Marina S M Barros Alteridade e Diferença Sexual considerações sobre o debate psicanalítico contemporâneo

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Medicina Social

PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA

Alteridade e Diferença Sexual: considerações sobre o

debate psicanalítico contemporâneo

M

ARINA

S

ODRÉ

M

ENDES

B

ARROS



Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção de grau de Mestre em Saúde Coletiva, Curso de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Ciências Humanas e
Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora:

M

ÁRCIA

A

RÁN

Rio de Janeiro

2009

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Marina Sodré Mendes Barros

Alteridade e Diferença Sexual: considerações sobre o debate psicanalítico

contemporâneo

Dissertação apresentada como requisito parcial para

obtenção de grau de Mestre em Saúde Coletiva,

Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,

Ciências Humanas e Saúde do Instituto de Medicina

Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovado em 20 de Março de 2009.

Banca examinadora:

Prof

a

.

Dr

a

. Márcia Ramos Arán (Orientadora)

Instituto de Medicina Social da Uerj

Prof. Dr. Joel Birman

Instituto de Medicina Social da Uerj

Prof

a

.

Dr

a

. Regina Alice Neri

Faculdade de Direito da UCAM/RJ

Prof. Dr. Carlos Augusto Peixoto Júnior

Faculdade de Psicologia da Puc-Rio

Rio de Janeiro

2009

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Para Pedro, pelas provocações.

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AGRADECIMENTOS

À CAPES, pelo financiamento da pesquisa.

À Márcia Arán, agradeço principalmente por insistir que a psicanálise não deve ser intocável.

Ao meu pai, João, e à minha madrasta, Marita, que são companhias fundamentais nos

momentos de tensão profissional. A esta última também pela tradução dos “palavrões”.

À família Sodré, uma vez mais, agradeço por transmitir a curiosidade pelo sujeito. À minha

mãe, Sônia, pelas trocas, pela confiança e pelos mais variados incentivos profissionais. À

minha dinda, Marília, pelas conversas tão precisas, desde sempre.

À Camila, pela generosidade que faz com que me apóie de diversas formas possíveis, ficando

tão perto, mesmo quando longe. Ao Felipe, que não poupou esforços para sustentar o meu

“verão da Travessa” e proporcionou importantes peças da bibliografia deste trabalho. Ao

Guilherme, que viu as visitas de sua irmã se tornarem cada vez mais raras nesses últimos

meses de mestrado e cujos recentes jogos de palavras fizeram com que eu voltasse mais feliz

à pesquisa.

À Sarita Gelbert, pelas apostas.

À Olívia Von der Weid, amiga de todas as horas, e, como não poderia ser surpreendente,

amiga das melhores e das piores horas de uma mestranda. A surpresa ficou reservada ao fato

de ter sido a maior apoiadora da escolha pelo IMS e pelo tema da pesquisa. Agradeço ainda as

discussões travadas sobre Judith Butler pelos bares do bairro. Um último agradecimento, pela

limpeza realizada no texto.

Ao Pedro, que sendo o maior incentivador dos estudos acadêmicos, mas esquecido de seus

tempos de mestrando, nem sempre me deixou trabalhar. Agradeço por não me deixar esquecer

da vida além do mestrado.

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RESUMO

Alteridade e Diferença Sexual: considerações sobre o debate psicanalítico

contemporâneo

A partir da interface entre psicanálise e cultura, este trabalho tem como objetivo analisar o

debate contemporâneo acerca das noções psicanalíticas de alteridade e diferença sexual,

instaurado pelos deslocamentos ocorridos no campo da sexualidade e pelos desafios que estes

impõem à psicanálise. Para isso, propõe-se, em um primeiro momento, examinar a teoria

freudiana sobre a diferença sexual, o que é realizado principalmente a partir das formulações

acerca da sexualidade feminina. Como a construção do complexo de Édipo apresenta-se como

uma tentativa de dar conta da constituição da identidade sexual e da diferença no processo de

subjetivação, traça-se o trajeto do autor desde as primeiras menções ao Édipo até o encontro

com o impasse do feminino, passando pela teoria das identificações como mecanismo

privilegiado de assunção sexual. Em seguida, investiga-se o pensamento de Lacan em relação

ao tema da diferença sexual, desde o seu retorno ao complexo de Édipo e a sua estruturação

em termos de linguagem até as propostas apresentadas em seu último ensino, em que sublinha

o aspecto real da sexuação assim como se valoriza a diferença sexual em termos de gozo.

Finalmente, tendo como pano de fundo a nova cartografia das sexualidades, e como fio

condutor, o diálogo travado entre Judith Butler e Slavoj Žižek, considera-se em que medida a

psicanálise baseia a constituição da alteridade no modelo binário e hierárquico da divisão

sexual, contribuindo para a manutenção normativa do sistema sexo-gênero ou em que medida

a teoria psicanalítica proporciona um deslocamento da alteridade do modelo de diferença

sexual, contribuindo para a sua compreensão enquanto indeterminação e contingência.

Palavras-chave: alteridade – diferença sexual – cultura - subjetividade

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ABSTRACT

Otherness and Sexual Difference: considerations about the contemporary psychoanalitic

debate

This work aims to analyze the current debate about the psychoanalitics concepts of difference

and sexual difference introduced by displacements occurring in the field of sexuality and the

challenges they impose on psychoanalysis from the interface between psychoanalysis and

culture. In order to achieve that it proposes as a beginning to the task to examine the freudian

theory on sexual difference, which the main approach is from the formulations about of

female sexuality. Then, it investigates the thinking of Lacan in relation to the issue of sexual

difference, since its return to Oedipus complex until the proposals presented in his last work.

Finally, taking as background the new cartography of sexualities, and like a thread, the dialog

braked between Judith Butler and Slavoj Žižek, it considers to which extent the

psychoanalysis is the base of constitution of the difference in the binary and hierarchical

division sexual model, contributing to the normative maintenance of sex-gender system or in

which extent psychoanalytic theory provides a displacement of the otherness of the model of

sexual difference, contributing to their understanding as indeterminacy and contingency.

Key-words: otherness – sexual difference – culture - subjectivity

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................1

CAPÍTULO 1: A NOÇÃO DE DIFERENÇA SEXUAL EM FREUD.................................7

1.1 Da teoria da sedução aos primórdios do complexo de Édipo.........................................8

1.2 O esboço de uma dissimetria entre os sexos...................................................................16

1.3 A teoria das identificações............................................................................................27

1.4 A primazia do falo............................................................................................................30

1.5 O feminino como impasse ...............................................................................................35

CAPÍTULO 2: A TEORIA LACANIANA SOBRE O ÉDIPO E A SEXUAÇÃO............42

2.1 Uma breve introdução às contribuições de Lacan....................................................43

2.2 O Édipo como complexo familiar....................................................................................46

2.3 Da estrutura ao gozo ....................................................................................................48

2.4 As fórmulas da sexuação..................................................................................................61

2.5 O real como alteridade radical........................................................................................68

CAPÍTULO 3: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS NOÇÕES PSICANALÍTICAS DE

ALTERIDADE E DIFERENÇA SEXUAL: o debate contemporâneo entre Judith Butler
e Slavoj Žižek
.......................................................................................................................75

3.1 Controvérsias acerca do complexo de Édipo e do conceito de identificação em
Freud
........................................................................................................................................76

3.2 Controvérsias acerca das noções de diferença sexual em Lacan................................90

3.2.1 A análise crítica do simbólico estrutural.....................................................................90

3.2.2 A problematização das fórmulas da sexuação............................................................97

3.3 Diferença sexual formal sem conteúdo e normas de gênero histórico-
contingentes
...........................................................................................................................101

3.4 Ato ético e deslocamentos disruptivos biopolíticos......................................................109

CONSIDERAÇÕES

FINAIS:

ALTERIDADE,

DIFERENÇA

E

SINGULARIDADE:

novos desafios para a psicanálise.........................................................................................115

REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS................................................................................121

A

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar o debate contemporâneo sobre as

noções psicanalíticas de alteridade e diferença sexual, instaurado pelos deslocamentos

ocorridos desde a modernidade no campo da sexualidade e pelos desafios que estes impõem à

psicanálise. Para tanto, inicialmente, apresentaremos as principais teses sobre sexualidade e

diferença no pensamento de Freud e Lacan, apontando para as críticas realizadas no interior

do campo psicanalítico ao modelo tradicional de pensar a diferença. Em um momento

posterior, analisaremos as principais repercussões deste debate na interface entre psicanálise e

cultura, tendo como referência o diálogo realizado por Judith Butler e Slavoj Žižek sobre

normas de gênero e sexuação. Interessa-nos questionar se o modelo da diferença da teoria

psicanalítica deve necessariamente ficar atrelado à questão da diferença sexual ou se é

possível realizar um deslocamento no interior da própria

psicanálise para pensar

“diferentemente a diferença”

1

, ou seja, a partir da noção de alteridade.

Vários autores (Birman,1999; Arán, 2002; Nunes, 2002; Neri 2005) têm discutido

como em alguma medida as teses clássicas da psicanálise equivalem a diferença à experiência

do feminino, ao serem atravessadas pela divisão de gênero vigente na sociedade moderna.

Nessa perspectiva, considera-se que as teorias psicanalíticas sobre a sexualidade feminina e

masculina, concebidas através do conceito de complexo de Édipo e de castração, reiteram o

modelo do dimorfismo sexual, tal como descrito por Thomas Laqueur (2001). A compreensão

da diferença em torno do princípio do “ter” e do “não ter” o falo corresponderia ao modelo

binário e hierárquico dos dois sexos.

1

Expressão utilizada por Arán (2008b), a partir da sugestão de Foucault.

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2

Outra característica da sexualidade infantil inicial é que o órgão

sexual feminino propriamente dito ainda não desempenha nela

qualquer papel: a criança ainda não o descobriu. A ênfase recai

inteiramente no órgão masculino, todo o interesse da criança está

dirigido para a questão de se ele se acha presente ou não. Sabemos

menos acerca da vida sexual de meninas do que de meninos. Mas não

é preciso envergonharmo-nos dessa distinção; afinal de contas, a vida

sexual das mulheres adultas é um “continente negro” para a

psicologia. Mas aprendemos que as meninas sentem profundamente

falta de um órgão sexual que seja de igual valor ao masculino; elas se

consideram por causa disso inferiores, e essa “inveja do pênis” é a

origem de todo um grande número de reações femininas

características (Freud, 1996 [1926]: 205/206).

Segundo Laqueur (2001), o modelo dos dois sexos surge a partir do século XVIII, com o

Iluminismo, para organizar a sociedade em torno das definições de homem - público e mulher

- privado, rompendo com a concepção de sexo único que vigorou durante a Antiguidade até o

século XVII. Baseado em um paradigma teológico metafísico, o modelo do sexo único

compreendia o sexo feminino como homólogo ao masculino, só que imperfeito e inferior. A

visão dominante era a de que a mulher possuía os mesmos órgãos que o homem, porém

internos. Tratado como uma inversão, tal concepção, foi explicada pela menor quantidade de

calor corporal que possuía a mulher, sendo, por esse mesmo motivo, uma versão mais distante

da perfeição do que a versão masculina. O calor, portanto, era tido como o responsável pela

diferença entre homens e mulheres, que, apesar disso, compartilhavam uma única essência.

Ainda de acordo com Laqueur (2001), a partir do modelo do dimorfismo sexual, a

modernidade inaugura a associação da distinção entre homens e mulheres com a diferença

sexual. Baseado em um paradigma cientificista orgânico, o sexo anatômico e biológico passa

a determinar a diferença entre uma essência natural do sexo masculino e outra do sexo

feminino. Os novos ideais de feminilidade e masculinidade são sustentados a partir da

transformação da antiga hierarquia entre os sexos em um discurso biológico e cientificamente

fundado, tornando indistinguíveis a morfologia sexual e o gênero. Nas palavras de Birman, na

modernidade, “as faculdades morais são diretamente derivadas das marcas do organismo”

(Birman, 2002: 09).

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3

É importante destacar que, para Arán (2006), a lógica do dimorfismo sexual está

associada ao princípio da identidade, de modo que a diferença não é abordada em sua

dimensão alteritária, e sim apropriada pela lógica do mesmo. Dessa forma, a experiência

moderna da constituição sócio-cultural do outro é caracterizada pela exclusão da diferença, de

forma que a referência ao feminino é estabelecida de maneira restrita a partir do paradigma

masculino.

No entanto, segundo Arán (2008b), nos últimos cinqüenta anos, vivemos

deslocamentos significativos que constituem uma nova cartografia da sexualidade e da

diferença. Os principais fenômenos constitutivos desta mudança seriam: (1) a escolarização

das mulheres; (2) a entrada da mulher no mercado de trabalho; (3) a separação entre

sexualidade e reprodução; (4) a crise da forma burguesa da família nuclear; (5) uma política

de visibilidade para a homossexualidade; (6) as modificações corporais realizadas por

transgêneros, transexuais e intersexuais (Arán, 2008b: 02). A partir desse novo cenário,

algumas questões são relançadas: haveria na atualidade uma outra concepção de diferença,

não mais restrita à descrição do feminino realizada segundo a lógica do masculino? Entre os

desdobramentos dessa nova cartografia, encontramos espaço para pensar “diferentemente o

diferente”, reconhecendo de fato seu estatuto alteritário? Em que medida a teoria psicanalítica

estabelece uma relação produtiva com as novas formas de manifestação da sexualidade e de

subjetivação e permite a incorporação de um novo modelo para pensar a diferença?

Com as questões propostas, pretendemos desenvolver a pesquisa em três capítulos. No

capítulo 1, iremos percorrer a elaboração da teoria freudiana do complexo de Édipo, tendo em

vista que este conceito é uma resposta de Freud à questão do processo de sexualização e da

constituição do outro em sua diferença no desenvolvimento psíquico do sujeito. Dois

impasses motivam a evolução teórica do complexo desde a sua primeira aparição entre os

conceitos psicanalíticos, quais sejam: o impasse da diferença sexual como anatômica e o da

especificidade da sexualidade feminina. A partir desses dois pontos de investigação, Freud

compõe um quadro teórico em que as noções de identificação e de diferença sexual são

fundamentais para a formulação de uma concepção de sexualidade em termos psíquicos.

Nesse sentido, propõe que a sexualidade não é instintiva e que para tornar-se homem ou

mulher é necessário uma elaboração subjetiva.

As respostas formuladas por Freud em relação à sexualidade feminina nos serão de

grande utilidade, tendo em vista que esse fio teórico se confunde com o desafio de

compreender a constituição da diferença em termos psíquicos. Tamanha indistinção entre os

dois temas é, para alguns autores (Nunes, 2000; Néri, 2005; Arán, 2006), a evidência de que o

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4

modelo freudiano da diferença coincide com o modelo do dimorfismo sexual, ou seja, a noção

de diferença se confunde com as normas hierárquicas de gênero, o que traz como

consequência a reprodução do paradigma masculino e a impossibilidade do feminino ser

definido positivamente.

O lugar crucial conferido por Freud à diferença sexual na constituição do sujeito sofre

sua continuação mais evidente em Lacan, que, por esse mesmo motivo, será objeto de nosso

estudo no segundo capítulo. Partiremos do momento em que o complexo de Édipo freudiano é

revisado pelo autor, adquirindo o status de complexo familiar universal e evidenciado a

reprodução da dominação masculina. Posteriormente, retomaremos o contexto teórico em que

os complexos de Édipo e de castração são reformulados em termos lógicos. Lacan passa a

defender que a sexualização tem duas possibilidades estruturais, uma posição sexual feminina

e outra masculina, e que essas se diferenciam conforme se relacionam com o significante

fálico. Veremos como essa hipótese sugere um modelo transcendental do simbólico, em que

diferença e alteridade ficam coladas ao dualismo masculino-feminino.

A travessia que Lacan percorre do Édipo ao seu “para-além” também será analisada

nesse capítulo, tendo em vista que o autor renuncia ao complexo familiar, adotando uma

formalização do processo de subjetivação em termos de estrutura de linguagem. Nesse

contexto, generaliza-se o fenômeno da castração, anteriormente caracterizado como feminina,

para ambos os sexos, tendo em vista que o conceito passa a indicar a perda de gozo necessária

a todo ser falante.

Deixando de se referir ao Édipo, as fórmulas da sexuação radicalizam a idéia de

sexualidade, rompendo com qualquer concepção biológico-orgânica do corpo humano e da

diferença sexual (Elia, 1995; Žižek, 1999; Soler, 2005). Segundo as proposições das fórmulas,

os sujeitos, se inseridos na linguagem, devem se relacionar com a lógica da castração. No

entanto, há duas maneiras de se relacionar com a mesma. O modo masculino diz respeito

àquele que está todo na função fálica, enquanto que o modo feminino refere-se ao gozo não-

todo inserido na lógica fálica. A hipótese fundamental dessa tese refere-se à divisão dos

sujeitos em dois modos de gozo que independem de suas identidades sexuais ou de seus

órgãos genitais.

A descrição da sexuação em termos de gozo só é possível a partir do gradativo

encobrimento teórico do registro simbólico pelo registro do real. A diferença sexual denotaria

aquilo que faz furo na lógica fálica, ou seja, aquilo que foge à articulação simbólica e

imaginária. O real da diferença sexual é um argumento bastante explorado recentemente por

Žižek (1999), em seu diálogo com Butler (2000).

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5

As críticas quanto à repetição do modelo de diferença baseado no dimorfismo sexual

também recaem sobre o pensamento lacaniano. Do ponto de David-Ménard (1998), Butler

(2002) e de Arán (2006), Lacan recairia em uma concepção universal da diferença sexual, não

reconhecendo seu caráter histórico-contingente. A causa disso, segundo seus críticos, é que o

autor permaneceria preso tanto ao modo masculino de encarar a diferença quanto ao

binarismo hierárquico da divisão sexual.

A partir dos deslocamentos ocorridos desde a modernidade e do estabelecimento de

uma cartografia contemporânea das sexualidades, foi relançado um campo de debate acerca

do estatuto da noção de diferença sexual na psicanálise. Torna-se relevante pensar se a

diferença sexual é reconhecida pelas teorias freudiana e lacaniana enquanto uma formulação

histórico-contingente ou enquanto um modelo transcendental da diferença. A relevância dessa

interrogação se coloca na medida em que a segunda proposição tem funcionado como um

obstáculo às novas (re)configurações das relações sociais e subjetivas (Arán, 2008b).

Ao tomar a psicanálise como objeto de leitura e as teses foucaultianas como referencial

teórico, Butler (2002, 2003) desconstrói conceitos caros à teoria da sexualidade,

demonstrando que a noção de diferença sexual na psicanálise, seja em sua vertente anatômica

ou estrutural, repete um modelo binário e hierárquico tradicional, cuja matriz de sustentação é

a heterossexualidade normativa e as normas de gênero típicas da modernidade. Como

consequência, a constituição do outro torna-se submetida à diferença sexual, o que

fundamenta uma perspectiva patológica acerca das novas formas de subjetivação.

Para Butler (2002, 2003), a psicanálise é um dispositivo

2

que reinstaura o modelo

essencialista da diferença sexual, ou seja, seu discurso é um operador de poder que fomenta

formas de sujeição segundo o estabelecimento de fronteiras entre “gêneros inteligíveis” e

“não-inteligíveis”

3

. O mecanismo de transformar modelos histórico-contingentes da

sexualidade em modelos universais ou transcendentais demonstra a função normativa da

psicanálise.

Em contraposição às considerações de Butler (2002, 2003), Žižek (1999) defende que

a teoria lacaniana da sexuação rompe com qualquer possibilidade de se conceber a

sexualidade em termos normativos, tendo em vista que a relação do sujeito com seu próprio

sexo e com o outro sexo é inserida no registro do real.

2

Na presente pesquisa, o termo “dispositivo” se refere ao conceito foucaultiano.

3

Butler (2002) não se restringe à questão da desigualdade entre os gêneros, incluindo em seu trabalho a

problemática da não-inteligibilidade cultural a qual alguns gêneros são submetidos.

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6

O autor costura sua argumentação baseando-se no mapeamento do que entende ser

uma “confusão teórica” de Butler, qual seja: a confusão entre o imaginário, o simbólico e o

real. Defende, assim, que a autora realiza sua interpretação acerca da psicanálise de acordo

com os sistemas simbólico e imaginário. Até aqui, percebe-se ao menos alguma concordância

entre os autores, pois ambos entendem que a sexualidade se constitui a partir de uma condição

de assujeitamento, com a ressalva de que, para Žižek (1999), essa condição não é exclusiva da

heterossexualidade ou das normas de gênero tradicionais.

Para além desse ponto de concordância, Žižek (1999) empenha-se em demonstrar que

o imaginário e o simbólico não recobrem toda a sexualidade, deixando um furo descoberto, ao

qual dá o nome de real. A seu ver, é nesse ponto, cuja condição é ser vazio de conteúdo, que

podemos situar a diferença sexual. Tal tese sublinha a impossibilidade de se delimitar apenas

simbólica e imaginariamente a diferença. A proposta de compreender a diferença sexual como

real valoriza a parte irrealizável de qualquer operação normativa, de forma que a constituição

da alteridade permanece atrelada à diferença sexual, só que esta tomada em sua vertente real,

ou seja, enquanto diferença sem conteúdo ou, em outras palavras, enquanto encontro do

sujeito com o limite do simbólico.

Sendo assim, no terceiro capítulo, nosso objetivo será o de abarcar as questões

debatidas entre ambos os autores, Butler e Žižek, com o intuito de aproveitar o que esse novo

horizonte de discussão pode contribuir para uma dissociação entre as noções de alteridade e

de diferença sexual em seu aspecto binário e hierárquico. Tal tarefa se impõe a partir dos

desafios que a nova cartografia das sexualidades traz à psicanálise e da conseqüente

necessidade de construção de um novo destino para a diferença, que não o da exclusão.

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CAPÍTULO 1

A NOÇÃO DE DIFERENÇA SEXUAL EM FREUD

Desde os primórdios da psicanálise, Freud conferiu grande importância à sexualidade

para a constituição psíquica do sujeito. Também muito precocemente, passou a compreendê-la

de uma forma pouco usual em seu tempo, não mais restringindo-a às atividades e ao prazer

relacionados especificamente ao aparelho genital. As suas formulações sobre a sexualidade do

ser humano atravessam toda a história do movimento psicanalítico, tendo sido motivadas pela

clínica e pela teoria, em constante movimento. Reconhecido por afastar o conceito de

sexualidade da noção de instinto da biologia, cujo sistema explicativo formula um quadro de

expectativas em que objeto e meta são fixamente pré-concebidos, o autor não produz sua

concepção em uma linha reta e nem evolucionista, o que parece gerar diferentes

interpretações por parte de seus comentadores.

A questão da diferença sexual inserida na obra freudiana é um retrato fidedigno do

movimento nada regular de Freud e das inúmeras releituras que provoca em autores

posteriores. Como o próprio autor declara em 1923, sua observação do desenvolvimento

libidinal do sujeito localizou a preponderância de polaridades sexuais outras que não aquela

da diferença sexual anatômica (Freud, 1996 [1923a]). Mesmo quando a percepção dos

diferentes órgãos genitais acontecia entre as crianças, Freud defendia que essa era objeto de

interpretações e não fonte de informações biológicas sobre a diferença entre homens e

mulheres.

O presente capítulo tem como objetivo reconhecer na teoria freudiana as diversas

noções de diferença sexual, a fim de discutir o quanto se afastam ou se aproximam do modelo

do dimorfismo sexual. A concepção de diferença sexual será estudada especificamente

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8

quando inserida na questão edipiana, o que nos leva a trabalhar também a teoria das

identificações.

1.1 Da teoria da sedução aos primórdios do complexo de Édipo

A expressão complexo de Édipo é publicada por Freud pela primeira vez em 1910, em

seu artigo intitulado Um Tipo Especial de Escolha de Objeto Feita pelos Homens, para dar

nome a uma situação emocional presente na puberdade do jovem do sexo masculino, em que

esse deseja a própria mãe para si e odeia o seu pai como um rival que impede a realização

desse desejo. Neste artigo, o autor descreve um tipo de amor masculino, cuja compreensão

viria da fixação das fantasias no complexo edipiano.

A referência ao tema edipiano na psicanálise é, entretanto, anterior a 1910, aparecendo

desde o seu início, e sendo o complexo concebido principalmente a partir de descobertas

clínicas e da auto-análise em que Freud se empenhou. Um passo importante para a formulação

do conflito edipiano é a passagem da teoria da sedução para a priorização das fantasias

inconscientes, tendo em vista que o que antes era levado em conta como uma realidade

material, passa a ser compreendido como uma realidade psíquica.

A chamada teoria da sedução foi formulada por Freud a partir dos relatos de seus

pacientes que lembravam-se de experiências em que sofriam passivamente investimentos

sexuais vindos da parte de outro, geralmente de um adulto. Em 1893, Freud introduz a idéia

de sedução, atribuindo-lhe um lugar teórico importante até 1897 (Laplanche e Pontalis, 2001).

Desde então, as cenas sexuais, tidas como realidade material, passaram a fazer parte de um

modelo explicativo sobre a origem do mecanismo de recalque e do tratamento da histeria e da

neurose obsessiva, visto que o analista deveria investigar tais vivências de sedução na história

do sujeito.

O desconhecimento sobre a existência de uma sexualidade infantil permite a

formulação de que a cena relembrada em análise não havia sido objeto de recalque na época

do seu acontecimento, porque tendo ocorrido na infância, seria da ordem do “pré-sexual”, ou

seja, o seu cunho sexual seria trazido do exterior, sem que o sujeito pudesse ainda integrá-lo à

experiência. O recalque se daria posteriormente, em um segundo momento, quando a partir de

um novo acontecimento, a lembrança da primeira vivência é evocada e sofre o recalque. Em

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9

outras palavras, a partir de uma excitação endógena desencadeada por um segundo momento,

o primeiro seria objeto do recalque, transformando-se a posteriori em um trauma

4

.

A partir do desenvolvimento progressivo da idéia de sexualidade infantil, o autor passa

a entender as cenas de sedução relatadas em análise como reconstruções fantasísticas do

sujeito; deslocamento decisivo para a história da psicanálise, pois coloca em primeiro plano

noções caras à teoria e à clínica, como as de fantasia inconsciente e de realidade psíquica. Em

uma carta a Fliess, de 21 de Setembro de 1897, Freud declara já não mais acreditar na

“neurótica”, referindo-se à explicação etiológica baseada na teoria da sedução (Freud, 1996

[1897a]); descrença que o leva a valorizar a qualidade fictícia do trauma. Observa, assim, que

seus pacientes fantasiam as cenas de sedução, de forma que essas últimas passam a ser

priorizadas como uma realidade psíquica.

[...] a descoberta comprovada de que, no inconsciente, não há

indicações da realidade, de modo que não se consegue distinguir entre

a verdade e a ficção que é catexizada com o afeto. (Assim, permanecia

em aberta a possibilidade de que a fantasia sexual tivesse

invariavelmente os pais como tema) [parênteses do autor] (Freud,

1996 [1897a]: 310).

Se, por um lado, Freud deu um grande salto abandonando a teoria da sedução e adotando a

idéia de realidade psíquica, por outro lado, elementos essenciais dessa primeira são retomados

e reelaborados ao longo de toda a produção psicanalítica. Entre eles estão: (a) a idéia de que o

trauma só adquire tal sentido no a posteriori, ou seja, a partir de diversos tempos, sendo o

ulterior aquele que retroativamente ativa o recalque das cenas anteriores; (b) na teoria da

sedução, mais precisamente na idéia de que é a “lembrança” da cena que desencadeia o

trauma, e não o acontecimento em si, já podemos reconhecer um sentido de realidade

psíquica; (c) a existência de uma realidade por trás da fantasia é um ponto ao qual Freud

retornará muitas vezes ao longo de sua produção, através da noção de “cenas originárias” ou

“fantasias originárias”, entendendo-as como restos mnêmicos de experiências vividas na

história da espécie humana; (d) o complexo de Édipo já estava sendo construído desde a idéia

da fantasia de sedução (Laplanche e Pontalis, 2001: 471).

4

A noção de trauma vai adquirir nova concepção após a segunda tópica.

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10

O próprio Freud reconhece que, com as fantasias de sedução, tinha “pela primeira vez

encontrado o complexo de Édipo” (Freud, 1925 apud Laplanche e Pontalis, 2001). As

primeiras menções a esse último são contemporâneas da descoberta da fantasia e do abandono

da teoria da sedução, como podemos perceber pela curta distância cronológica entre a carta a

Fliess citada anteriormente e a de 15 de Outubro de 1897, a partir da qual o autor passa a

utilizar a lenda do Rei Édipo de Sófocles em analogia a uma constelação psíquica de

dimensão universal, no que diz respeito ao ser humano: sentir impulsos carinhosos em relação

à mãe e hostis em relação ao pai (Freud, 1996 [1987b]). Desta data até a primeira aparição do

termo complexo de Édipo em 1910, a forma inicial do conceito já era empregada clinicamente

por Freud, inclusive em sua auto-análise.

Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme pelo

pai, e agora considero isso como um evento universal do início da

infância, mesmo que não tão precoce como nas crianças que se

tornaram histéricas. [...] Mas a lenda grega capta uma compulsão que

toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma.

Cada pessoa foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um

Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização

de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de

recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual

(Freud, 1996 [1897b]: 316).

Mezan (2006) chama a atenção para o fato de que o Édipo, no início de sua elaboração

conceitual, é reconhecido como uma constelação psíquica ocorrida na puberdade, pois

enquanto a idéia de anarquia auto-erótica da sexualidade infantil se fez presente, a questão da

escolha de objeto, imbutida na noção de complexo de Édipo, só poderia ser localizada no

momento do advento da organização genital, ou seja, na puberdade.

Em 1912, no texto Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do Amor,

Freud defende a dualidade pulsional da vida erótica, constituída por uma corrente carinhosa,

decorrente da escolha de objeto infantil e da pulsão de auto-conservação, e pela sensual, que

se faz conhecida somente a partir da puberdade e que toma os mesmos objetos da infância

com a diferença de ser uma pulsão sensual, e não mais somente amorosa. Nesse momento

Freud dá continuidade à sua tese de 1905, em que a sexualidade infantil, sob o domínio do

auto-erotismo, opõe-se à sexualidade da fase adulta, em que há escolha de objeto. No auto-

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erotismo, a pulsão, ainda parcial, está ligada ao funcionamento de um órgão ou à excitação de

uma zona erógena, encontrando satisfação não no objeto, mas no próprio órgão. Nessa fase, as

metas e as zonas sexuais são múltiplas, sem que se instaure o primado de uma delas ou de

uma escolha de objeto.

No entanto, no decorrer de seu trabalho, o autor faz um movimento de aproximação

entre a sexualidade infantil e a pós-pubertária, chegando a admitir a existência de uma escolha

de objeto ainda na infância. Essa mudança vai se realizando a partir da elaboração dos

conceitos de identificação e de narcisismo que, segundo Mezan (2006), contribuiu para que o

Édipo fosse pensado em relação aos desejos infantis e ganhasse o lugar de destaque na teoria

psicanalítica. A constituição do ego e os aspectos edipianos vão de tal forma se entrelaçando,

que o autor realiza uma análise da elaboração do Édipo em Freud tendo como eixo de

referência a construção do conceito de identificação.

Com o surgimento dos conceitos de narcisismo e identificação, o

Édipo passa para um plano de maior destaque, pois a escolha

narcisista de objeto, pelas próprias condições da constelação

narcisista, reflete-se sobre o ego, enquanto a identificação, que

inicialmente é identificação com os pais, introduz a possibilidade de

traçar a gênese do ego, na qual paulatinamente os fatores

intersubjetivos e edipianos vão assumindo o papel de molas

fundamentais. É no terreno do ego que o complexo de Édipo assumirá

sua significação completa, e por esta razão, estes passos iniciais da

vinculação dos dois temas revestem-se de importância particular

(Mezan, 2006: 194).

Como veremos no segundo capítulo, Lacan cunhará o termo sexuação a fim de distanciar a

questão da sexualização do registro do ego, de forma a privilegiar os paradoxos desta, e não

os seus aspectos normativos.

Na análise do distúrbio de Schreber, escrita em 1911, a partir de seu livro Memórias de

um Doente dos Nervos,

Freud se refere pela primeira vez ao aspecto negativo do Édipo,

colocando-o no cerne da questão da homossexualidade. No início de seu quadro clínico,

Schreber faz um delírio paranóico e de caráter sexual, em que o seu psiquiatra aparece como

figura persecutória. Mais tarde, o delírio passa a ser de grandeza religiosa, sendo que a

imagem do perseguidor é deslocada do médico para Deus. A partir dessa substituição, o ego

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se reconcilia com a fantasia homossexual, tendo em vista que, a partir de sua tarefa grandiosa,

originaria uma nova raça humana, que estaria “de acordo com a Ordem das Coisas”.

A parte mais essencial de sua missão redentora é ela ter de ser

procedida por sua transformação em mulher. Não se deve supor que

ele deseje ser transformado em mulher; trata-se antes de um ‘dever’

baseado na Ordem das Coisas, ao qual não há possibilidade de fugir,

por mais que, pessoalmente, preferisse permanecer em sua própria

honorável e masculina posição na vida [grifos do autor] (Freud, 1996

[1911]: 27).

A partir desse quadro, Freud coloca que tanto o psiquiatra quanto Deus apareciam nos delírios

de Schreber como substitutos de seu pai, tese que o psicanalista defende a partir de uma série

de associações entre os elementos representativos desse último e o Deus do delírio. Mezan

(2006) chama a atenção para uma nota de rodapé escrita por Freud, ainda nesse texto, em que

este se referia à “fantasia feminina” de Shreber como uma das formas típicas assumidas pelo

complexo nuclear infantil (Freud, 1996 [1911], nota 5, p. 63/34). Apesar de ser apenas

menção, a nota demonstra a valorização por parte de Freud da atitude feminina do paciente

frente ao pai, ou seja, o Édipo negativo, como mola propulsora do distúrbio.

Assim, no caso de Schreber, mais uma vez encontramo-nos no terreno

familiar do complexo paterno. A luta do paciente com Flechsig

revelou-se a ele como um conflito com Deus, e temos portanto de

explicá-la como um conflito infantil com o pai que amava. [...] No

estágio final do delírio de Schreber, vitória magnífica foi alcançada

pelo impulso sexual infantil, pois a voluptuosidade tornou-se temente

a Deus e o próprio Deus (o pai) nunca se cansava de exigi-la dele

[parênteses do autor] (Freud, 1996 [1911]: 63/64).

Esse trecho da interpretação de Freud demonstra que o Édipo invertido já é localizado na

infância do sujeito, de forma que a homossexualidade adulta passa a ser entendida como

conseqüência de uma fixação nessa fase.

O caso Schreber se tornou referência de autores como Birman (1998) e Arán (2006) na

discussão dos aspectos normativos do complexo de Édipo, tendo em vista que Freud explica o

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desenvolvimento da paranóia como defesa contra o que seria uma posição fantasmática

homossexual. O quadro patológico é colocado como um dos destinos possíveis para a

feminilidade, pois funcionaria como um mecanismo para fazer fracassar a sua assunção,

impossibilitando também a constituição da alteridade. Apesar de, mais adiante, Freud

generalizar a vivência do Édipo invertido a todas as crianças, as qualificações “invertido” e

“negativo” subentendem uma formulação evolucionista do sexual, em que se enfatiza a

possibilidade do recalque ou da superação da homossexualidade.

Se em Schreber o destino da feminilidade é a paranóia, a análise de Freud em relação a

Da Vinci (Freud, 1996 [1910a]) se coloca em outros termos. A ligação do artista com a figura

materna possui um aspecto positivo a partir de um “tratamento” pelo recurso da sublimação.

Ou seja, em 1910, reconheceu-se um outro destino para a feminilidade, qual seja, a

sublimação. A importância dessa comparação é que, se por um lado, há uma concepção que

coloca a feminilidade como um aspecto negativo e patogênico para o processo de

subjetivação, por outro lado, há outra concepção avessa, em que a feminilidade erotizada

possibilita o ato criativo. De certa forma o movimento aqui descrito aparece como uma

ambigüidade do texto freudiano em relação à feminilidade.

A questão sobre a escolha de objeto nos homossexuais, em pauta desde a análise sobre

Leonardo Da Vinci, leva Freud a propor uma etapa narcísica da evolução sexual,

intermediária entre o auto-erotismo e o amor de objeto heterossexual, na qual o progenitor de

mesmo sexo é investido libidinalmente.

Na série das escolhas de objeto, assim, a homossexual é a primeira, e,

dadas as condições de emergência da sexualidade infantil, o

progenitor do mesmo sexo é o primeiro a ser investido com a libido

homossexual (Mezan, 2006: 196).

Apesar de considerar importante a elaboração do narcisismo para a teorização da neurose e da

psicose, Arán (2008b) revela a conseqüência dessa teoria para uma concepção excludente da

homossexualidade. Enquanto a libido objetal é colocada em termos estritamente

heterossexuais, a homossexualidade fica associada a uma fixação narcísica, o que confere a

ela um estatuto patológico de impossibilidade de reconhecimento da diferença.

Em 1914, no artigo Sobre o Narcisismo: uma introdução, o autor insere o conceito já

trabalhado clinicamente no conjunto da teoria psicanalítica, inaugurando uma nova

formulação da dualidade pulsional. Se anteriormente as pulsões haviam sido divididas entre as

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sexuais e as de autoconservação, com a introdução do conceito de narcisismo, é a própria

idéia de pulsão sexual que é dividida entre duas escolhas de objeto e dois modos de satisfação

da libido:

Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais –

ele próprio e a mulher que cuida dele – e ao fazê-lo estamos

postulando a existência de um narcisismo primário em todos, o qual,

em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua

escolha objetal (Freud, 1996[1914]: 95).

Há, assim, a escolha objetal por apoio, resultante da transformação da necessidade orgânica

em função sexual do desejo, e a escolha narcísica, em que a pulsão se volta para o eu, para a

própria imagem do sujeito. Tal divisão é a base em que se apóia outra distinção, a libido

objetal e a libido do ego, além de uma expansiva relação entre elas:

[...] [O] ponto mais importante desta teoria do narcisismo não é tanto a

divisão que ela implica, mas a ligação indissolúvel que estabelece

entre libido objetal e libido do eu (André, 1998:109).

A partir da análise realizada sobre os escritos de Schreber, Freud compreende os

investimentos libidinais segundo a forma como operam entre o mundo externo e o próprio ego

do sujeito. No caso de uma psicose, ou neurose narcísica, por exemplo, a libido afastada dos

objetos externos é dirigida para o ego, enquanto em uma pessoa apaixonada é comum o

procedimento inverso, desinvestimento do ego em favor de uma catexia objetal. O autor

anuncia, assim, uma espécie de antítese entre a libido do ego e a objetal: “Quanto mais uma é

empregada, mais a outra se esvazia” (Freud, 1999 [1914]: 83).

Em 1917, a partir do esclarecimento da dinâmica do processo melancólico, em que

uma catexia objetal é substituída por uma identificação, a interação entre libido objetal e

libido do eu se expande ainda mais, de modo que a idéia de narcisismo aparece estreitamente

relacionada com a de identificação. Designando a tomada do ego como um objeto de amor, o

narcisismo se dá em uma etapa contemporânea à formação do ego, que, por sua vez, em 1917,

é relacionada com o conceito de identificação, de onde se conclui que “o narcisismo nada

mais é do que uma identificação narcísica com o objeto” (Laplanche e Pontalis, 2001: 288).

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Mostramos em outro ponto que a identificação é uma etapa preliminar

da escolha objetal, que é a primeira forma – e uma forma expressa de

maneira ambivalente – pela qual o ego escolhe um objeto. O ego

deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral

ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja

fazer isso devorando-o (Freud, 1996 [1917]: 255).

Em outras palavras, a catexia objetal é realizada sobre uma base narcisista, de modo que o

desinvestimento do objeto faz com que a libido livre se dirija ao ego, reativando o narcisismo.

A identificação narcísica é um substituto da catexia objetal, o que se torna possível pela

regressão dessa última à fase oral da libido.

Freud conclui que em última instância a libido do eu envolve a libido

de objeto, de tal modo que o sujeito só pode visar seu objeto sexual

através de sua própria imagem (André,1998: 109).

A evolução dos conceitos de narcisismo e de identificação possibilita uma descrição dos

efeitos do complexo de Édipo em termos de substituição dos laços com os progenitores por

identificações, operações que vão adquirindo em Freud um valor central na constituição do

sujeito.

Dando continuidade à análise de Mezan (2006), o texto do caso clínico do “Homem

Dos Lobos” se torna essencial para visualizarmos esse movimento teórico em que se formula

a substituição dos laços parentais por identificações. Freud valoriza na análise do caso o fato

de que, aos três anos de idade o menino sofreu uma sedução por parte da irmã (Freud, 1996

[1918]). Apesar de ter recusado a irmã como objeto, reteve dessa experiência a atitude

passiva. Somado a isso, um outro episódio ganha destaque no desenvolvimento do menino:

em uma tentativa de seduzir a governanta, essa lhe repreende com uma ameaça de castração, o

que provoca no desenvolvimento libidinal da criança um abandono da genitalidade na qual já

estava inserida, e um retorno à fase sádico-anal. A passagem de volta a uma fase mais

primitiva da organização sexual fez com que o menino investisse libidinalmente em sua

“primeira e mais primitiva escolha de objeto”: no pai (Freud, 1996 [1918]: 27).

O caso clínico é esquematizado pelo psicanalista da seguinte forma: a partir da

sedução da irmã, a libido passiva do menino se tornou característica, deslocando-se da

governanta até seu pai, fazendo preponderar o prazer masoquista. A ameaça de castração

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realizada pela governanta impediu que a tendência passiva do “Homem dos Lobos” frente ao

pai constituísse uma organização genital marcada pela feminilidade e pela natureza

homossexual. Nesse caso, o Édipo invertido foi reprimido pela força da libido narcísica, já

que a condição para obter a satisfação sexual do pai seria a castração, o que seria uma ferida

narcísica.

A ambigüidade do “Homem dos Lobos” em relação a seu pai é bastante ilustrada no

caso clínico escrito por Freud: por um lado, o vínculo afetivo, por outro, a hostilidade e a

rivalidade. Mesmo não priorizando a ambigüidade do vínculo materno, a análise do Édipo do

“Homem dos Lobos” torna necessário seu formato completo; sobre um mesmo objeto recaem

tanto os impulsos amorosos quanto os hostis.

1.2 O esboço de uma dissimetria entre os sexos

A forma completa do complexo de Édipo traz à tona a questão da ambigüidade da

criança frente aos progenitores, visto que ambos são objetos tanto de amor quanto de

rivalidade, o que acaba por complexificar a compreensão dos mecanismos identificatórios

pelos quais a criança passa. É justamente em torno do conceito de identificação, ainda

incipiente na teoria freudiana, que Mezan (2006) trabalhará a questão da diferença sexual

compreendida no artigo sobre as fantasias sádicas. Se até aqui os elementos do Édipo foram

retirados da sexualidade masculina, impasses sobre o desenvolvimento sexual da menina

começam a se impor.

O comentador divide a evolução do pensamento freudiano acerca do complexo de

Édipo em quatro fases, distinguindo o início da terceira justamente com a inauguração das

questões sobre a situação da menina no triângulo edipiano, destacadas em dois textos: Uma

Criança é Espancada

(1996 [1919]) e A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa

Mulher

(1996 [1920]). Mais uma vez, os temas dos artigos são retirados da clínica.

O primeiro texto é iniciado com a constatação de Freud de que é comum ouvir de seus

pacientes o relato de que, por volta dos cinco anos de idade, eram tomados por uma fantasia

em que assistiam a uma criança sendo espancada. A comunicação dessa fantasia não era

possível sem um longo processo analítico, em que resistências deveriam ser ultrapassadas,

inclusive a vergonha em relatá-la. Esse aspecto de resistência que necessariamente

acompanhava a declaração da fantasia fez com que o psicanalista a entendesse como um

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substituto para o prazer que fora encoberto pela amnésia infantil, ou seja, um prazer associado

ao desenvolvimento libidinal do sujeito no período entre dois e cinco anos de idade. A

fantasia relembrada foi tratada por Freud como um relato indicativo da existência de outras

fantasias reprimidas, o que o leva a iniciar uma recomposição da mesma em etapas.

O trabalho realizado coloca em jogo muitas questões importantes à psicanálise, mas a

descoberta de Freud que nos cabe nesse momento se refere ao fato de que o sexo do sujeito

influencia na sua constituição fantasmática. Nesse sentido, o texto abarca a questão da

diferença sexual.

O autor inicia a reconstrução da fantasia a partir de suas pacientes do sexo feminino e a

divide em três etapas. A primeira é localizada na infância precoce do sujeito e aparece em

análise como “uma criança é espancada”. Em princípio a paciente identifica o autor da

agressão apenas como sendo um adulto que, com o trabalho analítico, é reconhecido

posteriormente como o seu próprio pai, transformando o relato em algo do tipo “o meu pai

está batendo na criança”. Outra informação também se acrescenta em relação à criança que

sofre a agressão: trata-se de uma criança odiada pela autora da fantasia. Nesse momento, não

pode ser inferida nenhuma relação entre o sexo da criança que apanha com o sexo feminino

da paciente, o que quer dizer que o primeiro variou sem grandes conseqüências.

Freud se pergunta se a fantasia aqui pode ser considerada sádica, embora a autora não

apareça na cena praticando a agressão. Por outro lado, não parece ter dúvidas quanto à

natureza sexual presente já nessa etapa. Tal observação o leva a associar a fantasia de

espancamento a uma escolha de objeto incestuosa, ou seja, ligada ao complexo parental, ao

Édipo. O autor interpreta o conteúdo e significado da fantasia nessa fase como “o meu pai

bate na criança que eu odeio. O meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim”. A afeição

edipiana da menina ao próprio pai é gratificada pela fantasia de espancamento.

A fantasia obviamente gratifica o ciúme da criança e depende do lado

erótico da sua vida: mas é, também, poderosamente reforçada pelos

interesses egoístas da criança. Resta, portanto, a dúvida quanto a saber

se a fantasia pode ser descrita como puramente ‘sexual’, ou se

podemos arriscar-nos a chamá-la de ‘sádica’. Como é sabido, todos os

sinais sobre os quais nos acostumamos a basear as nossas distinções,

tendem a perder a clareza à medida em que nos aproximamos da

fonte. Assim, talvez possamos dizer, em termos que recordam a

profecia feita pelas Três Feiticeiras a Banquo: ‘Não claramente

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sexual, nem sádica, em si, mas ainda assim a natureza da qual ambos

os impulsos surgirão depois’ (Freud, 1996 [1919]: 202/203).

Segundo Mezan (2006), esse trecho do texto freudiano indica que a menina, na época da

primeira fantasia, encontra-se ainda sob o domínio do narcisismo, visto que as pulsões de

autoconservação se encontram com as sexuais. Por outro lado, o caráter sádico dessa etapa

provém da fase sádico-anal do desenvolvimento, que também já se faz presente, retratada na

realização de uma escolha de objeto e nas manifestações de agressividade.

Na segunda etapa da reconstituição o autor da agressão ainda é o pai da paciente, mas

a criança em quem ele bate já não é mais a mesma. Aqui, a criança que sofre a agressão é a

própria autora da fantasia, o que leva Freud a apontar para o caráter masoquista dessa fase. A

fantasia “estou sendo espancada pelo meu pai” é tida pelo psicanalista como a mais

significativa entre as outras duas, não podendo se tornar consciente, sendo considerada,

portanto, uma construção da paciente em análise. A transformação do sadismo, presente na

primeira etapa, em masoquismo, expresso aqui, é explicada por Freud da seguinte forma: há

um sentimento de culpa por trás de qualquer conversão do sadismo em masoquismo. A partir

desta tese sobre o sentimento de culpa, o autor coloca em questão o mecanismo da repressão e

os seus motivos.

“O meu pai me ama”, fantasia implícita na primeira fase, expressa a ligação afetiva e

também genital da menina ao pai, situada em uma época precoce da infância. Trata-se, então,

de um amor incestuoso da criança, cujo destino, pontua Freud nessa época, será o seu

fracasso. O autor afirma não saber qual motivo específico leva à repressão da ligação

incestuosa, mas diz que é inevitável, por fatores externos e internos. Inclui entre tais fatores a

repetição da história da humanidade no plano do desenvolvimento individual.

O mais provável é que eles (os casos de amor incestuosos) passem,

porque o seu período acabou, porque as crianças ingressam numa

nova fase de desenvolvimento, na qual são compelidas a recapitular, a

partir da história da humanidade, a repressão de uma escolha objetal

incestuosa, tal como, numa etapa anterior, foram obrigadas a efetuar

uma escolha objetal dessa mesma natureza [parênteses nossos] (Freud,

1996 [1919]: 204).

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No entanto, tais desejos da menina em relação ao pai permanecem no inconsciente, o que

produz o sentimento de culpa que inverte a fantasia “meu pai só ama a mim, pois bate em

outra criança” para “meu pai não me ama, pois me bate”. A repressão que incide sobre o amor

incestuoso transforma sua representação psíquica em um significado inconsciente e, em

paralelo, ativa uma regressão da libido para uma organização sexual anterior à fase genital em

que se encontrava, ou seja, para a sádico-anal. Isso significa dizer que a fantasia de

espancamento do próprio sujeito está a serviço do sentimento de culpa e também do amor

sexual, sendo fonte de excitação sexual para o sujeito.

A terceira etapa da reconstituição de Freud corresponde à primeira versão da fantasia

de espancamento trazida à análise. Aqui, o autor da agressão é variável, podendo até ser

indeterminado, mas é um substituto do pai. Quem cria a fantasia aparece como espectador da

cena, em que meninos estão sendo espancados. A fantasia pode ainda estar disfarçada por

outras elaborações, como por exemplo a substituição da agressão física por humilhações. O

caráter desta etapa é sádico, embora a sua satisfação seja masoquista, tendo em vista que o

masoquismo evidente na segunda etapa permanece ativo no inconsciente. Há, portanto, uma

excitação sexual característica, que proporciona uma satisfação masturbartória ao sujeito.

A fantasia de espancamento dos pacientes do sexo masculino e a sua reconstrução em

análise são, em alguns aspectos, distintas às das mulheres. Freud acaba trabalhando a situação

fantasmática dos meninos em referência à elaboração realizada do caso feminino, o que acaba

por impossibilitar sua sistematização clara. Esta aparente “confusão” com a correspondência

das fases masculinas e femininas se deve a algo que vai ficando cada vez mais evidente ao

longo do texto: não há um paralelo completo entre a fantasia de espancamento nas meninas e

nos meninos.

No caso dos pacientes do sexo masculino, pode-se notar a existência de uma fantasia

relembrada e de uma etapa preliminar a essa. O autor relata não ter notícias sobre um estágio

sádico da fantasia de espancamento no menino que fizesse paralelo com a etapa inicial da

fantasia feminina. O esquema masculino é colocado da seguinte maneira: a primeira fantasia a

ser reconhecida é aquela trazida pelo paciente à análise, qual seja, a fantasia de ser espancado

pela própria mãe. No entanto, Freud declara a existência de uma outra fantasia, anterior a

relembrada, em que o menino está sendo agredido por seu pai. O conteúdo fantasmático que

primeiro chega à análise é, na verdade, a segunda etapa da fantasia.

A origem da fantasia masculina é a cena “sou espancado pelo meu pai” e o seu

significado é “sou amado pelo meu pai”. Significado e conteúdo se relacionam da seguinte

forma: ser espancado equivale a ser amado, segundo a conversão pela via regressiva do

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sentido genital para o sádico-anal. Trata-se de uma fantasia inconsciente, cujo acesso à

consciência se dá através de outro formato, qual seja, “sou espancado pela minha mãe”.

Embora esta última dê continuidade ao caráter masoquista e ao significado genital da primeira

fantasia, apresenta uma inovação, pois, havendo uma diferença sexual entre agressor e vítima,

o menino aparece em uma atitude passiva sem, no entanto, realizar uma escolha de objeto

homossexual. “Estou sendo espancado pelo meu pai”, ao significar “sou amado pelo meu

pai”, sofre regressão e transforma-se em “estou sendo espancado pela minha mãe”. Freud

conclui que a fantasia de espancamento do menino é passiva desde a sua origem, sendo

ativada pela relação edipiana com o pai.

A única etapa masoquista da fantasia feminina, por causa da intensidade da repressão

do seu conteúdo incestuoso e genital - “sou espancada pelo meu pai equivale a dizer que sou

amada por ele” -, permanece invariavelmente inconsciente, de forma que Freud tem acesso a

ela pelas construções analíticas. O mesmo não é verdadeiro em relação à fantasia masoquista

masculina de ser espancado pela mãe, o que Freud explica da seguinte forma: no caso da

menina, o sentimento de culpa pelo amor incestuoso seria satisfeito por sua repressão e pela

regressão da libido à organização sádico-anal; já no caso dos meninos, haveria apenas a

necessidade da regressão. Não havendo repressão, a fantasia pode se tornar consciente. Por

outro lado, a situação fantasmática em que o sujeito do sexo masculino é espancado pelo pai

também permanece inconsciente. O desejo do menino pelo pai só aparece na fantasia

modulado pela culpa e pelo masoquismo, fatores ocasionados pela ação, aí sim repressiva, da

libido narcísica.

A fantasia de espancamento no menino é, portanto, passiva desde o

começo e deriva de uma atitude feminina em relação ao pai.

Corresponde ao complexo de Édipo tal como a fantasia feminina (a da

menina); apenas a relação paralela que esperávamos encontrar entre as

duas, deve ser abandonada em favor de um caráter comum de outra

natureza. Em ambos os casos, a fantasia de espancamento tem sua

origem numa relação incestuosa com o pai

[grifo e parênteses do

autor] (Freud 1996 [1919]: 213).

Como vimos, tanto na etapa original das mulheres quanto na dos homens, o autor da agressão

é invariavelmente o pai do paciente, o que leva Freud à conclusão de que a fantasia tem como

ponto de partida algo que não varia conforme o sexo de quem a produz: a ligação incestuosa

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com o pai. Este ponto em comum entre as fantasias masculina e feminina leva Freud a

valorizar uma outra diferença entre elas, o fato de que se uma menina toma seu pai como

objeto amoroso, trata-se de uma situação edipiana positiva; porém, o vínculo amoroso do

menino com seu pai corresponde a uma atitude edipiana invertida.

Ajudará a tornar as coisas mais claras se, nesse ponto, enumero as

demais similaridades e diferenças entre as fantasias de espancamento

entre ambos os sexos. No caso da menina, a fantasia masoquista

inconsciente parte da atitude edipiana normal; no caso do menino,

parte da atitude invertida, na qual o pai é tomado como objeto de amor

(Freud, 1996 [1919]: 213).

A noção de Édipo invertido é retomada por críticos da psicanálise como um dos aspectos

normativos da concepção do complexo. Isto porque funda a relação edipiana da criança com o

progenitor de sexo oposto como o protótipo de toda relação, o modelo. Já a relação do infante

com o progenitor de mesmo sexo fica atrelada à noção de inversão ou de negatividade, o que

confere a ela e aos seus possíveis efeitos para o processo subjetivo e para a identidade sexual,

um lugar hierárquico inferior em relação à ligação edipiana positiva. Sob o ponto de vista de

Butler (2003), a teoria do complexo de Édipo demonstraria o compromisso ideológico da

psicanálise com a diferença sexual.

Mezan (2006) defende que a inversão do objeto incestuoso, no caso do menino, deve

ser explicada pelo papel desempenhado pela identificação na construção da fantasia. Embora

o conceito de identificação ainda estivesse em elaboração no ano de 1919, o autor o localiza

justamente naquilo que distingue as fantasias de meninos e meninas.

A discussão das fantasias sádicas, em 1919, desemboca na

transposição do momento edipiano para a primeira infância, e a

identificação desempenha papel crucial na gênese da fantasia em cada

um dos sexos: presente no menino e ausente na menina, é em torno

dela que se pode construir o caminho da sexualidade infantil (Mezan,

2006: 206).

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A partir da análise de Schreber, o autor sinaliza que a escolha do pai como objeto de desejo

pelo menino só se faz possível a partir de uma identificação primitiva, mecanismo que não

estaria presente no caso das fantasias femininas.

Por sua vez, a fantasia das meninas parece ter uma complicação a mais na terceira

etapa, quando elas mantêm o sexo de quem bate, mas mudam o sexo de quem é espancado:

invariavelmente são crianças do sexo masculino. Partindo da idéia de que as crianças

espancadas são substitutas daquela que produz a fantasia, então, as meninas “mudam de sexo”

entre a segunda e a terceira fase. Ao se afastarem da afeição pelo pai e da organização genital,

abandonam o papel feminino, adotando o que Freud denominou de complexo de

masculinidade. Em fantasia, a menina se transforma em homem, porém, sem se tornar ativa à

maneira masculina. O destino desse complexo de masculinidade no desenvolvimento da

sexualidade feminina passa a oferecer um enigma clínico e teórico à psicanálise.

De fato, a partir de “Uma Criança é Espancada”, todo o problema é

saber como a menina pode se orientar corretamente na sua vida sexual

se sua fantasia, cicatriz do Édipo, a conduz para uma posição

masculina, ou seja, lhe aponta a via da homossexualidade. Pois Freud

é claro nesse ponto. No capítulo VI de “Uma Criança é Espancada”,

ele escreve que é numa troca de sexo que resulta a fantasia feminina,

troca que se opõe radicalmente à feminilidade que se julgava que as

meninas faziam reconhecer pelo pai no Édipo [grifo do autor] (André,

1998: 160).

O embaraço freudiano acerca do complexo de masculinidade evidencia a suposição de que

existe uma verdadeira feminilidade a ser atingida pela menina. Tal expectativa dirige o

investimento teórico de Freud para a questão da diferença sexual, que passa a ter uma

importância crucial para o desenvolvimento da neurose. A hipótese de que o Édipo da menina

fosse análogo ao do menino, invertendo-se apenas o sexo dos progenitores, vai-se

falsificando, e o formato completo do complexo de Édipo vai mostrando os seus impasses:

por que a fantasia da menina resulta em uma troca de sexo e qual é a dimensão dessa troca

para a feminilização da mulher?

Freud sugere que as sua observações clínicas colocadas no texto Uma Criança é

Espancada

poderiam ampliar a compreensão das perversões sexuais, tal como o subtítulo do

artigo faz entender – “uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais”. Em

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23

1919, o destino normal do complexo de Édipo era tido como um desaparecimento sem

resquícios, tese que confere um caráter de relativa patologia à fantasia de espancamento. A

ligação edipiana mal resolvida é substituída por essa, que por consistir em uma “cicatriz” da

primeira, é inserida no âmbito da anormalidade. Freud traz à tona a questão que se torna

fundamental a partir daí sobre o papel do complexo de Édipo e da sexualidade infantil para o

desenvolvimento tanto das neuroses quanto das perversões.

Se a fantasia sádica é entendida como um resquício do complexo parental, este já

aparece aqui deslocado para a infância precoce do sujeito, o que o confere um valor

estruturante para a constituição psíquica do sujeito, seja no plano pulsional ou no plano do

ego. Estando o ego intrinsecamente relacionado ao conceito de identificação, torna-se

imprescindível seu desenvolvimento, que, no que se refere ao complexo de Édipo, expande a

relação da criança com seus pais para além da escolha de objeto, e possibilita ainda o

deslocamento do complexo da puberdade para a infância. Adquirindo o valor de elemento

infantil, o Édipo passa ser considerado eixo fundamental da teoria psicanalítica.

Para Tort (2005 apud Arán, 2008b), o complexo de Édipo é uma noção interessante

enquanto pensado como um momento de passagem a ser ultrapassado e destruído pelo sujeito;

formulação feita pelo próprio Freud em certos contextos teóricos. Isso porque seu efeito

normativo teria menor força do que quando adquire uma função estrutural que permite a

entrada do sujeito na cultura e na civilização, ou melhor, do que quando adquire uma

conotação de condição para a subjetivação. Como veremos no segundo capítulo, essa

concepção estrutural do complexo aparece mais evidente a partir do pensamento de Lacan.

No ano de 1920, Freud escreve o caso clínico da jovem homossexual, publicado como

A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher.

Esse artigo é um marco no

que se refere à questão da sexualidade feminina, pois indica a existência e a importância de

uma relação amorosa anterior ao Édipo constituída pela ligação primária da menina com sua

mãe. Como de costume, Freud inicia a construção de uma tese generalizável a partir do que a

dita “patologia” lhe indica. Apesar do diagnóstico da jovem paciente de Freud ser bastante

discutido no meio psicanalítico, nota-se que o conhecimento sobre o pré-édipo,

posteriormente expandido para a totalidade da sexualidade feminina, é pinçado a partir de um

caso clínico contemplado pelo psicanalista segundo a questão homossexual, ou o Édipo

invertido.

A jovem em questão é levada a Freud pelo pai, cuja queixa residia nas tendências

homossexuais da filha de dezoito anos, que se encontrava enamorada por uma dama dez anos

mais velha, de duvidosa reputação. Ocupando-se em bajular a dama, a jovem realizava

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24

atitudes contraditórias em relação aos pais, sendo ora indiferente em tornar público seu

encantamento, ora escondendo suas intenções em encontrar o objeto de amor. Por sua vez,

seus pais reagem a tal enamoramento de formas bastante distintas: o pai se mostrando

bastante irritado e desagradado, enquanto sua mãe se mostra tolerante, chegando mesmo a ser

confidente da filha.

A procura pelo tratamento foi desencadeada por uma tentativa de suicídio por parte da

jovem, suscitada por um encontro entre seu pai e ela, quando estava na companhia da dama.

Essa última, ao saber de quem se tratava o senhor que passara por elas com olhar furioso, fez

uma tentativa de rompimento com a paciente de Freud, ordenando a esta que não mais a

procurasse. Logo em seguida, a jovem se jogou em direção a um muro, saltando para a linha

ferroviária. Tal atitude influencia tanto um abrandamento da oposição dos pais em relação ao

enamoramento da filha, como também uma maior simpatia por parte da dama, que

anteriormente não permitia grandes aproximações.

Com o material fornecido pela análise, o psicanalista identifica que, na infância, a

paciente passou pelo complexo de Édipo normal, tomando o pai como objeto de amor.

Posteriormente, substituiu o pai pelo irmão mais velho. Na puberdade, apresentara uma feição

especial por um menino com idade inferior a três anos, o que proporcionou o estabelecimento

de uma amizade entre os pais deste e a jovem. Freud explica o apego a essa criança como o

representante de um desejo edipiano normal de ser mãe, o que para o psicanalista se esvai a

partir da nova gravidez de sua mãe. O interesse da jovem se dirige, então, para mulheres

maduras e de aparência jovem. Inicialmente, era comum que fossem mães, condição que não

se satisfez no caso da dama. De qualquer forma, Freud inicia sua explicação a partir de uma

revelação feita pela própria paciente, a de que a mulher amada era uma substituta de sua

própria mãe. Ao mesmo tempo, indica ainda a paciente, a figura esbelta da dama fazia com

que ela se lembrasse do seu irmão mais velho. Trata-se, então, diz Freud, de uma escolha

amorosa baseada tanto em um ideal feminino quanto masculino, o que demonstra uma certa

conjugação das tendências homo e heterossexuais.

O analista, a partir dessas indicações, bem como da influência da última gravidez da

mãe para o desenvolvimento libidinal da filha, realiza a seguinte interpretação:

No exato período em que a jovem experimentava a revivescência de

seu complexo de Édipo infantil, na puberdade, sofreu seu grande

desapontamento. Tornou-se profundamente cônscia do seu desejo de

possuir um filho, um filho homem; seu desejo de ter o filho de seu pai

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25

e uma imagem dele, na consciência ela não podia conhecer. Que

sucedeu depois? Não foi ela quem teve filho, mas sua rival

inconscientemente odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e

amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens. Passado

esse primeiro grande revés, abjurou de sua feminidade e procurou

outro objetivo para sua libido [grifo do autor] (Freud, 1996 [1920]:

169).

O Édipo vivido na infância sofre uma inversão na puberdade a partir da decepção com o pai,

ocasionando a transformação da menina em homem e a tomada da mãe como objeto de amor.

Como coloca André (1998), a gravidez da mãe e a desilusão frente ao pai são fatores que

transformam não só a identidade sexual e o objeto amoroso da paciente, como também o

modo de amar, que se torna caracteristicamente masculino. Na terceira parte do artigo, Freud

faz suas observações quanto às condições de amor da jovem, quer dizer, ocupa-se daquilo que

parece se repetir em todos os objetos de amor que a paciente tivera até então, e insiste no fato

de que a moça nunca se apaixonara por qualquer mulher homossexual, chegando até mesmo a

negar as investidas de uma amiga de sua idade. Por outro lado, a má reputação da dama

amada aparece para o analista como requisito para a admiração, levando-o a valorizar ainda as

características da singela relação estabelecida entre as duas, tais como a humildade da jovem

frente à amada, não pedindo nada a ela, e, ao mesmo tempo, ficando satisfeita com poucos e

pequenos sinais de apreço, além da completa não-realização de seus desejos mais sensuais.

Freud qualifica tais atitudes amorosas da jovem como o “tipo masculino de amor”.

Retomando o texto de 1910, Um Tipo Especial de Escolha de Objeto Feita pelos Homens,

reconhece nas fantasias amorosas da moça o mesmo plano de resgatar e salvar a mulher-

objeto de amor da má reputação, importando menos ser amada do que o papel do amante.

Mesmo hesitante entre a hipótese de uma homossexualidade congênita ou adquirida, o

autor vai fundo em sua interpretação e, da mesma forma que explicou o motivo para que

alguns homens fizessem essa escolha amorosa por uma mulher “cocotte”, realizou-o para sua

jovem paciente: a corrente homossexual, que a fazia amar como um homem, provinha de uma

fixação infantil na mãe. Possivelmente, diz Freud, os fatores externos que contribuíram para a

intensa fixação materna podem ser localizados nas negligências da mãe, que ainda jovem

parecia pouco disposta a “abandonar seus próprios direitos à atração”, além de tratar a filha de

forma inteiramente distinta dos filhos, sendo apenas estes os merecedores de excessivas

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26

indulgências, e ainda na forte inveja do pênis sentida pela moça, quando ainda menina

comparou seu órgão genital com o do irmão.

O pai da paciente aparece em seu relato como uma figura central, fazendo parecer

muitas vezes a Freud que a homossexualidade da moça escondia uma atitude de desafio e

vingança contra ele. Se por um lado a jovem expunha muito em análise a sua relação com o

pai, por outro lado, mostrava-se bastante reservada quanto à sua mãe, o que mais tarde será

tido como prova de que a inclinação pelo pai oculta um amor primordial pela mãe. É essa

linha de raciocínio aberta no texto de 1920 que será cada vez mais desenvolvido por Freud,

até a formalização, em 1925, da chama fase pré-edípica para a caracterização da sexualidade

feminina.

As reflexões a que Freud é conduzido por esse caso comportam uma

modificação fundamental do ponto de vista defendido em “Uma

Criança é Espancada”. E esta modificação vai permitir resolver o

ponto obscuro desse texto, ou seja, a ligação entre a posição edipiana

inicial e a identificação masculina final. O caso da jovem

homossexual mostra que a perversão não é simplesmente derivada do

complexo de Édipo, enquanto fixação paterna, mas que ela se apóia

sobretudo numa fixação amorosa anterior, que Freud descobre aqui –

a fixação primária com a mãe (André, 1998: 160).

Outra via de reflexão inaugurada pelo texto da jovem homossexual diz respeito à distinção e a

independência entre “hermafroditismo físico” e “mental”. Em outras palavras, Freud sublinha

que o exame da vida amorosa do sujeito consta de três conjuntos de características, os

caracteres sexuais físicos, os caracteres sexuais mentais e, ainda, o tipo de escolha de objeto.

A “identidade sexual” dizendo respeito à posição que adota no amor, masculina ou feminina,

e a “escolha de objeto” referindo-se à questão “o sujeito ama um objeto masculino ou

feminino?” (André, 1998: 163).

Para Arán (2006), o caso da jovem homossexual é trabalhado por Freud a partir de um

modelo normativo da psicanálise, já que associa em última instância a “inversão” edipiana, ou

seja, a tomada da mãe como objeto de amor e a do pai como objeto identificatório, à

“perversão”. A autora propõe pensar a radicalidade do relato de caso justamente no que

evidencia da crise do modelo da diferença sexual, ou ainda, da crise da idéia de identidade

fixa, fato que o próprio Freud indicaria ao abandonar a questão da dama ser um homem ou

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27

uma mulher para a jovem e substituí-la pela ênfase na possível disposição bissexual dos seres

humanos.

A importância da noção de bissexualidade não está, para a autora, na suposição da

existência de forças pulsionais tanto ativas quanto passivas no processo de subjetivação que,

em última instância, acabam repercutindo na associação das primeiras com a idéia de

masculino e das segundas com a de feminino, mas justamente na problematização constante

que Freud realiza da noção, deixando-a inacabada ao apontar permanentemente para a sua

complexidade.

No caso da jovem homossexual a sugestão de uma bissexualidade universal aos seres

humanos serve à indicação de que as formas de subjetivação não podem ser definidas na

psicanálise de acordo com o objeto amoroso adotado ou de acordo com o “ser homem” ou

“ser mulher”, mas que “a escolha de objeto só pode ser levada em conta a partir da

experiência de identidade e diferença em uma narrativa singular, e não segundo um modelo

fixo, estabelecido a priori (Arán, 2006: 89). Em outras palavras, o texto freudiano tem seu

valor por evidenciar a crise da expectativa prescrita pelo complexo de Édipo por uma “atitude

normal” ao feminino.

1.3 A teoria das identificações

Mezan (2006) utiliza como referência o texto A Psicogênese de um Caso de

Homossexualismo numa Mulher

(1996 [920]) para identificar o que enumera como a terceira

fase da conceituação do complexo de Édipo, caracterizada pela consolidação da idéia de que o

complexo ocorre na infância, sendo revivido na puberdade. A fase seguinte é inaugurada pela

relação estabelecida entre o Édipo e a castração, ou seja, pela introdução do conceito de fase

fálica, em A Organização Genital Infantil, de 1923. A grande marca dessa evolução de

pensamento é o rompimento com a idéia de que os Édipos masculino e feminino são

simétricos, tese que proporcionava a utilização do esquema masculino como modelo para o

caso feminino, conforme o artifício do mutadis mutandis: a inversão do sexo do progenitor,

repetindo-se a mesma estrutura. Segundo essa teoria que vai sendo ultrapassada, o complexo

se reduzia a um primeiro tempo, de identificação com o progenitor de mesmo sexo e um

segundo tempo, em que ocorre a primeira escolha de objeto, sendo esta baseada na

“modalidade de apoio”, nas pulsões de autoconservação.

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28

Desde o princípio, a identificação comporta uma ambigüidade, enfatizada por Freud

em 1921 no texto Psicologia de Grupo e Análise do Ego, o que possibilita a sua manifestação

de duas formas: por um lado, a identificação pode ser expressa como carinho, caso seja

proveniente do Eros, ou como hostilidade, caso seja determinada pela pulsão de morte. Nesse

último caso o desejo de destruição do objeto, com base na incorporação, envolve

necessariamente a conservação do mesmo por ingestão. Assim, declara Freud, a rivalidade do

menino frente ao pai não elimina o afeto, mas, pelo contrário, produz um conflito entre essas

duas faces da identificação.

A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode

tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo

de afastamento de alguém. Comporta-se como um derivado da

primeira fase da organização da libido, da fase oral, em que o objeto

que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo

dessa maneira aniquilado como tal [grifo do autor] (Freud, 1996

[1921]: 115).

A compreensão do quadro clínico da melancolia, descrito em 1917, em Luto e Melancolia, dá

subsídios para o autor construir em 1923, em O Ego e o Id, um sistema explicativo acerca do

modo como os investimentos da criança em relação aos pais são abandonados e substituídos

por identificações que a estruturam psiquicamente.

O Édipo aparece assim como o estruturador do caráter, o que equivale

a dizer que, por meio da identificação – que o origina e que se segue a

ele – impõe ao ego um destino peculiar (Mezan, 2006: 280).

A tese central de Freud em 1917 é a de que a identificação melancólica ocorre em

conseqüência de uma perda objetal, em que a libido que esteve investida no objeto, a partir de

sua perda, é retraída em direção ao ego. Trata-se de um mecanismo em que o objeto perdido é

introjetado no ego, o que, em 1923, aparecerá como um destino possível às escolhas de objeto

edipianas. Em O Ego e o Id, o autor declara que o “caráter do ego é um precipitado de

catexias objetais abandonadas e que ele contém a história dessas escolhas de objeto (Freud,

1996 [1923]: 42). O ego é moldado conforme aquele que foi tomado como modelo pela via da

identificação.

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29

Mezan (2006) indica o texto O Ego e o Id como fundamental para a introdução da

fratura que distingue os Édipos, pois aqui Freud trabalhou a diferença sexual segundo a

seguinte elaboração: a identificação presente no Édipo masculino não coincide com o

processo de “retenção de um objeto perdido”, a escolha do pai como modelo identificatório

necessariamente exclui a escolha do pai como objeto de desejo e vice-versa. Isso significa

que, no caso masculino, há um entrecruzamento entre a identificação e o objeto de amor, sem

a possibilidade de que coincidam sobre o mesmo progenitor.

Tal cruzamento será foco de críticas por parte de Butler (2002), pois, a seu ver,

evidencia a matriz heterossexual da teoria psicanalítica, que faz com que a diferença sexual

entre o modelo identificatório e objeto de amor seja um pressuposto teórico.

Já no Édipo feminino a identificação, cujo processo patológico da melancolia é o

protótipo, não só é possível, como costuma ser freqüente. A perda de um objeto de amor pode

promovê-lo a modelo identificatório, tese que poderia supor um destino homossexual aos

casos em que o pai é o objeto de desejo perdido, porque tal perda proporcionaria uma

identificação com o pai e uma conseqüente escolha de objeto segundo o modelo masculino de

identidade.

Juntamente com a demolição do complexo de Édipo, a catexia objetal

da mãe, por parte do menino, deve ser abandonada. O seu lugar pode

ser preenchido por uma de duas coisas: uma identificação com a mãe

ou uma intensificação de sua identificação com o pai. [...] Essas

identificações não são o que esperaríamos

5

, visto que não introduzem

no ego o objeto abandonado, mas este desfecho alternativo também

pode ocorrer, sendo mais fácil observá-lo em meninas do que em

meninos. A análise muito amiúde mostra que uma menininha, após ter

de abandonar o pai como objeto de amor, colocará sua masculinidade

em proeminência e identificar-se-á com seu pai (isto é, com o objeto

que foi perdido), ao invés da mãe [parênteses do autor] (Freud, 1996

[1923b]: 45).

Mezan (2006) lembra que, segundo a tese das equivalências simbólicas de Freud descrita em

1917, no texto As Transformações do Instinto Exemplificadas no Erotismo Anal, o desejo de

5

O autor se refere às identificações tais como ocorrem na melancolia.

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30

uma mulher de ser um homem, ou de ter um falo, pode ser deslocado para os desejos

substitutivos de possuir um homem ou de ter um filho, ambos equivalentes a ter o falo. O

autor localiza na relação entre o tipo de processo identificatório e o complexo de Édipo uma

teoria que abarca a questão da diferença sexual, aqui enunciada a partir da constatação de que

o modelo do mecanismo identificatório é distinto em cada um dos Édipos, o masculino e o

feminino.

Se essa conclusão não aparece tão claramente no texto freudiano, ou se Freud não lhe

confere tanto valor é porque, relata Mezan (2006), a introdução da questão sobre a

bissexualidade apaga aquela sobre a diferença sexual. Nesse momento, a bissexualidade se

coloca como uma noção importante frente ao Édipo, primeiramente por causa do seu modelo

completo, em que o amor e a rivalidade recaem sobre ambos os progenitores. Ao mesmo

tempo, Freud se utiliza da idéia de que tendências masculinas e femininas se equilibram

através do privilégio de uma sobre a outra em uma tentativa de explicar o modo como um

Édipo complexo se desenrola em uma identidade sexual definitiva.

As equivalências simbólicas que parecem dirigir os destinos do complexo feminino

são identificadas por Butler (2002) como um modelo prescritivo de comportamentos. Se a

interpretação de Mezan (2006) pode ser levada adiante, então, a diferenciação entre os tipos

de mecanismos identificatórios acabam por prescrever comportamentos de gêneros sob um

discurso baseado na diferença sexual. Tanto é que os destinos traçados para a sexualidade

feminina correspondem aos ideais modernos de feminilidade, o casamento e a maternidade.

1.4 A primazia do falo

O deslocamento do complexo de Édipo para o período da primeira infância exige por

parte de Freud uma reformulação sobre a sexualidade infantil, o que traz duas consequências

interessantes para o desenvolvimento da psicanálise. Primeiramente, assume-se que a

sexualidade infantil não se exime de uma escolha de objeto, que na teoria anterior era

reservada apenas à puberdade. Introduz-se também a idéia de que a criança apresenta desde

cedo interesse pelos órgãos sexuais; observação que levará Freud a formular considerações

importantes sobre o encontro da criança com o outro sexo. A constatação de tal interesse pela

genitalidade, ao contrário do que se possa supor, desencadeia uma releitura freudiana acerca

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31

da noção de diferença sexual, dissociando-a da diferença simplesmente anatômica dos sexos,

mas referindo-a primordialmente ao chamado complexo de castração.

Freud inicia o artigo de 1923, A Organização Genital Infantil, situando as teses sobre

as quais discorrerá como um adendo ao trabalho de 1905, Três Ensaios sobre a Teoria da

Sexualidade.

Rompendo com a sua posição de então, provoca uma aproximação das

sexualidades infantil e adulta a partir de dois argumentos, um deles acrescentado por nota de

rodapé às edições dos Três Ensaios posteriores a 1915; e que trata da constatação de que há

escolha de objeto mesmo na infância.

A escolha de objeto, tal como mostramos ser característica da fase

puberal do desenvolvimento, já foi freqüente ou habitualmente feita

durante os anos de infância: isto é, a totalidade das correntes sexuais

passou a ser dirigida para uma única pessoa em relação à qual elas

buscam alcançar seus objetivos (Freud, 1996 [1905]: 205; [1923a]:

157).

As formulações em torno da escolha objetal assumem um espaço importante no debate

contemporâneo sobre o dispositivo da diferença sexual, pois, para alguns autores, é em

relação à questão da escolha de objeto que a teoria psicanalítica adquire sua faceta mais

normativa, tendo em vista que prescreve uma coerência heterossexual entre identidade sexual

e desejo.

A outra observação que coloca em xeque a dualidade da sexualidade em duas fases,

uma infantil e outra adulta, é a de que as crianças demonstram ter interesses por seus órgãos

genitais e que a atividade destes adquire uma significação dominante para elas. A

possibilidade dessa constatação, não reconhecida anteriormente, abre um novo caminho para a

distinção sexual, pois, logo em seguida, Freud sustenta que

[a]o mesmo tempo, a característica principal dessa “organização

genital infantil” é sua diferença da organização genital final do adulto.

Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, [sic] entra em

consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que

está presente, portanto, não é a primazia dos órgãos genitais, mas uma

primazia do falo [grifos do autor] (Freud, 1996 [1923a]: 158).

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32

O desconhecimento sobre os “processos correspondentes na menina” justifica a restrição à

vivência masculina do encontro com o órgão genital feminino. O menino entraria na fase

fálica da seguinte forma: é natural que a criança presuma a existência de um órgão análogo ao

seu em todos os seres, vivos ou não. Ao se deparar com a ausência de pênis da menina,

esforça-se por enquadrá-la em sua preconcepção, mesmo que isso signifique rejeitar a

observação da falta do pênis. Diz, então, que o pênis é pequeno e que ele crescerá. A partir de

uma elaboração que envolve o ego, o menino passa a associar a ameaça de castração que

dirigem a ele e a sua atividade masturbatória à imagem da ausência do pênis da menina,

interpretando que essa criança teve um pênis, mas que, por punição, esse foi retirado. Ele

passa a se defrontar, então, com a possibilidade de sua própria castração.

Na fase fálica, o menino não reconhece o órgão genital de uma menina pela lógica da

diferença de órgãos sexuais. Após elaborar a vivência de uma ameaça de castração, ou ainda a

partir da constatação de que se encontra em um lugar de menor poder frente ao adulto, a visão

do órgão feminino será reconhecido pelo menino como prova da castração. Neste momento, a

criança do sexo masculino interpreta a distinção sexual a partir da polaridade fálico/castrado.

A impossibilidade de conceber o órgão feminino positivamente, em sua diferença, e

não apenas em referência ao falo, faz com que o menino não generalize a castração para o

conjunto total das mulheres. Tem ainda a imagem de que sua mãe seja fálica e possuidora de

pênis, enquanto que as mulheres que merecem seu desprezo perderam o pênis. A lógica da

punição não leva em consideração o caráter sexual da diferença e faz com que o menino

divida os seres humanos em fálicos e castrados de forma que do primeiro podem participar

tanto homens quanto mulheres; o que inaugura na teoria freudiana a desigualdade entre as

antíteses homem/mulher e fálico/castrado.

As mulheres “boas” possuem pênis; sobretudo a mãe não pode ser

concebida sem este atributo essencial da condição humana. As teorias

sexuais infantis acerca da origem dos bebês não têm lugar para o

parto; como vimos, a criança é segundo elas expelida pelo ânus. Daí

que a antítese essencial não seja a do masculino e do feminino, já que

a mulher não é imaginada segundo um esquema corporal que lhe seja

próprio; a oposição só pode ser colocada em termos do fálico e do

castrado (Mezan, 2006: 283).

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33

Como vemos, Freud descreve uma impossibilidade de que o menino generalize o sexo

“castrado” para o grupo das mulheres como um todo. Somente mais tarde, quando percebe

que apenas as mulheres podem ter bebês é que sua mãe “perde o pênis”, gerando na criança

idéias que subentendem uma troca entre pênis e bebê. A noção de castração, embora não seja

nova em si, ganha a partir de então uma centralidade teórica importantíssima no que se refere

à vida sexual do sujeito, ressaltada em sua articulação com a fase fálica e o complexo

edipiano.

Para alguns autores (Birman, 1999; Arán, 2006), o complexo de castração sucumbe ao

paradigma masculino da sexualidade, tendo em vista que a referência fálica para os dois sexos

prescreve a crença em uma superioridade por parte daquele que possui o pênis, e o confunde

com o falo, e uma inferioridade por parte das mulheres, fonte inesgotável da inveja do pênis.

Ter ou não ter o falo e os seus atributos, seria essa a questão que dividiria o mundo dos

sexos e dos gêneros” [grifos do autor] (Birman, 1999: 11). A polaridade fálico/castrado seria

uma nova roupagem para o modelo do dimorfismo sexual, tal como delimitado por Laqueur

(2001).

Enquanto Freud insere a polaridade fálico/castrado no âmbito das explicações sexuais

infantis, para Arán (2006), a ênfase freudiana na primazia do falo revela uma teoria em que

não se reconhece o feminino em sua diferença, já que o mesmo ganha sua inteligibilidade

sempre em uma relação de dependência ao que se entende como sexo masculino. As

conseqüências dessa teoria repercutem nas determinações negativas da sexualidade feminina,

que não é pensada senão com a condição de concernir à outra posição sexuada.

A teorização da fase fálica e do complexo de castração provoca um afastamento da

distinção sexual da diferença anatômica entre homens e mulheres, o que gera uma

reformulação das teses sobre a sexualidade feminina. Em A Dissolução do Complexo de

Édipo,

de 1924, Freud se deterá com especial ênfase sobre os cursos distintos que seguem os

meninos e as meninas quanto ao complexo de Édipo.

O texto se inicia com o autor se questionando sobre quais fatores contribuem para a

dissolução do Édipo, nesse sentido o artigo dá continuidade ao capítulo III do O Ego e o Id

(1996 [1923b]). Nesses dois momentos, Freud concebe o destino do complexo edipiano

através da idéia de dissolução, uma destruição completa que não necessita do mecanismo de

repressão, pois, tendo em vista que este é sempre ineficaz, a transferência dos conteúdos

edipianos para o domínio do inconsciente subentende a possibilidade de seu retorno. Além

disso, uma impossibilidade teórica se coloca. No texto de 1923, o autor defende que as

catexias de objeto do complexo são abandonadas e substituídas por identificações. Através

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34

destas, se forma o núcleo do superego, responsável a partir de então por assumir a severidade

anteriormente atribuída ao pai e por garantir a proibição do incesto. Como sustentar que o ego

se afasta dos conflitos edipianos pela via da repressão se foi dito que esse mecanismo tem

grande participação do superego que, no caso, está ainda em formação? Freud sustenta, assim,

a idéia de que há esses dois destinos para o complexo, a dissolução e a repressão, sendo que a

distância entre eles é pontuada como a distinção entre o normal e o patológico: “se o ego, na

realidade, não conseguiu muito mais que uma repressão do complexo, este persiste em estado

inconsciente no id e manifestará mais tarde seu efeito patogênico” (Freud: 1996 [1924]: 197).

Como fatores que influenciam a dissolução do Édipo, Freud sinaliza a impossibilidade

interna do complexo, a ausência da satisfação esperada, como também a hereditariedade. Não

deixando de se questionar pelas variáveis onto e filogenéticas, em termos psíquicos, o autor

coloca os termos da seguinte forma: a castração é o que destrói a fase fálica e o que permite

ao Édipo sucumbir à regressão e ao período de latência.

Segundo Mezan (2006), o complexo de castração adquire sua importância quando

Freud inaugura a idéia de que o órgão masculino não é somente instrumento de diferenciação

do menino entre si e os outros, mas adquire um valor simbólico de definir o sujeito.

O pênis não pode ser visto como simples órgão reprodutor ou gerador

de prazer: prova-o a cadeia simbólica que o toma como ponto de

partida para as equivalências inconscientes (crianças, fezes e

dinheiro). É na ordem simbólica que reside o sentido do complexo de

castração, como o de complexo de Édipo [parênteses do autor]

(Mezan, 2006: 284).

O pênis possui para o menino um valor narcisista e, por isso a conversão do órgão à idéia de

falo. A ameaça de castração realizada por algum adulto coloca em xeque o interesse narcisista

do menino por seu órgão sexual, fazendo surgir aí um conflito pulsional: por um lado, a

possibilidade da castração como ameaça de ferida narcísica, por outro lado, as pulsões do id

do menino insistem nos investimentos libidinais dos objetos parentais. Trata-se, então, de um

conflito entre o narcisismo do ego, interessado em manter o falo, e as pulsões do id,

expressando os desejos incestuosos. Como escreve Freud, “nesse conflito, triunfa

normalmente a primeira dessas forças: o ego da criança volta as costas ao complexo de

Édipo” (Freud, 1996 [1924]: 196).

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35

1.5 O feminino como impasse

Tendo até aqui, mais uma vez, baseado-se no complexo edipiano masculino, Freud se

pergunta o que esperar da fase fálica e do complexo de castração no caso da menina, tendo em

vista que também o sexo feminino desenvolve um complexo de Édipo, um superego e um

período de latência. O que está em jogo nessa indagação é o pressuposto de que a diferença

anatômica dos sexos acarreta conseqüências psíquicas distintas, que podem ser melhor

localizadas por Freud justamente na etapa da organização sexual infantil.

Antes do encontro da menina com o órgão sexual masculino, o clitóris funciona tal

como um pênis. A partir da percepção do órgão masculino, a menina não encontra uma

explicação sexual para a ausência do pênis em seu corpo, construindo uma primeira

explicação em torno da idéia de que perdeu o órgão por punição. A criança do sexo feminino

vive a etapa fálica da mesma forma que o menino, dividindo os seres humanos em fálicos e

castrados, sendo que essa dualidade se baseia em uma lógica punitiva, e não em uma

explicação sexual. No entanto, o que para o menino é apenas uma ameaça, para a menina é

um fato consumado: a castração.

Como Freud havia sinalizado, é o horror à castração suscitado pelo interesse narcisista

em manter o pênis, que provoca o afastamento do menino de seus desejos edipianos. Se a

castração é vivida como uma realidade pela menina, como explicar a dissolução de seu

complexo pela via do medo da castração?

Estando assim excluído, na menina, o temor da castração, cai também

um motivo poderoso para o estabelecimento de um superego e para a

interrupção da organização genital infantil. Nela, muito mais que no

menino, essas mudanças parecem ser resultado da criação e de

intimidação oriunda do exterior, as quais a ameaçam com uma perda

de amor (Freud, 1996 [1924]: 198).

Mesmo indicando aqui a função de ameaça da perda de amor para a interrupção da ligação

incestuosa da menina, em 1925, no artigo Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção

Anatômica entre os Sexos,

Freud ainda questionará a motivação da menina para se afastar do

complexo edipiano, tendo em vista que a diferença anatômica entre meninas e meninos

provoca situações psíquicas distintas, uma ferida narcísica executada e outra ameaçada, que

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36

não podem ser explicadas através de uma correspondência paralela. O autor sustenta, então,

que o complexo de castração na menina tem uma outra função, distinta daquela

desempenhada no modelo masculino.

Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo

complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido

através do complexo de castração (Freud, 1996 [1925]: 285).

A castração, no caso feminino, precede o Édipo e o prepara, o que, para Freud, indica que o

complexo edipiano, no caso das meninas, é uma formação secundária, possui uma pré-

história. A construção dessa tese é justificada também por uma outra característica da

sexualidade feminina, o deslocamento necessário do objeto de amor da mãe para o pai.

O objeto a ser catexizado pelo menino em sua situação edipiana, a mãe, assim o foi

desde o período em que a criança era amamentada e cuidada. Por esse mesmo motivo, a mãe

também é o objeto original ao qual a menina se vincula, período que constitui a pré-história

do Édipo feminino e que será mais enfaticamente descrito nos anos posteriores. Nesse

momento, Freud se empenha em relacionar a castração da menina a uma ferida narcísica que a

leva à “inveja do pênis”. A menina, ao se deparar com o órgão masculino e ao perceber que

não o possui, “toma sua decisão num instante” e “quer tê-lo”, o que deflagra um sentimento

de desprezo pelo sexo feminino.

Em contraposição às conseqüências da teoria da primazia do falo para a sexualidade

feminina, David-Ménard (1998) defende que a lógica da castração não se aplica à sexualidade

feminina. Ou melhor, o falo não pode ser definido como emblema de todo acesso à

simbolização do desejo, pois a mulher simboliza a renúncia a um objeto não apenas através do

cenário da castração e da perda de uma parte do corpo, mas também a partir de outras

diferentes representações.

A vivência do gozo feminino faz com que as mulheres saibam que o pênis não é o falo,

enquanto que a confusão entre os dois é, de princípio, uma experiência masculina. A autora

começa a delimitar, assim, uma perspectiva que, por não recobrir pênis e falo, recoloca a

perda do processo de simbolização dissociada da problemática do objeto, o que permite uma

leitura acerca do feminino independente de sua relação com o masculino.

Enquanto isso, em Freud, a inveja do pênis aparece como um fator essencial para o

afrouxamento do laço da menina com sua mãe, tendo em vista que essa última passa a ser

responsabilizada pela sua falta do pênis. Mezan (2006) sinaliza que essa hipótese construída

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37

pela filha ainda está de acordo com a teoria sexual infantil de que sua mãe possui um pênis, de

forma que a ausência desse último ainda não está relacionada ao sexo das mulheres como um

todo, não está relacionada a uma diferença de cunho sexual. Em princípio, a criança encara a

castração como um infortúnio peculiar a ela própria, de forma que só mais tarde compreende

que se trata de uma situação que se estende a outras crianças e também a adultos.

A reivindicação de ser recompensada pela falta do pênis dirige a menina ao desejo de

ter um filho; finalidade a partir da qual toma o pai como objeto de amor. A tomada do

progenitor de sexo oposto como objeto é também possível porque ele é percebido como

alguém que tem o pênis e que, além disso, nada tem a ver com a formação dos bebês e,

conseqüentemente, com a falta de pênis que ela própria carrega (Mezan, 2006: 288). É o

narcisismo ferido que motiva a troca objetal e que transforma a menina em uma pequena

mulher.

A crítica dos pós-freudianos aos destinos formulados por Freud em relação ao Édipo

feminino parte da leitura de que corresponderiam aos ideais do gênero feminino vigentes na

modernidade: o da maternidade e do casamento. A sexualidade feminina só é reconhecida no

desejo de ter um filho e no de ter um homem, sendo os demais destinos traçados como

patológicos.

Nunes (2000) discute o quanto as noções de castração e de inveja do pênis colocam a

mulher em uma posição inferior ao homem, ignorando os aspectos fecundo e criador do corpo

feminino. Explicar o sentimento de menos-valia das mulheres e a desvalorização das mesmas

pelos homens como conseqüência da visão do órgão feminino é, para a autora, basear a

diferença de gênero no fator da distinção sexual anatômica. Se, por um lado, Freud

desnaturaliza o ser mulher, demonstrando que há um percurso importante até que a menina se

constitua mulher e que tal destino não é garantido pela anatomia, por outro lado, adota como

“verdadeiras” certas soluções para a inveja do pênis, o que adquire um aspecto normativo.

Ainda em Freud, mais um deslocamento é necessário para que a menina caminhe em

direção à feminilidade: a substituição da sexualidade clitoridiana, associada por Freud à

atividade e, conseqüentemente, à posição masculina, pela primazia da vagina, relacionada à

passividade e à feminilidade. As antíteses clitóris/vagina, atividade/passividade e

masculino/feminino se confundem, traçando uma direção pré-determinada para a

feminilidade, a da “passivização”.

A tese de que, na puberdade, a repressão afetaria a sexualidade clitoridiana, dando

lugar à vagina como principal órgão sexual, é comentada por Laqueur (2001) como uma

formulação comprometida em defender a diferença a partir da complementaridade entre pênis

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38

e vagina, além das finalidades sociais das mulheres e dos homens. A seu ver, Freud se esforça

por disfarçar de discurso anatômico a diferença de gênero do século XIX.

Em 1931, em Sexualidade Feminina, Freud defende mais enfaticamente que a vida

sexual da mulher é dividida em duas fases, a primeira correspondendo à etapa pré-edipiana,

em que a mãe é objeto de amor, e a segunda correspondendo ao Édipo, em que a menina

substitui a mãe como objeto pelo pai. A menina atravessa o Édipo em seu caráter negativo

para, só depois, introduzir-se em seu modelo positivo. A clínica de Freud o auxiliou a

constatar que toda a intensidade característica do vínculo com o progenitor paterno é uma

herança da ligação anterior com a mãe. Nesse artigo, o autor sublinha a relevância dessa

ligação originária da menina tanto em força quando em seu tempo de duração, mas é na

Conferência XXXIII

(Freud, 1996 [1933]) que Freud melhor sistematiza toda a sua

compreensão sobre a sexualidade feminina, embora ainda declare considerar tal conhecimento

incompleto.

A fase fálica é caracterizada por um paralelo entre meninos e meninas, pois a atividade

masturbatória do clitóris, típica dessa etapa do desenvolvimento libidinal, equivale ao pênis,

enquanto a vagina se encontra desconhecida para ambos os sexos. Freud chega a dizer que a

menina é, nesse momento, um homenzinho, e que a diferença sexual ainda está eclipsada

pelas semelhanças (Freud, 1996 [1933]: 118). Outra aproximação entre os sexos encontrada é

o tipo de catexia objetal realizada, que desde o início e até então ocorre em função das

necessidades vitais, as crianças de ambos os sexos iniciam suas catexias tomando a mãe como

escolha objetal.

Enquanto o menino precisa apenas manter sua mãe como objeto e o pênis como zona

erógena privilegiada desde suas primeiras catexias objetais, para atingir a feminilidade, a

menina deve, por sua vez, realizar duas substituições: a de zona erógena e a de objeto. A

menina precisa, diz Freud, mudar de sexo; e, ao mudar de sexo, muda também o sexo de seu

objeto de desejo. Fazendo uma escolha de objeto paterna, a menina se transforma, assim, em

uma pequena mulher e entra no Édipo. Mais uma vez, vemos Freud reforçar a idéia de um

destino verdadeiramente feminino.

A motivação para tais substituições, sinaliza Freud, é justamente a vivência do

complexo de castração, ou seja, a expressão psíquica da diferença sexual anatômica. Ao

perceber a falta de pênis que lhe cabe, sente-se injustiçada e responsabiliza a mãe por tal

injustiça. Até esse momento, entende a ausência de pênis como uma deficiência própria, pois

crê ainda que sua mãe seja fálica. Ao perceber que sua mãe é castrada, afasta-se dela e toma o

pai, fálico, como objeto de amor, desejando receber dele o pênis que sua mãe lhe recusou.

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39

Através de uma equivalência simbólica primitiva, a menina substitui o desejo de receber um

pênis pelo desejo de receber um bebê. E aí se inicia a situação edipiana da menina.

Num menino, o complexo de Édipo, no qual ele deseja a mãe e

gostaria de eliminar o pai, por ser este um rival, evolui naturalmente

da fase de sexualidade fálica. A ameaça de castração, porém, impele-o

a abandonar essa atitude. Sob a impressão do perigo de perder o pênis,

o complexo de Édipo é abandonado, reprimido e, na maioria dos

casos, inteiramente destruído, e um severo superego instala-se como

seu herdeiro. O que acontece à menina é quase o oposto. O complexo

de castração prepara para o complexo de Édipo, em vez de destruí-lo;

a menina é forçada a abandonar a ligação com a mãe através da

influência de sua inveja do pênis, e entra na situação edipiana como se

esta fora um refúgio (Freud, 1996 [1933]: 128/129).

Motivado pelo material clínico de suas pacientes mulheres, o autor se detém sobre a qualidade

da relação pré-edipiana da menina com sua mãe, sublinhando o quanto essa etapa deixa

grandes oportunidades para fixações e disposições, inclusive marcando com sua impressão

não só a relação edipiana da menina com seu pai, mas também com seu marido.

A relação pré-edipiana atravessa as três fases da sexualidade infantil, constituindo-se

tanto de desejos orais, quanto sádico-anais e fálicos. Em paralelo, há tantos impulsos ativos

quanto passivos atravessando tal relação e, principalmente, uma grande quantidade de

ambivalência. Tal quadro faz com que Freud relembre a época dos seus estudos sobre a

histeria, quando todas as suas pacientes relatavam ter sofrido uma sedução por parte do

próprio pai. Agora, o analista coloca a fase pré-edipiana da menina como o ponto em que a

fantasia “toca o chão da realidade”.

E agora encontramos mais uma vez a fantasia de sedução na pré-

história pré-edipiana das meninas; contudo, o sedutor é regularmente a

mãe. Aqui, a fantasia toca o chão da realidade, pois foi realmente a

mãe quem, por suas atividades concernentes à higiene corporal da

criança, inevitavelmente estimulou e, talvez, até mesmo despertou,

pela primeira vez, sensações prazerosas nos genitais da menina

(Freud, 1996 [1933]: 121).

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40

Não é à toa que a experiência de sedução retorna incessantemente na clínica de Freud. Mas,

agora, após um longo percurso teórico e clínico, o autor pode colocá-la em outros termos: “as

primeiras experiências sexuais e sexualmente coloridas que uma criança tem em relação à

mãe são, naturalmente, de caráter passivo” (Freud, 1996 [1931]: 244). Ao ser alimentada,

vestida e limpa pela mãe, a criança desfruta de satisfações, ao mesmo tempo em que uma

parte de sua libido se esforça por transformá-las em atividade. E, aqui, a vivência da menina

encontra uma certa similaridade com a vivência masculina, não havendo, então, nessa fase

libidinal oral uma distinção entre masculino e feminino.

Segundo Freud relata em 1923, no texto A Organização Genital Infantil, é somente

com o advento da puberdade que a oposição sexual coincide com a divisão entre masculino e

feminino, encontrando-se relacionada a outras polaridades conforme a etapa do

desenvolvimento libidinal infantil. Se na fase oral não há representação para a diferença

sexual, na etapa sádico-anal ela aparece em torno do dualismo atividade/passividade.

Posteriormente, na fase fálica, a polaridade sexual representa-se a partir do par

fálico/castrado, para, só em seguida, na puberdade, relacionar-se com o masculino e o

feminino.

De acordo com essa declaração, a anatomia sexual não se configura como o fator

preponderante para o desenvolvimento sexual do sujeito e para a aquisição de uma identidade

sexual, tese especialmente divulgada na obra freudiana a partir da sexualidade feminina. Se,

em 1919, o autor se surpreendia com a feminilidade sucumbindo ao complexo de

masculinidade no quadro fantasmático das meninas, em 1933, o autor declara ser a menina

pequena um homenzinho para, só posteriormente, trocar de sexo e tornar-se mulher. A idéia

de que não se nasce mulher, mas de que torna-se mulher é reconhecida no meio psicanalítico

por indicar que a assunção da identidade sexual se dá a partir de elaborações psíquicas, não

podendo ser pré-determinada pelo órgão sexual biológico.

Mesmo tendo as teorias freudianas em torno do complexo de Édipo o mérito de

complexificar o conceito de sexualidade e de demonstrá-la como uma noção polissêmica,

guardam resquícios importantes do modelo do dimorfismo sexual, cujas conseqüências

passam pela reprodução das normas de gênero tradicionais. Nesse sentido, as teses que

circundam o complexo edipiano vem sendo resgatadas por leituras críticas à psicanálise, tendo

em vista que, em última instância, as mesmas promovem a hipótese de que a constituição do

sujeito e da alteridade só é possível a partir da diferença sexual, ou, como vimos, a partir de

uma diferença binária e hierárquica entre os sexos.

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41

Por outro lado, a partir do debate que relança a questão sobre o estatuto da diferença

sexual na psicanálise, autores têm sugerido novas leituras a partir do interior da própria teoria

psicanalítica, a fim de proporcionar um deslocamento da questão da diferença enquanto

diferença sexual para a da alteridade. Birman (1999), David-Ménard (2001) e Arán (2006)

defendem a retomada do conceito de pulsão no sentido de insistir na concepção da

experiência alteritária como o encontro do sujeito com o outro interno e externo a si. Trata-se

de um outro estranho-familiar, perspectiva que concebe a alteridade como tudo aquilo que

subverte as fronteiras do eu.

Essa perspectiva está baseada na observação de que o pensamento freudiano apresenta

uma oscilação entre uma perspectiva normativa da diferença e uma outra, a leitura pulsional,

que impossibilita qualquer tentativa de pré-determinação do outro. Essa última tem sido

apontada como uma saída da teoria psicanalítica para a prescrição de modelos universais e

hierárquicos da diferença e sua conseqüente prática exclusivista.

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CAPÍTULO 2

A TEORIA LACANIANA SOBRE O ÉDIPO E A SEXUAÇÃO

Se desde Freud a psicanálise ultrapassou o impasse biológico que equivalia o falo ao

pênis e a diferença sexual à diferença dos órgãos genitais

6

, com Lacan, cunha-se um novo

termo, sexuação, cuja originalidade corresponde ao deslocamento da problemática da

identidade sexual para a das posições sexuais. A relevância dessa mudança de direção para o

presente estudo diz respeito aos diversos desdobramentos teóricos que são provocados em

relação ao tema da diferença sexual e da alteridade. Até chegar à concepção das posições

sexuais como modos de gozo, Lacan realizou outras diversas formulações sobre a questão da

diferença sexual, de modo que este capítulo será dedicado a retomar suas teses desde o

retorno ao complexo de Édipo até o seu último ensino.

Autores contemporâneos que trabalham a interface entre psicanálise e cultura têm se

dedicado a analisar a teoria de Lacan e suas repercussões culturais. Embora reconheçam o

mérito do autor em ultrapassar as fronteiras da biologia ou de qualquer essencialismo

filosófico, acabam questionando o que entendem como uma continuidade do modelo binário e

hierárquico da diferença sexual.

6

Embora, como veremos no terceiro capítulo, ainda se discuta o papel normativo das teorias freudianas da

sexualidade.

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43

2.1 Uma breve introdução às contribuições de Lacan

A partir do que acompanhamos no capítulo anterior, podemos dizer que Freud

imprimiu um novo modo de compreender a sexualidade, subvertendo as idéias enraizadas na

sexologia ocidental desde a segunda metade do século XIX

7

. Entrelaçada à nova teoria do

sujeito, a sexualidade passa a ser relacionada ao campo do inconsciente e da pulsão, de forma

que a diferença sexual deixa de ter sua inteligibilidade calcada na suposição de uma ligação

simétrica e complementar entre homens e mulheres.

Todo o trajeto freudiano terá como destino a desconstrução de uma de suas primeiras

teses, a de que, sob a perspectiva edipiana, o pai está para a menina tal como a mãe está para o

menino. Ao final de sua obra, a mãe é vista como o objeto primordial tanto para a menina

quanto para o menino, assim como o pai é sujeito da identificação primordial para ambos os

sexos. Freud acaba por sustentar a tese de que há apenas um ponto de partida para o processo

de sexualização, que independe do sexo da criança que nasce: a libido é masculina para

ambos os sexos. Sua concepção de que “a anatomia é o destino” (Freud, 1996 [1924]: 197)

vem enfatizar que não é dela que se parte e que, se é freudiano dizer que muita coisa se passa

entre os dois momentos (ponto de partida e destino), também o é entender que esse último não

é um porto seguro, tendo em vista que as declarações “sou homem” e “sou mulher” são

sempre problemáticas e requerem que se indague ao que correspondem tais categorias.

O complexo de Édipo vem designar justamente este processo de transformação de uma

sexualidade única e idêntica para os dois sexos, a sexualidade fálica, em duas posições

subjetivas distintas. E se essa é a sua elaboração final, Freud esbarrou em dois importantes

impasses: o biológico, fruto da confusão entre pênis e falo; e o feminino, devido à necessidade

de se repensar o complexo a fim de dar o devido valor à relação da menina com sua mãe

(Brousse, 2005). A superação de tais problemáticas dá espaço para o surgimento de uma outra

interrogação acerca da dissimetria entre homens e mulheres: o que quer a mulher? (Freud

apud

Gay, 1989: 455).

Entonces, si la exigencia de falo no se resuelve ni por la vía del ser ni

por la vía del tener, esto explica el desconcierto de Freud, quien sigue

7

Segundo Birman (1999), a sexologia Ocidental da segunda metade do século XIX se constituía de discursos

biológicos sobre a sexualidade disfarçados de ciências do comportamento sexual. Tais discursos giravam em
torno da exigência primordial da reprodução biológica.

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44

sin saber qué quiere una mujer. Sin embargo, de algo está seguro: la

cuestión de la femineidad no se resuelve por la vía del falo (Recalde,

2005:113)

8

.

É a partir desse impasse acerca das mulheres que Lacan proporá que a feminilidade é a

problemática de um ser que não pode assujeitar-se inteiramente ao Édipo e à lei da castração.

Mas essa é a tese pertinente ao seu último ensino. O conceito de falo foi retomado e

modificado pelo autor diversas vezes ao longo de sua produção, conforme a prevalência do

imaginário, do simbólico e do real. Nesse percurso, acentua cada vez menos a questão da

“identidade” feminina e cada vez mais a idéia de “gozo” feminino, menos a castração e a

reivindicação dela decorrente do que a “divisão” que o primado do falo introduz na menina

(André, 1998: 209). O Édipo passará do estatuto de complexo familiar à dimensão de

estrutura, para, posteriormente, ser reconhecido em seu mais-além. Ao mesmo tempo, o

destino do sujeito passa a ser relacionado a suas eleições de gozo diante do confronto com a

castração e com o desejo do Outro.

Para seguir a sugestão de Elia (1995) e não deixar de inserir a teoria psicanalítica da

sexualidade no campo da teoria do sujeito, seguem algumas considerações sobre as lógicas

que perpassam o ensino de Lacan.

O psicanalista pós-freudiano se debruçou sobre a tarefa de reformular o assujeitamento

do sujeito às leis do inconsciente em termos de linguagem. Para tal, rompe com a lógica

formal aristotélica, segundo a qual os termos de uma relação são determinados por atributos e

propriedades em um momento anterior à instituição das relações, o que quer dizer que são

determinados por características de cunho essencialista. Em contraposição, o autor insere no

campo da psicanálise a lógica da dialética, pois estabelece que a relação precede os termos

que a mesma constitui e determina. Sob a perspectiva de que não há termo anterior à relação,

a noção de sujeito também se encontra subvertida, tendo em vista que passa a ser desatrelado

do significado, mas submetido ao estabelecimento de determinadas relações (Elia, 1995).

A teoria lacaniana se fez sob a lógica do significante, advinda do pensamento

estruturalista. De acordo com tal lógica, deve-se formalizar a maneira pela qual os elementos

se encontram organizados na estrutura, os lugares e as posições que cada termo ocupa diante

de todos os outros que compõem o conjunto, independentemente de seu conteúdo. Para Elia

8

O trecho correspondente na tradução é: “Então, se a exigência de falo não se resolve nem pela via do ser nem

pela via do ter, isto explica o desconcerto de Freud, que segue sem saber o que quer uma mulher. Contudo, de
algo está certo: a questão da feminilidade não se resolve pela via do falo”.

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45

(1995), parece fundamental desfazer qualquer possibilidade de má-compreensão da relação

entre forma e conteúdo segundo a lógica do significante.

Se a lógica do significante retoma a forma, desprezando o conteúdo,

não é por um movimento de retrocesso ao procedimento essencialista

da abstração, mas por um salto em direção aos dispositivos da

estrutura

, na qual não se trata da abstração formal do que eram

anteriormente os termos e seus conteúdos particulares, mas da

apreensão de uma rede de relações entre lugares, posições ocupadas

por termos,

sendo que esses lugares assumem valor de traços

simbólicos

: o significante só é apreensível na sua independência em

face dos efeitos de significação que produz, e, nessa medida, tem

valor de traço simbólico tomado numa rede relacional antes sintática

do que semântica. Não se retoma a velha oposição entre forma e

conteúdo, destituída pela lógica dialética, mas afirma-se a primazia da

letra

como marca, traço, sem significação, sendo este o seu estatuto

próprio, seu ser de letra, se quisermos, seu conteúdo mesmo, e não a

dimensão formal de algo que, por outro lado, deveria encontrar seu

conteúdo. O conteúdo será, assim, a contrapartida da forma,

identificada, pelo mesmo equívoco, com a letra ou o significante, mas

o efeito de significação produzido pelas letras em seu estatuto literal

concreto [grifos do autor] (Elia, 1995: 31/32)

9

.

A linguagem, nesse contexto lógico, é encarada como a alteridade frente a qual nasce o

sujeito. Tal compreensão aponta para um além da constituição da subjetividade em relação a

um outro sujeito tomado em sua objetividade e semelhança. A partir dessa postulação, torna-

se impensável qualquer binarismo da relação do sujeito com o outro, o que faz com que Elia

(1995) denomine de “Alteridade radical” a estrutura da Linguagem e do Significante que

determinam o advento do sujeito e que tornam o inconsciente um outro lugar psíquico.

9

É interessante notar que essa questão da relação entre forma e conteúdo na psicanálise terá um lugar importante

no debate entre Butler (2000) e Žižek (1999), já que esse último propõe pensar a diferença sexual como um
“conceito formal sem conteúdo”.

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46

2.2 O Édipo como complexo familiar

A publicação de 1938 da VIII Encyclopédie Française trazia um texto de Lacan (1987

[1938]), ainda um jovem psicanalista, sobre os complexos familiares determinantes para a

formação do indivíduo. A idéia de complexo como organizador do desenvolvimento psíquico

vinha excluir qualquer referência orgânica da formação da personalidade, sublinhando a

primazia das instâncias culturais sobre as naturais no que diz respeito à vida mental dos

indivíduos. A definição de complexo ganhava importância para a ciência psicológica à medida

em que estabelecia um contraponto à idéia de instinto, que ficava restrita ao comportamento

animal.

Por trás desse primeiro entendimento lacaniano sobre os complexos estava embutida

uma concepção de família como estrutura na ordem da cultura. Quer dizer, a família teria, na

formação do indivíduo, o papel fundamental de transmissão da cultura, incluindo a

comunicação para a geração mais nova de estruturas de comportamento e de representação.

Os processos primordiais do desenvolvimento psíquico teriam uma continuidade entre as

gerações, cuja causalidade é de ordem natural e o seu berço, a família.

A noção de cultura é um ponto chave nesse texto de Lacan, tendo em vista que se

refere a uma dimensão que determina a família e todos os fenômenos humanos. Essa

percepção da cultura como uma nova ordem que especifica a realidade social e a vida psíquica

é vista pelos autores que comentam sua obra como um precursor do conceito de simbólico,

que o psicanalista desenvolverá mais tarde.

Nesse contexto teórico anterior à postulação do simbólico estruturalista, o complexo de

Édipo é entendido como um elemento psicológico universal, ao qual todos os formatos de

família estariam submetidos.

Não apenas a interdição do incesto com a mãe tem um caráter

universal, através das relações de parentesco infinitamente diversas e

muitas vezes paradoxais que as culturas primitivas punem com o tabu

do incesto, mas ainda, qualquer que seja o nível da consciência moral

numa cultura, essa interdição está sempre expressamente formulada e

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47

sua transgressão é sempre alvo de uma reprovação constante (Lacan,

1987 [1938]: 45).

Tratava-se de entender a repressão e o conformismo sexuais do psiquismo como fatores

importantes para a formação do indivíduo. Localizava-se o desenvolvimento do sexo psíquico

na subordinação à regulação e aos acidentes de um drama psíquico familiar. Supunha-se que a

criança alcançaria o conformismo sexual através da identificação com o progenitor do mesmo

sexo, destino que se iniciaria com as pulsões da criança dirigindo-se ao progenitor do sexo

oposto. Sendo esse interesse pulsional frustrado, a criança culpabiliza o progenitor do mesmo

sexo por ser agente da interdição de sua satisfação.

Baseado em Freud, Lacan propunha que a frustração das pulsões era acompanhada de

uma repressão educativa da sexualidade, sendo a sua dimensão psicológica reconhecida na

fantasia de castração e no jogo imaginário que a condiciona. Nesse momento teórico, a

castração é compreendida tanto como uma fantasia de mutilação de um membro do corpo,

quanto como uma ameaça real. Em ambos os casos, a castração diz respeito a uma tradução

imaginária do dano causado ao narcisismo do indivíduo.

A frustração que ela (as pulsões genitais infantis) sofre é

acompanhada, com efeito, comumente, de uma repressão educativa

que tem por finalidade impedir qualquer realização dessas pulsões e,

especialmente, sua realização masturbatória. Por outro lado, a criança

adquire uma certa intuição da situação que lhe é proibida, tanto pelos

sinais discretos e difusos que traem, para sua sensibilidade, as relações

parentais, quanto pelos acasos intempestivos que as desvelam para ela

[parênteses nosso] (Lacan, 1987 [1938]:42).

Tratava-se, portanto, de uma visão dinâmica do percurso que se supunha iniciar com o ápice

da sexualidade infantil, passando pela repressão até alcançar o estádio de latência e a

sublimação. Como acabamentos da crise edipiana, o supereu e o ideal do eu são relacionados

ao pai da família enquanto imago e sexo dominante.

Elas (as formas designadas supereu ou ideal do eu) reproduzem, diz-

se, a imago do progenitor do mesmo sexo, o ideal do eu contribuindo

assim para o conformismo sexual do psiquismo. Mas a imago do pai

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48

teria, segundo a doutrina, nessas duas funções, um papel prototípico

em virtude da dominação do sexo masculino [parênteses nosso]

(Lacan, 1987[1938]:49).

A imago do pai, cuja função fica associada à repressão e à sublimação, é entendida aqui como

um esquema imaginário do pai enquanto personagem real das primeiras relações familiares e

sociais que envolvem a criança. A dimensão da imago do pai nessa concepção de complexo

de Édipo valoriza a determinação social da família paternalista na explicação dos traços

individuais da personalidade.

A observação de que a fantasia de castração e a imagem da mãe fálica eram comuns

aos dois sexos evidenciava, para Lacan, a existência de uma dominação masculina na ordem

familiar e cultural. Ao apresentar as teses freudianas acerca do Édipo, o autor enfatiza uma

perspectiva do complexo sustentada nas bases sociais da família moderna, cuja função

normativa aparece integrada aos seus outros efeitos. Por outro lado, através de um movimento

ambíguo, Lacan conclui o papel aleatório do complexo na adaptação sexual, além de

rascunhar a importância de se esclarecer a estrutura psicológica da família, objetivo sobre o

qual se debruçaria por algum tempo. Trata-se de um deslocamento teórico da centralidade na

dialética intersubjetiva para a valorização de um mecanismo anônimo que regula a interação

dos sujeitos, o Outro como ordem simbólica estrutural.

2.3 Da estrutura ao gozo

A ruptura de Lacan com o conceito de complexo de Édipo descrito anteriormente diz

respeito à introdução da lógica dialética no campo psicanalítico, que proporcionou a

superação de qualquer compreensão fenomenológica dos complexos familiares.

Se no contexto de Os Complexos Familiares é conferido ao falo um caráter de

significado determinado pela imagem negativa na imagem especular, tanto no homem quanto

na mulher, posteriormente, Lacan retoma o complexo de Édipo freudiano clareando o

conceito de falo através de uma progressiva diferenciação entre os domínios do imaginário e

do simbólico.

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49

A primazia teórica do simbólico revela o arbitrário da significação, demonstrando que

o falo não se reduz a uma imagem, mas que deve ser compreendido também como um

significante.

O que rege o inconsciente é a disjunção no interior da unidade sígnica,

a quebra da correspondência entre significante e significado (unidos e

correspondentes no signo lingüístico saussuriano) e a assunção da

primazia pelo significante. Os elementos materiais da linguagem

(sons, traços, letras) detêm a primazia na organização inconsciente, na

qual inexiste a significação [parênteses do autor] (Elia, 1995: 62).

Nesse contexto teórico, o autor profere o seu quinto seminário, intitulado As Formações do

Inconsciente

(1999 [1957-1958]), em que confere à lei da interdição do incesto o lugar de

fundamento da cultura. Através do que nomeou de “Nome-do-Pai”, o recalque originário da

“Coisa” materna foi descrito em três tempos.

Ora, trata-se menos das relações pessoais entre o pai e a mãe, ou de

saber se ambos estão ou não à altura, do que de um momento que tem

que ser vivido como tal, e que concerne às relações não apenas da

pessoa da mãe com a pessoa do pai, mas da mãe com a palavra do pai

– com o pai na medida em que o que ele diz não é, de modo algum,

igual a zero. O que importa é a função na qual intervêm, primeiro, o

Nome-do-Pai, o único significante do pai, segundo, a fala articulada

do pai, e terceiro, a lei, considerando que o pai está numa relação mais

ou menos íntima com ela. O essencial é que a mãe funde o pai como

mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu capricho, ou

seja, pura e simplesmente, a lei como tal (Lacan, 1999 [1957-1958]:

197).

O primeiro momento corresponde ao tempo do pai simbólico, tendo em vista que o

significante paterno é o suficiente para que se provenha a identificação da criança com o falo

imaginário, ou seja, a relação da criança não é “com a mãe, como se costuma dizer, mas com

o desejo da mãe. É um desejo de desejo” (Lacan, 1999 [1957-1958]: 205). Há, portanto,

nesse momento uma relação de espelho entre o desejo da mãe e o desejo do filho, em que esse

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50

último preenche como objeto o desejo da primeira. A presença do pai é velada, de forma que

o agente da metáfora paterna é o significante, e não o pai da realidade.

O segundo tempo compreende a quebra dessa identificação da criança com o falo

imaginário, que também prescinde da intervenção direta do pai, apesar da necessária função

proibitiva e privadora do mesmo. Não se trata do pai da realidade na proibição do incesto,

tendo em vista que o pai interditor deve estar mediado pelo discurso da mãe, sendo então, um

pai imaginariamente concebido pela criança como todo-poderoso, interditor e privador da

mãe.

O terceiro momento diz respeito à chave e à saída do Édipo. Se no tempo anterior,

tratava-se do pai privador, aqui trata-se do pai doador, além de haver a necessidade da

intervenção efetiva do pai, não sendo mais suficiente o caráter simbólico ou imaginário do

mesmo. O pai, real e potente, tem que dar provas de que, o que a mãe deseja, ele o tem e dá a

ela.

O menino deve identificar-se com o pai, de forma que este último torna-se doador

também em relação ao filho, pois por intermédio do dom e da permissão dada à mãe, o

menino obtém a permissão de ter um pênis mais tarde.

Pero a su vez, este tercer tiempo, al negar el segundo, reinstaura algo

del primero: lo que en el juego perverso el niño intentó recibir del

mensaje de la madre, y se tornó imposible en el segundo tiempo,

ahora lo recibe efectivamente del mensage del padre. Es cierto que no

bajo la forma del ser, pero sí en la del tener (Mazzuca, 2005: 94)

10

.

Lacan localiza o primeiro tempo no nível da frustração imaginária, enquanto que o segundo

corresponde à privação real e o terceiro, à castração simbólica. A realização dessas distinções

torna claro que o pai real é transmissor, e não autor da castração, de forma que, para Lacan, a

castração não procede do pai, mas sim da linguagem. Nesse sentido, o complexo de Édipo

traduziria a perda do gozo que afeta o sujeito enquanto sujeito da linguagem. Como efeito da

linguagem, a castração deve ser mediada e transmitida pelo pai. Sendo ele mesmo castrado,

trata-se, na verdade, da transmissão do desejo, de modo que a castração é uma operação sem a

qual não há causa de desejo.

10

O trecho correspondente na tradução é: “Por sua vez, este terceiro tempo, ao negar o segundo, reinstaura algo

do primeiro: o que no jogo perverso o menino tentou receber da mensagem mãe, e se tornou impossível no

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51

A partir desse ponto de vista a função do pai não é a de representar a lei do incesto,

mas a de articular o desejo à lei. O empenho de Lacan é o de demonstrar que o pai do

complexo de Édipo é a própria linguagem, de modo que a primazia do falo deve ser entendida

como um efeito de significação do significante do Nome-do-Pai. A função paterna, designada

por este último, é toda expressão simbólica que representa a proibição do incesto, isto é,

qualquer significante que ocupe o lugar da metáfora, privando o desejo da mãe e permitindo

ao ser falante acender à significação fálica. O desejo da mãe não se atém ao corpo do filho,

mas se dirige a um significante paterno, que não é redutível ao genitor.

O Nome-do-Pai não pode deixar de ser articulado à prevalência fálica, porque a função

fálica se define a partir da castração produzida pelo fato do sujeito habitar a linguagem. As

funções fálica simbólica e da castração referem-se ambas ao que Lacan nomeou de “sacrifício

de gozo”, enquanto o falo refere-se ao significante da falta.

Esta función de la falta, cuyo símbolo es el falo, no deriva de la

diferencia anatómica de los sexos, sino de que el ser humano, hombre

o mujer, debe inscribirse forzosamente en el que es su único ambiente

natural, el lenguaje (Brousse, 2005:57)

11

.

Podemos dizer que a origem da castração é simbólica, mas que seus efeitos ocorrem no real: é

o efeito da linguagem no real do gozo de um vivente. A gênese da castração provém do

significante, o que nos permite pensar que não se requer o significante do Nome-do-Pai para

que a castração tenha lugar, já que qualquer significante pode cobrir a posição que a

determina, desde que diga respeito à interrupção da presença da mãe, ou ainda, de suas

demandas. Essa perspectiva tem o mérito de romper com qualquer tentativa de localizar no

pai enquanto pessoa do sexo masculino a instauração da diferença e da alteridade.

Para autores como Tort (2005 apud Arán, 2008b) e Arán (2008b), o esquema edipiano

que restringe a mãe à alienação e o pai à separação se funda em um modelo binário e

hierárquico da diferença. Isso porque a alienação, sendo supostamente o que impede a entrada

do sujeito no mundo simbólico, adquire uma conotação patológica da qual a mãe é a

responsável. Por outro lado, o pai torna-se imprescindível para a superação da ordem da

segundo tempo, agora o recebe efetivamente da mensagem do pai. É certo que não sob a forma do ser, mas sim
na do ter”.

11

O trecho correspondente na tradução é: “Esta função da falta, cujo símbolo é o falo, não deriva da diferença

anatômica dos sexos, mas de que o ser humano, homem ou mulher, deve inscrever-se forçosamente naquele que
é seu único ambiente natural, a linguagem”.

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52

natureza. Trata-se, então, de uma teoria que equivale os binarismos feminino/masculino e

natureza/civilização, ou seja, que equivale o sistema de gênero à diferença sexual

12

.

Ao mesmo tempo, o Édipo estrutural estabelece uma delimitação de fronteiras entre o

“fora” ou “anterior” ao simbólico, o patológico, e o “dentro” ou “posterior” ao simbólico, o

normal. A psicanálise estabeleceria uma explicação histórico-contingente acerca da

subjetivação como estrutura universal e a-histórica, reproduzindo relações sociais normativas.

Em relação ao Édipo feminino, o quinto seminário de Lacan gira em torno das

questões deixadas por Freud acerca das dificuldades da menina em passar da mãe como

objeto primordial ao pai como objeto de amor. A introdução da noção de privação no exame

do complexo de castração da menina, que não existe em Freud, destaca o que para Lacan

esteve falho nos pós-freudianos: na substituição da mãe pelo pai, o desejo de filho não é mais

o mesmo depois que passa a se dirigir ao pai, e não mais à mãe.

Hay un olvido en el pasaje de uno a otro, el olvido de lo que quiere

decir dirigirse hacia el padre, a saber, pedirle un objeto que no tiene

otra existencia que la de poder ser demandado. Es un objeto que está

integramente en la demanda, estrictamente definido por ser un objeto

imposible. Si este hijo del padre es rechazado, es que apunta a un

deseo inscripto totalmente en el plano de la demanda. A propósito de

esto, Lacan utiliza el binario fundamental de esos años: deseo y

demanda – deseo llevado a la potencia de la demanda y enteramente

reducido a eso – para interrogar el lugar del Edipo (Laurent,

2005:78)

13

.

A partir de Lacan, entende-se, então, que a privação do desejo não extrai a sua importância da

existência do objeto privado, mas da aspiração do sujeito à algo que só pode ser demandado.

Na perspectiva de Laurent (2005), Lacan acaba por desenvolver uma vertente “contra-Édipo”

ao sustentar que a sexualidade feminina se ordena segundo um duplo registro, o da castração e

12

Retomaremos esta discussão no terceiro capítulo, a partir de Judith Butler (2003).

13

O trecho correspondente na tradução é: “Há um esquecimento na passagem de um ao outro, o esquecimento do

que quer dizer dirigir-se para o pai, a saber, pedir-lhe um objeto que não tem outra existência que a de poder ser
demandado. É um objeto que está integralmente na demanda, estritamente definido por ser um objeto
impossível. Se este filho do pai é rechaçado, é porque ele se direciona a um desejo inscrito totalmente no plano
da demanda. A propósito disso, Lacan utiliza o binário fundamental desses anos: desejo e demanda – desejo
levado à potência da demanda e inteiramente reduzido a isso – para interrogar o lugar do Édipo”.

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53

o da privação, e que isso se dá não a partir de um pai e de uma mãe, mas a partir do falo

enquanto significante do desejo.

Já no texto A Significação do Falo (1998 [1958]), Lacan dá conta da primazia desse

significante sem mais fazer referência ao complexo de Édipo. A definição simbólica do falo

como significante do desejo vem indicar que a linguagem dá nascimento ao desejo, de modo

que esse significante deve ser colocado como denominador comum a ambos os sexos. A

criança deseja ser o falo da mãe, ao mesmo tempo em que cai regida pelo falo enquanto

significante do desejo da mãe. Tornam-se entrelaçados, assim, a linguagem e a sexualidade.

Já se observou, com freqüência, que não se trata de uma castração que

se dirija aos órgãos genitais em seu conjunto, e é por isso mesmo que

ela não assume, na mulher, a aparência de uma ameaça contra os

órgãos genitais femininos como tais, mas de uma outra coisa –

justamente, como o falo. Do mesmo modo, pôde-se levantar

legitimamente a questão de saber se, no homem, convinha isolar na

idéia do complexo de castração o pênis como tal, ou incluir nela o

pênis e os testículos. Na verdade, essas discussões mostram bem que a

coisa de que se trata não é nem isso nem aquilo. É algo que tem uma

certa relação com os órgãos, mas uma certa relação cujo caráter

significante, desde a origem, não deixa dúvidas. É o caráter

significante que predomina (Lacan, 1999 [1957-1958]: 319).

O mérito da releitura de Lacan sobre a castração, neste momento de seu ensino, foi afastar a

vinculação dessa operação com a idéia de uma mutilação anatômica. Enfatiza a castração

como o encontro do sujeito com o mistério do falo, trata-se de quando a criança se dá conta de

que o desejo materno se orienta para outro lado, para o Nome-do-Pai. Nesse sentido, o falo

deve ser entendido como uma resposta contingente à pergunta do sujeito pela falta: “El falo es

lo que demanda una madre, él permite nombrar el enigma de su deseo y, en este sentido, es

diferente al miembro viril” (Pommier, 1986: 20).

Butler (2003) e Arán (2008b) defendem que a lógica significante, mesmo sendo um

instrumento de uma dissociação entre diferença e diferença sexual anatômica, acaba por nos

conduzir a uma concepção formal e transcendental da diferença sexual, evidenciando a

necessidade da psicanálise de fundamentar uma organização social baseada nas normas

tradicionais de gênero. As formulações que sustentam a diferença sexual como requisito

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54

imprescindível para a constituição da cultura demonstram que é a partir dessa noção que a

própria teoria é construída, o que nos remete à identificação entre diferença sexual e

dispositivo de poder. O sistema sexo-gênero subentendido pelas autoras na teoria psicanalítica

serve à regulação da sexualidade e da subjetividade em termos normativos.

Em contraposição a essa perspectiva, Pommier (1986) considera o falo o significante

da diferença pura, tendo em vista que sua posição é fundamentalmente correlativa ao desejo.

O falo representaria o ponto de impossibilidade de todo significante: a impossibilidade de

definir a si mesmo sozinho, tornando imprescindível a presença de um outro significante.

O falo corresponde à demanda do Outro, e não ao órgão sexual masculino. Da mesma

forma que o real do organismo é atravessado pelo sistema simbólico, também não é possível

falar do ser humano segundo a noção biológica dos instintos. A demanda do Outro, na qual o

sujeito é inserido antes mesmo de seu nascimento, provoca a instauração da pulsão e do

registro do desejo.

As constatações possíveis de se fazer pela observação do exterior,

bem como do interior do corpo humano, permanecem para nós sem

valor, pois o que se trata de apreender não é uma diferença entre

órgãos ou cromossomos que determinam nossa configuração, mas

uma diferença de sexos – esse termo designando aqui, para além da

materialidade da carne, o órgão enquanto aprisionado na dialética do

desejo, e dessa forma “interpretado” pelo significante [grifo do autor]

(André, 1998: 11).

Ao introduzir a lógica do significante no inconsciente, o autor leva o “tornar-se mulher” da

teoria freudiana de uma possível leitura desenvolvimentista ao ponto de vista das

conseqüências do significante para a assunção sexual do sujeito. André (1998) relê a teoria do

recalque de Freud, a partir de Lacan, compreendendo como função desse mecanismo a

substituição de uma sexualidade orgânica por uma sexualidade atravessada pela

representação, pelo significante. O recalque teria por princípio fornecer o significante, ou

melhor, o par de significantes (S

1

e S

2

), a fim de fornecer um contorno para a experiência do

real. Através do recalque, o significante delimitaria um contorno entre o real e o simbólico.

No homem, pelo fato de sua dependência da linguagem, a função

orgânica se acha elevada, numa função erótica que a ultrapassa, de

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55

forma que tudo o que é da ordem da necessidade se vê subvertido e

remanejado no registro do desejo. A partir daí a função orgânica do

ser falante se vê arrastada até um ponto-limite, num aquém do desejo,

quase fora de alcance. Beber, comer, até mesmo respirar – como

ilustra o ato de fumar – tornam-se atividades eróticas que o corpo

realiza apoiando-se mais na fantasia sustentáculo do desejo que na

exigência do organismo (André, 1998: 98).

A problemática que se encontra em jogo é saber como a sexualidade atinge o corpo,

separando-o do organismo. O recalque teria como tarefa, através da intervenção do

significante do falo, tornar o real uma realidade sexual, no sentido de que a linguagem esvazia

o corpo de sua carnalidade.

Na psicanálise a sexualidade é o próprio campo no interior do qual o

sujeito (e não o indivíduo) advém, por ser falante, na medida em que a

Linguagem faz suas marcas na matéria viva, nela inscrevendo as

insígnias de um desejo que não é, originariamente, do sujeito, pois que

o sujeito será uma resposta a isso. Este desejo, do Outro, é sexual, e

sexualiza um corpo vivo, previamente não sexualizado. A

sexualização significa precisamente que este corpo não era, no início,

antes de tudo, um corpo sexualizado [parênteses e grifo do autor]

(Elia, 1995: 93).

Nesse sentido, a sexualidade não tem nada de “natural”, ou ainda, não tem nada de

“primário”, pois é compreendida como uma constituição “secundária”, dependente de

significantes e desejos que lhe são exteriores e que acabam por esvaziar o corpo do sujeito

que de sua carnalidade. Porém, mais adiante, apresentaremos a tese lacaniana sobre o registro

do real, que coloca em xeque a idéia de que tudo é da ordem da linguagem. Nesse processo de

sexualização do corpo, na articulação entre corpo e linguagem, algo se precipita fora do

horizonte da linguagem, fora da possibilidade de representação.

A noção de sexuação em Lacan aparece dependente da ação do significante sobre o

sexo biológico, que por sua vez, deve ser localizado sob a ordem do imaginário. Sobre o

corpo imaginário, a ação do significante fálico inaugura todas as significações do ter e do não

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56

ter, do ser e do não ser. A sexuação diz respeito à maneira como o sujeito se inscreve frente à

castração e ao seu significante fálico (Φ).

Ainda no texto A Significação do Falo (1998 [1958]), Lacan trata da dialética do ser e

do ter na vida amorosa. Apresenta duas modalidades do desejo sexual como efeitos das

estruturas de linguagem, que acabam por instituir posições em seu interior: do lado masculino,

trata-se de ter o falo, enquanto do lado feminino, trata-se de sê-lo, se colocarmos as posições

sob a perspectiva simbólica.

Já a relação entre os sexos, no registro do imaginário, insere-se na vertente da

aparência: tanto o homem quanto a mulher desempenham o papel de quem detém o falo, a fim

de protegê-lo quando o possui ou para ocultar a sua falta quando não o possui. Proteger ou

mascarar a falta do falo dá à relação entre as posições um tom cômico, em que manifestações

ideais e típicas do comportamento de cada um dos sexos são, aparentemente, complementares

e simétricas.

Mas, atendo-nos à função do falo, podemos apontar as estruturas a que

serão submetidas as relações entre os sexos. Digamos que essas

relações girarão em torno de um ser e de um ter que, por se reportarem

a um significante, o falo, têm o efeito contrário de, por um lado, dar

realidade ao sujeito nesse significante e, por outro, irrealizar as

relações a serem significadas. E isso pela intervenção de um parecer

que substitui o ter, para, de um lado, protegê-lo e, de outro, mascarar

sua falta no outro, e que tem como efeito projetar inteiramente as

manifestações ideais ou típicas do comportamento de cada um dos

sexos, até o limite do ato da copulação, na comédia (Lacan, 1998

[1958]: 701).

Brousse (2005) chama a atenção para o caráter substitutivo ao qual se submetem o ter e o ser

o falo nesta citação de Lacan, o que leva à conclusão de que as posições sexuais são, de fato,

metáforas sexuais. Com a autora, concorda André (1998), que comentando a multiplicidade

de nomes dados aos órgãos sexuais no uso corrente da língua francesa, conclui que “o ser

falante se empenha em significar que o sexo é uma metáfora” (André, 1998: 11).

Butler (2002) defende que a “comédia dos sexos” é um paradoxo que torna as posições

sexuais excludentes e dependentes uma da outra. As hipóteses da assunção exclusiva de uma

única posição e da ligação de dependência de uma em relação à outra são pressupostos da

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57

matriz heterossexual, que prescreve a diferença sexual como coerência entre identidade e

desejo. A autora compreende, ainda, que o texto “manifestações ideais e típicas do

comportamento de cada um dos sexos” constrói a imposição de um ideal como enquadre. A

referência a um ideal evidencia a submissão dos sujeitos às normas de gênero e a inadequação

como fracasso.

A autora demonstra a norma de gênero implícita na descrição da posição feminina.

“Ser” o falo para quem o tem, garante a ilusão do sujeito masculino de “ter” o falo. Além de

ser determinado por aquilo que lhe falta, o feminino é estabelecido conforme a expectativa

masculina. Lacan dá continuidade à inteligibilidade da mulher somente enquanto objeto da

fantasia masculina.

A função do falo indica ainda que alguma coisa não deve ser desvelada, de forma que

é do falo enquanto véu que Lacan trata neste texto. O que necessita de um véu não

corresponde à zona anatômica do corpo humano em si, mas ao corpo enquanto não subvertido

totalmente pela libido, enquanto um corpo que permanece orgânico.

A subversão do corpo orgânico pela linguagem produz como efeito o fato de que os

pares de sujeitos jamais se recobrem, devido à existência de um hiato entre eles. Ainda em A

Significação do Falo

(1998 [1958]), Lacan retoma as condições do objeto de amor formuladas

por Freud. A divergência masculina entre objeto de desejo e objeto de amor ganha uma

redefinição em termos de “ter o falo”. Se, para Lacan, no amor, dá-se o que não se tem, o

objeto de amor escolhido pelos homens é castrado, mesmo que a falta seja velada pelo

fantasma. Já quanto ao objeto de desejo, vale a equação de equivalência entre mulher e falo

(Tendlarz, 2005).

O autor estende a duplicidade da vida amorosa também à mulher, que não pode amar

ali onde deseja. Mesmo que o amor e o desejo convirjam para o mesmo objeto, o desejo se

dirige ao órgão do parceiro como objeto fetiche, enquanto que a demanda de amor se

direciona àquele que está na posição de dar o que não tem, ou seja, à falta do Outro. A

duplicidade feminina está em exigir, às vezes do mesmo homem, tanto o portador do falo

quanto aquele que, por não ter o falo, pode dá-lo no amor. A feminilidade estaria relacionada

à prioridade de “fazer-se amar e desejar”, o que coloca a mulher em uma posição de maior

dependência dos signos do amor.

Sem abandonar a perspectiva de que a sexualidade se define a partir da função fálica e

de que é atravessada pela primazia da castração simbólica, o percurso lacaniano alcança uma

superação do modelo edipiano da sexuação, o que começará a aparecer com maior clareza no

seminário O Avesso da Psicanálise (1992 [1969-1970]).

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58

Para Ruiz (2005), a superação do Édipo enquanto saber mítico e o seu entendimento

enquanto estrutura está sendo traçado desde a tese de que a castração independe da função do

pai e depende da linguagem. O conceito de metáfora paterna, trabalhado em As Formações do

Inconsciente

(1999 [1957-1958]), apesar de ser uma formalização lógica do Édipo, já

demonstraria o mais-além do mito.

Esta orientación se reconoce, por ejemplo, cuando se independiza la

castración de la función del padre al hacerla depender de la

efectividad del lenguaje; cuando se demuestra la evidencia e

importancia de la castración del padre, o se establece el objeto como

perdido en lugar de prohibido, al hacer girar lo esencial de la estrutura

del sujeto en torno a la falta de objeto en tanto causa y no a la

presencia prohibida (Ruiz, 2005:120)

14

.

No campo psicanalítico, trata-se de um movimento importante no entendimento da sexuação.

O hiato que se abre entre o Édipo e a castração rompe com qualquer possibilidade de se

pensar o sexo sem mergulhá-lo na linguagem e de se entender a relação entre os sexos em

termos complementares ou simétricos.

Em seu seminário O Avesso da Psicanálise (1992 [1969-1970]), Lacan analisou o mito

do Édipo em articulação com outro mito freudiano, o Totem e Tabu (1996 [1913]). A

consequência desse trabalho foi a explanação da contradição entre os mitos em relação aos

efeitos do assassinato do pai para o gozo: enquanto no Édipo a morte do pai dá acesso ao gozo

da mãe, no segundo mito, o assassinato do pai instaura a proibição do gozo e a culpa sobre a

morte.

Se na descrição do complexo de Édipo o gozo é proibido pelo pai, em Totem e Tabu

(1996 [1913]), a perda de gozo é um sacrifício em nome do amor ao pai morto pelo

assassinato primordial. Entendendo que essas são as respostas de Freud à castração, Lacan irá

reformular a noção de castração, a fim de advertir que não é o pai e nem a lei que são

responsáveis pela perda de gozo, mas a linguagem: o gozo está perdido a quem fala (Brodsky,

1992 apud Slimobich, 2005). Como colocado por Ruiz (2005) na citação acima, a orientação

se desloca a partir da distinção entre proibição e perda.

14

O trecho correspondente na tradução é: “Esta orientação se reconhece, por exemplo, quando se faz a castração

ser independente da função do pai e depender da efetividade da linguagem; quando se demonstra a evidência e

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59

No mito criado por Freud, os irmãos da horda primitiva assassinam o Pai que os

impedia tiranicamente de gozarem de todas as mulheres, acreditando que esse deveria ser um

privilégio seu. No entanto, a partir de seu assassinato, os irmãos não têm acesso ao gozo

esperado. Ao invés disso, ingerem o Pai em um banquete totêmico e criam um pacto entre si

que exclui a possibilidade de um gozo pleno.

A lógica de Totem e Tabu (1996 [1913]) é a mesma da constituição do sujeito, se

pensamos que, em seu advento, esse último já é efeito de uma renúncia ao gozo pleno, cujo

caráter é, na verdade, mítico. Para Lacan, a castração é um fato de estrutura.

A partir da instauração desta Lei, que não é outra senão a Lei da

castração, todo gozo só é acessível como parcial, e mediante a ordem

simbólica, a ordem do significante, portanto trata-se, precisamente, de

uma Lei, e leis são da ordem do significante. Aliás, em favor do rigor,

devemos dizer que a própria parcialidade deste gozo é outra forma de

dizer que ele é mediatizado pela lei. Assim, em vez de dizermos que o

gozo possível é parcial e mediatizado pela lei, seria mais correto dizer

que ele é parcial porque mediatizado pela lei [grifos do autor] (Elia,

1995: 88).

O seminário O Avesso da Psicanálise (1992 [1969-1970]) constitui um outro deslocamento

teórico realizado por Lacan. Enquanto em As Formações do Inconsciente (1999 [1957-1958])

a articulação entre as noções de privação e de castração ficou restrita ao complexo de Édipo

feminino, mais tarde, a mesma adquire uma generalização.

A partir de ese momento, el estatuto del sujeto y el estatuto del padre

serán considerados – sea el sujeto femenino o no – a partir del

complejo de castración en la niña tal como había sido trasmitido por

Freud. Lacan lee la posición femenina de Dora como aquella que allí

donde estaba el padre quiere poner de relieve lo que causaba su deseo,

el de él (Laurent, 2005: 79)

15

.

importância da castração do pai, ou se estabelece o objeto como perdido em lugar de proibido, ao fazer girar o
essencial da estrutura do sujeito em torno da falta de objeto como causa e não da presença proibida”.

15

O trecho correspondente na tradução é: “A partir desse momento, o status do sujeito e o status do pai serão

considerados – seja o sujeito feminino ou não – a partir do complexo de castração na menina tal como havia sido

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60

A frustração desdobra-se, por um lado, na castração do pai idealizado, e, por outro lado, na

privação. Há uma assunção por parte de todo sujeito, feminino ou não, do gozo de ser

privado. O pai, não mais como pai idealizado e morto, é tomado por sua causa sexual.

O trajeto de Lacan é descrito por Laurent (2005) como tendo início no complexo de

castração feminino tal como Freud o colocou. A partir desse, foi destacada a necessidade de

se distinguir o pai idealizado, castrado e a filha privada. Já no seminário O Avesso da

psicanálise

(1992 [1969-1970]), o pai idealizado do mito freudiano, que como exceção

garante o universal da castração, é questionado. Relendo o caso Dora, Lacan demonstra que,

apesar da produção do pai idealizado, o pai gira em torno de uma causa sexual. Esse percurso

ao mais além do Édipo corresponde, segundo Laurent (2005), a destruição do pai como ideal

ou como universal. Isto corresponde ao deslocamento da proibição da mãe para a questão do

pai sustentar a sua existência no fato de haver se confrontado com o gozo de uma mulher. Há

de ter feito de uma mulher sua causa.

As formulações que levam Lacan ao mais além do Édipo são inseparáveis das

interrogações sobre o gozo feminino. A mulher, introduzindo a questão do sujeito que não

está todo na função fálica, inaugura também a assunção de um sujeito que goza de ser

privado, e já não castrado.

Segundo Miller (2005a), a união ao complexo de Édipo do mito de Totem e Tabu e do

complexo de castração possibilita a introdução do pai real, mais além das suas coordenadas

imaginária e simbólica. Trata-se da grande inauguração lacaniana: apontar o impossível no

centro da enunciação freudiana. O mito se apresenta como um enunciado do impossível, cuja

impossibilidade representa o indomesticável do gozo mediante o discurso.

Que o pai morto seja o gozo, isto se apresenta a nós como sinal do

próprio impossível. E é nisso mesmo que reencontramos aqui os

termos que defini como aqueles que fixam a categoria do real, na

medida em que ela se distingue radicalmente, no que articulo, do

simbólico e do imaginário – o real é o impossível. Não na qualidade

de simples escolho contra o qual quebramos a cara, mas de escolho

lógico daquilo que, do simbólico, se enuncia como impossível. É daí

que surge o real. Aí reconhecemos, com efeito, para além do mito de

transmitido por Freud. Lacan lê a posição feminina de Dora como aquela que, ali onde estava o pai, quer pôr em
destaque o que causava seu desejo, o dele”.

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61

Édipo, um operador estrutural, aquele chamado de pai real (Lacan,

1992 [1969-1970]:130).

Enquanto o Édipo permanece reconhecido como um mito, a castração passa a ser

compreendida como uma operação real introduzida pela incidência de qualquer significante

na relação do sexo; operação cujo agente é o pai real. Trata-se, portanto, de uma teoria que

não pode ser reduzida a uma espécie de naturalismo, tendo em vista a sua percepção de que o

ser humano pactua com a linguagem.

2.4 As fórmulas da sexuação

No texto Análise Terminável e Interminável (1996 [1937]), Freud recoloca o impasse

acerca da sexualidade feminina: a análise de uma mulher não ultrapassaria um limite, a inveja

do pênis. Lacan encara o impasse como teórico, e não só feminino: se o ser e o ter o falo não

respondem ao que quer uma mulher, a questão da feminilidade não se encerra pela via do falo.

O complexo de Édipo freudiano aparece como um obstáculo à análise psicanalítica, de

forma que é justamente a partir da orientação clínica que Lacan abre a possibilidade do mais

além do Édipo.

Así, si Freud merece el homenaje de Lacan por el desciframiento

fálico de la sexualidad femenina, es cierto que Lacan trata de conducir

el psicoanálisis más allá del falo, hacia el objeto a, que es también la

llave al más allá del principio del placer. Trata también de ir más allá

del complejo de Edipo, de tal manera que el revés de Freud es un más

allá de Freud (Miller, 1995: 30 apud Zack, 2005: 163)

16

.

O avanço lacaniano pode ser localizado na chamada segunda clínica ou clínica orientada pelo

real, que permite a formulação de respostas que não repousem no Édipo. A conclusão da

análise não é mais vista como uma impossibilidade e é remetida à tarefa analítica de ir mais

além do pai, mais além do impasse que o mito edipiano impõe à clínica freudiana.

16

O trecho correspondente na tradução é: “Assim, se Freud merece a homenagem de Lacan pelo deciframento

fálico da sexualidade feminina, é certo que Lacan trata de conduzir a psicanálise mais além do falo, em direção
ao objeto a, que é também a chave ao mais além do princípio de prazer. Trata também de ir mais além do
complexo de Édipo, de tal maneira que o avesso de Freud é um mais além de Freud”.

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62

A proposta lacaniana das fórmulas da sexuação desfaz a idéia de que o falo e a

castração são obstáculos à feminilidade, pois as posições sexuadas são inseridas no âmbito do

gozo e não mais do sexo. Esse deslocamento é possibilitado pela distinção articulada por

Lacan entre dois registros, o do gozo e o do significante.

Não é apenas em relação ao seu corpo que o sujeito sofre os efeitos do significante

fálico. Além do corpo imaginário, há um corpo habitado por um gozo, que também deve

inscrever-se na função fálica. Também há maneiras do sujeito localizar o seu gozo frente ao

significante fálico. Isso permite Lacan formular a sexuação para além das identificações

imaginárias e simbólicas, colocando em jogo o sujeito e seu gozo.

A partir desse movimento teórico, a feminilidade pode ser tomada em seu mais-além

do falo e do objeto da fantasia masculina. A castração, tal como formulada por Freud, passa a

ser entendida por Lacan como um “meio-dizer”, como um conceito que evidencia a

impossibilidade da verdade ser dita “toda”. Na leitura de André (1998), a castração em Freud

pode ser vista como tendo uma certa função para a teoria, a de proteger o lugar de mistério da

feminilidade (André, 1998: 205).

Se Freud apresenta em cada um dos mitos uma verdade sobre o gozo do sujeito, ora

proibido, ora perdido em uma espécie de sacrifício, Lacan se empenhará em ultrapassar esse

mesmo impasse através de uma complexificação do conceito de gozo. O gozo do pai

primitivo não pode ser identificado ao gozo sexual propriamente dito, tendo em vista que este

é uma limitação do gozo em geral, limitação realizada pelo significante que introduz a

dimensão do sexual no ser humano, concebida como a organização fálica.

A organização significante, concentrada sobre um órgão que a lógica fálica isola do

corpo, carrega a falta de um significante que dê conta do sexo feminino. Na dimensão do

discurso inconsciente, não há relação entre dois sexos, porque não há dois sexos opostos.

Lacan declara, assim, a não existência da relação sexual, revelação que dá conta de mostrar os

paradoxos constitutivos da sexuação. A relação sexo a sexo, marcada pela primazia do falo,

torna-se impossível de se escrever, impossibilitando a realização de uma relação no sentido

matemático do termo, mas apenas no registro do semblante.

O Outro Sexo, o sexo d’ A Mulher, não existe, não faz complemento à

sexualidade definida pelo falo, que vigora para ambos os sexos, mas

que, por isso mesmo, não os faz simétricos (Elia, 1995: 74/75).

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63

O gozo sexual, sendo, em seu fundamento, articulado ao significante fálico, impossibilita o

dizer de um gozo propriamente feminino. Porém, ao mesmo tempo em o exclui, o permite,

pois ao delimitar uma borda, o significante fálico produz o seu mais-além, introduzindo uma

divisão do gozo que será desenvolvida no seminário Mais, Ainda (1993 [1972-1973]), através

da delimitação do gozo do Outro e do fálico.

O gozo fálico é o efeito da incidência da castração e da interdição à

complementaridade sexual na subjetividade do sujeito. É o resto da operação de

atravessamento da pulsão pela linguagem e, por isso, é mediatizado pela lei do significante,

conseqüentemente, concerne à ordem fálica e sexual marcada pela perda do gozo mítico

pleno. Por outro lado, há o gozo do Outro, que será desenvolvido no livro vinte do seminário

como o gozo feminino, suplementar ao fálico. É caracterizado por ser o mais-além da lógica

fálica.

Nas fórmulas, o autor distribui os indivíduos em duas metades através do uso de

funções proposicionais. Ser homem ou ser mulher é definido pela posição do sujeito em

relação ao Outro e ao objeto, de modo que as fórmulas dizem respeito a formas particulares de

viver a pulsão, cujo objeto, vale lembrar, é fundamentalmente assexuado. Isso significa dizer

que, em sua origem, a sexualidade não está ligada a uma diferenciação dos sexos.

As “fórmulas de sexuação”, escritas no seminário XX, Mais, ainda (1993 [1972-

1973]), são dividas em lado esquerdo, que seria o lado masculino, e o lado direito, feminino;

sendo que cada um desses lados é designado por duas proposições. Temos para a posição

masculina: (1) “para todo x PHI (x)”; e (2) “existe um x tal que não PHI (x)”. O lado esquerdo

e masculino da fórmula considera, a partir da proposição na linha inferior, que todo homem

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64

está no âmbito da castração, mas que tal característica só se faz reconhecida pela existência de

uma exceção, escrita na linha superior: pelo menos um não é castrado. Lacan, inspirado pela

função de desvio do pai da horda do texto freudiano Totem e Tabu (1996 [1913]), formula que

essa exceção é justamente a função do pai, que subsistiria no inconsciente masculino,

reiterando a confirmação da regra geral de que o que torna alguém homem é a marca da falta

(David-Ménard, 1998).

Já para o lado feminino, pode-se ler: (1) “não existe x tal que não PHI (x)”; e (2) “não

é para todo x que PHI (x)”. A fórmula indica que “não existe nenhuma mulher que não tenha

relação com a lógica da castração” e, ainda, que “não é tudo, de uma mulher, que está ligado

com esta função” (David-Ménard, 1998). A primeira proposição, a de que todas as mulheres

estão referidas à função fálica, é verdadeira porque é a “definição possível [...] para o que

quer que se encontre na posição de habitar a linguagem” (Lacan, 1993 [1972-1973]: 107).

Porém, tal função não esgota o destino feminino. Lacan fala em um “suplemento” de gozo,

dimensão pela qual as mulheres se relacionam com o real, o que, por sua vez, os homens só

estabelecem através da mediação da fantasia. Estar “não toda” na função fálica enuncia um

“gozo a mais” para além do simbólico, denota aquilo que escapa ao discurso, mas que, ao

mesmo tempo, se ancora nele assim como se sustenta na falta que lhe é inerente.

O universal fundado a partir da referência ao falo inaugura a dissimetria entre os sexos,

denotando que “homem” e “mulher” representam duas possibilidades do sujeito falante, duas

vertentes da estrutura, não podendo ser entendidos como gênero. Lacan também pretende

romper com qualquer tentativa de subentender uma essência masculina e feminina. A

anatomia sexual pode estar implicada na questão do sexo frente ao “eu”, enquanto síntese

imaginária, porém, sob o ponto de vista do autor, o sexo é uma questão do sujeito, para quem

a vivência empírica dos genitais não confere obrigatoriedade. A este, será imputado o

significante “homem” caso se alinhe na função fálica, ou “mulher” caso se posicione “não

toda” na mesma.

Não é a lógica fálica em si que faz a diferença entre os sujeito, mas a posição subjetiva

pela qual os sujeitos se colocam submetidos a ela. Para os falantes, não se trata tanto de

identidades sexuadas, mas de posições, como Lacan pôde valorizar cada vez mais ao longo de

seu ensino. Cada uma das posições subjetivas são determinadas no próprio discurso do

sujeito, podendo ir contra a sua própria anatomia. Isso porque, nesse contexto teórico, não há

relação a priori entre um sexo biológico e uma posição sexuada.

Butler (2003) reconhece a conquista da teoria lacaniana em ultrapassar uma lógica

essencialista sobre homens e mulheres. Porém, considera pertinente a colocação de algumas

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65

indagações, tais como: por que se nomeia as fórmulas de “feminino” e “masculino”? Por que

a restrição a duas posições sexuais? A seu ver, Lacan sucumbe ao modelo do dimorfismo

sexual e continua determinando as mulheres somente em relação aos homens.

Lacan recorre ao mito de Tirésias para evocar o gozo suplementar do lado feminino

das fórmulas, que aparece também associado ao gozo do místico. O mito conta que Tirésias,

ao encontrar duas serpentes copulando, separou-as. Por ter realizado tal ato, troca de sexo,

vivendo sete anos como sexo feminino. Só retorna a ser homem ao encontrar novamente duas

serpentes copulando. A partir dessa travessia, adquire um saber sobre a diferença sexual.

Por ter sido homem e mulher, Tirésias é consultado por Hera e Zeus, que divergiam

quanto à resposta sobre quem goza mais, o homem ou a mulher. Afirma, então, que quem

goza mais é a mulher, e que se o prazer correspondesse a dez partes, nove delas seriam o

prazer feminino, enquanto que o masculino corresponderia a uma só parte. O dito de que a

mulher goza nove vezes mais do que o homem enfureceu Hera, que, por não querer ver

revelado o segredo feminino, pune Tirésias com uma cegueira.

Para Lacan, “A Mulher” é indizível porque seu gozo resiste às palavras, é o gozo do

Outro, para-sexuado, fora-da-linguagem. Sua característica é escapar do domínio do

significante, impossibilitando que se possa dele falar. Quem dele goza, goza de si mesmo

enquanto Outro a si mesmo.

No entanto, porque fala, a mulher entra tanto quanto o homem no gozo fálico, cuja

condição é o acesso à palavra, já que o falo é o símbolo da falta que limita todas as demandas

da mãe. Segundo Lacan, “podemos convir que, aparelho, não há outro senão a linguagem. É

assim que, no ser falante, o gozo é aparelhado” (Lacan, 1993 [1972-1973]: 75).

Las palabras son los instrumentos de un goce que no conoce la

diferencia de los sexos y se plantea idénticamente para todos los seres

humanos (Pommier, 1986: 57)

17

.

O que divergirá entre os sexos será o gozo suplementar, tendo em vista que os sujeitos que se

posicionam do lado direito das fórmulas são divididos diante da castração, colocando-se em

parte submetidos ao gozo fálico enquanto a outra parte situa-se do lado do gozo do Outro.

Algo, em cada mulher, escapa à castração, sendo exatamente isso o que as diferencia. No

17

O trecho correspondente na tradução é: “As palavras são os instrumentos de um gozo que não conhece a

diferença dos sexos e se coloca identicamente para todos os seres humanos”.

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66

entanto, é importante enfatizar que Lacan se refere a uma divisão ao nível do gozo, e não da

identidade.

Para David-Ménard (1998) e Arán (2008b), Lacan não supera o tom de mistério que

envolve a feminilidade desde Freud, tendo em vista que as fórmulas da sexuação, mais uma

vez, impedem qualquer determinação do feminino positivada. Para os críticos do autor, resta

uma dúvida: do que se trata, afinal, o gozo suplementar? Por que a idéia de um gozo não-todo

fálico não é a oportunidade de se romper de vez com a lógica fálica?

Arán (2008b) coloca que tomar o falo como significante a partir do qual toda a teoria é

construída é uma escolha comprometida em conceber o feminino segundo o princípio da

exclusão. A autora entende a fundação do masculino pelo significante como uma versão

psicanalítica para a dominação masculina.

Ainda em relação às fórmulas da sexuação, os escritos abaixo das proposições dizem

respeito a uma divisão da mulher que não corresponde à divisão do inconsciente. O A quer

dizer que uma mulher é dividida entre aquilo que ela é enquanto S e o que ela é enquanto não-

sujeito. O aspecto “não-toda” da feminilidade corresponde ainda a uma posição de “não-toda

sujeito”, ou “não-toda” determinada pelo inconsciente, tendo em vista que, ocupando o lugar

do Outro radical, não pode ser dita pelo inconsciente a não ser a sua falta.

Apesar de nomear as fórmulas do lado direito de femininas, Lacan não pretende

estabelecer o Outro gozo como traço feminino por excelência, o que seria uma tentativa de

delimitar um conjunto das mulheres, tarefa, para ele, impossível, pelo fato de que nenhuma

mulher faz exceção à regra, de modo que também não a estabelece. Isso significa dizer que

nenhuma mulher funda a existência de um sexo não fálico. Enquanto falta a exceção, falta a

regra, e, dessa forma, Lacan propõe que as mulheres sejam inseridas em um conjunto aberto,

ou melhor, que sejam contadas uma a uma, como em uma série.

A partir do entendimento de que o gozo suplementar só pode ser evocado e situado a

partir da castração e da função fálica, torna-se relevante pensar na relação, que, como

veremos, é entendida como uma não-relação, entre um gozo e outro. Em Mais, Ainda (1993

[1972-1973]), o autor se utiliza de um paradoxo de Zenão, o de Aquiles e da tartaruga, para

ilustrar tal tarefa. O argumento lógico diz que, apesar de Aquiles ser mais veloz do que a

tartaruga, nunca a alcançará, porque na altura em que atingir o ponto de onde a tartaruga

partiu, a mesma já terá se deslocado para um ponto mais adiante. A tartaruga “não é toda, não

toda

dele. Ainda falta. E é preciso que Aquiles dê o segundo passo, e assim por diante” [grifo

do autor] (Lacan, 1993 [1972-1973]: 16). Se a tartaruga tem uma vantagem sobre Aquiles, o

mesmo só pode alcançá-la na infinitude, porque o espaço em que cada um deles se desloca é

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67

diferente do espaço do outro, de forma que a distância que separa os dois estará sempre

dividida em dois. Para atingir o animal, primeiro é preciso que se percorra essa metade. E,

quando chegar lá, outras metades ainda faltarão.

Trata-se de uma analogia para aquilo que ocorre entre um homem e uma mulher e a

diferença entre seus gozos. Para Lacan, “o gozo não convém à relação sexual, por causa de ele

falar, o tal gozo, ela, a relação sexual, não há” (Lacan, 1993 [1972-1973]: 83). O gozo fálico e

o Outro gozo divergem em uma metade na qual não se unem, daí a afirmação lacaniana de

que a relação sexual não existe.

En cada etapa del razonamiento, la distancia que separa a los dos

protagonistas está dividida en dos. Esta mitad que los separa es la de

sus fantasmas donde ellos no se encuentran, aunque sea sin embargo

aquel en que ellos se buscan (Pommier, 1986: 82)

18

.

O paradoxo aparece como uma tentativa de escrever a não relação sexual. Trata-se de um

encontro com o real impossível, ou seja, de demonstrar a dimensão de infinitude do não-todo,

impossível de ser alcançada pela medida fálica, representada por Aquiles.

A originalidade deste momento de seu ensino é o deslocamento da questão feminina

do campo do sexo para o campo do gozo. André (1998) defende que a divisão do sujeito

feminino entre a lógica fálica e a não-toda fálica, a divisão da libido em dois gozos, seria uma

releitura da teoria freudiana da bissexualidade histérica, que, na verdade, diria respeito

justamente a dois gozos. A bissexualidade como o nome do desacordo fundamental que

impede a totalização do indivíduo, como o nome da divisão irremediável da sexualidade da

qual a fantasia histérica é porta-voz, é, para o autor, o precursor do lugar e do papel do Outro

enquanto Outro sexo para a divisão do sujeito, já que a histérica apresentava-se conflituosa

entre duas representações que procurava identificar com um sexo ou outro.

Outra formulação proposta acerca da mulher é a de que ela “não existe”. Essa

afirmativa de Lacan torna-se mais clara a partir de uma segunda tese, a de que não há

significante A Mulher. Isso quer dizer que não há um significante específico para a mulher

enquanto “um sexo sem outro”. Não há significante no Outro do sexo feminino enquanto tal

que não esteja referido ao homem e à função fálica.

18

O trecho correspondente na tradução é: “Em cada etapa do raciocínio, a distância que separa os dois

protagonistas está dividida em dois. Esta metade que os separa é a de seus fantasmas onde eles não se encontram,
ainda que, entretanto, seja aquilo em que se buscam”.

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68

Essa falta de significante a qual o autor se refere diz respeito ao âmbito do

inconsciente. Trata-se de uma falta considerada segundo o esquema fundamental de cada falta

simbólica: a foraclusão. Brousse (2005) propõe que os efeitos de falta de significante A

Mulher são da mesma ordem dos efeitos da foraclusão, e não da repressão ou da denegação. A

foraclusão implica em um furo no simbólico, o que faz as soluções para essa ausência de

significante corresponderem a formas de fazer suplência. Para a autora, devemos falar em

“feminilidades” no plural, já que os modos de se bordear o buraco no simbólico são

diversificadas e ocorrem ao nível da sexuação. A ausência de um termo adequado deixa

indeterminada a identificação, de modo que essa inconsistência dos traços identificatórios

impossibilita a definição de um modelo feminino.

Segundo André (1998), o impasse freudiano no que diz respeito à sexualidade

feminina está relacionado à tentativa de fazer das mulheres um conjunto, tarefa que Lacan põe

em cheque ao longo de seu ensino. É justamente da falta de ponto de apoio para a identidade

especificamente feminina que leva Lacan a formular que em uma mulher a imagem corporal

não consegue revestir e erotizar por completo o real do corpo. A questão é que a resposta para

o que seria esse real, em que a parte feminina abarcaria a feminilidade propriamente dita, é

impossível de ser formulada. Segundo o ensino de Lacan, nenhuma resposta positiva pode

resolver essa questão, pois significaria nomear um não-representável.

O corpo dito “feminino” se define por ser, parcialmente ao menos,

exterior ao saber, nenhuma articulação significante permitindo

responder pela diferença que a anatomia nos indica (André, 1998:

136).

Se para Freud a anatomia é o ponto de chegada da sexualidade, os destinos sexuais do sujeito

tornam-se um impasse para a conclusão da análise. Os traços próprios a sexualização de

homens e mulheres, a luta contra a posição passiva frente a outros homens e a inveja do pênis,

reaparecem, obstacularizam a análise e determinam o seu caráter interminável.

O percurso do ensino de Lacan trará a possibilidade do sujeito ir mais além do primado

do falo, justamente porque, desde Freud, a significação fálica é o ponto de partida da

constituição do sujeito, sem ser, necessariamente, o seu destino final. Trata-se de ir além do

falo enquanto nome do ponto de apoio simbólico que liga o sujeito ao Outro. O mais-além do

falo consiste no ponto de inconsistência do sistema simbólico.

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69

2.5 O real como alteridade radical

O que se torna inacessível para nós? Partindo dessa pergunta, Žižek (2008) desenvolve

a noção de real da diferença sexual. Segundo o autor, para Lacan, não se trata do inacessível

dos erros de interpretação e das ilusões atrelados ao imaginário, que distorcem o que

percebemos, assim como também não vem da rede simbólica através da qual nos

relacionamos com a realidade. O inacessível é o real inscrito no núcleo da sexualidade

humana, o que o sujeito perde ao entrar no regime simbólico da diferença sexual. Freud deu o

nome de “castração” a essa perda. Já Lacan preocupou-se em distinguir as noções de

castração e de real que, a seu ver, permaneceram confusas em Freud. O autor emprenha-se em

demonstrar que a castração não coincide com o furo do simbólico, ou seja, há a castração, mas

para além dela há o real.

No livro O Que Quer uma Mulher? (1998), André retoma o percurso do autor em

relação à elaboração do conceito de real, que ocupará um lugar cada vez mais especial na

teoria, sendo essencial, por exemplo, nessa nova concepção da castração e da diferença

sexual. O autor inicia o trajeto com a noção de real trabalhada no seminário, livro II (1985a

[1954-1955]), a partir de um sonho de Freud conhecido como o “sonho da injeção de Irma”,

descrito e analisado pelo mesmo no texto A Interpretação dos Sonhos (1996 [1900]).

O sonho corre da seguinte forma: Irma, uma amiga doente da família de Freud,

aparece sofrendo, de forma que Freud quer examinar a sua garganta. A mulher, em princípio

resiste, mas nas palavras do sonhador: “em seguida, ela abriu a boca como devia e, no lado

direito, descobri uma grande placa branca; em outro lugar, vi extensas crostas cinza-

esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por

modelo os ossos turbinados do nariz” (Freud, 1996 [1900]: 141). Três colegas são chamados a

examiná-la; um deles conclui que se tratava de uma infecção. No sonho, a origem da doença é

explicada pelo uso que Otto faz de uma seringa suja para dar a Irma uma injeção de um

preparado de trimetilamina. A fórmula da trimetilamina aparece nitidamente impressa em

letras grandes.

A releitura de Lacan sobre o sonho freudiano privilegiará dois pontos que se

relacionam, o espetáculo assustador do fundo da garganta de Irma e a emergência da fórmula

da trimetilamina. Sobre o primeiro, nos diz:

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70

Eis aí uma descoberta horrível, a carne que jamais se vê, o fundo das

coisas, o avesso da face, do rosto, os secretados por excelência, a

carne da qual tudo sai, até mesmo o íntimo do mistério, a carne, dado

que é sofredora, informe, que sua própria forma é algo que provoca

angústia. Visão de angústia, identificação de angústia, última

revelação do és istoés isto, que é o mais longínquo de ti, isto que é

o mais informe

[grifo do autor] (Lacan, 1985a [1954-1955]: 197/198).

Freud desaparece no sonho, o que para André (1998), permite que o mesmo prossiga, pois

Freud não precisa mais se a ver com o real. Começa a elaborar uma resposta a esse, que vai

desembocar na fórmula enquanto escritura simbólica.

Em sua leitura, Lacan articula tal sonho à própria forma como se deu a descoberta da

psicanálise: o fato que se diga ou que se sonhe se revela causado por um real inominável, real

que o inconsciente tenta delimitar como se bordeja um furo, pelo sistema do simbólico, pela

cadeia significante, da mesma forma que o saber psicanalítico tenta designar essa instância do

real com a ajuda de fórmulas ou matemas.

Uma outra temática é sublinhada por Lacan, o tema das três mulheres. Condensadas

em Irma, há três mulheres que resistem a Freud, ou porque nada lhe dizem, ou porque se

recusam a ser examinadas por ele, ou ainda porque tenham aderido para sempre ao mutismo

da morte. A figura da morte, do silêncio e do feminino se articulam em outros sonhos de

Freud e culminam na lembrança de sua mãe ensinando a ele que o homem é feito de terra e

deve a ela retornar. Assim, a principal figura da feminilidade vai entrando em cena: a mãe,

mas ao mesmo tempo, a morte, aquela de onde se vem, mas também aquela para onde se

retorna, aquela que nos alimenta e que finalmente nos absorve, nutriz e devoradora ao mesmo

tempo.

Na revelação deste algo de inominável propriamente falando, o fundo

desta garganta, cuja forma complexa, insinuável, faz dela tanto o

objeto primitivo por excelência, o abismo do órgão feminino, de onde

sai toda vida, quanto o vórtice da boca, onde tudo é tragado, como

ainda a imagem da morte onde tudo vem-se acabar (Lacan, 1985b

[1954-1955]: 208).

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71

Aparece aí um implícito que guia Freud: há alguma coisa no corpo da mulher que resiste ao

adorno fálico, alguma coisa que dele se destaca a própria morte, que é seu sexo propriamente

dito. O real, o pedaço de carne não adornado pela imagem erotizada do corpo, aparece aqui

estreitamente vinculado às noções de feminino e de morte, ambas saídas do gesto com o qual

a mãe de Freud o inicia nos mistérios da morte: é de seu próprio corpo que alguma coisa se

destaca, pequeno fragmento que se apresenta com o que há de mais real no corpo, encarnando

a realização mesmo da morte. Este resto que se destaca do corpo para além de toda imagem

nos propõe uma figuração cativante daquilo que Lacan chama de objeto a, e devemos

relacioná-lo com a mancha horrível percebida no fundo da garganta de Irma. Os restos que

caem da epiderme da mãe são os restos de real que caem de qualquer composição simbólico-

imaginária.

As três inevitáveis relações que um homem tem com uma mulher – a

mulher que o dá à luz, a mulher que é sua companheira e a mulher que

o destrói; ou que elas são as três formas assumidas pela figura da mãe

no decorrer da vida de um homem – a própria mãe, a amada que é

escolhida segundo o modelo daquela e, por fim, a Terra Mãe, que

mais uma vez o recebe (Freud, 1996 [1913]: 325).

É a Morte a palavra pela qual Freud significa o que resta da mãe, da mãe enquanto real,

enquanto proibida. Na medida em que uma parte dela fica sem significante, como uma zona

de silêncio em relação àquilo que se nomeia, a mãe é um equivalente da morte, e só na morte

é reencontrada.

Lacan irá designar na morte uma das figuras do real. Se a morte tem tanta importância

para nós, seres falantes, é porque ela nega o discurso; é o mutismo que quebra a espada da

palavra. Fica-se, então, menos surpreso de reencontrá-la no inconsciente como um

equivalente da mãe, até mesmo da feminilidade, na medida em que os desenvolvimentos da

teoria freudiana nos mostram que alguma coisa da feminilidade permanece absolutamente

fora do alcance da palavra, interdito no sentido mais forte do termo, quer dizer, presente no

mutismo que se intercala entre os ditos.

O sonho da injeção de Irma e o feminino colocam uma outra temática para a

psicanálise: a do umbigo, do não-cognoscível, para o qual converge todo o sistema de

representações. “Em seguida, ela abriu a boca” faz com que Freud distinga duas coisas: a

resistência do sujeito a abrir a boca, a falar, e aquilo que, uma vez a boca aberta, revela-se

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72

insondável. Que Irma se ponha a falar não implica em que vá dizer tudo, nem que Freud vá

saber de tudo. Persistirá um não-cognoscível. A noção do umbigo torna o mutismo mais

complexo, duplica-o: existe um silêncio no exterior da fala, que se opõe a esta, mas existe

também no interior mesmo da fala. Eis aí mais uma forma de demarcar, no discurso, aquilo

que constitui a realidade do sexo feminino: é o que vai se manifestar como furo no discurso,

como lacuna no tecido significante.

No Rascunho K (1996 [1896]: 276), Freud passa a falar do fenômeno primário da

histeria como “uma manifestação de susto com uma lacuna no psiquismo”, quer dizer, uma

ausência de representação. A lacuna e o susto psíquico são, com efeito, anteriores ao sintoma

histérico propriamente dito. É pelo recalcamento e pela repetição que a histeria vai se colocar,

quando o sujeito encontrar uma representação que o remeta àquela lacuna e àquele susto, estes

assumindo seu valor num “só-depois”. Freud diz que o recalcamento não se realiza pela

formação de uma idéia contrária poderosa demais, mas sim pelo reforço de uma

representação-limite

, que, a partir de então, vai representar a lembrança recalcada. Nenhuma

dessas noções – a de lacuna e a de representação-limite – foram retomadas por Freud. No

entanto, para André (1998), essas noções indicam o que retornará no caso do Homem dos

Lobos

(1996 [1918]): a presença de um elemento real, fora do conhecimento porque fora do

significante, no cerne do recalcamento significante que determina os sintomas – quer dizer a

insistência do real por detrás da problemática simbólico-imaginária da castração. Ainda

segundo André (1998), Freud segue falando da feminilidade por duas vertentes: a do real, a do

não-reconhecível, do mutismo e da morte, em que vai se realizar o fenômeno da repulsa; e a

vertente da castração, do primado do falo, em que vai se realizar o fenômeno do horror. A

segunda orientação ganhará mais espaço em Freud até encobrir a primeira.

Para o autor, trata-se de um movimento da obra freudiana observável especialmente no

tratamento da questão da feminilidade: o inominável vai sendo integrado ao sistema simbólico

até desaparecer completamente. Assim, se Lacan aparentemente propõe o inverso, não faz

mais do que restaurar uma verdade primeira da doutrina freudiana, verdade que foi eclipsada

pela teoria da castração.

O percurso lacaniano, que tem início no conceito de castração, tal como Freud o

deixou, atinge o seu ponto máximo ao alcançar o real. Revela que o sistema simbólico não é

mais do que uma tentativa de recobrimento daquilo que tende a escapar ao nome, ao

significante, e aos bordados da metonímia simbólica. As próprias composições simbólicas e

imaginárias não deixam de produzir um resto real. Lacan esclareceria, assim, a existência de

uma relação estrutural entre a feminilidade enquanto real e o falo enquanto significante.

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73

Cronologicamente, o real é anterior à ordem simbólica, porém possui essa

característica condicional de só poder ser designado e pensado enquanto tal a partir dessa

mesma ordem. O real pode ser entendido como efeito do simbólico, segundo a perspectiva de

sua função de causa. Só há o inominável em função do nome, assim como só há o real do

corpo em relação aos limites da simbolização.

Algo no está incluido en el conjunto de las palabras, y esta ausencia se

articula a la castración. La demanda, por una parte, y la cosa ausente,

por otra, forman un todo discordante que es el correlato de la

inadecuación de Otro a la persona que lo soporta: el objeto de las

demandas ocupa el lugar de esta inadecuación. Es por eso que la falta

que es inhetente al lenguaje se refiere finalmente al cuerpo (Pommier,

1986: 113)

19

.

O corpo, à medida em que existe a inconsistência das palavras, adquire uma função de

suplência, ocupando o lugar daquilo que elas falham em nomear. O genital pode ser

compreendido como o furo na consistência fálica da ordem simbólica, o ponto de

inconsistência simbólica, o ponto de real que fura o simbólico (Elia, 1995: 92).

Finalmente, o corpo é também real, não porque ele seja, afinal de

contas, também orgânico

: o corpo é real na medida em que não é

totalmente imaginarizado e simbolizado, ou, antes, porque o é não-

todo

, pois, a partir do corte representado por sua entrada na ordem

simbólica, que toma o corpo passível de recobrimento imaginário, o

corpo orgânico, para sempre perdido na experiência do sujeito, dá

lugar a um vazio não imaginarizável nem simbolizável, lugar,

inclusive, que se constitui como furo no campo das representações

[grifos do autor] (Elia, 1995: 107).

Para Elia (1995), se por um lado a psicanálise estabelece que a sexualidade é absoluta, no

sentido de que nenhum sujeito escapa às evidências do sexual, por outro lado, sustenta que a

19

O trecho correspondente na tradução é: “Algo não está incluído no conjunto das palavras, e esta ausência se

articula à castração. A demanda, por uma parte, e a coisa ausente, por outra, formam um todo discordante que é o

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74

mesma é não-toda, isto é, não diz todo o sujeito. Encobrir a totalidade da experiência

subjetiva em torno do sexual seria eliminar aquilo que escapa à significação fálica, seria

recusar o mais-além do sexual. A psicanálise, portanto, afirma a exclusividade do sexual, sem,

no entanto, ignorar a dimensão de furo do sexual, a impossibilidade radical e estrutural de

significação. A noção de gozo em Lacan viria marcar a impossibilidade de subsunção total do

real pelo simbólico, garantindo a subjetividade para além de suas representações

inconscientes.

A partir do trajeto realizado por Lacan a fim de estabelecer a noção de sexuação,

podemos retirar conclusões cruciais para o tema da diferença sexual: a assunção do próprio

sexo é acompanhada da admissão do sexo do Outro (Brodsky, 2005). Em termos lacanianos,

isso significa priorizar o encontro do sujeito com a existência de outra posição frente à

castração, frente ao desejo e ao Outro gozo, sobre o encontro, dito traumático por Freud, com

a diferença sexual, referente à primazia da perspectiva imaginária do corpo. A sexuação,

então, a recusa ou a assunção por parte do sujeito de seu próprio sexo caminha em paralelo ao

reconhecimento da diferença sexual enquanto alteridade.

As teorias lacanianas da sexualidade dão margem a interpretações normativas, por

assinalarem o modelo binário e hierárquico dos sexos à constituição da alteridade. Por outro

lado, a partir da interpretação normativa que Butler (2002, 2003) realiza sobre a psicanálise,

Žižek (1999) sublinhará no pensamento lacaniano a noção de diferença sexual como real e

como conceito formal sem conteúdo. Para o autor, em última instância, o real tem que ser

completamente dessubstancializado, o que confere uma certa radicalidade à noção de

diferença sexual. Empenha-se, assim, em descaracterizar a distinção dos sexos de seu caráter

simbólico e imaginário.

correlato da inadequação do Outro à pessoa que o suporta: o objeto das demandas ocupa o lugar desta
inadequação. É por isso que a falta que é inerente à linguagem se refere finalmente ao corpo”.

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CAPÍTULO 3

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS NOÇÕES PSICANALÍTICAS DE ALTERIDADE E

DIFERENÇA SEXUAL: o debate contemporâneo entre Judith Butler e Slavoj Žižek

Como vimos nos dois capítulos anteriores, a questão da sexualidade e da diferença

sexual perpassa de forma complexa a própria história do movimento psicanalítico.

Recentemente, estas noções têm sido problematizadas por autores que partem do pressuposto

de que, embora a sexualidade esteja estreitamente relacionada ao conceito de inconsciente e

de pulsão, ela não deixa de ser uma noção histórica e contingente. Partindo dessa

problematização, o presente capítulo analisará algumas questões que vem sendo relançadas

aos psicanalistas: a noção de diferença sexual deve se sustentar no modelo do dimorfismo?

Mesmo levando em consideração o modelo simbólico estruturalista de Lacan, as posições

sexuadas devem corresponder a um modelo binário e hierárquico? E finalmente, existe outra

possibilidade de pensar a noção de diferença e de alteridade na psicanálise para além do

dispositivo da diferença sexual? O que está em jogo nessas perguntas, para aqueles que

interpelam a psicanálise, é a repercussão cultural das teses sobre a diferença, tendo em vista

que a transformação de modelos histórico-contingentes da diferença sexual em um único

modelo universal caracterizaria uma teoria normativa, e, conseqüentemente, excludente.

Com o objetivo de aprofundar essas questões, analisaremos as críticas e as

contribuições de Judith Butler para a teoria psicanalítica a partir de sua interlocução com

Slavoj Žižek. Deteremos-nos especialmente nesses dois autores por entender que ambos se

encontram reconhecidamente envolvidos com os impasses contemporâneos que assolam a

psicanálise. Reconhecemos também que tanto um quanto o outro trazem importantes

contribuições ao pensamento psicanalítico.

Judith Bulter, lingüista norte-americana movida principalmente por uma proposta

política de inclusão e reconhecimento dos abjetos e dos gêneros não-inteligíveis (2002),

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76

empenha-se em localizar nos discursos psicanalíticos a assunção da identidade de gênero,

ainda que seus autores não utilizem essa categoria conceitual. A partir da desconstrução de

conceitos caros a Freud e a Lacan, tais como complexo de Édipo, identificação e posições

sexuadas, a autora pretende comprovar sua tese de que as psicanálises freudiana e lacaniana

perpetuam as normas de gênero e da heterossexualidade, podendo assim ser reconhecidas

como um dispositivo de poder no sentido foucaultiano do termo.

Slavoj Žižek discute as críticas de Butler à psicanálise, empenhando-se em clarear

argumentos internos à própria teoria psicanalítica que sejam eficientes em distingui-la de um

saber comprometido com a normatividade. Acaba por propor uma concepção de diferença

sexual a partir do último ensino de Lacan, a de diferença sexual sem conteúdo.

Em um primeiro momento, deteremos-nos na discussão que se dá em torno do ensino

de Freud e, logo em seguida, na de Lacan. Além disso, ao focarmos o debate contemporâneo

nos pensamentos de Butler e Žižek, direcionamos-nos ainda para a contribuição dos dois

autores em relação à questão da subversão da ordem hegemônica.

3.1 Controvérsias acerca do complexo de Édipo e do conceito de identificação em Freud

O conceito de complexo de Édipo em Freud foi abordado no primeiro capítulo deste

trabalho. Retomaremos aqui alguns aspectos importantes deste conceito para o debate atual da

diferença sexual na psicanálise freudiana. Iniciaremos a discussão apresentando a

argumentação de Butler (2003) na construção de uma crítica ao complexo enquanto um

modelo explicativo da subjetividade atravessado pelas normas heterossexistas de gênero.

Em Problemas de Gênero (2003), a autora faz referência a dois textos freudianos, um

de 1917, Luto e Melancolia, e outro de 1923, O Ego e o Id. Os dois escritos se associam da

seguinte forma: se no primeiro Freud trabalha o processo melancólico como patológico, no

segundo aponta para o fato de que este se faz tipicamente presente na formação das

identificações causadas pela dissolução do complexo de Édipo e formadoras do núcleo do

ideal do ego. Sendo este último concebido por Freud como uma estrutura funcional do ego

que “visa o campo intersubjetivo e trabalha com modelos, normas e valores” (Mezan, 2006:

294), Butler (2003) conclui que é a partir deste que se constitui a identidade de gênero. A

partir do desenvolvimento de sua leitura, cunha o termo “melancolia de gênero” para designar

o procedimento a partir do qual uma norma se torna psíquica.

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77

Como vimos anteriormente, o complexo de Édipo aparece desde o início da obra

psicanalítica, sofrendo muitas modificações até a sua elaboração definitiva

20

. Isso significa

dizer que Butler (2003) tomou o conceito como objeto de trabalho em um certo momento de

sua constituição, momento este que iremos tentar demarcar.

Segundo Mezan (2006), o movimento da concepção do complexo é paralelo ao do

conceito de identificação, pois enquanto este último não era desenvolvido, a relação da

criança com seus pais adquiria relevância apenas no nível da escolha de objeto, a influência

do triângulo edípico restringia-se ao “ato de eleger uma pessoa ou um tipo de pessoa como

objeto de amor” (Laplanche e Pontalis: 2001: 154). A partir do relato do caso do Homem dos

Lobos

(1996 [1918]) e do texto sobre o luto e a melancolia (1996 [1917]), ambos redigidos ao

mesmo tempo, o conceito de identificação ganha um formato mais preciso. Em O Ego e o Id,

de 1923, novas elaborações em torno do conceito o colocaram numa dimensão edipiana, não

mais sob a proteção do narcisismo.

Para resumir numa fórmula a relação entre o Complexo de Édipo e a

identificação, tal como ela se apresenta na constelação conceptual

presente, diremos que é a análise da identificação que fornece a

alavanca para o deslocamento do complexo da puberdade para a

infância. Esta modificação é crucial, já que, ocorrendo em época tão

precoce, o Édipo passa a ter a importância dos elementos infantis, o

que, segundo uma frase que citamos anteriormente, equivale a

equipará-los às pedras fundamentais da psicanálise (Mezan, 2006:

206).

As conseqüências do complexo na estruturação do sujeito passam a ser abarcadas por Freud

em termos de identificação: os investimentos da criança em relação a seus pais são

abandonados e substituídos por identificações que a estruturam psiquicamente. As instâncias

do sujeito passam a ser descritas como resquícios das diversas modalidades das relações de

objeto. A psicanálise acaba por conferir ao mecanismo da identificação o valor central de

operação pela qual o sujeito se constitui a partir da assimilação do outro como modelo.

20

Freud, nos seus últimos trabalhos teóricos, ainda se questionava sobre a inteligibilidade da sexualidade

feminina para a psicanálise, o que nos faz pensar o quanto o complexo de Édipo não teve um formato definitivo,
permanecendo de certa forma com pontos de abertura, o que também contribuiu para que os pós-freudianos o
retomassem.

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78

Ainda com o intuito de melhor analisar as argumentações de Butler (2003) acerca do

complexo de Édipo e do conceito de identificação, cabe aqui expor brevemente a tese central

de Freud sobre a melancolia no texto de 1917. Do luto ao quadro clínico da melancolia há

duas especificidades que fazem dessa última um processo patológico: (1) o objeto é perdido

sem que o sujeito possa precisar no que, ou do que, consiste essa perda; (2) ocorre um

empobrecimento do ego, cujos sintomas são as críticas e as humilhações que o indivíduo

dirige a si próprio. O autor explica o quadro clínico da melancolia através do conceito de

identificação: a libido que esteve investida no objeto, a partir da perda deste, é retraída em

direção ao ego. Tal processo justificaria o porquê das recriminações que o sujeito dirige a si

mesmo, já que a identificação causaria uma coincidência entre o ego e o objeto, de modo que

o ódio dirigido até então para o objeto passa a recair sobre o ego. Essa equivalência entre ego

e objeto se dá porque a identificação típica da melancolia se apresenta segundo o modelo da

“incorporação”, segundo “o modo de relação com o objeto característico da fase oral, que

consiste na sua ingestão e destruição simultâneas” (Mezan, 2006: 186). Trata-se, então, de um

regresso da libido a uma organização pré-genital e narcísica, em que o objeto perdido é

introjetado no próprio ego.

Butler (2003) reconhece na articulação desses elementos teóricos o que considera ser

uma explicação, baseada em Freud, sobre como se constitui a identidade de gênero.

Valorizando a tese psicanalítica acerca do tabu do incesto, sua sugestão principal se torna: se

a melancolia ocorre a partir da perda de um objeto de amor, então, nos é válida para pensar a

formação de gênero, pois esta, segundo a autora, seria inaugurada por uma perda de objeto,

aquele interditado pela proibição do incesto. O próprio Freud, em O Ego e o Id (1996 [1923]),

identifica o processo melancólico, antes visto sob seu caráter patológico, com o procedimento

típico da constituição do sujeito, em que as identificações produzidas pela dissolução do

complexo de Édipo formam o núcleo do ideal do ego.

Quando acontece uma pessoa ter de abandonar um objeto sexual,

muito amiúde se segue uma alteração de seu ego que só pode ser

descrita como instalação do objeto dentro do ego, tal como ocorre na

melancolia. [...] Pode ser que essa identificação seja a única condição

em que o id pode abandonar seus objetos. De qualquer maneira, o

processo, especialmente nas fases primitivas de desenvolvimento, é

muito freqüente, e torna possível supor que o caráter do ego é um

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79

precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém a

história dessas escolhas de objeto (Freud, 1996 [1923]: 42).

Essa é a ponte para Butler (2003) afirmar que, sendo tanto o complexo de Édipo quanto o seu

herdeiro, o ideal do ego, instrumentos de consolidação da identidade masculina e feminina, a

assunção do gênero, em Freud, se inicia com a perda de objeto de amor provocada pelo tabu

do incesto. Sob seu ponto de vista, a interdição do incesto, seja em Freud

21

ou em Lévi-

Strauss

22

, serve à naturalização da distinção entre a natureza e a cultura. No caso da teoria

freudiana, a lei que proíbe o incesto aparece tanto como elemento central na fundação da

civilização quanto na constituição do sujeito, tendo como função incidir sobre a sexualidade

tida como “natural” e “irrestrita”.

A autora critica o estatuto de universalidade conferido à proibição do incesto por Freud

e Lévi-Strauss. Mezan (2006), referindo-se a uma das primeiras menções freudianas ao

conflito edípico, feita em uma carta a Fliess (Freud, 1996 [1987b]) destaca como

“surpreendente” a universalidade que Freud atribui a esta constelação de sentimentos retratada

na lenda do Rei Édipo: “Cada pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na fantasia,

exatamente um Édipo como esse” (Freud, 1996 [1978b]: 316). No entanto, o que para Mezan

(2006) não se configura um problema, para Butler (2003), trata-se de negligenciar o que seria

um fato: a perspectiva psicanalítica é baseada em um formato específico de sociedade, aquela

que tem por norma a heterossexualidade e a opressão das mulheres. A idéia de que o tabu do

incesto marca a inauguração da cultura e do sujeito seria uma comprovação de sua tese, pois

através dele se estaria delimitando as formações sociais e subjetivas tal como quer a ideologia.

Butler (2003) realiza uma releitura dessa interdição, cuja intenção é trazer à tona o

que, segundo a autora, encontra-se implícito na teoria freudiana: a proibição, junto ao tabu do

incesto, da modalidade de desejo homossexual. Ao longo da construção do conceito de

complexo de Édipo, Freud evidenciaria o tabu como uma lei que incide sobre a criança

interditando o seu objeto de amor parental, seja este do mesmo ou do outro. No entanto,

Butler (2003) acrescenta que, em se tratando de uma modalidade de desejo homossexual, não

apenas o objeto de mesmo sexo ficaria interditado, mas também a modalidade de laço em si.

Nesse sentido, Freud não negaria a existência de um laço primário da criança com o genitor

do mesmo sexo, tanto que admite tanto a mãe quanto o pai como objetos de desejo para o

21

Os textos freudianos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, de 1905, e “Totem e Tabu”, de 1913, são

os citados por Butler (2003) na discussão sobre a interdição do incesto.

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80

menino. O seu equívoco estaria no desfecho que dá a cada um desses laços, momento em que

recorreria a uma distinção entre eles, segundo seu cunho homo ou heterossexual. A

modalidade de escolha objetal heterossexual consolidaria a identidade de gênero,

permanecendo presente em todo o desenvolvimento do sujeito, com a única diferença de que,

com a dissolução do complexo, seria deslocada para outros objetos que não o progenitor. Ao

contrário, a modalidade de desejo homossexual seria reprimida junto com o objeto do mesmo

sexo. A relação primária de cunho homossexual seria recalcada na evolução do Édipo e na sua

dissolução.

Butler (2003) reconhece, assim, uma distinção quanto ao desfecho esperado por Freud

da relação edípica de cunho homo ou heterossexual. Enquanto essa última dependeria de um

processo de luto normal, em que a libido retirada do objeto perdido se desloca para novos

objetos, a primeira seria substituída por uma identificação melancólica, em que o objeto

perdido é incorporado ao ego. A autora defende que a psicanálise restringe o processo

melancólico ao destino da escolha objetal homossexual, identificando a exclusão de tal

modalidade de relação através da sua transformação em um tipo especial de identificação.

No caso de uma união heterossexual proibida, é o objeto que é

negado, mas não a modalidade de desejo, de modo que o desejo é

desviado desse objeto para outros objetos do sexo oposto. Mas no

caso de uma união homossexual proibida, é claro que tanto o desejo

como o objeto requerem uma renúncia e, assim, se tornam sujeitos às

estratégias de internalização da melancolia (Butler, 2003: 93).

Em A Organização Genital Infantil, de 1923, Freud começa a valorizar o papel da castração

para o complexo de Édipo, de forma que em 1924, no texto A Dissolução do Complexo de

Édipo,

sua tese central passa a ser a de que o complexo e a fase fálica sucumbem à ameaça de

castração, dando origem ao período de latência. O complexo de castração é centrado numa

fantasia construída pela criança frente ao enigma da distinção anatômica dos sexos. O autor

demonstra a significação narcísica que o pênis adquire nas construções fantasmáticas tanto

dos meninos quanto das meninas, pois ao mesmo tempo em que o menino teme a castração a

partir da ameaça paterna frente à sua atividade sexual, a menina percebe a ausência do pênis

como um dano sofrido, pretendendo negá-lo, compensá-lo ou repará-lo. Adquirindo ao longo

22

A referência bibliográfica em que Butler (2003) se baseia é: LÉVI-STRAUSS, Claude. “The Principles of

Kinship”. In: The Elementary Structures of Kindship. Boston: Beacon Press, 1969.

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81

do movimento psicanalítico um caráter fantasmático, a angústia de castração pode ser

resultado de experiências traumáticas diversas, que intervém sob um elemento de perda, de

separação de um objeto. Nessa direção, adquire uma função primordial na dissolução do

complexo de Édipo e sua substituição pelo ideal do eu. Tomando como ilustração o modelo

masculino, o autor afirma:

Se a satisfação do amor no campo do complexo de Édipo deve custar

à criança o pênis, está fadado a surgir um conflito entre seu interesse

narcísico nessa parte de seu corpo e a catexia libidinal de seus objetos

parentais. Nesse conflito, triunfa normalmente a primeira dessa forças:

o ego da criança volta as costas ao complexo de Édipo (Freud, 1996

[1924]: 196).

A articulação freudiana entre os complexos de Édipo e da castração é outro ponto de objeção

de Butler (2003), que subentenderá na concepção do “medo da castração” um “medo de

castração”. Sua sugestão se inicia com a seguinte constatação: se Freud aponta que a criança

será obrigada a fazer uma escolha entre dois tipos de objeto, ou mais precisamente, entre dois

tipos de predisposições sexuais (masculina e feminina), também demonstra ser mais comum a

escolha heterossexual. A autora propõe, a partir de então, que essa normalização da escolha

heterossexual não pode ser explicada pelo medo do menino frente à ameaça da perda do pênis

infligida pelo pai, mas sim pelo medo de castração, isto é:

[d]o medo da ‘feminização’, associado com a homossexualidade

masculina nas culturais heterossexuais. Com efeito, não é

primordialmente o desejo heterossexual pela mãe que deve ser punido

e sublimado, mas é o investimento homossexual que deve ser

subordinado a uma heterossexualidade culturalmente sancionada

(Butler, 2003: 94).

Em seu livro sobre os limites materiais e discursivos do “sexo”, Cuerpos que importan

(2002), a autora parte da distinção própria à psicanálise entre repressão e foraclusão para

esclarecer o valor do assunção de gênero na obra freudiana. Anterior à repressão que incide

sobre o vínculo amoroso da criança pelo genitor de sexo oposto estaria a necessidade de

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82

foraclusão da união com o objeto de mesmo sexo, em que esse último conceito concebe uma

outra ordem de proibição, que se constitui fora do circuito de auto-reflexão.

A autora nos confere, então, a seguinte leitura: a relação objetal cujo objetivo é

heterossexual exige a repressão do objeto, que desencadeando um processo de luto, desloca a

libido para outros objetos que não o interditado, mas de mesmo sexo que este. Já a relação

objetal cujo objetivo é homossexual exige a foraclusão do objetivo, o que é possível pelo

desenvolvimento de um processo melancólico, já que, como nos diz Freud, a transformação

da libido do objeto em libido narcísica “obviamente implica um abandono de objetivos

sexuais, uma dessexualização – uma espécie de sublimação, portanto” (Freud, 1996 [1923b]:

43).

A razão para que a psicanálise faça essa distinção entre o vínculo amoroso da criança

com o genitor de mesmo sexo, que deve ser foracluído, e aquele com o de sexo oposto, que

deve ser reprimido, é justamente o que relacionaria essa teoria a uma ideologia heterossexista.

Butler (2002) pretende demonstrar que a teoria acerca da identidade sexual em Freud não

admite o fato de que tanto a heterossexualidade quanto a dominação masculina são normas

sociais e contingentes, vulneráveis ao campo histórico e passíveis de transformação. No seu

entender, o saber psicanalítico acaba por apelar a uma anterioridade ao campo do social, cuja

função seria impor limites nos conformes da matriz heterossexual. A crítica recai, assim,

sobre a tendência da psicanálise a universalizar identidades sexuais quando as normas de

gênero são contextuais. O conhecimento psicanalítico sobre a sexualidade acabaria

funcionando como um dispositivo de poder, no sentido foucaultiano do termo, pois

[...] a lei repressiva efetivamente produz a heterossexualidade, e atua

não como código meramente negativo ou excludente, mas como uma

sanção e, mais apropriadamente, uma lei do discurso, distinguindo o

que é dizível do que é indizível (delimitando e construindo o campo

do indizível), o que é legítimo do que é ilegítimo [parênteses da

autora] (Butler, 2003: 101/102).

A autora conclui que é o desejo da psicanálise pela diferença sexual que desvaloriza a função

do mesmo no processo de constituição subjetiva. Enquanto dispositivo de saber, a psicanálise

estaria toda marcada por esse “desejo”, tendo em vista a sua constituição como um a priori no

qual se baseiam posteriormente as construções teóricas subjetivas. Ainda baseada em

Foucault, Butler (2003) leva esse raciocínio adiante, defendendo que as teses freudianas

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83

acabam por modular as formações de gênero, restringindo e delimitando os limites do

enunciável, como também produzindo o campo da visibilidade.

A autora utiliza as categorias “gêneros inteligíveis” e “gêneros não inteligíveis”, cuja

fronteira seria delimitada, no caso da psicanálise, como que por uma fórmula: a de que os

opostos se atraem. Os autores psicanalíticos atribuiriam retroativamente o desejo por uma

mulher a uma posição desejante necessariamente masculina. Butler (2002) trata essa

formulação como uma conseqüência da lógica freudiana e aponta para mais outra, a de que, se

através da identificação melancólica e de seu efeito de incorporação o objeto perdido acaba

por ser introjetado ao ego, então, o sujeito deve escolher como objeto de amor aquilo no qual

tem medo de tornar-se.

Nesse ponto da tese de Butler, Žižek (1999) comenta a ambigüidade inerente a seu

argumento que, para o autor, oscila entre duas posições subjetivas: a identidade de gênero

assumida através da incorporação melancólica do mesmo ou como defesa contra assumir a

posição subjetiva (a identidade de gênero) referente ao sexo oposto. O movimento pendular

da autora se dá entre a idéia de que uma mulher ama um homem por este ser um homem e a

hipótese de que o ama justamente para tornar-se uma mulher (desejante por um homem e

desejada por ele). Trata-se, então, de uma confusão entre a noção freudiana de escolha de

objeto e a teoria da identificação.

O conceito inicial do complexo de Édipo ou a sua forma “simples e positiva” limitava-

se à dimensão das escolhas de objeto. Tanto o conflito edipiano masculino quanto o feminino

eram descritos da mesma forma: a criança se sente atraída pelo progenitor do sexo oposto e

hostiliza o do mesmo sexo. Com a inexistência dos conceitos de identificação e das

organizações pré-genitais da libido, o complexo edípico era localizado no momento de

subordinação das pulsões parciais à zona genital, ou seja, na puberdade. A partir da

elaboração das teses sobre o narcisismo, que tem uma face voltada para o ego e outra para o

objeto, e sobre a identificação, Freud começa a traçar a gênese do ego, na qual os fatores

intersubjetivos assumem um lugar central na estruturação do sujeito. É sob o ângulo do ego

que o complexo passa a ter sua forma completa, com sentimentos ambivalentes frente aos dois

genitores. Nesse contexto, Freud observa que

[i]sso nos conduz de volta à origem do ideal do ego; por trás dele jaz

oculta a primeira e mais importante identificação de um indivíduo, a

sua identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal. Isso

aparentemente não é, em primeira instância, a consequência ou o

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84

resultado de uma catexia do objeto; trata-se de uma identificação

direta e imediata, e se efetua mais primitivamente do que qualquer

catexia do objeto. Mas as escolhas objetais pertencentes ao período

sexual e relacionadas ao pai e à mãe parecem normalmente encontrar

seu desfecho numa identificação desse tipo (melancólica), que assim

reforçaria a primária [parênteses nosso] (Freud, 1996 [1923b]: 44).

Como sugerido em nota de pé de página pelo editor, tomemos o capítulo sobre identificação

do texto freudiano de 1921, Psicologia de Grupo e Análise do Ego, a fim de esclarecer do que

se trata essa identificação “primária”. Nas palavras do próprio Freud:

É fácil anunciar numa fórmula a distinção entre a identificação com o

pai e a escolha deste como objeto. No primeiro caso, o pai é o que

gostaríamos de ser; no segundo, o que gostaríamos de ter, ou seja, a

distinção depende de o laço se ligar ao sujeito ou ao objeto do ego. O

primeiro tipo de laço, portanto, já é possível antes que qualquer

escolha sexual de objeto tenha sido feita. É muito mais difícil fornecer

a representação metapsicológica clara da distinção [grifos do autor]

(Freud, 1996 [1921]: 116).

Este texto nos interessa aqui na medida em que Freud é conclusivo em afirmar que a

identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto, de modo que a

vinculação objetal libidinal lhe é posterior. Essa distinção temporal entre identificação

primária e escolha de objeto libidinal, não reconhecida por Butler, comporta a tese de que a

primeira é um derivado da fase oral da organização libidinal, em que o objeto que prezamos é

assimilado (e aniquilado como tal) por ingestão.

Em contraposição ao esquema de Butler que vincula necessariamente a perda do objeto

edípico do mesmo sexo à identificação melancólica, Freud, em O Ego e o Id (1996 [1923]),

reconhece uma dissimetria entre a evolução do processo de identificação da menina e do

menino. No caso deste último, a tomada do pai como modelo e como objeto de desejo são

mutuamente excludentes, de forma que a identificação no menino não corresponde à retenção

melancólica do objeto perdido. Esta seria mais comum no Édipo feminino, já que, a

identificação da menina com o pai reforçaria os traços masculinos de seu caráter, sem, no

entanto, conduzir à homossexualidade. Essa distinção se dá porque, no caso da menina, há a

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85

possibilidade do desejo de ser um homem ser substituído pelo desejo de possuir um homem,

através das séries de equivalência apresentadas pelo autor em 1917, no texto As

Transformações do Instinto Exemplificadas no Erotismo Anal

. No entanto, o próprio Freud,

em O Ego e o Id (1996 [1923]), ainda não dá a devida importância a dissimetria entre os

Édipos feminino e masculino, acabando por enfocar outra reflexão, aquela acerca da

bissexualidade constitucional.

Por outro lado, Freud reconhece o quanto é difícil obter uma inteligibilidade sobre as

primitivas escolhas de objeto e identificações, afirmando que na fase oral primitiva do

indivíduo, a catexia do objeto e a identificação são indistinguíveis. Atribuirá tal complicação à

bissexualidade original e constitucional da criança e à sua conseqüente versão completa do

Édipo, que faz com que um menino não tenha apenas uma relação ambivalente frente ao pai e

uma escolha objetal afetuosa pela mãe, como também o inverso.

Mais complicado ainda se torna explicar a dissolução do complexo, visto que a

presença de duas disposições sexuais simultâneas dá origem a conflitos que complexificam a

assunção do sexo. O autor se vê, assim, às voltas com a necessidade de explicar como as

quatro tendências em que o complexo consiste se transformarão de forma a produzir uma

identificação paterna ou uma identificação materna, sendo que a primeira “preservará a

relação de objeto com a mãe, que pertencia ao complexo positivo e, ao mesmo tempo,

substituirá a relação de objeto com o pai, que pertencia ao complexo invertido; o mesmo será

verdade, mutatis mutandis, quanto à identificação materna” (Freud, 1996 [1923b]: 46). Ainda

nesse texto, a contribuição do autor para o tema se refere à idéia de que uma das disposições

sexuais prevalecerá em qualquer indivíduo, de forma que uma identificação se tornará mais

intensa e consolidada.

Quanto à noção de bissexualidade em Freud, Butler (2003) retoma sua crítica frente ao

pressuposto psicanalítico de que apenas os opostos de atraem.

A conceituação da bissexualidade em termos de predisposições,

feminina e masculina, que têm objetivos heterossexuais como seus

correlatos intencionais sugere que, para Freud, a bissexualidade é a

coincidência de dois desejos heterossexuais no interior de um só

psiquismo.

Com efeito, a predisposição masculina nunca se orienta

para o pai como objeto de amor sexual, e tampouco se orienta para a

mãe a predisposição feminina (a menina pode assim se orientar, mas

isso antes de ter renunciado ao lado ‘masculino’ da sua natureza

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86

disposicional). Ao repudiar a mãe como objeto do amor sexual, a

menina repudia necessariamente sua masculinidade e ‘fixa’

paradoxalmente sua feminilidade, como uma consequência. Assim,

não há homossexualidade na tese de bissexualidade primária de Freud,

e só os opostos se atraem [grifos da autora] (Butler, 2003: 96).

Como podemos ver, para a autora, a bissexualidade integra uma concepção maior que associa

de forma rígida e a priorística identidade e objetivo sexuais. A disposição feminina estaria

condicionada a um objeto amoroso masculino e vice-versa.

Outro ponto crucial para Butler (2003) em relação à tese da bissexualidade recai sobre

os momentos em que Freud não abre mão da idéia de que existe uma “tendência” ou uma

“predisposição” que acabará por provocar o recalque da bissexualidade primária em direção à

consolidação identitária de gênero. A psicanálise freudiana estaria sugerindo a existência da

bissexualidade apenas enquanto uma configuração sexual que deve ser superada pelo

fortalecimento de uma sexualidade “secundária”, limitando-se a uma interpretação

evolucionista da identidade de gênero, influenciada pelas normas hegemônicas.

A noção de bissexualidade primária é criticada por referir-se restritamente a um

“antes” da inserção do indivíduo na cultura, pressupondo um “depois” e servindo à

naturalização da distinção entre natureza e cultura. Assim como o complexo de Édipo, as

disposições bissexuais, oferecendo uma maneira de situar a construção primária de gênero, é

alvo de contestações quanto à fixidez das posições masculina e feminina, rigidez que

perpetuaria o modelo da diferença sexual anatômica para se pensar a questão da alteridade.

Esta leitura acerca das teses freudianas, segundo a qual a psicanálise é um dispositivo

de poder que serve à reprodução da heterossexualidade compulsória, não é unânime. Alguns

autores se empenham em demonstrar o equívoco dessa interpretação, esclarecendo os

conceitos no interior da própria teoria.

A concepção freudiana de que existiria uma bissexualidade original em todo ser

humano é uma interpretação reconhecidamente influenciada por Wilhelm Fliess, de quem

Freud acaba se distanciando. O autor se mostra reticente quanto a sua posição frente à idéia de

bissexualidade, de forma que, mesmo afastando-se dela de uma maneira geral, em alguns

momentos a retoma. Por exemplo, torna-se difícil conciliar essa noção com a da primazia do

falo, tese segundo a qual este prepondera para ambos os sexos. Além dessa ambigüidade

teórica, o termo também acaba por complicar o entendimento das reflexões de Freud, já que o

que o autor pretende dizer, muitas vezes, se distancia daquilo que a palavra parece indicar. Já

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87

em 1905, no texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, o conceito de bissexualidade

designa uma monossexualidade inicial, a existência de uma só libido, a masculina. A questão

da bissexualidade se colocaria, então, apenas para as mulheres e para os homens

homossexuais. No entanto, nesse mesmo livro, em nota acrescentada em 1915, Freud sublinha

a relevância para a psicanálise de se compreender o “masculino” e o “feminino” no sentido de

“atividade” e “passividade”.

André (1998) observa que essa nota foi acrescentada por Freud aos Três Ensaios no

momento em que está elaborando o conceito de pulsão, cuja originalidade é fundamental para

distinguir a leitura psicanalítica da sexualidade das demais; questão cara àqueles que se

empenham em defender a psicanálise das críticas que vem recebendo quanto à sua

potencialidade de normatização. A pulsão não é organizada a partir do pólo macho/fêmea,

mas sim em torno de oposições fundamentalmente assexuadas, como atividade/passividade e

sujeito/objeto, o que instaura novos entendimentos acerca da diferença sexual. O

deslocamento que Freud faz de uma visão anatomo-biológica da sexualidade e do corpo

humano para uma teoria pulsional desemboca em um outro deslocamento, relevante ao nosso

tema: a polaridade pulsional assume o lugar da diferença entre os sexos. Conseqüentemente,

do ponto de vista do inconsciente, a atração entre homem e mulher não é um dado a priori,

como faz entender Butler (2003) a partir da tese de que Freud normatiza as normas de gênero

e a heterossexualidade.

O conceito de pulsão passa a ser valorizado no debate contemporâneo por aqueles que

se empenham em esclarecer os equívocos das leituras pós-freudianas no que se refere ao tema

da sexualidade e da alteridade. Duas teses retiradas da teoria das pulsões são de grande valor

nesse sentido; são elas: (1) a de que a diferença sexual não corresponde à diferença sexual

sustentada pelo modelo do dimorfismo sexual, segundo o qual há uma divisão binária e

hierárquica dos sexos e (2) não há objeto predeterminado da pulsão, de forma que esta não

prescreve comportamentos individuais.

Elia (1995), em Corpo e Sexualidade em Freud e Lacan, discorre sobre a distinção

metodológica da psicologia e da psicanálise, contribuindo para um maior esclarecimento

acerca da novidade freudiana em relação ao corpo e à sexualidade. A primeira disciplina teria

como objeto o indivíduo, categoria cujo estatuto passa pela ontologia e cuja lógica insiste

numa concepção psicobiológica do mesmo, pois depende da natureza e de suas regularidades

reconhecidas. Enquanto isso, o campo pulsional teorizado por Freud divide o espaço

psicofísico, rompendo com a unidade individual e trazendo à tona o fato de que não há

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88

recobrimento do corpo orgânico pelo pulsional. A sexualidade não é apreensível no interior de

um sistema psicobiológico, o que deixa de fora a própria diferença sexual anatômica.

Na dimensão do inconsciente, não há representação da categoria “homem” ou

“mulher”. Isso se dá na dimensão imaginária e mesmo na simbólica, porém a sexualidade

aparece como uma questão do sujeito, pois este se constitui de forma atrapalhada em relação a

seu sexo. Na verdade, essa interpretação psicanalítica da sexualidade depende radicalmente da

noção de sujeito que postula, em que este é dividido pelo inconsciente. A postulação de

inconsciente traz uma conseqüência radical para a idéia de indivíduo, pois este nunca mais é

visto pela psicanálise como tal.

Freud constata que a diferença de órgãos apresentada pela anatomia

do corpo humano não significa, ao nível do inconsciente, como uma

divisão entre dois sexos. [...] Freud chegará – em vez de se apoiar

numa clivagem entre dois sexos – a inscrever a divisão que se

introduz com a sexualidade, no ich, no próprio sujeito do inconsciente

(André, 1998: 21/22).

Se, em 1905, Freud já apontava para a impertinência de se pensar “masculino” e “feminino”

em

seu

sentido

biológico

ou

sociológico,

designando-os

pela

polaridade

atividade/passividade, postulará a partir daí uma série de outras oposições até anunciar a

primazia do falo para ambos os sexos e o complexo de castração.

É a isso que Freud chama o falo, isto é, o pênis enquanto podendo

faltar. Em outras palavras, o menino, diante do órgão genital

feminino, vê alguma coisa, mas o que vê não é um sexo feminino, é a

castração. À partição masculino-feminino que a anatomia sexual

parece colocar em evidência, o saber inconsciente prefere, de alguma

forma, a oposição não-castrado/castrado (André, 1998: 22).

A partir do estudo das perversões, Freud reconhece que alguns sujeitos, diante do órgão

genital feminino, têm duas reações contrárias e simultâneas, a de constatar a falta do pênis e a

de pronunciar que ele está presente. Tal observação culmina na conclusão de que a polaridade

não castrado/castrado pode se produzir no interior do sujeito. Ampliando essa tese para além

do campo da perversão, o autor defende a existência de uma clivagem subjetiva em todos os

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89

sujeitos, mesmo que as versões desta divisão entre o desejo e o real se dê de forma distinta em

cada uma das estruturas clínicas. A diferença sexual em Freud deve ser localizada entre duas

posições do sujeito, sendo estas representadas pela clivagem do Id e pelos pólos

atividade/passividade e eu/objeto.

Outra contribuição do conceito de pulsão para o debate contemporâneo acerca da

sexualidade em Freud se inicia a partir da noção de objeto. Enquanto o instinto designa um

padrão fixo de comportamento, comum a todos os membros de uma espécie, e exige um

objeto específico e pré-determinado de satisfação, a pulsão constitui-se como uma medida de

trabalho imposta pela ligação do psiquismo com o corpo, impossibilitando a pré-determinação

do objeto. A pulsão não traz consigo um objeto específico e nem adequado, já que não há

recobrimento apropriado do corpo anatômico pelo pulsional.

O objeto da pulsão, como já foi claramente demonstrado

anteriormente, é o que há de mais variável numa pulsão, sendo

escolhido tão-somente por prestar-se mais proficientemente à

satisfação, na contingência de uma dada situação singular [grifo do

autor] (Elia, 1995: 47/48).

Do ponto de vista pulsional não há prescrição de objeto e nem de comportamento individual,

tese que vem demonstrar o fracasso das possíveis soluções padronizadas e normativas do

Édipo sublinhadas por Butler (2002, 2003). Soler (2005) chama a atenção para o trio

conceitual com o qual Freud explica a sexualidade humana: pulsão, identificação e escolha de

objeto. Para a autora, através do complexo de Édipo e da teoria da identificação, o autor dá

consistência às normas, modelos, obrigações e proibições vindas do discurso do Outro com

relação à identidade anatômica. Enquanto é conferida à fase edipiana a função de corrigir a

sexualidade infantil pela unificação, através do processo de identificação, das pulsões

perversas polimorfas, Freud descreve como a solução padronizada heterossexual se impõe ao

complexo de castração, ao preço de sacrifícios e fiascos, além do caráter atípico conferido a

outra configuração. No entanto, o autor reconhece a impossibilidade da saída edípica pré-

determinada ser realizada plenamente, tanto que demonstra os limites que lhe impõe as

pulsões recalcadas, que não cessariam de retornar no sintoma.

A partir do texto freudiano, mas indo além deste, Lacan cunha o termo “sexuação”

para enfatizar como o sexo não se determina segundo um dado anatômico, mas segundo a

relação do sujeito com a castração, essa sim, reveladora de uma dissimetria entre homens e

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90

mulheres. O deslocamento realizado por Freud da questão da diferença dos sexos para a

divisão do sujeito será ampliado em Lacan, para quem, o Édipo assume um caráter estrutural,

como veremos a seguir.

3.2 Controvérsias acerca das noções de diferença sexual em Lacan

O percurso lacaniano que se dá em torno da sexualidade e da diferença sexual foi

desenvolvido no segundo capítulo deste trabalho. Nosso intuito, nesse momento, é o de

analisá-lo a partir do debate atual sobre a noção de alteridade na psicanálise. Lacan é

referência imprescindível na discussão suscitada pelo contexto contemporâneo das novas

sexualidades, porque, ao mesmo em que deu continuidade ao pensamento de Freud, foi além

deste, propondo teses de repercussões polêmicas tanto dentro da comunidade psicanalítica

como fora dela. Iremos seguir a mesma direção de seu trabalho, tomando como ponto de

partida conceitos originados em sua fase estruturalista até alcançar a sua tentativa de abarcar

teoricamente a dimensão do real. Para melhor apresentarmos as discussões entre os autores

contemporâneos diante das formulações lacanianas, dividiremos este subcapítulo em dois

eixos, um referente ao contexto teórico do simbólico estrutural e o outro às fórmulas da

sexuação. Posteriormente, trabalharemos as propostas de Judith Butler e Slavoj Žižek que vão

ganhando forma ao longo do debate: as normas de gênero histórico-contingentes e a diferença

sexual formal sem conteúdo; o ato ético e os deslocamentos disruptivos biopolíticos.

3.2.1 A análise crítica do simbólico estrutural

A quarta concepção do complexo de Édipo freudiano ganha em Lacan um estatuto

estrutural. Isso é possível porque é nesta passagem que o seu conteúdo empírico deixa de ser

valorizado como determinante, perdendo importância para o aspecto simbólico da oposição

presença/ausência do pênis. A divisão dos sexos deixa de se relacionar com o par

masculino/feminino quando Freud observa que o órgão genital da mulher não é representado

por um esquema corporal que lhe seja próprio. A partir daí, o autor confere uma primazia ao

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91

falo enquanto operador único para os dois sexos, desvalorizando a função da anatomia para a

constituição da sexualidade.

O pênis, porém, não é somente uma parte do corpo; como elemento

diferencial entre si e os outros, ele possui o valor simbólico de definir

o sujeito; em outras palavras, um valor narcisista que o converte em

Falo (Mezan, 2006: 284).

Em termos lacanianos, não há significante que represente o órgão feminino, o que impede que

a oposição se coloque em termos de masculino e feminino; esta passa a ser representada pelo

par fálico/castrado. Como efeito desta torção, o conceito de castração freudiano também se

desloca, passando a ser priorizado em sua dimensão fantasmática e não em suas versões

experimentais, o que, para Mezan (2006), suscita uma nova elaboração sobre a sexualidade

feminina em sua especificidade, visto que passa a ser reconhecida em sua não-simetria com a

masculina. A quarta fase do complexo de Édipo inauguraria, assim, uma verdadeira tentativa

de dar lugar à diferença.

A anatomia é o destino, mas não a tragédia. A experiência da

diferença sexual anatômica já o mostra, pois não é a vagina, como

elemento diferencial positivo, que impressiona a criança, mas a

ausência de um signo.

Estamos, nunca é demais repeti-lo, no domínio

simbólico, em que o Falo coincide com a Fala, jamais com a falha. O

simbólico concerne à constituição do sujeito, independentemente do

sexo empírico ser o masculino ou o feminino. Como a repetição e o

Édipo, a castração é da ordem do transcendental, dos princípios

fundadores, nada tendo a ver com a vivência psicológica ou com a

empiria genital [grifo do autor] (Mezan, 2006: 286).

Lacan enfatiza no Édipo freudiano seu caráter constituinte para o sujeito, estando este para

além da imaginária relação afetiva da criança com os pais; que passa a ser entendida como a

forma fenomenal do complexo, resultado da sua forma estrutural, e não sua condição.

Adquirindo uma compreensão que não se esgota nos conteúdos genitais empíricos de homens

e mulheres e nem no triângulo familiar, o Édipo funciona como princípio transcendental,

aproximando-se a uma “categoria vazia” (Mezan, 2006: 287).

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92

Segundo Lacan, o sujeito só passa a existir sob condição de um recalcamento primário

dos prazeres incestuosos e pré-individuados associados ao corpo materno. Recorrendo à

proibição do incesto e à exogamia de Lévi-Strauss, o autor pensa a cultura como um conjunto

de estruturas e significações lingüísticas, em que a lei do incesto institui esse recalque

primário que funda o sujeito. Instaurando a perda do objeto e sua conseqüente insatisfação, a

lei paterna, por intermédio da linguagem, propicia a busca do sujeito pelo prazer

irrecuperável.

Apesar de reconhecer o mérito de Lacan por romper com visões essencialistas sobre o

sujeito e, conseqüentemente, sobre homens e mulheres, Butler (2003) considera que o autor

constrói uma outra ontologia do ser, já que insiste em uma concepção do simbólico como uma

estrutura universal que precede a existência, pré-determinando-a. O entendimento de que o

“ser” é produzido pelas estruturas de significação, podendo denotar posições e funções

variáveis, faz-se plausível a partir do apelo a conceitos transcendentais, qualidade que a autora

questiona, tendo em vista a sua anterioridade frente às subjetividades. Ao invés de conferir

explicações, tais conceitos passam a fornecer e forçar as delimitações entre os campos do que

é inteligível e do que não é. Assim, se a diferença sexual, sob o ponto de vista da psicanálise,

não é a anatomo-biológica, é, no entanto, ainda restrita a duas outras posições do interior da

linguagem: a de “ser” e a de “ter” o falo.

Na visão de Butler (2003), os mecanismos de diferenciação descritos pelo autor ficam

sempre atrelados à figura do pai, enquanto à mãe é conferido o poder de alienação, de

manutenção da indistinção entre ela e a criança. Se o Édipo prescreve duas funções, denotadas

“paterna” e “materna”, a partir das quais o sujeito depende para a sua constituição e para a sua

entrada no simbólico e na cultura, então, o raciocínio lacaniano normatiza a dualidade mulher-

natureza/homem-cultura. Segundo Arán (2008b), tomar como um a priori transcendental a

equação mãe-alienante/pai-separador faz da psicanálise um saber comprometido com as

normas de gênero, tendo em vista que o simbólico e a diferença ficam localizados apenas no

âmbito do “masculino”, associado à função “paterna”; enquanto que a dimensão “feminina” e

“materna” se restringiria ao domínio do “fora”, ou ainda, daquilo que é “anterior” (ao

simbólico ou à cultura, ou ainda, à civilização).

Não há portanto inquirição da ontologia per se, nenhum acesso ao ser,

sem uma inquisição prévia do ‘ser’ do Falo, a significação

autorizadora da lei que toma a diferença sexual como pressuposto de

sua própria inteligibilidade [grifo da autora] (Butler, 2003: 74).

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93

A leitura de Butler (2003) enfatiza que o discurso psicanalítico é atravessado pela matriz

heterossexual, que acaba por instaurar a diferença sexual como um pressuposto da lei

simbólica, fazendo com que não haja acesso ao ‘ser’ sem o encontro com a diferença sexual.

Até então, a autora está referida às idéias desenvolvidas no texto lacaniano A Significação do

Falo

(1998 [1958]) a fim de demonstrar como as versões estruturais do Édipo e da castração,

ambos centrados no falo como significante, aproximam-se de uma inteligibilidade

heterossexista, cujo efeito é prescrever a dualidade dos sexos, ainda que disfarçada em outra

roupagem, que não a do “masculino” e a do “feminino”.

Neste trabalho, Lacan trata da relação do homem com a linguagem e dos seus efeitos

sobre o primeiro. O atravessamento do sujeito pela estrutura da linguagem resulta no fato de

que o falo passa a ter uma função de significante, que é o ponto de partida para o autor

apontar as estruturas sob as quais serão submetidas as relações entre os sexos. Descreve,

assim, duas posições, a de “ser” e a de “ter” o falo, sendo que a primeira é vista como

referência para se pensar a posição da mulher, enquanto a segunda fica associada à posição do

homem.

Onde Lacan diz que a posição das mulheres de “ser” o falo se refere a “ser o

significante do desejo do Outro”, Butler (2003) lê que o “ser” feminino é ser objeto de um

desejo masculino heterossexualizado. Essa definição do feminino, em sua concepção, não

confere a ele uma dimensão alteritária, visto que é atravessada por uma interpretação

masculina acerca das mulheres. Entender a mulher enquanto aquilo que ela é para o homem é

uma auto-elaboração masculina que não compreende o outro em sua diferença, mas apenas

em sua objetificação.

A autora chama a atenção ainda para a dialética conferida à identidade feminina: “ser”

o falo e, ao mesmo tempo, ser seu Outro: a mulher, a quem falta o falo, é também quem é o

falo. Butler (2003) sublinha como efeito desse paradoxo a interpretação de que as posições

sexuadas são simultaneamente excludentes e dependentes entre si, visto que “ser” o falo para

quem o tem garante a ilusão do sujeito masculino de “ter” o falo. “Ter” o falo é ter a ilusão de

uma autonomia, sendo esta mascarada e desmascarada pela mulher a todo o momento. Esta,

em sua posição de “ser” o falo, torna-se fundamental para o estabelecimento e a manutenção

da ilusória autonomia masculina, mas também pode revelar sua incoerência. Segundo a

autora, essa relação de dependência entre as posições sexuadas é negada e afirmada pela

psicanálise num movimento pendular ininterrupto: ora o sujeito deve ser afastado do corpo

materno, recalcando os prazeres incestuosos, ora o corpo materno retorna em objetos

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substitutivos, como deslocado para o corpo da mulher-esposa. As mulheres, a partir de sua

própria falta, acabam por estabelecer a função essencial dos homens de “ter” o falo. Para

Butler (2003), “ser” o falo equivale a ser o emblema da circulação contínua da lei paterna, é

ser objeto constituído de troca, através da qual a lei paterna estende o seu poder. Numa crítica

que se desdobra a Lévi-Strauss, a autora defende que o intercâmbio de parentesco estruturado

a partir da troca exogâmica de mulheres é relativo a um tipo específico de sociedade, em que

se naturaliza a subordinação do desejo feminino à lei paterna.

Se para Lacan as posições sexuais são estruturadas pela própria linguagem e instituídas

por demandas simbólicas através das relações constitutivas da vida cultural, para Butler

(2002) essa construção acaba por conferir à identidade de gênero um aspecto fantasístico,

visto que, identificar-se com uma posição simbólica implica em jamais alcançá-la.

A posição feminina [...] vale como metáfora do Outro, na medida em

que este é impossível de ser atingido, enquanto permanece para

sempre Outro. Uma mulher fica, então, enquanto mulher,

radicalmente fora do alcance do sujeito, inclusive do sujeito que se

alinha na posição feminina (André, 1998: 169).

“Ter” e “ser” o falo são, na verdade, posições idealizadas e impossíveis, estando fadadas ao

fracasso no nível da experiência subjetiva. Nessa leitura, o simbólico lacaniano é

invariavelmente fantasístico, não compartilhando medidas com a realidade, o que passa a ser

interpretado como o próprio propósito de uma concepção transcendental, pois a distância

inevitável entre a identificação imaginária e a posição simbólica é a ameaça que vem reforçar

a importância de se ajustar ao modelo.

Assim, verifica-se a impossibilidade necessária ou pressuposta de todo

esforço para ocupar a posição de “ter” o Falo, com a consequência de

que ambas as posições, a de “ter” ou a de “ser”, devem ser entendidas

nos termos de Lacan, como fracassos cômicos, todavia obrigados a

articular e encenar essas impossibilidades repetidas (Butler, 2003: 77).

Butler (2002, 2003) realiza uma nova leitura do complexo de castração, entendendo que a

ameaça do castigo que acompanha a assunção do sexo na teoria psicanalítica do complexo de

Édipo é justamente o temor de se ocupar as identidades não inteligíveis. A ameaça diante da

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qual o Édipo sucumbe nada mais é do que a da homossexualidade abjeta, entende a autora.

Enquanto um “dispositivo” no sentido foucaultiano, a psicanálise

organiza-se em torno de

regimes de luz e de enunciação, distribuindo o visível e o invisível, o dizível e o indizível, de

forma que a “assunção” de uma identidade necessariamente passa pela exclusão de outras. No

âmbito da identidade sexual, delimita-se a fronteira entre os sexos inteligíveis e os abjetos.

Para Butler (2002), trata-se de uma lógica do repúdio, uma necessidade política de governar

certas posições através da prática da exclusão. A psicanálise, enquanto teoria sobre a

subjetividade, constitui-se às voltas com as suas restrições políticas, reconhecidas pela autora

como as figuras do gay afeminado e da lésbica fálica. Através da identificação fantasmática, o

simbólico lacaniano operaria a imposição heterossexista, tornando a homossexualidade e a

heterossexualidade incompatíveis entre si.

Si asumir un sexo es em cierto sentido uma “identificación”, pareceria

que la identificación es un sitio en el qual se negocian insistentemente

la prohibición y la desviación. Identificarse con un sexo es mantener

cierta relación con una amenaza imaginaria, imaginaria y vigorosa,

que es vigorosa precisamente porque es imaginaria (Butler, 2002:

153)

23

.

Como dito acima, a lei descrita pela psicanálise produz um corpo tenebroso e o rechaça como

sendo um corpo “anterior” à lei. Tomando-o como ameaça imaginária, prescreve uma

identidade de gênero fixa e coerente. As figuras de abjeto da psicanálise, inseridas no

simbólico apenas como exemplo desse corpo tenebroso de “antes” da lei, servem à

diferenciação e à organização hierárquica das posições sexuadas, de forma que “todo o resto,

então, torna-se incompreensível caso não corresponda a este esquema binário hierárquico, e

permanece como um excesso impossível de ser inscrito no âmbito simbólico” (Arán e Peixoto

Júnior, 2007:13).

Para defender sua hegemonia de gênero, a identificação prevista pela psicanálise inclui

a prescrição de certos desejos e a proteção contra outros. No entanto, numa análise

foucaultiana, a proibição de certas posições sexuadas tem como efeito a produção ambivalente

do desejo, contendo em si a possibilidade de resistência e transgressão do quadro binário caro

23

O trecho correspondente na tradução é: “Se assumir um sexo é em certo sentido uma “identificação”, parece

ser que a identificação é um lugar no qual se negociam insistentemente a proibição e o desvio. Identificar-se com

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96

ao paradigma masculino heterossexualizado. A impossibilidade de concretização plena das

identificações idealizadas pela lei simbólica da psicanálise, numa perspectiva foucaultiana,

seria a evidência da própria impropriedade política dessa concepção de lei. Valorizados

enquanto resistência, os “fracassos” identificatórios seriam a direção mesma para alteração da

lei. O fato de que o repúdio às figuras de abjeto deve ser reiteradamente reforçado através da

ameaça de castigo, a fim de coibir o sujeito a se instalar dentro das fronteiras e a construir sua

pretensa “integridade”, sinaliza o quanto a desestabilização indentitária também funciona

como ameaça. Isso sinaliza o quanto a idéia de uma identidade coerente e fixa é, na verdade,

uma fantasia que nega sua originária (re)construção social pela complexidade discursiva.

A uniformidade do gênero e da heterossexualidade é o pressuposto de uma teoria que

acaba por tomar o sexo como idêntico a si mesmo, responsável pela masculinidade e

feminilidade. Porém, essa aparente unidade é construída por práticas reguladoras através da

lei, que, num mecanismo de reafirmação de sua autoridade, deve reinvestir invariavelmente

no risco de seu fracasso. Se o simbólico implica na desgraça das tarefas que ele mesmo

impõe, seu propósito não pode ser o de alcançar um objetivo, visto que não o alcançaria

jamais. Seu propósito, adianta Butler (2003), parece ser a escravização do sujeito frente a sua

ordem, tendo em vista o fato de que a inevitabilidade do seu fracasso não leva a medidas de

transformação da configuração da lei.

Como em Lacan é o simbólico que cria a cultura, não havendo nada pré-discursivo,

como negar que é o discurso que demarca o domínio daquilo que é inteligível e do que não é?

Tendo essa indagação como guia de análise, Butler (2002) busca comprovar que o recalque é

secundário à exclusão, estando esta sempre a delimitar a lei simbólica e seus objetos de

subordinação. As posições sexuadas não seriam anteriores a lei, mas fruto dessa enquanto

ficção. Há uma reiteração dessa crítica ao simbólico a priorístico de Lacan numa referência à

Genealogia da Moral

, de Nietzsche, quando este sugere que o Simbólico inacessível, no caso

falava de Deus, não é inacessível por si, mas é assim constituído por um poder, que se

apresenta como impotente na tentativa de mascarar a origem de tal inacessibilidade. A

psicanálise se relacionaria com o simbólico tal qual com um deus, conferindo-lhe uma

estrutura transcendental, invariável e determinante, como se tal transcendência não fosse sua

própria criação. O simbólico da psicanálise é definido por Butler (2002) como a própria

dimensão normativa da constituição do sujeito sexuado, que através de sua suposta

transcendência, fundamenta e sustenta uma formulação sobre a diferença sexual específica de

um sexo é manter certa relação com uma ameaça imaginária, imaginária e vigorosa, que é vigorosa precisamente
porque é imaginária”.

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97

um contexto histórico-social. No estruturalismo lacaniano não cabe o reconhecimento das

diversas formas de constituição das subjetividades, o que significa também um não

reconhecimento da alteridade.

Žižek (2008) defenderá que Lacan nunca deixou de evidenciar a determinação

histórica do simbólico e a sua dependência aos contextos ideológicos específicos, de modo

que o mesmo não é concebido como uma rede formal dada a priori que limita as práticas

humanas. A seu ver, o autor se interessa por precisar como os gestos de simbolização se

entrelaçam com e se inscrevem na práxis coletiva. No entanto, influenciada pela obra de

Foucault, a crítica de Butler (2002) à psicanálise lacaniana recai sobre a sua produção de

universais. Em nome da “estrutura”, Lacan cria universais irredutíveis a transformações

sociais, o que, para a autora, é uma construção que deve ser explicada, ao invés de tudo

explicar. As posições sexuadas em Lacan, enquanto forem reconhecidas como modelo

universal para explicar a assunção do sexo, ainda constituirão mecanismos de modulação das

subjetividades. A autora pretende explicitar que o simbólico lacaniano é um dispositivo de

poder construído social e historicamente com fins políticos, como a sustentação da

heterossexualidade e do binarismo masculino/feminino. Arán (2008b) se apropria de outra

noção foucaultiana, a de “formas de subjetivação”, para justificar a necessidade de se

abandonar o Édipo enquanto única forma de constituição do sujeito. Reconhecendo-o como

apenas uma forma possível de subjetivação, a autora realiza uma abertura para outras

diferentes possibilidades de constituição subjetiva.

3.2.2 A problematização das fórmulas da sexuação

Quando se encontra às voltas com o que denominou de “a não existência da relação

sexual”, isto é, com o impacto dos paradoxos constitutivos da sexuação e com o deslocamento

da questão do desejo para a do gozo, Lacan propõe as fórmulas da sexuação como uma

tentativa de dar inteligibilidade aos modos de gozo dos sujeitos inseridos na linguagem. Para

isso, recorreu ao falo, enquanto quantificador universal, que é conceituado pelo autor

enquanto significante da falta, em torno do qual o “masculino” e o “feminino” se definem,

visto que se posicionam de maneira distinta em relação a ele. A originalidade presente nas

fórmulas frente às posições evocadas anteriormente diz respeito ao reconhecimento de uma

dimensão “para além da lógica fálica”. Já em uma passagem de valorização do real frente ao

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98

simbólico e ao imaginário, Lacan nos fala de dois modos de gozo para indicar a constituição

da sexuação do sujeito.

Para os comentadores de Lacan, sob a ótica do gozo, a constituição sexual do sujeito

se distanciaria tanto da materialidade do sexo quanto da idéia de gênero, pois refere-se a duas

maneiras a partir das quais os sujeitos falantes, homens e mulheres, se inserem na função

fálica. Não é a função em si que as faz diferentes; o que as faz diferentes é a posição subjetiva

através da qual os sujeitos se anunciam submetidos a ela. Apesar disso, as fórmulas serão

tomadas por autores contemporâneos como uma réplica das modalidades hegemônicas de

gênero.

O lado esquerdo e masculino da fórmula significa que todo homem está no âmbito da

castração, mas que isso só se faz reconhecido pela existência de uma exceção: pelo menos um

não é castrado. Inspirado pela função de desvio do pai da horda primitiva do texto freudiano

Totem e Tabu,

de 1913, formula que a exceção subsiste no inconsciente masculino,

confirmando a regra geral de que o que torna alguém homem é a marca da falta (David-

Ménard, 1998).

Em relação à formula feminina, a primeira proposição equivale a dizer que “não existe

nenhuma mulher que não tenha relação com a lógica da castração”, enquanto que a segunda

diz “não é tudo, de uma mulher, que está ligado com este função” (David-Ménard, 1998). A

fórmula indica que a mulher está “não toda” na função fálica, o que aponta um “para além” do

falo:

Isso corresponde também à idéia de que as mulheres não são marcadas

pela castração a propósito de tudo; algo do que as faz mulher joga-se

no excesso com relação a esta determinação, que entretanto lhes

concerne também (David- Ménard, 1998: 99).

Trata-se justamente de uma tentativa lacaniana de ressituar o gozo feminino em relação à

castração: reconhece-se que a feminilidade se coloca para aquele que não se assujeita

inteiramente ao Édipo e à lei da castração.

Com este objetivo, Lacan acentuará menos a questão da identidade

feminina do que a do gozo feminino, e menos a castração e a

reivindicação dela decorrente do que a divisão que o primado do falo

introduz na menina [grifos do autor] (André, 1998: 209).

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99

Lacan defende a tese de que as mulheres não fazem um todo. Não há nada que as una num

conjunto, tal como a função de exceção faz com os homens, fundamentando a regra masculina

e possibilitando a descrição desses a partir de um certo compartilhamento. O lado direito das

fórmulas conjuga-se, assim, com uma outra proposição, a de que “A mulher não existe”, o que

reforça a idéia de que elas não fazem Um, permanecendo como um conjunto aberto, só

podendo ser contadas uma a uma. Estar “não toda” na função fálica enuncia um “gozo a mais”

feminino para além do simbólico, que estaria indissociável da idéia de que as mulheres não

são capazes de dizer em que consiste sua posição de mulher, visto que, não se inserindo

“toda” no universal, não podem constituir uma classe.

Segundo André (1998), o gozo feminino lacaniano é uma suposição baseada na

experiência descrita por algumas mulheres e algumas místicas sobre um gozo para-além da

linguagem. Reconhece, assim, a possibilidade de que se trate de uma “produção imaginária”,

já que, situando-se fora-da-linguagem, seria impossível dizê-lo. Essa crença em um outro

gozo que não se pode definir vem da insatisfação do sujeito com o gozo fálico, visto que este

não convém à relação sexual.

Este a-mais só aparece como margem da castração: é preciso que se

passe por esta para que se desenhe um bordo para além do qual um

lugar seja furado por um mais-além. Mas esse produto da castração é

vazio, inconsistente, a não ser que se lhe dê consistência imaginária

(André, 1998: 224).

Esta “suposição” lacaniana coloca a mulher em afinidade com o ponto de falha do simbólico,

de modo que se encontra, assim, fora do discurso, como um enigma para si mesma e para os

homens. Para David-Ménard (1998), aqui fica claro o quanto Lacan constrói sua tese a partir

de um paradigma da subjetividade masculino: “este último (o gozo feminino) só parece aos

homens tão misterioso porque não tem como alavanca o único gozo representável para eles,

do qual seu sexo é o emblema” (David-Ménard, 1998: 107).

A construção sobre o feminino pela negativa – não toda na lógica fálica -, se levada a

radicalidade, subverteria a lógica da primazia do falo e do simbólico, pois demonstraria seu

ponto de basta e sua insuficiência para a reflexão acerca das mulheres. Segundo Arán

(2008b), inscrever o feminino como “não todo” na lógica fálica significa transgredir o

“monismo fálico” e demonstrar sua falência. Afinal, se a mulher é não-representável pela

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100

lógica fálica, isso exigiria o reconhecimento de outras lógicas alteritárias à fálica. O que a

autora sugere é que Lacan não teve esse mesmo raciocínio, pois fica preso à idéia de que não

há representação positiva que conceba a mulher. Em conseqüência, a negativa que descreve o

feminino significa uma “falha” ou “falta”, sendo que estas ficam associadas à mulher em si, e

não à lógica tipicamente masculina, conferindo à primeira um status pejorativo ou de menor

valia.

A positivação do feminino exigiria pressupor não apenas um além do

falo, mas, antes de tudo, uma outra forma de erotismo, que não tenha

no falo a sua referência (Arán, 2006: 137).

Para os que defendem as fórmulas da sexuação, a lógica do gozo “a mais” não desconsidera as

mulheres, pois confere a elas um gozo suplementar. Enquanto o sujeito do gozo fálico se sente

frustrado, pode-se dizer que uma mulher “goza dela mesma enquanto Outra dela a ela mesma”

(André, 1998: 224). Além disso, o dito “lado masculino” das fórmulas não abarcaria o

conjunto dos homens, assim como o “lado feminino” não corresponderia ao conjunto das

mulheres. Masculino e feminino, aqui, não designam a anatomia sexual, mas dois modos

possíveis do sujeito se inserir na lógica fálica.

Arán (2006) dá continuidade às objeções às teses lacanianas referindo-se à sexuação

como um imperativo categórico: o ser humano deve se determinar como homem ou como

mulher, mesmo que se diga que tal determinação independe da anatomia. Mesmo que o autor

não associe necessariamente as mulheres ao lado direito da fórmula e os homens ao lado

esquerdo, resta ainda uma imposição: um lado ou outro. A sexuação descrita pelas fórmulas

restringe as subjetividades, não fazendo jus a sua intenção de demonstrar os paradoxos da

constituição sexual. A repartição em dois aparece para os críticos de Lacan como uma

necessidade da teoria, uma necessidade pressuposta e imperativa, típica de um dispositivo de

poder. Outras formas de sexuação, que não se enquadram nessa ordem, trazem à tona a

artificialidade das categorias binárias.

Butler (2002) também ressalta a prescrição da norma binária no interior da psicanálise,

a partir do que denominou de uma “compulsão” teórica pela divisão por dois, que produz

incessantemente binarismos que se equivalem às normas hegemônicas de gênero. O que a

autora vem sublinhar é o fato de que não é só o gênero que é submetido à norma sexual, mas a

própria subjetivação. Isso se torna evidente quando se percebe que toda a compreensão

psicanalítica sobre o sujeito e sua constituição é atravessada por discursos reguladores que

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101

formam o sujeito “gendrado”. A “lógica binária” influenciaria toda a teoria da formação

subjetiva, subentendendo em seus meandros a lógica do repúdio da homossexualidade e dos

abjetos. Tanto a “sexuação” quanto a “subjetivação” são teses construídas a partir de um

paradigma masculino, em que o imperativo lógico é o da manutenção da distinção sexual

anatômica.

David-Ménard (1998) também indica que no discurso psicanalítico se encontra uma

imposição binária. Para fazer um contraponto a sexuação lacaniana, refere-se à psicanálise

freudiana e à sua teoria acerca da sexualidade perversa polimorfa infantil.

Não há terceiro sexo possível, mesmo que a sexualidade infantil possa

forjar todas as espécies de representações fantasmáticas sobre os sexos

e sua relação com a existência de crianças (David-Ménard, 1998:

109).

Como desenvolveremos em outro momento, a sexualidade infantil passa a ser enfocada por

autores contemporâneos como uma abertura à sexualidade em seu estatuto singular. Aqui, o

adjetivo “infantil” não demarca a necessidade evolutiva de uma superação pela via do

recalque, mas qualifica a própria sexualidade humana e a sua inconsistência simbólica.

Por sua vez, Lacan também se empenha cada vez mais em sustentar que a sexuação

aponta para a inconsistência simbólica da sexualidade, tese que é reapresentada por Žižek

(1999) em seu debate com Butler, a partir da proposta de pensar a diferença sexual como o

encontro com o real.

3.3 Diferença sexual formal sem conteúdo e normas de gênero histórico-contingentes

Na concepção de Butler (2002, 2003), o fato de existirem as ditas “perversões”, como

a homossexualidade e o fetichismo, apesar da heterossexualidade, indica o status de

resistência das primeiras frente à hegemonia da última. Se onde há resistência, há poder,

então, as sexualidades “perversas” provam o fracasso da diferença sexual binária enquanto

injunção social normativa. O que a autora pretende sinalizar através dessa observação da

“falha” da heterossexualidade é que esta corresponde a uma construção histórico-contingente

que foi transformada em norma pelo exercício repetitivo do poder disciplinar. Procura, assim,

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102

demonstrar que o gênero é uma categoria suscetível a modificações, sendo sua constituição

influenciada pelas contingências sócio-históricas.

Žižek (1999) não compreende desta forma a “falha” do binarismo sexual. Empenha-se

em demonstrar que este sempre tem um mau êxito, mesmo na heterossexualidade simbólica

normativa. O fato de que o gozo só pode ser obtido a partir de uma falta fundamental

demonstra que a sexualidade está marcada por um fracasso irredutível. A noção de sexuação

precisa da existência de algo que sempre falha em se inscrever tanto imaginária quanto

simbolicamente, que corresponde justamente ao real da diferença sexual. Conforme esta tese,

sempre existe uma lacuna entre o real da diferença sexual e as formas simbólicas da

sexualidade, heterossexuais ou não. Respondendo a Butler, seu intuito é defender que não só a

heterossexualidade é uma articulação simbólica, como também o são as práticas sexuais

referidas pela autora de “perversas”. Toda e qualquer identidade simbólica é determinada

historicamente e depende de um contexto ideológico específico. Ao mesmo tempo, toda e

qualquer formulação sexual simbólica não dá conta de simbolizar o real da diferença sexual.

Assim, se para Butler (2002, 2003) o que foge à heterossexualidade evidencia a condição

histórico-contingente da diferença sexual, para Žižek (1999), trata-se de mais uma evidência

de que a diferença sexual é impassível de simbolização. O autor irá contestar as críticas à

psicanálise a partir de um eixo argumentativo principal: a diferença sexual, para Lacan, é da

ordem do real; onde este é concebido como o limite inerente à linguagem, um “miolo” que

resiste à simbolização. Falar de diferença sexual produz sempre um resto inominável.

Os efeitos do real sob a sexuação são explicitados, sob a ótica psicanalítica, através de

um paradoxo: perder o próprio sexo para sê-lo. Isso significa que para tornar-se mulher, não

se renuncia à masculinidade, mas sim à feminilidade, enquanto algo que se completa. O que

se perde no “tornar-se mulher” é a própria possibilidade de tornar-se verdadeiramente uma

mulher; fato que a figura da “mascarada”

24

representa ao mascarar a falha em ser mulher.

Com o homem não seria diferente. O que está por trás dessa tese é a idéia de que a perda

inserida no processo de sexuação não é externa, mas inerente e comum a ambos os sexos. A

identidade de cada um deles é embaraçada no seu interior pela relação antagônica com o outro

sexo, fato que acaba por impedir sua completa atualização. Recorrendo a um aforismo

lacaniano, diz ele:

24

Lacan realiza uma discussão sobre a mascarada, conceito retomado de Joan Riviere (1929), como designação

da feminilidade, tendo em vista a sua proposição de que a mulher é a falta que encarna o falo.

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103

‘There is no sexual relationship’ not because the other sex is too far

away, totally strange to me, but because it is too close to me, the

foreign intruder at the very heart of my (impossible) identity [grifo do

autor] (Žižek, 1999: 272/273)

25

.

A diferença sexual, sob a perspectiva lacaniana, não coincide com a diferença anatômica e/ou

estrutural entre homem e mulher; mas está inscrita no interior do “tornar-se homem” e do

“tornar-se mulher”. Trata-se de um antagonismo real, e não de uma oposição diferencial

simbólica, pois esta última sim pode ser encarada como a responsável pela definição de um

sexo em oposição ao outro.

O autor apresenta ainda um outro eixo de discordância entre a sua leitura de Lacan e

aquela realizada por Butler (2002, 2003), que considera ser o grande equívoco sobre a

sexuação: a equivalência que se faz entre as noções de “diferença sexual” e de “norma

simbólica heterossexual”. Empenha-se, então, em distinguir a diferença sexual como real e a

heterossexualidade como simbólica. A psicanálise lacaniana anuncia a diferença sexual como

real no sentido de que esta nunca pode ser simbolizada, não é passível de ser transposta para

normas simbólicas, como, por exemplo, para a divisão de gênero em masculino/feminino.

Trata-se, então, de uma diferença da ordem do inominável, que o inconsciente tentará

delimitar através da cadeia significante, tal como se rodeia a margem de um furo. Enquanto

para Butler (2000), Lacan eleva a norma heterossexual histórico-contingente a uma categoria

transhistórica, para Žižek (1999), o estatuto real da diferença sexual confere a esta a

impossibilidade de se enquadrar em normas simbólicas quaisquer. Argumenta que a noção de

diferença sexual assim entendida não pode ser vista como uma função normativa justamente

porque se refere a um limite da articulação simbólica.

It thus seems more productive to posit as the central enigma that of

sexual difference – not as the already established symbolic difference

(heterosexual normativity) but, precisely, as that which forever eludes

25

O trecho correspondente na tradução é: “ ‘Não há relação sexual’ não porque o outro sexo está muito longe,

totalmente estranho a mim, mas porque ele está muito perto de mim, o estrangeiro intruso no coração da minha
(impossível) identidade”.

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104

the grasp of normative symbolization [grifo do autor] (Žižek, 1999:

271)

26

.

A concepção de que a diferença sexual, mesmo quando simbolizada em termos de aspectos

ideais, contém um aspecto não simbolizável, confere a esta um estatuto distinto das outras

diferenças, tais como “classe” ou “nação”. A primeira é vista como a mais fundamental de

todas, sendo a ela conferida uma dimensão traumática e, por isso mesmo, não simbolizável.

Para Butler (2000), esses aspectos que Žižek confere apenas à diferença sexual dão a ela um

caráter estrutural e transcendental, o que a torna invulnerável às transformações históricas. A

autora critica tal estatuto da diferença sexual, pois funciona como justificativa para a

imposição de normas contingentes através do manejo de ideais psíquicos. O dito “não

simbolizável” tem uma função especial no dispositivo psicanalítico, que é a de pré-figurar as

privações (leia-se, exclusões) como uma ameaça (de castração ou traumática). Sob o seu

ponto de vista, a fronteira entre o que é e o que não é simbolizável é pré-determinada por um

conteúdo social.

Em resposta à autora, Žižek (1999) propõe, então, que a diferença sexual em Lacan

deve ser lida como um “conceito vazio”, como um conceito que não pode ser todo recoberto

por seu conteúdo, havendo sempre um “resto” irrepresentável. Trata-se de um termo que não

representa nada, cujo vazio semântico é a oportunidade de uma série de investimentos

fantasmáticos. A diferença sexual é justamente aquilo que escapa às imposições simbólicas e,

ao mesmo tempo, é furo em torno do qual a prática de simbolização se torna possível. As

articulações imaginárias e simbólicas, estas sim, históricas e contingentes, não recobrem tudo

da distinção dos sexos, produzindo um resto de real. Esta dimensão da diferença sexual que

escapa aos bordados simbólicos e imaginários é o que institui essa noção como um “conceito

vazio”, o que enfatiza seu estatuto não-tematizável e, portanto, incontestável.

Esse raciocínio, segundo Butler (2000), recorre a uma abstração formal kantiana,

segundo a qual, a forma, a partir de uma sublimação perfeita, não pode ser identificada com

seu conteúdo. Para a autora, trata-se do mecanismo utilizado por Lacan quando este diz

“masculino” e “feminino” sem querer, no entanto, reconhecê-los como diferença sexual.

Inspirando-se em Hegel, a autora argumenta que a relação entre conteúdo e forma não é

completamente externa, o que impossibilita uma sublimação perfeita de um para a outra. Em

26

O trecho correspondente na tradução é: “Parece muito mais produtivo posicionar como o enigma central da

diferença sexual – não como a já estabelecida diferença simbólica (normatividade heterossexual), mas,
precisamente, como aquilo que para sempre evita a compreensão da simbolização normativa”.

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105

seus termos, todo formalismo, a fim de alcançar a abstração, omite um “resto” de conteúdo,

que é recusado. O objetivo de Butler (2000) passa a ser, então, o de reconhecer o “resto”

excluído na construção do conceito vazio da diferença sexual, para poder, num processo de

desconstrução, desembaraçar a sua fundação. Por isso, retoma a idéia do “fracasso do

binarismo”.

Em alusão aos “corpos que não se enquadram” e ao sofrimento de sujeitos frente às

normas hegemônicas de gênero, Butler (2000) coloca em xeque o estatuto formal e sem

conteúdo da diferença sexual. Assinala que o formalismo realizado por Lacan é um

instrumento para assegurar a conteúdos sociais o lugar de “real”, o lugar de indizível, ou

ainda, de impensável. Na medida em que a noção de diferença sexual, elevada pela

psicanálise a operador incontestável, prescreve e delimita o território da inteligibilidade,

através da foraclusão e da patologização dos gêneros não inteligíveis, tal teoria confunde o

transcendental e o social, colocando a si mesma num patamar que pretensamente a protege

das críticas e das influências sócio-históricas.

[...] continúa siendo problemático el modo en que la teoria fija esos

limites, no solo porque siempre está la cuestión de saber qué

constituye la autoridad del que escribe tales limites, sino además

porque el establecimiento de tales limites está vinculado a la

regulación contingente de lo que se juzgará como un modo inteligible

de ser y lo que no se considerará como tal. Además, la producción de

lo no simbolizable, de lo indecible, lo ilegible, es siempre uma

estratégia de abyección social [grifo da autora] (Butler, 2002, 271)

27

.

A gravidade das teses lacanianas é apontada pela autora como sendo a transformação dos

mecanismos contingentes de produção de sujeitos em leis universais, que se colocam imunes

à própria articulação discursiva que lhe deu origem. O dimorfismo sexual é suposto como

transcendental a fim de fundamentar formas históricas e sociais da diferença sexual. Em

Undoing Gender

(2004), a autora demonstrará que a distinção lacaniana entre a lei simbólica

27

O trecho correspondente na tradução é: “[...] continua sendo problemático o modo em que a teoria fixa esses

limites, não somente porque sempre está a questão de saber que constitui a autoridade do que escreve tais
limites, mas, além disso, porque o estabelecimento de tais limites está vinculado à regulação contingente do que
se julgará como um modo inteligível de ser e o que não se considerará como tal. Além disso, a produção do não
simbolizável, do que não é dito, o ilegível, é sempre uma estratégia de abjeção social”.

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106

e as leis sociais não se sustenta, comprovando que a primeira serve à sedimentação de práticas

sociais.

Enquanto Žižek confere à diferença sexual o caráter real de um conceito vazio,

impassível a mudanças, Butler (2004) sustentará que tal dimorfismo sexual é uma norma e

que, enquanto norma, trata-se de uma ficção reguladora. Um ideal de gênero é naturalizado

por uma rede discursiva complexa como sendo uma identidade fixa e coerente. Ao mesmo

tempo, delimita-se o campo da diferença, daquilo que tem o destino certo da exclusão. Ao

contrário do que faz pensar a psicanálise, tanto o campo da identidade quanto o da diferença

têm seus conteúdos delimitados por fatores contingentes e históricos, o que os faz expostos a

influências diversas. A negação do caráter sócio-histórico da diferença sexual da teoria

lacaniana é interpretada pela autora como um desejo pela perpetuação da matriz da

heterossexualidade e da dominação masculina.

Žižek (1999) não reconhece essa associação entre o conceito vazio da diferença sexual

e uma normatização social da idealização de gênero, questionando Butler e sua tese de que a

psicanálise participaria na construção das fronteiras entre os “gêneros inteligíveis e não

inteligíveis”. Lacan, diz o autor, não correlaciona a priori formas e práticas sexuais a

economias subjetivas patológicas, de forma que a perversão não está referida necessariamente

a violação das normas simbólicas. Enfatiza ainda que a dimensão real da sexuação tem como

efeito o fato de que todos os neuróticos estão de certa forma “excluídos”, “de fora”, do âmbito

do simbólico, seja qual for seu gênero ou modalidade sexual. Exatamente porque os

neuróticos atualizam o que Freud chamou de “realidade psíquica”, há sempre um “resto”, que

para Lacan corresponde ao peso do “vínculo apaixonado” primordial, que resiste ao

movimento de simbolização e/ou mediação simbólica, ou seja, o próprio real da sexuação.

Desconstruindo a idéia de que o Édipo direciona necessariamente o sujeito à

heterossexualidade, enquanto o narcisismo à homossexualidade, Mezan (2006) supõe o

motivo para a escolha freudiana por dois mitos gregos para descrever as transformações da

libido.

Narciso e Édipo são figuras do “amor infeliz”, se nos é permetido

parafrasear o conceito hegeliano. O que queremos dizer é que, para

Freud o amor se configura no registro do conflito, enquanto que a

representação usual o concebe como graciosa harmonização.

Impedida por sua própria natureza de compreender a gênese de suas

representações, a ideologia faz com o indivíduo o mesmo que faz com

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107

a sociedade: ignora a dimensão dramática e conflituosa da sua

constituição, para encobri-la com a parvoíce da univocidade e da

harmonia preestabelecida [grifo do autor] (Mezan, 2006: 194).

Se em Freud o trânsito libidinal até a consolidação da identidade sexual aparece como um

drama, e não como o melhor dos mundos, em Lacan a ênfase também recai no embaraço do

sujeito com seu sexo, o que não se dá sem uma certa inquietação. Essa observação

psicanalítica decorre do fato de que a diferença sexual não pode ser localizada no domínio do

biológico e nem no do sócio-simbólico, pertencendo, então, ao campo do “entre”. A fim de

exemplificar sua perspectiva sobre a sexuação, Žižek (1999) utiliza-se de uma máxima

lacaniana, segundo a qual, o louco não é apenas o indigente que pensa ser rei, mas também o

rei que pensa ser rei (Lacan apud Žižek, 1999: 247). Isso significa dizer que é “louco” quem

percebe seu mandato simbólico como diretamente baseado no real do seu corpo, e quem acaba

por confundir a distinção entre o vazio simbólico e a lacuna da realidade, a ordem das

“palavras” e a ordem das “coisas”.

O enunciado lacaniano nos é de grande utilidade para trabalhar o paradoxo dialético

do que Lacan denominou de “castração simbólica”, o fato de que uma entidade torna-se X,

apenas quando renuncia a ser X. Existe uma lacuna entre o lugar simbólico e o elemento que

o preenche, de forma que ocupa-se um lugar exatamente quando não se é esse lugar. A

castração se dá pelo fato de que, estando-se sujeito à ordem simbólica, há uma distância

intransponível entre o que se é no imediato e o título simbólico que se assume; o que revela a

impossibilidade do sujeito identificar-se completa e imediatamente com sua identidade

simbólica. Privado de sua insígnia simbólica, a identidade “rei” “se derrete como um boneco

de neve ao sol”

28

. Trata-se justamente de um corte, cuja função é sustentar o domínio do que

está “entre”: o abismo intransponível que se faz entre o real e as simbolizações, a partir de

onde Lacan pensa a diferença sexual. Nesse sentido, a castração simbólica não é o nome do

limite do simbólico no sentido daquilo que interrompe o fluxo das múltiplas simbolizações,

mas é justamente o que sustenta um espaço para estas. O fato de que nenhum conteúdo

simbólico preenche por completo o real é justamente o que impede que a corrente das

simbolizações se interrompa.

28

O texto em língua estrangeira é “se derrite como un muñeco de nieve al sol” (Žižek, 2008: 44).

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108

In short: yes, of course, the way we symbolize sexuality is not

determined by nature, it is the outcome of a complex and contingent

socio-symbolic power struggle; however, this very space of contingent

symbolization, this very gap between the Real and its symbolization,

must be sustained by a cut, and ‘symbolic castration’ is the lacanian

name for this cut. So ‘symbolic castration’ is not the ultimate point of

symbolic reference which somehow limits the free flow of the

multitude of symbolizations: on the contrary, it is the very gesture

which sustains, keeps open, the space of contingente symbolizations

(Žižek, 1999: 275)

29

.

Nessa leitura, o simbólico lacaniano não é entendido como um vazio a priori e transcendental,

sobre o qual as simbolizações se produzem. Não se trata de um vazio que pode ser preenchido

por um objeto contingente e positivo, como interpreta Butler (2000) a partir de um

formalismo kantiano. Segundo Žižek (1999), a armação transcendental-formal do simbólico é

estruturada por uma parte de seu próprio conteúdo, o que rompe com a idéia kantiana de uma

sublimação perfeita do conteúdo para a forma. Há um “resto indivisível” da materialidade

contingente que mancha a pretensa universalidade neutra da estrutura simbólica e que

funciona como um cordão umbilical através do qual a estrutura vazia é ancorada em seu

conteúdo.

A partir desse percurso argumentativo, Žižek (1999) retoma a crítica feita por Butler

aos construcionistas sociais, para quem o campo sócio-histórico e contingente das

simbolizações é dado como um a priori. Sob seu ponto de vista, o caráter histórico-contigente

conferido à diferença sexual pela autora não é o que a liberta da pré-determinação, pois a

relação direta entre norma e sexualidade aparece, em Butler, como um pressuposto teórico

fundamental. O autor enfatiza, assim, a ausência de uma proposta explicativa para o campo

simbólico. No entanto, mais do que explicar como esse espaço se sustenta a partir da

castração simbólica, em Žižek (1999), torna-se importante discernir em cada contingência

29

O trecho correspondente na tradução é: “Em resumo: sim, claro, a maneira como simbolizamos a sexualidade

não é determinada pela natureza, ela é o resultado de um complexo e contingente sócio-simbólico poderoso
estrangulamento; no entanto, esse mesmo espaço de simbolização contingente, essa brecha entre o Real e suas
simbolizações, deve ser sustentado por um corte, e ‘castração simbólica’ é o nome lacaniano para esse corte.
Então, ‘castração simbólica’ não é o ponto final da referência simbólica que de certa forma limita o livre curso
da multidão de simbolizações: pelo contrário, é o gesto que sustenta, mantém aberto, o espaço das simbolizações
contingentes”.

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109

histórica aquilo que “re-desempenha” a lacuna sobre a qual se abre o horizonte da

historicidade.

3.4 Ato ético e deslocamentos disruptivos biopolíticos

A aproximação realizada por Butler entre as noções de “diferença sexual” e de

“normas simbólicas” coincide, finalmente, com uma outra indistinção entre as idéias de

“vínculo apaixonado” e de “identificação sócio-simbólica”. Essas aproximações influenciam a

sua leitura da psicanálise, saber ao qual a autora recorre com a intenção de explicar como o

poder social incide sobre as formas de subjetivação, restringindo-as e produzindo-as.

A partir da tese de Foucault, segundo a qual há um nível de subordinação

imprescindível na formação do sujeito, Butler (1997) deseja esclarecer, com a contribuição da

psicanálise, como a relação com o poder transforma-se em condição de existência. Em seu

trabalho de 1997, Mecanismos Psíquicos Del Poder, a autora se utiliza o termo “vínculo

apaixonado” para designar a dependência primária do sujeito ao outro; relação esta que o

marca para sempre com uma certa dose de vulnerabilidade à exploração e regulação política.

A perspectiva de que a sujeição consiste nessa dependência fundamental que ao

mesmo tempo nos subordina e nos torna sujeitos vai ao encontro do que Lacan chamou de

uma “escolha forçada”, ou ainda, uma escolha impossível. Lacan e Butler (1997)

compartilham da idéia de que há uma alienação fundamental ao campo sócio-simbólico, ao

qual está condicionada a existência do sujeito. Apesar de tratar-se de um ponto de

concordância pontual, esse também serve como lugar de partida para grandes debates teóricos

entre Butler e autores lacanianos, pois, ao longo de sua produção, a autora defende que a

teoria lacaniana pode ser reconhecida como um dispositivo de poder que constitui estratégia

de sujeição à matriz heterossexual da dominação masculina. Sua leitura sobre a psicanálise é

atravessada por um objetivo principalmente político: como subverter a rede sócio-simbólica

enquanto aquilo que predetermina e limita os critérios de reconhecimento da existência do

sujeito?

Em contraposição à idéia comumente utilizada de que o sujeito é apaixonadamente

apegado à sua própria subordinação, Butler (1997) sugere que tal fixação é ela mesma efeito

do poder. Nenhum indivíduo torna-se sujeito sem antes assujeitar-se a um outro que lhe

confere a possibilidade da existência e que, ao mesmo tempo, lhe marca em sua

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110

vulnerabilidade frente às regulações sociais. O “vínculo apaixonado” equivale, nesta leitura,

ao nível mais fundamental de sujeição, aquele que tem como função o suporte inconsciente do

poder, mas que é por ele mesmo produzido. O apego à subordinação não é anterior ao poder,

mas é seu próprio produto, noção que possibilita a indagação: qual injunção social forma tal

“vínculo apaixonado” inconsciente e qual seria a possibilidade de fazer resistência a ela?

Del mismo modo que el sujeto se deriva de condiciones de poder que

lo preceden, el funcionamiento psíquico de la norma se deriva, si bien

no de manera mecánica o predecile, de operaciones sociales anteriores

(Butler, 1997: 32/33)

30

.

Butler (1997) realiza uma redescrição dessa subordinação psíquica que pretende dar conta da

maneira como o poder social produz modos de reflexividade, ao mesmo tempo limitando

formas de sociabilidade, restringindo e produzindo desejos singulares.

Numa perspectiva lacaniana, o que Butler (1997) designou de “vínculo apaixonado”,

aquilo sobre o qual a consistência subjetiva se articula, é a cena da “fantasia fundamental”

masoquista, em que o sujeito vê a si mesmo sofrendo. Essa cena, foracluída, ao mesmo tempo

em que sustenta a subjetividade, a ameaça, devendo manter-se desconhecida. Segundo Žižek

(1999), a autora utiliza a noção de “vínculo apaixonado” ora para se referir ao suporte último

do ser subjetivo, à fantasia fundamental, ora para designar a identificação simbólica, uma

resposta já inserida no âmbito do simbólico para recobrir um certo vazio. Seu intuito, ao

contrário, é o de valorizar a distinção entre o “vínculo primordial”, em que o sujeito é

compelido a foracluir para ganhar uma existência simbólica, e a sujeição à ordem sócio-

simbólica, que interpela o sujeito. A relação entre essas duas noções passa pelo fato de que o

sujeito apenas é capaz de sustentar uma identificação sócio-simbólica se mantém um não-

conhecimento sobre seu suporte fantasmático.

A fantasia fundamental a que Žižek (1999) se refere coincide com o segundo momento

da fantasia, descrito por Freud no texto Uma Criança é Espancada, de 1919, em que o sujeito

se imagina apanhando do pai. Nesse trabalho, o autor dedica-se a elucidar o problema do

masoquismo, além de expandir o conhecimento psicanalítico sobre as perversões de um modo

geral. Atribui-se a este artigo uma considerável importância no que tange a questão dos

30

O trecho correspondente na tradução é: “Do mesmo modo que o sujeito se deriva de condições de poder que o

precedem, o funcionamento psíquico da norma se deriva, se bem que não de maneira mecânica ou previsível, de
operações sociais anteriores”.

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111

motivos que conduzem à repressão. Como descrito anteriormente, Freud revela a recorrência

de um tipo especial de fantasia: uma criança é espancada. Desdobrando-a em fases, a

segunda delas é uma construção analítica: “estou sendo espancado pelo meu pai”. A origem

de tal fantasia é explicada por Freud através dos mecanismos de repressão e de regressão. Se a

organização genital da criança, que ainda não a tem firmada, encontra-se com a repressão, a

representação psíquica do amor incestuoso se torna inconsciente, além do que, ocorre uma

regressão a um nível mais baixo da organização genital. “ ‘O meu pai me ama’ queria

expressar um sentido genital; devido à regressão, converte-se em ‘o meu pai está me batendo’

” (Freud, 1996 [1919]: 204/205).

Caracterizada por Freud como permanentemente inconsciente, a fantasia de ser

espancado pelo pai leva Žižek (1999) à análise de que esta construção fantasmática deve ser

entendida como a cena da submissão constitutiva do sujeito, aquela que confere suporte à sua

existência e que, por isso mesmo, deve permanecer inacessível ao sujeito. Nesta compreensão,

é essa fantasia foracluída que nos oferece as coordenadas do “vínculo apaixonado”

primordial. Na primeira, a oposição entre atividade e passividade é subvertida, pois na

internalização da cena de apanhar de um outro, o sujeito se encontra tanto no lugar passivo de

um observador fascinado como também na posição passiva de sofrimento e dor daquele que

está apanhando. Essa dupla passividade pressupõe um engajamento ativo do sujeito,

possibilitado pela consolidação do que o autor denomina de “volta reflexiva”: de forma auto-

erótica, o próprio sujeito (e não um agente externo) frustra a sua própria atividade e domina a

si mesmo. Esta volta reflexiva é o que define o gesto da foraclusão primordial como uma

defesa contra o gozo excessivo e traumático, ou seja, contra a pulsão de morte.

Se a fantasia sinaliza uma “formação defensiva” contra a pulsão de morte, garantindo

minimamente a existência do sujeito, isso implica em pressupor que o sujeito já esteja lá. O

que Žižek (1999) irá enfatizar é que dizer que o sujeito já está lá é reconhecê-lo em sua

existência “negativamente abstrata”, no gesto primordial de não-vínculo com o ambiente. A

fantasia seria uma “formação defensiva” contra o abismo do não-vínculo, sendo esse último

pura pulsão de morte.

Essa leitura do “vínculo apaixonado” de Žižek (1999) se distancia daquela de Butler

(1997), em que o sujeito emerge como sujeição no sentido de submeter-se à figura do Outro,

como no tabu do incesto, por exemplo. Numa concepção lacaniana, a lacuna, que é o sujeito

que já deve estar lá, é anterior à ligação primordial, possibilitando-a. O sujeito como lacuna,

anterior ao vínculo primordial, é a experiência de um “corpo desmembrado” sob o domínio da

pulsão de morte e seu conseqüente distúrbio do princípio de prazer.

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112

At this point, then, Butler should be supplemented: the emergence of

the subject is not strictly equivalent to subjection (in the sense of

‘passionate attachment’, of submission to some figure of the Other),

since for ‘passionate attachment’ to take place the gap that ‘is’ the

subject must already be there. Only if this gap is already there can we

explain how it is possible for the subject to escape the hold of the

fundamental fantasy [parênteses do autor] (Žižek, 1999: 289)

31

.

Žižek (1999) insistirá que o sujeito é anterior a sujeição no sentido dado por Butler (1997), o

que nos remete à distinção entre repressão e foraclusão. Enquanto o primeiro termo refere-se a

um ato performado pelo sujeito enquanto um agente que repreende parte de seu conteúdo

psíquico, a foraclusão é um gesto negativo de exclusão que fundamenta o sujeito, um gesto

que não pode ser assumido pelo sujeito, mas sobre o qual se articulará toda a consistência de

sua identidade subjetiva. A Lei interna não é simplesmente uma “extensão” ou

“interiorização” da pressão externa, mas emerge a partir de uma “volta reflexiva”, de uma

foraclusão.

O que Žižek (1999) defenderá é que, quando Butler confunde os dois processos, acaba

não sendo radical em sua proposta de deslocamento da ordem simbólica hegemônica, pois

supervaloriza o potencial subversivo das práticas performativas. Retomemos, então, a

proposta da autora.

Butler (2002), em seu trabalho, se preocupa em produzir deslocamentos nas fronteiras

normativas, a fim de possibilitar novos modos de vida. Faz-se necessário sublinhar que não é

contra o poder que a autora se coloca, visto que considera tal feito impossível, mas contra

certos efeitos do poder, como o não reconhecimento social de algumas formas de

subjetivação. No que se refere ao tema da sexualidade, por exemplo, a autora nega o efeito

disruptivo da abolição da categoria de gênero. Ao contrário, apresenta uma nova concepção

ligada à idéia “ato performativo”. Para desconstruir a idéia de que gênero é identidade fixa e

rígida, a autora cunha este termo para designar o meio pelo qual se produz uma realidade, ou

melhor, uma ilusão de substância. Defende que o sujeito é interpelado e produzido por

normas, cujo efeito é materialização dos corpos e da própria realidade. Por trás da norma

31

O trecho correspondente na tradução é: “Nesse momento, então, Butler deve ser complementada: a emergência

da subjetividade não é estritamente equivalente à sujeição (no sentido de ‘vínculo apaixonado’, de submissão a
alguma figura do Outro), desde que para o ‘vínculo apaixonado’ acontecer a brecha que ‘é’ a subjetividade já
deve estar lá. Somente se a brecha já está lá nós podemos explicar como é possível para o sujeito escapar do
domínio da fantasia fundamental”.

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113

haveria um poder regulador, cujo funcionamento se dá mediante a reiteração da primeira,

além da aplicação das exclusões. Tal inteligibilidade é baseada no conceito foucaultiano de

“biopoder”, segundo o qual não há distância entre o poder e o indivíduo, sendo este último um

efeito do primeiro. No âmbito da norma sexual, por exemplo, o sujeito é “gendrado” desde

sempre e isso se dá não só através dos dispositivos de gênero, como pela própria forma de

subjetivação.

Se gênero é uma norma, não uma essência ou estrutura, é uma construção histórico-

contingente, sendo suscetível a transformações. Não caracterizando-o como imutável, a autora

destaca a possibilidade de realização de deslocamentos disruptivos biopolíticos, pois esta

concepção normativa de gênero subentende a existência de uma potencialidade subversiva no

próprio exercício do poder. Visto para se constituir uma realidade, a norma sexual depende da

reiteração incessante, a autora conclui que é na própria prática repetitiva que se produz uma

abertura para a subversão. Esta é concebida, então, como uma repetição diferencial que

provoca deslocamentos nas fronteiras de inteligibilidade.

Desta forma não seria fundamentalmente contra o poder que nascem

as possibilidades de resistência, seja ela singular ou coletiva, mas

contra certos efeitos de poder num espaço paradoxalmente aberto na

própria estratégia de sua constituição (Arán e Peixoto Júnior, 2007:

06).

A partir de uma concepção histórica e contingente das normas de gênero, Butler (2002, 2004)

constrói sua proposta subversiva em termos de deslocamentos das fronteiras entre os gêneros

inteligíveis e os abjetos. Tomando a psicanálise como um dispositivo de poder que delimita o

campo do sujeito e o campo das identificações temidas, a autora passa a traduzir aquilo que é

excluído pela teoria sob o rótulo de “perversões”. Prescrevendo a exclusão recíproca entre

identificação e desejo, a psicanálise transforma em patologia aquilo que não é da ordem da

heterossexualidade e do binarismo sexual.

A intenção transgressiva de Butler (2002, 2004), estando baseada no seu entendimento

sobre o poder, a distancia mais uma vez de Žižek (1999), para quem a performatividade só faz

reafirmar o sistema simbólico. Em torno da noção de perversão, os autores discutem sobre o

que seria uma sexualidade disruptiva. Para o autor, Butler comete dois equívocos. Um deles é

chamar de perversão tudo aquilo que considera ser excluído pelo dispositivo psicanalítico,

associando ela mesma a priori práticas sexuais a categorias clínicas. O segundo é pré-

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114

conceber o que chamou de perversão como uma categoria necessariamente subversiva. Critica

ainda seu gesto fundamental de desconstruir a idéia de identidade substancial, trocando-a pela

concepção de uma rede de relações diferenciadas não substanciais.

Segundo Žižek (1999), o deslocamento de fronteiras a partir da reconfiguração

performativa não ocasiona mudanças no campo simbólico, tendo em vista que a “repetição

diferenciada” está inserida no interior do campo hegemônico. Indica que a idéia de

performatividade é uma estratégia de transgressão ainda inserida no campo do Outro,

decodificada por esse, não podendo subvertê-lo, portanto, mas reafirmá-lo. O projeto da

autora se restringiria a uma resistência imaginária, impedindo o verdadeiro deslocamento da

rede sócio-simbólica.

Sob esse ponto de vista, a perversão não pode ser subversiva, já que é uma atitude

socialmente construída e, por isso mesmo, não atrapalha o funcionamento do Outro. A única

possibilidade de atingir o sistema simbólico e de modificá-lo seria, para Žižek (1999), através

do “ato ético”. Para explicar a sua proposta, o autor recorre ao que entende ser um equívoco

de Foucault e de Butler no que se refere à concepção de poder e de resistência. Esses termos

são conceitualizados a partir de uma relação mútua circular, o que impossibilita essa última de

solapar o sistema. Partindo dessa tese foucaultiana, a autora negligenciaria o fato de que o

próprio mecanismo de poder torna-se erotizado, de que este se torna produtor de um excesso

reflexivo. Segundo uma leitura lacaniana, atentar para a noção dialética-materialista de

“efeito” é fundamental para explicar esse excesso reflexivo: se um “efeito” pode superar sua

“causa”, esse é o caso do procedimento repressivo regulatório, que passa a ser libidinalmente

investido e a funcionar como fonte de satisfação.

Para Žižek (1999), a noção de subversão relaciona-se à idéia de ato, cujo efeito

consiste em fazer cessar a articulação simbólica. Sua perspectiva indica a suspensão

momentânea do Outro como única possibilidade de deslocar o campo sócio-simbólico e seus

princípios estruturantes. Isso só seria possível por um gesto não mais coberto pelo Outro

simbólico, ou seja, pela intervenção real do que designou de ato ético. Este último é

caracterizado por sua irredutibilidade ao “ato discursivo” e por coincidir com a forma

elementar da pulsão de morte.

O grande desentendimento entre os dois autores quanto à perspectiva de subversão do

poder pode ser colocado em torno da seguinte controvérsia: para Butler, a subversão do poder

só pode ser exercida no interior do mesmo, através de deslocamentos biopolíticos; já para

Žižek, o ato ético que subverte o sistema é somente aquele o interrompe.

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CONSIDERAÇÕES

FINAIS

ALTERIDADE,

DIFERENÇA

E

SINGULARIDADE:

novos

desafios para a psicanálise

O foco de reflexão da presente pesquisa foi construído a partir da discussão

contemporânea sobre a questão da diferença sexual na psicanálise, surgida em meio à nova

cartografia das sexualidades: a teoria psicanalítica se limita a reproduzir a organização social,

restringindo-se à descrição da aquisição (normal ou problemática) do gênero masculino ou

feminino (Porchat, 2007)? Ou pode ser um instrumento valioso na fundamentação de uma

nova proposta, a de pensar “diferentemente o diferente”?

As teorias freudiana e lacaniana têm sido interpeladas por representantes feministas

por reproduzir normas hegemônicas de gênero, e, conseqüentemente, por restringir ao terreno

da invisibilidade os “gêneros não-inteligíveis”. A noção psicanalítica de diferença sexual está

na base dessa interpretação, tendo em vista o lugar crucial que é dado à mesma na

constituição do sujeito. Por outro lado, psicanalistas contemporâneos sugerem uma nova

leitura da psicanálise na intenção de deslocar a problemática da diferença da divisão binária

sexual.

A fim de analisar as duas hipóteses, realizou-se um retorno a Freud e a Lacan e às suas

noções de sexualidade e de diferença. O primeiro capítulo foi dedicado, especialmente à

evolução do conceito de complexo de Édipo. Foi em torno de tal conceito que Freud construiu

um quadro explicativo sobre a assunção da identidade sexual e a constituição da diferença.

Vimos como a diferença sexual, ou mais especificamente a sexualidade feminina, é um

impasse em Freud. Se, por um lado, o autor a distancia da anatomia sexual, propondo uma

fase infantil na qual o monismo sexual fálico é prevalente para ambos os sexos, por outro

lado, tropeça na tentativa de tornar inteligível a constituição da sexualidade feminina e repete

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116

o modelo do dimorfismo sexual, de modo que o feminino adquire uma definição em termos

de déficit, determinada pelo paradigma moderno de gênero.

Butler (2003) reconhece na teoria das identificações a demanda teórica da psicanálise

pela diferença sexual, que partiria do pressuposto de que o sexo do objeto de amor e o sexo do

modelo identificatório jamais são os mesmos. Para a autora, mesmo na situação edipiana tida

como invertida, a heterossexualidade aparece como uma condição determinada a priori.

Em relação a Lacan, percebemos que, em sua vertente estruturalista, a diferença sexual

adquire um status transcendental, operador imprescindível e universal para a entrada no

sujeito na cultura; hipótese que mantém a problemática da diferença associada ao dualismo

hierárquico masculino/feminino.

Por sua vez, a dimensão do para-além do Édipo denota a estrutura da castração como

dependente da linguagem, e não mais da função paterna, o que, para os lacanianos, significa

dizer que a perda do gozo se dá para todos aqueles que se inserem na linguagem. A castração,

assim, deixa de exprimir um dos pólos do binarismo sexual e passa a significar o

indomesticável do gozo mediante o discurso. Para além do imaginário e do simbólico, o sexo

começa a ser compreendido em sua vertente real, de gozo. É a partir daí que Lacan indicará as

fórmulas da sexuação, cuja exposição central é tese de que os sujeito podem ser divididos em

dois modos de gozo, um todo fálico e outro não-todo fálico. Se, por um lado, as fórmulas

deslocam a questão da sexualidade do âmbito da identificação e da anatomia genital, por outro

lado, a sexuação dita feminina permanece descrita segundo o paradigma masculino, cuja

conseqüência teórica aparece na impossibilidade de qualquer determinação positivada da

mesma.

O estatuto da noção de diferença sexual na psicanálise é, então, problematizado e

ganha um vulto importante na atualidade na medida em que diz respeito a questões relativas à

interface entre teoria psicanalítica e cultura. Através das leituras de Judith Butler e Slavoj

Žižek, percorremos os principais argumentos que giram em torno do caráter normativo das

teorias da sexualidade.

Para Butler (2002, 2004), os modelos de diferença sexual defendidos pela psicanálise

são normas de gênero histórico-contingentes, ou seja, são injunções sociais normativas. A

autora evidencia sua conclusão a partir do pressuposto psicanalítico de que deve haver

coerência entre sexo, gênero, desejo e prática sexual, o que faz com que a teoria contribua

para que alguns gêneros não tenham inteligibilidade cultural e se tornem relegados à esfera da

não-aceitação. Nesse sentido, Freud e Lacan se limitaram a explicar a aquisição dos “gêneros

inteligíveis”, cooperando para a manutenção da organização social baseada no binarismo

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117

hierárquico. Até então, a psicanálise recuou diante da tarefa de analisar as relações de poder

inseridas nas questões de gênero e diante da possibilidade de transformação social. Vimos

como no trabalho de Butler (2002) há uma proposta política bastante clara, qual seja, a de

realizar deslocamentos disruptivos biopolíticos como modo de subverter o poder. O

deslocamento das fronteiras de inteligibilidade seria uma potencialidade inerente ao próprio

exercício do poder, tendo em vista que a reiteração de normas inclui a possibilidade de uma

repetição diferenciada.

Mesmo considerando que a teorização de Butler (2000, 2002, 2003) levaria a uma

crítica radical da diferença sexual em psicanálise, é interessante ressaltar a proposta que

realiza no capítulo “The End of Sexual Difference?”, do livro Undoing Gender (2004).

Apesar da autora insistir na importância da questão da diferença sexual permanecer em

aberto, não resolvida, empenha-se em pensar, através do conceito psicanalítico de pulsão, uma

forma de desatrelar a diferença sexual da normatividade heterossexual.

Uma releitura da noção psicanalítica de pulsão seria uma tentativa de ultrapassar a

dificuldade de se determinar, em relação à diferença sexual, onde se inicia e termina o

biológico, o psíquico e o social. Entendendo-a como o lugar de convergência entre a cultura e

a biologia, porém distinta a ambas, a pulsão fundaria um campo de tematização daquilo que

não é apreensível na sexualidade e que provoca o fato de que as significações do corpo

extrapolam as intenções do sujeito. A pulsão, assim, evidencia a dimensão corporal que não

pode ser totalmente representada, mas que dirige todo sujeito sem, no entanto, que o mesmo

possa conhecê-la.

Butler (2004) faz questão de clarear as diferenças entre a sua proposta e a hipótese da

diferença sexual como real de Žižek (1999). No entanto, esse cuidado parece demandar que

nos debrucemos com mais atenção sobre as possíveis aproximações entre as duas

perspectivas, já que a noção de real também é uma tentativa de nomeação do inapreensível. O

sentido de dizer que a diferença sexual é real está na impossibilidade da mesma ser captada

pela articulação simbólica, incluindo aí as imposições sociais normativas. Trata-se de uma

diferença da ordem do inominável, um furo do simbólico ao redor do qual as cadeias

significantes são produzidas. Isso se aproxima da noção de pulsão enquanto dimensão

corporal que não pode ser totalmente representada.

Por outro lado, não nos esqueçamos daquilo que Butler (2004) coloca como

controverso entre a sua proposta e a da teoria lacaniana. No seu entendimento, o real se

configura como um impedimento lógico do registro simbólico e se esse último adquire um

caráter estrutural e transcendental, a diferença sexual como real também seria apreendida por

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118

uma pretensa constância. Ao contrário, para a autora, a pulsão não deixa de estar relacionada

ao biológico e ao social, de modo que o que chama de “inapreensível da dimensão corporal”

também se move e se transforma. A discordância principal seria frente à idéia de simbólico

como estrutura fixa, cuja repercussão produz uma diferença sexual também rígida e universal.

Ao se elevar o real e a diferença sexual à condição de categorias transcendentais, garante-se a

ilusória imunidade das mesmas às transformações sociais e o direito a prescrever fronteiras de

inteligibilidade.

O intuito da autora é justamente o de valorizar a possibilidade de transformação da

pulsão, pois se a mesma se desloca e se transforma, pode-se supor uma pluralização da

diferença sexual (Porchat, 2007). A introdução do termo “diferenças sexuais” é uma tentativa

de fazer jus à multiplicidade de identidades sexuais. Mais do que isso, trata-se de valorizar a

flexibilidade de qualquer postulação identitária, cuja característica primordial é a

potencialidade de provocar deslocamentos biopolíticos.

À medida em que foca as suas críticas ao real pela transcendentalidade da categoria,

Butler (2000) parece se referir novamente ao contexto estruturalista da teoria lacaniana. No

entanto, a proposta de Žižek (1999) se insere em outro contexto teórico, em que há a

prevalência do real sobre os demais registros, além do enlaçamento dos mesmos em um nó

borromeano. Dizer que a diferença sexual é sem conteúdo ou real significa que sua

caracterização, sua divisão em estruturas, é o resultado da ordem simbólica, e que essa, de

certa forma, aniquila o real. O real é não-substancializado. Nessa direção, não faz sentido

tornar plural a diferença sexual, pois “o real de Lacan é sem zonas, subdivisões, altos e baixos

localizados ou lacunas e totalidades: o real é um tipo de tecido inteiro, indiferenciado,

entrelaçado de forma a ser completo em todos os lugares, não havendo espaço entre os fios

que são sua ‘matéria’ ” (Fink, 1998: 44).

A tentativa de aproximar os dois autores não pode trazer soluções para os impasses em

que se desencontram. Acredita-se que Butler e Žižek sustentam pontos de vista diferentes, o

que contribui para o caráter infindável do debate em que se encontram. Para ir além do

binarismo, o objetivo deste trabalho não foi escolher entre um pensamento ou outro, mas sim

valorizar as releituras que estes impasses provocam dentro da própria psicanálise.

Outros autores, em estudos recentes, refletem as contradições da psicanálise frente à

questão da diferença sexual e trazem novas provocações para o campo. David-Ménard (2001),

por exemplo, é outra autora que comenta o inapreensível da sexualidade como o real da teoria

lacaniana. A concepção de real sobre a qual se debruça diz respeito ao lugar ao redor do qual

giram as características identificatórias com as quais o sujeito se define, mas que, ao mesmo

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119

tempo lhe escapam. Em outras palavras, o inapreensível corresponde ao inassimilável do

Outro na constituição do sujeito.

Nunes (2000) também defende que a sexuação seja colocada no terreno daquilo que

tem sua produção na relação com o Outro, o que aponta para a influência do desejo dos pais

nessa construção. Os caminhos da libido e a sexualidade do sujeito são determinados a partir

da relação com o outro parental que a engendra.

Esse campo de investigação vem sendo explorado por autores como Birman (1999), a

própria David-Ménard (2001) e Arán (2006), a partir do intuito de construir um outro espaço

sócio-simbólico para a alteridade. Para tanto, realizam novas leituras da teoria pulsional, de

forma pensar a noção de diferença para além do dispositivo da diferença sexual.

Trata-se de demonstrar que o aparelho psíquico descrito por Freud em termos

quantitativos, a partir de noções como força e excesso, revela-nos a possibilidade de pensar a

sexualidade como algo da ordem da economia e a alteridade como algo interno ao sujeito.

Essa perspectiva retoma as postulações freudianas em torno da necessidade imprescindível de

um outro sujeito não só para a sobrevivência do ser humano, como também para a origem do

processo de subjetivação. O desamparo biológico serve de metáfora para a relação do sujeito

com o Outro, tendo em vista que a dependência do infante com a figura do outro promove a

transmissão do erotismo das figuras parentais para o sujeito (Birman, 1999).

O outro, ao inaugurar e modelar a economia pulsional do sujeito, contribuindo para as

experiências de gozo e satisfação, libidiniza seu corpo. Nesse direção, David-Ménard (2001)

equivale sexuação e alteridade. Por que não acrescentar aí a singularidade, já que essa diz

respeito aos destinos pulsionais do sujeito? Birman (1999), a partir de uma releitura da noção

de feminilidade, contribui para o tema da diferença, tornando claro que a esta só pode ser

reconhecida como alteridade quando articulada à singularidade.

Outra noção freudiana que nos leva a enfatizar a relação entre diferença e

singularidade é a de estranho-familiar (Arán, 2006). A distinção entre um “exterior

irredutível” e um “interior-pulsional” é sempre provisória, o que nos permite compreender a

diferença como aquilo que subverte os limites do eu em uma mescla pulsional. A sexuação,

assim, pode ser pensada como “algo que se produz a cada momento, pois sempre se faz

provisoriamente a partir do encontro com o outro” (Arán, 2006: 215).

Como vemos, a partir das revisões da teoria psicanalítica que conferem destaque às

noções de força e economia, podemos romper com a construção de modelos universais da

diferença, em que o outro é determinado a priori. A narrativa pulsional interrompe a repetição

do princípio de identidade, permitindo a compreensão da alteridade sem a transformação do

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120

outro em uma alegoria, como vimos fazer o pensamento tipicamente moderno. Ou seja, em

direção contrária à prescrição de modelos universais, transcendentais e hierárquicos para a

diferença, chega-se à idéia de que o encontro com a alteridade, interna ou externa ao sujeito, é

o encontro com a indeterminação e com a contingência.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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