas grandes capitais, ele sabia onde é
que as sentinelas se colocavam diante dos palácios. Já tinha visto algumas faces
reais vezes suficientes para as conhecer bastante bem e estar pronto a saudá-las,
quando as suas carruagens particulares calma e inesperadamente passassem
por ele.

- É bom conhecê-las. Devemos observar tudo e treinarmo-nos a tentar

lembrar caras e situações - dissera o seu pai. - Se fosses um príncipe ou um
jovem a treinar-se para uma carreira diplomática, ensinar-te-iam a reparar e a
lembrares-te das pessoas e das coisas, assim como te ensinariam a usar com
elegância a tua própria língua. É uma experiência útil para toda a gente: tanto
para um pobre tipo de casaco remendado como para outro habituado a
frequentar a corte. Mas como tu não podes ser educado da maneira normal,
tens de aprender a partir das viagens que fazes e do mundo que te rodeia. Não
deves perder nada, nem esqueceres-te de coisa nenhuma.

Fora o seu pai quem lhe ensinara tudo, e com ele aprendera muito.

Loristan tinha o poder de tornar as coisas fascinantes. Marco achava que ele

background image

sabia tudo. Eles não eram suficientemente ricos para poderem comprar muitos
livros, mas Loristan conhecia as riquezas de todas as grandes capitais e os
recursos das mais pequenas cidades. Juntos, ele e o filho, tinham percorrido
galerias repletas de obras primas mundiais, de quadros diante dos quais
haviam desfilado, através dos séculos, cortejos ininterruptos de olhares
enlevados.

Por não ter companheiros nem nada com que brincar quando ainda era

pequeno, começou a conceber uma espécie de jogo a partir das suas
deambulações através de galerias de pintura. Consistia em tentar lembrar-se de
tudo quanto conseguisse, para poder descrever com todos os pormenores ao
pai, quando à noite se sentassem os dois a conversar sobre o que ele tinha visto.
Estas conversas com o pai, à noite, preenchiam as suas horas mais felizes. Nessa
altura não se sentia só, e quando o pai se sentava ao pé dele e o olhava nos
olhos, dando-lhe toda a atenção, então ainda mais confortado e contente ficava.
Por vezes trazia esboços rápidos de objectos sobre os quais queria fazer
perguntas, e Loristan conseguia sempre contar-lhe uma história completa
acerca daquilo que ele queria saber. E eram histórias tão cheias de colorido e tão
bem contadas que Marco não as podia esquecer mais.

background image




3
A lenda do Príncipe Desaparecido


Enquanto passeava pelas ruas, ia precisamente a pensar numa destas

histórias. Tinha-a ouvido contar pela primeira vez quando ainda era muito
novo, e de tal maneira ela se tinha fixado na sua imaginação, que pedia muitas
vezes que lha contassem. Fazia parte da longa história do passado da Samávia,
e era essa a razão por que ele gostava tanto dela. Lazarus tinha-lha contado
algumas vezes, mas ele gostara sempre mais da versão do seu pai, por ser mais
viva e emocionante. Na sua viagem de regresso da Rússia, quando foram
forçados a esperar durante uma hora numa fria estação secundária, Loristan
tendo achado que era muito tempo, resolveu discutir a história com ele.
Loristan procurava sempre uma maneira de tornar as horas difíceis e
desconfortáveis mais fáceis de serem vividas.

- Que grande homem, para um estrangeiro! - ouviu Marco um homem

dizer para o seu companheiro, quando passava por eles naquela manhã. -
Parece Polaco ou Russo.

E foi isto que o fez lembrar-se da história do Príncipe Desaparecido. Sabia

que a maior parte das pessoas que olhavam para ele e lhe chamavam
“estrangeiro” nem sequer tinham ouvido falar da Samávia. E aqueles que por
acaso se lembravam da sua existência, sabiam apenas que era um pequeno país
selvagem, de tal maneira situado no mapa, que os países maiores, seus
vizinhos, achavam que o deviam controlar e mantê-lo na ordem, e portanto
estavam sempre a fazer incursões ao seu interior para combater o seu povo e
tentar apoderar-se dele. Mas nem sempre isso tinha acontecido. Era um país
muito antigo que, no passado, fora célebre tanto pela sua pacífica felicidade e
riqueza, como pela beleza das suas paisagens. Dizia-se muitas vezes que era um
dos locais mais belos do mundo. E havia até uma lenda samaviana que
afirmava ter sido aí o paraíso. Nesses séculos passados, as suas gentes eram de
uma tal estatura e beleza física que pareciam ser uma raça de gigantes nobres.
Vivia lá nessa altura um povo de pastores, cujas ricas colheitas e esplêndidos
rebanhos eram motivo de inveja dos países menos férteis. Entre os pastores e os
lavradores havia poetas que cantavam as suas próprias canções quando
tocavam flauta ao pé das suas ovelhas, fosse nas montanhas, fosse nos vales
cobertos de flores. As suas canções eram sobre patriotismo, coragem e

background image

fidelidade para com os seus chefes e com o seu país. A cortesia simples do mais
pobre camponês era tão digna como a conduta de um nobre. Mas isso, como
dissera Loristan com um esmorecido sorriso, tinha sido antes de eles serem
forçados a lutar pela sobrevivência e esquecer o Jardim de Eden.

Há quinhentos anos subira ao trono um rei mau e fraco. O seu pai vivera

até aos noventa anos e o filho tinha-se cansado de esperar na Samávia pela
coroa. Partira para o mundo e visitara outros países e as suas cortes. Quando
regressou e se tornou rei, viveu como nenhum outro rei Samaviano tinha vivido
anteriormente.

Era um homem extravagante, cheio de vícios, com um temperamento

impetuoso e senhor de uma inveja amarga. Invejava as cortes maiores dos
países que tinha visitado e tentava por isso introduzir no seu próprio país os
seus costumes e as suas ambições. Acabou afinal por introduzir os seus piores
defeitos e vícios, o que fez iniciar lutas políticas e levou à formação de facções
descontentes. O dinheiro que existia foi esbanjado até que a pobreza começou
pela primeira vez a perturbar o povo. Os Samavianos importantes, depois do
primeiro impacto, irromperam com grande fúria. Houve tumultos e distúrbios,
e em seguida batalhas sangrentas. Visto que tinha sido o rei que estragara tudo,
não queriam nada com ele. Depuseram-no e no seu lugar colocaram o filho.
Nesta parte da história, Marco ficava verdadeiramente interessado. O jovem
príncipe não se parecia nada com o seu pai. Era um verdadeiro Samaviano de
sangue real, mais alto e mais forte para a sua idade do que qualquer outro
homem no país, e tão moreno como um jovem deus viking. E, além de tudo o
mais, ele tinha também um coração de leão e por isso, antes mesmo de ter
dezasseis anos, já os pastores e lavradores tinham começado a compor canções
sobre o seu valor, acerca da sua cortesia principesca e da sua bondade sublime.
Até as pessoas as cantavam na rua também.

O rei, seu pai, tinha sempre tido inveja dele, mesmo quando ainda era

uma criança e as pessoas corriam com alegria para o verem se, por acaso,
passava pelas ruas.

Logo que regressou das suas excursões e descobriu que o seu filho se tinha

tornado num belo adolescente, detestou-o. O povo começou a exigir que ele
abdicasse e, a partir daí, tornou-se louco de raiva e começou a praticar tais
crueldades e horrores que fez enfurecer as pessoas. Um dia atacaram o palácio,
dominaram e mataram os guardas e lançando-se sobre o rei nos seus próprios
aposentos, fazendo-o tremer de medo e fúria.

Gritavam que ele já não era mais o rei e que tinha de deixar o país, e

iam-no cercando, mostrando-lhe as ar mas que traziam consigo. Onde estava o
príncipe, que eles queriam para rei? Começaram então a gritar pelo seu nome,

background image

bem alto, entoando uma espécie de canção em coro.

- Príncipe Ivor, Príncipe Ivor, Príncipe Ivor!mas não obtiveram resposta. O

pessoal do palácio tinha-se escondido e o local ficara totalmente deserto e
silencioso.

O rei apesar de aterrorizado não podia deixar de escarnecer:
- Chamem-no outra vez - disse ele. - Ele tem medo de sair do seu

esconderijo!

Um dos montanheses mais selvagem esmurrou-o na boca.
- Tem medo? - exclamou o montanhês. - Se o Príncipe não aparece, é

porque tu o assassinaste, e então serás um homem morto!

Isto entusiasmou-os mais ainda. Retiraram-se, deixando três deles de

guarda, e correram pelas salas vazias do palácio gritando pelo nome do
príncipe. Mas não obtiveram resposta. Procuraram-no com frenesim em todo o
lado, derrubando qualquer obstáculo que se lhes interpusesse no caminho. Um
pagem escondido num cubículo, afirmou que tinha visto Sua Alteza Real passar
de manhã cedo, num corredor, a cantar baixinho para si próprio uma das
canções dos pastores.

E foi assim desta maneira estranha que o príncipe desapareceu da história

da Samávia, há quinhentos anos, uma vez que nunca mais foi visto.

Procuraram-no em todos os recantos, pensando que o rei o fizera

prisioneiro e o escondera ou até que talvez o tivesse morto. A fúria do povo
aumentou até à loucura. Havia sempre novas investidas e de vez em quando o
palácio era atacado para vasculharem tudo de novo. Mas nunca foi encontrada
qualquer pista do príncipe. Sumira-se como se fosse uma estrela cadente que
desaparece. Durante um ataque ao palácio, quando a última busca foi feita, o rei
foi assassinado por um nobre poderoso que encabeçava um dos ataques, e que
depois se auto-proclamou rei. A partir dessa altura o pequeno reino,
anteriormente maravilhoso, converteu-se num osso disputado por cães. A sua
paz bucólica desapareceu, visto que os países mais poderosos ameaçavam
atacá-lo e invadi-lo. Internamente também se destruía com as suas inúmeras
revoluções. Isto levava a que os sucessivos reis fossem sistematicamente
assassinados e logo outros escolhidos para ocupar o lugar. Ninguém podia
prever, quando ainda fosse jovem, quais seriam as regras por que teria de se
guiar na idade adulta, ou se os seus filhos morreriam em combates inúteis, ou
sob a pressão da pobreza e crueldade, com leis sem qualquer valor. Já não
existiam nem pastores nem camponeses que fossem poetas, mas, mesmo assim,
ainda se ouviam por vezes nas montanhas e nos vales algumas das antigas
canções. As mais apreciadas eram as que versavam um Príncipe Desaparecido,
que tinha tido o nome de Ivor. Se tivesse sido rei, teria salvo a Samávia, era o

background image

que diziam os versos, e todos os corações corajosos acreditavam que ele ainda
regressaria. Nas cidades modernas um dos ditos mais irónicos era: “Pois, isso
deve suceder quando o Príncipe Ivor voltar outra vez”.

Na sua infância, Marco preocupara-se amargamente com o mistério sem

solução. Para onde teria ido o Príncipe Desaparecido? Teria sido morto ou
escondido em qualquer calabouço? Mas se ele era tão grande e tão corajoso,
teria fugido de qualquer masmorra. O rapaz tinha inventado para si próprio
uma dúzia de finais para a história.

- Nunca ninguém terá encontrado a sua espada ou a sua capa, nem terá

ouvido ou descoberto nada acerca dele? - repetia, impacientemente, vezes sem
conta.

Numa noite de Inverno, estando sentados juntos à lareira de uma pequena

sala gelada numa fria cidade da Áustria, ele tinha sido tão insistente e fizera
tantas perguntas minuciosas, que o pai lhe deu uma resposta como nunca lhe
tinha dado antes, e que era uma espécie de final para a história, embora não
muito satisfatório:

- Toda a gente se deitou a adivinhar como tu. Alguns pastores muito

velhos que viviam nas montanhas, e que gostavam de acreditar em contos
antigos, relatavam um facto que a maior parte das pessoas considera uma
lenda. Diziam que, quase cem anos depois do príncipe ter desaparecido, um
velho pastor contara uma história que o seu pai, morto há muito, lhe confiara
em segredo, ao morrer. O pai dissera que num dia de manhã cedo, ao subir pela
encosta da montanha, encontrara na floresta o que ao princípio julgou ser o
corpo inanimado de um belo caçador jovem, certamente atacado por alguém
que pensara que o matara. Mas ele não estava completamente morto, e, então, o
pastor tinha-o arrastado para dentro de uma caverna, onde por vezes se
costumava refugiar das tempestades. Como havia lutas e desordem na cidade,
receou dizer o que havia encontrado; e mais tarde, quando descobriu que dava
guarida ao príncipe, já o rei havia sido morto e um homem ainda pior se tinha
apoderado do trono, governando a Samávia a ferro e fogo. O que pareceu mais
seguro para o simples camponês assustado, foi levar o jovem ferido para fora
do país, antes que houvesse hipótese de ser descoberto e assassinado, como de
certeza aconteceria. A caverna em que o príncipe estava escondido não ficava
longe da fronteira, e como se encontrava ainda tão fraco, que mal tinha
consciência do que se passava, atravessou-a clandestinamente, escondido num
carro carregado de peles de cabra, tendo sido levado por alguns monges que
desconheciam a sua origem ou nome. O pastor regressou com o seu rebanho
para as montanhas e lá viveu e morreu, sempre no terror das mudanças
constantes de reinado, com as sangrentas batalhas que sempre as

background image

acompanhavam. Os montanheses diziam entre eles, à medida que as gerações
se sucediam, que o Príncipe Desaparecido devia ter morrido jovem, porque de
contrário teria regressado ao seu país, para tentar restabelecer a ordem e a paz.

- Claro, ele teria regressado - disse Marco.
- Teria regressado se achasse que podia ajudar o seu povo - respondeu

Loristan, como se não se estivesse a referir a uma história que provavelmente
não passaria de uma lenda. - Mas ele era muito jovem e a Samávia estava nas
mãos de uma nova dinastia em que os seus inimigos dominavam. Não poderia
ter atravessado a fronteira sem um exército. Continuo a pensar que ele morreu
jovem.

Era nesta história que Marco ia a pensar quando caminhava pelas ruas, e

talvez os pensamentos que surgiam na sua mente transparecessem para a cara
de uma maneira que poderia chamar a atenção. Ao aproximar-se do Palácio de
Buckingham, um homem, de boa aparência, muito bem vestido e com um olhar
perspicaz, avistou-o, e depois de o ter observado com interesse, abrandou o
passo à medida que se aproximava. Um

bom observador teria pensado que ele vira algo que o intrigara e

surpreendera. Marco não o tinha visto e continuava a avançar pensando nos
pastores e no príncipe. O homem bem vestido começou a andar ainda mais
devagar. Quando estava bastante perto de Marco, parou e falou-lhe em
samaviano.

- Como se chama? - perguntou ele. O treino de Marco tinha sido, desde a

infância, um assunto muito sério. O seu amor pelo pai tinha tornado esse treino
uma coisa simples e natural e nunca se questionou sobre a sua razão de ser.
Assim como fora ensinado a guardar silêncio, também o fora a controlar a
expressão do rosto, o som da voz e, acima de tudo, a não mostrar surpresa. Mas
nesta altura ele podia ter ficado espantado por ter ouvido o som extraordinário
daquelas palavras pronunciadas em samaviano, numa rua de Londres e por um
senhor Inglês. Podia até ter respondido à pergunta em samaviano. Mas não o
fez. Com cortesia, tirou o boné e replicou em inglês:

- Como diz?
O olhar perspicaz do homem perscrutou-o com interesse. E em seguida

falou-lhe também em inglês.

- Talvez não compreenda. Perguntei o seu nome, porque se parece muito

com um samaviano que conheço - disse ele.

- Eu sou Marco Loristan - respondeu o rapaz.
O homem olhou-o bem nos olhos e sorriu.
- Não é esse o nome - disse. - Peço desculpa, meu rapaz.
Estava prestes a continuar a andar, tendo mesmo chegado a dar uns

background image

passos, quando parou e se virou para trás.

- Pode dizer ao seu pai que é um rapaz muito bem treinado. Foi o que quis

descobrir - e depois continuou a andar.

Marco sentia que o seu coração batia um pouco apressadamente. Este foi

um dos vários incidentes que tinham ocorrido durante os três últimos anos e
que o fizeram sentir que vivia de um modo misterioso, que sugeria perigo. Mas
ele próprio nunca ligou muito a isso. Porque é que havia de ter importância o
facto de ele ser bem comportado? Nessa altura lembrou-se de uma coisa. O
homem não tinha dito “bem educado” mas sim “bem treinado”. Bem treinado
de que maneira?

Sentiu a testa enrugar-se quando pensou no sorriso e olhar perspicaz que

ele tinha mostrado. Teria o homem falado com ele em samaviano para o
experimentar, para ver se ele ficava espantado e se esquecia que tinha sido
treinado para parecer saber só a língua do país em que vivia? Mas ele não se
tinha esquecido. Lembrava-se muito bem e dava graças por não se ter traído
fosse no que fosse.

- Até mesmo os exilados podem ser soldados samavianos. Eu sou um

deles. Tu deves vir a ser outro.

Isto dissera o seu pai, naquele dia, já há muito tempo, quando o fizera

prestar juramento. Talvez por não se ter esquecido do seu treino, estivesse já a
ser um soldado. Nunca a Samávia precisara tanto de auxílio como agora. Dois
anos antes, um pretendente ao trono tinha assassinado o rei que então
governava, assim como os seus dois filhos, e desde essa altura a Samávia tinha
sido de novo palco de tumultos e de uma guerra sangrenta. O novo rei era um
homem muito poderoso e tinha um grande séquito composto por pessoas
egoístas e más. Os países vizinhos interferiram para salvaguardar a sua própria
segurança, e os jornais apareceram cheios de histórias de combates selvagens e
atrocidades, e de notícias sobre a fome que os camponeses passavam.

Numa noite, já muito tarde, Marco entrara em casa e fora encontrar

Loristan a andar de um lado para o outro, com um papel amarfanhado entre as
mãos e os olhos a chispar. Tinha estado a ler as atrocidades cometidas em
mulheres inocentes e crianças. Lazarus, de pé junto a ele, olhava-o com enormes
lágrimas rolando-lhe pela cara abaixo. Quando Marco abriu a porta, o velho
soldado dirigiu-se a ele e conduziu-o para fora da sala.

- Desculpe, senhor! - dizia soluçando. - Ninguém o deve ver, nem mesmo

o senhor. Ele sofre horrivelmente.

Ficou de pé atrás da cadeira onde tinha conduzido e sentado Marco.

Inclinou a cabeça grisalha e chorou como uma criança a quem se tivesse batido.

- Oh!, Deus louvado, Senhor dos aflitos! Já é altura de nos devolveres o

background image

nosso Príncipe Desaparecido! - disse ele.

E Marco entendeu estas palavras como uma oração e admirou-se com tal

intensidade de exaltação, porque lhe parecia muito estranho rezar pelo regresso
de um jovem que tinha morrido quinhentos anos antes.

Quando Marco chegou ao palácio, ainda pensava no homem que tinha

falado com ele. Entretanto andava à volta do edifício para conseguir gravar na
sua memória o seu tamanho e forma, bem como todas as suas portas, para
tentar imaginar o tamanho dos seus jardins. Fazia isto porque era parte do seu
jogo e também do seu treino.

Quando voltou para a parte da frente, viu uma carruagem elegante, mas

com um aspecto um tanto austero, aparecer por entre as altas grades de ferro na
passagem da grande entrada do palácio real. Marco ficou ali de pé interessado a
ver quem iria entrar nela. Sabia que tanto imperadores como reis que não
estivessem em parada, mais não pareciam do que senhores bem vestidos e que,
por vezes, escolhiam sair calma e simplesmente como quaisquer outras pessoas.
Assim, ele pensou que talvez, se esperasse, pudesse ver uma daquelas caras tão
conhecidas que representam a mais alta nobreza e a maior autoridade dum país
monárquico e que, em tempos idos, representara também o poder sobre a vida,
a morte e a liberdade.

- Gostava de poder contar ao meu pai que vi o Rei e que conheço a sua

cara, assim como também conheço as caras do Czar e de dois Imperadores.

Houve uma ligeira movimentação dos criados, vestidos de vermelho, e,

passados momentos, um senhor idoso desceu os degraus apoiado noutra
pessoa. Depois entrou na carruagem seguido dessa pessoa, fecharam a porta e a
carruagem passou pelos portões, onde as sentinelas estavam de guarda.

Marco estava suficientemente perto para poder ver tudo distintamente. Os

dois homens iam a conversar interessadamente, e Marco verificou que já tinha
visto várias vezes, nas montras e nos jornais, a cara do que estava mais
afastado. O rapaz fez uma rápida e formal saudação. Era o Rei; e ao sorrir e
retribuir o cumpri mento, falou para o seu companheiro.

- Aquele belo jovem cumprimenta como se pertencesse ao exército - foi o

que ele disse, embora Marco não o pudesse ter ouvido.

O seu companheiro inclinou-se para a frente para olhar pela janela. E

quando viu Marco, a sua cara tornou-se mais séria.

- É verdade: ele pertence a um exército - respondeu -, embora não o saiba.

O nome dele é Marco Loristan.

Foi nessa altura que Marco conseguiu vê-lo bem pela primeira vez. Era o

homem de olhar penetrante, que tinha falado com ele em samaviano.

background image




4
O Rato


Marco ter-se-ia admirado muito se tivesse ouvido aquelas palavras; mas

como isso não aconteceu, voltou para casa surpreendido com outra coisa. Um
homem que estava tão intimamente ao serviço do Rei, devia ser uma pessoa
importante.

De certeza que estava muito bem informado, não só sobre o seu próprio

país, mas também sobre os outros países. Poucas pessoas sabiam alguma coisa
acerca da pobre e pequena Samávia, até os jornais terem começado a contar os
horrores da sua guerra; e quem, se não um Samaviano, sabia falar a sua língua?
Seria uma coisa interessante dizer ao seu pai que um homem que conhecia o Rei
falara com Marco em samaviano e lhe tinha dirigido aquela curiosa mensagem.

Daí a pouco encontrou-se a andar por uma rua lateral e a olhar para cima.

O facto de ser tão estreita e de ter dum lado e doutro casas tão altas, velhas e
com paredes tão inclinadas, atraiu a sua atenção. Parecia que um pouco da
cidade antiga de Londres tinha sido deixada ali, enquanto cresciam locais mais
novos que lhe tapavam a vista. Esta era um tipo de rua por onde gostava de
passar para satisfazer a sua curiosidade. Conhecia já muitas ruas assim, em
bairros antigos de inúmeras cidades. Nalgumas até já tinha vivido. Havia outra
coisa que agora o atraía para além do seu aspecto pitoresco.

Ouvia um barulho de vozes de rapazes e queria ver o que estavam a fazer.

Já mais que uma vez, ao chegar a um sítio estranho e ao sentir aquela solidão,
seguira aquele som de rapazes a brincarem ou a brigarem e conseguira fazer
um amigo temporário.

A meio caminho do fim da rua existia uma passagem de tijolo em forma

de arco. Vinha de lá o som de vozes, destacando-se uma em tom mais alto, mais
fino e mais agudo de entre todas as outras. Marco subiu a cima do arco e olhou
para baixo através da passagem. Ia dar a um pátio pavimentado de pedra
cinzenta, circundado pelas grades dum antigo cemitério, que ficava atrás de
uma igreja, cuja fachada principal dava para outra rua. Os rapazes não estavam
a brincar, mas a ouvir um deles, que lia o jornal.

Marco atravessou a passagem e pôs-se a ouvir também, escondendo-se na

parte escura da saída do arco e observando o rapaz que estava a ler. Era uma
pequena figura, estranha, com uma grande testa e olhos profundos,

background image

curiosamente vivos. Mas isso não era tudo. Era corcunda e as pernas pareciam
ser pequenas e arqueadas. Estava sentado com elas cruzadas à frente, numa
plataforma de madeira tosca colocada sobre umas rodas pequenas, com a qual
evidentemente se fazia transportar dum lado para o outro. Ao pé dele estava
uma quantidade de paus, amarrados uns aos outros como se fossem
espingardas. Uma das coisas que Marco notou logo, foi que o rapaz tinha um
pequeno rosto selvagem, marcado por rugas como se estivesse
permanentemente zangado.

- Calem-se, seus parvos! - gritou ele, para alguns rapazes que o

interromperam. - Não querem saber nada, seus ignorantes imundos?

Estava tão mal vestido como os outros rapazes, e apesar de pertencer à

gentalha da rua, tal como os seus companheiros, era todavia um pouco
diferente. De repente, por acaso, viu Marco.

- O que é que você está aí a escutar? - gritou ele, inclinando-se ao mesmo

tempo para apanhar uma pedra, que lhe atirou.

A pedra foi bater no ombro de Marco, mas não o aleijou muito. O que

ainda menos lhe agradou foi ver um outro rapaz querer atirar-lhe outra coisa, e
outros dois prepararem-se para fazer o mesmo, sem qualquer aviso.

Foi então direito ao grupo e parou mesmo ao pé do corcunda.
- Porque é que fez aquilo? - perguntou com a sua voz jovem, num tom

bastante grave.

Marco era bastante alto e tinha um ar suficientemente forte para dar a

entender que não era um rapaz de quem se pudesse dispor facilmente, mas não
foi isso que fez com que o grupo ficasse parado a olhar fixamente para ele. Era
qualquer coisa que havia nele; em parte, talvez, o facto de não estar irritado por
lhe ter sido atirada uma pedra, como se isso em nada o afectasse. Não o tinha
feito ficar zangado ou sentir-se insultado. Ficou simplesmente curioso. E porque
tinha ar asseado e as suas roupas, assim como o seu cabelo, tinham sido
escovados, a primeira impressão que causou com a sua aparência, quando
parou ao pé do arco, foi a de que era um jovem “figurão”, metendo o nariz
onde não era chamado; todavia, assim que ele se aproximou, viram que as
roupas bem escovadas estavam usadas e que havia remendos nos seus sapatos.

- Porque é que fez aquilo? - perguntou ele de novo, como se quisesse

apenas descobrir a razão.

- Eu não vou deixar-te entrar no meu clube, como se fosse teu, ó janota! -

disse o corcunda.

- Não sou nenhum janota e não sabia que isto era um clube - respondeu

Marco. - Ouvi vozes de rapazes e pensei que podia vir até aqui e ver o que se
passava. Quando te ouvi ler aquilo acerca da Samávia, quis escutar mais.

background image

E olhou para o rapaz, que tinha estado a ler, com aqueles seus olhos que

diziam tudo mesmo sem falar.

- Não precisavas de me ter atirado uma pedra - acrescentou. - Nos clubes

não fazem isso aos seus membros. Mas pronto, vou-me embora.

Ia retirar-se mas ainda não tinha dado dois ou três passos quando ouviu o

corcunda chamá-lo.

- Olha! - gritou ele. - Tu, olha!
- O que é que queres? - disse Marco.
- Aposto que nem sabes onde fica a Samávia, nem porque é que eles estão

a combater - foram estas as palavras que o corcunda lhe disse.

- Sim, sei. Fica a norte de Beltrazo e a leste de Jiardasia; e eles estão a

combater, porque um partido assassinou o Rei Maran, e o outro não os deixa
coroar Nicola Iarovitch. E como é que havia de deixar? Sendo ele um bandido,
como é, e não lhe correndo uma gota de sangue real nas veias?!

- Ah! - admitiu o corcunda com alguma relutância. - Sabes isso tudo afinal,

não é? Vem cá então.

Marco voltou para trás, enquanto os rapazes olhavam espantados. Era

como se dois chefes ou generais se encontrassem pela primeira vez, e a plebe
estivesse

a ver o que iria acontecer com esse encontro.

- Os Samavianos do partido de Iarovitch são de má raça e só querem

fazer mal - disse Marco, falando em primeiro lugar. - Não querem saber da
Samávia para nada. Só se interessam por dinheiro e pela possibilidade de
ditarem leis que os possam beneficiar a eles,

e aniquilar os outros todos. Eles

sabem que Nicola é um homem fraco, e que, se o coroarem rei, podem obrigá-lo
a fazer tudo o que quiserem.

O facto de ele ter falado primeiro e de ter dito aquelas palavras na sua voz

segura de rapaz, sem se gabar, e de ter pressentido de alguma maneira que eles
o iam ouvir, fez com que o aceitassem imediatamente. Os rapazes são seres
muito sensíveis e conhecem logo um chefe quando o vêem. O corcunda fitou-o
com os olhos a brilhar e os rapazes começaram a murmurar.

- Rato Rato - gritaram algumas vozes ao mesmo tempo. - Pergunta-lhe

mais, Rato!

- É isso que eles te chamam? - perguntou Marco ao corcunda.
- Eu é que chamo isso a mim próprio - respondeu ele ressentido. - “O

Rato”. Olha para mim! Arrastando-me pelo chão, assim desta maneira! Olha
para mim!

Fez um gesto, para dizer aos seus seguidores que se afastassem para o

lado, e começou a arrastar-se com movimentos rápidos para um lado e para o
outro, à volta do pátio.

background image

Inclinava a cabeça e o corpo, torcia a cara e fazia movimentos estranhos

como se fosse um animal. Até emitia ruídos agudos ao dirigir-se
apressadamente para aqui e para ali, tal qual um rato faria se estivesse a ser
caçado. Fez aquilo como se mostrasse uma habilidade, e a risota dos seus
companheiros era um aplauso para ele.

- Não parecia mesmo um rato? - perguntou quando parou de repente.
- Fizeste isso de propósito - respondeu Marco.
- Fazes isso para ter graça.
- Não é para ter graça - disse o Rato. - Eu sinto-me mesmo como se fosse

um rato. Todos são meus inimigos. Sou um verme. Não consigo lutar ou mesmo
defender-me, a não ser dando dentadas. Apesar de tudo, consigo morder - e
mostrou então duas fiadas de fortes dentes brancos e mais ponteagudos do que
costumam ser os dentes das pessoas. - Eu mordo no meu pai, quando ele fica
embriagado e me bate. Mordi-o até ele aprender a lembrar-se disso - e riu-se
dando guinchos. - Já não me bate há três meses, mesmo quando fica
embriagado, o que acontece a toda a hora - riu-se então, outra vez, dando ainda
mais guinchos. - Ele é um senhor - disse ele - e eu sou o filho de um senhor. Era
professor numa boa escola até que foi corrido, e isso aconteceu quando eu tinha
quatro anos e a minha mãe morreu. Agora tenho treze anos. Que idade tens?

- Tenho doze anos - respondeu Marco. O Rato fez uma careta, com ar de

inveja.

- Quem me dera ser do teu tamanho! Também és filho de algum senhor?

Pareces ser.

- Sou filho de um homem muito pobre - foi a resposta de Marco. - O meu

pai é escritor.

- Então, aposto dez contra um em como é uma espécie de senhor! - disse o

Rato. E de repente fez-lhe outra pergunta. - Qual é o nome do outro partido
Samaviano?

- O Maranovitch. Já há quinhentos anos que Maranovitch e Iarovitch têm

vindo a lutar um com ou outro. Têm governado alternadamente, assassinando
ou depondo os Reis do partido contrário. O último a ser morto foi o Rei Maran -
respondeu Marco sem hesitação.

- Qual era o nome da dinastia que governava antes de eles terem

começado a lutar? - perguntou-lhe o Rato. - O primeiro Maranovitch
assassinou o seu derradeiro representante.

- O Fedorovitch - disse Marco. - O último foi um mau rei.
- O filho dele foi o que nunca mais encontraram - disse o Rato. - Aquele a

quem chamavam o Príncipe Desaparecido.

Marco teria começado a falar demasiado se não fosse o seu longo treino de

background image

autocontrolo. Era muito estranho ouvir falar do herói dos seus sonhos neste
pátio sujo, precisamente na altura em que acabava de pensar nessa história.

- O que é que sabes sobre ele? - perguntou Marco, e, ao fazê-lo, viu o

grupo de rapazes maltrapilhos aproximar-se mais.

- Não muito. Só li alguma coisa sobre ele numa revista rasgada que

encontrei na rua - respondeu o Rato. - O homem que escrevia acerca dele dizia
que ele fazia parte de uma lenda e troçava das pessoas que acreditavam nisso.
Achava que já era altura de ele aparecer outra vez, se realmente tinha intenção
disso. Inventei histórias sobre ele, porque estes tipos gostam de me ouvir
contá-las.

Mas não passam de histórias saídas da minha imaginação.
- Nós gostamos dele - ouviu-se uma voz gritar -, porque ele era como

devia ser; lutou e lutaria ainda, se estivesse agora na Samávia.

Marco interrogou-se imediatamente sobre o que deveria contar. E decidiu

contar tudo.

- Ele não é uma lenda, mas sim uma parte da história da Samávia - disse. -

Também sei alguma coisa acerca dele.

- Como é que descobriste? - perguntou o Rato.
- Descobri porque o meu pai é escritor, e vê-se obrigado a ter livros e

jornais. Está por isso muito bem informado e sabe muitas coisas. Eu, como gosto
de ler, vou a bibliotecas públicas. Lá podem-se consultar livros e documentos. E
depois faço perguntas ao meu pai. Os jornais agora vêm cheios de notícias sobre
a Samávia.

Marco achou que aquilo era uma explicação que não era comprometedora.

Era bem verdade que ninguém podia abrir um jornal, nesta altura, sem ver as
notícias e as histórias da Samávia.

O Rato viu então surgir-lhe uma oportunidade de alargar a sua

informação.

- Senta-te aqui - disse - e conta-nos o que sabes sobre ele. Vocês, sentem-se

também aqui.

Não havia sítio onde se sentarem a não ser no pavimento, mas Marco

estava habituado a sentar-se em qualquer lado, tal como os outros rapazes, e
assim sentaram-se todos no chão. Ficou ao pé do Rato e os outros formaram um
semicírculo em frente deles. Os dois chefes tinham-se aliado, por assim dizer, e
os seguidores puseram-se “em sentido” com todo o respeito.

Nessa altura o recém-chegado começou a falar. Era uma boa história, a do

Príncipe Desaparecido, e Marco contou-a de um modo que a tornava ainda
mais real. Desde os sete anos que ele sabia que aquilo era real. Ele, que tinha
estudado os mapas da pequena Samávia com o pai, sabia que se poderia

background image

orientar em qualquer parte do país, tanto nas florestas como nas montanhas, se,
por acaso, um dia fosse a isso obrigado.

- Aquela revista rasgada que encontraste tinha mais do que um artigo

sobre a Samávia - disse ele para o Rato. - Eu li-os todos numa biblioteca. O
escritor até dizia que era um dos mais bonitos países que já visitara e também o
mais fértil.

O grupo que estava diante de si não sabia nada de fertilidade nem das

coisas do campo. Só conheciam as ruas de Londres e os seus pátios.
Constituíam um grupo tosco e, tal como tinham ficado admirados a olhar para
Marco logo que o viram pela primeira vez, do mesmo modo continuaram a
olhar extasiados para ele, à medida que ia falando.

Quando ele contou que os antigos Samavianos eram muito altos e que

conseguiam capturar cavalos selvagens e domesticá-los com muita perícia, mas
também com muita suavidade, de modo a treiná-los para seu uso, então ficaram
de boca aberta. Aquilo era o estilo de coisa que despertava a imaginação de
qualquer rapaz.

- Quem me dera apanhar um desses cavalos - gritou um dos rapazes,

sendo a sua exclamação logo seguida por uma dúzia de outras.

Depois, Marco falou das frondosas florestas que pareciam não ter fim e

dos pastores que tocavam as suas flautas e compunham canções acerca dos
grandes feitos de bravura e de coragem, e eles, então, gritaram de prazer sem
darem por isso.

Não concebiam que fosse possível sentir a presença desses campos e

arvoredos num beco de Londres rodeado de casas velhas e sujas, mas
aprenderam-no devido à história do Príncipe Desaparecido, que descrevia
como o Príncipe Ivor gostava muito da vida ao ar livre, das florestas e das
montanhas. Quando Marco o descreveu como sendo alto, jovem e forte e como
conquistava toda a gente com o seu sorriso simpático, os rapazes gritaram outra
vez com entusiástico prazer.

- Quem nos dera que ele não se tivesse perdido! - gritou um deles. E

quando ouviram falar do desassossego e da insatisfação dos Samavianos,
começaram a ficar inquietos. Na parte da história em que a multidão entrava de
rompante no palácio e perguntava ao rei pelo príncipe, começaram a praguejar.

- O malandro do velho escondeu-o nalgum torreão, ou então matou-o! -

exclamaram. - Quem nos dera ter lá estado nessa altura; não o teríamos deixado
fazer isso! - prosseguiram cheios de raiva.

A sua linguagem nesta altura já era bastante má, mas tornou-se ainda pior

quando ouviram a parte em que o velho pastor encontrou o corpo do jovem
caçador meio-morto na floresta.

background image

- Ele foi atacado pelas costas! Não lhe deram qualquer hipótese! -

vociferaram em coro. - Quem nos dera que lá tivéssemos estado quando isso
aconteceu. Eles tinham que se haver com alguém.

E então, no episódio da passagem clandestina do príncipe inconsciente

pela fronteira, escondido na carroça carregada de peles de cabra, eles
sustiveram a respiração. Conseguiria o velho pastor fazê-lo passar a linha da
fronteira? Marco, que se tinha perdido no seu relato, contou-a como se tivesse
estado presente. E na realidade, era quase como se isso fosse verdade, tal era o
entusiasmo que a história despertava nos seus ouvintes. Até a sua própria
imaginação se exaltou e o seu coração lhe saltou no peito, como devia com
certeza ter acontecido com o velho homem quando o guarda mandou parar o
carro e lhe perguntou o que é que ele levava para fora do país.

E aqueles bondosos monges! Aqui teve de parar para explicar o que era

um monge. Quando descreveu a solidão do antigo mosteiro e dos seus jardins
rodeados de muros, cheios de flores e plantas medicinais, e como os sábios
monges andavam em silêncio ao sol, os rapazes ficaram atónitos, mas
impávidos como se estivessem a saborear a cena.

De repente Marco calou-se; tinha acabado a história. A seguir não havia

mais nada para contar. Então ouviram-se protestos vindos do semicírculo.

- Que pena! - protestaram. - Não devia parar aqui! Não há mais? Só se sabe

isso?

- É tudo o que se sabe.
O Rato escutou tudo com os olhos a brilhar. Estivera sentado a roer as

unhas, um hábito que tinha quando estava zangado ou assustado.

- Sabes que mais! - exclamou de repente. - Vou-te dizer o que aconteceu!

Foram alguns adeptos do grupo de Maranovitch que tentaram matá-lo.
Quiseram matar o pai e fazer dum dos seus o rei, mas sabiam que o povo não
aceitaria isso se o Príncipe Ivor estivesse vivo. E eles muito simplesmente
apunhalaram-no pelas costas, os malandros! Atrevo-me a dizer que eles
ouviram o velho pastor aproximar-se e abandonaram-no ao fugir, por o
julgarem morto.

- Com certeza que foi isso! - concordaram os companheiros. - Nisso tens

razão, Rato.

- Quando ele se curou - continuou o Rato com fervor, roendo sempre as

unhas -, não pôde regressar. Era muito novo. O outro tipo tinha sido coroado e
os seus seguidores sentiam-se fortes porque tinham acabado de conquistar o
país. Ele não podia ter feito nada sem um exército e era demasiado jovem para
organizar um. Talvez tivesse pensado que devia esperar até ter idade suficiente
para saber o que havia de fazer. Ouso dizer que se foi embora e teve de

background image

trabalhar para seu próprio sustento, como se nunca tivesse sido um príncipe.
Talvez mais tarde tenha casado e tido um filho e lhe tenha revelado, em
segredo, a sua identidade e tudo o mais acerca da Samávia. - O rato começou a
mostrar um ar vingativo. - Se eu fosse a ele, ter-lhe-ia dito para não esquecer o
que Maranovitch lhe tinha feito. E que se não pudesse voltar para o trono, ele
havia de ver o que lhe faria, quando fosse já homem. Tê-lo-ia feito jurar que se
conseguisse apanhá-lo, lhe tiraria um dos seus filhos ou netos e o torturaria ou
mataria. Tê-lo-ia feito prometer que não deixaria nenhum Maranovitch vivo. E
que, se não pudesse fazer isso em vida, que passasse o juramento de geração em
geração, enquanto houvesse um Fedorovitch na terra. Não terias feito isso? -
perguntou com ardor a Marco.

Marco também se sentia a ferver por dentro, mas de uma maneira

diferente: achava que já tinha falado demais.

- Não - disse devagar. - Para que serviria isso? Não seria nada bom para a

Samávia, e não era decente torturar e matar pessoas. Era melhor deixá-los viver
e obrigá-los a fazerem coisas pelo país. Quando se é um patriota, pensa-se
primeiro no país.

- Mas devia-se torturá-los primeiro e a seguir tratar do país. - interrompeu

o Rato. - O que é que terias dito ao teu filho, se fosses o Ivor?

- Ter-lhe-ia dito para aprender tudo sobre a Samávia e todas aquelas coisas

que os reis têm de saber; e para estudar tanto as leis do seu país como dos
outros países; e que era importante guardar silêncio. Tê-lo-ia ensinado como
havia de governar, tal como se i i fosse um general a comandar soldados numa
batalha, de maneira a nunca fazer nada de que depois se pudesse envergonhar.
Ter-lhe-ia pedido para contar aos filhos

do seu filho para aprenderem estas mesmas coisas. E assim, estás a ver,

por muito tempo que tivesse passado, havia sempre um rei pronto para
governar a Samávia, quando esta precisasse dele realmente. E seria um rei
verdadeiro.

De repente parou de falar e olhou para o semicírculo que o fitava

admirado.

- Não pensei nisto sozinho - disse. - Ouvi-o dizer a um homem que lê

muitas coisas e sabe muito. Acho que o Príncipe Desaparecido teria pensado o
mesmo. Se o fez, e o disse ao seu filho, deve ter havido, durante quinhentos
anos, uma sucessão de reis a treinarem-se para governar a Samávia, e talvez um
deles ande agora nas ruas de Viena, Budapeste, Paris ou Londres, e se encontre
pronto quando o povo souber dele e o chamar.

- Quem dera que tenha havido! - gritou um deles.
- Seria um segredo muito estranho para se guardar todo este tempo, sem

background image

mais ninguém saber - resmungou o Rato, como se falasse consigo próprio. “ És
rei e devias estar sentado no trono “. Gostava de saber se isso não faria uma
pessoa parecer diferente? Riu-se, na sua maneira esquisita, e depois,
voltando-se de repente para Marco, disse:

- Mas foi um parvo por desistir da vingança. Como te chamas?
- Marco Loristan. E tu? Com certeza não é mesmo Rato.
- Sou Jem Ratcliffe. É bastante parecido. Onde é que moras?
- No n.º 7 da Praça Philibert.
- Isto é um clube de soldados - disse o Rato. Chama-se o Exército. Eu sou o

capitão. Atenção, rapazes! Mostrem-lhe.

O semicírculo desfez-se. Ao todo, eram doze rapazes e quando se puseram

de pé, Marco notou imediatamente que estavam habituados a obedecer à
palavra de comando com precisão militar.

- Formar em linha! - ordenou o Rato. E eles imediatamente obedeceram

mantendo as costas e as pernas muito direitas e as cabeças surpreendentemente
bem levantadas. Cada um deles tinha segurado num dos paus e tinha-o
empunhado como se fosse uma espingarda.

O próprio Rato tinha-se sentado muito direito na sua plataforma. E havia

realmente algo de militar na sua maneira de manter o corpo inclinado. Até a
sua voz perdeu o som agudo, estranho e tornou-se numa voz forte de comando.

Conseguiu pôr aquela dúzia de rapazes em formação como se já tivesse

sido um garboso jovem oficial. E a própria formação tinha um tal aprumo que
não recearia a comparação com qualquer regimento de bravos soldados. Isto fez
com que Marco ficasse de pé muito direito e observasse tudo com surpresa e
interesse.

- Muito bem! - exclamou, quando aquilo chegou ao fim. - Como é que

aprendeste isto?

O Rato fez um gesto de má vontade.
- Se eu tivesse pernas para me pôr de pé, teria sido um soldado! - disse. -

Ter-me-ia alistado em qualquer regimento. Nada mais me interessa.

E de repente o seu rosto modificou-se e deu uma ordem aos seus

seguidores.

- Virar costas! - ordenou.
E virando as costas, puseram-se a olhar através das grades do velho pátio

da igreja. Marco reparou que eles obedeceram a uma ordem que não era
novidade para eles. O Rato tinha posto a mão nos olhos a cobri-los.

Ficou assim durante algum tempo como se não quisesse ser visto. Então

Marco virou também as costas como os outros tinham feito. De repente
percebeu que embora o Rato não estivesse a chorar, estava a sentir alguma coisa

background image

que poderia ter deitado abaixo qualquer outro rapaz.

- Chega! - gritou ele a seguir, e baixando a mão sentou-se de novo muito

direito. - Quero ir para a guerra! - disse com aspereza. - Quero combater! Quero
levar exércitos para a luta! Mas não tenho pernas. Às vezes isso tira-me a
coragem toda.

- Tu ainda não cresceste tudo! - disse Marco. Ainda podes vir a ser forte.

Ninguém sabe o que pode acontecer. Como é que aprendeste a comandar o
clube?

- Ando por aí pelos quartéis, escuto e oiço. Sigo atrás dos soldados. Se

pudesse ter livros, havia de ler tudo sobre as guerras. Mas não posso ir às
bibliotecas como tu. Não consigo fazer outra coisa senão rastejar como um rato.

- Posso levar-te às bibliotecas - disse Marco. Há algumas onde os rapazes

podem entrar. E posso trazer jornais do meu pai.

- Podes? - perguntou o Rato. - Queres entrar para o clube?
- Quero! - respondeu Marco. - Vou falar nisso ao meu pai.
Disse aquilo porque a sua enorme vontade de fazer amigos tinha

encontrado uma espécie de resposta nos olhos do Rato.

Queria vê-lo outra vez. Era uma criatura tão estranha, que se tornava

fascinante. Arrastando-se naquela plataforma com rodas, tinha conseguido
juntar aquele grupo de rapazes rudes, e tinha-se tornado o seu comandante. E
eles obedeciam-lhe e escutavam as suas histórias sobre guerras, deixando que
ele os treinasse e lhes desse ordens. Marco sabia que o seu pai ficaria
interessado. Mas queria ter a certeza disso.

- Agora vou para casa - disse -, mas se estiveres cá amanhã, vou tentar

aparecer também.

- Nós estamos cá - respondeu o Rato. - Isto é o nosso quartel.
Marco levantou-se com elegância e fez uma saudação como se a estivesse a

fazer a um oficial superior. Depois começou a andar para a passagem em arco e
o som dos seus passos era tão regular e coordenado, que parecia ir ao ritmo de
um regimento.

- Ele tem-se treinado a ele próprio - disse o Rato.
- Sabe tanto como eu.
Depois, sentou-se e ficou a olhar para aquele arco com um novo

entusiasmo.

background image




5
Silêncio é ainda palavra de ordem


Nessa época eles eram ainda mais pobres do que o costume, e a ceia que

Marco e o pai tinham à frente era bastante frugal. Lazarus estava muito direito
atrás da cadeira do seu amo e servia-o com imensa cerimónia. Aquela habitação
pobre estava sempre limpa e em ordem, com um rigor militar. Lazarus
tornou-se imprescindível, ao tomar a seu cargo todo o trabalho com o seu amo,
retirando-o das mãos das empregadas desajeitadas. Quando era novo, tinha
aprendido a fazer muitas coisas no quartel. Conseguia remendar, passajar,
consertar e até combater o que era mais duro na pobreza: a sujidade e
imundície. Nesse dia à noite, não tinham mais nada senão pão seco e café, mas
Lazarus tinha feito com que parecessem boas iguarias.

À medida que Marco comia, ia contando ao pai a história do Rato e dos

seus amigos. Loristan escutava-o, tal como Marco previra, com aquele sorriso
longínquo nos olhos escuros.

- E eles falavam acerca da Samávia? E ele sabia a história do Príncipe

Desaparecido? - perguntou meditando. - Até nesse sítio!

- Ele gosta de ouvir falar de guerras, quer falar acerca delas - respondeu

Marco. - Se se pudesse pôr de pé e tivesse idade suficiente, ele próprio iria para
a Samávia combater.

- Agora não é mais do que um local triste e banhado em sangue! - disse

Loristan. - As pessoas ou estão loucas ou aterrorizadas e com o coração
despedaçado.

De repente, Marco, sem compreender porquê, deu uma palmada na mesa

com a sua pequena mão de rapaz.

- Porque é que um dos Iarovitch ou um dos Ma ranovitch há-de ser rei ? -

gritou ele. - Eles eram apenas camponeses selvagens quando combateram pela
primeira vez pela coroa, há centenas de anos. E não pararam de combater desde
então, até o mais selvagem deles conseguir ser coroado. Mas não tinham
qualquer direito! Só os Fedorovitch nasceram reis. Há apenas um único homem
no mundo que tem direito ao trono, mas não sei se ele está vivo ou não.
Acredito sinceramente que sim.

Loristan olhava para aquela cara vermelha com apenas doze anos. Viu que

o ardor que tinha subido à cara do filho era consequência de um bater de

background image

coração mais forte.

- Queres dizer. ? - sugeriu gentilmente.
- Ivor Fedorovitch. Esse é que deveria ser o Rei Ivor. E as pessoas

obedecer-lhe-iam e os bons velhos tempos regressariam de novo. - Parou de
repente por ter descoberto qualquer coisa. - Pai! - gritou. - O pai podia ser um
dos que eram capazes de descobri-lo, se é que alguém pode. Mas talvez - e
parou de novo por um momento, porque uma outra coisa lhe tinha vindo à
ideia. - Já alguma vez o procurou? - perguntou com hesitação.

- Não o procurei - disse -, porque sei onde é que ele está.
Marco susteve a respiração.
- Pai! - e disse apenas esta palavra. Sabia que não devia fazer mais

perguntas. Mas quando eles olharam um para o outro, naquela pequena sala
nas traseiras duma casa pobre como aquela ao pé da rua barulhenta, i ao
mesmo tempo que Lazarus se mantinha atrás da cadeira do seu pai, de olhos
fixos nas chávenas de café vazias e no prato de pão seco, e tudo parecia tão
pobre como sempre tinha sido, um rei da Samávia, Ivor Fedorovitch, com o
sangue do Príncipe Desaparecido nas veias, estava vivo algures em qualquer
cidade! E até o pai de Marco sabia onde ele estava!

Olhou depois para Lazarus, e embora a cara deste não tivesse qualquer

expressão, parecendo esculpida em madeira, Marco percebeu logo que ele sabia
este segredo, sempre tinha sabido. Ele tinha sido um companheiro de armas
toda a vida. Agora continuava a olhar fixamente para o prato do pão.

Loristan falou outra vez num tom ainda mais baixo.
- Os Samavianos, que são patriotas e pensadores - disse -, formaram há

oitenta anos um partido secreto. Fizeram-no quando já não tinham razões para
terem esperanças, e também porque um deles descobriu que um Ivor
Fedorovitch estava vivo. Era guarda florestal de um nobre, numa província dos
Alpes austríacos. O patrão sempre pensou que haveria algum mistério nele,
visto que se via bem que não tinha nascido para ser criado. Mas, no entanto,
nunca se dava ares de superioridade mas também não mostrava muita
familiaridade com os seus outros colegas. Era um homem muito alto, corajoso e
pouco falador. O seu patrão acabou por se tornar no seu companheiro, quando
caçavam juntos. Uma vez, quando apanhavam cavalos selvagens, descobriu que
Ivor conhecia bem os costumes de caça da Samávia e até mesmo as suas
tradições. Quando voltaram para a Áustria, Ivor obteve permissão para ir
sozinho para as montanhas. Tornou-se então amigo dos pastores, fazendo-lhes
também muitas perguntas. Uma noite, quando se sentavam à roda de uma
fogueira, ouviu cantar algumas das canções sobre o Príncipe Desaparecido, que
ele julgava esquecidas há quase quinhentos anos. Um pastor muito velho,

background image

juntando as mãos, rogou a Deus para que lhe mandasse o seu rei outra vez.
Alguns dos pastores começaram a

chorar. No dia seguinte, Ivor foi ao mosteiro onde vivia a Ordem dos

monges que tinham recolhido o Príncipe. Quando ele partira para a Samávia,
formou-se a sociedade secreta e os seus membros sabiam que um

Ivor Fedorovitch tinha atravessado o país dos seus antepassados como

criado de um outro homem. Mas a sociedade secreta era muito pequena e
embora tivesse vindo a crescer desde então, o caçador morreu muito velho,
antes de a sociedade ser suficientemente forte para poder ser divulgada aos
Samavianos e contar à Samávia o que sabia.

Nesta altura Marco lembrou-se outra vez da história que tinha para

contar, mas que tinha deixado para o fim, a história do homem que lhe falou em
samaviano e que depois viu passar na carruagem com o Rei. Agora sabia que
devia significar algo de importante, de que antes não tinha suspeitado.

- Há uma coisa que tenho de lhe contar - disse.
Descreveu o homem com olhos penetrantes e o modo como tinha dito:

“Diz ao teu pai que estás muito bem treinado”.

- Fico muito satisfeito por ele ter dito isso. Ele é um homem que sabe o que

é treino - disse Loristan.

- É uma pessoa que sabe tudo o que se passa na Europa e também o que se

irá passar. É um embaixador de um país poderoso. Se ele achou que estás bem
treinado, isso pode ser bom para a Samávia.

- Mas como é que isso pode interessar à Samávia? - exclamou Marco.
Loristan fez uma pequena pausa e, olhando-o com seriedade, disse-lhe

depois com um leve sorriso:

- Sim. Pode realmente interessar à Samávia.

background image




6
O Partido Secreto e o treino disciplinar


Loristan não proibiu Marco de continuar a dar-se com o Rato e os

companheiros.

- Vais ser tu próprio a descobrir se eles são amigos que te convêm ou não -

disse ele. - Dentro de poucos dias ficas a saber e depois podes tomar uma
decisão por ti. Já conheceste outros companheiros em muitos países e és capaz
de ser um bom juiz nisso, penso eu. Verás dentro de pouco tempo se eles vão
ser “homens” ou mera canalha. Até que ponto o Rato te impressionou? - E, ao
perguntar isto, lançou-lhe o seu olhar penetrante.

- Teria sido um bravo soldado, se pudesse - disse Marco. - Mas pode

também ser cruel.

- Não se deve desdenhar de um homem que pode dar um bom soldado;

mas se for cruel, é porque é um louco. Diz-lhe isso da minha parte - respondeu
Loristan. - Desperdiça as suas próprias forças e as daqueles a quem trata com
crueldade. E só um louco pode desperdiçar forças.

- Posso falar em si, algumas vezes? - perguntou Marco.
- Podes, deves saber como. Basta que te lembres das coisas nas quais o

silêncio é a palavra de ordem.

- Nunca me esqueço delas - disse Marco. - Já estou habituado a isso há

muito tempo.

- E foste bem sucedido, companheiro! - retorquiu Loristan, da sua mesa de

trabalho, onde estava a arrumar uns papéis.

O rapaz sentiu um novo alento. Dirigiu-se para o pai e muito direito fez a

saudação militar.

- Pai! - disse. - Não sabe quanto gosto de si! Quem me dera que fosse um

general e eu pudesse morrer por si em batalha. Quando olho para o pai, queria
poder fazer qualquer coisa por si, mas um simples rapaz não consegue. Preferia
morrer do que desobedecer-lhe ou à Samávia!

Pegou então na mão de Loristan e, beijando-a, ajoelhou-se numa só perna.

Qualquer rapaz inglês ou americano não teria feito isto num impulso tão
natural. Mas ele tinha o sangue quente do Sul.

Um súbito ar de ternura transpareceu na cara do pai, ao levantá-lo e ao

pôr-lhe a mão no ombro.

background image

- Companheiro - disse -, não sabes como gosto de ti, e qual a razão por que

nos devemos amar! Não imaginas como te tenho vindo a observar e a agradecer
a Deus por cada ano que possa estar aqui a formar-se um homem para a
Samávia. Sim, porque sei que és um “homem”, embora só tenhas doze anos.
Doze anos podem fazer crescer um homem ou provar que um homem nunca
vai crescer, embora possa viver noventa anos. Muitas coisas nos podem
acontecer. Não sabemos ainda o que “será necessário que eu tenha de pedir-te
para fazeres por mim e pela Samávia”. Talvez seja uma coisa que um rapaz de
doze anos nunca tenha feito.

- Vou rezar todas as noites e todas as manhãs para que possa ser chamado

para a fazer e para que consiga fazê-la bem.

- Se fores chamado, companheiro, sei que a vais fazer bem; até podia jurar

em como isso vai acontecer - respondeu-lhe Loristan.

O exército tinha-se juntado atrás da igreja quando Marco apareceu ao

fundo da passagem em forma de arco. Os rapazes empunhavam as suas
espingardas, mas tinham um ar mal-humorado. A explicação que Marco
encontrou para isso era que também o Rato devia estar de mau humor. Estava
sentado na sua plataforma roendo as unhas com força, com os cotovelos nos
joelhos e com cara de poucos amigos. Não olhava para lado nenhum a não ser
para o pavimento onde mantinha os olhos fixos.

Marco avançou num passo militar e parou mesmo atrás dele, com uma

saudação rápida.

- Peço desculpa de vir tarde, senhor - disse, como se fosse um soldado raso

a falar com o seu coronel.

- É ele, Rato! Ele veio, Rato! - gritou o exército.
- Olha para ele!
Mas o Rato não olhou e nem sequer se mexeu.
- O que é que aconteceu? - disse Marco, com menos cerimónia do que um

soldado raso teria. - Não vale a pena vir aqui se tu não queres que eu venha.

- Está de mau humor, porque vieste tarde! - gritou o cabeça de fila. - Não

se pode fazer nada quando ele fica de mau humor.

- Não vou fazer nada - disse Marco com um ar resoluto. - Não foi para isso

que vim aqui. Vim fazer o treino. Estive com o meu pai, que está em primeiro
lugar. Posso juntar-me ao exército, mas ele estará sempre em primeiro lugar.
Nós não estamos nem no activo, nem no quartel.

Nessa altura o Rato virou-se de frente para ele.
- Pensei que não vinhas mesmo! - resmungou.
- O meu pai disse que não vinhas. Disse que tu eras um janota, apesar das

roupas remendadas. Disse também que o teu pai não te ia deixar vir ter com um

background image

vagabundo, que só podia trazer aborrecimentos. Ninguém pediu para te vires
juntar a nós. O teu pai que vá para o inferno!

- Não fales assim do meu pai - disse Marco calmamente -, porque te posso

dar um murro.

- Levantava-me e dava-te também! - respondeu o Rato, ficando branco de

raiva. - Posso pôr-me de pé em dois paus. Levanto-me e dou-te!

- Isso é que não dás - disse Marco. - Se queres saber o que disse o meu pai,

posso dizer-te. Disse que posso vir tantas vezes quantas quiser, até saber se
podemos ficar amigos ou não. Diz que eu é que tenho que descobrir.

O Rato fez uma coisa estranha. Deve ter-se sempre em consideração que o

seu pai, embora cada vez mais afundado no submundo do alcoolismo, tinha
sido em tempos um senhor com boas maneiras e hábitos de boa educação. Às
vezes estava embriagado, outras vezes, quando parecia estar mais ou menos
sóbrio, falava ao Rato de coisas que ele nunca poderia ter sabido de outro
modo. Era esta a razão por que ele era diferente dos outros vagabundos. Isto foi
também a razão por que ele alterou a situação toda, ao fazer esta coisa estranha
e inesperada. Modificou a expressão e a voz, fixando os seus olhos vivos nos de
Marco. Era quase como que um teste. Pelo menos era o que devia ter parecido à
maioria dos companheiros da sua antiga classe social. Ver-se-ia se Marco
resolvia, ou não, o teste.

- Peço-te perdão - disse o Rato.
Este era o teste. A frase era a que um oficial e cavalheiro teria

pronunciado, se achasse que tinha errado ou que tinha sido rude. Ouvira dizer
isso ao seu pai, num momento de sobriedade.

- Eu é que te peço perdão por ter chegado tarde - disse Marco.
Era a resposta certa ao teste! Era a resposta que um outro oficial e

cavalheiro teria dado. Isto regularizou o diferendo imediatamente, e estabeleceu
entre eles um entendimento que se veio a revelar mais forte do que se poderia
prever na altura.

Para isso, foi decisivo o facto de Marco ser um daqueles que sabem as

coisas que o pai do Rato tinha conhecido em tempos, coisas que os senhores
fazem, dizem e pensam. Não pronunciaram mais qualquer palavra. Já estava
tudo bem. Marco juntou-se à formatura do exército, e o Rato sentou-se muito
direito com o seu porte militar e começou imediatamente com o treino:

- Exército! Atenção! Perfilar! Ombro, arma Formar a quatro! Direita,

volver! Em frente, marcha! Parar! Esquerda, volver! Apresentar, armas! À
vontade! Destroçar!

Fizeram aquilo tudo tão bem que foi uma maravilha, tendo em

consideração o espaço limitado de que dispunham.

background image

- Onde é que tu aprendeste isto? - perguntou o Rato, quando baixaram

novamente as armas e Marco se veio sentar ao pé dele como no dia anterior.

- Com um antigo soldado. E gosto de observar, como tu fazes.
- Há mais de um ano que tenho tentado incutir isto nestes tipos - disse o

Rato. - Uma boa tarefa que eu arranjei! Bastante inglório! Ao princípio quase me
pôs doente.

O semicírculo à sua frente ora dava umas risadinhas ora ria às

gargalhadas. Os seus membros não pareciam ficar muito ofendidos com o
tratamento pouco cavalheiresco. Claro que ele os entretinha o suficiente para se
insinuar, apesar da sua tirania e indiferença. Meteu a mão num dos bolsos do
casaco coçado e tirou um bocado de jornal.

- O meu pai trouxe isto para casa a embrulhar um bocado de pão - disse. -

Vê o que aqui diz!

Entregou o pedaço de jornal a Marco, apontando para algumas palavras

escritas em letras grandes ao cimo de uma coluna. Marco olhou para aquilo e
sentou-se muito sossegado.

As palavras que ele leu eram: “O Príncipe Desaparecido”.
“O silêncio continua a ser a palavra de ordem”, foi o primeiro pensamento

que lhe ocorreu.

- O que é que isto significa? - perguntou em voz alta.
- Não sei bem. Gostava que dissesse mais - respondeu o Rato de mau

humor. - Lê e logo vês. Claro que dizem que pode não ser verdade, mas acho
que é. As pessoas pensam que alguém sabe onde ele está, pelo menos onde está
um dos seus descendentes. O que é o mesmo, seria o rei verdadeiro. Bastava
que ele aparecesse e podia ser que acabasse logo a luta toda. Vá, lê.

Marco, ao ler, sentiu toda a pele arrepiar-se e o sangue a correr velozmente

por todo o corpo. Mas a sua cara não se alterou. Como introdução, havia um
pequeno resumo da história do Príncipe Desaparecido. O artigo dizia que isso
devia ser encarado como uma espécie de lenda. Actualmente circulavam
rumores que afinal não era lenda, mas uma parte da história da Samávia.
Dizia-se mesmo que através dos séculos tinha existido sempre, secretamente,
um partido leal à memória desse desaparecido Fedorovitch e que o juramento
de fidelidade para com ele e seus descendentes tinha vindo de pais para filhos,
de geração em geração. E que, embora parecesse romântico, existia uma
convicção do povo, em que algumas pessoas acreditavam, de que o
descendente tinha sido encontrado e que um certo partido secreto sustentava a
tese de que se ele fosse chamado de novo para o trono da Samávia, as guerras e
o derramamento de sangue acabariam.

O Rato tinha começado a roer as unhas com toda a força.

background image

- Acreditas que ele foi encontrado? - perguntou com ardor. - Eu acredito!

Tu, não acreditas?

- Gostava de saber onde está, se for verdade - exclamou Marco, dando a

entender que se sentia desejoso de saber.

- Vamos imaginar que somos conspiradores para fazer uma revolução a

favor dele. Será um jogo esplêndido! Vamos fingir que somos o Partido Secreto!

Estava muito excitado quando tirou um bocado de giz do bolso descosido.

Depois inclinou-se para a frente e começou a desenhar rapidamente qualquer
coisa no pavimento que estava ao pé da sua plataforma. O exército também se
inclinou, quase sem respirar, bem como Marco. O giz tinha começado a
desenhar um mapa, e Marco já sabia qual era o mapa antes do Rato falar.

- Isso é um mapa da Samávia - disse ele. - Estava naquele bocado de jornal

de que te falei, que tratava do Príncipe Ivor. Estudei-o até ficar todo rasgado.
Nessa altura já o fixara, por isso não teve importância. Aí é a capital - disse
indicando um ponto. - Chama-se Melzarr. O palácio fica lá. Era nesse palácio
que Ivor deambulava de manhã cedo, entoando a canção do pastor. É onde está
o trono em que o descendente se sentaria para ser coroado, isto é, onde vai
mesmo sentar-se. Acredito que é o que vai acontecer! Vamos jurar em como vai
- atirou o giz ao ar e sentou-se. - Dêem-me dois paus. Ajudem-me a levantar.

Dois elementos do exército puseram-se logo em pé e vieram ter com ele.

Cada um deles agarrou num dos paus que serviam de espingardas, porque
sabiam exactamente o que ele queria. Marco levantou-se também e observava
tudo com curiosidade. Tinha pensado que o Rato não se podia manter de pé,
mas afinal até parecia que conseguia, indo mesmo fazê-lo, embora muito à sua
maneira. Os rapazes levantaram-no pelos braços, encostaram-no à pedra do
muro gradeado que circundava o largo da igreja, e colocaram-lhe um pau em
cada uma das mãos. Ficaram ao seu lado, apesar dele se conseguir manter de pé
sozinho.

- Ele podia andar por aí, se tivesse dinheiro para comprar umas muletas! -

disse um, de nome Cad, e fê-lo com um certo orgulho.

Uma coisa estranha em que Marco reparou foi que os maltrapilhos tinham

muito orgulho no Rato e que o olhavam como o seu dono e senhor.

- Ele podia andar por aí e manter-se de pé, como qualquer outra pessoa -

acrescentou outro, dizendo isto num tom elogioso. O nome deste era Ben.

- Agora vou ficar de pé, assim como vocês - disse o Rato. - Exército!

Atenção! Tu aí: coloca-te à frente da fila - gritou para Marco. E num instante
ficaram todos em fila, muito direitos, com os ombros para trás, e as cabeças
levantadas, com Marco à frente de todos.

- Vamos fazer um juramento - disse o Rato. É um juramento de obediência.

background image

Obediência significa ser fiel para com uma coisa, um rei ou um país. O nosso
vai significar fidelidade para com o Rei da Samávia. Não sabemos onde é que
está, mas vamos jurar ser-lhe fiéis, lutar por ele, morrer por ele e levá-lo de
volta ao trono! - E levantou a cabeça com muita delicadeza, quando proferiu a
palavra “morrer”. - Nós somos o Partido Secreto. Vamos trabalhar em segredo,
tentando descobrir factos, e, correndo riscos, vamos juntar um exército sem que
ninguém descubra nada, até este estar suficientemente forte e poder dar o sinal
secreto para dominar Maranovitch e Iarovitch e confiscar os seus fortes e
cidadelas. Ninguém deve saber que nós existimos. Devemos ser uma realidade
secreta e silenciosa que nunca se manifesta em voz alta!

E como lhes pareceu uma grande ideia, essa do jogo, pela possibilidade de

inúmeras travessuras, os elementos do exército desataram numa gritaria, apesar
de terem de se manter sempre silenciosos e secretos.

- Viva! - gritavam. - Viva o juramento de obediência!
- Calem-se, seus brutos! - gritou o Rato. - É dessa maneira que querem

manter-se secretos? Assim, vão até atrair a polícia, seus parvos! Olhem para ele!
-

e apontou para Marco. - Ele é que tem juízo. De facto, Marco não tinha

feito qualquer ruído.

- Vocês, Cad e Ben, venham cá e ponham-me de novo nas minhas rodas -

gritou o comandante do exército. - Nem sequer vou iniciar o jogo. Não vale a
pena com este grupo de cabeças ocas e recrutas rafeiros, que é o que vocês são.

A formação desfez-se e acercou-se dele para suplicar.
- Oh Rato! Nós esquecemo-nos. Este é o primeiro jogo que planeaste, Rato!

Não fiques de mau humor! Nós vamos ficar sossegados! Oh, Rato! Prometemos!

- Prometerem, vocês! - resmungou o Rato.
- Nenhum de nós podia fazer isso senão tu! Nem um! Ninguém era capaz

de pensar nessas coisas. Foste tu que te lembraste do exército! E é por isso que
és o capitão!

Isto era verdade. Era ele o único a conseguir inventar entretenimentos

para estes rapazes da rua que não tinham mais nada. Além daquilo que ele
criava, não tinham mais nada que os excitasse e que lhes preenchesse os dias de
chuva ou de nevoeiro. Foi isso que fez dele o seu capitão e o seu orgulho.

O Rato começou então a ceder, embora de má vontade. Apontava para

Marco, que não se mexia e continuava quieto com atenção.

- Olhem para ele! - disse. - Ele sabe o suficiente para permanecer onde o

mandaram ficar, até lhe darem ordem em contrário. Ele é um soldado, e não um
reles recruta, que nem sabe marchar o passo de ganso.

Todavia, depois de ter desabafado deste modo, condescendeu em

continuar.

background image

- Aqui vai o juramento - disse. - Juramos preferir suportar qualquer

tortura e submetermo-nos a qualquer morte, a trair o nosso segredo e o nosso
rei. E, se nos ordenarem, seremos capazes de nadar em mares de sangue e de
abrir caminho por entre lagos de fogo. Nada deve impedir o nosso caminho.
Tudo o que fizermos, dissermos e pensarmos será pelo nosso país e pelo nosso
rei. Se algum de vocês tem algo a dizer, é melhor que o faça antes de fazer o
juramento.

Formaram então um círculo mais fechado e puseram-se a falar em

segredo.

- Devia ser colocada uma sentinela no final da passagem - segredou

Marco.

- Ben, leva a tua arma! - ordenou o Rato. Ben levantou-se furtivamente e

pondo a arma ao ombro encaminhou-se em bicos dos pés para a abertura. E aí
ficou de guarda.

- O meu pai diz que desde há cem anos tem havido um Partido Secreto na

Samávia - murmurou o Rato.

- Quem é que lhe disse? - perguntou Marco.
- Um homem que tem estado na Samávia - respondeu o Rato. - O partido

começou com alguns pastores e mineiros que prestaram o juramento de
encontrar o Príncipe Desaparecido e voltar a colocá-lo no trono. Eram ao
princípio muito poucos a querer fazer alguma coisa contra Maranovitch e
quando esses acharam que já estavam a ficar velhos, fizeram com que os seus
filhos prestassem o mesmo juramento. Assim, em cada geração, o partido foi
crescendo. Ninguém sabe actualmente qual é a sua dimensão, mas diz-se que
há pessoas que a ele aderiram em quase todos os países da Europa, e que
juraram ajudar quando para isso forem chamados. Estão só à espera. Uns, são
ricos e têm dinheiro para dar; e outros, os que são pobres e não podem
contribuir financeiramente, podem, no entanto, escapar pela fronteira para
combater e ajudar na luta armada. Dizem que durante todos estes anos têm
juntado armas nas caves das montanhas e que estas lá ficaram escondidas ano
após ano. Existem uns homens, chamados Forjadores da Espada, que, tal como
os seus pais, avós, e bisavós têm feito as suas espadas e as armazenaram em
cavernas escondidas no subsolo, sem ninguém saber onde.

Marco, então, exprimiu em voz alta o pensamento que o tinha

preocupado, enquanto ouvia.

- Se as pessoas na rua falam disso, não vão estar escondidas muito mais

tempo.

- O meu pai diz que não é vulgar ouvir falar nisso. Só alguns pensam

assim, e julgam que faz parte da lenda do Príncipe Desaparecido. Até

background image

Maranovitch e Iarovitch troçam disso. Têm sido sempre uns grandes idiotas.
Estão tão senhores do seu poder que pensam que nada pode vir a interferir.

- Eu acho que, se gostas um pouco dos Samavianos, era melhor

pedires-lhe para não falar do Partido Secreto, nem dos Forjadores da Espada -
sugeriu Marco.

O Rato sobressaltou-se um pouco.
- Isso é verdade! - disse. - Tu és mais esperto do que eu. Não se deve andar

a falar nisso por aí. Vou ver se o consigo fazer prometer. Há uma coisa que é
estranha nele - acrescentou lentamente, como se estivesse a reflectir sobre isso. -
Suponho que é a sua faceta de senhor, que nele ainda subsiste: se faz uma
promessa, nunca a quebra quer esteja embriagado ou sóbrio.

- Pede-lhe então para fazer uma - disse Marco. E a seguir, mudou de

assunto porque lhe pareceu melhor. - Vá lá, conta-nos o que é que o nosso
Partido Secreto vai fazer. Estamos a esquecer-nos - segredou ele.

E o Rato retomou o seu jogo com redobrado vigor. Era um jogo que o

atraía imenso porque desenvolvia a sua imaginação e mantinha a sua audiência
fascinada, além de o lançar nas coisas da guerra e nas suas estratégias.

Fora a melhor coisa que o Rato tinha inventado até então, na opinião do

exército. Foi uma maravilha, realmente!

A luz está acesa!
De regresso a casa, Marco não pensava em mais nada senão no que ia

dizer ao pai sobre a história que o estrangeiro que tinha estado na Samávia
contara ao pai do Rato. Achava que devia ser verdadeira. Os Forjadores da
Espada deviam ser homens de verdade, e de viam também ser autênticas as
cavernas cheias de armas, escondidas durante séculos. E se tudo isto fosse
assim, de certeza que o seu pai era um dos que sabiam o segredo.

Estava desejoso de chegar a casa e poder contar imediatamente ao pai o

que tinha ouvido.

Mas quando chegou ao n.o 7 da Praça Philibert, encontrou Loristan e

Lazarus muito ocupados com o trabalho. A porta da sala das traseiras estava
trancada quando ele bateu, e ficou novamente fechada, depois de ter entrado.
Havia muitos papéis em cima da mesa e, claro, eles estavam a estudá-los.
Alguns, eram mapas, outros, traçados de estradas, e outros ainda, planos de
cidades vilas e de algumas fortificações, todas elas localizadas na Samávia.
Habitualmente estavam guardados num cofre forte e quando os tiravam de lá
para os estudarem, a porta da sala estava sempre fechada.

Antes do jantar, todos estes papéis voltavam novamente para o cofre, que

a seguir era arrumado num canto, onde depois se colocavam jornais.

- Quando ele chegar - ouviu o pai dizer para Lazarus -, podemos

background image

mostrar-lhe claramente o que tem sido planeado. Poderá verificar com os seus
próprios olhos.

Durante a refeição Loristan mal falou. E embora não fosse hábito de

Lazarus falar nessas alturas, a não ser que lho pedissem, pareceu a Marco que
nessa noite ele ainda estava mais silencioso do que era costume. Estavam os
dois certamente a pensar em coisas muito sérias. E Marco achou que o
momento não era oportuno para contar a história do estrangeiro que tinha
estado na Samávia.

Loristan não disse nada até Lazarus ter tirado todas as coisas de cima da

mesa e limpar a sala o mais possível. Durante essa operação, esteve sentado
com a cabeça apoiada na mão, absorvido nos seus pensamentos. Só a seguir fez
um gesto a Marco.

- Vem cá, camarada - disse.
Marco encaminhou-se então para ele.
- Pode ser que esta noite venha uma pessoa falar comigo sobre coisas

sérias - disse. - Temos que mandar alguém ao seu encontro pelo lado oposto da
rua onde vai aparecer. Esse alguém terá de cruzar-se com ela, como que por
acaso, e dar-lhe a seguinte senha em voz baixa: “A luz está acesa!”. Em seguida
deve afastar-se calmamente.

A voz de Marco quase estremecia de excitação.
- Como vou reconhecê-la? - disse imediatamente. Sem ter perguntado,

soube logo que era ele quem devia ir.

- Já a viste - respondeu Loristan. - É o homem que ia na carruagem com o

Rei.

- Vou reconhecê-lo - disse Marco. - Quando devo ir?
- Nunca antes da uma e meia. Vai para a cama e dorme até Lazarus te ir

chamar - e acrescentou em seguida: - Olha bem para a sua cara antes de falares.
Provavelmente ele não vai estar vestido como quando o viste da primeira vez.

Marco foi para a cama como o pai lhe disse, mas custou-lhe imenso a

adormecer. Devia ser um assunto sério, relacionado com a guerra, o que levava
um homem que era um grande diplomata e companheiro de reis, a vir falar,
sozinho e em segredo, com um patriota Samaviano. Quase se podia ouvir o
coração de Marco bater debaixo da camisa, enquanto estava ali deitado no
colchão a pensar nisso tudo. Teria realmente de olhar bem para o desconhecido,
antes de se dirigir a ele. Tinha que ter a certeza de que ele era o homem certo.
Aquele jogo que o entusiasmava já há tanto tempo, o de tentar lembrar-se
claramente e com todos os pormenores de retratos e de pessoas bem como de
locais, havia sido um óptimo treino. Se soubesse desenhar, tinha a certeza de
que conseguiria fazer um esboço da cara esguia com olhos vivos e de boca bem

background image

desenhada, capaz de guardar segredos.

Saltou da cama e dirigiu-se para uma mesa ao pé da janela, onde havia

papel e lápis. Um candeeiro da rua, que ficava mesmo ao pé da janela, dava a
luz suficiente para ele poder ver. E assim, meio ajoelhado, começou a desenhar.
A pouco e pouco, conseguiu que a parecença se tornasse cada vez maior, não
tardando mesmo que se tornasse evidente. Qualquer pessoa que conhecesse o
homem conseguiria reconhecê-lo ali. Levantou-se então, dando um longo
suspiro de alívio e de satisfação.

Todas as luzes estavam apagadas, excepto a do quarto do seu pai, donde

podia ver-se sair uma nesga de claridade. Desde pequeno que lhe tinham
ensinado a bater na porta com um sinal especial, quando queria falar com
Loristan. Então, parou do lado de fora da sala das traseiras e bateu desse modo,
com um arranhar ao de leve e uma suave pancadinha. Lazarus abriu a porta e
pareceu preocupado.

- Agora não são horas, senhor - disse numa voz muito baixa.
- Eu sei - respondeu Marco. - Mas tenho uma coisa para mostrar ao meu

pai. - Lazarus deixou-o entrar, ao mesmo tempo que Loristan se afastou da sua
mesa de trabalho com um olhar inquiridor.

Marco avançou na sua direcção e pôs-lhe o esboço à frente.
- Olhe para aqui - disse. - Lembro-me tão bem, que consegui desenhar isto.

Pensei logo que podia fazer um retrato. Acha que está parecido com ele?

Loristan depois de o ter examinado bem de perto, disse:
- Está efectivamente muito parecido com ele. Dás-me um grande alívio.

Obrigado, camarada. Foi uma grande ideia.

E ao dar um aperto de mão ao rapaz, sem ser por favor, fê-lo sentir uma

enorme alegria. Marco ia retirar-se, mas quando estava já perto da porta,
Loristan chamou-o e disse-lhe:

- Tens de desenvolver esse dom. Sim, porque isso é um dom. E também é

verdade que tens treinado bem a tua memória. Quanto mais desenhares
melhor, desenha tudo o que puderes.

Quando Marco voltou para a cama, dormiu profundamente como só um

rapaz consegue, e à uma hora em ponto acordou, verificando que o candeeiro
de rua continuava aceso fazendo-lhe entrar a claridade pela janela. Levantou-se
e vestiu-se. Levava os sapatos na mão, para os calçar quando chegasse à rua.
Tornou a fazer o sinal na porta do pai e foi Loristan que imediatamente a veio
abrir.

- Vou agora? - perguntou Marco.
- Sim, atravessa devagar para o outro lado da rua e olha em todas as

direcções, porque não sabemos donde é que ele vem. Depois de lhe teres feito o

background image

sinal, vem outra vez para casa e volta para a cama.

Marco fez uma saudação como se fosse um soldado a receber uma ordem,

e logo a seguir saiu de casa sem fazer barulho.

Loristan voltou para dentro e ali ficou de pé no meio da sala em silêncio. A

figura longilínea do seu corpo elegante manteve um ar muito formal e
particularmente erecto e os seus olhos brilhavam como se houvesse alguma
coisa que o tivesse tocado profundamente.

- Ali cresce um homem para a Samávia! - disse ele para Lazarus, que o

observava. - Louvado seja Deus!

A voz de Lazarus fez-se ouvir em tom rouco e baixo ao mesmo tempo que

fazia uma saudação com ar muito solene.

- O seu homem, senhor! Deus proteja o Príncipe!
- Sim - respondeu Loristan depois de um momento de hesitação -, quando

ele for encontrado.

E voltou para junto da mesa sorrindo feliz.
É quase inacreditável que, depois da meia-noite, uma vez desaparecido

todo o barulho e tumulto, se possa gozar o maravilhoso silêncio nas ruas
desertas de uma grande cidade. Ainda há algumas horas havia azáfama por
todos os lados; e dentro de pouco tempo tudo voltará a passar-se com a mesma
pressa. Mas neste momento a rua não é mais do que uma coisa sem vida; até o
passo distante de um polícia, a fazer a ronda pelos passeios, tem um som vazio
e estranho. Foi o que Marco achou quando atravessou a rua.

Tomou então atenção aos passos do polícia, porque não queria que ele o

visse. Havia uma reentrância na parede onde ele se podia esconder na sombra
enquanto o homem passava.

Em seguida fez-se silêncio novamente e, durante algum tempo, pareceu a

Marco que não ia aparecer ninguém.

Quando voltou para a claridade, começou a desejar que todo aquele

tempo não parecesse demasiado a seu pai, que devia estar ainda mais ansioso
do que ele.

Loristan sabia que muita coisa dependia da vinda daquele grande homem.
“Pode ser alguma coisa de que toda a Samávia está à espera; ou, pelo

menos, todo o Partido Secreto”, pensou Marco. “O Partido Secreto é a
Samávia”, pensava ele, quando começou a ouvir uns passos. “Vem aí alguém! E
é um homem”.

Era um homem que vinha pelo passeio do mesmo lado em que ele estava.

Marco começou então a andar calma mas rapidamente na sua direcção. Pensou
que seria melhor dar a entender que era um rapaz que tinha sido mandado
fazer um recado, talvez chamar um médico. Assim, se o homem fosse um

background image

estranho, não levantaria quaisquer suspeitas. Seria este homem tão alto como
aquele que tinha visto com o Rei? Sim, parecia ter mais ou menos a mesma
altura, mas estava ainda demasiado longe para se poder ter qualquer certeza. À
medida que se aproximava, Marco reparou que ele parecia também acelerar o
passo. Marco continuou a andar. Só um pouco mais perto poderia ter a certeza.
Agora, que já estava suficientemente perto, verificou que na realidade era da
mesma altura e que a sua figura não era muito diferente da que lhe era familiar.
Mas era muito mais novo. Decididamente não era o mesmo que tinha visto na
carruagem com Sua Majestade. Este, que agora estava a ver, não tinha mais de
trinta anos. E foi precisamente só depois de o polícia ter aparecido na sua ronda
e ter desaparecido novamente que Marco ouviu uns passos ecoarem a uma
certa distância, ao fundo de uma rua transversal. Depois de ter escutado e de se
ter certificado que se vinham a aproximar, é que ele se foi pôr numa ponta do
passeio donde podia ver toda a extensão do quarteirão. E realmente vinha
mesmo alguém. Era novamente uma figura de homem. Marco colocou-se de
novo na sombra, de modo que a pessoa não pudesse notar que estava a ser
observada. O transeunte solitário conseguiu atravessar uma distância
considerável em apenas dois minutos. Vinha vestido com um fato vulgar, já
bastante coçado. O seu chapéu estava muito dobrado, de modo que lhe fazia
sombra na cara. Mas apesar disso, mesmo antes de ter atravessado para o
mesmo lado do passeio de Marco, o rapaz conseguiu logo reconhecê-lo. Era
exactamente o homem que tinha visto com o Rei!

A sorte acompanhava Marco. O homem veio atravessar exactamente no

sítio que foi mais fácil para Marco aparecer junto dele; andou alguns passos a
seu lado e depois de lhe passar directamente pela frente, olhou-o calmamente
no rosto e disse-lhe numa voz baixa mas clara nas palavras: “A luz está acesa!”.
Isto tudo sem parar, até descer a rua. E antes de se encontrar a uma certa
distância não abrandou o passo nem sequer olhou para trás. Só depois é que
olhou por cima do ombro e pôde ver que a pessoa tinha atravessado a rua e
estava agora já dentro do gradeamento. Estava tudo a correr bem. Seu pai não
ia ficar desapontado. O tal homem importante, afinal, sempre tinha vindo.

Ainda andou uns dez minutos pela rua e só depois voltou para casa.

background image




8
Um jogo emocionante


No dia seguinte, Loristan só se referiu uma vez ao que tinha acontecido.
- Foste um bom mensageiro. Não te mostraste nem apressado nem

nervoso - disse ele. - O Príncipe ficou muito satisfeito com a tua calma.

Nada mais se disse sobre o assunto. Marco sabia que aquela mera

referência ao título do estrangeiro tinha sido feita unicamente como designação.
Se fosse necessário falar nele outra vez podia chamar-lhe “o Príncipe”. Marco
foi para a Torre de Londres e passou parte do tempo a tentar reviver as histórias
que se haviam passado dentro das suas paredes de pedra maciça.

Nesse dia havia apenas um pequeno grupo de turistas acompanhado por

um guia. Este era um homem alto e corpulento, muito parecido até com os
próprios retratos de Henrique VIII. E então, quando parou junto da tabuleta
que marca o sítio em que esteve o cepo no qual Lady Jane Grey colocou a sua
jovem cabeça, ainda falou mais. Isto também porque um dos turistas, que sabia
pouco da história de Inglaterra, tinha feito algumas perguntas sobre a razão da
execução dela.

- Se o sogro dela, o Duque de Northumbria, tivesse deixado o jovem casal

sozinho, ela e seu marido, o Lord Guilford Dudley, teriam conseguido salvar as
cabeças. Ele pretendia fazer dela uma rainha, mas Maria Tudor tinha decidido
ela própria tornar-se rainha. E o Duque não fora suficientemente esperto para
manobrar uma conspiração e controlar o povo. Estes Samavianos, de quem
agora tanto ouvimos falar nos jornais, teriam feito muito melhor. Mesmo sendo
meio selvagens.

- Ontem, até travaram uma batalha enorme nos arredores de Melzarr -

disse um turista, mesmo ao pé de Marco, para a rapariga que o acompanhava. -
Foram mortos milhares deles. Estão só a matar-se uns aos outros, é o que estão
a fazer.

- Nem têm tempo de enterrar os seus mortos - disse o guia. - O que os

países civilizados deviam fazer, era obrigá-los a escolher um rei decente e a
portarem-se como deve ser.

“Vou também contar isto ao meu pai”, pensou Marco. “Mostra que toda a

gente anda a pensar e a falar na Samávia, e que até mesmo as pessoas vulgares
sabem que deve haver um rei autêntico”.

background image

Mas o pai tinha saído quando ele voltou para casa e Lazarus estava ainda

mais silencioso do que era costume e, de pé, atrás da sua cadeira, guardava-lhe
a frugal refeição, enquanto esperava por ele. Embora fosse simples e escassa a
comida que podiam ter, não deixava de ser servida com tanto cuidado e
cerimónia como se fosse um banquete.

- Há aqui algum jornal que fale da batalha em Melzarr, Lazarus? -

perguntou depois de se ter levantado da mesa.

- Há, senhor - foi a resposta. - E o seu pai até disse que o devia ler. É uma

história tenebrosa! - acrescentou, ao mesmo tempo que lhe passava o jornal.

Era mesmo uma história horrível. E à medida que ia lendo, Marco sentia

que mal a podia suportar. Era como se a Samávia nadasse num mar de sangue e
como se os outros países ficassem estupefactos perante tão cruéis atrocidades.

- Lazarus - disse ele, pondo-se por fim de pé, num salto, com os olhos a

flamejar -, algo tem de fazer parar isto! Tem de haver uma maneira. Chegou a
altura. - E andava de um lado para o outro da sala demasiado excitado para
poder estar sossegado.

E como Lazarus o observava! Que forte e ardente sentimento havia na sua

face contraída!

- Pois claro, senhor. Com certeza que chegou a altura - respondeu ele. Mas

foi tudo o que disse. Depois voltou-se e saiu imediatamente da sala. Foi como se
tivesse achado que seria melhor ir-se embora, antes de perder o controle e dizer
mais do que queria.

Marco encaminhou-se então para o local de encontro do exército, ao qual o

Rato tinha em tempos dado o nome de quartel. O Rato estava sentado entre os
seus seguidores, a acabar de lhes ler o jornal da manhã, que trazia o assunto da
batalha de Melzarr. O exército tinha-se tornado no Partido Secreto e cada um
dos seus membros estava emocionado com o espírito de luta e aventura. Todos
cochicharam quando eles falaram.

- Isto agora não é o quartel - disse o Rato. É uma caverna subterrânea,

onde estão escondidas milhares de espadas e espingardas, e que está cheia até
ao telhado. Só ficou livre um pequeno espaço para nos podermos sentar e
combinar o que há a fazer. Temos de rastejar para entrar por um buraco, que
está escondido entre os arbustos.

Para o resto dos rapazes isto era unicamente um jogo emocionante, mas

Marco sabia que para o Rato isto era mais do que isso. Embora o Rato não
soubesse nenhuma das coisas que ele sabia, toda a história lhe parecia muito
real. As lutas da Samávia, tal como ele as tinha ouvido e como as tinha lido nos
jornais, tinham-no absorvido completamente. A sua paixão por comandar
soldados e enfrentar guerras, além da maturidade curiosa do seu cérebro,

background image

tinham-no levado a seguir todos os pormenores de que podia dispor. Ele
lembrava-se de coisas que as pessoas mais velhas tinham esquecido depois de
as terem contado. Ele não se esquecia de nada. Tinha desenhado nas pedras um
mapa da Samávia, que Marco achava que estava bastante correcto e tinha feito
um pequeno esboço de Melzarr e da batalha que tinha tido resultados tão
desastrosos.

- Acredito que serias um bom general se tivesses crescido - disse Marco. -

Gostava de mostrar os teus mapas ao meu pai e de lhe perguntar se ele não
acha que o teu estratagema teria sido muito bom.

- Ele sabe muito sobre a Samávia? - perguntou o Rato.
- Ele precisa de ler os jornais para escrever as suas coisas - respondeu

Marco. - E além disso toda a gente anda a pensar na guerra. Ninguém pode
deixar de pensar.

O Rato tirou então do bolso uma folha de jornal, dobrada e desbotada, e

pôs-se a olhar para ela com ar de reflexão.

- Vou fazer um novo mapa - disse. - Gostava que um adulto o examinasse,

e dissesse se está bem ou não. O meu pai estava mais do que meio embriagado
quando desenhei este, por isso não lhe pude fazer perguntas. Vai acabar por
morrer devido ao vinho. Ontem à noite teve uma espécie de desmaio.

- Rato, diz-nos o que tu e o Marco vão fazer. Deixa-nos ouvir o que é que

vocês combinaram - sugeriu Cad. Ao dizer isto aproximou-se mais, tendo o
resto do círculo feito o mesmo.

- Isto é o que nós vamos ter de fazer - começou o Rato por dizer. - Temos

de divulgar a mensagem do Partido Secreto: “Chegou a altura!”. Este sinal tem
de ser levado a todos os elementos do Partido Secreto, na Samávia, assim como
aos simpatizantes noutros países. E tem de ser levado por alguém de quem não
possa suspeitar-se. Quem iria suspeitar de dois rapazes, sendo ainda por cima
um deles um aleijado? A melhor coisa, para nós, é eu ser aleijado. Quem iria
suspeitar de um aleijado? Quando o meu pai está embriagado e me bate, fá-lo
porque eu não saio para a rua a pedir esmola, para depois lhe entregar o
dinheiro. Ele diz que as pessoas dão quase sempre dinheiro a um aleijado.
Marco fingiria ser o meu irmão, que tomava conta de mim. Quer dizer -
continuou, virando-se para Marco com uma súbita mudança de voz -, és capaz
de cantar alguma coisa? Não importa como o faças.

- Sim, sou capaz de cantar - retorquiu Marco.
- Então o Marco vai fingir que canta para fazer com que as pessoas me

dêem dinheiro. Vou arranjar um par de muletas, e uma parte do tempo vou
andar com elas e a outra parte fico no estrado. Viveremos como pedintes e
podemos ir onde quisermos. Podemos passar de um país para outro e instigar

background image

toda a gente que pertence ao Partido Secreto. Vamos introduzir-nos na

Samávia e seremos apenas dois rapazes, sendo um deles aleijado, e

ninguém vai pensar que nós andamos a fazer alguma coisa. Vamos pedir
esmola tanto nas grandes cidades como na estrada.

- E onde é que vão arranjar dinheiro para viajar? - perguntou Cad.
- O Partido Secreto dar-nos-ia algum. Não precisaremos de muito. O resto,

poderemos obtê-lo com as esmolas que nos derem. Vamos dormir ao relento,
debaixo das pontes, nos arcos ou em cantos escuros das ruas. Se estiver frio, é
muito mau, mas se estiver bom tempo, ainda é melhor do que dormir no sítio
onde costumo. “Camarada” - disse para Marco -, estás pronto?

Ele disse “Camarada”, como Loristan costumava fazer, mas Marco não se

ressentiu, porque estava sempre pronto para trabalhar para a Samávia. Era só
um jogo, mas tornava-os camaradas. Mas seria mesmo apenas um jogo? A voz
excitada do Rato e a sua face enrugada tornavam-no singularmente original e
perturbador.

Marco tinha os seus pensamentos num turbilhão. Não devia passar de um

jogo. Mas estava a aquecer. Se o Partido Secreto pretendia enviar mensageiros,
ninguém iria suspeitar de dois inofensivos rapazes vagabundos, tirando partido
tanto quanto podiam do seu modo de vida, dando a entender que não
dependiam de ninguém. E, ainda por cima, sendo um deles um aleijado. Era
verdade, tal como o Rato tinha dito, que o facto de ele ser um aleijado o tornava
ainda mais seguro do que qualquer outra pessoa.

Marco levou as mãos à cabeça e comprimiu as têmporas.
- O que é que foi? - exclamou o Rato. - Em que é que estás a pensar?
- Estou a pensar no bom general que tu darias. Estou a pensar que tudo

isso poderia ser real, cada uma dessas palavras poderia ser a própria realidade.
Podia até nem ser um jogo - disse Marco.

- Pois não - respondeu o Rato. - Se eu soubesse como contactar o tal

Partido Secreto, iria ter com eles e far-lhes-ia esta proposta.... - parou
subitamente, e disse: - O que é esta gritaria? - de facto, ouviam-se ardinas a
apregoar jornais a plenos pulmões; no círculo dos rapazes ninguém falava, na
expectativa. Marco e o Rato escutavam com muita atenção, tal como o exército,
todos espevitando bem os ouvidos.

- Novidades sensacionais sobre a Samávia! - apregoavam os ardinas. -

História extraordinária! Apareceu o descendente do Príncipe Desaparecido!

- Alguém tem dinheiro para se comprar o jornal? - perguntou o Rato,

encaminhando-se para o arco.

- Tenho eu - respondeu Marco, seguindo-o.
- Então vamos - disse o Rato. - Vamos comprar o jornal. E deslizou pela

background image

passagem em arco, seguido por Marco e pelo exército, cujos elementos gritavam
e gesticulavam de excitação.

background image




9
Isto não é um jogo


Loristan andava de um lado para o outro, na sala das traseiras, ouvindo o

que Marco, sentado junto da pequena lareira, dizia.

- Continua - dizia, sempre que o rapaz parava.
- Quero ouvir tudo. Ele é um rapaz muito estranho e isso é um jogo

esplêndido.

Um ano depois, Marco, ao lembrar-se dessa noite ainda se emocionava e

pensava que aquela recordação nunca mais lhe sairia da memória ao longo de
toda a sua vida. Seria sempre capaz de se lembrar de tudo, com todo o
pormenor. Daquela sala das traseiras, pequena e sombria, da pouca claridade
do pobre fogão a gás, que era tudo de que eles podiam dispor para se
iluminarem, do cofre de ferro empurrado para um canto com os mapas e os
planos todos lá dentro, guardados em segurança, da postura muito direita e da
beleza da figura alta do pai, que nem mesmo as roupas usadas e remendadas
conseguiam esconder ou disfarçar. Os seus olhos pareciam ainda mais escuros e
mais maravilhosos que nunca, ao recordar-se de ouvir com todo o interesse
aquilo que ele dizia.

- Continua - disse ele. - É um jogo esplêndido. E ele imaginou-o muito

bem. Esse miúdo nasceu para ser soldado.

- Para ele não é um jogo - disse Marco. - Assim como também não o é para

mim. O exército anda só a brincar, mas com ele a coisa é diferente. Ele sabe que
nunca vai conseguir aquilo que quer, mas sente que isto é qualquer coisa de
muito parecido. Disse-me até que lhe podia mostrar o mapa que tinha feito. Pai,
olhe para isto.

E deu a Loristan a cópia nova do mapa da Samávia, feito pelo Rato. A

cidade de Melzarr estava marcada com certos sinais, que serviam para mostrar
quais os pontos donde o Rato, se tivesse sido um general Samaviano, teria
atacado a capital. À medida que Marco os apontava, ele ia explicando as razões
do Rato para o seu plano.

Loristan segurou no papel durante alguns minutos, fixando-o com

curiosidade ao mesmo tempo que franzia as sobrancelhas pretas.

- Isto está muito bom! - disse por fim. - Eles podiam ir para lá, pelas razões

que ele apresentou. Como é que ele aprendeu isto tudo?

background image

- Ele agora não pensa em mais nada - respondeu Marco. - Aliás, pensou

sempre em guerras e em planos para batalhas. Não é como o resto do exército.
O pai dele anda quase sempre embriagado, mas apesar disso é muito bem
educado, e quando está só meio bêbado, gosta muito de conversar. Nessa altura
o Rato faz-lhe perguntas e consegue descobrir muitas coisas. Depois, lê os
jornais velhos e esconde-se pelos cantos a ouvir o que as pessoas dizem. Diz que
à noite fica acordado a pensar em tudo, assim como de dia anda também
sempre a pensar no mesmo. Foi por isso que ele formou o exército.

Loristan continuou a examinar o papel.
- Diz-lhe - disse, enquanto dobrava o papel e o entregava novamente - que

estudei o mapa, e que ele se deve sentir orgulhoso com ele. Podes também
dizer-lhe - e sorria, enquanto falava - que sou de opinião que ele tem razão.
Iarovitch teria conquistado hoje Melzarr se tivesse conduzido as suas hostes de
acordo com o plano que me mostraste.

Marco exultava de alegria.
- Pensei logo que o pai ia dizer que ele tinha razão. Tinha a certeza de que

o faria. E isso leva-me a contar-lhe o resto - apressou-se a dizer. - Se pensar que
ele também tem razão no resto de repente parou de falar, por lhe ter vindo à
ideia um pensamento súbito. - Não sei o que vai pensar - repetiu. - Talvez lhe
pareça, como lhe deve ter parecido a outra parte, que só podia ser um jogo!

E estava tão excitado ao dizer isto, apesar da sua hesitação, que Loristan

começou a olhar para ele com respeito e atenção, como sempre fazia quando o
rapaz tentava dizer alguma coisa de que não tinha bem a certeza.

- Continua - disse ele outra vez. - Sou como o Rato e como tu. Até agora

não me pareceu muito que fosse um jogo.

Sentou-se depois à mesa de trabalho e Marco aproximou-se, tendo-se

mesmo encostado, apoiando-se nos braços e baixando o tom de voz.

- É o plano do Rato para dar o sinal para a revolta - disse.
Loristan esboçou um leve movimento.
- Ele pensa que vai haver uma revolta? - perguntou a seguir.
- Até diz que deve ser o que o Partido Secreto tem vindo a preparar

durante todos estes anos. E que deve acontecer em breve.

- E o Rato tem algum plano para dar o sinal? - perguntou Loristan.
Marco deixou de hesitar. Começou a recordar o plano, tal como o Rato o

tinha concebido. Conseguiu até enunciá-lo de uma forma mais clara do que o
Rato o tinha feito.

Respirava profundamente à medida que prosseguia, fazendo desenhos

cada vez mais pormenorizados e falando num tom tão baixo que mais parecia
segredar.

background image

Nessa altura, a campainha da porta da rua tocou, e Lazarus foi abri-la.

Falou com alguém, e depois eles puderam ouvir passos a aproximarem-se da
sala das traseiras.

- Abre a porta - disse Loristan. Marco abriu-a.
- Está aqui um rapaz que é aleijado, senhor - disse o velho soldado. - Pediu

para falar com o senhor Marco.

- Se é o Rato - disse Loristan -, trá-lo aqui, porque quero vê-lo.
Marco desceu o corredor que dava para a porta da rua. Era efectivamente

o Rato. Mas não vinha no seu estrado. Estava apoiado num par de muletas
velhas, o que fez Marco pensar que ele parecia estranho e desajeitado. Estava
muito branco e de algum modo os traços da sua cara pareciam ter-se
modificado. Marco pensou que alguma coisa o tivesse assustado ou que se
sentisse doente.

- Rato - começou ele por dizer -, o meu pai....
- Vim falar-te acerca do meu pai - apressou-se o Rato a dizer, sem sequer

ouvir o resto, e a sua voz parecia estar tão estranha como a sua cara pálida. -
Não sei porque é que vim cá, mas apeteceu-me vir. O meu pai, morreu!

- O teu pai!? - repetiu Marco. - Morreu?
- Sim, está morto - respondeu o Rato a tremer.
- Eu disse-te que ele havia de morrer por causa do vinho. Teve outro

desmaio e nesse momento morreu. Já sabia que isto ia acontecer um dia. Até lhe
cheguei a dizer. Ele próprio também sabia. Fiquei com ele até morrer, mas a
seguir tive uma dor de cabeça enorme, comecei a sentir-me agoniado e só
pensei em ti.

Marco correu para junto dele, porque viu que de repente ele começara a

vacilar e parecia ir cair. Chegou mesmo a tempo, e Lazarus, que tinha estado a
observá-los do fundo do corredor, correu também para ele. Juntos, conseguiram
ampará-lo.

- Não vou desmaiar - disse ele com voz fraca -, mas senti-me como se

fosse. Foi um mau momento, e eu tive de tentar ajudar a segurá-lo. Estava
completamente sozinho. Os vizinhos do outro sótão pensaram que ele estava
apenas embriagado, e não quiseram entrar. Agora está lá deitado no chão,
morto.

- Anda até ao meu pai - disse Marco. - Ele pode dizer-nos o que havemos

de fazer. Lazarus, ajuda-o.

- Consigo ir sozinho - disse o Rato. - Não vês as minhas muletas? Ontem à

noite fiz um favor a um penhorista e, em troca, ele deu-mas.

Embora tentasse falar despreocupadamente, via-se que estava

profundamente abalado e completamente exausto. A sua cara estranha ainda

background image

tinha um tom amarelado e continuava a tremer.

Marco conduziu-o para a sala das traseiras. E no meio daquela atmosfera

pobre, iluminado por uma luz fraca, Loristan estava de pé numa das suas
atitudes calmas e atentas, esperando por eles.

- Pai, este é o Rato - começou o rapaz por dizer.
O Rato parou logo a seguir e apoiando-se nas suas muletas ficou a olhar

com os olhos muito abertos para aquela figura alta e com ar calmo.

- Esse é que é o teu pai? - perguntou para Marco. Depois, acrescentou num

meio-sorriso como que soluçando: - Ele não é como o meu, pois não?

background image




10
O Rato e a Samávia


Quando Loristan começou a falar com o Rato, Marco interrogava-se sobre

o que este estaria a pensar. De repente tinha-se sentido num mundo
desconhecido e foi Loristan que o fez pensar assim, porque a pobreza não tinha
qualquer influência nele. Olhou para o rapaz com os seus olhos claros e calmos,
começando serenamente a fazer-lhe perguntas práticas, e era evidente que
percebia muitas outras coisas sem sequer fazer perguntas. Marco pensou que
talvez ele tivesse visto, em determinada altura da sua vida, homens
embriagados morrerem em sítios estranhos. Parecia saber como tinha sido
horrível a noite que o Rato tinha passado. Fê-lo sentar-se e pediu a Lazarus para
lhe trazer café quente e comida simples.

- Não comeste nada desde ontem, pois não?
O Rato, ainda muito admirado, respondeu:
- Como sabe que não?
- Tenho a certeza que não tiveste tempo para isso
- disse Loristan.
E depois mandou-o deitar no sofá.
- Mas as minhas roupas.... - disse o Rato.
- Deita-te e dorme - replicou Loristan, pousando a mão no seu ombro e

forçando-o a dirigir-se para o sofá. - Vais dormir durante bastante tempo. Mas
antes, tens de me dizer onde moras e como se chega lá, e eu vou tentar notificar
as autoridades competentes.

- Porque é que faz isso? - perguntou o Rato, acrescentando logo em

seguida: - Senhor.

- Porque sou um homem e tu és um rapaz. E isto é uma fase difícil -

respondeu-lhe Loristan.

Depois foi-se embora sem dizer mais nada e o Rato ficou deitado no sofá a

olhar para a parede e a pensar em tudo aquilo, até que adormeceu. Tal como
Loristan tinha previsto, dormiu profundamente e durante muito tempo.

Quando acordou era já manhã, e Lazarus estava de pé, ao lado do sofá, a

olhar para ele.

- Vai querer com certeza lavar-se - disse-lhe. Tem de ser.
- Lavar-me! - exclamou o Rato, ao mesmo tempo que se ria aos guinchos. -

background image

Eu não conseguia manter-me limpo quando tinha uma casa para viver, e agora,
que nem sei onde estou, é que me vou lavar? - dizendo isto, sentou-se e pôs-se a
olhar para ele. - Dê-me as minhas muletas - pediu. - Tenho de ir-me embora.

Deixaram-me aqui dormir toda a noite e não me puseram na rua não sei

porquê. O pai de Marco é como deve ser. Parece um cavalheiro.

- O meu amo.... - disse Lazarus num tom rígido.
- O meu amo é um grande senhor. Não ia atirar nenhuma criatura cansada

para o meio da rua. Ele e o filho são pobres, mas são dos que dão aos outros. Ele
deseja ver-te outra vez e falar-te de novo. Agora vais passar a comer com ele e
com o jovem senhor. Mas digo-te que não te podes sentar à mesa com eles
enquanto não te lavares. Vem comigo - ao dizer isto chegou-lhe as muletas.

Tinha uns modos autoritários, como era habitual entre os soldados; assim

como também eram característicos de um militar os seus movimentos
demasiado rígidos. E foi isto que fez o Rato gostar dele porque o fez sentir-se
como se se encontrasse num quartel. Não sabia o que ia acontecer, mas
levantou-se e seguiu-o com as suas muletas.

Lazarus levou-o para um quarto de banho, que ficava por baixo das

escadas, onde estava uma banheira já cheia de água quente, que o velho
soldado tinha transportado em baldes. Havia também sabão, uma esponja e
toalhas lavadas numa cadeira de madeira, além de algumas roupas, muito
usadas, mas limpas.

- Veste estas roupas quando tiveres tomado banho - ordenou Lazarus. -

São do meu jovem amo e vão-te ficar grandes, mas são melhores que as tuas. -
Após o que saiu do quarto de banho, fechando a porta.

Foi uma experiência nova para o Rato. Tanto quanto se lembrava, só tinha

lavado a cara e as mãos, e isso era quando as lavava, numa torneira de alguma
parede duma rua das traseiras ou nalgum quintal dum bairro pobre. Ele e o pai
tinham-se afundado num mundo onde a própria limpeza do corpo não fazia
parte da vida diária. Tinham vivido entre a sujidade e a imundície, e quando o
pai se encontrava numa daquelas fases sentimentais, tinha falado muitas vezes
dos dias, há muito idos, em que se barbeava todas as manhãs e em que
costumava vestir uma camisa lavada.

Quando, depois de se ter divertido ao máximo com a água e o sabão, saiu

do quarto de banho, que ficava mesmo por baixo das escadas, vinha tão fresco
como se fosse o próprio Marco; e, embora as suas roupas tivessem sido feitas
para um corpo mais forte, dava-lhe prazer sentir que estavam limpas.
Perguntava a si próprio se conseguiria continuar assim limpo, por muito tempo,
quando voltasse novamente para a rua e tivesse de dormir em qualquer buraco
donde a polícia não o mandasse embora.

background image

Lazarus esperava-o no corredor, mas o Rato recuou um pouco.
- Talvez seja melhor eles não tomarem o pequeno-almoço comigo - hesitou

ele em dizer. - Não sou como eles. Podia engolir o café mesmo aqui e levar o
pão lá para fora. E você podia agradecer-lhe por mim. Quero que ele saiba que
eu agradeci.

Lazarus mantinha-se impassível. O Rato percebeu que ele o observava

como se estivesse a fazer a sua avaliação.

- Podes não ser como eles, mas podes ser de uma espécie que o meu amo

acha boa. Se não visse alguma coisa em ti não te teria chamado para te sentares
à sua mesa. Tens de vir comigo.

O Rato ainda resmungou um pouco, tentando perceber o significado de

tudo aquilo, enquanto seguia Lazarus até à sala das traseiras.

Loristan estava sentado à lareira e Marco estava ao pé dele. Esperavam

pelo seu hóspede vagabundo, como se ele fosse um senhor.

À porta ainda hesitou e tentou esquivar-se por um momento, mas de

repente ocorreu-lhe pôr-se de pé tão direito quanto possível e tentou fazer uma
saudação. Quando se viu na presença de Loristan, sentiu que devia fazer
alguma coisa, embora não soubesse bem o quê.

O facto de Loristan corresponder ao seu gesto e a expressão que mantinha

no rosto à medida que avançava para ele, aliviou-lhe a tensão em que estava, e
de que não se dera conta até esse momento. De algum modo sentia-se como se
alguma coisa de novo lhe estivesse a acontecer, como se afinal ele não fosse um
mero verme e como se não precisasse de estar sempre à defesa, ou de se manter
sempre na escuridão, como um objecto para o qual não há lugar no mundo.

O olhar profundo e franco deste homem parecia vislumbrar mais além do

que a maioria das pessoas. E, todavia, o que dizia era muito simples.

- Agora está bem - disse. - Já descansaste. Vais comer alguma coisa, e

depois vamos conversar. Fez em seguida um ligeiro gesto na direcção da
cadeira que ficava à sua direita.

O Rato hesitou outra vez. Mas que cavalheiro! Com aquele gesto, fazia

sentir uma pessoa como se fosse igual a ele e lhe estivesse prestando uma
honra.

- Eu não sou.... - e ao dizer isto, fez uma pequena pausa, inclinando a

cabeça para Marco. - Ele sabe acabou por dizer. - A verdade é que nunca me
sentei assim a uma mesa.

- Não faz mal - Loristan fez novamente aquele gesto a indicar o assento à

sua direita e sorriu, dizendo:

- Sentemo-nos.
O Rato obedeceu-lhe e a refeição começou. Havia só café, pão e um pouco

background image

de manteiga à sua frente, em cima da mesa. Mas Lazarus trouxe as chávenas e
os pratos numa pequena travessa japonesa, como se fosse uma salva em ouro.
Quando não estava a servir, ficava de pé, atrás da cadeira do seu amo, como se
estivesse vestido de libré bordada a ouro. Para o Rato, que só roía algum osso
ou alguma côdea quando calhava, olhar para aquelas duas pessoas ao pé dele
era uma grande novidade. Não sabia nada acerca das etiquetas do quotidiano
das pessoas civilizadas. Gostava de olhar para elas, e até deu consigo a segurar
na chávena como Loristan fazia e a sentar-se e movimentar-se para ir buscar o
pão e a manteiga tal como Marco, ao que Lazarus se interpôs para o obrigar a
esperar pela sua vez. Marco tinha sempre lidado com estas coisas toda a vida e
por isso não se sentia desajeitado. O Rato sabia que o seu pai tinha em tempos
vivido daquela maneira. Ele próprio poderia sentir-se também à vontade, se a
sorte o tivesse contemplado. Este pensamento fê-lo franzir o sobrolho.

Mas, passados alguns minutos, Loristan começou a falar sobre a cópia do

mapa da Samávia. Nessa altura, o Rato esqueceu-se de tudo o resto e começou a
descontrair-se. O que não sabia era que Loristan Lhe estava a abrir caminho
para ele poder explicar as suas teorias acerca do país, do povo e da guerra. Deu
consigo a contar tudo o que tinha lido ou ouvido ler, ou até mesmo aquilo em
que tinha pensado quando ficava acordado no seu sótão.

Foi uma refeição maravilhosa, embora tivesse sido só de pão e café. O Rato

sabia que nunca mais a esqueceria.

A seguir, Loristan contou-lhe o que tinha feito na noite anterior referente à

morte do seu pai. Fora ter com as autoridades paroquiais, e a segurança social
trataria do funeral do pobre senhor.

- Vamos acompanhá-lo - disse Loristan no fim.
- Tu e eu, assim como Marco e Lazarus. A boca do Rato abriu-se de

espanto.

- O senhor, Marco e Lazarus! - exclamou, estarrecido. - E eu! Porque é que

havemos de ir? Eu não quero ir! Ele não teria ido ao meu enterro!

Loristan ficou calado por uns momentos.
- Quando uma vida não contou para nada, o seu fim torna-se solitário -

disse ele por fim. - Se se ti ver esquecido todo o respeito por si próprio, a
piedade é a única coisa que resta para se poder dar. Há-de haver sempre
alguém a minorar essa solidão! - disse esta última frase, depois de fazer uma
pequena pausa.

- Claro que vamos - disse Marco de repente, ao mesmo tempo que pegava

na mão do Rato.

E assim, quando aquele abandonado foi conduzido ao cemitério, para o

local onde pessoas anónimas daquela cidade eram lançadas à terra, havia uma

background image

curiosa procissão fúnebre a acompanhá-lo. iam dois homens altos como
soldados e dois rapazes, um deles de muletas e atrás deles mais dez rapazes em
grupos de dois a dois. Estes dez rapazes formavam um grupo muito estranho e
andrajoso, tendo no entanto caras bastante sóbrias e mantendo as cabeças e
ombros muito direitos e andando com um passo de marcha incrivelmente certo.

Era o exército; só que tinham deixado as suas espingardas em casa.

background image




11
Vem comigo


Quando regressavam do cemitério, o Rato veio calado todo o caminho.

Pensava no que acontecera e no que se lhe depararia daí em diante. Vinha mais
propriamente a pensar que não via nenhum futuro à sua frente. A certeza deste
pensamento enrugava a sua face, de linhas acentuadas, e tornava-a mais
sombria, o que o fazia parecer duro e atormentado.

Foi por ali fora muito bem com as suas muletas, mas quando chegou à

esquina da rua, que ia dar ao seu antigo antro, sentia-se já muito cansado. O
exército, quando chegou a essa esquina parou, porque era a partir daí que cada
um se dirigia para as suas casas. Pararam em grupo, a olhar para o Rato, e este
parou igualmente. E inclinando-se profundamente diante de Loristan, levou a
mão à testa.

- Muito agradecido, senhor - disse ele. Alinhem-se e façam a saudação,

vocês aí! - E logo o exército se perfilou e fez a continência.

- Muito agradecido, senhor. Muito obrigado, Marco. Adeus!
- Onde vais? - perguntou Loristan.
- Ainda não sei - respondeu o Rato, mordendo os lábios.
Entreolharam-se por uns momentos. Ambos estavam a pensar. Nos olhos

do Rato havia uma espécie de adoração: não sabia o que iria fazer quando
aquele homem se fosse embora e o deixasse ali. Seria como se o próprio Sol
caísse do céu. Nunca tivera nenhuma sensação semelhante.

Mas Loristan não se foi embora. Ficou ali a olhar para os olhos do rapaz

como se procurasse certificar-se de alguma coisa. Depois, disse em voz baixa.

- Sabes como sou pobre.
- Eu não me importo! - disse o Rato. - O senhor é como um rei para mim.

Seria capaz de fazer tudo por si, até à morte, se mo pedisse.

- Sou tão pobre que não sei se te posso dar, todos os dias, pão para

comeres. Tanto Marco como Lazarus e até eu, muitas vezes passamos fome. E
por vezes pode acontecer não teres nenhum outro sítio para dormir a não ser o
chão. Mas pode ser que encontre um “lugar” para ti se te levar comigo - disse
Loristan. E sabes o que entendo por um “lugar”?

- Sim, sei - respondeu o Rato. - É aquilo que nunca tive, senhor.
O que ele sabia era que significava um pouco de espaço neste mundo,

background image

onde ele teria o direito de estar, por mais pobre e simples que fosse.

- Não estou habituado a muito boas camas ou a comida suficiente - disse.

Mas não ousava insistir no tal “lugar”; parecia demasiado bom para ser
verdade.

Loristan agarrou-lhe no braço.
- Vem comigo - disse ele. - Não nos vamos separar. Acho que mereces

confiança.

O exército durante uns momentos mostrou um olhar de desânimo no qual

Loristan reparou.

- Vou levar o vosso capitão comigo - disse ele.
- Mas ele vai voltar ao quartel. Assim como Marco também há-de ir.
- E o jogo vai continuar ? - perguntou Cad, desejoso de saber. - Queremos

continuar a ser o “Partido Secreto”.

- Claro que vai - respondeu o Rato. - Não vou desistir. Hoje vem muita

coisa nos jornais.

Depois de terem ficado mais calmos, continuaram o seu caminho tal como

Loristan, Lazarus, Marco e o Rato prosseguiram também o seu.

À medida que iam andando, Loristan falava com ele. Descrevia a situação

com muita simplicidade. Havia, no quarto de Marco, um sofá velho, estreito e
duro, tal como a cama de Marco. O Rato podia dormir nele. Teriam que
partilhar a comida. Havia sempre jornais e revistas para ler. Quanto a lápis e
papel, havia também quantidade suficiente para fazer mapas e planos de
batalhas. Havia também um mapa velho da Samávia que pertencia a Marco, por
onde podiam estudar juntos sendo uma ajuda para o seu jogo. Nesta altura os
olhos do Rato ganharam laivos de fogo.

- Quando eu tiver tempo, veremos quem é que consegue desenhar os

melhores planos - disse Loristan.

- Quer dizer que nessa altura vai olhar para os meus, quando tiver tempo?

- perguntou o Rato, hesitando. - Por essa não esperava eu.

- Sim - respondeu Loristan. - Vou olhar para eles e vamos discuti-los.
Ao prosseguirem caminho disse-lhe ainda que ele e Marco podiam fazer

muitas coisas juntos.

- O meu pai disse-me que o senhor não deixaria Marco voltar ao quartel

quando descobrisse que ele lá ia - disse o Rato, hesitando novamente, e ficando
cada vez mais emocionado porque se estava a lembrar dos horríveis dias
passados. - Mas eu juro, senhor, que não lhe vou fazer mal nenhum.

- Quando disse que tu merecias que acreditassem em ti, quis dizer muitas

coisas com isso - respondeu-lhe Loristan. - Essa era uma delas. Tu és um recruta
novo. Tu e o Marco estão agora ambos às ordens de um outro oficial. - Disse

background image

estas palavras, porque sabia que elas iriam estimulá-lo e fazer ferver o seu
sangue.

E, realmente, essas palavras estimularam-no, fazendo até ferver o seu

sangue de cada vez que se lembrava delas. Às vezes acordava mesmo do seu
sono profundo no sofá estreito e duro no quarto de Marco, e descobria que as
estava a dizer em voz alta para si próprio. A dureza do sofá não perturbava o
seu repouso, uma vez que ele nunca tinha verdadeiramente descansado na
vida.

Em comparação com a vida que tinha levado até então, esta existência

pobre tinha um conforto que chegava a parecer luxo.

Todas as manhãs tomava banho na banheira, sentava-se à mesa, podendo

olhar para Loristan, falar com ele e ouvir a sua voz. O seu problema maior era
não conseguir desviar os olhos dele e ter medo que Loristan se aborrecesse. Mas
custava muito perder um olhar ou qualquer dos seus movimentos.

background image




13
Loristan e o exército


O exército não estava esquecido. Foi o próprio Loristan que achou que não

se deviam interromper os deveres.

- Tens de te lembrar dos teus homens - disse dois ou três dias depois do

Rato se tornar um membro da sua família. - Deves continuar com o treino.
Marco disse-me que era muito interessante. Não os deixes desleixarem-se.

Quando foram ao quartel, o exército recebeu-os com agitados

cumprimentos de boas-vindas que exprimiam um sentimento de alívio. Os seus
membros tinham falado uns com os outros, em privado, chegando à conclusão
que o pai de Marco era um senhor demasiado fino para deixar os dois virem de
novo ter com eles, depois de ter visto a espécie de elementos de que o exército
era composto. Podia agora ser pobre - por vezes os ricaços perdem o seu
dinheiro repentinamente - mas eles conseguiam perceber como ele era, porque
pais assim não iam deixar os seus filhos ter amigos “como nós”, na expressão
dos membros do exército. Ele tinha feito parar o treino e o jogo da “Sociedade
Secreta”. Era o que tinha conseguido fazer!

Mas afinal o Rato sempre veio, deslocando-se com as suas muletas,

parecendo ter sido promovido a general. E com ele vinha Marco; e desta vez o
treino do exército, foi ainda mais rigoroso do que o costume.

- Gostava que o meu pai tivesse visto - disse Marco para o Rato.
O Rato ficou vermelho, depois branco e novamente vermelho, mas não

pronunciou uma única palavra. O simples pensamento disso foi como que um
raio a trespassá-lo. Mas nenhum rapaz podia aspirar a uma coisa tão boa como
essa. O Partido Secreto na sua caverna subterrânea e rodeado pelas suas armas
empilhadas sentou-se para ler o jornal da manhã.

As notícias da guerra eram péssimas. De momento, Maranovitch detinha o

poder, e martirizava o povo na capital, enquanto Iarovitch o martirizava nos
campos. O relatório era tão triste e sombrio, que toda a Europa estava
consternada.

O Rato dobrou o jornal quando acabou e sentou-se roendo as unhas

durante alguns momentos. Depois começou a falar no seu tom dramático e
quase em segredo como era característico dos elementos do Partido Secreto.

- O momento chegou - disse para os seus seguidores. - Os mensageiros

background image

têm de avançar. Não sabem bem por que é que vão, sabem apenas que têm de
obedecer. E se forem apanhados e torturados não podem trair-se em nada,
porque não saberão mais do que a senha que terão de passar em determinados
locais. Não transportarão quaisquer papéis, e devem decorar todas as ordens
que lhes forem dadas. Quando o sinal for transmitido, o Partido Secreto saberá
o que tem a fazer, onde se deve reunir, e onde deve atacar.

Desenhou depois os planos da batalha nas lajes e traçou uma rota

imaginária que os dois mensageiros deviam seguir. Mas como o seu
conhecimento do mapa da Europa não era de muita confiança, voltou-se para
Marco:

- Sabes mais de geografia do que eu. Na verdade conheces melhor tudo -

disse. - Eu só sei que a Itália fica no fundo e a Rússia se situa de um lado e a
Inglaterra do outro lado. Como é que os mensageiros secretos deveriam ir para
a Samávia? Consegues desenhar os países por onde eles teriam de passar?

E Marco desenhou os países como qualquer outro rapaz em idade escolar

teria feito.

O simples esboço do trajecto correcto, pôs a imaginação do Rato em

delírio. De tal maneira ele elaborou a história de aventuras e a recheou com
perigos e mistérios, que por vezes o exército ficava sem respiração. Na sua
versão, os dois Mensageiros Secretos entravam nas cidades depois da
meia-noite e punham-se a cantar e a pedir aos portões dos palácios, podendo
acontecer então, que os reis ao passarem, parassem para ouvir, podendo assim
ser-lhes dado o sinal.

Estavam precisamente no meio de tudo isto, juntos, esticando os pescoços,

inclinando-se para a frente e sustendo a respiração, cheios de excitação, quando
Marco levantou por acaso a cabeça, levado por um impulso misterioso e gritou:

- Vem ali o meu pai!
O Rato deixou cair o giz e tudo se desvaneceu, até mesmo a Samávia.

Pôs-se de pé nas suas muletas como se uma força mágica o tivesse impelido e
nem se deu conta de ter dado qualquer ordem. Mas o que é certo é que o
exército fez a continência.

Loristan estava parado à entrada em forma de arco, tal como tinha

acontecido com Marco no primeiro dia em que ali fora. Retribuiu a saudação
com a sua mão direita e avançou para o grupo.

- Ia a passar ao fundo da rua e lembrei-me de que o quartel ficava aqui -

explicou. - E pensei que gostaria de ver os teus homens, capitão.

Em seguida sorriu, mas este sorriso não era de modo nenhum um sorriso

trocista. Depois pôs-se a olhar para o mapa desenhado a giz nas lajes do chão.

- Conheces muito bem aquele mapa - disse ele.

background image

- Até mesmo eu consigo ver que é a Samávia. O que é que o Partido

Secreto anda a fazer?

- Os mensageiros estão a tentar descobrir um caminho para prosseguirem

- respondeu Marco.

- Podíamos entrar por aqui - disse o Rato apontando com uma muleta. -

Há aqui uma floresta onde nos podemos esconder e descobrir coisas.

- Fazer um reconhecimento - disse Loristan, olhando para baixo. - Pois é.

Dois rapazes perdidos podiam ficar em segurança numa floresta. É um bom
jogo.

Mas aquilo em que o Rato pensava era que ele estava ali, a encantá-los

com os seus modos maravilhosos, e que ele se tinha mesmo preocupado em ir
até ao quartel. Eles não eram nada mais do que um grupo de esfarrapados e
apesar disso ele estava ali a olhar para eles com o seu fino sorriso. O coração do
Rato saltava de alegria, embora um pouco intimidado.

- Pai - disse Marco -, ficas a ver o Rato a treinar-nos? Gostava que visses

como é tão eficiente.

- Capitão, dá-me essa honra? - perguntou Loristan, num ar nem muito

sério nem muito jocoso.

O coração do Rato vibrou de alegria. O treino começou e Loristan ficou

maravilhado com o que via: o exército movia-se e manobrava com a precisão de
uma máquina. O modo como o conseguiam fazer num espaço tão curto e a
correcção de todos os movimentos, evidenciavam as qualidades e a eficiência
militar do seu comandante.

- Mas isto é magnífico! - disse o distinto espectador. - Eu não teria

conseguido fazer melhor. Deixa-me felicitar-te.

Tomou a mão do Rato e apertou-a; em seguida pôs-lhe a mão no ombro e

aí a manteve, enquanto falava com os outros membros do exército. Pouco
depois foi-se embora, deixando os improvisados soldados, encantados com a
inesperada visita, a fazerem entusiásticos comentários sobre a sua pessoa.

- Quando disseste que o teu pai queria ver o treino, nunca pensei que ele

aqui viesse. Mas veio mesmo, e deixou-me sem fala! - disse o Rato.

- Se veio, é porque queria mesmo ver – retorquiu Marco.
Quando acabaram de falar, estava na hora de se retirarem.
Loristan tinha pedido ao Rato para lhe fazer um recado, que consistia em

ir a uma determinada hora, a uma determinada loja receber uma encomenda.

- Deixa-o ir sozinho - havia dito Loristan a Marco. - Ele precisa de ganhar

confiança em si próprio, e isto é uma maneira de o conseguir.

Separaram-se então numa esquina. Marco enveredou por uma das ruas

que costumava percorrer no regresso a casa. Não era uma rua fina, mas tinha

background image

algumas boas casas, e por vezes havia janelas com anúncios de aluguer de
apartamentos. Quando Marco subia a rua, viu de repente uma porta abrir-se e
sair uma senhora que começou a caminhar rapidamente pelo passeio. Era uma
mulher jovem trajando um vestido elegante e sóbrio e um chapéu que parecia
ter sido comprado em Paris ou Viena. Na realidade, tinha um ligeiro ar de
estrangeira e foi isto que fez com que Marco a fixasse o tempo suficiente para
ver que era também uma pessoa atraente e fascinante. Gostaria de saber qual
seria a sua nacionalidade; pensou que podia ser espanhola ou italiana, porque
mesmo a uma certa distância, conseguia ver que tinha grandes olhos escuros e
uma boca bem desenhada que parecia estar sempre a sorrir.

Tentava ainda adivinhar a sua nacionalidade, quando ela se aproximou.

Mas de repente deixou subitamente de sorrir por ter metido o pé num buraco
do pavimento, o que lhe fez perder o equilíbrio. Teria mesmo caído se Marco
não se tivesse lançado sobre ela e não a agarrasse. Ela era leve e esguia e ele era
já um rapaz forte, conseguindo por isso segurá-la; não evitou todavia que na
sua cara surgisse uma expressão de dor.

- Espero que não se tenha aleijado - disse Marco. Ela, mordendo o lábio e

esfregando o ombro com a sua mão elegante, respondeu:

- Torci o tornozelo. Receio mesmo que seja grave. Agradeço muito o

ter-me ajudado. Senão podia ter dado uma queda ainda maior.

- Consegue ao menos manter-se de pé? - perguntou-lhe.
- Agora consigo - disse ela -, mas daqui a pouco posso já não conseguir.

Tenho de voltar para casa en quanto consigo pôr o pé no chão. Sinto muito, mas
penso que vou ter de lhe pedir para ir comigo. Felizmente que moro a poucos
metros daqui.

- Pois é - respondeu Marco. - Eu vi-a quando saiu de casa. Se se apoiar no

meu ombro, ajudo-a a regressar. Fico muito satisfeito por poder auxiliá-la.
Tentamos, então?

Apoiou-se no ombro dele e no guarda-chuva, mas era mais que evidente

que cada um dos movimentos lhe provocava uma dor intensa. Mordia o lábio
com os dentes e Marco até achou que estava a ficar pálida. Era tão graciosa e
corajosa que Marco cada vez se sentia mais fascinado. Não conseguia suportar
vê-la sofrer.

- Sinto muito! - disse, enquanto a ajudava e na sua voz havia algo parecido

com o maravilhoso tom da de Loristan. A própria senhora notou isso e pensou
quão diferente era esta voz das dos outros rapazes.

- Tenho aqui a chave - disse ela quando chegaram ao degrau da entrada.
A casa era característica de Londres no começo da época vitoriana. Havia

um vestíbulo na frente do lado direito e um outro atrás, donde partia uma

background image

escada para a cozinha da cave. A sala de estar dava para um pátio sombrio, nas
traseiras, cercado de muros altos. A própria sala era também sombria, mas
estava mobilada com algumas coisas luxuosas entre outras bastante vulgares.
Havia uma poltrona com uma pequena mesa ao lado, em cima da qual estava
um candeeiro prateado e outros adornos bastante elegantes. Marco ajudou a
senhora a chegar até à poltrona e colocou-lhe uma almofada do sofá debaixo
dos pés.

Fez tudo isto muito gentilmente e, quando se levantou, reparou que ela o

olhava duma maneira curiosa com os seus ternos olhos escuros.

- Agora tenho de me ir embora - disse ele -, apesar de não gostar nada de

ter de a deixar. Quer que chame um médico?

- Que simpático que é! - exclamou ela. - Mas não quero nenhum médico,

obrigada. Sei exactamente o que há a fazer com um tornozelo deslocado. E até
talvez nem esteja deslocado. Vou tirar o sapato e ver o que tem.

Marco ajudou-a a desapertar o sapato e a tirá-lo do pé.
- Não - disse ela, quando se levantou. - Afinal, agora depois de tirar o

sapato e de ter o pé a repousar na almofada mais confortavelmente, não acho
que esteja deslocado. Mais uma vez muito obrigada. Se você não fosse a passar
eu podia ter dado uma grande queda.

- Sinto-me satisfeito por ter podido ajudar - respondeu Marco com um ar

de alívio. - Agora que acha que já está bem, tenho mesmo de me ir embora.

- Não vá ainda - disse ela, segurando-lhe na mão.
- Gostava de o conhecer um pouco melhor, se pudesse. Estou-lhe tão grata,

que gostava de conversar consigo um pouco mais. Tem tão boas maneiras para
um rapaz ainda tão jovem como é - concluiu ela com um riso bonito e amável -,
que acho que sei como é que as aprendeu.

- É muito amável - respondeu Marco, corando um pouco. - Mas agora

tenho de ir por causa de meu pai.

- O seu pai iria deixá-lo ficar a conversar comigo - disse ela com uma

delicadeza maior do que anteriormente. - Foi dele que herdou essas maneiras
tão bonitas. Ele foi meu amigo em tempos. Espero que ainda seja meu amigo,
embora talvez já me tenha esquecido.

- Não acho que o meu pai esqueça alguma vez alguém - respondeu ele.
- Não, com certeza que não - disse ela delicadamente. - Ele tem ido à

Samávia durante estes últimos três anos?

Marco parou um instante.
- Talvez eu não seja o rapaz que pensa que sou - disse. - O meu pai nunca

foi à Samávia.

- Não foi? Mas você é o Marco Loristan!

background image

- Sim. Esse é o meu nome.
Subitamente, ela inclinou-se para a frente, e disse com um brilho no olhar

e uma súbita familiaridade:

- Então tu és um Samaviano e sabes das desgraças que nos oprimem.

Deves saber como é horrível e bárbaro tudo o que nos está a ser feito. Sendo
filho de quem és, tens de saber isto tudo!

- Toda a gente sabe isso - disse Marco.
- O que é que o teu pai pensa disso? Eu sou uma Samaviana e penso nisso

dia e noite. Qual é a opinião dele sobre os rumores acerca do descendente do
Príncipe Desaparecido? Ele acredita nisso?

Marco raciocinou muito rapidamente. Via-se na cara dela uma grande

emoção e a sua voz tremia. Tudo lhe fazia crer que ela era Samaviana e que
amava a sua pátria, porque o seu sentimento era bem visível, mesmo para um
rapaz como ele. Mas mesmo que fosse levado a acreditar, devia continuar a
lembrar-se de que a discrição e o silêncio eram uma ordem.

- Pode não passar de uma história de jornal - disse ele. - O meu pai diz que

não se pode acreditar nessas coisas. Se o conhecesse, veria como ele é calmo.

- Se eu, em vez de ser mulher, fosse um milhão de Samavianos saberia o

que fazer! - gritou ela. - E, da mesma maneira, o teu pai também saberia o que
fazer! Iria descobrir o descendente de Ivor, se é que ele existe, e iria acabar com
este horror!

Ao mesmo tempo que falou, virou a cabeça para o lado donde vinha o

barulho de alguém a utilizar a chave da porta e a abri-la. E logo em seguida esse
alguém entrou caminhando pesadamente.

- É um dos hóspedes - disse ela. - Acho que é o que mora no terceiro

andar.

- Então já não fica sozinha, quando eu me for embora - disse Marco. - Fico

satisfeito por já ter vindo alguém. Posso dizer o seu nome a meu pai?

Ela tirou um cartão de uma caixa de prata, que estava em cima da mesa, e

entregou-lho.

- O teu pai vai lembrar-se do meu nome - disse.
- Espero que me deixe ir vê-lo e, entretanto, conta-lhe como trataste de

mim.

Depois apertou-lhe a mão calorosamente e deixou-o ir-se embora. Mas

quando ele ia a chegar à porta, ela falou de novo.

- Posso pedir-te mais uma coisa antes de me deixares? - perguntou de

repente. - Espero que não te importes. Era para ires lá acima à sala de visitas e
trazeres-me um livro roxo que está em cima da mesa pequena. Se tiver alguma
coisa para ler, já não me sinto sozinha.

background image

- Um livro roxo que está em cima da mesa? - perguntou Marco.
- Sim, entre as duas janelas altas - disse ela, sorrindo.
Em casas como estas, a sala de visitas fica logo ao cimo de um pequeno

lanço de escadas.

E Marco subiu-as a correr.

background image




13
Marco não responde


Logo que ele subiu as escadas, a senhora levantou-se do seu lugar na sala

das traseiras e foi à sala de jantar da parte da frente. Ali, esperava-a um homem
bem constituído e com uma barba preta.

- Não consegui nada dele - disse ela imediatamente, na sua voz doce,

falando muito amavelmente, como se o que dizia fosse a coisa mais natural do
mundo.

- Utilizei aquele pequeno truque do pé torcido e ele trouxe-me a casa. É

um rapaz muito amável, com uns modos muito delicados, e pensei que seria
fácil surpreendê-lo e forçá-lo a revelar qualquer coisa. Normalmente
consegue-se fazer isso com jovens. Mas, ou ele não sabe nada, ou está treinado
para ser discreto. Não só não é estúpido, como raciocina bem. Representei uma
pequena cena patética sobre a Samávia, porque percebi que ele se iria
emocionar com isso. E assim foi. Depois sondei-o sobre o Príncipe
Desaparecido; mas ele, ou não acredita nessa história, ou, se acredita, não o deu
a perceber.

Falava muito depressa sustendo quase a respiração. O homem falou

também rapidamente:

- Onde é que ele está? - perguntou.
- Mandei-o lá acima à sala de visitas procurar um livro. Vai levar algum

tempo. Mas ouve, ele é um rapaz ingénuo. Vê-me como um anjo bom. Nada o
abalará mais do que ouvir-me repentinamente dizer-lhe a verdade. Vai ser um
choque tão grande para ele, que talvez tu, depois, consigas obter alguma coisa
dele. Pode ser que perca a segurança em si próprio.

- Tens razão - disse o homem da barba. - E quando ele descobrir que não

se pode ir embora, talvez se alarme e, então, pode ser que consigamos tirar-lhe
alguma coisa que valha a pena.

- Se conseguíssemos descobrir o que é verdade, ou o que Loristan pensa

que é verdade, já teríamos uma pista para trabalhar - disse ela.

- Não dispomos de muito tempo - murmurou o homem. - Temos de ir para

Bosnia imediatamente. Antes da meia-noite temos de ir a caminho.

- Vamos para a outra sala. Ele já aí vem.
Quando Marco entrou na sala, o homem bem constituído e de barba

background image

escura e ponteaguda estava de pé ao lado da poltrona.

- Tenho muita pena, mas não consegui encontrar o livro - desculpou-se. -

Procurei em cima das mesas todas.

- Tenho de ir eu procurá-lo - disse a senhora. Levantou-se então da cadeira

e pôs-se de pé, sorrindo sempre.

Logo que ela se moveu, Marco viu que afinal ela não estava magoada.
- O seu pé! - exclamou ele. - Está melhor?
- Não estava nada aleijado - respondeu ela com a sua voz meiga e bonita e

sempre com um lindo sorriso. - Foi só para te fazer crer que estava.

Fazia parte do plano dela não o poupar nada com o choque que iria sofrer,

ao ver a sua transformação repentina. E Marco, realmente, ficou quase sem
respiração por alguns momentos.

- Fiz-te pensar que estava magoada porque queria que viesses comigo cá a

casa - acrescentou. - Queria descobrir umas certas coisas, que tenho a certeza
que sabes.

- Eram coisas sobre a Samávia - disse o homem.
- O teu pai tem conhecimento delas e tu também deves saber pelo menos

alguma coisa. Precisamos de saber o que tens para nos contar. Não te deixamos
ir embora, enquanto não responderes a certas perguntas, que te vou fazer.

Nessa altura Marco começou a perceber. Já tinha ouvido o seu pai falar em

espiões políticos. E sabia que o trabalho deles era descobrir segredos, e que se
disfarçavam e viviam entre as pessoas inocentes como se fossem simples
vizinhos.

Na cabeça de Marco estavam a passar-se coisas estranhas. Eles eram

espiões, mas isso não era tudo! A Criatura Bonita tivera razão, ao dizer que ele
teria um choque. O seu peito jovem enchia-se de arrogância. Porque em toda a
sua vida nunca enfrentara uma pura traição. Não conseguia compreender. Esta
criatura, com voz meiga, agradecida e olhos ternos, tinha-o “atraiçoado”.
Parecia-lhe impossível acreditar nisso e, contudo, o sorriso, que se via na sua
boca bem delineada, dizia-lhe que era verdade.

Depois de passados os primeiros momentos, sentiu crescer dentro de si

um sentimento muito elevado, como que um desdém estranho.

Sentiu o corpo como que a crescer.
- Vocês são muito espertos - disse lentamente. E em seguida, depois de uns

segundos de pausa, acrescentou: - Eu era demasiado jovem para saber que
existia gente tão esperta neste mundo!

A Criatura Bonita riu-se, mas não sem alguma dificuldade, e depois,

virando-se para o seu companheiro, disse:

- Que grande senhor! Quando se olha para ele, quase se acredita que o é!

background image

O homem da barba estava muito zangado. Tinha um olhar feroz, e a sua

tez escura tornara-se avermelhada. Fitava Marco com ódio, como se a sua
simples presença o enfurecesse.

- Dois dias antes de vocês deixarem Moscovo - disse -, foram ter com o teu

pai três homens, que pareciam camponeses, e falaram com ele, durante mais de
uma hora. Levavam com eles um rolo de pergaminho, não é verdade?

- Não sei - disse Marco.
- Antes de teres ido para Moscovo, estiveste em Budapeste. Foste de Viena

para lá. Viveste lá durante três meses e o teu pai viu muitas pessoas, algumas
que até iam lá a casa a meio da noite.

- Não sei nada - disse Marco.
O homem enrolou a barba ponteaguda e encolheu os ombros.
- Temos uma pequena e boa cave, muito escura, lá em baixo - disse ele. -

Vais para lá, e com certeza ficarás durante algum tempo se não decidires
responder às minhas perguntas. Deves pensar que nada te pode acontecer
dentro de uma casa numa das ruas de Londres, onde andam constantemente
polícias de um lado para o outro. Mas estás enganado. Se gritasses agora,
mesmo que por acaso alguém ouvisse, iria apenas pensar que eras um miúdo
que estava a levar o castigo que merecia. Podes gritar o que te apetecer, dentro
da pequena cave escura, que ninguém te vai ouvir. Nós só ficámos com esta
casa por três meses e vamos deixá-la esta noite sem dizer nada a ninguém. Se
decidirmos fechar-te na cave, vais lá ficar à espera até que alguém comece a
reparar que a casa parece vazia e vá por acaso dizer ao senhorio; e poucas
pessoas se dariam a esse trabalho. Vieste para aqui vindo de Moscovo?

- Não sei nada - disse Marco.
- És bom demais para a pequena cave escura - interrompeu a Criatura

Bonita. - Gosto de ti. Não queiras ir para lá!

- Não sei nada - respondeu Marco. Mas os seus olhos, que eram como os

de Loristan, lançaram-lhe um olhar como Loristan o faria. Ela apercebeu-se
disso, e sentiu-se desconfortável.

- Não acredito que nunca tenhas sido maltratado ou que nunca te tenham

batido - disse ela. - Deixa-me dizer-te que a cave é horrorosa. Não queiras ir
para lá!

E desta vez Marco não disse nada, mas continuou a olhar para ela como se

fosse um jovem nobre muito orgulhoso.

Sabia que todas as palavras que o homem de barba tinha proferido eram

verdadeiras. De nada serviria gritar. Se eles se fossem embora e o deixassem lá
ficar, não se podia saber quantos dias passariam, antes das pessoas da
vizinhança começarem a suspeitar de que o local tinha ficado desocupado.

background image

E, entretanto, nem o seu pai nem Lazarus ou o Rato fariam a mais pequena

ideia onde ele estaria. E ali ficaria, sozinho, sentado, às escuras na pequena
cave. Não sabia como é que resolveria a situação em que se encontrava. A única
coisa que sabia era que o silêncio era uma ordem.

- Ele não vai dizer nada - disse a Criatura Bonita. - E tenho pena por ele.
- Pode ser que diga depois de estar na pequena cave escura durante

algumas horas - disse o homem da barba em bico. - Vem comigo!

Pôs a mão forte no ombro de Marco e empurrou-o à sua frente.
Marco não fez qualquer esforço para se opor. Lembrou-se do que o seu pai

dissera sobre um jogo que afinal não era bem um jogo.

Agora não estava a ser jogo nenhum, mas de qualquer modo sentia-se

forte e não tinha medo.

Levaram-no através do pátio da entrada, em direcção às traseiras e depois

desceram os degraus já gastos que iam dar à cave. Em seguida fizeram-no
percorrer uma passagem estreita e mal iluminada que ia dar a uma porta que
estava um pouco entreaberta. O seu acompanhante empurrou-a e pôde ver-se
uma parte da cave, que era tão escura que Marco mal conseguiu ver as
prateleiras que estavam mais perto da porta. O seu captor atirou-o lá para
dentro e depois fechou a porta. O buraco era realmente tão escuro como ele
descrevera.

E Marco ali ficou de pé, no meio da escuridão, ouvindo o homem dar a

volta à chave.

- És um jovem tolo - disse-lhe. - O teu pai vai ficar muito preocupado,

quando não voltares para casa. Venho cá ver-te daqui a umas horas, se for
possível. Digo-te no entanto que tenho recebido notícias desconcertantes que
podem tornar necessário termos de partir à pressa. Posso até não ter tempo de
poder voltar cá abaixo outra vez.

Marco encostou-se à parede e manteve-se calado. Durante alguns minutos

ficou tudo muito silencioso e depois ouviu-se o som de passos a afastarem-se.
Pouco depois, o silêncio era total e Marco respirou fundo.

- Não vou sentir medo - disse Marco em voz alta.
- Não vou ter medo, porque vou sair daqui de qualquer maneira.
Não deixou de continuar a pensar sempre nisto, para não se lembrar do

pai, que devia estar à espera que ele voltasse. Sabia que isso só iria causar-lhe
preocupação e enfraquecer a sua coragem. Começou então a deslocar-se ao
longo da parede e conseguiu descobrir algumas coisas. Afinal a cave não era
assim tão pequena. Foi apalpando à sua volta, gradualmente, e depois
atravessou-a, mantendo sempre as mãos estendidas à sua frente e colocando os
pés com cuidado à medida que ia avançando. Por fim, sentou-se no chão de

background image

pedra, pondo-se a pensar de novo. E aquilo em que pensou, foi que haveria
uma saída, e que ele havia de a encontrar e que passado pouco tempo já a teria
descoberto e poderia caminhar de novo na rua.

Enquanto pensava assim, sentiu uma coisa surpreendente, algo que

parecia tocar-lhe. Isto fê-lo saltar e encostar-se à parede outra vez.

Tentou ver através da escuridão, e descobriu uma luz, da qual não podia

ter dúvidas. Era mesmo uma luz; na realidade, até eram duas luzes, duas
grandes bolas de um verde fosforescente. Eram dois olhos a olharem para ele.

Em seguida ouviu um outro som. Desta vez não era um guincho, mas algo

mais familiar e confortável que o fez rebentar a rir. Afinal era uma pequena,
doce e quente gatinha! Estava aninhada e enroscada numa das prateleiras mais
baixas, ronronando para uns gatinhos recém-nascidos.

A presença destas pobres criaturas era uma forma de companhia.

Sentou-se então perto da baixa prateleira e pôs-se a escutar o ronronar materno
e, de vez em quando, ia falando e levantando a mão até chegar a tocar naquele
pêlo quente. Aquela luz fosforescente dos seus olhos verdes era só por si uma
coisa reconfortante.

- Vamos sair daqui, os dois - disse ele. - Não vamos ficar aqui muito

tempo, gatinha.

O tempo ia passando, lentamente, mas ele já sabia que passaria devagar, e

tinha decidido não reparar nisso nem se preocupar. Não era um rapaz
impaciente, e, tal como o pai, conseguia estar de pé ou sentado ou mesmo
deitado. De vez em quando ouvia sons distantes de carroças e camionetas a
passar na rua.

Talvez fosse a calma ou a escuridão ou até o ronronar da gata que fizeram

com que os seus pensamentos começassem a passar cada vez mais lentamente
na sua mente. Por fim, pararam completamente e ele adormeceu.

background image




14
Um som num sonho


Marco dormiu calmamente durante várias horas. Não houve nada que o

acordasse durante todo aquele tempo. Mas, já no final do sono, foi perturbado
por um som definido. Sonhava que ouvia uma voz ao longe, e quando, no seu
sonho, tentava ouvir o que essa voz dizia, o som metálico de uma campainha a
tocar acordou-o repentinamente. Na altura em que ficou completamente
consciente, a campainha já tinha parado e pôde compreender imediatamente
que a voz do seu sonho tinha sido real e que ainda estava a falar. Era a voz da
Criatura Bonita, que ele ouvia através da porta e muito rapidamente como se
estivesse com muita pressa.

- Tens que a procurar - foi tudo o que conseguiu ouvir. - Não tenho mais

tempo! - E ao mesmo tempo que ouviu os seus passos afastarem-se, ainda
conseguiu distinguir algumas palavras que ecoavam à medida que ela se
afastava à pressa: - És bom demais para ficar na cave. Gosto de ti!

Ele correu para a porta e experimentou abri-la, mas continuava fechada.

Os passos desapareceram na escada, depois passaram para o pátio da entrada e,
por fim, ouviu-se a porta da frente a fechar-se com grande estrondo. As duas
pessoas tinham-se ido embora, como tinham ameaçado. A voz dela estava tão
excitada como apressada. Devia ter acontecido alguma coisa que os assustara e
tiveram de deixar a casa à pressa.

- Porque é que ela veio cá? Veio com certeza por causa de alguma coisa -

disse para consigo próprio.

- O que é que ela terá dito? Só consegui ouvir uma parte, porque estava a

dormir. A voz, no sonho, em ela a falar. O que ouvi foi: “Tens que procurá-la.
Eu não tenho tempo. És bom de mais para ficar na cave. Gosto de ti”.

Continuou a repetir estas palavras vezes sem conta, tentando lembrar-se

exactamente de como elas tinham sido ditas e também da voz que parecia ser
parte de um sonho, mas que afinal tinha sido uma realidade.

“Vais ter de a procurar”. De a procurar! Procurar o quê? Ou procurar

quem? Pôs-se a pensar: O que é que devia procurar?

Sentou-se no chão da cave e segurou na cabeça com as mãos, apertando os

olhos com tanta força que começou a ver pequenas e curiosas luzes.

E em poucos minutos conseguiu lembrar-se de algo, mas fazia de tal

background image

maneira parte do seu sono que nem tinha a certeza se não teria sonhado com
isso. O som da campainha a tocar. Parecia o som de um objecto de metal a cair
no chão. Qualquer coisa de metal podia ter feito aquele som. Ela tinha atirado
qualquer coisa de metal para dentro da cave, através da brecha dos tijolos,
mesmo ao pé da porta. Ela tinha-lhe atirado a única coisa que o podia libertar: a
chave da porta da cave.

Os pensamentos que lhe vieram à ideia durante alguns minutos eram tão

exaltantes, que puseram a sua cabeça a andar à roda. A chave estava dentro da
cave, e tinha de a encontrar no escuro.

- Vou-me ajoelhar e andar de gatas no chão - disse. - Rastejo de um lado

para o outro e apalpo o chão todo com as mãos até que a hei-de descobrir. Se
procurar em todo o lado, de certeza que a encontro.

Começou então a rastejar desde a porta até à parede do lado das

prateleiras, e depois voltou novamente para trás. Mas não encontrava a chave.
Se, ao menos, tivesse uma pequena luz! Mas não tinha nenhuma. Tão absorvido
estava na sua busca, que nem notou que isso o ocupou durante várias horas, e
que já ia agora a meio da noite. Por fim, achou que devia parar para descansar
um pouco, porque os seus joelhos estavam já a ficar magoados e a pele das
mãos ferida por andar a roçar nas lajes.

Quando por fim se pôs de pé, tinha o corpo dorido e estava muito

cansado. Teve de se esticar e exercitar os braços e as pernas.

- Estou tão cansado, que acho que vou adormecer outra vez. Pensamento

que sabes tudo, mostra-me como fazer outra tentativa!

E depois adormeceu novamente.
Dormiu o resto da noite toda. Quando acordou, já era dia, e nas ruas

ouviam-se as carroças do leite a chiarem enquanto os carteiros da manhã
batiam às portas com força.

A gata devia ter ouvido as carroças do leite; tinha fome e queria ir à

procura de comida.

Isto fez com que Marco se lembrasse da chave.
- Já te ajudo, quando encontrar a chave - disse.
- Está aqui na cave.
A gata tornou a miar e desta vez ainda mais ansiosamente. Os gatinhos

ouviram-na e começaram a mexer-se e a guinchar tanto que metiam dó.

Marco levou a mão em direcção dos gatinhos e tocou em algo que não

estava muito longe deles. Devia ter estado ali perto do seu cotovelo, durante
toda a noite, enquanto dormia.

Era a chave! Tinha caído na prateleira!

A seguir tentou encontrar o caminho para a porta.

background image

Procurou desajeitadamente até encontrar o buraco da fechadura, onde

finalmente meteu a chave. Deu a volta à chave, abriu a porta para trás, e logo a
gata correu à sua frente pelo corredor fora.

Marco atravessou a porta e dirigiu-se para a parte onde estava a cozinha

da cave. As portas estavam todas fechadas e eram muito sólidas. Subiu a correr
os degraus já gastos e encontrou a porta do cimo também fechada. Os seus
carcereiros tinham-se certificado bem de que, mesmo depois de ele se libertar
da cave, ainda levaria um certo tempo a conseguir finalmente chegar ao
exterior.

Nessa altura viu uma outra porta mais pequena ao lado. Era com certeza a

entrada para a cave onde se guardava o carvão, que ficava por debaixo do
passeio. Portanto, concluiu, o alçapão do carvão era a única coisa que o podia
ajudar! Por cima da porta havia uma pequena janela que servia para deixar
entrar alguma luz.

Ele não conseguia lá chegar e, mesmo se conseguisse, não seria possível

abri-la. Podia, isso sim, atirar bocados de carvão ao vidro e tentar parti-lo e
depois pedir socorro às pessoas que passavam. Agarrou então num grande
bocado de carvão e atirou-o com toda a força contra os vidros da janela,
partindo-os quase todos e deixando um grande buraco.

Ninguém o podia ver, mas se fizesse com que as pessoas abrandassem o

passo e ouvissem, então, nessa altura, já podia gritar que estava na cave da casa
com a janela partida.

- Socorro - gritou. - Socorro! Socorro!
Mas os carros continuavam a passar na rua e as pessoas que caminhavam

iam absorvidas com os seus próprios pensamentos. Mesmo que ouvissem um
barulho, não iam parar para investigar o que era.

- Socorro! Socorro! Estou aqui fechado - gritou Marco, com tanta força

quanto os seus pulmões lhe permitiam. - Socorro! Socorro!

Depois de gritar durante meia hora, pensou que se estava a esforçar para

nada.

Teve então outra ideia.
- Vou começar a cantar uma canção samaviana em alto e bom som. As

pessoas que passarem por perto, hão-de parar para ouvir a música e tentar
descobrir donde é que ela vem. E se algum dos meus passar nas proximidades,
vai parar imediatamente. E, de vez em quando, vou na mesma gritar por
socorro.

Recuou um passo e colocando as mãos nas ancas começou a cantar, virado

com a cara para cima, de modo a que a sua voz pudesse passar através da
vidraça partida. Tinha uma esplêndida voz, jovem e vibrante, embora o

background image

ignorasse. Nesse momento, o que queria era unicamente fazer-se ouvir. Lá fora,
na rua, iam poucas pessoas a passar. Um velhote irritadiço e meio inválido, que
ia a dar um passeio, quase que tropeçou por se ter assustado com o repentino
soar da canção.

Duas ou três pessoas olharam para cima, intrigadas, mas não tinham

tempo a perder. Alguns outros escutavam com prazer, quando passavam
próximo, mas depois continuavam o seu caminho.

Mas por fim, passou um jovem que era professor de música e ia dar uma

lição. Parou e hesitou olhando em redor. A canção nesta altura tomava uns tons
agudos muito fortes. O jovem não conseguia perceber donde vinha o som, e
começou a perscrutar à sua volta.

O facto dele ter parado, fez com que outras pessoas também parassem.
Quando já se tinha juntado uma pequena multidão, apareceu ainda uma

outra pessoa a dobrar a esquina da rua. Era um rapazito de muletas com ar
desvairado.

Marco ouviu o barulho das muletas e disse para si próprio:
- Será possível? Não pode ser! - E começou a cantar com quanta força

podia.

O Rato juntou-se ao grupo e começou, aos gritos, a perguntar às pessoas:
- Onde está ele? Onde está ele? Procurámo-lo desesperadamente durante

toda a noite. Marco! Marco, onde estás? Só podes ser tu, porque só tu é que
cantas essa canção!

Então, pareceu ouvir-se uma voz vinda debaixo do chão.
- Estou aqui fechado numa cave, Rato! - E viu-se um bocado de carvão ser

atirado através da janela partida junto ao chão. O Rato precipitou-se para a
porta gritando:

- Marco, estou aqui! Quem é que te fechou? Como é que se abre a porta?
Marco chegou-se mais para a porta, pensando: “É mesmo o Rato. Sendo

assim, não tardará nada que esteja na rua”.

- Chama um polícia - gritou ele através do buraco da fechadura. -

Fecharam-me aqui de propósito e levaram as chaves.

Então o grupo de pessoas começou a agitar-se e a perguntar como é que

tinha sido, e o que é que tinha acontecido. Não conseguiam perceber qual a
razão por que alguém fecharia um rapaz numa cave. A face do Rato mostrava
simultaneamente terror, espanto e alívio. Correu a chamar um polícia e, quando
encontrou um, numa rua próxima, persuadiu-o a ir de imediato abrir a porta
daquela casa vazia, libertando desta maneira o improvisado cantor.

O polícia ficou muito mais zangado do que excitado com a ideia.

Desconhecia o que Marco ou o Rato sabiam. Achava que um rapaz qualquer se

background image

fechara numa casa, e agora alguém tinha de ir ao senhorio pedir uma chave.
Não fazia tenção de forçar a entrada duma casa particular, como o Rato
esperava que ele fizesse.

- Ele entrou lá para dentro nalguma das suas travessuras, e agora vai ter

de esperar para sair, sem que seja preciso rebentar fechaduras - resmungou o
polícia, ao mesmo tempo que abanava a porta. - Como é que entraste para aí? -
gritou.

Não foi nada fácil para Marco explicar através de um buraco da fechadura,

que tinha vindo ajudar uma senhora que sofrera um acidente. O polícia pensou
que se tratava apenas duma mentira de rapaz. Quanto ao resto da história,
Marco sabia que não podia ser contada sem dizer coisas, que não deveriam ser
explicadas a mais ninguém senão ao pai. Logo, achou que devia fazer acreditar
que ficara fechado devido a um estranho acidente. Devia dar a entender que, na
pressa de saírem, as pessoas não se tinham lembrado que ele ficara lá dentro.

Quando o jovem empregado da agência de aluguer da casa veio com as

chaves, ficou muito perturbado e confuso logo que entrou.

- Eles desapareceram - disse. - Isto acontece por vezes, mas aqui há

qualquer coisa de estranho. Porque é que fecharam estas portas na cave e a
outra nas escadas? O que é que lhe disseram? - perguntou a Marco, olhando
para ele desconfiado.

- Disseram que tinham sido obrigados a sair de repente - respondeu

Marco.

- E o que é que estava a fazer aqui na cave?
- Foi o homem que me trouxe.
- E depois deixou-o ali fechado e trancado? Devia realmente estar com

muita pressa.

- A senhora disse que não tinham nem um minuto.

- O tornozelo dela deve ter ficado bom muito depressa - disse o jovem

empregado.

- Eu não sabia nada acerca deles – respondeu Marco. - Nunca os tinha

visto.

O Rato não esperara que as chaves chegassem.
Lançara-se por aquelas ruas fora tão depressa quanto podia. As pessoas,

ao verem-no passar por elas tão depressa, viravam-se para trás e ficavam
espantadas por ele ir tão pálido.

Deixou contudo ficar algum fôlego para conseguir falar quando chegou a

casa, depois de ter batido à porta com a muleta para não perder tempo.

Vieram abrir Loristan e Lazarus.
O Rato encostou-se à porta, ofegante.

background image

- Encontraram-no! E está bem! - disse arfando.
- Foi alguém que o fechou numa casa e o deixou lá ficar. Foram agora

buscar as chaves. Vou voltar para lá, para esta morada: Brandon Terrace n.º 10.

Loristan e Lazarus olharam um para o outro, e nesse momento ambos

estavam tão pálidos como o Rato.

- Manda-o entrar - disse Loristan para Lazarus, indicando o Rato. - Ele tem

de ficar a descansar. Nós é que vamos.

O Rato sabia que isto era uma ordem. Não gostou muito, mas teve de

obedecer.

- Isto é mau sinal, meu amo - disse Lazarus, quando os dois saíram.
- É mesmo muito mau sinal - respondeu Loristan.
- Deus nos defenda! - resmungou Lazarus.
- Amen! - disse Loristan.
Quando chegaram, a pequena multidão que se formara ao princípio, tinha

engrossado consideravelmente. Não tinha sido nada fácil para Marco sair dali,
por causa das perguntas que o polícia e o empregado da agência lhe faziam.

O aparecimento de Loristan produziu o efeito do costume. O empregado

da agência tirou o chapéu, e o polícia pôs-se de pé muito direito fazendo
continência. Loristan, então, pôs a mão no ombro do Marco e segurou-o ali
naquela posição, enquanto falou.

- O meu filho não conhecia essas pessoas - disse.
- Isso posso eu garantir. Nunca tinha visto antes nenhuma delas. Ficou

fechado neste sítio durante quase vinte e quatro horas sem comer. Agora tenho
de o levar para casa. Aqui tem a minha morada - disse, entregando um cartão
ao jovem empregado.

Em seguida foram para casa juntos e durante todo o caminho a mão de

Loristan manteve-se firme no ombro do rapaz, como se não conseguisse
suportar que ele o deixasse. Mas nesse intervalo de tempo falaram muito pouco.

- Pai - disse Marco, um pouco rouco, enquanto se iam afastando da casa

situada na encosta -, não consigo falar aqui na rua. Mas há uma razão por que
estou muito contente: é por estar consigo outra vez. Parecia-me que as coisas
iam correr mesmo mal.

- Meu querido - disse Loristan na sua própria língua, o Samaviano -, até

comeres e descansares um pouco, não deves falar.

Mais tarde, quando já se sentia recomposto e lhe foi permitido que

contasse o que acontecera, Márco entregou a Loristan o cartão que a senhora lhe
tinha dado.

- Ela disse que o pai se ia lembrar do nome. Loristan olhou para a letra do

cartão com um sorriso meio irónico.

background image

- Nunca ouvi falar nele - respondeu. - Ela não me ia mandar um nome que

eu já conhecesse. Com certeza que nunca vi nenhum deles. Mas sei o que fazem.
São espiões de Maranovitch e suspeitam que sei alguma coisa acerca do
Príncipe Desaparecido. Acharam que te podiam meter medo e que podias dizer
coisas que lhes serviriam de pista. Homens e mulheres da sua laia, usam todos
os meios para alcançar os fins.

O olhar que viu nos olhos do pai, enquanto falava, e a pressão da sua mão

ao tocá-lo, fizeram com que o seu coração batesse forte. Tinha passado a gostar
mais do pai e a confiar ainda mais nele. E quando naquela noite conversaram os
dois, estavam mais ligados que nunca.

background image




15
Cidades e caras


A partir desse dia, o Rato passou a ser julgado com mais consideração.

Passou a gozar da intimidade que anteriormente só envolvia os outros três.

Loristan falava com ele como falava com Marco, e fazia-o sentir-se como

se fizesse parte da família.

- Senhor - disse ele uma vez em que estavam sozinhos, e a sua voz era

muito baixa -, acha que algum dia pode confiar em mim, tanto como em Marco?
Poderá isso acontecer alguma vez?

- Esse dia já chegou - disse Loristan, e a sua voz era quase tão baixa como a

do Rato, embora mais calma e mais forte, denunciando a sua convicção. -
Chegou o momento em que posso confiar tanto em ti como no Marco. Conto
contigo para seres seu companheiro, para o ajudares e estares com ele, sempre
que possível.

- Que bom! - disse o rapaz muito entusiasmado.
- Mande-me com ele, como seu criado numa missão. As muletas não vão

atrapalhar nada. Já viu como consigo movimentar-me bem com elas, treinei-me
muito.

- Eu sei, eu sei, companheiro. O Marco já me contou - e continuou

sorrindo, misteriosamente. – Irás com ele, como seu ajudante de campo. Isso
fará parte do jogo.

Ele tinha encorajado sempre o jogo, e durante as duas últimas semanas

tinha mesmo disposto de algum tempo para os ajudar a planear a missão
secreta. Com todas estas conversas e planos, o Rato ficou a conhecer o país,
quase tão bem como Marco. Nesses planos, um dos objectivos de Marco era
fixar caras e fazer o esboço das mesmas.

Ainda não tinha passado uma semana quando
Marco trouxe para o quarto e deu ao Rato um saco contendo um certo

número de tiras de papel, cada uma delas com qualquer coisa escrita.

- É uma outra parte do jogo - disse com ar grave.
- Vamos sentar-nos à mesa e estudar isto.
Os rapazes estiveram ocupados com a sua tarefa durante todo o dia,

tentando concentrar todas as suas energias naquilo. Escreveram, tornaram a
escrever e depois, repetiram um ao outro o que tinham decorado, como se

background image

estivessem a estudar uma lição.

- Vai ser o que os mensageiros do Partido Secreto terão de fazer, quando

forem enviados para dar o “Sinal da Revolta” - disse o Rato. - Percebi isso logo
no primeiro dia em que inventei o partido, não foi?

- Sim - respondeu Marco.
Depois de três dias de concentração, já sabiam de cor tudo o que lhes tinha

sido dado para aprenderem. E naquela noite Loristan fez-lhes uma espécie de
exame.

- Conseguem escrever tudo o que aprenderam? - perguntou ele, depois de

cada um ter conseguido sair-se bem de toda a espécie de perguntas.

Naquela noite ele estava muito pálido e tinha uma grande tristeza no

olhar. Nos seus olhos via-se uma enorme saudade quando olhava para Marco.
A sua face exprimia um desejo e, ao mesmo tempo, uma espécie de pavor.

- O jogo. - começou ele por dizer, ficando depois silencioso por alguns

momentos, enquanto Marco sentiu o seu braço apertar com força. Tanto Marco
como o Rato sentiram o coração bater forte; e por causa disso e também porque
a pausa lhe pareceu demasiado longa, Marco decidiu falar.

- O jogo.... sim, pai? - disse.
- O jogo é acerca de lhes dar trabalho para fazer, a vocês dois - respondeu

Loristan. - Dentro de dois dias, vão para Paris. Vão transmitir as instruções que
aprenderam. Não têm mais nada a fazer senão tentarem aproximar-se o mais
possível de certas pessoas, de modo a conseguirem transmitir-lhes certas
palavras.

- Tal como se fossem apenas dois jovens viajantes de quem ninguém

pudesse suspeitar! - acrescentou Lazarus, numa voz extraordinariamente rouca
e fraca. - O jovem amo e nesta altura a sua voz ficou tão rouca que teve de tossir
novamente. - O jovem amo deve comportar-se com menos finura. Até seria bom
que arrastasse os pés um pouco e andasse relaxadamente como se fosse uma
pessoa vulgar.

- Pois - disse o Rato apressadamente. - Ele tem de fazer isso. Eu posso

ensiná-lo. Ele costuma erguer a cabeça e manter os ombros muito direitos como
um senhor, e agora tem de parecer um rapaz da rua.

- Vou parecer um deles - disse Marco com determinação.
- Confio em ti, para o lembrares disso - disse Loristan gravemente para o

Rato. - Vai ser essa a tua responsabilidade.

Quando, nessa noite, Marco finalmente deitou a cabeça na sua almofada,

achou que lhe tinha saído um peso do coração, que fora a incerteza e o estar à
espera.

Quando o comboio de ligação com o barco, que fazia a travessia de Dover

background image

para Calais, apitou na barulhenta estação de Charing Cross, transportava numa
carruagem de terceira classe dois pobres rapazes mal vestidos. Um deles podia
até ser um bonito rapaz, se não caminhasse tão desajeitadamente e não tivesse
aquele ar tão pouco cuidado de rapaz da rua. O outro, era um aleijado, que se
movimentava vagarosamente com as suas muletas e, aparentemente, com certa
dificuldade. Não havia nada neles que atraísse as atenções.

Iam sentados num canto da carruagem e nem falavam muito, nem

pareciam particularmente interessados na viagem ou um no outro. E quando
entraram a bordo do navio, em breve se misturaram e se perderam de vista
entre os outros passageiros.

Ao fim da tarde chegaram a Paris e Marco encaminhou-se para um

pequeno café, numa rua traseira, onde arranjaram comida barata. E, nessa
mesma rua, conseguiram encontrar por cima de uma padaria, um pequeno
quarto com uma cama, que podiam perfeitamente partilhar por uma noite.

O Rato estava demasiado excitado para se querer deitar cedo. Assim,

pediu a Marco que o conduzisse por todas aquelas ruas tão brilhantemente
iluminadas e cheias de vida.

- É tudo mais brilhante e mais claro do que em Londres - disse para

Marco. - As pessoas até parecem estar a divertir-se mais do que acontece em
Londres.

Antes de voltarem para o quarto, seguiram por um caminho que ia dar a

uma casa enorme que ficava ao fundo de um pátio. E nos bonitos portões de
ferro trabalhado que a vedavam, podia ver-se um brasão dourado. Os portões
estavam fechados e a casa não estava muito bem iluminada.

Passaram por ela e deram a volta, sem falar, mas quando se aproximaram

pela segunda vez da porta da entrada, o Rato disse em voz baixa:

- Ela mede um metro e cinquenta e sete, tem o cabelo preto, um nariz

curvado, e as sobrancelhas são pretas e quase se juntam uma à outra, tem uma
pele pálida, cor de azeitona, e mantém a cabeça sempre muito direita.

- É essa mesmo - respondeu Marco.
Ficaram uma semana em Paris e todos os dias passavam pela casa grande.
Então, um dia, quando eles se encontravam a uma pequena distância dos

portões de ferro, passou por eles uma carruagem que foi parar diante da porta
da entrada, que estava aberta de par em par e ladeada por dois criados de libré.

- Ela vai sair - disse o Rato.
Puderam vê-la perfeitamente quando saiu, porque as luzes da entrada

eram muito fortes.

O Rato deu um grande suspiro.
- É ela - disse ele, acenando afirmativamente.

background image

- Pois é - disse Marco.
Quando já estavam em segurança, fechados no seu quarto por cima da

padaria, começaram a tentar descobrir as possibilidades de passar por ela, de tal
maneira que pudesse parecer acidental.

Aconteceu que, na tarde seguinte, a senhora saiu numa altura em que eles

não estavam a vigiar. Iam ainda a caminho, traçando o seu plano, quando de
repente o Rato tocou subitamente no braço de Marco.

- A carruagem está parada à porta daquela loja - disse ele.
Marco olhou e reconheceu-a logo. Esta era uma oportunidade melhor do

que esperavam, e quando se aproximaram da carruagem, viram que ainda
tinham outro ponto a seu favor. Dentro, estavam três cãezinhos de raça
Pekinois-Spaniard, que pareciam gémeos. Tinham os focinhos encostados à
janela, e empurravam-se uns aos outros. Eram tão pequeninos e tão bonitos que
as pessoas paravam para os ver. Quem iria reparar, se eles parassem também?

Através da montra da loja, Marco conseguiu ver a senhora.
- Ela vem aí - avisou Marco. E começou a rir, vendo que os cães, sentindo a

aproximação da dona, começaram aos saltos e a ladrar com alegria.

A dona vinha também a sorrir e sorriu para Marco quando se aproximou.
- Posso vê-los, minha senhora? - perguntou ele em francês; e quando ela

concordou com um gesto amistoso, Marco chegou-se ao pé dela e, em voz
baixa, mas muito distintamente, disse em russo:

- O caminho está aberto!
O Rato, que estava a observar, não viu qualquer modificação na cara dela.

Era uma coisa que já tinha notado várias vezes, nas pessoas a quem davam o
sinal. Todas tinham um domínio completo sobre si próprias, e nunca se traíam
com uma mudança de expressão, ao ouvirem aquelas palavras.

A senhora continuou a sorrir e falou apenas para os cães, deixando que

Marco e o Rato os observassem à vontade através da janela da carruagem,
enquanto o cocheiro abria a porta para ela entrar.

- São muito bonitos - disse Marco, tirando o seu boné.
Quando o cocheiro se afastou, ele murmurou mais uma vez aquelas

palavras em russo e depois retirou-se sem olhar para trás.

- Um já está! - disse ele para o Rato, nessa noite, antes de adormecerem.

background image




16
A viagem continua


A viagem seguinte foi para Munique.
Uma das coisas que sabiam sobre a próxima personagem, era a sua paixão

pela música. Passava muito tempo em Munique, porque gostava do ambiente
musical e da movimentação entusiástica dos frequentadores de ópera.

- A banda militar toca ao meio-dia. Quando se trata de um concerto muito

bom, às vezes as pessoas param as suas carruagens para poderem ouvir. Nós
vamos até lá - disse Marco.

- É uma hipótese - disse o Rato. - Não nos podemos dar ao luxo de perder

qualquer hipótese.

O dia estava magnífico e as pessoas passeavam na rua com ar

descontraído, gozando o sol. O Rato atravessava pelo meio da multidão,
apoiado nas suas muletas, cheio de interesse e entusiasmo. Tinha começado a
crescer, e isso notava-se na sua cara e na sua expressão, que agora mostrava um
ar mais maduro. Sempre tinha conseguido o seu “lugar” no mundo e um
trabalho para fazer, o que justificava plenamente o seu ar mais compenetrado.

Ninguém poderia suspeitar que eles eram portadores de um segredo

estranho e vital quando os viam caminhar juntos.

Pareciam dois rapazes vulgares a observarem as montras e a falarem do

que viam. De tal maneira o Rato estava encantado com os novos sítios e as suas
maravilhas, que, por vezes, até esquecia que tinha uma missão para cumprir.

Como o dia estava óptimo e também porque o programa da banda era

excepcionalmente bom, havia muito mais gente na praça do que era costume.
Estavam parados muitos veículos, entre os quais alguns particulares.

Um destes chegara com certeza muito cedo, porque se encontrava numa

posição privilegiada. Era uma grande carruagem aberta, com luxuosos estofos
verdes.

Dentro, estava a pessoa que procuravam. Não havia qualquer

possibilidade de engano. Cada um deles sabia de memória todos os detalhes
daquela face e o desenho daquele bigode grisalho.

Decidiram então que só Marco iria até à carruagem. Um rapaz sozinho,

nas imediações, despertaria menos a atenção do que dois. O Rato regressaria ao
quarto.

background image

- Pois é - disse o Rato. - As muletas chamariam a atenção. Vou-me manter

afastado, a não ser que precises de mim. Ainda não chegou a altura de eu
actuar. Mesmo que nunca chegue, acabo por cumprir a minha missão, que é ser
teu ajudante de campo.

Marco começou a passear descontraidamente por entre as pessoas,

tentando parecer o mais natural possível.

Subitamente ouviu uma grande gargalhada e logo a seguir sentiu uma

mão pousar-lhe no ombro.

- Como apareceste aqui? - perguntou alguém com uma voz suave.
A pessoa que se tinha dirigido a ele e que lhe sorria com os seus ternos

olhos grandes vinha envolta num bonito véu violeta.

Era a senhora que o tinha atraído ao n.º 10 de Brandon Terrace.
Naquele preciso momento viu o Chanceler aproximar-se lentamente.
A mão delicada estava de novo pousada no seu ombro, mas sentiu que

desta vez o agarrava com força.

- Seu maroto! - disse a voz doce. - Vou levar-te para casa comigo. Se te

opuseres e começares a debater-te, digo a estas pessoas que és um filho mau,
que está aqui sem ter autorização.

Sentiu então que as palmas das mãos se humedeciam. Se ela tivesse esse

atrevimento, o que é que ele podia dizer às pessoas a quem ela iria mentir?
Como é que podia apresentar provas ou explicar quem era, e que história
poderia contar? Os seus protestos e esforços para se libertar, só divertiriam os
mirones, que iriam achar que a sua fúria não passava de raiva impotente de um
jovem insubordinado.

Veio-lhe à memória a recordação das horas que passara na cave,

completamente às escuras, encostado à parede fria. Recordou-se do momento
em que o homem o fechara lá dentro tão vivamente como se estivesse a vivê-lo
de novo. Sentiu-se um pouco apreensivo: se uma coisa do género lhe
acontecesse agora, só um milagre o podia salvar, visto que estava longe da sua
terra e do seu pai.

Manteve-se silencioso e a mulher que o segurava apenas notava os seus

olhos a chisparem.

Hesitou, invocando a sua força interior, para lhe dar uma ideia.
O Chanceler passava por perto. Talvez se tentasse...?
- Podes esbracejar e gritar - disse a mulher. As pessoas até se vão rir.
Marco voltou-se para a sua captora, como se fosse dizer qualquer coisa.

Mas não disse nada. Nesse momento percebeu que a sua força interior tinha
respondido ao apelo. Viu o Chanceler aproximar-se também do sítio onde
estavam. Pensou então que podia simultaneamente dar o sinal e salvar-se, visto

background image

que o Chanceler perceberia imediatamente a situação.

Nesse momento, talvez por distracção, ela afrouxou um pouco a pressão

da mão no seu ombro, o que ele aproveitou para se libertar.

Pouco depois, o velho aristocrata encontrou-se, espantado, escutando o

discurso que, de um só fôlego, Marco lhe dirigia em alemão e de tal maneira
depressa que nem sequer parava para respirar.

- Senhor - dizia ele -, a mulher de violeta ao pé daquela escada é uma

espia. Aprisionou-me uma vez e prepara-se para fazer a mesma coisa agora.
Senhor, posso pedir-lhe para me proteger?

Fez este discurso em voz baixa. Mais ninguém conseguiria ouvir as suas

palavras.

- O quê? - perguntou o Chanceler, com ar incrédulo.
Então Marco aproximou-se um pouco mais e pronunciou em voz baixa,

mas clara, as quatro palavras:

- O caminho está aberto.
Percebeu imediatamente que o velho, que agora olhava para a mulher,

compreendera tudo.

- E esta! - exclamou o Chanceler, esboçando um movimento em direcção à

mulher, enquanto afagava o seu grande bigode.

Marco assistiu então a uma coisa curiosa. A Criatura Bonita vira esse

movimento e o bigode grisalho, e nesse mesmo instante o sorriso desapareceu
da sua face, e ficou tão branca que pareceu ir desmaiar. Não estava nada bonita
agora. Começou a escapar-se por entre a multidão. Como era uma criatura
delgada e elegante conseguia mover-se sinuosamente por entre as pessoas,
dirigindo-se com rapidez para a saída. Foi um desaparecimento em beleza. Em
dois minutos tinha-se evaporado.

Marco estava um pouco atrapalhado.
- Não lhe quero tomar mais tempo, senhor. Muito obrigado!
O Rato tinha adormecido a ler o jornal e estava agora com a cabeça

apoiada nos braços cruzados em cima da mesa. Mas acordou quando Marco
entrou no quarto e sentou-se logo, piscando os olhos.

- Viste-o? Chegaste ao pé dele? - perguntou.
- Sim - respondeu Marco. - Cheguei suficientemente perto.
O Rato endireitou-se na cadeira.
- Não deve ter sido fácil. Com certeza que aconteceu qualquer coisa.
- Quase que me iam apanhando - disse Marco. E tirando o esboço do

Chanceler da manga, começou a queimá-lo com um fósforo, dizendo: - Mas
cheguei suficientemente perto, para fazer o que devia. E, assim, já foram dois.

Na semana seguinte, viajando para Viena, deram o sinal a três pessoas

background image

diferentes, em lugares que ficavam no caminho.

Numa vila, ao pé da fronteira com a Bavária, encontraram um homem

velho, muito alto, sentado num banco debaixo de uma árvore, em frente à sua
hospedaria; quando as quatro palavras foram pronunciadas, levantou-se logo e
descobriu a cabeça. De outra vez, ao darem também o sinal a um homem que se
encontrava sozinho num local isolado, Marco reparou que ele se comportou
como todos os outros e disse: “Deus seja louvado”, muito devotadamente como
se se tratasse de alguma cerimónia religiosa. Uns quilómetros mais adiante,
numa pequena cidade, tiveram de procurar durante algumas horas, até
encontrar um jovem sapateiro com o cabelo arruivado e uma cicatriz em forma
de ferradura na testa.

Estranhos foram os lugares por onde passaram e muito diferentes as

pessoas a quem levavam a mensagem. Mas a mais original de todas foi uma
velhota, que vivia num lugar tão longínquo, que a estrada tinha de contornar a
montanha durante quilómetros para se chegar lá.

A cara dela tinha milhares de rugas. Todavia, o perfil era ainda

esplêndido, e devia ter sido uma beleza no seu tempo. Os olhos eram como os
de uma águia, mas não uma águia velha. E o seu pescoço comprido sustentava
uma cabeça muito direita.

Quando chegaram a Viena, estava a decorrer nma parada. O Imperador

deslocara-se à região para assistir, na catedral, à celebração duma vitória
ocorrida há séculos. Os passeios estavam apinhados de gente aplaudindo o
esplendor marcial, que se podia observar tanto na parada como no desfile dos
cavalos e ainda no brilho das espadas.

O Rato estava muito espantado com o palácio imperial. Predominavam os

espaços enormes, os pátios e os jardins.

A multidão avançou numa ânsia de ver a parte mais importante do

cortejo: a carruagem com o Imperador. E o Rato chegou-se também para a
frente, com os outros, para a ver passar.

Uma personagem de cabelo branco, com um esplêndido uniforme

decorado com ordens cravejadas de jóias e com um penacho de plumas verdes
abanando no seu capacete militar, saudava a multidão, que gritava de ambos os
lados da avenida. Ao seu lado ia sentado um homem, também de uniforme
decorado e capacete emplumado, mas um bocado mais novo.

O braço de Marco tocou no do Rato, quase ao mesmo tempo que o deste

tocava o seu. Debaixo daquela plumagem, tinham reconhecido o Príncipe, o seu
contacto.

Na manhã seguinte, o tempo estava lindo e o sol brilhava através da janela

do quarto, enquanto tomavam o pequeno-almoço. A seguir, debruçaram-se no

background image

parapeito da janela e conversaram acerca do jardim do Príncipe, que estava
aberto ao público, e por onde tinham passeado no dia anterior. O palácio
erguia-se no meio deste jardim.

- Quando lá estivemos reparei em duas coisas - disse Marco. - Há uma

varanda de pedra que sobressai do lado do palácio, que dá para o jardim da
fonte. Perto dela existe um grande arbusto, e vi que tinha um espaço vazio no
meio. Se um de nós quisesse ficar toda a noite nos jardins, para observar as
janelas quando elas estivessem acesas e ver se alguém vinha para a varanda,
podia esconder-se nesse buraco e ficar lá até de manhã.

- Caberemos os dois nesse buraco? - perguntou o Rato.
- Não, tenho de ir sozinho - disse Marco.
Naquele fim de tarde, passeavam pelos jardins dois rapazes bem

comportados, mas pobremente vestidos. Estava um dia soalheiro e
excepcionalmente quente, havendo por isso mais visitantes do que
habitualmente, e essa talvez tenha sido a razão pela qual o porteiro, que estava
à entrada, não reparou que entraram dois rapazes, mas que só um saiu.

Aconteceu que, quando o Rato passou, o porteiro estava mais interessado

no aspecto do céu que se mostrava muito ameaçador. Durante todo o dia
tinham pairado nuvens no céu e, para o fim, tinham mesmo tapado o sol. Nesse
momento elas tinham-se aglomerado e formado tenebrosas montanhas que
escondiam o Sol.

À noite, as nuvens começaram a afastar-se e daí a pouco tempo apareceu

uma brilhante lua cheia, iluminando tudo. Algumas partes do jardim pareciam
de prata, e as sombras das árvores assemelhavam-se a veludo preto. Um raio
prateado penetrou no interior do arbusto e veio bater na cara de Marco, que se
encontrava há muito escondido no buraco.

Talvez tivesse sido esta súbita mudança de tempo que atraísse os que se

encontravam no interior da sala da varanda. Uma figura de homem apareceu a
uma das janelas altas. Marco pôde ver então que era o Príncipe. Este abriu as
janelas e saiu para a varanda.

- Já acabou - disse calmamente, ficando a olhar a grande lua branca.
Estava muito quieto e, por momentos, pareceu querer alhear-se de tudo,

até mesmo de si próprio. Mas algo o fez regressar à terra. Uma voz baixa, mas
forte e nítida, chegou até ele, vinda do caminho sob a varanda. “O caminho está
aberto, o caminho está aberto”, dizia a tal voz e tais palavras pareceram atraí-lo.

Quando, na manhã seguinte, os jardins foram abertos e as pessoas

começaram a entrar e a sair, Marco retirou-se. Apressou o passo, depois de ter
atravessado a rua, porque tinha pressa de falar com o Rato.

Quando chegou ao quarto, o sol batia na janela do sótão, e ambos se

background image

recostaram no peitoril, enquanto Marco contava a sua história. Levou algum
tempo a contar e, quando acabou, tirou um envelope do bolso e mostrou-o ao
Rato. Tinha dentro algum dinheiro.

- Deu-mo, depois de eu lhe dar o sinal - explicou Marco. - E disse-me: “Já

não falta muito. Depois da Samávia, volta para Londres o mais depressa que
puderes “.

- O que seria que ele queria dizer? - perguntou o Rato lentamente.
- Não sei. Penso que há qualquer motivo, que não é suposto eu saber -

disse Marco.

-Vamos fazer como ele nos disse, o mais rapidamente possível.
E começaram a ler os jornais, como faziam todos os dias. Mas a única coisa

que conseguiram deduzir de cada um deles, foi que os partidos em oposição na
Samávia pareciam ter chegado à exaustão. Era impossível prever qual dos
partidos tinha ainda a força suficiente para conseguir a vitória. Nunca nenhum
país tinha atravessado tal crise.

- Está na altura! - disse o Rato, olhando furiosamente para o mapa. - Se o

Partido Secreto de repente se destaca, pode tomar Melzarr quase sem esforço.
Pode mesmo percorrer o país todo e aniquilar os dois exércitos, que estão
enfraquecidos, famintos, quase mortos e que desejam o fim da luta. Só Iarovitch
e Maranovitch continuam a lutar, porque qualquer deles apenas quer o poder,
para impor taxas às pessoas e escravizá-las. Se o Partido Secreto não aparece, o
povo entrará pelos palácios dentro e matará todos os Maranovitch e Iarovitch
que encontrarem. O que será muito bem feito

- Vamos passar o resto do dia a estudar o mapa das estradas novamente -

disse Marco. - Hoje à noite mesmo, devemos estar já a caminho da Samávia.

background image




17
Para lá da fronteira


Dois rapazes cansados a atravessarem a fronteira entre a Jiardasia e a

Samávia, uma semana mais tarde, com passos lentos e entorpecidos, não era
coisa que chamasse à atenção. A guerra, a fome e a angústia tinham tornado o
país destroçado e, sobretudo, indiferente.

Os dois rapazes, um deles de muletas, tinham sem dúvida andado muito a

pé. E com as roupas cheias de pó e sujas da viagem, pararam logo, ao atravessar
a fronteira, na primeira barraca que encontraram, para beberem água. O que
andava sem muletas tinha algum pão duro na saca, que pendurava ao ombro, e
então sentaram-se à beira da estrada a comê-lo, como se estivessem esfomeados.

A viagem era dura e cheia de privações. Tinham de a fazer toda a pé, e não

conseguiam encontrar muita comida. Mas cada um deles sabia como viver com
provisões escassas. Bebiam água e tomavam banho nas nascentes. Musgo e
fetos prestavam-se a camas fofas e bem cheirosas, e as árvores serviam-lhes de
tecto. Às vezes passavam muito tempo deitados e aproveitavam para conversar
enquanto descansavam. E chegou finalmente o dia em que souberam que se
estava a aproximar o fim da viagem.

- Agora está quase a acabar - disse Marco, pouco depois de se terem

embrenhado na floresta, nas primeiras horas de uma fresca manhã. - Ele disse:
“Depois da Samávia, volta para Londres o mais depressa que puderes”. Disse
isto duas vezes, como se alguma coisa estivesse para acontecer.

- Talvez aquilo que ele queria dizer, aconteça mais depressa do que

pensamos - respondeu o Rato.

De repente sentou-se, apoiou-se no ombro e inclinou-se para Marco.
- Estamos na Samávia! - gritou. - Nós os dois estamos na Samávia!

Estamos quase no fim!

Marco apoiou-se também no cotovelo. Estava muito magro em resultado

da viagem dura e da fraca alimentação. A magreza tinha-lhe tornado os olhos
enormes e escuros como buracos. Mas brilhavam e eram lindos.

- Sim - disse ele, respirando apressadamente. E embora não saibamos qual

será o fim, obedecemos às ordens. O Príncipe deu a penúltima. Agora só falta
uma, a do velho padre.

- Tenho desejado conhecê-lo mais do que a qualquer outro - disse o Rato.

background image

- Também eu - respondeu Marco. - A sua igreja está construída na encosta

desta montanha. O que é que ele nos irá dizer?

Ambos tinham a mesma razão para o quererem ver. Quando era jovem,

tinha prestado serviço religioso no mosteiro que ficava para lá da fronteira:
aquele que, até ser destruído numa revolta, guardava como um tesouro a
história de uma criança de ascendência real, que fora levada por um pastor para
ser escondida pela Confraria. O jovem padre, que nesse tempo lá prestava
serviço, deve ter ouvido lendas maravilhosas. Mas o mosteiro ardeu e o jovem,
anos mais tarde, tinha atravessado a fronteira, tornando-se padre de alguns
montanheses, numa pequena igreja que se encontrava implantada na encosta da
montanha.

- Ele pode decidir não nos dizer nada - disse Marco. - Quando lhe

tivermos dado o sinal, pode ir-se embora e não dizer nada, como os outros
fizeram. Pode não querer nada connosco ou pode ter ordens para manter o
silêncio.

Subir a encosta rochosa, até à pequena igreja, não parecia nem difícil nem

demorado. Podiam dormir ou descansar todo o dia e iniciar a subida só ao
crepúsculo.

Conseguiram ter um sono longo e profundo que nada perturbou.
Foi um pássaro que ao fim do dia se pôs a chilrear e os acordou.
- As estrelas já estão a aparecer. Podemos começar a subir - disse Marco.
Levantaram-se e olharam um para o outro.
- Este é o último! - disse o Rato. - Amanhã já iremos a caminho de Londres,

para a Praça Philibert. E depois de termos estado em todos estes lugares, como
nos parecerá ela?

- Será como acordar de um sonho - disse Marco.
- Não é um sítio nada bonito, a Praça Philibert. Mas ele vai lá estar. - E foi

como se uma luz se acendesse sobre o seu rosto e atenuasse o seu ar sombrio.

Também a face do Rato se iluminou do mesmo modo.
- Obedecemos às ordens - disse ele. - Não nos esquecemos de ninguém e

conseguimos que ninguém desse por nós. Passámos pelos países, como se
fossemos grãos de pó.

O rosto de Marco ainda brilhava.
- Deus seja louvado! - disse ele. - Vamos então subir.
Foram abrindo caminho através dos fetos e deambularam por ali, pelo

meio das árvores, até que encontraram o estreito caminho. A colina estava
coberta de densa vegetação e o caminho era por vezes escuro e íngreme; mas
eles já sabiam isso e calculavam também que, ao prosseguirem, iriam dar a um
local onde quase não havia árvores e onde encontrariam a pequena igreja sobre

background image

um penhasco, esperando por eles.

Havia já muitas estrelas no céu quando, por fim, numa curva do caminho,

a igreja surgiu por cima deles.

- Vem - disse Marco. E continuaram a andar. Como as estrelas brilhavam e

o ar estava tão límpido, o padre pôde ouvir os passos deles no caminho e vê-los
quase simultaneamente.

- Quem serão estes? - murmurou o velho padre para si próprio. - Quem?
Marco parou junto dele e fez-lhe uma respeitosa reverência. Em seguida

levantou a cabeça, endireitou os ombros e proferiu a mensagem pela última
vez.

- “O caminho está aberto”, Padre - disse. “O caminho está aberto”.
O velho padre permaneceu imóvel a olhar fixamente para a sua cara. Daí a

momentos baixou a cabeça, para poder vê-lo melhor. Parecia estar assustado e
querer certificar-se de alguma coisa.

- Sou um velho - disse. - Os meus olhos já não estão muito bons. Se eu

tivesse uma luz.... - e olhava na direcção da casa.

Foi o Rato quem, num movimento rápido, entrou pela porta e agarrou

numa vela, segurando-a de modo que a sua luz incidisse na cara de Marco.

O padre aproximou-se mais, respirando com dificuldade, e gritou:
- És o filho de Stefan Loristan! E é o seu filho que traz o sinal.
- Sim, Padre - disse. - Sou o filho de Stefan Loristan e já dei o sinal a todos.

O Padre é o último. “O caminho está aberto”.

- Andaste de país em país a levar a mensagem?
- perguntou ele. - Andaste a dizer estas quatro palavras, cumprindo

ordens?

- Sim, Padre - respondeu Marco.
- E isso era tudo? Não tinhas mais nada a dizer, nem te perguntaram mais

nada?

- Não sei mais nada. O silêncio foi um princípio que me esforcei por

sempre seguir, desde que fiz o meu juramento em criança. Não tinha ainda
idade suficiente para combater, servir ou raciocinar sobre grandes coisas. Tudo
o que podia fazer era permanecer silencioso, ir treinando a memória e aprender
a estar pronto, para quando fosse chamado. Quando o meu pai viu que eu
estava pronto, confiou em mim para poder partir e dar o sinal. Disse-me as
quatro palavras, nada mais.

O velho padre olhava para ele com um certo ar inquiridor.
- Se não for Stefan Loristan a saber o que é melhor fazer-se - disse -, quem

há-de ser?

- Ele sabe sempre - respondeu Marco com orgulho. - Sempre! - apontou

background image

depois para o Rato como um jovem rei; queria que cada pessoa que
encontrassem, desse o devido valor ao Rato. - Escolheu-me ele também este
companheiro - acrescentou. - Não teria feito nada sozinho.

- Deixou que eu me apelidasse de seu ajudante! - interrompeu o Rato. -

Ter-me-ia deixado cortar em pedaços por ele!

- Como soube que eu era filho do meu pai ?perguntou Marco. - Já tinha

visto alguma vez o meu pai?

- Não - foi a resposta. - Mas já vi uma fotografia, que se dizia ser a sua

própria imagem, e tu és tal e qual essa fotografia. É realmente uma coisa muito
estranha, duas criaturas de Deus serem tão parecidas. Deve haver qualquer
desígnio mistério por detrás disso.

Conduziu-os então para a sua pobre casa, fê-los descansar, beber leite de

cabra e comer alguma coisa. E enquanto andava de um lado para o outro,
dentro daquela cabana, a sua face mostrava um ar misterioso e excitado.

- Vocês têm de se refrescar, antes de partirmos - disse por fim. - Vou

levá-los a um lugar escondido na montanha, onde estão uns homens cujos
corações baterão com força ao ver-vos, ganhando assim mais coragem e nova
determinação. Vão-se encontrar hoje à noite, como os seus antepassados têm
feito há séculos; só que agora a sua espera está já perto do fim. E vou levar-lhes
o filho de Stefan Loristan, que é o portador do sinal!

Comeram o pão com queijo e beberam o leite de cabra que ele lhes deu e a

seguir Marco explicou que não precisavam de descansar, porque tinham
dormido todo o dia. Estavam preparados para o seguir, quando ele estivesse
pronto.

O padre pegou num bordão de madeira cheio de nós e indicou o caminho,

que era escarpado e íngreme sem quaisquer bermas para o delimitar.

Tinham andado a bom passo durante quase duas horas quando chegaram

a uma clareira rodeada de densa vegetação e que tinha no meio uma gigantesca
árvore, possivelmente caída durante alguma violenta tempestade. Não muito
longe da árvore havia uma rocha, da qual só se via a parte que ficava acima
daquele denso emaranhado.

Tinham seguido todo o caminho através da mata cheia de arbustos sempre

conduzidos pelo seu companheiro. Não sabiam onde seriam conduzidos a
seguir, e por isso ainda estavam preparados para continuar, quando o padre
parou ao pé da tal rocha, meio à vista. Ficou parado e silencioso durante uns
minutos, como se estivesse a escutar a floresta e a noite. Mas não havia sequer
uma brisa para fazer mexer uma folha, nem um pássaro a chilrear.

Bateu na rocha com o seu bordão, primeiro duas vezes e mais duas vezes a

seguir.

background image

Marco e o Rato ficaram parados, contendo a respiração.
A rocha movia-se! Sim, era verdade, não havia sombra de dúvida;

movia-se. O padre chegou-se para o lado e ela deslocou-se lentamente, como
que movida por uma alavanca. Gradualmente foi mostrando uma fenda com
uma escuridão levemente iluminada, e então o padre disse para Marco:

- Existem esconderijos como este, espalhados por toda a Samávia. Neles

têm residido a paciência e a miséria. São as cavernas dos Forjadores da Espada.
Venham!

background image




18
O Príncipe Desaparecido


Desde que tinham começado a viagem, os rapazes sentiram muitas vezes

os seus corações baterem de excitação. A história de que as suas próprias vidas
faziam parte, era uma experiência excitante. Mas, à medida que desciam
aqueles degraus enormes, que pareciam conduzir às entranhas da terra, tanto
Marco como o Rato receavam que o padre ouvisse o bater dos corações, tal era a
sua emoção.

- Os Forjadores da Espada. Tenta lembrar-te de cada palavra que eles

disserem - segredou o Rato -, para depois me poderes contar. Não te esqueças
de nada! Quem me dera saber samaviano.

Ao fundo das escadas estava a sentinela, que manobrava a alavanca, que

movia a rocha. Era um camponês grande e com ar pitoresco. O padre saudou-o
ao mesmo tempo que lhe dava a bênção e lhe tomava das mãos a lanterna que
ele empunhava.

A passagem arqueada por onde se encaminharam devia ter levado tantos

anos a ser talhada como a construção daquelas paredes sólidas e ásperas. Mas o
Rato lembrou-se da história dos pastores da montanha que se tinham unido por
um juramento há várias gerações. Os Samavianos eram um povo de grande
determinação e o facto da sua paixão ter sido abafada, ainda a fez arder mais
encarniçadamente. Tinham feito pela primeira vez o seu juramento há
quinhentos anos; governaram muitos reis e desapareceram muitos outros, por
terem morrido ou sido assassinados; dinastias sucederam-se, mas os Forjadores
da Espada nunca tinham esquecido nem vacilado na sua crença de que o seu
Príncipe Desaparecido voltaria a estar entre eles de novo, mesmo a seguir
àqueles anos longos e sombrios.

O velho padre sabia quão ansiosamente eles esperavam e também o que

lhes estava a trazer. Marco e o Rato não tinham ainda idade suficiente para se
aperceberem de como a esperança dos homens pode ser impaciente e violenta.
Esses homens sentiam agora toda a expectativa da eminência do aparecimento
dos portadores do sinal. O Rato sentia calor e frio, e roía as unhas à medida que
avançava. Podia até ter gritado, tal era a intensidade da sua excitação, quando o
padre parou diante de uma porta negra! Marco não emitiu qualquer som. A
excitação ou o perigo tornavam-no mais pálido e esguio. Era assim que estava

background image

agora.

O padre tocou na porta e esta abriu-se. Encontraram-se então numa

enorme caverna revestida das paredes ao tecto por pistolas, espadas, baionetas,
dardos, punhais, espingardas e toda a espécie de armas que um homem
desesperado possa utilizar. O local estava cheio de homens, que se voltaram
para a porta quando esta se abriu. Todos saudaram o padre com reverência,
mas Marco percebeu logo que notaram que o padre não vinha sozinho.

Aquele grupo de gente tinha um ar estranho à luz daqueles archotes e com

aquele enquadramento de armas por todo o lado. Marco viu logo que eram
homens de todas as classes sociais, embora todos estivessem mal vestidos. Eram
montanheses e homens da planície, uns jovens outros mais velhos. Alguns,
tinham cabelo branco, mas corpos de gigantes e grande determinação nos seus
queixos voluntariosos. Tinham sido derrotados, oprimidos e saqueados muitas
vezes, mas nos olhos de cada um existia aquela chama que, através dos anos,
tinha passado de pais para filhos.

O padre pousou a mão no ombro de Marco, e, cautelosamente, levou-o

diante de si, através da multidão que se afastava, formando um círculo, para os
deixar passar. Só parou quando se encontraram no meio do círculo, que
entretanto se alargara, tal era o espanto e a curiosidade. Marco olhou para o
velho padre, e verificou que ele não conseguia falar devido à emoção. Mesmo
entreabrindo os lábios, a voz parecia faltar-lhe. Mas, fazendo um esforço,
conseguiu falar bem alto, de maneira que todos o puderam ouvir, mesmo os
que se encontravam nas últimas filas do círculo.

- Meus filhos - disse -, este é o filho de Stefan Loristan, que vem trazer-nos

o sinal. Finalmente, a mensagem tão desejada. Meu filho - disse, dirigindo-se a
Marco -, fala!

Nessa altura Marco compreendeu o que ele pretendia e também o que

sentia. Ele próprio sentia aquela satisfação grandiosa, crescendo à medida que
falava, mantendo a cabeça bem direita e levantando a mão direita.

- Irmãos, o caminho está aberto - gritou. O caminho está aberto!
Nesse momento, o Rato, que se tinha mantido afastado observando tudo,

pensou que aquela gente estranha dentro da caverna tinha enlouquecido! Uns,
soltavam gritos selvagens, outros, abraçavam-se afectuosamente ou então
ajoelhavam-se, apertavam-se as mãos ou pulavam de satisfação. Era como se
não pudessem suportar a alegria de ouvirem dizer que o final da sua espera
tinha chegado ao fim. Precipitaram-se para Marco e caíram aos seus pés. O
círculo selvagem inclinou-se e fechou-se sobre Marco, de tal maneira que o Rato
teve medo.

Não se tinha apercebido de que, tomado por aquele frenético alvoroço, a

background image

sua própria excitação o fazia tremer da cabeça aos pés, e que as lágrimas lhe
corriam pela cara abaixo. A multidão, ao mover-se, tinha escondido Marco, e o
Rato teve de se debater, para abrir caminho na sua direcção, sentindo-se
apreensivo com o desenrolar dos acontecimentos. Marco era ainda um jovem, e
eles pareciam não perceber que o podiam asfixiar com tanto entusiasmo.

- Não o matem! Não o matem! - gritou o Rato, lutando por chegar à frente.

- Cheguem-se para trás, seus loucos! Deixem-me passar!

E embora ninguém percebesse o seu inglês, lembraram-se de o ter visto

entrar com o padre e cederam. Precisamente nesse instante, o padre ergueu a
mão sobre a multidão e disse com uma voz firme de comando:

- Cheguem-se para trás, meus filhos! - gritou. A loucura não é a melhor

homenagem que podem prestar ao filho de Stefan Loristan. Obedeçam!
Obedeçam! - e a sua voz tinha um tal poder, que atingiu mesmo o mais
ardoroso dos lavradores.

Aquela massa de gente delirante recuou e deixou espaço para Marco, a

quem o Rato conseguiu por fim ver a cara, branca de emoção, e de olhos
aterrorizados.

O Rato foi-se chegando sempre para a frente até ficar ao seu lado. Fixou

depois aquele círculo de gente que os rodeava, como se eles fossem inimigos. O
padre, ao vê-lo, tocou no braço de Marco.

- Diz-lhe que não precisa ter medo - disse. - Foi só ao princípio. A paixão

das suas almas tornou-os selvagens, mas agora são teus escravos.

- Aquele entusiasmo todo, era pela Samávia e pelo meu pai - disse Marco.

- Eu também senti o mesmo.

Seguiu-se depois um estranho cerimonial. O padre foi falar com os

homens da multidão, um a um, e formou-se então um círculo ainda maior.

Ao fundo da caverna estava um grande bloco de pedra, como se de um

altar se tratasse. Cobria-o um pano branco, e por cima dele encontrava-se um
enorme quadro, também tapado com uma cortina. Do tecto pendia um antigo
candeeiro de metal, suspenso por correntes. Defronte do altar havia uma
espécie de trono, onde o padre convidou Marco a sentar-se. Um grupo de
homens retirou-se, e voltou pouco depois empunhando cada um deles uma
grande espada. Dispuseram-se então em duas filas, de cada lado de Marco, e
ergueram as espadas de modo a formar um túnel. O Rato estava tão excitado,
que batia com a mão no peito e olhava para Marco, o qual mantinha um grande
aprumo, esperando o que viria a seguir, visto que se sentia ainda sob as ordens
do pai, e em sua representação.

O padre dirigiu-se depois para o princípio do túnel e fez um sinal aos

homens. Então, um de cada vez, os homens percorreram o túnel e, ao chegarem

background image

junto de Marco, ajoelhavam-se e beijavam-lhe a mão com fervor, voltando
depois para os seus lugares. Marco falou em samaviano com alguns deles, o que
lhes causou grande alegria. Tanto Marco como o Rato, já se tinham apercebido
que havia muitos que não eram camponeses: alguns deles tinham mesmo o ar
de pessoas da alta nobreza ou, pelo menos, de pessoas de grande gabarito.
Levou muito tempo até todos terem prestado a sua homenagem a Marco, mas
nenhum se esquivou a ela. Quando a cerimónia finalmente acabou, fez-se um
grande silêncio na caverna, enquanto eles olhavam uns para os outros com os
olhos humedecidos de emoção. O padre foi então para junto de Marco e,
bruscamente, puxou a cortina que tapava o quadro.

- Filho de Stefan Loristan - disse o padre, com voz emocionada -, este é o

Príncipe Desaparecido.

Toda a multidão se ajoelhou. Marco avançou um pouco, de boca aberta e

respiração suspensa, e observou a pintura.

- Mas. - balbuciou -, é parecido com o meu pai quando era novo.
- Também tu te hás-de parecer com ele quando fores mais velho - disse o

padre, ao mesmo tempo que voltava a tapar o quadro.

O Rato olhava do quadro para Marco e deste para o quadro. Estava cada

vez mais emocionado, mas não pronunciava uma palavra. Não o teria
conseguido, mesmo que tivesse tentado.

Marco levantou-se então do trono, como se acordasse dum sonho e,

acompanhado pelo velho padre, passou por sua vez por baixo do túnel, que,
entretanto, os homens tinham formado de novo.

Agora todos os olhos se fixavam em Marco, que, ao atravessar a porta por

onde tinham entrado, parou e voltou-se para trás procurando os seus olhares.
Marco tinha uma aparência muito jovem, era magro e pálido, mas, de repente,
surgiu-lhe no rosto um sorriso como o do seu pai. Proferiu claramente e com
certa gravidade algumas palavras em samaviano, depois despediu-se e saiu.

- O que é que lhes disseste? - perguntou o Rato, cambaleando atrás dele,

assim que a porta se fechou.

- Só havia uma coisa a dizer - foi a resposta. Eles são homens, eu sou

apenas um rapaz. Agradeci-lhes em nome do meu pai, e disse-lhes que ele
jamais esqueceria.

background image




19
Extra! Extra! Extra!


Chovia copiosamente em Londres. Já chovia há duas semanas, uns dias

mais, outros menos, mas sempre com grande intensidade. Quando o comboio
de Dover chegou a Charing Cross, o tempo, que até ali achara ser demasiado
brando, desatou a mostrar-se ainda muito mais rigoroso. Assim, reuniu todas as
energias e verteu-as num dilúvio que surpreendeu mesmo os londrinos. A
chuva batia tão fortemente nas janelas e escorria tão abundantemente pelos
vidros daquela carruagem de terceira classe onde viajavam Marco e o Rato, que
eles nem conseguiam ver para fora.

A viagem de regresso foi muito mais breve do que a que os levara para as

longínquas paragens por onde tinham andado. Claro que tinham levado um
certo tempo até chegarem à fronteira, mas depois de terem apanhado o comboio
não pararam mais. Quando estavam cansados, dormiam nos bancos de madeira
das carruagens.

O seu único desejo era regressarem a casa. O n.º 7 da Praça Philibert

comparado com toda aquela imundície, parecia-lhes o lugar mais apetecível da
terra.

Para Marco isso estava relacionado com o seu pai. E o Rato era também só

Loristan que via quando pensava nisso, e o modo como Loristan olharia para
ele quando o visse entrar na sala com Marco e como ele lhe diria ao saudá-lo:

- Trouxe-o de volta, senhor. Ele cumpriu, tal como eu, todas as ordens que

lhe destes.

E, na verdade, assim acontecera. Ele fora enviado como companheiro e

ajudante, e tinha-lhe sido fiel em tudo. Se Marco lhe permitisse, tê-lo-ia servido
como um criado e sentir-se-ia orgulhoso do seu serviço. Mas Marco sempre
dissera que eles eram apenas dois rapazes, e que nenhum deles era mais
importante do que o outro. Tinha aceite esta atitude com um pouco de mágoa.
Podia ter-se parecido mais com um jogo, se um deles fosse mero servidor do
outro, e se esse outro gritasse um pouco mais, desse ordens ou pedisse mesmo
sacrifícios. Se o fiel vassalo tivesse sido ferido ou lançado num calabouço por
causa do seu jovem chefe, a aventura teria sido muito mais completa. Mas a
viagem decorrera maravilhosamente e ficara na memória do Rato como um
fundo de tapeçaria bordado em todos os tons da terra e com todos os seus

background image

esplendores, não havendo nem masmorras nem feridas a recordar. Depois da
aventura em Munique, a sua ingenuidade despreocupada nunca mais fora
atingida pelos perigos que a podiam ter ameaçado. Como o Rato dissera, eles
tinham “voado como grãos de pó” através da Europa, como se nada fosse. Tal
como Loristan planeara. Se eles fossem homens, provavelmente não se teriam
saído tão bem.

Desde que tinham deixado o velho padre na encosta da montanha, para

iniciarem a viagem de regresso à fronteira, pouco falaram, quer caminhassem
lado a lado ou se deitassem no musgo das florestas. Agora, que tinham acabado
o seu trabalho, começaram a cair em si. Não era preciso fazer mais planos nem
prever mais incertezas. Iam regressar à Praça Philibert. Cada um deles pensava
em imensas coisas. Marco estava cheio de vontade de ver a cara do pai e de
ouvir de novo a sua voz. Queria sentir a pressão da sua mão no ombro, para ter
a certeza de que era verdade e não um sonho. Isto, porque durante a viagem de
regresso, tudo o que tinha acontecido parecia muitas vezes ser um sonho. Fora
tudo tão maravilhoso: o Príncipe na varanda a olhar para a Lua; o velho padre,
ajoelhado, a chorar de alegria; a caverna enorme com a luz amarela a iluminar
aquela multidão de rostos emocionados. Mas ele não tinha sonhado; estava
agora a recordar-se de tudo, para depois contar ao pai.

O Rato roía as unhas, porque os seus pensamentos, mesmo sem ele querer,

lhe assaltavam a memória e eram mais duros e agitados do que os de Marco.

Não valia a pena tentar controlar-se, e dizer para si próprio que era um

louco. Agora que tudo terminara, tinha muito tempo para ser tão louco quanto
desejasse ser. Ah, como ele desejava chegar a Londres e dar de caras com
Loristan! O sinal fora dado, o caminho estava aberto. O que iria acontecer a
seguir? Antes mesmo do comboio ter chegado à estação, já as muletas estavam
colocadas sob os seus braços.

- Chegámos! Chegámos! - gritava ele impacientemente para Marco.
Como não era preciso esperar pela bagagem, agarraram nos sacos e

seguiram a multidão ao longo da plataforma de desembarque. A chuva batia
contra a clarabóia de vidro, com um ruído semelhante ao disparo de balas. As
pessoas viravam-se para olhar para Marco, ao verem o seu ar radiante.
Pensavam que era um rapaz que vinha de férias e que se preparava para ir
visitar um sítio de que gostava muito.

Quando eles chegaram à porta da estação, a água da chuva alagava os

passeios.

- Um táxi não deve ser muito caro - disse Marco - e, assim, chegamos mais

depressa.

Chamaram um e entraram. Tinham as faces afogueadas e Marco olhava

background image

fixamente para um ponto perdido no espaço.

- Voltámos! - disse o Rato, com uma voz hesitante. - Fomos e viemos. -

Depois virou-se subitamente para Marco e disse: - Não te parece ainda mentira?

- Sim - respondeu Marco. - Mas é verdade. Terminámos o nosso trabalho. -

E depois de uma pausa acrescentou o que o Rato já tinha pensado antes para si
próprio. - O que virá a seguir?

A distância até à Praça Philibert não era grande. Quando, ao voltar de uma

esquina, entraram na rua barulhenta, cheia de movimento de camionetas com
as suas cargas e de pessoas com as suas caras cansadas, em passo apressado,
olharam para tudo isso com a sensação de que o sonho ficara para trás. Mas,
finalmente, estavam em casa.

Foi muito agradável ver Lazarus abrir-lhes a porta e esperar que eles

saíssem do táxi. Era tão raro pararem táxis às portas na Praça Philibert que,
quando isso acontecia, os moradores acorriam logo para verem quem era.
Quando Lazarus viu aquele táxi parar, teve imediatamente um pressentimento
de quem seria. Tinha andado quase todos os dias de volta das janelas, na
esperança de os ver chegar, mesmo quando ainda era cedo demais para isso
poder acontecer.

Saudou Marco com ar mais militar do que lhe era habitual mas, mesmo

assim, com grande entusiasmo.

- Deus seja louvado! - disse ele com grande alegria. - Deus seja louvado!
Quando Marco lhe estendeu a mão, ele segurou-a e beijou-a com devoção,

baixando um pouco a cabeça grisalha.

- Deus seja louvado! - disse de novo.
- O meu pai? - perguntou Marco. - Não está fora, pois não?
Ele sabia que se o pai estivesse em casa, com certeza que não ficaria

sentado na sala sem vir ao seu encontro.

- Quer-me acompanhar ao quarto dele, senhor? - disse Lazarus. - O senhor

também - disse, voltando-se para o Rato. Nunca tinha tratado o Rato por
“senhor”.

Abriu-lhes a porta que lhes era tão familiar e eles entraram. O quarto

estava vazio. Nem Marco nem o Rato pronunciaram uma palavra. Ficaram
parados no meio do tapete já gasto, fitando o velho soldado. Tiveram ambos a
sensação de que o chão lhes fugia debaixo dos pés. Lazarus apercebeu-se disso
e falou então rapidamente, com uma voz ligeiramente trémula. Estava quase
tão emocionado como eles.

- Deixou-me ao vosso serviço, às vossas ordens - disse ele.
- Deixou-te ? - perguntou Marco.
- Ficámos os três com uma só ordem: esperar - disse Lazarus.

background image

O Rato sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos, mas limpou-as antes de

olhar para Marco. O choque tinha-lhe mudado completamente a expressão. A
alegria desaparecera-lhe do rosto, e agora estava pálido e franzia as
sobrancelhas. Durante uns momentos não disse nada e, quando falou, fê-lo com
uma voz tão calma e pausada, que o Rato percebeu logo que ele estava a tentar
manter um grande autodomínio.

- Se se foi embora, é porque tinha seguramente uma razão forte. Também

ele cumpria ordens com certeza.

- Ele disse que vocês perceberiam - respondeu Lazarus. - Foi chamado tão

à pressa, que só teve tempo de vos escrever algumas palavras. Deixou-as em
cima da secretária.

Marco dirigiu-se à secretária e abriu o sobrescrito que lá se encontrava.

Eram apenas algumas linhas, escritas muito à pressa, que diziam o seguinte: “A
minha vida pela Samávia”.

- Foi chamado para a Samávia - disse Marco. E este pensamento fez-lhe

correr o sangue mais depressa nas veias. - Foi para a Samávia!

Lazarus passou a mão pela testa e disse com voz rouca:
- Parece haver grande insatisfação nas hostes de Maranovitch. E o que

resta do seu exército, tornou-se incontrolável. O silêncio continua a ser a
palavra de ordem, senhor, mas quem sabe se não será este o momento que
esperamos?

Ainda não tinha acabado de falar quando se voltou para a janela, como se

algum barulho especial lhe tivesse chamado a atenção. De facto, ouviam-se
gritos de ardinas apregoando notícias sensacionais dos jornais.

O Rato, que já tinha ouvido antes, correra logo para a porta. Acabava de a

abrir quando passou um ardina gritando a plenos pulmões:

- Extra! Extra! O Rei Michael Maranovitch foi assassinado pelos seus

próprios soldados! Assassinato de Maranovitch!

Quando o Rato entrou com o jornal, Lazarus interpôs-se entre ele e Marco,

dizendo com ar muito respeitoso:

- Senhor, estou às vossas ordens, mas o meu amo deixou-me instruções no

sentido de não vos deixar ler os jornais até que ele vos torne a ver.

Os dois rapazes ficaram estupefactos.
- Não ler os jornais! - exclamaram ambos simultaneamente.
Lazarus nunca tinha sido tão cerimonioso.
- As minhas desculpas, senhor - disse ele. Posso lê-los, se me ordenar, e

fazer-lhe um resumo das notícias que deve saber. Tem havido muitos rumores e
muitos boatos sinistros. Por isso é que me foi pedido que não vos deixasse ler.
Se se tornarem a ver, isto é, quando se voltarem a encontrar - emendou ele

background image

imediatamente -, compreenderá a razão. Eu sou o vosso servo. Lerei os jornais e
responderei a todas as perguntas que puder.

O Rato entregou-lhe o jornal e voltaram todos outra vez para o quarto das

traseiras.

- Tens de dizer-nos o que é que ele gostaria que nós soubéssemos - disse

Marco.

E a notícia foi-lhe logo contada. A história não era muito grande, visto que

os pormenores ainda não tinham chegado a Londres. Em resumo, sabia-se que
o chefe do partido de Maranovitch tinha sido assassinado por soldados
enfurecidos do seu próprio exército. Era um exército formado principalmente
por camponeses que não apreciavam os seus chefes nem pretendiam combater,
mas que, por estarem a sofrer um tratamento brutal, se tinham finalmente
sublevado e iniciado uma revolta selvagem.

- E a seguir? - perguntou Marco.
- Se eu fosse Samaviano. - começou o Rato a dizer, mas parou logo em

seguida.

Lazarus ficara de pé, a morder os lábios, olhando fixamente para o tapete.

Não só o Rato mas também Marco notaram que ele se tornara mais austero. Isso
acontecia porque tinha imposto a si próprio uma disciplina férrea. Era como se,
mesmo sentindo grande ansiedade, tivesse resolvido não o dar a entender, o
que levava a que o seu semblante se tornasse rígido e se formassem vincadas
rugas na sua testa. Foi o que cada um dos rapazes pensou, mas não ousou dizer.
Se ele estava assim ansioso, só podia ser por uma razão, e ambos
compreenderam logo qual seria. Loristan partira para a Samávia, para aquele
país dividido e torturado, cheio de perigos e agitação. Se ele tinha partido, só
poderia ser porque sentira o apelo do perigo e resolvera ir enfrentá-lo, mesmo
no seu auge. Lazarus tinha ficado para tomar conta deles. Mas não lhes podia
contar tudo o que sabia e que, provavelmente, não seria muito mais do que a
hipótese de se vir a perder uma vida muito importante.

Uma vez que o seu amo se encontrava ausente, o velho soldado parecia

sentir-se mais reconfortado por passar a ter com Marco uma reverência mais
cerimoniosa do que dantes. Manteve-se sempre às ordens de Marco, como era
seu costume com Loristan. Estendia mesmo este serviço cerimonioso ao Rato,
achando até que passara a ter uma outra opinião dele; parecia-lhe agora ser
uma pessoa merecedora de deferência e a quem se devia falar com dignidade e
respeito.

Quando o jantar foi servido, Lazarus puxou a cadeira de Loristan para a

cabeceira da mesa e colocou-se atrás dela com um ar majestoso.

- Senhor - disse para Marco -, o amo pediu que tomasse o seu lugar à

background image

mesa, enquanto ele não estivesse.

Marco sentou-se nesse lugar em silêncio. Às duas horas da manhã, quando

tudo ainda estava calmo lá fora, a luz da lâmpada da rua, entrando no quarto,
veio iluminar aquelas duas faces pálidas. O Rato sentou-se no sofá que lhe
servia de cama, com as mãos à volta dos joelhos, como costumava fazer dantes.
Marco permanecia estendido no duro colchão. Nenhum deles conseguira
dormir, mas apesar disso também não tinham falado muito. Cada um tentava
adivinhar os pensamentos do outro.

- Há uma coisa de que nos devemos lembrar sempre - dissera Marco ao

princípio da noite. - Não de vemos ter medo.

- Pois não - respondeu o Rato, quase com orgulho -, não devemos ter

medo.

- Estamos cansados, voltámos e esperávamos poder contar-lhe tudo.

Desejámos sempre poder fazer isso. Nunca pensámos que ele se pudesse ter ido
embora. Mas o certo é que foi. Não sentiste - disse virando-se para o sofá - como
que um baque no peito?

- Sim - respondeu o Rato, com ar grave -, senti.
- Nós não estávamos preparados - disse Marco.
- Ele nunca se tinha ido embora, mas devíamos ter previsto que alguma

vez podia ser chamado. E foi realmente o que aconteceu. Disse-nos para
esperarmos e mesmo ignorando o que esperamos, sabemos que não devemos
ter medo.

O Rato levantou a cabeça e olhou de lado para a cama.
- Já alguma vez pensaste - disse devagar - que talvez ele soubesse onde se

encontrava o descendente do Príncipe Desaparecido?

Marco respondeu ainda mais devagar.
- Se alguém soubesse, de certeza que ele também teria conhecimento. Ele

sabe sempre tanto! - disse.

- Escuta! - interrompeu bruscamente o Rato. Penso que ele foi para a

Samávia para “dizer” às pessoas. E se conseguir dizer-lhes, todo o país ficará
louco de alegria. Não seria apenas o Partido Secreto, mas toda a Samávia que se
levantaria e seguiria a bandeira que ele escolhesse erguer. Eles rezaram durante
quinhentos anos pelo Príncipe Desaparecido, e se acreditassem que o tinham de
volta, novamente lutariam como loucos por ele. Mas até agora não havia
aparecido ninguém por quem combater! Todos pretendiam o mesmo! Se
pudessem ver o homem com o sangue de Ivor nas veias, até pensariam que
tinha voltado para eles, mesmo depois de morto. Eles acreditariam nisso! - batia
palmas no auge da excitação. - Chegou a altura! Chegou a altura! - gritou. -
Ninguém podia deixar passar tal oportunidade! Ele tem de lhes dizer! Deve ter

background image

sido por isso que ele foi. Ele deve ter sabido sempre! - disse atirando-se para
trás, no sofá, tapando a cara com as mãos.

- Se chegou a altura - disse Marco em voz baixa
com certo esforço -, se for a altura e ele souber, diz-lhes com certeza.
Ao pronunciar isto levou as mãos à cara e ficou muito quieto.
Nenhum deles falou mais. A luz da rua entrava pelo quarto,

iluminando-os, como se esperasse que algo acontecesse. Mas não sucedeu nada.
E daí a pouco adormeceram.

background image




19
Da noite para o dia


Depois disto, puseram-se à espera. Não sabiam bem de quê, nem

conseguiam mesmo prever como é que a espera terminaria. Tudo o que Lazarus
lhes podia dizer, já o tinha dito. Por vontade dele teria estado durante horas a
contar respeitosamente a Marco, tudo o que se tinha passado com ele e com o
amo, durante a sua ausência.

Sentiam aquela espera tão intensamente, que os dias passavam sem

qualquer outro significado. Quando se ouvia o carteiro bater à porta, todos se
esforçavam por não começar a correr. Havia de chegar o dia em que uma carta
viesse dizer-lhes não sabiam bem o quê. Mas não veio carta alguma. E se saíam,
davam consigo a regressar apressados para casa, mesmo sem quererem. Mas
alguma coisa tinha que acontecer. Lazarus, que lia os jornais todos os dias,
relatava à noite para Marco e para o Rato, as notícias “que eles podiam ouvir”.
Todavia, a desordem da Samávia tinha deixado de ocupar tanto espaço.
Tornara-se uma história antiga, e depois de toda aquela excitação sobre o
assassinato de Michael Maranovitch ter passado, parecia que os acontecimentos
tinham acalmado. O filho de Michael não ousara tomar o lugar do pai, e havia
até rumores de que ele também tinha morrido. Iarovitch proclamara-se rei a si
próprio, mas não tinha sido coroado por causa das desordens no interior do seu
próprio partido. O país parecia viver num pesadelo de sofrimento, fome e
ansiedade.

Para ajudar a passar o tempo decidiram reunir o exército e foram passar

uma manhã à “caserna”, por detrás do pátio da igreja. O grupo de “homens”
armados fitou o seu comandante com uma grande e curiosa incerteza. Sentiram
que algo lhe acontecera. Não sabiam o que fora, mas tinha sido qualquer
experiência que o tinha tornado diferente e misterioso. Não se assemelhava a
Marco, mas ao mesmo tempo, por qualquer razão estranha, estava ainda mais
parecido com ele. A única coisa que eles sabiam era que algum motivo nos
negócios de Loristan os levara, aos dois, para longe de Londres e do “jogo”.
Agora tinham regressado e pareciam mais velhos.

Ao princípio, o exército sentia-se embaraçado e arrastava os pés com

desconforto. E a seguir à fase dos cumprimentos não sabiam o que dizer. Foi
Marco quem salvou a situação.

background image

- Treina-os primeiro - disse para o Rato -, depois podemos conversar sobre

o jogo.

- Formar! - gritou o Rato, com autoridade. Imediatamente esqueceram

tudo o resto e alinharam-se. Depois do treino ter terminado, sentaram-se em
círculo sobre as bandeiras rasgadas, e o jogo tornou-se ainda mais brilhante do
que alguma vez fora.

- Tenho tido tempo para ler e para aprender novos conceitos - disse o Rato.

- Ler é como viajar.

Até mesmo Marco se sentou a ouvir, encantado com a habilidade com que

ele dava largas à imaginação.

Sem revelar um único pormenor que pudesse comprometer a segurança

da missão em que tinham estado envolvidos, fez um relato tão empolgante das
suas viagens e experiências, que faria inveja a qualquer grupo de jovens com
espírito aventureiro.

Podia descrever à vontade as pessoas e lugares sem perigo de

inconfidências, e descreveu-os de tal maneira que o exército no auge do prazer
já se sentia a marchar num desfile, esperando o Imperador em Viena; perfilado
em frente dos palácios; subindo estradas em montanhas íngremes com mochilas
bem apertadas; defendendo fortalezas situadas nas montanhas; atacando
castelos samavianos. O exército exultava de alegria. O Rato também vibrava de
satisfação. Marco observava com admiração a sua face de traços irregulares e
olhos brilhantes. Este estranho poder de tornar as coisas vivas era, como ele
sabia, aquilo a que o seu pai chamaria de “génio”.

Quando Marco e o Rato os deixaram, puseram-se primeiro em sentido e

depois terminaram com um grito de saudação.

Ao chegarem a casa, aconteceu exactamente o mesmo que no dia do seu

regresso da viagem. Começou a ouvir-se lá fora, na rua, o barulho dos ardinas a
gritar. Desta vez os gritos pareciam ainda mais excitados do que antes. Os
ardinas corriam e gritavam e pareciam ser ainda em maior número que o
habitual. E, além de outras palavras, ouvia-se: “Samávia! Samávia!”. Mas, desta
vez, o Rato não se precipitou para a porta logo ao primeiro grito. Foi Lazarus o
primeiro a sair da sala, e logo o Rato e Marco o seguiram.

Um dos inquilinos de cima tinha saído a correr para ir comprar jornais e

fazer perguntas. Os rapazes dos jornais estavam no auge da excitação e
dançavam ao mesmo tempo que gritavam. A notícia que eles apregoavam tinha
evidentemente um cariz popular.

O inquilino comprou dois jornais e deu uma gorjeta a um rapaz que falava

muito alto.

- Aqui vai! - dizia ele. - Surgiu um tal Partido Secreto e conquistou a

background image

Samávia! Fizeram-no da noite para o dia! E parece que o descendente do
Príncipe Desaparecido apareceu e eles o coroaram; fizeram isso da noite para o
dia! Colocaram a coroa na sua cabeça, assim sem perderem tempo - e retirou-se
a gritar: O Descendente do Príncipe Desaparecido! O Descendente do Príncipe
Desaparecido feito Rei da Samávia!

Foi então que Lazarus, esquecendo-se de toda a cerimónia, deu um salto e

voltou para a sala, fechando a porta atrás dele.

Marco e o Rato encontraram-na fechada, quando depois de terem

comprado um jornal, voltaram a entrar no corredor. No interior da sala
ouviam-se soluços convulsivos, palavras ardorosas em samaviano, e orações
mostrando gratidão.

- Vamos esperar aqui - disse Marco, tremendo um pouco. - Ele não deve

querer que ninguém o veja.

- Marco! Marco! - murmurou em forma de grito.
- Foi por isso que ele foi para lá. Porque ele sabia!
- Sim - respondeu Marco -, foi por isso que ele foi. - E ao dizer isto, a sua

voz tremia tal como todo o seu corpo.

Nessa altura Marco deu a volta ao puxador da porta, entrou no quarto,

fechou a porta atrás de si e ficaram ali, os três juntos.

Quando um Samaviano dá largas à sua emoção, fica realmente muito

exaltado. Lazarus tinha o aspecto de quem passou por uma tempestade. Tinha
controlado os soluços, mas as lágrimas ainda lhe corriam pela cara.

- Senhor - disse com a voz rouca - peço perdão! Foi como se tivesse sido

tomado por convulsões.

Esqueci tudo, até mesmo o meu dever. Perdão, mil vezes perdão - e ali,

naquele tapete já gasto na sala de estar situada nas traseiras da Marylebone
Road, dobrou um joelho até ao chão e beijou a mão do rapaz com adoração.

- Não tens de pedir perdão - disse Marco. – Já esperaste tanto, meu bom

amigo. Dedicaste toda a tua vida, tal qual o meu pai.... - a voz embargou-se-lhe
e ficou a olhar para ele como que pedindo-lhe que se lembrasse da sua infância
e compreendesse o resto. Não te ajoelhes - disse a seguir. - Não te deves
ajoelhar.

E Lazarus, beijando-lhe a mão novamente, levantou-se.
- Agora, vamos saber! - disse Marco. - A espera vai acabar em breve.
- Pois, senhor, agora vamos receber ordens! - respondeu Lazarus.
O Rato pegou nos jornais e perguntou:
- Já os podemos ler?
- Até novas ordens, senhor - disse Lazarus precipitando-se como que

pedindo desculpa -, talvez seja melhor que eu os leia primeiro.

background image




20
O jogo chegou ao fim


Enquanto a história da Europa for escrita e lida, a revelação ímpar do

aparecimento do Partido Secreto na Samávia deve destacar-se como um dos
seus factos mais surpreendentes e românticos. Mesmo só um resumo pode
esclarecer sobre o crescimento do Partido Secreto - embora pareça quase deixar
de ser um conto, ao relatar que a passagem do sinal fora entregue a dois
rapazes, lançados através da Europa como se fossem dois insignificantes grãos
de pó, mas que, no entanto, acenderam a luz, cuja chama tanto se alastrou e fez
aparecer milhares de Samavianos prontos para a alimentar. Iarovitch e
Maranovitch foram afastados para sempre, e só ficaram Samavianos para
agradecer bem alto, em preces ardentes, e adorar o Deus que lhes tinha
devolvido o seu Príncipe Desaparecido. Todas as batalhas tinham cessado ao
ouvir-se gritar o seu nome. As espadas foram postas de lado, por já não serem
precisas. Iarovitch fugiu aterrorizado; quanto a Maranovitch, desapareceu e
nunca mais foi encontrado. Da noite para o dia, como dizia o rapaz dos jornais,
o estandarte de Ivor foi içado e ondulava nos palácios e nas cidadelas. Os seus
seguidores, vindos das montanhas, florestas, planícies, quer fossem da capital,
da cidade, da vila ou da aldeia, reuniram-se para prestar obediência;
seguiam-nos mulheres e crianças, chorando de alegria e entoando hinos de
louvor. Os Governos reconheceram de novo o velho país anteriormente
prostrado e ignorado. Começavam a atravessar a fronteira comboios carregados
de comida e fornecimentos de todas as coisas necessárias; foi concedida ajuda
de outras nações. A história da coroação do Rei tinha sido a mais fantástica de
todas.

“A história da destruição na catedral destruída, cujo telhado tinha sido

estilhaçado por fragmentos de bombas”, segundo disse um importante jornal
londrino “pode entender-se como uma lenda da Idade Média. Há ainda algo de
medieval no carácter nacional da Samávia. “

Passou-se o dia seguinte, e outro ainda, até que chegou uma carta. Vinha

da parte de Loristan, e Marco ficou pálido quando Lazarus lha entregou.
Lazarus e o Rato saíram imediatamente da sala, deixando-o só, a ler a carta.
Não era certamente uma carta longa, porque passados alguns minutos, Marco
chamou-os para entrarem de novo na sala.

background image

- Dentro de dias, mensageiros amigos do meu pai, virão buscar-nos para

nos levarem para a Samávia. Vamos todos: tu, eu e Lazarus - disse para o Rato.

- Deus seja louvado! Deus seja louvado!
O fim de semana chegou antes dos mensageiros aparecerem. Lazarus

tinha feito uma trouxa com os seus poucos haveres e, no sábado, quando Marco
e o Rato saíram da sala, Mrs. Beedle, a senhoria, andava de um lado para o
outro no cimo das escadas da cave.

- Jovem senhor Loristan, gostava de saber se já ouviu dizer quando é que o

seu pai volta?

- Ele não volta - disse Marco.
- Não volta, pois não? Então e a renda da próxima semana? - perguntou

Mrs. Beedle. - Reparei que o seu criado tem estado a arrumar tudo. Ele não tem
muito para levar, mas não passará aquela porta da rua, até eu receber o que me
devem. As pessoas que fazem as malas depressa, pensam que também se
podem ir embora facilmente, sem ninguém dar por isso. A semana termina
hoje.

Lazarus virou-se e encarou-a com um gesto furioso.
- Mulher, volta para a tua cave - ordenou. Volta lá para baixo e fica lá.

Olha só para o que está a parar diante do teu portão miserável!

Acabava de parar uma magnífica carruagem castanha-escura. O cocheiro e

o lacaio vestiam também de castanho escuro, com librés em dourado, e o lacaio
tinha saltado para o chão e abria a porta com entusiasmo e respeito.

- Eles são amigos do meu amo e vêm prestar cumprimentos ao seu filho -

disse Lazarus. - Terão os seus olhos de suportar a tua presença?

- Não há problema com o dinheiro - disse Marco.
- É melhor agora deixar-nos.
Mrs. Beedle lançou um olhar curioso para os dois cavalheiros que tinham

entrado pelo desconjuntado portão. Eram pessoas de uma categoria que não
pertencia à Praça Philibert. Tinham o ar de quem está habituado a andar todos
os dias de carruagem, acompanhado dos seus lacaios de libré.

Os dois visitantes tinham passado o limiar da porta. Eram ambos homens

de grande dignidade e, por isso, quando Lazarus abriu a porta de par em par,
eles entraram para aquele átrio miserável como se não tivessem reparado nele.
Atravessaram toda aquela imundície, e passaram por Lazarus, pelo Rato e por
Mrs. Beedle, por assim dizer, “através deles”, para se dirigirem directamente a
Marco. Este também avançou para eles imediatamente.

- Vêm da parte do meu pai - disse ele, estendendo a mão primeiro ao mais

velho e depois ao mais novo.

- Sim, vimos da parte do seu pai. Eu sou o Barão Rastka e ele é o Conde

background image

Vorversk - disse o mais velho, curvando-se.

- Se eles são barões e condes, amigos do seu pai, bem podem ser

responsáveis por si - disse Mrs. Beedle, dum modo bastante agressivo, que era
consequência do seu ligeiro amedrontamento. - É por causa da renda da
próxima semana, meus senhores. Quero saber quem a paga.

O homem mais velho olhou para ela com um olhar frio e rápido. E não

falou com ela, mas para Lazarus.

- O que faz ela aqui? - perguntou.
Marco respondeu-lhe.
- Ela tem medo que nós não possamos pagar-lhe a renda - disse. - É muito

importante para ela ter a certeza que a recebe.

- Leve-a daqui - disse o cavalheiro para Lazarus, sem sequer olhar para

ela. Tirou qualquer coisa do bolso do casaco e entregou-a ao velho soldado.
Leve-a daqui - repetiu ele. E reduzida à sua insignificância, Mrs. Beedle
desapareceu pela passagem que dava para os degraus da cozinha, na cave.

Quando um grupo constituído por dois rapazes escoltados por um criado

militar, acompanhado de dois homens mais velhos com boa aparência e com
tipo de estrangeiros, apareceu na plataforma da estação de Charing Cross, com
certeza que atraiu todas as atenções. Na verdade, a boa aparência e o facto do
bonito rapaz ter um corpo forte e bem constituído, além de uma farta cabeleira
escura, devia atrair os olhares para ele, mesmo se para aqueles que estavam
com ele não fosse nada de especial.

Lazarus procedia como um granadeiro, e acompanhava Marco como se só

deixasse alguém aproximar-se dele por cima do seu cadáver.

- Até chegarmos a Melzarr - disse com ardor para os dois cavalheiros -, até

estar perante o meu amo, imploro que me seja possível tomar conta dele dia e
noite. Peço que me permitam viajar armado, sempre ao seu lado. Mas, como seu
criado, não tenho o direito de ocupar um lugar na mesma carruagem e por isso
podem pôr-me onde quiserem. Serei cego surdo e mudo para todos menos para
ele. Só peço que me permitam estar suficientemente perto dele para poder dar
até a minha própria vida, se tal for preciso. Deixai que possa afirmar para o
meu amo: “eu nunca o deixei”.

- Vamos tentar descobrir um lugar para si - disse o homem mais velho. - E

se está assim tão ansioso pode mesmo dormir na soleira da porta, enquanto nós
passamos a noite num hotel.

- Não vou dormir! - disse Lazarus. - Vou ficar à espreita. Suponha que há

por aí pela Europa demónios de Maranovitch perdidos e furiosos? Quem sabe!

- Maranovitch e Iarovitch morreram nos campos de batalha sem terem

prestado vassalagem ao rei Ivor. Os que ficaram, são agora por Fedorovitch e

background image

rezam a Deus pelo seu Rei - foi a resposta que o Barão Rastka lhe deu.

Mas Lazarus mesmo assim não afrouxou a sua atenção. Na viagem,

quando ocupava o compartimento ao lado daquele em que Marco viajava,
permanecia de pé no corredor sempre a vigiar.

Se a viagem dos jovens portadores do sinal tinha sido estranha, esta

também o era pelo contraste que fazia. Desta vez eram dois rapazes bem
vestidos que iam acompanhados por dois cavalheiros de classe, viajando em
compartimentos reservados e com todo o conforto que o luxo pode
proporcionar.

Na noite anterior à chegada a Melzarr, dormiram numa cidade a pouca

distância da capital. Chegaram à meia-noite e foram logo para um hotel
sossegado.

- Amanhã! - disse Marco quando se despediu do Rato ao deitar. - Amanhã

vamos finalmente vê-lo, Deus seja louvado!

- Deus seja louvado! - disse também o Rato. E depois despediram-se um

do outro.

De manhã, Lazarus entrou no quarto com um ar tão solene que até parecia

que as roupas que trazia nas mãos faziam parte de alguma cerimónia religiosa.

- Estou às suas ordens, senhor - disse. - Trago-lhe o seu uniforme.
De facto, trazia um uniforme samaviano ricamente decorado, e a primeira

coisa que Marco notou, quando ele entrou foi que, também ele, vestia um
uniforme. Era um uniforme de um oficial da Guarda Real.

- O meu amo - disse -, pede que vista isto ao entrar em Melzarr. Também

tenho um uniforme para o seu ajudante de campo.

Quando Rastka e Vorversk apareceram, também vinham de uniforme. Era

um uniforme que tinha um to que oriental, no seu esplendor. Um manto curto,
debruado a pele, pendia dos ombros, preso por uma corrente de grande valor,
sendo todo o resto bordado em várias cores e a ouro.

- Senhor, temos de ir rapidamente para a estação - disse o Barão Rastka

para Marco. - Estas pessoas são muito excitáveis e patrióticas e Sua Majestade
deseja que permaneçamos incógnitos e evitemos qualquer oportunidade de
demonstração pública até que cheguemos à capital.

Saíram à pressa do hotel e foram para uma carruagem que já estava à sua

espera. O Rato notou que qualquer coisa fora de vulgar se estava a passar.
Criados a espreitarem às esquinas dos corredores e hóspedes a saírem dos seus
quartos e mesmo a debruçarem-se na balaustrada.

Quando Marco entrou para a carruagem viu um rapaz mais ou menos da

sua idade a espreitar atrás de um arbusto; de repente desatou a correr tão
depressa quanto as pernas lhe permitiam, aparentemente com a intenção de

background image

chegar à estação ao mesmo tempo que eles.

Mas os cavalos eram mais rápidos. Assim que o grupo chegou à estação,

foi imediatamente conduzido para uma carruagem-salão especial. Quando o
comboio ia a sair da estação, Marco viu o rapaz, que tinha corrido à frente deles,
dirigir-se para a plataforma, acenando com os braços e a gritar qualquer coisa
num grande delírio. As pessoas que estavam ao pé viraram-se para ele e logo a
seguir tiraram os seus bonés lançando-os ao ar e começaram também a gritar,
não sendo todavia possível ouvir o que diziam.

- Chegámos mesmo a tempo - disse Vorversk e o Barão Rastka concordou,

acenando com a cabeça.

O comboio partiu e só pararam uma vez antes de chegarem a Melzarr. Foi

numa pequena estação, em cuja plataforma se encontravam pessoas com
grandes cestos de coroas de flores e ramos de sempre-vivas. Colocaram- nos no
comboio e pouco depois tanto Marco como o Rato notaram que algo fora do
normal se estava a passar. Ao mesmo tempo podia ver-se um homem de pé na
estreita parte de fora da plataforma a segurar coroas de flores e entregando
bandeiras aos homens que trabalhavam no telhado.

- Estão a fazer qualquer coisa com bandeiras samavianas e uma

quantidade de flores e coisas verdes! - gritou o Rato muito excitado.

- Senhor, eles estão a decorar a parte de fora da carruagem - disse

Vorversk. - Os aldeãos que moram nesta linha tiveram licença de Sua
Majestade. O filho de Stefan Loristan não podia passar pelas suas casas sem que
lhe prestassem homenagem.

- Compreendo - disse Marco, com o coração a bater forte contra o

uniforme. - É por causa do meu pai.

Por fim, o comboio todo coberto com folhagem, engalanado e com

bandeiras a esvoaçar, chegou à estação principal de Melzarr.

- Senhor - disse Rastka, quando eles iam a chegar -, é melhor levantar-se

para que as pessoas o possam ver bem. Os que estão por detrás da multidão,
vão ficar só com uma breve visão, mas será suficiente e nunca mais a
esquecerão.

Marco levantou-se. Os outros agruparam-se atrás dele. Ouviu-se um ruído

de vozes, que terminou como que num grito de alegria que mais parecia o
estrondo do desencadear de uma tempestade. A seguir irrompeu o som forte de
instrumentos metálicos tocando o hino nacional da Samávia, a que se juntaram
vozes entusiasmadas.

Se Marco não fosse um rapaz bastante treinado no autocontrolo, podia

ter-se perturbado com o desenrolar dos acontecimentos. Quando o comboio
parou finalmente e a porta foi aberta, até mesmo a voz digna de Rastka parecia

background image

insegura ao dizer:

- Senhor, queira abrir o caminho, para nós o seguirmos.
E Marco, muito direito à entrada da porta, ficou por momentos a olhar

para aquela multidão barulhenta, aclamadora, que cantava, chorava e o
saudava tal como ele próprio tinha saudado o exército, parecendo
simultaneamente um rapaz e um homem, mas, mais ainda, um jovem ser
humano emocionado.

Então, de repente, ao vê-lo ali daquela maneira, a multidão enlouqueceu,

tal como também tinha acontecido com os Forjadores da Espada naquela noite
na caverna. O tumulto foi aumentando, a multidão agitava-se e avançava no
auge da sua emoção, ameaçando mesmo esmagá-lo até à morte. Mas as filas de
soldados não davam qualquer hipótese de que alguém chegasse perto dele.

“Sou o filho de Stefan Loristan”, disse Marco para si próprio, a fim de se

manter seguro. “E vou ter com o meu pai. “

Daí a pouco, passando através de uma fila de soldados da guarda, estava

já a dirigir-se para a entrada, onde se encontravam duas enormes carruagens da
corte; e onde, do lado de fora, esperava uma multidão ainda maior e mais
delirante do que a que tinham deixado anteriormente. Ali tornou a saudar,
repetidamente, para todos os lados. Era o que eles tinham visto o Imperador
fazer em Viena. Ele não era um Imperador, mas era o filho de Stefan Loristan,
que tinha trazido o Rei de volta.

- Tu também deves saudá-los - disse para o Rato, quando entraram na

carruagem da corte. - Talvez o meu pai lhes tenha dito alguma coisa. Parece que
eles já te conhecem.

O Rato tinha-se sentado ao lado dele na carruagem, e estremecia

interiormente com um arrebatamento de alegria que ao mesmo tempo se
assemelhava a angústia. As pessoas olhavam e gritavam para ele, ou pelo
menos era o que lhe parecia, quando vislumbrava as suas caras mais de perto
no meio de toda aquela multidão. Talvez Loristan....

- Escuta! - disse Marco de repente, à medida que a carruagem prosseguia o

seu caminho. - Eles estão a dirigir-se-nos em samaviano: “Os portadores do
sinal!”. É o que eles estão a dizer agora: “Os portadores do sinal “.

Eles estavam a ser conduzidos para o palácio. Isso já o Barão Rastka e o

Conde Vorversk tinham explicado no comboio. Sua Majestade queria recebê-los
e Stefan Loristan estava lá também.

A cidade, outrora, tinha sido nobre e majestosa. Tinha qualquer coisa de

oriental, tal como os uniformes e os trajes nacionais. Havia construções
abobadadas, com pilares de pedra branca e mármore, e igrejas, além de grandes
arcos e portões enormes, às suas portas. Mas muitos deles estavam meio em

background image

ruínas, devido à guerra, à negligência e à decadência. Passaram pela catedral,
meio destelhada, brilhando ao sol no meio da grande praça e que, apesar de
todo aquele desastre, era ainda uma das mais bonitas de toda a Europa.

O palácio era tão imponente, à sua maneira, como a branca catedral. Os

larguíssimos degraus de pedra estavam ladeados por soldados, e a enorme
praça, em que se situava, estava cheia de pessoas, que os soldados tentavam
controlar.

“Sou seu filho”, dizia Marco para si próprio, ao descer da carruagem real e

ao encaminhar-se para os degraus, que lhe pareciam tão largos que eram quase
como uma rua. E lá subiu ele, degrau a degrau, com o Rato sempre atrás dele. À
medida que se ia voltando para um e outro lado para saudar aqueles que lhe
faziam reverência quando ele passava, começou a perceber que já tinha visto
anteriormente as suas caras.

- Estes, que estão na guarda de honra da escadaria - disse rapidamente,

sustendo a respiração, para o Rato -, são os Forjadores da Espada!

Quando ele entrou no palácio, viu ricos uniformes por todo o lado e

pessoas que se curvavam quase até ao chão quando ele passava. Ele era ainda
muito jovem para se ver confrontado com uma tal cerimónia real; esperava
todavia que ela não fosse muito longa e que, depois de se ter ajoelhado aos pés
do Rei e beijado a sua mão, pudesse ver o seu pai e ouvir a sua voz.

Foi conduzido por fim, depois de ter passado por

corredores abobadados, às portas de uma sala magnífica, que estavam

abertas de par em par. Quando entrou pareceu-lhe ter à sua frente um longo
corredor de que não via o fim. À medida que ia avançando em direcção ao
estrado adornado, pôde ver muitas pessoas ricamente vestidas, dispostas em
fila. Sentia-se empalidecer com o esforço de toda aquela excitação, e começava a
achar que tudo se estava a passar num sonho, quando as pessoas colocadas de
um e outro lado se inclinavam profundamente e lhe faziam reverências quase
até ao chão.

Apercebeu-se vagamente de que o próprio Rei, de pé, aguardava a sua

chegada. Mas, à medida que avançava e mais perto se encontrava do trono,
cada vez se sentia mais aturdido com toda aquela grandeza e esplendor. As
aclamações e alegria da população, que se ouvia de fora do palácio, fizeram-no
sentir tal deslumbramento que mal conseguia distinguir as caras das pessoas
por quem passava.

- Sua Majestade espera por si - disse uma voz nas suas costas, que parecia

ser a do Barão Rastka. – Vai desmaiar, senhor? Está muito pálido.

Ele controlou-se e levantou os olhos. E nesse mesmo momento, ao

erguê-los de novo, encontrou-se na presença do Rei. Ajoelhou-se imediatamente

background image

e beijou as mãos que se estendiam para ele, com todo o ardor e adoração
próprios de um adolescente.

E então, maravilha das maravilhas, os olhos do Rei eram afinal aqueles

que ele tão ardentemente tinha desejado ver quando estava em Londres à
espera de ordens; as mãos do Rei eram as que ele tantas vezes tinha desejado
sentir no seu ombro durante essa espera.

O Rei era afinal o seu pai! Stefan Loristan, que tinha sido o último dos que

esperaram e trabalharam pela Samávia durante quinhentos anos; o último dos
que tinham nascido reis, mas que nunca reinaram. O seu pai era o Rei!

O relato da história não ficou completo naquela noite, nem nas que se lhe

seguiram. As pessoas sabiam que o Rei e o seu filho estavam ligados por
grandes laços de uma afeição forte e sentida, e que a esta se vinha juntar o amor
que sentiam pelo seu povo.

Tudo o que se sabia da história, foi contado e recontado milhares de vezes,

quer em cabanas, à lareira nas montanhas, ou nos campos e nas florestas, sob as
estrelas.

Mas ninguém sabia exactamente como ela foi contada num certo quarto

real, mas sossegado, do palácio.

A história que relata todas as atribulações relativas à divulgação do

perigoso segredo apenas às pessoas certas, era emocionante e maravilhosa. De
todos os que sabiam que havia um patriota que trabalhava a favor da Samávia,
utilizando todo o seu poder de persuasão e inteligência para conseguir obter
amigos para esta nação infeliz, apenas um sempre soubera que Stefan Loristan
era um pretendente ao trono que, no entanto, nunca fizera qualquer exigência:
ele não queria a coroa, mas sim a libertação final do seu país.

- Não era a coroa! - disse ele aos dois jovens portadores do sinal. - Não era

o trono, mas a vida da minha vida pela Samávia. Foi por isso que eu lutei, e
pelo que nós todos trabalhámos. Se tivesse aparecido um homem inteligente
nos tempos de crise da Samávia, não seria eu que lhe iria lembrar que havia um
Príncipe Desaparecido. Ter-me-ia posto de parte. Mas não apareceu ninguém
assim. E quando o momento crucial chegou, o único homem que sabia o
segredo, revelou-o. Então a Samávia chamou-me e eu respondi.

E dizendo isto pousou a sua mão na farta e escura cabeleira do filho.
- Houve uma coisa de que nunca falámos - disse ele. - Sempre pensei que a

tua mãe morreu por causa das suas grandes preocupações a meu respeito, e
pelo esforço que fazia para as não mostrar. Ela era nova e adorável e sabia que
não havia dia nenhum em que nos separássemos, que tivéssemos a certeza de
que nos tornaríamos a ver, ainda com vida. Quando ela morreu, pediu-me que
lhe prometesse que a tua infância e juventude não seriam atormentadas pelo

background image

conhecimento do que ela achou ser tão terrível de suportar. Eu ter-te- ia, de
qualquer modo, ocultado o segredo, mesmo que ela não mo tivesse implorado.
Nunca quis que soubesses a verdade, até seres homem. Se por acaso eu tivesse
morrido, ser-te-ia entregue um documento que deixaria o meu trabalho nas tuas
mãos e que te teria esclarecido acerca dos meus planos. Terias sabido, então,
que também tu eras um Príncipe Ivor, que devias tomar a teu cargo o teu país e
estar preparado para quando a Samávia te chamasse. Tentei treinar-te para
poderes desempenhar qualquer tarefa. Nunca me desiludiste.

- Majestade - disse o Rato -, eu comecei a perceber, e acho que soube a

verdade naquela noite em que estivemos com a mulher velha no cimo da
montanha. Foi a maneira como ela olhou para Sua Alteza.

- Chama-me Marco - emendou o Príncipe Ivor.
- É mais fácil. Ele foi o meu exército, pai. Os olhos profundos de Stefan

Loristan ficaram cheios de lágrimas.

- Chama-o pelo seu nome - disse ele. - Foste o seu exército e muito mais

quando foi preciso. Foste tu que inventaste o jogo!

- Muito obrigado, Majestade - disse o Rato. - Presta-me uma grande honra!

A minha cabeça estava sempre a trabalhar para que não houvesse nada que
pudesse acontecer sem ser na altura exacta. Quando descemos à caverna e vi os
Forjadores da Espada lançarem-se como loucos sobre ele, soube então que devia
ser verdade. Mas não ousei dizer nada. Sabia que Vossa Majestade queria que
esperássemos, e assim fiz, esperei.

- Tu és um amigo fiel - disse o Rei - e obedeceste sempre a todas as ordens!
A luz clara daquela noite conduziu-os a uma larga varanda de mármore

branco que parecia neve. A intensidade radiosa da Lua cheia iluminava tudo
que se estendia para lá da sua vista, a cidade maravilhosa, mas meio destruída,
a praça do enorme palácio com os seus arcos e estátuas partidas, a catedral sem
telhado, cujo altar se encontrava aberto para o céu. . .

Ali ficaram a olhar tudo isso. Havia uma tal calma que parecia que o

tempo tinha parado.

- E agora? - perguntou o Príncipe Ivor por fim e em voz baixa. - E agora,

pai?

- Grandes coisas vão acontecer, mas cada uma por sua vez - disse o Rei. -

Assim estejamos preparados!


Fim


background image


Wyszukiwarka

Podobne podstrony:
Frances H Burnet Mala księżniczka
Burnett Hodgson Frances Tajemniczy ogród
Burnett Hodgson Frances Mała księżniczka
Burnett Hodgson Frances Mała księżniczka
Burnett Frances Eliza KRAINA BŁĘKITNYCH KWIATÓW
Frances Hoyston Burnett Mała Księżniczka
Hodgson Burnett Frances Kraina błękitnych kwiatów
Burnett Hodgson Frances Mała księżniczka
Burnett Frances Hodgson A Little Princess (21 str)
Frances Hodgson Burnett Mala ksiezniczka
Burnett Frances Hodgson Mała księżniczka
Burnett Frances Eliza Hodgson Mała księżniczka [WolneLek]
Frances Hodgson Burnett Mała księżniczka
Frances Hodgson Burnett Tajemniczy Ogrod
Burnett Frances Hodgson Mała księżniczka
Burnet Frances Dlaczego słońce i księżyc stronią od siebie
Burnett Frances Hodgson The Secret Garden (27 str)

więcej podobnych podstron