Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Medicina Social
PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
Alteridade e Diferença Sexual: considerações sobre o
debate psicanalítico contemporâneo
M
ARINA
S
ODRÉ
M
ENDES
B
ARROS
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção de grau de Mestre em Saúde Coletiva, Curso de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Ciências Humanas e
Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
Orientadora:
M
ÁRCIA
A
RÁN
Rio de Janeiro
2009
Marina Sodré Mendes Barros
Alteridade e Diferença Sexual: considerações sobre o debate psicanalítico
contemporâneo
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção de grau de Mestre em Saúde Coletiva,
Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,
Ciências Humanas e Saúde do Instituto de Medicina
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Aprovado em 20 de Março de 2009.
Banca examinadora:
Prof
a
.
Dr
a
. Márcia Ramos Arán (Orientadora)
Instituto de Medicina Social da Uerj
Prof. Dr. Joel Birman
Instituto de Medicina Social da Uerj
Prof
a
.
Dr
a
. Regina Alice Neri
Faculdade de Direito da UCAM/RJ
Prof. Dr. Carlos Augusto Peixoto Júnior
Faculdade de Psicologia da Puc-Rio
Rio de Janeiro
2009
Para Pedro, pelas provocações.
AGRADECIMENTOS
À CAPES, pelo financiamento da pesquisa.
À Márcia Arán, agradeço principalmente por insistir que a psicanálise não deve ser intocável.
Ao meu pai, João, e à minha madrasta, Marita, que são companhias fundamentais nos
momentos de tensão profissional. A esta última também pela tradução dos “palavrões”.
À família Sodré, uma vez mais, agradeço por transmitir a curiosidade pelo sujeito. À minha
mãe, Sônia, pelas trocas, pela confiança e pelos mais variados incentivos profissionais. À
minha dinda, Marília, pelas conversas tão precisas, desde sempre.
À Camila, pela generosidade que faz com que me apóie de diversas formas possíveis, ficando
tão perto, mesmo quando longe. Ao Felipe, que não poupou esforços para sustentar o meu
“verão da Travessa” e proporcionou importantes peças da bibliografia deste trabalho. Ao
Guilherme, que viu as visitas de sua irmã se tornarem cada vez mais raras nesses últimos
meses de mestrado e cujos recentes jogos de palavras fizeram com que eu voltasse mais feliz
à pesquisa.
À Sarita Gelbert, pelas apostas.
À Olívia Von der Weid, amiga de todas as horas, e, como não poderia ser surpreendente,
amiga das melhores e das piores horas de uma mestranda. A surpresa ficou reservada ao fato
de ter sido a maior apoiadora da escolha pelo IMS e pelo tema da pesquisa. Agradeço ainda as
discussões travadas sobre Judith Butler pelos bares do bairro. Um último agradecimento, pela
limpeza realizada no texto.
Ao Pedro, que sendo o maior incentivador dos estudos acadêmicos, mas esquecido de seus
tempos de mestrando, nem sempre me deixou trabalhar. Agradeço por não me deixar esquecer
da vida além do mestrado.
RESUMO
Alteridade e Diferença Sexual: considerações sobre o debate psicanalítico
contemporâneo
A partir da interface entre psicanálise e cultura, este trabalho tem como objetivo analisar o
debate contemporâneo acerca das noções psicanalíticas de alteridade e diferença sexual,
instaurado pelos deslocamentos ocorridos no campo da sexualidade e pelos desafios que estes
impõem à psicanálise. Para isso, propõe-se, em um primeiro momento, examinar a teoria
freudiana sobre a diferença sexual, o que é realizado principalmente a partir das formulações
acerca da sexualidade feminina. Como a construção do complexo de Édipo apresenta-se como
uma tentativa de dar conta da constituição da identidade sexual e da diferença no processo de
subjetivação, traça-se o trajeto do autor desde as primeiras menções ao Édipo até o encontro
com o impasse do feminino, passando pela teoria das identificações como mecanismo
privilegiado de assunção sexual. Em seguida, investiga-se o pensamento de Lacan em relação
ao tema da diferença sexual, desde o seu retorno ao complexo de Édipo e a sua estruturação
em termos de linguagem até as propostas apresentadas em seu último ensino, em que sublinha
o aspecto real da sexuação assim como se valoriza a diferença sexual em termos de gozo.
Finalmente, tendo como pano de fundo a nova cartografia das sexualidades, e como fio
condutor, o diálogo travado entre Judith Butler e Slavoj Žižek, considera-se em que medida a
psicanálise baseia a constituição da alteridade no modelo binário e hierárquico da divisão
sexual, contribuindo para a manutenção normativa do sistema sexo-gênero ou em que medida
a teoria psicanalítica proporciona um deslocamento da alteridade do modelo de diferença
sexual, contribuindo para a sua compreensão enquanto indeterminação e contingência.
Palavras-chave: alteridade – diferença sexual – cultura - subjetividade
ABSTRACT
Otherness and Sexual Difference: considerations about the contemporary psychoanalitic
debate
This work aims to analyze the current debate about the psychoanalitics concepts of difference
and sexual difference introduced by displacements occurring in the field of sexuality and the
challenges they impose on psychoanalysis from the interface between psychoanalysis and
culture. In order to achieve that it proposes as a beginning to the task to examine the freudian
theory on sexual difference, which the main approach is from the formulations about of
female sexuality. Then, it investigates the thinking of Lacan in relation to the issue of sexual
difference, since its return to Oedipus complex until the proposals presented in his last work.
Finally, taking as background the new cartography of sexualities, and like a thread, the dialog
braked between Judith Butler and Slavoj Žižek, it considers to which extent the
psychoanalysis is the base of constitution of the difference in the binary and hierarchical
division sexual model, contributing to the normative maintenance of sex-gender system or in
which extent psychoanalytic theory provides a displacement of the otherness of the model of
sexual difference, contributing to their understanding as indeterminacy and contingency.
Key-words: otherness – sexual difference – culture - subjectivity
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................1
CAPÍTULO 1: A NOÇÃO DE DIFERENÇA SEXUAL EM FREUD.................................7
1.1 Da teoria da sedução aos primórdios do complexo de Édipo.........................................8
1.2 O esboço de uma dissimetria entre os sexos...................................................................16
1.3 A teoria das identificações............................................................................................27
1.4 A primazia do falo............................................................................................................30
1.5 O feminino como impasse ...............................................................................................35
CAPÍTULO 2: A TEORIA LACANIANA SOBRE O ÉDIPO E A SEXUAÇÃO............42
2.1 Uma breve introdução às contribuições de Lacan....................................................43
2.2 O Édipo como complexo familiar....................................................................................46
2.3 Da estrutura ao gozo ....................................................................................................48
2.4 As fórmulas da sexuação..................................................................................................61
2.5 O real como alteridade radical........................................................................................68
CAPÍTULO 3: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS NOÇÕES PSICANALÍTICAS DE
ALTERIDADE E DIFERENÇA SEXUAL: o debate contemporâneo entre Judith Butler
e Slavoj Žižek.......................................................................................................................75
3.1 Controvérsias acerca do complexo de Édipo e do conceito de identificação em
Freud........................................................................................................................................76
3.2 Controvérsias acerca das noções de diferença sexual em Lacan................................90
3.2.1 A análise crítica do simbólico estrutural.....................................................................90
3.2.2 A problematização das fórmulas da sexuação............................................................97
3.3 Diferença sexual formal sem conteúdo e normas de gênero histórico-
contingentes...........................................................................................................................101
3.4 Ato ético e deslocamentos disruptivos biopolíticos......................................................109
CONSIDERAÇÕES
FINAIS:
ALTERIDADE,
DIFERENÇA
E
SINGULARIDADE:
novos desafios para a psicanálise.........................................................................................115
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS................................................................................121
A
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o debate contemporâneo sobre as
noções psicanalíticas de alteridade e diferença sexual, instaurado pelos deslocamentos
ocorridos desde a modernidade no campo da sexualidade e pelos desafios que estes impõem à
psicanálise. Para tanto, inicialmente, apresentaremos as principais teses sobre sexualidade e
diferença no pensamento de Freud e Lacan, apontando para as críticas realizadas no interior
do campo psicanalítico ao modelo tradicional de pensar a diferença. Em um momento
posterior, analisaremos as principais repercussões deste debate na interface entre psicanálise e
cultura, tendo como referência o diálogo realizado por Judith Butler e Slavoj Žižek sobre
normas de gênero e sexuação. Interessa-nos questionar se o modelo da diferença da teoria
psicanalítica deve necessariamente ficar atrelado à questão da diferença sexual ou se é
possível realizar um deslocamento no interior da própria
psicanálise para pensar
“diferentemente a diferença”
1
, ou seja, a partir da noção de alteridade.
Vários autores (Birman,1999; Arán, 2002; Nunes, 2002; Neri 2005) têm discutido
como em alguma medida as teses clássicas da psicanálise equivalem a diferença à experiência
do feminino, ao serem atravessadas pela divisão de gênero vigente na sociedade moderna.
Nessa perspectiva, considera-se que as teorias psicanalíticas sobre a sexualidade feminina e
masculina, concebidas através do conceito de complexo de Édipo e de castração, reiteram o
modelo do dimorfismo sexual, tal como descrito por Thomas Laqueur (2001). A compreensão
da diferença em torno do princípio do “ter” e do “não ter” o falo corresponderia ao modelo
binário e hierárquico dos dois sexos.
1
Expressão utilizada por Arán (2008b), a partir da sugestão de Foucault.
2
Outra característica da sexualidade infantil inicial é que o órgão
sexual feminino propriamente dito ainda não desempenha nela
qualquer papel: a criança ainda não o descobriu. A ênfase recai
inteiramente no órgão masculino, todo o interesse da criança está
dirigido para a questão de se ele se acha presente ou não. Sabemos
menos acerca da vida sexual de meninas do que de meninos. Mas não
é preciso envergonharmo-nos dessa distinção; afinal de contas, a vida
sexual das mulheres adultas é um “continente negro” para a
psicologia. Mas aprendemos que as meninas sentem profundamente
falta de um órgão sexual que seja de igual valor ao masculino; elas se
consideram por causa disso inferiores, e essa “inveja do pênis” é a
origem de todo um grande número de reações femininas
características (Freud, 1996 [1926]: 205/206).
Segundo Laqueur (2001), o modelo dos dois sexos surge a partir do século XVIII, com o
Iluminismo, para organizar a sociedade em torno das definições de homem - público e mulher
- privado, rompendo com a concepção de sexo único que vigorou durante a Antiguidade até o
século XVII. Baseado em um paradigma teológico metafísico, o modelo do sexo único
compreendia o sexo feminino como homólogo ao masculino, só que imperfeito e inferior. A
visão dominante era a de que a mulher possuía os mesmos órgãos que o homem, porém
internos. Tratado como uma inversão, tal concepção, foi explicada pela menor quantidade de
calor corporal que possuía a mulher, sendo, por esse mesmo motivo, uma versão mais distante
da perfeição do que a versão masculina. O calor, portanto, era tido como o responsável pela
diferença entre homens e mulheres, que, apesar disso, compartilhavam uma única essência.
Ainda de acordo com Laqueur (2001), a partir do modelo do dimorfismo sexual, a
modernidade inaugura a associação da distinção entre homens e mulheres com a diferença
sexual. Baseado em um paradigma cientificista orgânico, o sexo anatômico e biológico passa
a determinar a diferença entre uma essência natural do sexo masculino e outra do sexo
feminino. Os novos ideais de feminilidade e masculinidade são sustentados a partir da
transformação da antiga hierarquia entre os sexos em um discurso biológico e cientificamente
fundado, tornando indistinguíveis a morfologia sexual e o gênero. Nas palavras de Birman, na
modernidade, “as faculdades morais são diretamente derivadas das marcas do organismo”
(Birman, 2002: 09).
3
É importante destacar que, para Arán (2006), a lógica do dimorfismo sexual está
associada ao princípio da identidade, de modo que a diferença não é abordada em sua
dimensão alteritária, e sim apropriada pela lógica do mesmo. Dessa forma, a experiência
moderna da constituição sócio-cultural do outro é caracterizada pela exclusão da diferença, de
forma que a referência ao feminino é estabelecida de maneira restrita a partir do paradigma
masculino.
No entanto, segundo Arán (2008b), nos últimos cinqüenta anos, vivemos
deslocamentos significativos que constituem uma nova cartografia da sexualidade e da
diferença. Os principais fenômenos constitutivos desta mudança seriam: (1) a escolarização
das mulheres; (2) a entrada da mulher no mercado de trabalho; (3) a separação entre
sexualidade e reprodução; (4) a crise da forma burguesa da família nuclear; (5) uma política
de visibilidade para a homossexualidade; (6) as modificações corporais realizadas por
transgêneros, transexuais e intersexuais (Arán, 2008b: 02). A partir desse novo cenário,
algumas questões são relançadas: haveria na atualidade uma outra concepção de diferença,
não mais restrita à descrição do feminino realizada segundo a lógica do masculino? Entre os
desdobramentos dessa nova cartografia, encontramos espaço para pensar “diferentemente o
diferente”, reconhecendo de fato seu estatuto alteritário? Em que medida a teoria psicanalítica
estabelece uma relação produtiva com as novas formas de manifestação da sexualidade e de
subjetivação e permite a incorporação de um novo modelo para pensar a diferença?
Com as questões propostas, pretendemos desenvolver a pesquisa em três capítulos. No
capítulo 1, iremos percorrer a elaboração da teoria freudiana do complexo de Édipo, tendo em
vista que este conceito é uma resposta de Freud à questão do processo de sexualização e da
constituição do outro em sua diferença no desenvolvimento psíquico do sujeito. Dois
impasses motivam a evolução teórica do complexo desde a sua primeira aparição entre os
conceitos psicanalíticos, quais sejam: o impasse da diferença sexual como anatômica e o da
especificidade da sexualidade feminina. A partir desses dois pontos de investigação, Freud
compõe um quadro teórico em que as noções de identificação e de diferença sexual são
fundamentais para a formulação de uma concepção de sexualidade em termos psíquicos.
Nesse sentido, propõe que a sexualidade não é instintiva e que para tornar-se homem ou
mulher é necessário uma elaboração subjetiva.
As respostas formuladas por Freud em relação à sexualidade feminina nos serão de
grande utilidade, tendo em vista que esse fio teórico se confunde com o desafio de
compreender a constituição da diferença em termos psíquicos. Tamanha indistinção entre os
dois temas é, para alguns autores (Nunes, 2000; Néri, 2005; Arán, 2006), a evidência de que o
4
modelo freudiano da diferença coincide com o modelo do dimorfismo sexual, ou seja, a noção
de diferença se confunde com as normas hierárquicas de gênero, o que traz como
consequência a reprodução do paradigma masculino e a impossibilidade do feminino ser
definido positivamente.
O lugar crucial conferido por Freud à diferença sexual na constituição do sujeito sofre
sua continuação mais evidente em Lacan, que, por esse mesmo motivo, será objeto de nosso
estudo no segundo capítulo. Partiremos do momento em que o complexo de Édipo freudiano é
revisado pelo autor, adquirindo o status de complexo familiar universal e evidenciado a
reprodução da dominação masculina. Posteriormente, retomaremos o contexto teórico em que
os complexos de Édipo e de castração são reformulados em termos lógicos. Lacan passa a
defender que a sexualização tem duas possibilidades estruturais, uma posição sexual feminina
e outra masculina, e que essas se diferenciam conforme se relacionam com o significante
fálico. Veremos como essa hipótese sugere um modelo transcendental do simbólico, em que
diferença e alteridade ficam coladas ao dualismo masculino-feminino.
A travessia que Lacan percorre do Édipo ao seu “para-além” também será analisada
nesse capítulo, tendo em vista que o autor renuncia ao complexo familiar, adotando uma
formalização do processo de subjetivação em termos de estrutura de linguagem. Nesse
contexto, generaliza-se o fenômeno da castração, anteriormente caracterizado como feminina,
para ambos os sexos, tendo em vista que o conceito passa a indicar a perda de gozo necessária
a todo ser falante.
Deixando de se referir ao Édipo, as fórmulas da sexuação radicalizam a idéia de
sexualidade, rompendo com qualquer concepção biológico-orgânica do corpo humano e da
diferença sexual (Elia, 1995; Žižek, 1999; Soler, 2005). Segundo as proposições das fórmulas,
os sujeitos, se inseridos na linguagem, devem se relacionar com a lógica da castração. No
entanto, há duas maneiras de se relacionar com a mesma. O modo masculino diz respeito
àquele que está todo na função fálica, enquanto que o modo feminino refere-se ao gozo não-
todo inserido na lógica fálica. A hipótese fundamental dessa tese refere-se à divisão dos
sujeitos em dois modos de gozo que independem de suas identidades sexuais ou de seus
órgãos genitais.
A descrição da sexuação em termos de gozo só é possível a partir do gradativo
encobrimento teórico do registro simbólico pelo registro do real. A diferença sexual denotaria
aquilo que faz furo na lógica fálica, ou seja, aquilo que foge à articulação simbólica e
imaginária. O real da diferença sexual é um argumento bastante explorado recentemente por
Žižek (1999), em seu diálogo com Butler (2000).
5
As críticas quanto à repetição do modelo de diferença baseado no dimorfismo sexual
também recaem sobre o pensamento lacaniano. Do ponto de David-Ménard (1998), Butler
(2002) e de Arán (2006), Lacan recairia em uma concepção universal da diferença sexual, não
reconhecendo seu caráter histórico-contingente. A causa disso, segundo seus críticos, é que o
autor permaneceria preso tanto ao modo masculino de encarar a diferença quanto ao
binarismo hierárquico da divisão sexual.
A partir dos deslocamentos ocorridos desde a modernidade e do estabelecimento de
uma cartografia contemporânea das sexualidades, foi relançado um campo de debate acerca
do estatuto da noção de diferença sexual na psicanálise. Torna-se relevante pensar se a
diferença sexual é reconhecida pelas teorias freudiana e lacaniana enquanto uma formulação
histórico-contingente ou enquanto um modelo transcendental da diferença. A relevância dessa
interrogação se coloca na medida em que a segunda proposição tem funcionado como um
obstáculo às novas (re)configurações das relações sociais e subjetivas (Arán, 2008b).
Ao tomar a psicanálise como objeto de leitura e as teses foucaultianas como referencial
teórico, Butler (2002, 2003) desconstrói conceitos caros à teoria da sexualidade,
demonstrando que a noção de diferença sexual na psicanálise, seja em sua vertente anatômica
ou estrutural, repete um modelo binário e hierárquico tradicional, cuja matriz de sustentação é
a heterossexualidade normativa e as normas de gênero típicas da modernidade. Como
consequência, a constituição do outro torna-se submetida à diferença sexual, o que
fundamenta uma perspectiva patológica acerca das novas formas de subjetivação.
Para Butler (2002, 2003), a psicanálise é um dispositivo
2
que reinstaura o modelo
essencialista da diferença sexual, ou seja, seu discurso é um operador de poder que fomenta
formas de sujeição segundo o estabelecimento de fronteiras entre “gêneros inteligíveis” e
“não-inteligíveis”
3
. O mecanismo de transformar modelos histórico-contingentes da
sexualidade em modelos universais ou transcendentais demonstra a função normativa da
psicanálise.
Em contraposição às considerações de Butler (2002, 2003), Žižek (1999) defende que
a teoria lacaniana da sexuação rompe com qualquer possibilidade de se conceber a
sexualidade em termos normativos, tendo em vista que a relação do sujeito com seu próprio
sexo e com o outro sexo é inserida no registro do real.
2
Na presente pesquisa, o termo “dispositivo” se refere ao conceito foucaultiano.
3
Butler (2002) não se restringe à questão da desigualdade entre os gêneros, incluindo em seu trabalho a
problemática da não-inteligibilidade cultural a qual alguns gêneros são submetidos.
6
O autor costura sua argumentação baseando-se no mapeamento do que entende ser
uma “confusão teórica” de Butler, qual seja: a confusão entre o imaginário, o simbólico e o
real. Defende, assim, que a autora realiza sua interpretação acerca da psicanálise de acordo
com os sistemas simbólico e imaginário. Até aqui, percebe-se ao menos alguma concordância
entre os autores, pois ambos entendem que a sexualidade se constitui a partir de uma condição
de assujeitamento, com a ressalva de que, para Žižek (1999), essa condição não é exclusiva da
heterossexualidade ou das normas de gênero tradicionais.
Para além desse ponto de concordância, Žižek (1999) empenha-se em demonstrar que
o imaginário e o simbólico não recobrem toda a sexualidade, deixando um furo descoberto, ao
qual dá o nome de real. A seu ver, é nesse ponto, cuja condição é ser vazio de conteúdo, que
podemos situar a diferença sexual. Tal tese sublinha a impossibilidade de se delimitar apenas
simbólica e imaginariamente a diferença. A proposta de compreender a diferença sexual como
real valoriza a parte irrealizável de qualquer operação normativa, de forma que a constituição
da alteridade permanece atrelada à diferença sexual, só que esta tomada em sua vertente real,
ou seja, enquanto diferença sem conteúdo ou, em outras palavras, enquanto encontro do
sujeito com o limite do simbólico.
Sendo assim, no terceiro capítulo, nosso objetivo será o de abarcar as questões
debatidas entre ambos os autores, Butler e Žižek, com o intuito de aproveitar o que esse novo
horizonte de discussão pode contribuir para uma dissociação entre as noções de alteridade e
de diferença sexual em seu aspecto binário e hierárquico. Tal tarefa se impõe a partir dos
desafios que a nova cartografia das sexualidades traz à psicanálise e da conseqüente
necessidade de construção de um novo destino para a diferença, que não o da exclusão.
CAPÍTULO 1
A NOÇÃO DE DIFERENÇA SEXUAL EM FREUD
Desde os primórdios da psicanálise, Freud conferiu grande importância à sexualidade
para a constituição psíquica do sujeito. Também muito precocemente, passou a compreendê-la
de uma forma pouco usual em seu tempo, não mais restringindo-a às atividades e ao prazer
relacionados especificamente ao aparelho genital. As suas formulações sobre a sexualidade do
ser humano atravessam toda a história do movimento psicanalítico, tendo sido motivadas pela
clínica e pela teoria, em constante movimento. Reconhecido por afastar o conceito de
sexualidade da noção de instinto da biologia, cujo sistema explicativo formula um quadro de
expectativas em que objeto e meta são fixamente pré-concebidos, o autor não produz sua
concepção em uma linha reta e nem evolucionista, o que parece gerar diferentes
interpretações por parte de seus comentadores.
A questão da diferença sexual inserida na obra freudiana é um retrato fidedigno do
movimento nada regular de Freud e das inúmeras releituras que provoca em autores
posteriores. Como o próprio autor declara em 1923, sua observação do desenvolvimento
libidinal do sujeito localizou a preponderância de polaridades sexuais outras que não aquela
da diferença sexual anatômica (Freud, 1996 [1923a]). Mesmo quando a percepção dos
diferentes órgãos genitais acontecia entre as crianças, Freud defendia que essa era objeto de
interpretações e não fonte de informações biológicas sobre a diferença entre homens e
mulheres.
O presente capítulo tem como objetivo reconhecer na teoria freudiana as diversas
noções de diferença sexual, a fim de discutir o quanto se afastam ou se aproximam do modelo
do dimorfismo sexual. A concepção de diferença sexual será estudada especificamente
8
quando inserida na questão edipiana, o que nos leva a trabalhar também a teoria das
identificações.
1.1 Da teoria da sedução aos primórdios do complexo de Édipo
A expressão complexo de Édipo é publicada por Freud pela primeira vez em 1910, em
seu artigo intitulado Um Tipo Especial de Escolha de Objeto Feita pelos Homens, para dar
nome a uma situação emocional presente na puberdade do jovem do sexo masculino, em que
esse deseja a própria mãe para si e odeia o seu pai como um rival que impede a realização
desse desejo. Neste artigo, o autor descreve um tipo de amor masculino, cuja compreensão
viria da fixação das fantasias no complexo edipiano.
A referência ao tema edipiano na psicanálise é, entretanto, anterior a 1910, aparecendo
desde o seu início, e sendo o complexo concebido principalmente a partir de descobertas
clínicas e da auto-análise em que Freud se empenhou. Um passo importante para a formulação
do conflito edipiano é a passagem da teoria da sedução para a priorização das fantasias
inconscientes, tendo em vista que o que antes era levado em conta como uma realidade
material, passa a ser compreendido como uma realidade psíquica.
A chamada teoria da sedução foi formulada por Freud a partir dos relatos de seus
pacientes que lembravam-se de experiências em que sofriam passivamente investimentos
sexuais vindos da parte de outro, geralmente de um adulto. Em 1893, Freud introduz a idéia
de sedução, atribuindo-lhe um lugar teórico importante até 1897 (Laplanche e Pontalis, 2001).
Desde então, as cenas sexuais, tidas como realidade material, passaram a fazer parte de um
modelo explicativo sobre a origem do mecanismo de recalque e do tratamento da histeria e da
neurose obsessiva, visto que o analista deveria investigar tais vivências de sedução na história
do sujeito.
O desconhecimento sobre a existência de uma sexualidade infantil permite a
formulação de que a cena relembrada em análise não havia sido objeto de recalque na época
do seu acontecimento, porque tendo ocorrido na infância, seria da ordem do “pré-sexual”, ou
seja, o seu cunho sexual seria trazido do exterior, sem que o sujeito pudesse ainda integrá-lo à
experiência. O recalque se daria posteriormente, em um segundo momento, quando a partir de
um novo acontecimento, a lembrança da primeira vivência é evocada e sofre o recalque. Em
9
outras palavras, a partir de uma excitação endógena desencadeada por um segundo momento,
o primeiro seria objeto do recalque, transformando-se a posteriori em um trauma
4
.
A partir do desenvolvimento progressivo da idéia de sexualidade infantil, o autor passa
a entender as cenas de sedução relatadas em análise como reconstruções fantasísticas do
sujeito; deslocamento decisivo para a história da psicanálise, pois coloca em primeiro plano
noções caras à teoria e à clínica, como as de fantasia inconsciente e de realidade psíquica. Em
uma carta a Fliess, de 21 de Setembro de 1897, Freud declara já não mais acreditar na
“neurótica”, referindo-se à explicação etiológica baseada na teoria da sedução (Freud, 1996
[1897a]); descrença que o leva a valorizar a qualidade fictícia do trauma. Observa, assim, que
seus pacientes fantasiam as cenas de sedução, de forma que essas últimas passam a ser
priorizadas como uma realidade psíquica.
[...] a descoberta comprovada de que, no inconsciente, não há
indicações da realidade, de modo que não se consegue distinguir entre
a verdade e a ficção que é catexizada com o afeto. (Assim, permanecia
em aberta a possibilidade de que a fantasia sexual tivesse
invariavelmente os pais como tema) [parênteses do autor] (Freud,
1996 [1897a]: 310).
Se, por um lado, Freud deu um grande salto abandonando a teoria da sedução e adotando a
idéia de realidade psíquica, por outro lado, elementos essenciais dessa primeira são retomados
e reelaborados ao longo de toda a produção psicanalítica. Entre eles estão: (a) a idéia de que o
trauma só adquire tal sentido no a posteriori, ou seja, a partir de diversos tempos, sendo o
ulterior aquele que retroativamente ativa o recalque das cenas anteriores; (b) na teoria da
sedução, mais precisamente na idéia de que é a “lembrança” da cena que desencadeia o
trauma, e não o acontecimento em si, já podemos reconhecer um sentido de realidade
psíquica; (c) a existência de uma realidade por trás da fantasia é um ponto ao qual Freud
retornará muitas vezes ao longo de sua produção, através da noção de “cenas originárias” ou
“fantasias originárias”, entendendo-as como restos mnêmicos de experiências vividas na
história da espécie humana; (d) o complexo de Édipo já estava sendo construído desde a idéia
da fantasia de sedução (Laplanche e Pontalis, 2001: 471).
4
A noção de trauma vai adquirir nova concepção após a segunda tópica.
10
O próprio Freud reconhece que, com as fantasias de sedução, tinha “pela primeira vez
encontrado o complexo de Édipo” (Freud, 1925 apud Laplanche e Pontalis, 2001). As
primeiras menções a esse último são contemporâneas da descoberta da fantasia e do abandono
da teoria da sedução, como podemos perceber pela curta distância cronológica entre a carta a
Fliess citada anteriormente e a de 15 de Outubro de 1897, a partir da qual o autor passa a
utilizar a lenda do Rei Édipo de Sófocles em analogia a uma constelação psíquica de
dimensão universal, no que diz respeito ao ser humano: sentir impulsos carinhosos em relação
à mãe e hostis em relação ao pai (Freud, 1996 [1987b]). Desta data até a primeira aparição do
termo complexo de Édipo em 1910, a forma inicial do conceito já era empregada clinicamente
por Freud, inclusive em sua auto-análise.
Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme pelo
pai, e agora considero isso como um evento universal do início da
infância, mesmo que não tão precoce como nas crianças que se
tornaram histéricas. [...] Mas a lenda grega capta uma compulsão que
toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma.
Cada pessoa foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um
Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização
de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de
recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual
(Freud, 1996 [1897b]: 316).
Mezan (2006) chama a atenção para o fato de que o Édipo, no início de sua elaboração
conceitual, é reconhecido como uma constelação psíquica ocorrida na puberdade, pois
enquanto a idéia de anarquia auto-erótica da sexualidade infantil se fez presente, a questão da
escolha de objeto, imbutida na noção de complexo de Édipo, só poderia ser localizada no
momento do advento da organização genital, ou seja, na puberdade.
Em 1912, no texto Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do Amor,
Freud defende a dualidade pulsional da vida erótica, constituída por uma corrente carinhosa,
decorrente da escolha de objeto infantil e da pulsão de auto-conservação, e pela sensual, que
se faz conhecida somente a partir da puberdade e que toma os mesmos objetos da infância
com a diferença de ser uma pulsão sensual, e não mais somente amorosa. Nesse momento
Freud dá continuidade à sua tese de 1905, em que a sexualidade infantil, sob o domínio do
auto-erotismo, opõe-se à sexualidade da fase adulta, em que há escolha de objeto. No auto-
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erotismo, a pulsão, ainda parcial, está ligada ao funcionamento de um órgão ou à excitação de
uma zona erógena, encontrando satisfação não no objeto, mas no próprio órgão. Nessa fase, as
metas e as zonas sexuais são múltiplas, sem que se instaure o primado de uma delas ou de
uma escolha de objeto.
No entanto, no decorrer de seu trabalho, o autor faz um movimento de aproximação
entre a sexualidade infantil e a pós-pubertária, chegando a admitir a existência de uma escolha
de objeto ainda na infância. Essa mudança vai se realizando a partir da elaboração dos
conceitos de identificação e de narcisismo que, segundo Mezan (2006), contribuiu para que o
Édipo fosse pensado em relação aos desejos infantis e ganhasse o lugar de destaque na teoria
psicanalítica. A constituição do ego e os aspectos edipianos vão de tal forma se entrelaçando,
que o autor realiza uma análise da elaboração do Édipo em Freud tendo como eixo de
referência a construção do conceito de identificação.
Com o surgimento dos conceitos de narcisismo e identificação, o
Édipo passa para um plano de maior destaque, pois a escolha
narcisista de objeto, pelas próprias condições da constelação
narcisista, reflete-se sobre o ego, enquanto a identificação, que
inicialmente é identificação com os pais, introduz a possibilidade de
traçar a gênese do ego, na qual paulatinamente os fatores
intersubjetivos e edipianos vão assumindo o papel de molas
fundamentais. É no terreno do ego que o complexo de Édipo assumirá
sua significação completa, e por esta razão, estes passos iniciais da
vinculação dos dois temas revestem-se de importância particular
(Mezan, 2006: 194).
Como veremos no segundo capítulo, Lacan cunhará o termo sexuação a fim de distanciar a
questão da sexualização do registro do ego, de forma a privilegiar os paradoxos desta, e não
os seus aspectos normativos.
Na análise do distúrbio de Schreber, escrita em 1911, a partir de seu livro Memórias de
um Doente dos Nervos,
Freud se refere pela primeira vez ao aspecto negativo do Édipo,
colocando-o no cerne da questão da homossexualidade. No início de seu quadro clínico,
Schreber faz um delírio paranóico e de caráter sexual, em que o seu psiquiatra aparece como
figura persecutória. Mais tarde, o delírio passa a ser de grandeza religiosa, sendo que a
imagem do perseguidor é deslocada do médico para Deus. A partir dessa substituição, o ego
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se reconcilia com a fantasia homossexual, tendo em vista que, a partir de sua tarefa grandiosa,
originaria uma nova raça humana, que estaria “de acordo com a Ordem das Coisas”.
A parte mais essencial de sua missão redentora é ela ter de ser
procedida por sua transformação em mulher. Não se deve supor que
ele deseje ser transformado em mulher; trata-se antes de um ‘dever’
baseado na Ordem das Coisas, ao qual não há possibilidade de fugir,
por mais que, pessoalmente, preferisse permanecer em sua própria
honorável e masculina posição na vida [grifos do autor] (Freud, 1996
[1911]: 27).
A partir desse quadro, Freud coloca que tanto o psiquiatra quanto Deus apareciam nos delírios
de Schreber como substitutos de seu pai, tese que o psicanalista defende a partir de uma série
de associações entre os elementos representativos desse último e o Deus do delírio. Mezan
(2006) chama a atenção para uma nota de rodapé escrita por Freud, ainda nesse texto, em que
este se referia à “fantasia feminina” de Shreber como uma das formas típicas assumidas pelo
complexo nuclear infantil (Freud, 1996 [1911], nota 5, p. 63/34). Apesar de ser apenas
menção, a nota demonstra a valorização por parte de Freud da atitude feminina do paciente
frente ao pai, ou seja, o Édipo negativo, como mola propulsora do distúrbio.
Assim, no caso de Schreber, mais uma vez encontramo-nos no terreno
familiar do complexo paterno. A luta do paciente com Flechsig
revelou-se a ele como um conflito com Deus, e temos portanto de
explicá-la como um conflito infantil com o pai que amava. [...] No
estágio final do delírio de Schreber, vitória magnífica foi alcançada
pelo impulso sexual infantil, pois a voluptuosidade tornou-se temente
a Deus e o próprio Deus (o pai) nunca se cansava de exigi-la dele
[parênteses do autor] (Freud, 1996 [1911]: 63/64).
Esse trecho da interpretação de Freud demonstra que o Édipo invertido já é localizado na
infância do sujeito, de forma que a homossexualidade adulta passa a ser entendida como
conseqüência de uma fixação nessa fase.
O caso Schreber se tornou referência de autores como Birman (1998) e Arán (2006) na
discussão dos aspectos normativos do complexo de Édipo, tendo em vista que Freud explica o
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desenvolvimento da paranóia como defesa contra o que seria uma posição fantasmática
homossexual. O quadro patológico é colocado como um dos destinos possíveis para a
feminilidade, pois funcionaria como um mecanismo para fazer fracassar a sua assunção,
impossibilitando também a constituição da alteridade. Apesar de, mais adiante, Freud
generalizar a vivência do Édipo invertido a todas as crianças, as qualificações “invertido” e
“negativo” subentendem uma formulação evolucionista do sexual, em que se enfatiza a
possibilidade do recalque ou da superação da homossexualidade.
Se em Schreber o destino da feminilidade é a paranóia, a análise de Freud em relação a
Da Vinci (Freud, 1996 [1910a]) se coloca em outros termos. A ligação do artista com a figura
materna possui um aspecto positivo a partir de um “tratamento” pelo recurso da sublimação.
Ou seja, em 1910, reconheceu-se um outro destino para a feminilidade, qual seja, a
sublimação. A importância dessa comparação é que, se por um lado, há uma concepção que
coloca a feminilidade como um aspecto negativo e patogênico para o processo de
subjetivação, por outro lado, há outra concepção avessa, em que a feminilidade erotizada
possibilita o ato criativo. De certa forma o movimento aqui descrito aparece como uma
ambigüidade do texto freudiano em relação à feminilidade.
A questão sobre a escolha de objeto nos homossexuais, em pauta desde a análise sobre
Leonardo Da Vinci, leva Freud a propor uma etapa narcísica da evolução sexual,
intermediária entre o auto-erotismo e o amor de objeto heterossexual, na qual o progenitor de
mesmo sexo é investido libidinalmente.
Na série das escolhas de objeto, assim, a homossexual é a primeira, e,
dadas as condições de emergência da sexualidade infantil, o
progenitor do mesmo sexo é o primeiro a ser investido com a libido
homossexual (Mezan, 2006: 196).
Apesar de considerar importante a elaboração do narcisismo para a teorização da neurose e da
psicose, Arán (2008b) revela a conseqüência dessa teoria para uma concepção excludente da
homossexualidade. Enquanto a libido objetal é colocada em termos estritamente
heterossexuais, a homossexualidade fica associada a uma fixação narcísica, o que confere a
ela um estatuto patológico de impossibilidade de reconhecimento da diferença.
Em 1914, no artigo Sobre o Narcisismo: uma introdução, o autor insere o conceito já
trabalhado clinicamente no conjunto da teoria psicanalítica, inaugurando uma nova
formulação da dualidade pulsional. Se anteriormente as pulsões haviam sido divididas entre as
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sexuais e as de autoconservação, com a introdução do conceito de narcisismo, é a própria
idéia de pulsão sexual que é dividida entre duas escolhas de objeto e dois modos de satisfação
da libido:
Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais –
ele próprio e a mulher que cuida dele – e ao fazê-lo estamos
postulando a existência de um narcisismo primário em todos, o qual,
em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua
escolha objetal (Freud, 1996[1914]: 95).
Há, assim, a escolha objetal por apoio, resultante da transformação da necessidade orgânica
em função sexual do desejo, e a escolha narcísica, em que a pulsão se volta para o eu, para a
própria imagem do sujeito. Tal divisão é a base em que se apóia outra distinção, a libido
objetal e a libido do ego, além de uma expansiva relação entre elas:
[...] [O] ponto mais importante desta teoria do narcisismo não é tanto a
divisão que ela implica, mas a ligação indissolúvel que estabelece
entre libido objetal e libido do eu (André, 1998:109).
A partir da análise realizada sobre os escritos de Schreber, Freud compreende os
investimentos libidinais segundo a forma como operam entre o mundo externo e o próprio ego
do sujeito. No caso de uma psicose, ou neurose narcísica, por exemplo, a libido afastada dos
objetos externos é dirigida para o ego, enquanto em uma pessoa apaixonada é comum o
procedimento inverso, desinvestimento do ego em favor de uma catexia objetal. O autor
anuncia, assim, uma espécie de antítese entre a libido do ego e a objetal: “Quanto mais uma é
empregada, mais a outra se esvazia” (Freud, 1999 [1914]: 83).
Em 1917, a partir do esclarecimento da dinâmica do processo melancólico, em que
uma catexia objetal é substituída por uma identificação, a interação entre libido objetal e
libido do eu se expande ainda mais, de modo que a idéia de narcisismo aparece estreitamente
relacionada com a de identificação. Designando a tomada do ego como um objeto de amor, o
narcisismo se dá em uma etapa contemporânea à formação do ego, que, por sua vez, em 1917,
é relacionada com o conceito de identificação, de onde se conclui que “o narcisismo nada
mais é do que uma identificação narcísica com o objeto” (Laplanche e Pontalis, 2001: 288).
15
Mostramos em outro ponto que a identificação é uma etapa preliminar
da escolha objetal, que é a primeira forma – e uma forma expressa de
maneira ambivalente – pela qual o ego escolhe um objeto. O ego
deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral
ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja
fazer isso devorando-o (Freud, 1996 [1917]: 255).
Em outras palavras, a catexia objetal é realizada sobre uma base narcisista, de modo que o
desinvestimento do objeto faz com que a libido livre se dirija ao ego, reativando o narcisismo.
A identificação narcísica é um substituto da catexia objetal, o que se torna possível pela
regressão dessa última à fase oral da libido.
Freud conclui que em última instância a libido do eu envolve a libido
de objeto, de tal modo que o sujeito só pode visar seu objeto sexual
através de sua própria imagem (André,1998: 109).
A evolução dos conceitos de narcisismo e de identificação possibilita uma descrição dos
efeitos do complexo de Édipo em termos de substituição dos laços com os progenitores por
identificações, operações que vão adquirindo em Freud um valor central na constituição do
sujeito.
Dando continuidade à análise de Mezan (2006), o texto do caso clínico do “Homem
Dos Lobos” se torna essencial para visualizarmos esse movimento teórico em que se formula
a substituição dos laços parentais por identificações. Freud valoriza na análise do caso o fato
de que, aos três anos de idade o menino sofreu uma sedução por parte da irmã (Freud, 1996
[1918]). Apesar de ter recusado a irmã como objeto, reteve dessa experiência a atitude
passiva. Somado a isso, um outro episódio ganha destaque no desenvolvimento do menino:
em uma tentativa de seduzir a governanta, essa lhe repreende com uma ameaça de castração, o
que provoca no desenvolvimento libidinal da criança um abandono da genitalidade na qual já
estava inserida, e um retorno à fase sádico-anal. A passagem de volta a uma fase mais
primitiva da organização sexual fez com que o menino investisse libidinalmente em sua
“primeira e mais primitiva escolha de objeto”: no pai (Freud, 1996 [1918]: 27).
O caso clínico é esquematizado pelo psicanalista da seguinte forma: a partir da
sedução da irmã, a libido passiva do menino se tornou característica, deslocando-se da
governanta até seu pai, fazendo preponderar o prazer masoquista. A ameaça de castração
16
realizada pela governanta impediu que a tendência passiva do “Homem dos Lobos” frente ao
pai constituísse uma organização genital marcada pela feminilidade e pela natureza
homossexual. Nesse caso, o Édipo invertido foi reprimido pela força da libido narcísica, já
que a condição para obter a satisfação sexual do pai seria a castração, o que seria uma ferida
narcísica.
A ambigüidade do “Homem dos Lobos” em relação a seu pai é bastante ilustrada no
caso clínico escrito por Freud: por um lado, o vínculo afetivo, por outro, a hostilidade e a
rivalidade. Mesmo não priorizando a ambigüidade do vínculo materno, a análise do Édipo do
“Homem dos Lobos” torna necessário seu formato completo; sobre um mesmo objeto recaem
tanto os impulsos amorosos quanto os hostis.
1.2 O esboço de uma dissimetria entre os sexos
A forma completa do complexo de Édipo traz à tona a questão da ambigüidade da
criança frente aos progenitores, visto que ambos são objetos tanto de amor quanto de
rivalidade, o que acaba por complexificar a compreensão dos mecanismos identificatórios
pelos quais a criança passa. É justamente em torno do conceito de identificação, ainda
incipiente na teoria freudiana, que Mezan (2006) trabalhará a questão da diferença sexual
compreendida no artigo sobre as fantasias sádicas. Se até aqui os elementos do Édipo foram
retirados da sexualidade masculina, impasses sobre o desenvolvimento sexual da menina
começam a se impor.
O comentador divide a evolução do pensamento freudiano acerca do complexo de
Édipo em quatro fases, distinguindo o início da terceira justamente com a inauguração das
questões sobre a situação da menina no triângulo edipiano, destacadas em dois textos: Uma
Criança é Espancada
(1996 [1919]) e A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa
Mulher
(1996 [1920]). Mais uma vez, os temas dos artigos são retirados da clínica.
O primeiro texto é iniciado com a constatação de Freud de que é comum ouvir de seus
pacientes o relato de que, por volta dos cinco anos de idade, eram tomados por uma fantasia
em que assistiam a uma criança sendo espancada. A comunicação dessa fantasia não era
possível sem um longo processo analítico, em que resistências deveriam ser ultrapassadas,
inclusive a vergonha em relatá-la. Esse aspecto de resistência que necessariamente
acompanhava a declaração da fantasia fez com que o psicanalista a entendesse como um
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substituto para o prazer que fora encoberto pela amnésia infantil, ou seja, um prazer associado
ao desenvolvimento libidinal do sujeito no período entre dois e cinco anos de idade. A
fantasia relembrada foi tratada por Freud como um relato indicativo da existência de outras
fantasias reprimidas, o que o leva a iniciar uma recomposição da mesma em etapas.
O trabalho realizado coloca em jogo muitas questões importantes à psicanálise, mas a
descoberta de Freud que nos cabe nesse momento se refere ao fato de que o sexo do sujeito
influencia na sua constituição fantasmática. Nesse sentido, o texto abarca a questão da
diferença sexual.
O autor inicia a reconstrução da fantasia a partir de suas pacientes do sexo feminino e a
divide em três etapas. A primeira é localizada na infância precoce do sujeito e aparece em
análise como “uma criança é espancada”. Em princípio a paciente identifica o autor da
agressão apenas como sendo um adulto que, com o trabalho analítico, é reconhecido
posteriormente como o seu próprio pai, transformando o relato em algo do tipo “o meu pai
está batendo na criança”. Outra informação também se acrescenta em relação à criança que
sofre a agressão: trata-se de uma criança odiada pela autora da fantasia. Nesse momento, não
pode ser inferida nenhuma relação entre o sexo da criança que apanha com o sexo feminino
da paciente, o que quer dizer que o primeiro variou sem grandes conseqüências.
Freud se pergunta se a fantasia aqui pode ser considerada sádica, embora a autora não
apareça na cena praticando a agressão. Por outro lado, não parece ter dúvidas quanto à
natureza sexual presente já nessa etapa. Tal observação o leva a associar a fantasia de
espancamento a uma escolha de objeto incestuosa, ou seja, ligada ao complexo parental, ao
Édipo. O autor interpreta o conteúdo e significado da fantasia nessa fase como “o meu pai
bate na criança que eu odeio. O meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim”. A afeição
edipiana da menina ao próprio pai é gratificada pela fantasia de espancamento.
A fantasia obviamente gratifica o ciúme da criança e depende do lado
erótico da sua vida: mas é, também, poderosamente reforçada pelos
interesses egoístas da criança. Resta, portanto, a dúvida quanto a saber
se a fantasia pode ser descrita como puramente ‘sexual’, ou se
podemos arriscar-nos a chamá-la de ‘sádica’. Como é sabido, todos os
sinais sobre os quais nos acostumamos a basear as nossas distinções,
tendem a perder a clareza à medida em que nos aproximamos da
fonte. Assim, talvez possamos dizer, em termos que recordam a
profecia feita pelas Três Feiticeiras a Banquo: ‘Não claramente
18
sexual, nem sádica, em si, mas ainda assim a natureza da qual ambos
os impulsos surgirão depois’ (Freud, 1996 [1919]: 202/203).
Segundo Mezan (2006), esse trecho do texto freudiano indica que a menina, na época da
primeira fantasia, encontra-se ainda sob o domínio do narcisismo, visto que as pulsões de
autoconservação se encontram com as sexuais. Por outro lado, o caráter sádico dessa etapa
provém da fase sádico-anal do desenvolvimento, que também já se faz presente, retratada na
realização de uma escolha de objeto e nas manifestações de agressividade.
Na segunda etapa da reconstituição o autor da agressão ainda é o pai da paciente, mas
a criança em quem ele bate já não é mais a mesma. Aqui, a criança que sofre a agressão é a
própria autora da fantasia, o que leva Freud a apontar para o caráter masoquista dessa fase. A
fantasia “estou sendo espancada pelo meu pai” é tida pelo psicanalista como a mais
significativa entre as outras duas, não podendo se tornar consciente, sendo considerada,
portanto, uma construção da paciente em análise. A transformação do sadismo, presente na
primeira etapa, em masoquismo, expresso aqui, é explicada por Freud da seguinte forma: há
um sentimento de culpa por trás de qualquer conversão do sadismo em masoquismo. A partir
desta tese sobre o sentimento de culpa, o autor coloca em questão o mecanismo da repressão e
os seus motivos.
“O meu pai me ama”, fantasia implícita na primeira fase, expressa a ligação afetiva e
também genital da menina ao pai, situada em uma época precoce da infância. Trata-se, então,
de um amor incestuoso da criança, cujo destino, pontua Freud nessa época, será o seu
fracasso. O autor afirma não saber qual motivo específico leva à repressão da ligação
incestuosa, mas diz que é inevitável, por fatores externos e internos. Inclui entre tais fatores a
repetição da história da humanidade no plano do desenvolvimento individual.
O mais provável é que eles (os casos de amor incestuosos) passem,
porque o seu período acabou, porque as crianças ingressam numa
nova fase de desenvolvimento, na qual são compelidas a recapitular, a
partir da história da humanidade, a repressão de uma escolha objetal
incestuosa, tal como, numa etapa anterior, foram obrigadas a efetuar
uma escolha objetal dessa mesma natureza [parênteses nossos] (Freud,
1996 [1919]: 204).
19
No entanto, tais desejos da menina em relação ao pai permanecem no inconsciente, o que
produz o sentimento de culpa que inverte a fantasia “meu pai só ama a mim, pois bate em
outra criança” para “meu pai não me ama, pois me bate”. A repressão que incide sobre o amor
incestuoso transforma sua representação psíquica em um significado inconsciente e, em
paralelo, ativa uma regressão da libido para uma organização sexual anterior à fase genital em
que se encontrava, ou seja, para a sádico-anal. Isso significa dizer que a fantasia de
espancamento do próprio sujeito está a serviço do sentimento de culpa e também do amor
sexual, sendo fonte de excitação sexual para o sujeito.
A terceira etapa da reconstituição de Freud corresponde à primeira versão da fantasia
de espancamento trazida à análise. Aqui, o autor da agressão é variável, podendo até ser
indeterminado, mas é um substituto do pai. Quem cria a fantasia aparece como espectador da
cena, em que meninos estão sendo espancados. A fantasia pode ainda estar disfarçada por
outras elaborações, como por exemplo a substituição da agressão física por humilhações. O
caráter desta etapa é sádico, embora a sua satisfação seja masoquista, tendo em vista que o
masoquismo evidente na segunda etapa permanece ativo no inconsciente. Há, portanto, uma
excitação sexual característica, que proporciona uma satisfação masturbartória ao sujeito.
A fantasia de espancamento dos pacientes do sexo masculino e a sua reconstrução em
análise são, em alguns aspectos, distintas às das mulheres. Freud acaba trabalhando a situação
fantasmática dos meninos em referência à elaboração realizada do caso feminino, o que acaba
por impossibilitar sua sistematização clara. Esta aparente “confusão” com a correspondência
das fases masculinas e femininas se deve a algo que vai ficando cada vez mais evidente ao
longo do texto: não há um paralelo completo entre a fantasia de espancamento nas meninas e
nos meninos.
No caso dos pacientes do sexo masculino, pode-se notar a existência de uma fantasia
relembrada e de uma etapa preliminar a essa. O autor relata não ter notícias sobre um estágio
sádico da fantasia de espancamento no menino que fizesse paralelo com a etapa inicial da
fantasia feminina. O esquema masculino é colocado da seguinte maneira: a primeira fantasia a
ser reconhecida é aquela trazida pelo paciente à análise, qual seja, a fantasia de ser espancado
pela própria mãe. No entanto, Freud declara a existência de uma outra fantasia, anterior a
relembrada, em que o menino está sendo agredido por seu pai. O conteúdo fantasmático que
primeiro chega à análise é, na verdade, a segunda etapa da fantasia.
A origem da fantasia masculina é a cena “sou espancado pelo meu pai” e o seu
significado é “sou amado pelo meu pai”. Significado e conteúdo se relacionam da seguinte
forma: ser espancado equivale a ser amado, segundo a conversão pela via regressiva do
20
sentido genital para o sádico-anal. Trata-se de uma fantasia inconsciente, cujo acesso à
consciência se dá através de outro formato, qual seja, “sou espancado pela minha mãe”.
Embora esta última dê continuidade ao caráter masoquista e ao significado genital da primeira
fantasia, apresenta uma inovação, pois, havendo uma diferença sexual entre agressor e vítima,
o menino aparece em uma atitude passiva sem, no entanto, realizar uma escolha de objeto
homossexual. “Estou sendo espancado pelo meu pai”, ao significar “sou amado pelo meu
pai”, sofre regressão e transforma-se em “estou sendo espancado pela minha mãe”. Freud
conclui que a fantasia de espancamento do menino é passiva desde a sua origem, sendo
ativada pela relação edipiana com o pai.
A única etapa masoquista da fantasia feminina, por causa da intensidade da repressão
do seu conteúdo incestuoso e genital - “sou espancada pelo meu pai equivale a dizer que sou
amada por ele” -, permanece invariavelmente inconsciente, de forma que Freud tem acesso a
ela pelas construções analíticas. O mesmo não é verdadeiro em relação à fantasia masoquista
masculina de ser espancado pela mãe, o que Freud explica da seguinte forma: no caso da
menina, o sentimento de culpa pelo amor incestuoso seria satisfeito por sua repressão e pela
regressão da libido à organização sádico-anal; já no caso dos meninos, haveria apenas a
necessidade da regressão. Não havendo repressão, a fantasia pode se tornar consciente. Por
outro lado, a situação fantasmática em que o sujeito do sexo masculino é espancado pelo pai
também permanece inconsciente. O desejo do menino pelo pai só aparece na fantasia
modulado pela culpa e pelo masoquismo, fatores ocasionados pela ação, aí sim repressiva, da
libido narcísica.
A fantasia de espancamento no menino é, portanto, passiva desde o
começo e deriva de uma atitude feminina em relação ao pai.
Corresponde ao complexo de Édipo tal como a fantasia feminina (a da
menina); apenas a relação paralela que esperávamos encontrar entre as
duas, deve ser abandonada em favor de um caráter comum de outra
natureza. Em ambos os casos, a fantasia de espancamento tem sua
origem numa relação incestuosa com o pai
[grifo e parênteses do
autor] (Freud 1996 [1919]: 213).
Como vimos, tanto na etapa original das mulheres quanto na dos homens, o autor da agressão
é invariavelmente o pai do paciente, o que leva Freud à conclusão de que a fantasia tem como
ponto de partida algo que não varia conforme o sexo de quem a produz: a ligação incestuosa
21
com o pai. Este ponto em comum entre as fantasias masculina e feminina leva Freud a
valorizar uma outra diferença entre elas, o fato de que se uma menina toma seu pai como
objeto amoroso, trata-se de uma situação edipiana positiva; porém, o vínculo amoroso do
menino com seu pai corresponde a uma atitude edipiana invertida.
Ajudará a tornar as coisas mais claras se, nesse ponto, enumero as
demais similaridades e diferenças entre as fantasias de espancamento
entre ambos os sexos. No caso da menina, a fantasia masoquista
inconsciente parte da atitude edipiana normal; no caso do menino,
parte da atitude invertida, na qual o pai é tomado como objeto de amor
(Freud, 1996 [1919]: 213).
A noção de Édipo invertido é retomada por críticos da psicanálise como um dos aspectos
normativos da concepção do complexo. Isto porque funda a relação edipiana da criança com o
progenitor de sexo oposto como o protótipo de toda relação, o modelo. Já a relação do infante
com o progenitor de mesmo sexo fica atrelada à noção de inversão ou de negatividade, o que
confere a ela e aos seus possíveis efeitos para o processo subjetivo e para a identidade sexual,
um lugar hierárquico inferior em relação à ligação edipiana positiva. Sob o ponto de vista de
Butler (2003), a teoria do complexo de Édipo demonstraria o compromisso ideológico da
psicanálise com a diferença sexual.
Mezan (2006) defende que a inversão do objeto incestuoso, no caso do menino, deve
ser explicada pelo papel desempenhado pela identificação na construção da fantasia. Embora
o conceito de identificação ainda estivesse em elaboração no ano de 1919, o autor o localiza
justamente naquilo que distingue as fantasias de meninos e meninas.
A discussão das fantasias sádicas, em 1919, desemboca na
transposição do momento edipiano para a primeira infância, e a
identificação desempenha papel crucial na gênese da fantasia em cada
um dos sexos: presente no menino e ausente na menina, é em torno
dela que se pode construir o caminho da sexualidade infantil (Mezan,
2006: 206).
22
A partir da análise de Schreber, o autor sinaliza que a escolha do pai como objeto de desejo
pelo menino só se faz possível a partir de uma identificação primitiva, mecanismo que não
estaria presente no caso das fantasias femininas.
Por sua vez, a fantasia das meninas parece ter uma complicação a mais na terceira
etapa, quando elas mantêm o sexo de quem bate, mas mudam o sexo de quem é espancado:
invariavelmente são crianças do sexo masculino. Partindo da idéia de que as crianças
espancadas são substitutas daquela que produz a fantasia, então, as meninas “mudam de sexo”
entre a segunda e a terceira fase. Ao se afastarem da afeição pelo pai e da organização genital,
abandonam o papel feminino, adotando o que Freud denominou de complexo de
masculinidade. Em fantasia, a menina se transforma em homem, porém, sem se tornar ativa à
maneira masculina. O destino desse complexo de masculinidade no desenvolvimento da
sexualidade feminina passa a oferecer um enigma clínico e teórico à psicanálise.
De fato, a partir de “Uma Criança é Espancada”, todo o problema é
saber como a menina pode se orientar corretamente na sua vida sexual
se sua fantasia, cicatriz do Édipo, a conduz para uma posição
masculina, ou seja, lhe aponta a via da homossexualidade. Pois Freud
é claro nesse ponto. No capítulo VI de “Uma Criança é Espancada”,
ele escreve que é numa troca de sexo que resulta a fantasia feminina,
troca que se opõe radicalmente à feminilidade que se julgava que as
meninas faziam reconhecer pelo pai no Édipo [grifo do autor] (André,
1998: 160).
O embaraço freudiano acerca do complexo de masculinidade evidencia a suposição de que
existe uma verdadeira feminilidade a ser atingida pela menina. Tal expectativa dirige o
investimento teórico de Freud para a questão da diferença sexual, que passa a ter uma
importância crucial para o desenvolvimento da neurose. A hipótese de que o Édipo da menina
fosse análogo ao do menino, invertendo-se apenas o sexo dos progenitores, vai-se
falsificando, e o formato completo do complexo de Édipo vai mostrando os seus impasses:
por que a fantasia da menina resulta em uma troca de sexo e qual é a dimensão dessa troca
para a feminilização da mulher?
Freud sugere que as sua observações clínicas colocadas no texto Uma Criança é
Espancada
poderiam ampliar a compreensão das perversões sexuais, tal como o subtítulo do
artigo faz entender – “uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais”. Em
23
1919, o destino normal do complexo de Édipo era tido como um desaparecimento sem
resquícios, tese que confere um caráter de relativa patologia à fantasia de espancamento. A
ligação edipiana mal resolvida é substituída por essa, que por consistir em uma “cicatriz” da
primeira, é inserida no âmbito da anormalidade. Freud traz à tona a questão que se torna
fundamental a partir daí sobre o papel do complexo de Édipo e da sexualidade infantil para o
desenvolvimento tanto das neuroses quanto das perversões.
Se a fantasia sádica é entendida como um resquício do complexo parental, este já
aparece aqui deslocado para a infância precoce do sujeito, o que o confere um valor
estruturante para a constituição psíquica do sujeito, seja no plano pulsional ou no plano do
ego. Estando o ego intrinsecamente relacionado ao conceito de identificação, torna-se
imprescindível seu desenvolvimento, que, no que se refere ao complexo de Édipo, expande a
relação da criança com seus pais para além da escolha de objeto, e possibilita ainda o
deslocamento do complexo da puberdade para a infância. Adquirindo o valor de elemento
infantil, o Édipo passa ser considerado eixo fundamental da teoria psicanalítica.
Para Tort (2005 apud Arán, 2008b), o complexo de Édipo é uma noção interessante
enquanto pensado como um momento de passagem a ser ultrapassado e destruído pelo sujeito;
formulação feita pelo próprio Freud em certos contextos teóricos. Isso porque seu efeito
normativo teria menor força do que quando adquire uma função estrutural que permite a
entrada do sujeito na cultura e na civilização, ou melhor, do que quando adquire uma
conotação de condição para a subjetivação. Como veremos no segundo capítulo, essa
concepção estrutural do complexo aparece mais evidente a partir do pensamento de Lacan.
No ano de 1920, Freud escreve o caso clínico da jovem homossexual, publicado como
A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher.
Esse artigo é um marco no
que se refere à questão da sexualidade feminina, pois indica a existência e a importância de
uma relação amorosa anterior ao Édipo constituída pela ligação primária da menina com sua
mãe. Como de costume, Freud inicia a construção de uma tese generalizável a partir do que a
dita “patologia” lhe indica. Apesar do diagnóstico da jovem paciente de Freud ser bastante
discutido no meio psicanalítico, nota-se que o conhecimento sobre o pré-édipo,
posteriormente expandido para a totalidade da sexualidade feminina, é pinçado a partir de um
caso clínico contemplado pelo psicanalista segundo a questão homossexual, ou o Édipo
invertido.
A jovem em questão é levada a Freud pelo pai, cuja queixa residia nas tendências
homossexuais da filha de dezoito anos, que se encontrava enamorada por uma dama dez anos
mais velha, de duvidosa reputação. Ocupando-se em bajular a dama, a jovem realizava
24
atitudes contraditórias em relação aos pais, sendo ora indiferente em tornar público seu
encantamento, ora escondendo suas intenções em encontrar o objeto de amor. Por sua vez,
seus pais reagem a tal enamoramento de formas bastante distintas: o pai se mostrando
bastante irritado e desagradado, enquanto sua mãe se mostra tolerante, chegando mesmo a ser
confidente da filha.
A procura pelo tratamento foi desencadeada por uma tentativa de suicídio por parte da
jovem, suscitada por um encontro entre seu pai e ela, quando estava na companhia da dama.
Essa última, ao saber de quem se tratava o senhor que passara por elas com olhar furioso, fez
uma tentativa de rompimento com a paciente de Freud, ordenando a esta que não mais a
procurasse. Logo em seguida, a jovem se jogou em direção a um muro, saltando para a linha
ferroviária. Tal atitude influencia tanto um abrandamento da oposição dos pais em relação ao
enamoramento da filha, como também uma maior simpatia por parte da dama, que
anteriormente não permitia grandes aproximações.
Com o material fornecido pela análise, o psicanalista identifica que, na infância, a
paciente passou pelo complexo de Édipo normal, tomando o pai como objeto de amor.
Posteriormente, substituiu o pai pelo irmão mais velho. Na puberdade, apresentara uma feição
especial por um menino com idade inferior a três anos, o que proporcionou o estabelecimento
de uma amizade entre os pais deste e a jovem. Freud explica o apego a essa criança como o
representante de um desejo edipiano normal de ser mãe, o que para o psicanalista se esvai a
partir da nova gravidez de sua mãe. O interesse da jovem se dirige, então, para mulheres
maduras e de aparência jovem. Inicialmente, era comum que fossem mães, condição que não
se satisfez no caso da dama. De qualquer forma, Freud inicia sua explicação a partir de uma
revelação feita pela própria paciente, a de que a mulher amada era uma substituta de sua
própria mãe. Ao mesmo tempo, indica ainda a paciente, a figura esbelta da dama fazia com
que ela se lembrasse do seu irmão mais velho. Trata-se, então, diz Freud, de uma escolha
amorosa baseada tanto em um ideal feminino quanto masculino, o que demonstra uma certa
conjugação das tendências homo e heterossexuais.
O analista, a partir dessas indicações, bem como da influência da última gravidez da
mãe para o desenvolvimento libidinal da filha, realiza a seguinte interpretação:
No exato período em que a jovem experimentava a revivescência de
seu complexo de Édipo infantil, na puberdade, sofreu seu grande
desapontamento. Tornou-se profundamente cônscia do seu desejo de
possuir um filho, um filho homem; seu desejo de ter o filho de seu pai
25
e uma imagem dele, na consciência ela não podia conhecer. Que
sucedeu depois? Não foi ela quem teve filho, mas sua rival
inconscientemente odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e
amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens. Passado
esse primeiro grande revés, abjurou de sua feminidade e procurou
outro objetivo para sua libido [grifo do autor] (Freud, 1996 [1920]:
169).
O Édipo vivido na infância sofre uma inversão na puberdade a partir da decepção com o pai,
ocasionando a transformação da menina em homem e a tomada da mãe como objeto de amor.
Como coloca André (1998), a gravidez da mãe e a desilusão frente ao pai são fatores que
transformam não só a identidade sexual e o objeto amoroso da paciente, como também o
modo de amar, que se torna caracteristicamente masculino. Na terceira parte do artigo, Freud
faz suas observações quanto às condições de amor da jovem, quer dizer, ocupa-se daquilo que
parece se repetir em todos os objetos de amor que a paciente tivera até então, e insiste no fato
de que a moça nunca se apaixonara por qualquer mulher homossexual, chegando até mesmo a
negar as investidas de uma amiga de sua idade. Por outro lado, a má reputação da dama
amada aparece para o analista como requisito para a admiração, levando-o a valorizar ainda as
características da singela relação estabelecida entre as duas, tais como a humildade da jovem
frente à amada, não pedindo nada a ela, e, ao mesmo tempo, ficando satisfeita com poucos e
pequenos sinais de apreço, além da completa não-realização de seus desejos mais sensuais.
Freud qualifica tais atitudes amorosas da jovem como o “tipo masculino de amor”.
Retomando o texto de 1910, Um Tipo Especial de Escolha de Objeto Feita pelos Homens,
reconhece nas fantasias amorosas da moça o mesmo plano de resgatar e salvar a mulher-
objeto de amor da má reputação, importando menos ser amada do que o papel do amante.
Mesmo hesitante entre a hipótese de uma homossexualidade congênita ou adquirida, o
autor vai fundo em sua interpretação e, da mesma forma que explicou o motivo para que
alguns homens fizessem essa escolha amorosa por uma mulher “cocotte”, realizou-o para sua
jovem paciente: a corrente homossexual, que a fazia amar como um homem, provinha de uma
fixação infantil na mãe. Possivelmente, diz Freud, os fatores externos que contribuíram para a
intensa fixação materna podem ser localizados nas negligências da mãe, que ainda jovem
parecia pouco disposta a “abandonar seus próprios direitos à atração”, além de tratar a filha de
forma inteiramente distinta dos filhos, sendo apenas estes os merecedores de excessivas
26
indulgências, e ainda na forte inveja do pênis sentida pela moça, quando ainda menina
comparou seu órgão genital com o do irmão.
O pai da paciente aparece em seu relato como uma figura central, fazendo parecer
muitas vezes a Freud que a homossexualidade da moça escondia uma atitude de desafio e
vingança contra ele. Se por um lado a jovem expunha muito em análise a sua relação com o
pai, por outro lado, mostrava-se bastante reservada quanto à sua mãe, o que mais tarde será
tido como prova de que a inclinação pelo pai oculta um amor primordial pela mãe. É essa
linha de raciocínio aberta no texto de 1920 que será cada vez mais desenvolvido por Freud,
até a formalização, em 1925, da chama fase pré-edípica para a caracterização da sexualidade
feminina.
As reflexões a que Freud é conduzido por esse caso comportam uma
modificação fundamental do ponto de vista defendido em “Uma
Criança é Espancada”. E esta modificação vai permitir resolver o
ponto obscuro desse texto, ou seja, a ligação entre a posição edipiana
inicial e a identificação masculina final. O caso da jovem
homossexual mostra que a perversão não é simplesmente derivada do
complexo de Édipo, enquanto fixação paterna, mas que ela se apóia
sobretudo numa fixação amorosa anterior, que Freud descobre aqui –
a fixação primária com a mãe (André, 1998: 160).
Outra via de reflexão inaugurada pelo texto da jovem homossexual diz respeito à distinção e a
independência entre “hermafroditismo físico” e “mental”. Em outras palavras, Freud sublinha
que o exame da vida amorosa do sujeito consta de três conjuntos de características, os
caracteres sexuais físicos, os caracteres sexuais mentais e, ainda, o tipo de escolha de objeto.
A “identidade sexual” dizendo respeito à posição que adota no amor, masculina ou feminina,
e a “escolha de objeto” referindo-se à questão “o sujeito ama um objeto masculino ou
feminino?” (André, 1998: 163).
Para Arán (2006), o caso da jovem homossexual é trabalhado por Freud a partir de um
modelo normativo da psicanálise, já que associa em última instância a “inversão” edipiana, ou
seja, a tomada da mãe como objeto de amor e a do pai como objeto identificatório, à
“perversão”. A autora propõe pensar a radicalidade do relato de caso justamente no que
evidencia da crise do modelo da diferença sexual, ou ainda, da crise da idéia de identidade
fixa, fato que o próprio Freud indicaria ao abandonar a questão da dama ser um homem ou
27
uma mulher para a jovem e substituí-la pela ênfase na possível disposição bissexual dos seres
humanos.
A importância da noção de bissexualidade não está, para a autora, na suposição da
existência de forças pulsionais tanto ativas quanto passivas no processo de subjetivação que,
em última instância, acabam repercutindo na associação das primeiras com a idéia de
masculino e das segundas com a de feminino, mas justamente na problematização constante
que Freud realiza da noção, deixando-a inacabada ao apontar permanentemente para a sua
complexidade.
No caso da jovem homossexual a sugestão de uma bissexualidade universal aos seres
humanos serve à indicação de que as formas de subjetivação não podem ser definidas na
psicanálise de acordo com o objeto amoroso adotado ou de acordo com o “ser homem” ou
“ser mulher”, mas que “a escolha de objeto só pode ser levada em conta a partir da
experiência de identidade e diferença em uma narrativa singular, e não segundo um modelo
fixo, estabelecido a priori” (Arán, 2006: 89). Em outras palavras, o texto freudiano tem seu
valor por evidenciar a crise da expectativa prescrita pelo complexo de Édipo por uma “atitude
normal” ao feminino.
1.3 A teoria das identificações
Mezan (2006) utiliza como referência o texto A Psicogênese de um Caso de
Homossexualismo numa Mulher
(1996 [920]) para identificar o que enumera como a terceira
fase da conceituação do complexo de Édipo, caracterizada pela consolidação da idéia de que o
complexo ocorre na infância, sendo revivido na puberdade. A fase seguinte é inaugurada pela
relação estabelecida entre o Édipo e a castração, ou seja, pela introdução do conceito de fase
fálica, em A Organização Genital Infantil, de 1923. A grande marca dessa evolução de
pensamento é o rompimento com a idéia de que os Édipos masculino e feminino são
simétricos, tese que proporcionava a utilização do esquema masculino como modelo para o
caso feminino, conforme o artifício do mutadis mutandis: a inversão do sexo do progenitor,
repetindo-se a mesma estrutura. Segundo essa teoria que vai sendo ultrapassada, o complexo
se reduzia a um primeiro tempo, de identificação com o progenitor de mesmo sexo e um
segundo tempo, em que ocorre a primeira escolha de objeto, sendo esta baseada na
“modalidade de apoio”, nas pulsões de autoconservação.
28
Desde o princípio, a identificação comporta uma ambigüidade, enfatizada por Freud
em 1921 no texto Psicologia de Grupo e Análise do Ego, o que possibilita a sua manifestação
de duas formas: por um lado, a identificação pode ser expressa como carinho, caso seja
proveniente do Eros, ou como hostilidade, caso seja determinada pela pulsão de morte. Nesse
último caso o desejo de destruição do objeto, com base na incorporação, envolve
necessariamente a conservação do mesmo por ingestão. Assim, declara Freud, a rivalidade do
menino frente ao pai não elimina o afeto, mas, pelo contrário, produz um conflito entre essas
duas faces da identificação.
A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode
tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo
de afastamento de alguém. Comporta-se como um derivado da
primeira fase da organização da libido, da fase oral, em que o objeto
que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo
dessa maneira aniquilado como tal [grifo do autor] (Freud, 1996
[1921]: 115).
A compreensão do quadro clínico da melancolia, descrito em 1917, em Luto e Melancolia, dá
subsídios para o autor construir em 1923, em O Ego e o Id, um sistema explicativo acerca do
modo como os investimentos da criança em relação aos pais são abandonados e substituídos
por identificações que a estruturam psiquicamente.
O Édipo aparece assim como o estruturador do caráter, o que equivale
a dizer que, por meio da identificação – que o origina e que se segue a
ele – impõe ao ego um destino peculiar (Mezan, 2006: 280).
A tese central de Freud em 1917 é a de que a identificação melancólica ocorre em
conseqüência de uma perda objetal, em que a libido que esteve investida no objeto, a partir de
sua perda, é retraída em direção ao ego. Trata-se de um mecanismo em que o objeto perdido é
introjetado no ego, o que, em 1923, aparecerá como um destino possível às escolhas de objeto
edipianas. Em O Ego e o Id, o autor declara que o “caráter do ego é um precipitado de
catexias objetais abandonadas e que ele contém a história dessas escolhas de objeto (Freud,
1996 [1923]: 42). O ego é moldado conforme aquele que foi tomado como modelo pela via da
identificação.
29
Mezan (2006) indica o texto O Ego e o Id como fundamental para a introdução da
fratura que distingue os Édipos, pois aqui Freud trabalhou a diferença sexual segundo a
seguinte elaboração: a identificação presente no Édipo masculino não coincide com o
processo de “retenção de um objeto perdido”, a escolha do pai como modelo identificatório
necessariamente exclui a escolha do pai como objeto de desejo e vice-versa. Isso significa
que, no caso masculino, há um entrecruzamento entre a identificação e o objeto de amor, sem
a possibilidade de que coincidam sobre o mesmo progenitor.
Tal cruzamento será foco de críticas por parte de Butler (2002), pois, a seu ver,
evidencia a matriz heterossexual da teoria psicanalítica, que faz com que a diferença sexual
entre o modelo identificatório e objeto de amor seja um pressuposto teórico.
Já no Édipo feminino a identificação, cujo processo patológico da melancolia é o
protótipo, não só é possível, como costuma ser freqüente. A perda de um objeto de amor pode
promovê-lo a modelo identificatório, tese que poderia supor um destino homossexual aos
casos em que o pai é o objeto de desejo perdido, porque tal perda proporcionaria uma
identificação com o pai e uma conseqüente escolha de objeto segundo o modelo masculino de
identidade.
Juntamente com a demolição do complexo de Édipo, a catexia objetal
da mãe, por parte do menino, deve ser abandonada. O seu lugar pode
ser preenchido por uma de duas coisas: uma identificação com a mãe
ou uma intensificação de sua identificação com o pai. [...] Essas
identificações não são o que esperaríamos
5
, visto que não introduzem
no ego o objeto abandonado, mas este desfecho alternativo também
pode ocorrer, sendo mais fácil observá-lo em meninas do que em
meninos. A análise muito amiúde mostra que uma menininha, após ter
de abandonar o pai como objeto de amor, colocará sua masculinidade
em proeminência e identificar-se-á com seu pai (isto é, com o objeto
que foi perdido), ao invés da mãe [parênteses do autor] (Freud, 1996
[1923b]: 45).
Mezan (2006) lembra que, segundo a tese das equivalências simbólicas de Freud descrita em
1917, no texto As Transformações do Instinto Exemplificadas no Erotismo Anal, o desejo de
5
O autor se refere às identificações tais como ocorrem na melancolia.
30
uma mulher de ser um homem, ou de ter um falo, pode ser deslocado para os desejos
substitutivos de possuir um homem ou de ter um filho, ambos equivalentes a ter o falo. O
autor localiza na relação entre o tipo de processo identificatório e o complexo de Édipo uma
teoria que abarca a questão da diferença sexual, aqui enunciada a partir da constatação de que
o modelo do mecanismo identificatório é distinto em cada um dos Édipos, o masculino e o
feminino.
Se essa conclusão não aparece tão claramente no texto freudiano, ou se Freud não lhe
confere tanto valor é porque, relata Mezan (2006), a introdução da questão sobre a
bissexualidade apaga aquela sobre a diferença sexual. Nesse momento, a bissexualidade se
coloca como uma noção importante frente ao Édipo, primeiramente por causa do seu modelo
completo, em que o amor e a rivalidade recaem sobre ambos os progenitores. Ao mesmo
tempo, Freud se utiliza da idéia de que tendências masculinas e femininas se equilibram
através do privilégio de uma sobre a outra em uma tentativa de explicar o modo como um
Édipo complexo se desenrola em uma identidade sexual definitiva.
As equivalências simbólicas que parecem dirigir os destinos do complexo feminino
são identificadas por Butler (2002) como um modelo prescritivo de comportamentos. Se a
interpretação de Mezan (2006) pode ser levada adiante, então, a diferenciação entre os tipos
de mecanismos identificatórios acabam por prescrever comportamentos de gêneros sob um
discurso baseado na diferença sexual. Tanto é que os destinos traçados para a sexualidade
feminina correspondem aos ideais modernos de feminilidade, o casamento e a maternidade.
1.4 A primazia do falo
O deslocamento do complexo de Édipo para o período da primeira infância exige por
parte de Freud uma reformulação sobre a sexualidade infantil, o que traz duas consequências
interessantes para o desenvolvimento da psicanálise. Primeiramente, assume-se que a
sexualidade infantil não se exime de uma escolha de objeto, que na teoria anterior era
reservada apenas à puberdade. Introduz-se também a idéia de que a criança apresenta desde
cedo interesse pelos órgãos sexuais; observação que levará Freud a formular considerações
importantes sobre o encontro da criança com o outro sexo. A constatação de tal interesse pela
genitalidade, ao contrário do que se possa supor, desencadeia uma releitura freudiana acerca
31
da noção de diferença sexual, dissociando-a da diferença simplesmente anatômica dos sexos,
mas referindo-a primordialmente ao chamado complexo de castração.
Freud inicia o artigo de 1923, A Organização Genital Infantil, situando as teses sobre
as quais discorrerá como um adendo ao trabalho de 1905, Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade.
Rompendo com a sua posição de então, provoca uma aproximação das
sexualidades infantil e adulta a partir de dois argumentos, um deles acrescentado por nota de
rodapé às edições dos Três Ensaios posteriores a 1915; e que trata da constatação de que há
escolha de objeto mesmo na infância.
A escolha de objeto, tal como mostramos ser característica da fase
puberal do desenvolvimento, já foi freqüente ou habitualmente feita
durante os anos de infância: isto é, a totalidade das correntes sexuais
passou a ser dirigida para uma única pessoa em relação à qual elas
buscam alcançar seus objetivos (Freud, 1996 [1905]: 205; [1923a]:
157).
As formulações em torno da escolha objetal assumem um espaço importante no debate
contemporâneo sobre o dispositivo da diferença sexual, pois, para alguns autores, é em
relação à questão da escolha de objeto que a teoria psicanalítica adquire sua faceta mais
normativa, tendo em vista que prescreve uma coerência heterossexual entre identidade sexual
e desejo.
A outra observação que coloca em xeque a dualidade da sexualidade em duas fases,
uma infantil e outra adulta, é a de que as crianças demonstram ter interesses por seus órgãos
genitais e que a atividade destes adquire uma significação dominante para elas. A
possibilidade dessa constatação, não reconhecida anteriormente, abre um novo caminho para a
distinção sexual, pois, logo em seguida, Freud sustenta que
[a]o mesmo tempo, a característica principal dessa “organização
genital infantil” é sua diferença da organização genital final do adulto.
Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, [sic] entra em
consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que
está presente, portanto, não é a primazia dos órgãos genitais, mas uma
primazia do falo [grifos do autor] (Freud, 1996 [1923a]: 158).
32
O desconhecimento sobre os “processos correspondentes na menina” justifica a restrição à
vivência masculina do encontro com o órgão genital feminino. O menino entraria na fase
fálica da seguinte forma: é natural que a criança presuma a existência de um órgão análogo ao
seu em todos os seres, vivos ou não. Ao se deparar com a ausência de pênis da menina,
esforça-se por enquadrá-la em sua preconcepção, mesmo que isso signifique rejeitar a
observação da falta do pênis. Diz, então, que o pênis é pequeno e que ele crescerá. A partir de
uma elaboração que envolve o ego, o menino passa a associar a ameaça de castração que
dirigem a ele e a sua atividade masturbatória à imagem da ausência do pênis da menina,
interpretando que essa criança teve um pênis, mas que, por punição, esse foi retirado. Ele
passa a se defrontar, então, com a possibilidade de sua própria castração.
Na fase fálica, o menino não reconhece o órgão genital de uma menina pela lógica da
diferença de órgãos sexuais. Após elaborar a vivência de uma ameaça de castração, ou ainda a
partir da constatação de que se encontra em um lugar de menor poder frente ao adulto, a visão
do órgão feminino será reconhecido pelo menino como prova da castração. Neste momento, a
criança do sexo masculino interpreta a distinção sexual a partir da polaridade fálico/castrado.
A impossibilidade de conceber o órgão feminino positivamente, em sua diferença, e
não apenas em referência ao falo, faz com que o menino não generalize a castração para o
conjunto total das mulheres. Tem ainda a imagem de que sua mãe seja fálica e possuidora de
pênis, enquanto que as mulheres que merecem seu desprezo perderam o pênis. A lógica da
punição não leva em consideração o caráter sexual da diferença e faz com que o menino
divida os seres humanos em fálicos e castrados de forma que do primeiro podem participar
tanto homens quanto mulheres; o que inaugura na teoria freudiana a desigualdade entre as
antíteses homem/mulher e fálico/castrado.
As mulheres “boas” possuem pênis; sobretudo a mãe não pode ser
concebida sem este atributo essencial da condição humana. As teorias
sexuais infantis acerca da origem dos bebês não têm lugar para o
parto; como vimos, a criança é segundo elas expelida pelo ânus. Daí
que a antítese essencial não seja a do masculino e do feminino, já que
a mulher não é imaginada segundo um esquema corporal que lhe seja
próprio; a oposição só pode ser colocada em termos do fálico e do
castrado (Mezan, 2006: 283).
33
Como vemos, Freud descreve uma impossibilidade de que o menino generalize o sexo
“castrado” para o grupo das mulheres como um todo. Somente mais tarde, quando percebe
que apenas as mulheres podem ter bebês é que sua mãe “perde o pênis”, gerando na criança
idéias que subentendem uma troca entre pênis e bebê. A noção de castração, embora não seja
nova em si, ganha a partir de então uma centralidade teórica importantíssima no que se refere
à vida sexual do sujeito, ressaltada em sua articulação com a fase fálica e o complexo
edipiano.
Para alguns autores (Birman, 1999; Arán, 2006), o complexo de castração sucumbe ao
paradigma masculino da sexualidade, tendo em vista que a referência fálica para os dois sexos
prescreve a crença em uma superioridade por parte daquele que possui o pênis, e o confunde
com o falo, e uma inferioridade por parte das mulheres, fonte inesgotável da inveja do pênis.
“Ter ou não ter o falo e os seus atributos, seria essa a questão que dividiria o mundo dos
sexos e dos gêneros” [grifos do autor] (Birman, 1999: 11). A polaridade fálico/castrado seria
uma nova roupagem para o modelo do dimorfismo sexual, tal como delimitado por Laqueur
(2001).
Enquanto Freud insere a polaridade fálico/castrado no âmbito das explicações sexuais
infantis, para Arán (2006), a ênfase freudiana na primazia do falo revela uma teoria em que
não se reconhece o feminino em sua diferença, já que o mesmo ganha sua inteligibilidade
sempre em uma relação de dependência ao que se entende como sexo masculino. As
conseqüências dessa teoria repercutem nas determinações negativas da sexualidade feminina,
que não é pensada senão com a condição de concernir à outra posição sexuada.
A teorização da fase fálica e do complexo de castração provoca um afastamento da
distinção sexual da diferença anatômica entre homens e mulheres, o que gera uma
reformulação das teses sobre a sexualidade feminina. Em A Dissolução do Complexo de
Édipo,
de 1924, Freud se deterá com especial ênfase sobre os cursos distintos que seguem os
meninos e as meninas quanto ao complexo de Édipo.
O texto se inicia com o autor se questionando sobre quais fatores contribuem para a
dissolução do Édipo, nesse sentido o artigo dá continuidade ao capítulo III do O Ego e o Id
(1996 [1923b]). Nesses dois momentos, Freud concebe o destino do complexo edipiano
através da idéia de dissolução, uma destruição completa que não necessita do mecanismo de
repressão, pois, tendo em vista que este é sempre ineficaz, a transferência dos conteúdos
edipianos para o domínio do inconsciente subentende a possibilidade de seu retorno. Além
disso, uma impossibilidade teórica se coloca. No texto de 1923, o autor defende que as
catexias de objeto do complexo são abandonadas e substituídas por identificações. Através
34
destas, se forma o núcleo do superego, responsável a partir de então por assumir a severidade
anteriormente atribuída ao pai e por garantir a proibição do incesto. Como sustentar que o ego
se afasta dos conflitos edipianos pela via da repressão se foi dito que esse mecanismo tem
grande participação do superego que, no caso, está ainda em formação? Freud sustenta, assim,
a idéia de que há esses dois destinos para o complexo, a dissolução e a repressão, sendo que a
distância entre eles é pontuada como a distinção entre o normal e o patológico: “se o ego, na
realidade, não conseguiu muito mais que uma repressão do complexo, este persiste em estado
inconsciente no id e manifestará mais tarde seu efeito patogênico” (Freud: 1996 [1924]: 197).
Como fatores que influenciam a dissolução do Édipo, Freud sinaliza a impossibilidade
interna do complexo, a ausência da satisfação esperada, como também a hereditariedade. Não
deixando de se questionar pelas variáveis onto e filogenéticas, em termos psíquicos, o autor
coloca os termos da seguinte forma: a castração é o que destrói a fase fálica e o que permite
ao Édipo sucumbir à regressão e ao período de latência.
Segundo Mezan (2006), o complexo de castração adquire sua importância quando
Freud inaugura a idéia de que o órgão masculino não é somente instrumento de diferenciação
do menino entre si e os outros, mas adquire um valor simbólico de definir o sujeito.
O pênis não pode ser visto como simples órgão reprodutor ou gerador
de prazer: prova-o a cadeia simbólica que o toma como ponto de
partida para as equivalências inconscientes (crianças, fezes e
dinheiro). É na ordem simbólica que reside o sentido do complexo de
castração, como o de complexo de Édipo [parênteses do autor]
(Mezan, 2006: 284).
O pênis possui para o menino um valor narcisista e, por isso a conversão do órgão à idéia de
falo. A ameaça de castração realizada por algum adulto coloca em xeque o interesse narcisista
do menino por seu órgão sexual, fazendo surgir aí um conflito pulsional: por um lado, a
possibilidade da castração como ameaça de ferida narcísica, por outro lado, as pulsões do id
do menino insistem nos investimentos libidinais dos objetos parentais. Trata-se, então, de um
conflito entre o narcisismo do ego, interessado em manter o falo, e as pulsões do id,
expressando os desejos incestuosos. Como escreve Freud, “nesse conflito, triunfa
normalmente a primeira dessas forças: o ego da criança volta as costas ao complexo de
Édipo” (Freud, 1996 [1924]: 196).
35
1.5 O feminino como impasse
Tendo até aqui, mais uma vez, baseado-se no complexo edipiano masculino, Freud se
pergunta o que esperar da fase fálica e do complexo de castração no caso da menina, tendo em
vista que também o sexo feminino desenvolve um complexo de Édipo, um superego e um
período de latência. O que está em jogo nessa indagação é o pressuposto de que a diferença
anatômica dos sexos acarreta conseqüências psíquicas distintas, que podem ser melhor
localizadas por Freud justamente na etapa da organização sexual infantil.
Antes do encontro da menina com o órgão sexual masculino, o clitóris funciona tal
como um pênis. A partir da percepção do órgão masculino, a menina não encontra uma
explicação sexual para a ausência do pênis em seu corpo, construindo uma primeira
explicação em torno da idéia de que perdeu o órgão por punição. A criança do sexo feminino
vive a etapa fálica da mesma forma que o menino, dividindo os seres humanos em fálicos e
castrados, sendo que essa dualidade se baseia em uma lógica punitiva, e não em uma
explicação sexual. No entanto, o que para o menino é apenas uma ameaça, para a menina é
um fato consumado: a castração.
Como Freud havia sinalizado, é o horror à castração suscitado pelo interesse narcisista
em manter o pênis, que provoca o afastamento do menino de seus desejos edipianos. Se a
castração é vivida como uma realidade pela menina, como explicar a dissolução de seu
complexo pela via do medo da castração?
Estando assim excluído, na menina, o temor da castração, cai também
um motivo poderoso para o estabelecimento de um superego e para a
interrupção da organização genital infantil. Nela, muito mais que no
menino, essas mudanças parecem ser resultado da criação e de
intimidação oriunda do exterior, as quais a ameaçam com uma perda
de amor (Freud, 1996 [1924]: 198).
Mesmo indicando aqui a função de ameaça da perda de amor para a interrupção da ligação
incestuosa da menina, em 1925, no artigo Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção
Anatômica entre os Sexos,
Freud ainda questionará a motivação da menina para se afastar do
complexo edipiano, tendo em vista que a diferença anatômica entre meninas e meninos
provoca situações psíquicas distintas, uma ferida narcísica executada e outra ameaçada, que
36
não podem ser explicadas através de uma correspondência paralela. O autor sustenta, então,
que o complexo de castração na menina tem uma outra função, distinta daquela
desempenhada no modelo masculino.
Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo
complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido
através do complexo de castração (Freud, 1996 [1925]: 285).
A castração, no caso feminino, precede o Édipo e o prepara, o que, para Freud, indica que o
complexo edipiano, no caso das meninas, é uma formação secundária, possui uma pré-
história. A construção dessa tese é justificada também por uma outra característica da
sexualidade feminina, o deslocamento necessário do objeto de amor da mãe para o pai.
O objeto a ser catexizado pelo menino em sua situação edipiana, a mãe, assim o foi
desde o período em que a criança era amamentada e cuidada. Por esse mesmo motivo, a mãe
também é o objeto original ao qual a menina se vincula, período que constitui a pré-história
do Édipo feminino e que será mais enfaticamente descrito nos anos posteriores. Nesse
momento, Freud se empenha em relacionar a castração da menina a uma ferida narcísica que a
leva à “inveja do pênis”. A menina, ao se deparar com o órgão masculino e ao perceber que
não o possui, “toma sua decisão num instante” e “quer tê-lo”, o que deflagra um sentimento
de desprezo pelo sexo feminino.
Em contraposição às conseqüências da teoria da primazia do falo para a sexualidade
feminina, David-Ménard (1998) defende que a lógica da castração não se aplica à sexualidade
feminina. Ou melhor, o falo não pode ser definido como emblema de todo acesso à
simbolização do desejo, pois a mulher simboliza a renúncia a um objeto não apenas através do
cenário da castração e da perda de uma parte do corpo, mas também a partir de outras
diferentes representações.
A vivência do gozo feminino faz com que as mulheres saibam que o pênis não é o falo,
enquanto que a confusão entre os dois é, de princípio, uma experiência masculina. A autora
começa a delimitar, assim, uma perspectiva que, por não recobrir pênis e falo, recoloca a
perda do processo de simbolização dissociada da problemática do objeto, o que permite uma
leitura acerca do feminino independente de sua relação com o masculino.
Enquanto isso, em Freud, a inveja do pênis aparece como um fator essencial para o
afrouxamento do laço da menina com sua mãe, tendo em vista que essa última passa a ser
responsabilizada pela sua falta do pênis. Mezan (2006) sinaliza que essa hipótese construída
37
pela filha ainda está de acordo com a teoria sexual infantil de que sua mãe possui um pênis, de
forma que a ausência desse último ainda não está relacionada ao sexo das mulheres como um
todo, não está relacionada a uma diferença de cunho sexual. Em princípio, a criança encara a
castração como um infortúnio peculiar a ela própria, de forma que só mais tarde compreende
que se trata de uma situação que se estende a outras crianças e também a adultos.
A reivindicação de ser recompensada pela falta do pênis dirige a menina ao desejo de
ter um filho; finalidade a partir da qual toma o pai como objeto de amor. A tomada do
progenitor de sexo oposto como objeto é também possível porque ele é percebido como
alguém que tem o pênis e que, além disso, nada tem a ver com a formação dos bebês e,
conseqüentemente, com a falta de pênis que ela própria carrega (Mezan, 2006: 288). É o
narcisismo ferido que motiva a troca objetal e que transforma a menina em uma pequena
mulher.
A crítica dos pós-freudianos aos destinos formulados por Freud em relação ao Édipo
feminino parte da leitura de que corresponderiam aos ideais do gênero feminino vigentes na
modernidade: o da maternidade e do casamento. A sexualidade feminina só é reconhecida no
desejo de ter um filho e no de ter um homem, sendo os demais destinos traçados como
patológicos.
Nunes (2000) discute o quanto as noções de castração e de inveja do pênis colocam a
mulher em uma posição inferior ao homem, ignorando os aspectos fecundo e criador do corpo
feminino. Explicar o sentimento de menos-valia das mulheres e a desvalorização das mesmas
pelos homens como conseqüência da visão do órgão feminino é, para a autora, basear a
diferença de gênero no fator da distinção sexual anatômica. Se, por um lado, Freud
desnaturaliza o ser mulher, demonstrando que há um percurso importante até que a menina se
constitua mulher e que tal destino não é garantido pela anatomia, por outro lado, adota como
“verdadeiras” certas soluções para a inveja do pênis, o que adquire um aspecto normativo.
Ainda em Freud, mais um deslocamento é necessário para que a menina caminhe em
direção à feminilidade: a substituição da sexualidade clitoridiana, associada por Freud à
atividade e, conseqüentemente, à posição masculina, pela primazia da vagina, relacionada à
passividade e à feminilidade. As antíteses clitóris/vagina, atividade/passividade e
masculino/feminino se confundem, traçando uma direção pré-determinada para a
feminilidade, a da “passivização”.
A tese de que, na puberdade, a repressão afetaria a sexualidade clitoridiana, dando
lugar à vagina como principal órgão sexual, é comentada por Laqueur (2001) como uma
formulação comprometida em defender a diferença a partir da complementaridade entre pênis
38
e vagina, além das finalidades sociais das mulheres e dos homens. A seu ver, Freud se esforça
por disfarçar de discurso anatômico a diferença de gênero do século XIX.
Em 1931, em Sexualidade Feminina, Freud defende mais enfaticamente que a vida
sexual da mulher é dividida em duas fases, a primeira correspondendo à etapa pré-edipiana,
em que a mãe é objeto de amor, e a segunda correspondendo ao Édipo, em que a menina
substitui a mãe como objeto pelo pai. A menina atravessa o Édipo em seu caráter negativo
para, só depois, introduzir-se em seu modelo positivo. A clínica de Freud o auxiliou a
constatar que toda a intensidade característica do vínculo com o progenitor paterno é uma
herança da ligação anterior com a mãe. Nesse artigo, o autor sublinha a relevância dessa
ligação originária da menina tanto em força quando em seu tempo de duração, mas é na
Conferência XXXIII
(Freud, 1996 [1933]) que Freud melhor sistematiza toda a sua
compreensão sobre a sexualidade feminina, embora ainda declare considerar tal conhecimento
incompleto.
A fase fálica é caracterizada por um paralelo entre meninos e meninas, pois a atividade
masturbatória do clitóris, típica dessa etapa do desenvolvimento libidinal, equivale ao pênis,
enquanto a vagina se encontra desconhecida para ambos os sexos. Freud chega a dizer que a
menina é, nesse momento, um homenzinho, e que a diferença sexual ainda está eclipsada
pelas semelhanças (Freud, 1996 [1933]: 118). Outra aproximação entre os sexos encontrada é
o tipo de catexia objetal realizada, que desde o início e até então ocorre em função das
necessidades vitais, as crianças de ambos os sexos iniciam suas catexias tomando a mãe como
escolha objetal.
Enquanto o menino precisa apenas manter sua mãe como objeto e o pênis como zona
erógena privilegiada desde suas primeiras catexias objetais, para atingir a feminilidade, a
menina deve, por sua vez, realizar duas substituições: a de zona erógena e a de objeto. A
menina precisa, diz Freud, mudar de sexo; e, ao mudar de sexo, muda também o sexo de seu
objeto de desejo. Fazendo uma escolha de objeto paterna, a menina se transforma, assim, em
uma pequena mulher e entra no Édipo. Mais uma vez, vemos Freud reforçar a idéia de um
destino verdadeiramente feminino.
A motivação para tais substituições, sinaliza Freud, é justamente a vivência do
complexo de castração, ou seja, a expressão psíquica da diferença sexual anatômica. Ao
perceber a falta de pênis que lhe cabe, sente-se injustiçada e responsabiliza a mãe por tal
injustiça. Até esse momento, entende a ausência de pênis como uma deficiência própria, pois
crê ainda que sua mãe seja fálica. Ao perceber que sua mãe é castrada, afasta-se dela e toma o
pai, fálico, como objeto de amor, desejando receber dele o pênis que sua mãe lhe recusou.
39
Através de uma equivalência simbólica primitiva, a menina substitui o desejo de receber um
pênis pelo desejo de receber um bebê. E aí se inicia a situação edipiana da menina.
Num menino, o complexo de Édipo, no qual ele deseja a mãe e
gostaria de eliminar o pai, por ser este um rival, evolui naturalmente
da fase de sexualidade fálica. A ameaça de castração, porém, impele-o
a abandonar essa atitude. Sob a impressão do perigo de perder o pênis,
o complexo de Édipo é abandonado, reprimido e, na maioria dos
casos, inteiramente destruído, e um severo superego instala-se como
seu herdeiro. O que acontece à menina é quase o oposto. O complexo
de castração prepara para o complexo de Édipo, em vez de destruí-lo;
a menina é forçada a abandonar a ligação com a mãe através da
influência de sua inveja do pênis, e entra na situação edipiana como se
esta fora um refúgio (Freud, 1996 [1933]: 128/129).
Motivado pelo material clínico de suas pacientes mulheres, o autor se detém sobre a qualidade
da relação pré-edipiana da menina com sua mãe, sublinhando o quanto essa etapa deixa
grandes oportunidades para fixações e disposições, inclusive marcando com sua impressão
não só a relação edipiana da menina com seu pai, mas também com seu marido.
A relação pré-edipiana atravessa as três fases da sexualidade infantil, constituindo-se
tanto de desejos orais, quanto sádico-anais e fálicos. Em paralelo, há tantos impulsos ativos
quanto passivos atravessando tal relação e, principalmente, uma grande quantidade de
ambivalência. Tal quadro faz com que Freud relembre a época dos seus estudos sobre a
histeria, quando todas as suas pacientes relatavam ter sofrido uma sedução por parte do
próprio pai. Agora, o analista coloca a fase pré-edipiana da menina como o ponto em que a
fantasia “toca o chão da realidade”.
E agora encontramos mais uma vez a fantasia de sedução na pré-
história pré-edipiana das meninas; contudo, o sedutor é regularmente a
mãe. Aqui, a fantasia toca o chão da realidade, pois foi realmente a
mãe quem, por suas atividades concernentes à higiene corporal da
criança, inevitavelmente estimulou e, talvez, até mesmo despertou,
pela primeira vez, sensações prazerosas nos genitais da menina
(Freud, 1996 [1933]: 121).
40
Não é à toa que a experiência de sedução retorna incessantemente na clínica de Freud. Mas,
agora, após um longo percurso teórico e clínico, o autor pode colocá-la em outros termos: “as
primeiras experiências sexuais e sexualmente coloridas que uma criança tem em relação à
mãe são, naturalmente, de caráter passivo” (Freud, 1996 [1931]: 244). Ao ser alimentada,
vestida e limpa pela mãe, a criança desfruta de satisfações, ao mesmo tempo em que uma
parte de sua libido se esforça por transformá-las em atividade. E, aqui, a vivência da menina
encontra uma certa similaridade com a vivência masculina, não havendo, então, nessa fase
libidinal oral uma distinção entre masculino e feminino.
Segundo Freud relata em 1923, no texto A Organização Genital Infantil, é somente
com o advento da puberdade que a oposição sexual coincide com a divisão entre masculino e
feminino, encontrando-se relacionada a outras polaridades conforme a etapa do
desenvolvimento libidinal infantil. Se na fase oral não há representação para a diferença
sexual, na etapa sádico-anal ela aparece em torno do dualismo atividade/passividade.
Posteriormente, na fase fálica, a polaridade sexual representa-se a partir do par
fálico/castrado, para, só em seguida, na puberdade, relacionar-se com o masculino e o
feminino.
De acordo com essa declaração, a anatomia sexual não se configura como o fator
preponderante para o desenvolvimento sexual do sujeito e para a aquisição de uma identidade
sexual, tese especialmente divulgada na obra freudiana a partir da sexualidade feminina. Se,
em 1919, o autor se surpreendia com a feminilidade sucumbindo ao complexo de
masculinidade no quadro fantasmático das meninas, em 1933, o autor declara ser a menina
pequena um homenzinho para, só posteriormente, trocar de sexo e tornar-se mulher. A idéia
de que não se nasce mulher, mas de que torna-se mulher é reconhecida no meio psicanalítico
por indicar que a assunção da identidade sexual se dá a partir de elaborações psíquicas, não
podendo ser pré-determinada pelo órgão sexual biológico.
Mesmo tendo as teorias freudianas em torno do complexo de Édipo o mérito de
complexificar o conceito de sexualidade e de demonstrá-la como uma noção polissêmica,
guardam resquícios importantes do modelo do dimorfismo sexual, cujas conseqüências
passam pela reprodução das normas de gênero tradicionais. Nesse sentido, as teses que
circundam o complexo edipiano vem sendo resgatadas por leituras críticas à psicanálise, tendo
em vista que, em última instância, as mesmas promovem a hipótese de que a constituição do
sujeito e da alteridade só é possível a partir da diferença sexual, ou, como vimos, a partir de
uma diferença binária e hierárquica entre os sexos.
41
Por outro lado, a partir do debate que relança a questão sobre o estatuto da diferença
sexual na psicanálise, autores têm sugerido novas leituras a partir do interior da própria teoria
psicanalítica, a fim de proporcionar um deslocamento da questão da diferença enquanto
diferença sexual para a da alteridade. Birman (1999), David-Ménard (2001) e Arán (2006)
defendem a retomada do conceito de pulsão no sentido de insistir na concepção da
experiência alteritária como o encontro do sujeito com o outro interno e externo a si. Trata-se
de um outro estranho-familiar, perspectiva que concebe a alteridade como tudo aquilo que
subverte as fronteiras do eu.
Essa perspectiva está baseada na observação de que o pensamento freudiano apresenta
uma oscilação entre uma perspectiva normativa da diferença e uma outra, a leitura pulsional,
que impossibilita qualquer tentativa de pré-determinação do outro. Essa última tem sido
apontada como uma saída da teoria psicanalítica para a prescrição de modelos universais e
hierárquicos da diferença e sua conseqüente prática exclusivista.
CAPÍTULO 2
A TEORIA LACANIANA SOBRE O ÉDIPO E A SEXUAÇÃO
Se desde Freud a psicanálise ultrapassou o impasse biológico que equivalia o falo ao
pênis e a diferença sexual à diferença dos órgãos genitais
6
, com Lacan, cunha-se um novo
termo, sexuação, cuja originalidade corresponde ao deslocamento da problemática da
identidade sexual para a das posições sexuais. A relevância dessa mudança de direção para o
presente estudo diz respeito aos diversos desdobramentos teóricos que são provocados em
relação ao tema da diferença sexual e da alteridade. Até chegar à concepção das posições
sexuais como modos de gozo, Lacan realizou outras diversas formulações sobre a questão da
diferença sexual, de modo que este capítulo será dedicado a retomar suas teses desde o
retorno ao complexo de Édipo até o seu último ensino.
Autores contemporâneos que trabalham a interface entre psicanálise e cultura têm se
dedicado a analisar a teoria de Lacan e suas repercussões culturais. Embora reconheçam o
mérito do autor em ultrapassar as fronteiras da biologia ou de qualquer essencialismo
filosófico, acabam questionando o que entendem como uma continuidade do modelo binário e
hierárquico da diferença sexual.
6
Embora, como veremos no terceiro capítulo, ainda se discuta o papel normativo das teorias freudianas da
sexualidade.
43
2.1 Uma breve introdução às contribuições de Lacan
A partir do que acompanhamos no capítulo anterior, podemos dizer que Freud
imprimiu um novo modo de compreender a sexualidade, subvertendo as idéias enraizadas na
sexologia ocidental desde a segunda metade do século XIX
7
. Entrelaçada à nova teoria do
sujeito, a sexualidade passa a ser relacionada ao campo do inconsciente e da pulsão, de forma
que a diferença sexual deixa de ter sua inteligibilidade calcada na suposição de uma ligação
simétrica e complementar entre homens e mulheres.
Todo o trajeto freudiano terá como destino a desconstrução de uma de suas primeiras
teses, a de que, sob a perspectiva edipiana, o pai está para a menina tal como a mãe está para o
menino. Ao final de sua obra, a mãe é vista como o objeto primordial tanto para a menina
quanto para o menino, assim como o pai é sujeito da identificação primordial para ambos os
sexos. Freud acaba por sustentar a tese de que há apenas um ponto de partida para o processo
de sexualização, que independe do sexo da criança que nasce: a libido é masculina para
ambos os sexos. Sua concepção de que “a anatomia é o destino” (Freud, 1996 [1924]: 197)
vem enfatizar que não é dela que se parte e que, se é freudiano dizer que muita coisa se passa
entre os dois momentos (ponto de partida e destino), também o é entender que esse último não
é um porto seguro, tendo em vista que as declarações “sou homem” e “sou mulher” são
sempre problemáticas e requerem que se indague ao que correspondem tais categorias.
O complexo de Édipo vem designar justamente este processo de transformação de uma
sexualidade única e idêntica para os dois sexos, a sexualidade fálica, em duas posições
subjetivas distintas. E se essa é a sua elaboração final, Freud esbarrou em dois importantes
impasses: o biológico, fruto da confusão entre pênis e falo; e o feminino, devido à necessidade
de se repensar o complexo a fim de dar o devido valor à relação da menina com sua mãe
(Brousse, 2005). A superação de tais problemáticas dá espaço para o surgimento de uma outra
interrogação acerca da dissimetria entre homens e mulheres: o que quer a mulher? (Freud
apud
Gay, 1989: 455).
Entonces, si la exigencia de falo no se resuelve ni por la vía del ser ni
por la vía del tener, esto explica el desconcierto de Freud, quien sigue
7
Segundo Birman (1999), a sexologia Ocidental da segunda metade do século XIX se constituía de discursos
biológicos sobre a sexualidade disfarçados de ciências do comportamento sexual. Tais discursos giravam em
torno da exigência primordial da reprodução biológica.
44
sin saber qué quiere una mujer. Sin embargo, de algo está seguro: la
cuestión de la femineidad no se resuelve por la vía del falo (Recalde,
2005:113)
8
.
É a partir desse impasse acerca das mulheres que Lacan proporá que a feminilidade é a
problemática de um ser que não pode assujeitar-se inteiramente ao Édipo e à lei da castração.
Mas essa é a tese pertinente ao seu último ensino. O conceito de falo foi retomado e
modificado pelo autor diversas vezes ao longo de sua produção, conforme a prevalência do
imaginário, do simbólico e do real. Nesse percurso, acentua cada vez menos a questão da
“identidade” feminina e cada vez mais a idéia de “gozo” feminino, menos a castração e a
reivindicação dela decorrente do que a “divisão” que o primado do falo introduz na menina
(André, 1998: 209). O Édipo passará do estatuto de complexo familiar à dimensão de
estrutura, para, posteriormente, ser reconhecido em seu mais-além. Ao mesmo tempo, o
destino do sujeito passa a ser relacionado a suas eleições de gozo diante do confronto com a
castração e com o desejo do Outro.
Para seguir a sugestão de Elia (1995) e não deixar de inserir a teoria psicanalítica da
sexualidade no campo da teoria do sujeito, seguem algumas considerações sobre as lógicas
que perpassam o ensino de Lacan.
O psicanalista pós-freudiano se debruçou sobre a tarefa de reformular o assujeitamento
do sujeito às leis do inconsciente em termos de linguagem. Para tal, rompe com a lógica
formal aristotélica, segundo a qual os termos de uma relação são determinados por atributos e
propriedades em um momento anterior à instituição das relações, o que quer dizer que são
determinados por características de cunho essencialista. Em contraposição, o autor insere no
campo da psicanálise a lógica da dialética, pois estabelece que a relação precede os termos
que a mesma constitui e determina. Sob a perspectiva de que não há termo anterior à relação,
a noção de sujeito também se encontra subvertida, tendo em vista que passa a ser desatrelado
do significado, mas submetido ao estabelecimento de determinadas relações (Elia, 1995).
A teoria lacaniana se fez sob a lógica do significante, advinda do pensamento
estruturalista. De acordo com tal lógica, deve-se formalizar a maneira pela qual os elementos
se encontram organizados na estrutura, os lugares e as posições que cada termo ocupa diante
de todos os outros que compõem o conjunto, independentemente de seu conteúdo. Para Elia
8
O trecho correspondente na tradução é: “Então, se a exigência de falo não se resolve nem pela via do ser nem
pela via do ter, isto explica o desconcerto de Freud, que segue sem saber o que quer uma mulher. Contudo, de
algo está certo: a questão da feminilidade não se resolve pela via do falo”.
45
(1995), parece fundamental desfazer qualquer possibilidade de má-compreensão da relação
entre forma e conteúdo segundo a lógica do significante.
Se a lógica do significante retoma a forma, desprezando o conteúdo,
não é por um movimento de retrocesso ao procedimento essencialista
da abstração, mas por um salto em direção aos dispositivos da
estrutura
, na qual não se trata da abstração formal do que eram
anteriormente os termos e seus conteúdos particulares, mas da
apreensão de uma rede de relações entre lugares, posições ocupadas
por termos,
sendo que esses lugares assumem valor de traços
simbólicos
: o significante só é apreensível na sua independência em
face dos efeitos de significação que produz, e, nessa medida, tem
valor de traço simbólico tomado numa rede relacional antes sintática
do que semântica. Não se retoma a velha oposição entre forma e
conteúdo, destituída pela lógica dialética, mas afirma-se a primazia da
letra
como marca, traço, sem significação, sendo este o seu estatuto
próprio, seu ser de letra, se quisermos, seu conteúdo mesmo, e não a
dimensão formal de algo que, por outro lado, deveria encontrar seu
conteúdo. O conteúdo será, assim, a contrapartida da forma,
identificada, pelo mesmo equívoco, com a letra ou o significante, mas
o efeito de significação produzido pelas letras em seu estatuto literal
concreto [grifos do autor] (Elia, 1995: 31/32)
9
.
A linguagem, nesse contexto lógico, é encarada como a alteridade frente a qual nasce o
sujeito. Tal compreensão aponta para um além da constituição da subjetividade em relação a
um outro sujeito tomado em sua objetividade e semelhança. A partir dessa postulação, torna-
se impensável qualquer binarismo da relação do sujeito com o outro, o que faz com que Elia
(1995) denomine de “Alteridade radical” a estrutura da Linguagem e do Significante que
determinam o advento do sujeito e que tornam o inconsciente um outro lugar psíquico.
9
É interessante notar que essa questão da relação entre forma e conteúdo na psicanálise terá um lugar importante
no debate entre Butler (2000) e Žižek (1999), já que esse último propõe pensar a diferença sexual como um
“conceito formal sem conteúdo”.
46
2.2 O Édipo como complexo familiar
A publicação de 1938 da VIII Encyclopédie Française trazia um texto de Lacan (1987
[1938]), ainda um jovem psicanalista, sobre os complexos familiares determinantes para a
formação do indivíduo. A idéia de complexo como organizador do desenvolvimento psíquico
vinha excluir qualquer referência orgânica da formação da personalidade, sublinhando a
primazia das instâncias culturais sobre as naturais no que diz respeito à vida mental dos
indivíduos. A definição de complexo ganhava importância para a ciência psicológica à medida
em que estabelecia um contraponto à idéia de instinto, que ficava restrita ao comportamento
animal.
Por trás desse primeiro entendimento lacaniano sobre os complexos estava embutida
uma concepção de família como estrutura na ordem da cultura. Quer dizer, a família teria, na
formação do indivíduo, o papel fundamental de transmissão da cultura, incluindo a
comunicação para a geração mais nova de estruturas de comportamento e de representação.
Os processos primordiais do desenvolvimento psíquico teriam uma continuidade entre as
gerações, cuja causalidade é de ordem natural e o seu berço, a família.
A noção de cultura é um ponto chave nesse texto de Lacan, tendo em vista que se
refere a uma dimensão que determina a família e todos os fenômenos humanos. Essa
percepção da cultura como uma nova ordem que especifica a realidade social e a vida psíquica
é vista pelos autores que comentam sua obra como um precursor do conceito de simbólico,
que o psicanalista desenvolverá mais tarde.
Nesse contexto teórico anterior à postulação do simbólico estruturalista, o complexo de
Édipo é entendido como um elemento psicológico universal, ao qual todos os formatos de
família estariam submetidos.
Não apenas a interdição do incesto com a mãe tem um caráter
universal, através das relações de parentesco infinitamente diversas e
muitas vezes paradoxais que as culturas primitivas punem com o tabu
do incesto, mas ainda, qualquer que seja o nível da consciência moral
numa cultura, essa interdição está sempre expressamente formulada e
47
sua transgressão é sempre alvo de uma reprovação constante (Lacan,
1987 [1938]: 45).
Tratava-se de entender a repressão e o conformismo sexuais do psiquismo como fatores
importantes para a formação do indivíduo. Localizava-se o desenvolvimento do sexo psíquico
na subordinação à regulação e aos acidentes de um drama psíquico familiar. Supunha-se que a
criança alcançaria o conformismo sexual através da identificação com o progenitor do mesmo
sexo, destino que se iniciaria com as pulsões da criança dirigindo-se ao progenitor do sexo
oposto. Sendo esse interesse pulsional frustrado, a criança culpabiliza o progenitor do mesmo
sexo por ser agente da interdição de sua satisfação.
Baseado em Freud, Lacan propunha que a frustração das pulsões era acompanhada de
uma repressão educativa da sexualidade, sendo a sua dimensão psicológica reconhecida na
fantasia de castração e no jogo imaginário que a condiciona. Nesse momento teórico, a
castração é compreendida tanto como uma fantasia de mutilação de um membro do corpo,
quanto como uma ameaça real. Em ambos os casos, a castração diz respeito a uma tradução
imaginária do dano causado ao narcisismo do indivíduo.
A frustração que ela (as pulsões genitais infantis) sofre é
acompanhada, com efeito, comumente, de uma repressão educativa
que tem por finalidade impedir qualquer realização dessas pulsões e,
especialmente, sua realização masturbatória. Por outro lado, a criança
adquire uma certa intuição da situação que lhe é proibida, tanto pelos
sinais discretos e difusos que traem, para sua sensibilidade, as relações
parentais, quanto pelos acasos intempestivos que as desvelam para ela
[parênteses nosso] (Lacan, 1987 [1938]:42).
Tratava-se, portanto, de uma visão dinâmica do percurso que se supunha iniciar com o ápice
da sexualidade infantil, passando pela repressão até alcançar o estádio de latência e a
sublimação. Como acabamentos da crise edipiana, o supereu e o ideal do eu são relacionados
ao pai da família enquanto imago e sexo dominante.
Elas (as formas designadas supereu ou ideal do eu) reproduzem, diz-
se, a imago do progenitor do mesmo sexo, o ideal do eu contribuindo
assim para o conformismo sexual do psiquismo. Mas a imago do pai
48
teria, segundo a doutrina, nessas duas funções, um papel prototípico
em virtude da dominação do sexo masculino [parênteses nosso]
(Lacan, 1987[1938]:49).
A imago do pai, cuja função fica associada à repressão e à sublimação, é entendida aqui como
um esquema imaginário do pai enquanto personagem real das primeiras relações familiares e
sociais que envolvem a criança. A dimensão da imago do pai nessa concepção de complexo
de Édipo valoriza a determinação social da família paternalista na explicação dos traços
individuais da personalidade.
A observação de que a fantasia de castração e a imagem da mãe fálica eram comuns
aos dois sexos evidenciava, para Lacan, a existência de uma dominação masculina na ordem
familiar e cultural. Ao apresentar as teses freudianas acerca do Édipo, o autor enfatiza uma
perspectiva do complexo sustentada nas bases sociais da família moderna, cuja função
normativa aparece integrada aos seus outros efeitos. Por outro lado, através de um movimento
ambíguo, Lacan conclui o papel aleatório do complexo na adaptação sexual, além de
rascunhar a importância de se esclarecer a estrutura psicológica da família, objetivo sobre o
qual se debruçaria por algum tempo. Trata-se de um deslocamento teórico da centralidade na
dialética intersubjetiva para a valorização de um mecanismo anônimo que regula a interação
dos sujeitos, o Outro como ordem simbólica estrutural.
2.3 Da estrutura ao gozo
A ruptura de Lacan com o conceito de complexo de Édipo descrito anteriormente diz
respeito à introdução da lógica dialética no campo psicanalítico, que proporcionou a
superação de qualquer compreensão fenomenológica dos complexos familiares.
Se no contexto de Os Complexos Familiares é conferido ao falo um caráter de
significado determinado pela imagem negativa na imagem especular, tanto no homem quanto
na mulher, posteriormente, Lacan retoma o complexo de Édipo freudiano clareando o
conceito de falo através de uma progressiva diferenciação entre os domínios do imaginário e
do simbólico.
49
A primazia teórica do simbólico revela o arbitrário da significação, demonstrando que
o falo não se reduz a uma imagem, mas que deve ser compreendido também como um
significante.
O que rege o inconsciente é a disjunção no interior da unidade sígnica,
a quebra da correspondência entre significante e significado (unidos e
correspondentes no signo lingüístico saussuriano) e a assunção da
primazia pelo significante. Os elementos materiais da linguagem
(sons, traços, letras) detêm a primazia na organização inconsciente, na
qual inexiste a significação [parênteses do autor] (Elia, 1995: 62).
Nesse contexto teórico, o autor profere o seu quinto seminário, intitulado As Formações do
Inconsciente
(1999 [1957-1958]), em que confere à lei da interdição do incesto o lugar de
fundamento da cultura. Através do que nomeou de “Nome-do-Pai”, o recalque originário da
“Coisa” materna foi descrito em três tempos.
Ora, trata-se menos das relações pessoais entre o pai e a mãe, ou de
saber se ambos estão ou não à altura, do que de um momento que tem
que ser vivido como tal, e que concerne às relações não apenas da
pessoa da mãe com a pessoa do pai, mas da mãe com a palavra do pai
– com o pai na medida em que o que ele diz não é, de modo algum,
igual a zero. O que importa é a função na qual intervêm, primeiro, o
Nome-do-Pai, o único significante do pai, segundo, a fala articulada
do pai, e terceiro, a lei, considerando que o pai está numa relação mais
ou menos íntima com ela. O essencial é que a mãe funde o pai como
mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu capricho, ou
seja, pura e simplesmente, a lei como tal (Lacan, 1999 [1957-1958]:
197).
O primeiro momento corresponde ao tempo do pai simbólico, tendo em vista que o
significante paterno é o suficiente para que se provenha a identificação da criança com o falo
imaginário, ou seja, a relação da criança não é “com a mãe, como se costuma dizer, mas com
o desejo da mãe. É um desejo de desejo” (Lacan, 1999 [1957-1958]: 205). Há, portanto,
nesse momento uma relação de espelho entre o desejo da mãe e o desejo do filho, em que esse
50
último preenche como objeto o desejo da primeira. A presença do pai é velada, de forma que
o agente da metáfora paterna é o significante, e não o pai da realidade.
O segundo tempo compreende a quebra dessa identificação da criança com o falo
imaginário, que também prescinde da intervenção direta do pai, apesar da necessária função
proibitiva e privadora do mesmo. Não se trata do pai da realidade na proibição do incesto,
tendo em vista que o pai interditor deve estar mediado pelo discurso da mãe, sendo então, um
pai imaginariamente concebido pela criança como todo-poderoso, interditor e privador da
mãe.
O terceiro momento diz respeito à chave e à saída do Édipo. Se no tempo anterior,
tratava-se do pai privador, aqui trata-se do pai doador, além de haver a necessidade da
intervenção efetiva do pai, não sendo mais suficiente o caráter simbólico ou imaginário do
mesmo. O pai, real e potente, tem que dar provas de que, o que a mãe deseja, ele o tem e dá a
ela.
O menino deve identificar-se com o pai, de forma que este último torna-se doador
também em relação ao filho, pois por intermédio do dom e da permissão dada à mãe, o
menino obtém a permissão de ter um pênis mais tarde.
Pero a su vez, este tercer tiempo, al negar el segundo, reinstaura algo
del primero: lo que en el juego perverso el niño intentó recibir del
mensaje de la madre, y se tornó imposible en el segundo tiempo,
ahora lo recibe efectivamente del mensage del padre. Es cierto que no
bajo la forma del ser, pero sí en la del tener (Mazzuca, 2005: 94)
10
.
Lacan localiza o primeiro tempo no nível da frustração imaginária, enquanto que o segundo
corresponde à privação real e o terceiro, à castração simbólica. A realização dessas distinções
torna claro que o pai real é transmissor, e não autor da castração, de forma que, para Lacan, a
castração não procede do pai, mas sim da linguagem. Nesse sentido, o complexo de Édipo
traduziria a perda do gozo que afeta o sujeito enquanto sujeito da linguagem. Como efeito da
linguagem, a castração deve ser mediada e transmitida pelo pai. Sendo ele mesmo castrado,
trata-se, na verdade, da transmissão do desejo, de modo que a castração é uma operação sem a
qual não há causa de desejo.
10
O trecho correspondente na tradução é: “Por sua vez, este terceiro tempo, ao negar o segundo, reinstaura algo
do primeiro: o que no jogo perverso o menino tentou receber da mensagem mãe, e se tornou impossível no
51
A partir desse ponto de vista a função do pai não é a de representar a lei do incesto,
mas a de articular o desejo à lei. O empenho de Lacan é o de demonstrar que o pai do
complexo de Édipo é a própria linguagem, de modo que a primazia do falo deve ser entendida
como um efeito de significação do significante do Nome-do-Pai. A função paterna, designada
por este último, é toda expressão simbólica que representa a proibição do incesto, isto é,
qualquer significante que ocupe o lugar da metáfora, privando o desejo da mãe e permitindo
ao ser falante acender à significação fálica. O desejo da mãe não se atém ao corpo do filho,
mas se dirige a um significante paterno, que não é redutível ao genitor.
O Nome-do-Pai não pode deixar de ser articulado à prevalência fálica, porque a função
fálica se define a partir da castração produzida pelo fato do sujeito habitar a linguagem. As
funções fálica simbólica e da castração referem-se ambas ao que Lacan nomeou de “sacrifício
de gozo”, enquanto o falo refere-se ao significante da falta.
Esta función de la falta, cuyo símbolo es el falo, no deriva de la
diferencia anatómica de los sexos, sino de que el ser humano, hombre
o mujer, debe inscribirse forzosamente en el que es su único ambiente
natural, el lenguaje (Brousse, 2005:57)
11
.
Podemos dizer que a origem da castração é simbólica, mas que seus efeitos ocorrem no real: é
o efeito da linguagem no real do gozo de um vivente. A gênese da castração provém do
significante, o que nos permite pensar que não se requer o significante do Nome-do-Pai para
que a castração tenha lugar, já que qualquer significante pode cobrir a posição que a
determina, desde que diga respeito à interrupção da presença da mãe, ou ainda, de suas
demandas. Essa perspectiva tem o mérito de romper com qualquer tentativa de localizar no
pai enquanto pessoa do sexo masculino a instauração da diferença e da alteridade.
Para autores como Tort (2005 apud Arán, 2008b) e Arán (2008b), o esquema edipiano
que restringe a mãe à alienação e o pai à separação se funda em um modelo binário e
hierárquico da diferença. Isso porque a alienação, sendo supostamente o que impede a entrada
do sujeito no mundo simbólico, adquire uma conotação patológica da qual a mãe é a
responsável. Por outro lado, o pai torna-se imprescindível para a superação da ordem da
segundo tempo, agora o recebe efetivamente da mensagem do pai. É certo que não sob a forma do ser, mas sim
na do ter”.
11
O trecho correspondente na tradução é: “Esta função da falta, cujo símbolo é o falo, não deriva da diferença
anatômica dos sexos, mas de que o ser humano, homem ou mulher, deve inscrever-se forçosamente naquele que
é seu único ambiente natural, a linguagem”.
52
natureza. Trata-se, então, de uma teoria que equivale os binarismos feminino/masculino e
natureza/civilização, ou seja, que equivale o sistema de gênero à diferença sexual
12
.
Ao mesmo tempo, o Édipo estrutural estabelece uma delimitação de fronteiras entre o
“fora” ou “anterior” ao simbólico, o patológico, e o “dentro” ou “posterior” ao simbólico, o
normal. A psicanálise estabeleceria uma explicação histórico-contingente acerca da
subjetivação como estrutura universal e a-histórica, reproduzindo relações sociais normativas.
Em relação ao Édipo feminino, o quinto seminário de Lacan gira em torno das
questões deixadas por Freud acerca das dificuldades da menina em passar da mãe como
objeto primordial ao pai como objeto de amor. A introdução da noção de privação no exame
do complexo de castração da menina, que não existe em Freud, destaca o que para Lacan
esteve falho nos pós-freudianos: na substituição da mãe pelo pai, o desejo de filho não é mais
o mesmo depois que passa a se dirigir ao pai, e não mais à mãe.
Hay un olvido en el pasaje de uno a otro, el olvido de lo que quiere
decir dirigirse hacia el padre, a saber, pedirle un objeto que no tiene
otra existencia que la de poder ser demandado. Es un objeto que está
integramente en la demanda, estrictamente definido por ser un objeto
imposible. Si este hijo del padre es rechazado, es que apunta a un
deseo inscripto totalmente en el plano de la demanda. A propósito de
esto, Lacan utiliza el binario fundamental de esos años: deseo y
demanda – deseo llevado a la potencia de la demanda y enteramente
reducido a eso – para interrogar el lugar del Edipo (Laurent,
2005:78)
13
.
A partir de Lacan, entende-se, então, que a privação do desejo não extrai a sua importância da
existência do objeto privado, mas da aspiração do sujeito à algo que só pode ser demandado.
Na perspectiva de Laurent (2005), Lacan acaba por desenvolver uma vertente “contra-Édipo”
ao sustentar que a sexualidade feminina se ordena segundo um duplo registro, o da castração e
12
Retomaremos esta discussão no terceiro capítulo, a partir de Judith Butler (2003).
13
O trecho correspondente na tradução é: “Há um esquecimento na passagem de um ao outro, o esquecimento do
que quer dizer dirigir-se para o pai, a saber, pedir-lhe um objeto que não tem outra existência que a de poder ser
demandado. É um objeto que está integralmente na demanda, estritamente definido por ser um objeto
impossível. Se este filho do pai é rechaçado, é porque ele se direciona a um desejo inscrito totalmente no plano
da demanda. A propósito disso, Lacan utiliza o binário fundamental desses anos: desejo e demanda – desejo
levado à potência da demanda e inteiramente reduzido a isso – para interrogar o lugar do Édipo”.
53
o da privação, e que isso se dá não a partir de um pai e de uma mãe, mas a partir do falo
enquanto significante do desejo.
Já no texto A Significação do Falo (1998 [1958]), Lacan dá conta da primazia desse
significante sem mais fazer referência ao complexo de Édipo. A definição simbólica do falo
como significante do desejo vem indicar que a linguagem dá nascimento ao desejo, de modo
que esse significante deve ser colocado como denominador comum a ambos os sexos. A
criança deseja ser o falo da mãe, ao mesmo tempo em que cai regida pelo falo enquanto
significante do desejo da mãe. Tornam-se entrelaçados, assim, a linguagem e a sexualidade.
Já se observou, com freqüência, que não se trata de uma castração que
se dirija aos órgãos genitais em seu conjunto, e é por isso mesmo que
ela não assume, na mulher, a aparência de uma ameaça contra os
órgãos genitais femininos como tais, mas de uma outra coisa –
justamente, como o falo. Do mesmo modo, pôde-se levantar
legitimamente a questão de saber se, no homem, convinha isolar na
idéia do complexo de castração o pênis como tal, ou incluir nela o
pênis e os testículos. Na verdade, essas discussões mostram bem que a
coisa de que se trata não é nem isso nem aquilo. É algo que tem uma
certa relação com os órgãos, mas uma certa relação cujo caráter
significante, desde a origem, não deixa dúvidas. É o caráter
significante que predomina (Lacan, 1999 [1957-1958]: 319).
O mérito da releitura de Lacan sobre a castração, neste momento de seu ensino, foi afastar a
vinculação dessa operação com a idéia de uma mutilação anatômica. Enfatiza a castração
como o encontro do sujeito com o mistério do falo, trata-se de quando a criança se dá conta de
que o desejo materno se orienta para outro lado, para o Nome-do-Pai. Nesse sentido, o falo
deve ser entendido como uma resposta contingente à pergunta do sujeito pela falta: “El falo es
lo que demanda una madre, él permite nombrar el enigma de su deseo y, en este sentido, es
diferente al miembro viril” (Pommier, 1986: 20).
Butler (2003) e Arán (2008b) defendem que a lógica significante, mesmo sendo um
instrumento de uma dissociação entre diferença e diferença sexual anatômica, acaba por nos
conduzir a uma concepção formal e transcendental da diferença sexual, evidenciando a
necessidade da psicanálise de fundamentar uma organização social baseada nas normas
tradicionais de gênero. As formulações que sustentam a diferença sexual como requisito
54
imprescindível para a constituição da cultura demonstram que é a partir dessa noção que a
própria teoria é construída, o que nos remete à identificação entre diferença sexual e
dispositivo de poder. O sistema sexo-gênero subentendido pelas autoras na teoria psicanalítica
serve à regulação da sexualidade e da subjetividade em termos normativos.
Em contraposição a essa perspectiva, Pommier (1986) considera o falo o significante
da diferença pura, tendo em vista que sua posição é fundamentalmente correlativa ao desejo.
O falo representaria o ponto de impossibilidade de todo significante: a impossibilidade de
definir a si mesmo sozinho, tornando imprescindível a presença de um outro significante.
O falo corresponde à demanda do Outro, e não ao órgão sexual masculino. Da mesma
forma que o real do organismo é atravessado pelo sistema simbólico, também não é possível
falar do ser humano segundo a noção biológica dos instintos. A demanda do Outro, na qual o
sujeito é inserido antes mesmo de seu nascimento, provoca a instauração da pulsão e do
registro do desejo.
As constatações possíveis de se fazer pela observação do exterior,
bem como do interior do corpo humano, permanecem para nós sem
valor, pois o que se trata de apreender não é uma diferença entre
órgãos ou cromossomos que determinam nossa configuração, mas
uma diferença de sexos – esse termo designando aqui, para além da
materialidade da carne, o órgão enquanto aprisionado na dialética do
desejo, e dessa forma “interpretado” pelo significante [grifo do autor]
(André, 1998: 11).
Ao introduzir a lógica do significante no inconsciente, o autor leva o “tornar-se mulher” da
teoria freudiana de uma possível leitura desenvolvimentista ao ponto de vista das
conseqüências do significante para a assunção sexual do sujeito. André (1998) relê a teoria do
recalque de Freud, a partir de Lacan, compreendendo como função desse mecanismo a
substituição de uma sexualidade orgânica por uma sexualidade atravessada pela
representação, pelo significante. O recalque teria por princípio fornecer o significante, ou
melhor, o par de significantes (S
1
e S
2
), a fim de fornecer um contorno para a experiência do
real. Através do recalque, o significante delimitaria um contorno entre o real e o simbólico.
No homem, pelo fato de sua dependência da linguagem, a função
orgânica se acha elevada, numa função erótica que a ultrapassa, de
55
forma que tudo o que é da ordem da necessidade se vê subvertido e
remanejado no registro do desejo. A partir daí a função orgânica do
ser falante se vê arrastada até um ponto-limite, num aquém do desejo,
quase fora de alcance. Beber, comer, até mesmo respirar – como
ilustra o ato de fumar – tornam-se atividades eróticas que o corpo
realiza apoiando-se mais na fantasia sustentáculo do desejo que na
exigência do organismo (André, 1998: 98).
A problemática que se encontra em jogo é saber como a sexualidade atinge o corpo,
separando-o do organismo. O recalque teria como tarefa, através da intervenção do
significante do falo, tornar o real uma realidade sexual, no sentido de que a linguagem esvazia
o corpo de sua carnalidade.
Na psicanálise a sexualidade é o próprio campo no interior do qual o
sujeito (e não o indivíduo) advém, por ser falante, na medida em que a
Linguagem faz suas marcas na matéria viva, nela inscrevendo as
insígnias de um desejo que não é, originariamente, do sujeito, pois que
o sujeito será uma resposta a isso. Este desejo, do Outro, é sexual, e
sexualiza um corpo vivo, previamente não sexualizado. A
sexualização significa precisamente que este corpo não era, no início,
antes de tudo, um corpo sexualizado [parênteses e grifo do autor]
(Elia, 1995: 93).
Nesse sentido, a sexualidade não tem nada de “natural”, ou ainda, não tem nada de
“primário”, pois é compreendida como uma constituição “secundária”, dependente de
significantes e desejos que lhe são exteriores e que acabam por esvaziar o corpo do sujeito
que de sua carnalidade. Porém, mais adiante, apresentaremos a tese lacaniana sobre o registro
do real, que coloca em xeque a idéia de que tudo é da ordem da linguagem. Nesse processo de
sexualização do corpo, na articulação entre corpo e linguagem, algo se precipita fora do
horizonte da linguagem, fora da possibilidade de representação.
A noção de sexuação em Lacan aparece dependente da ação do significante sobre o
sexo biológico, que por sua vez, deve ser localizado sob a ordem do imaginário. Sobre o
corpo imaginário, a ação do significante fálico inaugura todas as significações do ter e do não
56
ter, do ser e do não ser. A sexuação diz respeito à maneira como o sujeito se inscreve frente à
castração e ao seu significante fálico (Φ).
Ainda no texto A Significação do Falo (1998 [1958]), Lacan trata da dialética do ser e
do ter na vida amorosa. Apresenta duas modalidades do desejo sexual como efeitos das
estruturas de linguagem, que acabam por instituir posições em seu interior: do lado masculino,
trata-se de ter o falo, enquanto do lado feminino, trata-se de sê-lo, se colocarmos as posições
sob a perspectiva simbólica.
Já a relação entre os sexos, no registro do imaginário, insere-se na vertente da
aparência: tanto o homem quanto a mulher desempenham o papel de quem detém o falo, a fim
de protegê-lo quando o possui ou para ocultar a sua falta quando não o possui. Proteger ou
mascarar a falta do falo dá à relação entre as posições um tom cômico, em que manifestações
ideais e típicas do comportamento de cada um dos sexos são, aparentemente, complementares
e simétricas.
Mas, atendo-nos à função do falo, podemos apontar as estruturas a que
serão submetidas as relações entre os sexos. Digamos que essas
relações girarão em torno de um ser e de um ter que, por se reportarem
a um significante, o falo, têm o efeito contrário de, por um lado, dar
realidade ao sujeito nesse significante e, por outro, irrealizar as
relações a serem significadas. E isso pela intervenção de um parecer
que substitui o ter, para, de um lado, protegê-lo e, de outro, mascarar
sua falta no outro, e que tem como efeito projetar inteiramente as
manifestações ideais ou típicas do comportamento de cada um dos
sexos, até o limite do ato da copulação, na comédia (Lacan, 1998
[1958]: 701).
Brousse (2005) chama a atenção para o caráter substitutivo ao qual se submetem o ter e o ser
o falo nesta citação de Lacan, o que leva à conclusão de que as posições sexuais são, de fato,
metáforas sexuais. Com a autora, concorda André (1998), que comentando a multiplicidade
de nomes dados aos órgãos sexuais no uso corrente da língua francesa, conclui que “o ser
falante se empenha em significar que o sexo é uma metáfora” (André, 1998: 11).
Butler (2002) defende que a “comédia dos sexos” é um paradoxo que torna as posições
sexuais excludentes e dependentes uma da outra. As hipóteses da assunção exclusiva de uma
única posição e da ligação de dependência de uma em relação à outra são pressupostos da
57
matriz heterossexual, que prescreve a diferença sexual como coerência entre identidade e
desejo. A autora compreende, ainda, que o texto “manifestações ideais e típicas do
comportamento de cada um dos sexos” constrói a imposição de um ideal como enquadre. A
referência a um ideal evidencia a submissão dos sujeitos às normas de gênero e a inadequação
como fracasso.
A autora demonstra a norma de gênero implícita na descrição da posição feminina.
“Ser” o falo para quem o tem, garante a ilusão do sujeito masculino de “ter” o falo. Além de
ser determinado por aquilo que lhe falta, o feminino é estabelecido conforme a expectativa
masculina. Lacan dá continuidade à inteligibilidade da mulher somente enquanto objeto da
fantasia masculina.
A função do falo indica ainda que alguma coisa não deve ser desvelada, de forma que
é do falo enquanto véu que Lacan trata neste texto. O que necessita de um véu não
corresponde à zona anatômica do corpo humano em si, mas ao corpo enquanto não subvertido
totalmente pela libido, enquanto um corpo que permanece orgânico.
A subversão do corpo orgânico pela linguagem produz como efeito o fato de que os
pares de sujeitos jamais se recobrem, devido à existência de um hiato entre eles. Ainda em A
Significação do Falo
(1998 [1958]), Lacan retoma as condições do objeto de amor formuladas
por Freud. A divergência masculina entre objeto de desejo e objeto de amor ganha uma
redefinição em termos de “ter o falo”. Se, para Lacan, no amor, dá-se o que não se tem, o
objeto de amor escolhido pelos homens é castrado, mesmo que a falta seja velada pelo
fantasma. Já quanto ao objeto de desejo, vale a equação de equivalência entre mulher e falo
(Tendlarz, 2005).
O autor estende a duplicidade da vida amorosa também à mulher, que não pode amar
ali onde deseja. Mesmo que o amor e o desejo convirjam para o mesmo objeto, o desejo se
dirige ao órgão do parceiro como objeto fetiche, enquanto que a demanda de amor se
direciona àquele que está na posição de dar o que não tem, ou seja, à falta do Outro. A
duplicidade feminina está em exigir, às vezes do mesmo homem, tanto o portador do falo
quanto aquele que, por não ter o falo, pode dá-lo no amor. A feminilidade estaria relacionada
à prioridade de “fazer-se amar e desejar”, o que coloca a mulher em uma posição de maior
dependência dos signos do amor.
Sem abandonar a perspectiva de que a sexualidade se define a partir da função fálica e
de que é atravessada pela primazia da castração simbólica, o percurso lacaniano alcança uma
superação do modelo edipiano da sexuação, o que começará a aparecer com maior clareza no
seminário O Avesso da Psicanálise (1992 [1969-1970]).
58
Para Ruiz (2005), a superação do Édipo enquanto saber mítico e o seu entendimento
enquanto estrutura está sendo traçado desde a tese de que a castração independe da função do
pai e depende da linguagem. O conceito de metáfora paterna, trabalhado em As Formações do
Inconsciente
(1999 [1957-1958]), apesar de ser uma formalização lógica do Édipo, já
demonstraria o mais-além do mito.
Esta orientación se reconoce, por ejemplo, cuando se independiza la
castración de la función del padre al hacerla depender de la
efectividad del lenguaje; cuando se demuestra la evidencia e
importancia de la castración del padre, o se establece el objeto como
perdido en lugar de prohibido, al hacer girar lo esencial de la estrutura
del sujeto en torno a la falta de objeto en tanto causa y no a la
presencia prohibida (Ruiz, 2005:120)
14
.
No campo psicanalítico, trata-se de um movimento importante no entendimento da sexuação.
O hiato que se abre entre o Édipo e a castração rompe com qualquer possibilidade de se
pensar o sexo sem mergulhá-lo na linguagem e de se entender a relação entre os sexos em
termos complementares ou simétricos.
Em seu seminário O Avesso da Psicanálise (1992 [1969-1970]), Lacan analisou o mito
do Édipo em articulação com outro mito freudiano, o Totem e Tabu (1996 [1913]). A
consequência desse trabalho foi a explanação da contradição entre os mitos em relação aos
efeitos do assassinato do pai para o gozo: enquanto no Édipo a morte do pai dá acesso ao gozo
da mãe, no segundo mito, o assassinato do pai instaura a proibição do gozo e a culpa sobre a
morte.
Se na descrição do complexo de Édipo o gozo é proibido pelo pai, em Totem e Tabu
(1996 [1913]), a perda de gozo é um sacrifício em nome do amor ao pai morto pelo
assassinato primordial. Entendendo que essas são as respostas de Freud à castração, Lacan irá
reformular a noção de castração, a fim de advertir que não é o pai e nem a lei que são
responsáveis pela perda de gozo, mas a linguagem: o gozo está perdido a quem fala (Brodsky,
1992 apud Slimobich, 2005). Como colocado por Ruiz (2005) na citação acima, a orientação
se desloca a partir da distinção entre proibição e perda.
14
O trecho correspondente na tradução é: “Esta orientação se reconhece, por exemplo, quando se faz a castração
ser independente da função do pai e depender da efetividade da linguagem; quando se demonstra a evidência e
59
No mito criado por Freud, os irmãos da horda primitiva assassinam o Pai que os
impedia tiranicamente de gozarem de todas as mulheres, acreditando que esse deveria ser um
privilégio seu. No entanto, a partir de seu assassinato, os irmãos não têm acesso ao gozo
esperado. Ao invés disso, ingerem o Pai em um banquete totêmico e criam um pacto entre si
que exclui a possibilidade de um gozo pleno.
A lógica de Totem e Tabu (1996 [1913]) é a mesma da constituição do sujeito, se
pensamos que, em seu advento, esse último já é efeito de uma renúncia ao gozo pleno, cujo
caráter é, na verdade, mítico. Para Lacan, a castração é um fato de estrutura.
A partir da instauração desta Lei, que não é outra senão a Lei da
castração, todo gozo só é acessível como parcial, e mediante a ordem
simbólica, a ordem do significante, portanto trata-se, precisamente, de
uma Lei, e leis são da ordem do significante. Aliás, em favor do rigor,
devemos dizer que a própria parcialidade deste gozo é outra forma de
dizer que ele é mediatizado pela lei. Assim, em vez de dizermos que o
gozo possível é parcial e mediatizado pela lei, seria mais correto dizer
que ele é parcial porque mediatizado pela lei [grifos do autor] (Elia,
1995: 88).
O seminário O Avesso da Psicanálise (1992 [1969-1970]) constitui um outro deslocamento
teórico realizado por Lacan. Enquanto em As Formações do Inconsciente (1999 [1957-1958])
a articulação entre as noções de privação e de castração ficou restrita ao complexo de Édipo
feminino, mais tarde, a mesma adquire uma generalização.
A partir de ese momento, el estatuto del sujeto y el estatuto del padre
serán considerados – sea el sujeto femenino o no – a partir del
complejo de castración en la niña tal como había sido trasmitido por
Freud. Lacan lee la posición femenina de Dora como aquella que allí
donde estaba el padre quiere poner de relieve lo que causaba su deseo,
el de él (Laurent, 2005: 79)
15
.
importância da castração do pai, ou se estabelece o objeto como perdido em lugar de proibido, ao fazer girar o
essencial da estrutura do sujeito em torno da falta de objeto como causa e não da presença proibida”.
15
O trecho correspondente na tradução é: “A partir desse momento, o status do sujeito e o status do pai serão
considerados – seja o sujeito feminino ou não – a partir do complexo de castração na menina tal como havia sido
60
A frustração desdobra-se, por um lado, na castração do pai idealizado, e, por outro lado, na
privação. Há uma assunção por parte de todo sujeito, feminino ou não, do gozo de ser
privado. O pai, não mais como pai idealizado e morto, é tomado por sua causa sexual.
O trajeto de Lacan é descrito por Laurent (2005) como tendo início no complexo de
castração feminino tal como Freud o colocou. A partir desse, foi destacada a necessidade de
se distinguir o pai idealizado, castrado e a filha privada. Já no seminário O Avesso da
psicanálise
(1992 [1969-1970]), o pai idealizado do mito freudiano, que como exceção
garante o universal da castração, é questionado. Relendo o caso Dora, Lacan demonstra que,
apesar da produção do pai idealizado, o pai gira em torno de uma causa sexual. Esse percurso
ao mais além do Édipo corresponde, segundo Laurent (2005), a destruição do pai como ideal
ou como universal. Isto corresponde ao deslocamento da proibição da mãe para a questão do
pai sustentar a sua existência no fato de haver se confrontado com o gozo de uma mulher. Há
de ter feito de uma mulher sua causa.
As formulações que levam Lacan ao mais além do Édipo são inseparáveis das
interrogações sobre o gozo feminino. A mulher, introduzindo a questão do sujeito que não
está todo na função fálica, inaugura também a assunção de um sujeito que goza de ser
privado, e já não castrado.
Segundo Miller (2005a), a união ao complexo de Édipo do mito de Totem e Tabu e do
complexo de castração possibilita a introdução do pai real, mais além das suas coordenadas
imaginária e simbólica. Trata-se da grande inauguração lacaniana: apontar o impossível no
centro da enunciação freudiana. O mito se apresenta como um enunciado do impossível, cuja
impossibilidade representa o indomesticável do gozo mediante o discurso.
Que o pai morto seja o gozo, isto se apresenta a nós como sinal do
próprio impossível. E é nisso mesmo que reencontramos aqui os
termos que defini como aqueles que fixam a categoria do real, na
medida em que ela se distingue radicalmente, no que articulo, do
simbólico e do imaginário – o real é o impossível. Não na qualidade
de simples escolho contra o qual quebramos a cara, mas de escolho
lógico daquilo que, do simbólico, se enuncia como impossível. É daí
que surge o real. Aí reconhecemos, com efeito, para além do mito de
transmitido por Freud. Lacan lê a posição feminina de Dora como aquela que, ali onde estava o pai, quer pôr em
destaque o que causava seu desejo, o dele”.
61
Édipo, um operador estrutural, aquele chamado de pai real (Lacan,
1992 [1969-1970]:130).
Enquanto o Édipo permanece reconhecido como um mito, a castração passa a ser
compreendida como uma operação real introduzida pela incidência de qualquer significante
na relação do sexo; operação cujo agente é o pai real. Trata-se, portanto, de uma teoria que
não pode ser reduzida a uma espécie de naturalismo, tendo em vista a sua percepção de que o
ser humano pactua com a linguagem.
2.4 As fórmulas da sexuação
No texto Análise Terminável e Interminável (1996 [1937]), Freud recoloca o impasse
acerca da sexualidade feminina: a análise de uma mulher não ultrapassaria um limite, a inveja
do pênis. Lacan encara o impasse como teórico, e não só feminino: se o ser e o ter o falo não
respondem ao que quer uma mulher, a questão da feminilidade não se encerra pela via do falo.
O complexo de Édipo freudiano aparece como um obstáculo à análise psicanalítica, de
forma que é justamente a partir da orientação clínica que Lacan abre a possibilidade do mais
além do Édipo.
Así, si Freud merece el homenaje de Lacan por el desciframiento
fálico de la sexualidad femenina, es cierto que Lacan trata de conducir
el psicoanálisis más allá del falo, hacia el objeto a, que es también la
llave al más allá del principio del placer. Trata también de ir más allá
del complejo de Edipo, de tal manera que el revés de Freud es un más
allá de Freud (Miller, 1995: 30 apud Zack, 2005: 163)
16
.
O avanço lacaniano pode ser localizado na chamada segunda clínica ou clínica orientada pelo
real, que permite a formulação de respostas que não repousem no Édipo. A conclusão da
análise não é mais vista como uma impossibilidade e é remetida à tarefa analítica de ir mais
além do pai, mais além do impasse que o mito edipiano impõe à clínica freudiana.
16
O trecho correspondente na tradução é: “Assim, se Freud merece a homenagem de Lacan pelo deciframento
fálico da sexualidade feminina, é certo que Lacan trata de conduzir a psicanálise mais além do falo, em direção
ao objeto a, que é também a chave ao mais além do princípio de prazer. Trata também de ir mais além do
complexo de Édipo, de tal maneira que o avesso de Freud é um mais além de Freud”.
62
A proposta lacaniana das fórmulas da sexuação desfaz a idéia de que o falo e a
castração são obstáculos à feminilidade, pois as posições sexuadas são inseridas no âmbito do
gozo e não mais do sexo. Esse deslocamento é possibilitado pela distinção articulada por
Lacan entre dois registros, o do gozo e o do significante.
Não é apenas em relação ao seu corpo que o sujeito sofre os efeitos do significante
fálico. Além do corpo imaginário, há um corpo habitado por um gozo, que também deve
inscrever-se na função fálica. Também há maneiras do sujeito localizar o seu gozo frente ao
significante fálico. Isso permite Lacan formular a sexuação para além das identificações
imaginárias e simbólicas, colocando em jogo o sujeito e seu gozo.
A partir desse movimento teórico, a feminilidade pode ser tomada em seu mais-além
do falo e do objeto da fantasia masculina. A castração, tal como formulada por Freud, passa a
ser entendida por Lacan como um “meio-dizer”, como um conceito que evidencia a
impossibilidade da verdade ser dita “toda”. Na leitura de André (1998), a castração em Freud
pode ser vista como tendo uma certa função para a teoria, a de proteger o lugar de mistério da
feminilidade (André, 1998: 205).
Se Freud apresenta em cada um dos mitos uma verdade sobre o gozo do sujeito, ora
proibido, ora perdido em uma espécie de sacrifício, Lacan se empenhará em ultrapassar esse
mesmo impasse através de uma complexificação do conceito de gozo. O gozo do pai
primitivo não pode ser identificado ao gozo sexual propriamente dito, tendo em vista que este
é uma limitação do gozo em geral, limitação realizada pelo significante que introduz a
dimensão do sexual no ser humano, concebida como a organização fálica.
A organização significante, concentrada sobre um órgão que a lógica fálica isola do
corpo, carrega a falta de um significante que dê conta do sexo feminino. Na dimensão do
discurso inconsciente, não há relação entre dois sexos, porque não há dois sexos opostos.
Lacan declara, assim, a não existência da relação sexual, revelação que dá conta de mostrar os
paradoxos constitutivos da sexuação. A relação sexo a sexo, marcada pela primazia do falo,
torna-se impossível de se escrever, impossibilitando a realização de uma relação no sentido
matemático do termo, mas apenas no registro do semblante.
O Outro Sexo, o sexo d’ A Mulher, não existe, não faz complemento à
sexualidade definida pelo falo, que vigora para ambos os sexos, mas
que, por isso mesmo, não os faz simétricos (Elia, 1995: 74/75).
63
O gozo sexual, sendo, em seu fundamento, articulado ao significante fálico, impossibilita o
dizer de um gozo propriamente feminino. Porém, ao mesmo tempo em o exclui, o permite,
pois ao delimitar uma borda, o significante fálico produz o seu mais-além, introduzindo uma
divisão do gozo que será desenvolvida no seminário Mais, Ainda (1993 [1972-1973]), através
da delimitação do gozo do Outro e do fálico.
O gozo fálico é o efeito da incidência da castração e da interdição à
complementaridade sexual na subjetividade do sujeito. É o resto da operação de
atravessamento da pulsão pela linguagem e, por isso, é mediatizado pela lei do significante,
conseqüentemente, concerne à ordem fálica e sexual marcada pela perda do gozo mítico
pleno. Por outro lado, há o gozo do Outro, que será desenvolvido no livro vinte do seminário
como o gozo feminino, suplementar ao fálico. É caracterizado por ser o mais-além da lógica
fálica.
Nas fórmulas, o autor distribui os indivíduos em duas metades através do uso de
funções proposicionais. Ser homem ou ser mulher é definido pela posição do sujeito em
relação ao Outro e ao objeto, de modo que as fórmulas dizem respeito a formas particulares de
viver a pulsão, cujo objeto, vale lembrar, é fundamentalmente assexuado. Isso significa dizer
que, em sua origem, a sexualidade não está ligada a uma diferenciação dos sexos.
As “fórmulas de sexuação”, escritas no seminário XX, Mais, ainda (1993 [1972-
1973]), são dividas em lado esquerdo, que seria o lado masculino, e o lado direito, feminino;
sendo que cada um desses lados é designado por duas proposições. Temos para a posição
masculina: (1) “para todo x PHI (x)”; e (2) “existe um x tal que não PHI (x)”. O lado esquerdo
e masculino da fórmula considera, a partir da proposição na linha inferior, que todo homem
64
está no âmbito da castração, mas que tal característica só se faz reconhecida pela existência de
uma exceção, escrita na linha superior: pelo menos um não é castrado. Lacan, inspirado pela
função de desvio do pai da horda do texto freudiano Totem e Tabu (1996 [1913]), formula que
essa exceção é justamente a função do pai, que subsistiria no inconsciente masculino,
reiterando a confirmação da regra geral de que o que torna alguém homem é a marca da falta
(David-Ménard, 1998).
Já para o lado feminino, pode-se ler: (1) “não existe x tal que não PHI (x)”; e (2) “não
é para todo x que PHI (x)”. A fórmula indica que “não existe nenhuma mulher que não tenha
relação com a lógica da castração” e, ainda, que “não é tudo, de uma mulher, que está ligado
com esta função” (David-Ménard, 1998). A primeira proposição, a de que todas as mulheres
estão referidas à função fálica, é verdadeira porque é a “definição possível [...] para o que
quer que se encontre na posição de habitar a linguagem” (Lacan, 1993 [1972-1973]: 107).
Porém, tal função não esgota o destino feminino. Lacan fala em um “suplemento” de gozo,
dimensão pela qual as mulheres se relacionam com o real, o que, por sua vez, os homens só
estabelecem através da mediação da fantasia. Estar “não toda” na função fálica enuncia um
“gozo a mais” para além do simbólico, denota aquilo que escapa ao discurso, mas que, ao
mesmo tempo, se ancora nele assim como se sustenta na falta que lhe é inerente.
O universal fundado a partir da referência ao falo inaugura a dissimetria entre os sexos,
denotando que “homem” e “mulher” representam duas possibilidades do sujeito falante, duas
vertentes da estrutura, não podendo ser entendidos como gênero. Lacan também pretende
romper com qualquer tentativa de subentender uma essência masculina e feminina. A
anatomia sexual pode estar implicada na questão do sexo frente ao “eu”, enquanto síntese
imaginária, porém, sob o ponto de vista do autor, o sexo é uma questão do sujeito, para quem
a vivência empírica dos genitais não confere obrigatoriedade. A este, será imputado o
significante “homem” caso se alinhe na função fálica, ou “mulher” caso se posicione “não
toda” na mesma.
Não é a lógica fálica em si que faz a diferença entre os sujeito, mas a posição subjetiva
pela qual os sujeitos se colocam submetidos a ela. Para os falantes, não se trata tanto de
identidades sexuadas, mas de posições, como Lacan pôde valorizar cada vez mais ao longo de
seu ensino. Cada uma das posições subjetivas são determinadas no próprio discurso do
sujeito, podendo ir contra a sua própria anatomia. Isso porque, nesse contexto teórico, não há
relação a priori entre um sexo biológico e uma posição sexuada.
Butler (2003) reconhece a conquista da teoria lacaniana em ultrapassar uma lógica
essencialista sobre homens e mulheres. Porém, considera pertinente a colocação de algumas
65
indagações, tais como: por que se nomeia as fórmulas de “feminino” e “masculino”? Por que
a restrição a duas posições sexuais? A seu ver, Lacan sucumbe ao modelo do dimorfismo
sexual e continua determinando as mulheres somente em relação aos homens.
Lacan recorre ao mito de Tirésias para evocar o gozo suplementar do lado feminino
das fórmulas, que aparece também associado ao gozo do místico. O mito conta que Tirésias,
ao encontrar duas serpentes copulando, separou-as. Por ter realizado tal ato, troca de sexo,
vivendo sete anos como sexo feminino. Só retorna a ser homem ao encontrar novamente duas
serpentes copulando. A partir dessa travessia, adquire um saber sobre a diferença sexual.
Por ter sido homem e mulher, Tirésias é consultado por Hera e Zeus, que divergiam
quanto à resposta sobre quem goza mais, o homem ou a mulher. Afirma, então, que quem
goza mais é a mulher, e que se o prazer correspondesse a dez partes, nove delas seriam o
prazer feminino, enquanto que o masculino corresponderia a uma só parte. O dito de que a
mulher goza nove vezes mais do que o homem enfureceu Hera, que, por não querer ver
revelado o segredo feminino, pune Tirésias com uma cegueira.
Para Lacan, “A Mulher” é indizível porque seu gozo resiste às palavras, é o gozo do
Outro, para-sexuado, fora-da-linguagem. Sua característica é escapar do domínio do
significante, impossibilitando que se possa dele falar. Quem dele goza, goza de si mesmo
enquanto Outro a si mesmo.
No entanto, porque fala, a mulher entra tanto quanto o homem no gozo fálico, cuja
condição é o acesso à palavra, já que o falo é o símbolo da falta que limita todas as demandas
da mãe. Segundo Lacan, “podemos convir que, aparelho, não há outro senão a linguagem. É
assim que, no ser falante, o gozo é aparelhado” (Lacan, 1993 [1972-1973]: 75).
Las palabras son los instrumentos de un goce que no conoce la
diferencia de los sexos y se plantea idénticamente para todos los seres
humanos (Pommier, 1986: 57)
17
.
O que divergirá entre os sexos será o gozo suplementar, tendo em vista que os sujeitos que se
posicionam do lado direito das fórmulas são divididos diante da castração, colocando-se em
parte submetidos ao gozo fálico enquanto a outra parte situa-se do lado do gozo do Outro.
Algo, em cada mulher, escapa à castração, sendo exatamente isso o que as diferencia. No
17
O trecho correspondente na tradução é: “As palavras são os instrumentos de um gozo que não conhece a
diferença dos sexos e se coloca identicamente para todos os seres humanos”.
66
entanto, é importante enfatizar que Lacan se refere a uma divisão ao nível do gozo, e não da
identidade.
Para David-Ménard (1998) e Arán (2008b), Lacan não supera o tom de mistério que
envolve a feminilidade desde Freud, tendo em vista que as fórmulas da sexuação, mais uma
vez, impedem qualquer determinação do feminino positivada. Para os críticos do autor, resta
uma dúvida: do que se trata, afinal, o gozo suplementar? Por que a idéia de um gozo não-todo
fálico não é a oportunidade de se romper de vez com a lógica fálica?
Arán (2008b) coloca que tomar o falo como significante a partir do qual toda a teoria é
construída é uma escolha comprometida em conceber o feminino segundo o princípio da
exclusão. A autora entende a fundação do masculino pelo significante como uma versão
psicanalítica para a dominação masculina.
Ainda em relação às fórmulas da sexuação, os escritos abaixo das proposições dizem
respeito a uma divisão da mulher que não corresponde à divisão do inconsciente. O A quer
dizer que uma mulher é dividida entre aquilo que ela é enquanto S e o que ela é enquanto não-
sujeito. O aspecto “não-toda” da feminilidade corresponde ainda a uma posição de “não-toda
sujeito”, ou “não-toda” determinada pelo inconsciente, tendo em vista que, ocupando o lugar
do Outro radical, não pode ser dita pelo inconsciente a não ser a sua falta.
Apesar de nomear as fórmulas do lado direito de femininas, Lacan não pretende
estabelecer o Outro gozo como traço feminino por excelência, o que seria uma tentativa de
delimitar um conjunto das mulheres, tarefa, para ele, impossível, pelo fato de que nenhuma
mulher faz exceção à regra, de modo que também não a estabelece. Isso significa dizer que
nenhuma mulher funda a existência de um sexo não fálico. Enquanto falta a exceção, falta a
regra, e, dessa forma, Lacan propõe que as mulheres sejam inseridas em um conjunto aberto,
ou melhor, que sejam contadas uma a uma, como em uma série.
A partir do entendimento de que o gozo suplementar só pode ser evocado e situado a
partir da castração e da função fálica, torna-se relevante pensar na relação, que, como
veremos, é entendida como uma não-relação, entre um gozo e outro. Em Mais, Ainda (1993
[1972-1973]), o autor se utiliza de um paradoxo de Zenão, o de Aquiles e da tartaruga, para
ilustrar tal tarefa. O argumento lógico diz que, apesar de Aquiles ser mais veloz do que a
tartaruga, nunca a alcançará, porque na altura em que atingir o ponto de onde a tartaruga
partiu, a mesma já terá se deslocado para um ponto mais adiante. A tartaruga “não é toda, não
toda
dele. Ainda falta. E é preciso que Aquiles dê o segundo passo, e assim por diante” [grifo
do autor] (Lacan, 1993 [1972-1973]: 16). Se a tartaruga tem uma vantagem sobre Aquiles, o
mesmo só pode alcançá-la na infinitude, porque o espaço em que cada um deles se desloca é
67
diferente do espaço do outro, de forma que a distância que separa os dois estará sempre
dividida em dois. Para atingir o animal, primeiro é preciso que se percorra essa metade. E,
quando chegar lá, outras metades ainda faltarão.
Trata-se de uma analogia para aquilo que ocorre entre um homem e uma mulher e a
diferença entre seus gozos. Para Lacan, “o gozo não convém à relação sexual, por causa de ele
falar, o tal gozo, ela, a relação sexual, não há” (Lacan, 1993 [1972-1973]: 83). O gozo fálico e
o Outro gozo divergem em uma metade na qual não se unem, daí a afirmação lacaniana de
que a relação sexual não existe.
En cada etapa del razonamiento, la distancia que separa a los dos
protagonistas está dividida en dos. Esta mitad que los separa es la de
sus fantasmas donde ellos no se encuentran, aunque sea sin embargo
aquel en que ellos se buscan (Pommier, 1986: 82)
18
.
O paradoxo aparece como uma tentativa de escrever a não relação sexual. Trata-se de um
encontro com o real impossível, ou seja, de demonstrar a dimensão de infinitude do não-todo,
impossível de ser alcançada pela medida fálica, representada por Aquiles.
A originalidade deste momento de seu ensino é o deslocamento da questão feminina
do campo do sexo para o campo do gozo. André (1998) defende que a divisão do sujeito
feminino entre a lógica fálica e a não-toda fálica, a divisão da libido em dois gozos, seria uma
releitura da teoria freudiana da bissexualidade histérica, que, na verdade, diria respeito
justamente a dois gozos. A bissexualidade como o nome do desacordo fundamental que
impede a totalização do indivíduo, como o nome da divisão irremediável da sexualidade da
qual a fantasia histérica é porta-voz, é, para o autor, o precursor do lugar e do papel do Outro
enquanto Outro sexo para a divisão do sujeito, já que a histérica apresentava-se conflituosa
entre duas representações que procurava identificar com um sexo ou outro.
Outra formulação proposta acerca da mulher é a de que ela “não existe”. Essa
afirmativa de Lacan torna-se mais clara a partir de uma segunda tese, a de que não há
significante A Mulher. Isso quer dizer que não há um significante específico para a mulher
enquanto “um sexo sem outro”. Não há significante no Outro do sexo feminino enquanto tal
que não esteja referido ao homem e à função fálica.
18
O trecho correspondente na tradução é: “Em cada etapa do raciocínio, a distância que separa os dois
protagonistas está dividida em dois. Esta metade que os separa é a de seus fantasmas onde eles não se encontram,
ainda que, entretanto, seja aquilo em que se buscam”.
68
Essa falta de significante a qual o autor se refere diz respeito ao âmbito do
inconsciente. Trata-se de uma falta considerada segundo o esquema fundamental de cada falta
simbólica: a foraclusão. Brousse (2005) propõe que os efeitos de falta de significante A
Mulher são da mesma ordem dos efeitos da foraclusão, e não da repressão ou da denegação. A
foraclusão implica em um furo no simbólico, o que faz as soluções para essa ausência de
significante corresponderem a formas de fazer suplência. Para a autora, devemos falar em
“feminilidades” no plural, já que os modos de se bordear o buraco no simbólico são
diversificadas e ocorrem ao nível da sexuação. A ausência de um termo adequado deixa
indeterminada a identificação, de modo que essa inconsistência dos traços identificatórios
impossibilita a definição de um modelo feminino.
Segundo André (1998), o impasse freudiano no que diz respeito à sexualidade
feminina está relacionado à tentativa de fazer das mulheres um conjunto, tarefa que Lacan põe
em cheque ao longo de seu ensino. É justamente da falta de ponto de apoio para a identidade
especificamente feminina que leva Lacan a formular que em uma mulher a imagem corporal
não consegue revestir e erotizar por completo o real do corpo. A questão é que a resposta para
o que seria esse real, em que a parte feminina abarcaria a feminilidade propriamente dita, é
impossível de ser formulada. Segundo o ensino de Lacan, nenhuma resposta positiva pode
resolver essa questão, pois significaria nomear um não-representável.
O corpo dito “feminino” se define por ser, parcialmente ao menos,
exterior ao saber, nenhuma articulação significante permitindo
responder pela diferença que a anatomia nos indica (André, 1998:
136).
Se para Freud a anatomia é o ponto de chegada da sexualidade, os destinos sexuais do sujeito
tornam-se um impasse para a conclusão da análise. Os traços próprios a sexualização de
homens e mulheres, a luta contra a posição passiva frente a outros homens e a inveja do pênis,
reaparecem, obstacularizam a análise e determinam o seu caráter interminável.
O percurso do ensino de Lacan trará a possibilidade do sujeito ir mais além do primado
do falo, justamente porque, desde Freud, a significação fálica é o ponto de partida da
constituição do sujeito, sem ser, necessariamente, o seu destino final. Trata-se de ir além do
falo enquanto nome do ponto de apoio simbólico que liga o sujeito ao Outro. O mais-além do
falo consiste no ponto de inconsistência do sistema simbólico.
69
2.5 O real como alteridade radical
O que se torna inacessível para nós? Partindo dessa pergunta, Žižek (2008) desenvolve
a noção de real da diferença sexual. Segundo o autor, para Lacan, não se trata do inacessível
dos erros de interpretação e das ilusões atrelados ao imaginário, que distorcem o que
percebemos, assim como também não vem da rede simbólica através da qual nos
relacionamos com a realidade. O inacessível é o real inscrito no núcleo da sexualidade
humana, o que o sujeito perde ao entrar no regime simbólico da diferença sexual. Freud deu o
nome de “castração” a essa perda. Já Lacan preocupou-se em distinguir as noções de
castração e de real que, a seu ver, permaneceram confusas em Freud. O autor emprenha-se em
demonstrar que a castração não coincide com o furo do simbólico, ou seja, há a castração, mas
para além dela há o real.
No livro O Que Quer uma Mulher? (1998), André retoma o percurso do autor em
relação à elaboração do conceito de real, que ocupará um lugar cada vez mais especial na
teoria, sendo essencial, por exemplo, nessa nova concepção da castração e da diferença
sexual. O autor inicia o trajeto com a noção de real trabalhada no seminário, livro II (1985a
[1954-1955]), a partir de um sonho de Freud conhecido como o “sonho da injeção de Irma”,
descrito e analisado pelo mesmo no texto A Interpretação dos Sonhos (1996 [1900]).
O sonho corre da seguinte forma: Irma, uma amiga doente da família de Freud,
aparece sofrendo, de forma que Freud quer examinar a sua garganta. A mulher, em princípio
resiste, mas nas palavras do sonhador: “em seguida, ela abriu a boca como devia e, no lado
direito, descobri uma grande placa branca; em outro lugar, vi extensas crostas cinza-
esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por
modelo os ossos turbinados do nariz” (Freud, 1996 [1900]: 141). Três colegas são chamados a
examiná-la; um deles conclui que se tratava de uma infecção. No sonho, a origem da doença é
explicada pelo uso que Otto faz de uma seringa suja para dar a Irma uma injeção de um
preparado de trimetilamina. A fórmula da trimetilamina aparece nitidamente impressa em
letras grandes.
A releitura de Lacan sobre o sonho freudiano privilegiará dois pontos que se
relacionam, o espetáculo assustador do fundo da garganta de Irma e a emergência da fórmula
da trimetilamina. Sobre o primeiro, nos diz:
70
Eis aí uma descoberta horrível, a carne que jamais se vê, o fundo das
coisas, o avesso da face, do rosto, os secretados por excelência, a
carne da qual tudo sai, até mesmo o íntimo do mistério, a carne, dado
que é sofredora, informe, que sua própria forma é algo que provoca
angústia. Visão de angústia, identificação de angústia, última
revelação do és isto – és isto, que é o mais longínquo de ti, isto que é
o mais informe
[grifo do autor] (Lacan, 1985a [1954-1955]: 197/198).
Freud desaparece no sonho, o que para André (1998), permite que o mesmo prossiga, pois
Freud não precisa mais se a ver com o real. Começa a elaborar uma resposta a esse, que vai
desembocar na fórmula enquanto escritura simbólica.
Em sua leitura, Lacan articula tal sonho à própria forma como se deu a descoberta da
psicanálise: o fato que se diga ou que se sonhe se revela causado por um real inominável, real
que o inconsciente tenta delimitar como se bordeja um furo, pelo sistema do simbólico, pela
cadeia significante, da mesma forma que o saber psicanalítico tenta designar essa instância do
real com a ajuda de fórmulas ou matemas.
Uma outra temática é sublinhada por Lacan, o tema das três mulheres. Condensadas
em Irma, há três mulheres que resistem a Freud, ou porque nada lhe dizem, ou porque se
recusam a ser examinadas por ele, ou ainda porque tenham aderido para sempre ao mutismo
da morte. A figura da morte, do silêncio e do feminino se articulam em outros sonhos de
Freud e culminam na lembrança de sua mãe ensinando a ele que o homem é feito de terra e
deve a ela retornar. Assim, a principal figura da feminilidade vai entrando em cena: a mãe,
mas ao mesmo tempo, a morte, aquela de onde se vem, mas também aquela para onde se
retorna, aquela que nos alimenta e que finalmente nos absorve, nutriz e devoradora ao mesmo
tempo.
Na revelação deste algo de inominável propriamente falando, o fundo
desta garganta, cuja forma complexa, insinuável, faz dela tanto o
objeto primitivo por excelência, o abismo do órgão feminino, de onde
sai toda vida, quanto o vórtice da boca, onde tudo é tragado, como
ainda a imagem da morte onde tudo vem-se acabar (Lacan, 1985b
[1954-1955]: 208).
71
Aparece aí um implícito que guia Freud: há alguma coisa no corpo da mulher que resiste ao
adorno fálico, alguma coisa que dele se destaca a própria morte, que é seu sexo propriamente
dito. O real, o pedaço de carne não adornado pela imagem erotizada do corpo, aparece aqui
estreitamente vinculado às noções de feminino e de morte, ambas saídas do gesto com o qual
a mãe de Freud o inicia nos mistérios da morte: é de seu próprio corpo que alguma coisa se
destaca, pequeno fragmento que se apresenta com o que há de mais real no corpo, encarnando
a realização mesmo da morte. Este resto que se destaca do corpo para além de toda imagem
nos propõe uma figuração cativante daquilo que Lacan chama de objeto a, e devemos
relacioná-lo com a mancha horrível percebida no fundo da garganta de Irma. Os restos que
caem da epiderme da mãe são os restos de real que caem de qualquer composição simbólico-
imaginária.
As três inevitáveis relações que um homem tem com uma mulher – a
mulher que o dá à luz, a mulher que é sua companheira e a mulher que
o destrói; ou que elas são as três formas assumidas pela figura da mãe
no decorrer da vida de um homem – a própria mãe, a amada que é
escolhida segundo o modelo daquela e, por fim, a Terra Mãe, que
mais uma vez o recebe (Freud, 1996 [1913]: 325).
É a Morte a palavra pela qual Freud significa o que resta da mãe, da mãe enquanto real,
enquanto proibida. Na medida em que uma parte dela fica sem significante, como uma zona
de silêncio em relação àquilo que se nomeia, a mãe é um equivalente da morte, e só na morte
é reencontrada.
Lacan irá designar na morte uma das figuras do real. Se a morte tem tanta importância
para nós, seres falantes, é porque ela nega o discurso; é o mutismo que quebra a espada da
palavra. Fica-se, então, menos surpreso de reencontrá-la no inconsciente como um
equivalente da mãe, até mesmo da feminilidade, na medida em que os desenvolvimentos da
teoria freudiana nos mostram que alguma coisa da feminilidade permanece absolutamente
fora do alcance da palavra, interdito no sentido mais forte do termo, quer dizer, presente no
mutismo que se intercala entre os ditos.
O sonho da injeção de Irma e o feminino colocam uma outra temática para a
psicanálise: a do umbigo, do não-cognoscível, para o qual converge todo o sistema de
representações. “Em seguida, ela abriu a boca” faz com que Freud distinga duas coisas: a
resistência do sujeito a abrir a boca, a falar, e aquilo que, uma vez a boca aberta, revela-se
72
insondável. Que Irma se ponha a falar não implica em que vá dizer tudo, nem que Freud vá
saber de tudo. Persistirá um não-cognoscível. A noção do umbigo torna o mutismo mais
complexo, duplica-o: existe um silêncio no exterior da fala, que se opõe a esta, mas existe
também no interior mesmo da fala. Eis aí mais uma forma de demarcar, no discurso, aquilo
que constitui a realidade do sexo feminino: é o que vai se manifestar como furo no discurso,
como lacuna no tecido significante.
No Rascunho K (1996 [1896]: 276), Freud passa a falar do fenômeno primário da
histeria como “uma manifestação de susto com uma lacuna no psiquismo”, quer dizer, uma
ausência de representação. A lacuna e o susto psíquico são, com efeito, anteriores ao sintoma
histérico propriamente dito. É pelo recalcamento e pela repetição que a histeria vai se colocar,
quando o sujeito encontrar uma representação que o remeta àquela lacuna e àquele susto, estes
assumindo seu valor num “só-depois”. Freud diz que o recalcamento não se realiza pela
formação de uma idéia contrária poderosa demais, mas sim pelo reforço de uma
representação-limite
, que, a partir de então, vai representar a lembrança recalcada. Nenhuma
dessas noções – a de lacuna e a de representação-limite – foram retomadas por Freud. No
entanto, para André (1998), essas noções indicam o que retornará no caso do Homem dos
Lobos
(1996 [1918]): a presença de um elemento real, fora do conhecimento porque fora do
significante, no cerne do recalcamento significante que determina os sintomas – quer dizer a
insistência do real por detrás da problemática simbólico-imaginária da castração. Ainda
segundo André (1998), Freud segue falando da feminilidade por duas vertentes: a do real, a do
não-reconhecível, do mutismo e da morte, em que vai se realizar o fenômeno da repulsa; e a
vertente da castração, do primado do falo, em que vai se realizar o fenômeno do horror. A
segunda orientação ganhará mais espaço em Freud até encobrir a primeira.
Para o autor, trata-se de um movimento da obra freudiana observável especialmente no
tratamento da questão da feminilidade: o inominável vai sendo integrado ao sistema simbólico
até desaparecer completamente. Assim, se Lacan aparentemente propõe o inverso, não faz
mais do que restaurar uma verdade primeira da doutrina freudiana, verdade que foi eclipsada
pela teoria da castração.
O percurso lacaniano, que tem início no conceito de castração, tal como Freud o
deixou, atinge o seu ponto máximo ao alcançar o real. Revela que o sistema simbólico não é
mais do que uma tentativa de recobrimento daquilo que tende a escapar ao nome, ao
significante, e aos bordados da metonímia simbólica. As próprias composições simbólicas e
imaginárias não deixam de produzir um resto real. Lacan esclareceria, assim, a existência de
uma relação estrutural entre a feminilidade enquanto real e o falo enquanto significante.
73
Cronologicamente, o real é anterior à ordem simbólica, porém possui essa
característica condicional de só poder ser designado e pensado enquanto tal a partir dessa
mesma ordem. O real pode ser entendido como efeito do simbólico, segundo a perspectiva de
sua função de causa. Só há o inominável em função do nome, assim como só há o real do
corpo em relação aos limites da simbolização.
Algo no está incluido en el conjunto de las palabras, y esta ausencia se
articula a la castración. La demanda, por una parte, y la cosa ausente,
por otra, forman un todo discordante que es el correlato de la
inadecuación de Otro a la persona que lo soporta: el objeto de las
demandas ocupa el lugar de esta inadecuación. Es por eso que la falta
que es inhetente al lenguaje se refiere finalmente al cuerpo (Pommier,
1986: 113)
19
.
O corpo, à medida em que existe a inconsistência das palavras, adquire uma função de
suplência, ocupando o lugar daquilo que elas falham em nomear. O genital pode ser
compreendido como o furo na consistência fálica da ordem simbólica, o ponto de
inconsistência simbólica, o ponto de real que fura o simbólico (Elia, 1995: 92).
Finalmente, o corpo é também real, não porque ele seja, afinal de
contas, também orgânico
: o corpo é real na medida em que não é
totalmente imaginarizado e simbolizado, ou, antes, porque o é não-
todo
, pois, a partir do corte representado por sua entrada na ordem
simbólica, que toma o corpo passível de recobrimento imaginário, o
corpo orgânico, para sempre perdido na experiência do sujeito, dá
lugar a um vazio não imaginarizável nem simbolizável, lugar,
inclusive, que se constitui como furo no campo das representações
[grifos do autor] (Elia, 1995: 107).
Para Elia (1995), se por um lado a psicanálise estabelece que a sexualidade é absoluta, no
sentido de que nenhum sujeito escapa às evidências do sexual, por outro lado, sustenta que a
19
O trecho correspondente na tradução é: “Algo não está incluído no conjunto das palavras, e esta ausência se
articula à castração. A demanda, por uma parte, e a coisa ausente, por outra, formam um todo discordante que é o
74
mesma é não-toda, isto é, não diz todo o sujeito. Encobrir a totalidade da experiência
subjetiva em torno do sexual seria eliminar aquilo que escapa à significação fálica, seria
recusar o mais-além do sexual. A psicanálise, portanto, afirma a exclusividade do sexual, sem,
no entanto, ignorar a dimensão de furo do sexual, a impossibilidade radical e estrutural de
significação. A noção de gozo em Lacan viria marcar a impossibilidade de subsunção total do
real pelo simbólico, garantindo a subjetividade para além de suas representações
inconscientes.
A partir do trajeto realizado por Lacan a fim de estabelecer a noção de sexuação,
podemos retirar conclusões cruciais para o tema da diferença sexual: a assunção do próprio
sexo é acompanhada da admissão do sexo do Outro (Brodsky, 2005). Em termos lacanianos,
isso significa priorizar o encontro do sujeito com a existência de outra posição frente à
castração, frente ao desejo e ao Outro gozo, sobre o encontro, dito traumático por Freud, com
a diferença sexual, referente à primazia da perspectiva imaginária do corpo. A sexuação,
então, a recusa ou a assunção por parte do sujeito de seu próprio sexo caminha em paralelo ao
reconhecimento da diferença sexual enquanto alteridade.
As teorias lacanianas da sexualidade dão margem a interpretações normativas, por
assinalarem o modelo binário e hierárquico dos sexos à constituição da alteridade. Por outro
lado, a partir da interpretação normativa que Butler (2002, 2003) realiza sobre a psicanálise,
Žižek (1999) sublinhará no pensamento lacaniano a noção de diferença sexual como real e
como conceito formal sem conteúdo. Para o autor, em última instância, o real tem que ser
completamente dessubstancializado, o que confere uma certa radicalidade à noção de
diferença sexual. Empenha-se, assim, em descaracterizar a distinção dos sexos de seu caráter
simbólico e imaginário.
correlato da inadequação do Outro à pessoa que o suporta: o objeto das demandas ocupa o lugar desta
inadequação. É por isso que a falta que é inerente à linguagem se refere finalmente ao corpo”.
CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS NOÇÕES PSICANALÍTICAS DE ALTERIDADE E
DIFERENÇA SEXUAL: o debate contemporâneo entre Judith Butler e Slavoj Žižek
Como vimos nos dois capítulos anteriores, a questão da sexualidade e da diferença
sexual perpassa de forma complexa a própria história do movimento psicanalítico.
Recentemente, estas noções têm sido problematizadas por autores que partem do pressuposto
de que, embora a sexualidade esteja estreitamente relacionada ao conceito de inconsciente e
de pulsão, ela não deixa de ser uma noção histórica e contingente. Partindo dessa
problematização, o presente capítulo analisará algumas questões que vem sendo relançadas
aos psicanalistas: a noção de diferença sexual deve se sustentar no modelo do dimorfismo?
Mesmo levando em consideração o modelo simbólico estruturalista de Lacan, as posições
sexuadas devem corresponder a um modelo binário e hierárquico? E finalmente, existe outra
possibilidade de pensar a noção de diferença e de alteridade na psicanálise para além do
dispositivo da diferença sexual? O que está em jogo nessas perguntas, para aqueles que
interpelam a psicanálise, é a repercussão cultural das teses sobre a diferença, tendo em vista
que a transformação de modelos histórico-contingentes da diferença sexual em um único
modelo universal caracterizaria uma teoria normativa, e, conseqüentemente, excludente.
Com o objetivo de aprofundar essas questões, analisaremos as críticas e as
contribuições de Judith Butler para a teoria psicanalítica a partir de sua interlocução com
Slavoj Žižek. Deteremos-nos especialmente nesses dois autores por entender que ambos se
encontram reconhecidamente envolvidos com os impasses contemporâneos que assolam a
psicanálise. Reconhecemos também que tanto um quanto o outro trazem importantes
contribuições ao pensamento psicanalítico.
Judith Bulter, lingüista norte-americana movida principalmente por uma proposta
política de inclusão e reconhecimento dos abjetos e dos gêneros não-inteligíveis (2002),
76
empenha-se em localizar nos discursos psicanalíticos a assunção da identidade de gênero,
ainda que seus autores não utilizem essa categoria conceitual. A partir da desconstrução de
conceitos caros a Freud e a Lacan, tais como complexo de Édipo, identificação e posições
sexuadas, a autora pretende comprovar sua tese de que as psicanálises freudiana e lacaniana
perpetuam as normas de gênero e da heterossexualidade, podendo assim ser reconhecidas
como um dispositivo de poder no sentido foucaultiano do termo.
Slavoj Žižek discute as críticas de Butler à psicanálise, empenhando-se em clarear
argumentos internos à própria teoria psicanalítica que sejam eficientes em distingui-la de um
saber comprometido com a normatividade. Acaba por propor uma concepção de diferença
sexual a partir do último ensino de Lacan, a de diferença sexual sem conteúdo.
Em um primeiro momento, deteremos-nos na discussão que se dá em torno do ensino
de Freud e, logo em seguida, na de Lacan. Além disso, ao focarmos o debate contemporâneo
nos pensamentos de Butler e Žižek, direcionamos-nos ainda para a contribuição dos dois
autores em relação à questão da subversão da ordem hegemônica.
3.1 Controvérsias acerca do complexo de Édipo e do conceito de identificação em Freud
O conceito de complexo de Édipo em Freud foi abordado no primeiro capítulo deste
trabalho. Retomaremos aqui alguns aspectos importantes deste conceito para o debate atual da
diferença sexual na psicanálise freudiana. Iniciaremos a discussão apresentando a
argumentação de Butler (2003) na construção de uma crítica ao complexo enquanto um
modelo explicativo da subjetividade atravessado pelas normas heterossexistas de gênero.
Em Problemas de Gênero (2003), a autora faz referência a dois textos freudianos, um
de 1917, Luto e Melancolia, e outro de 1923, O Ego e o Id. Os dois escritos se associam da
seguinte forma: se no primeiro Freud trabalha o processo melancólico como patológico, no
segundo aponta para o fato de que este se faz tipicamente presente na formação das
identificações causadas pela dissolução do complexo de Édipo e formadoras do núcleo do
ideal do ego. Sendo este último concebido por Freud como uma estrutura funcional do ego
que “visa o campo intersubjetivo e trabalha com modelos, normas e valores” (Mezan, 2006:
294), Butler (2003) conclui que é a partir deste que se constitui a identidade de gênero. A
partir do desenvolvimento de sua leitura, cunha o termo “melancolia de gênero” para designar
o procedimento a partir do qual uma norma se torna psíquica.
77
Como vimos anteriormente, o complexo de Édipo aparece desde o início da obra
psicanalítica, sofrendo muitas modificações até a sua elaboração definitiva
20
. Isso significa
dizer que Butler (2003) tomou o conceito como objeto de trabalho em um certo momento de
sua constituição, momento este que iremos tentar demarcar.
Segundo Mezan (2006), o movimento da concepção do complexo é paralelo ao do
conceito de identificação, pois enquanto este último não era desenvolvido, a relação da
criança com seus pais adquiria relevância apenas no nível da escolha de objeto, a influência
do triângulo edípico restringia-se ao “ato de eleger uma pessoa ou um tipo de pessoa como
objeto de amor” (Laplanche e Pontalis: 2001: 154). A partir do relato do caso do Homem dos
Lobos
(1996 [1918]) e do texto sobre o luto e a melancolia (1996 [1917]), ambos redigidos ao
mesmo tempo, o conceito de identificação ganha um formato mais preciso. Em O Ego e o Id,
de 1923, novas elaborações em torno do conceito o colocaram numa dimensão edipiana, não
mais sob a proteção do narcisismo.
Para resumir numa fórmula a relação entre o Complexo de Édipo e a
identificação, tal como ela se apresenta na constelação conceptual
presente, diremos que é a análise da identificação que fornece a
alavanca para o deslocamento do complexo da puberdade para a
infância. Esta modificação é crucial, já que, ocorrendo em época tão
precoce, o Édipo passa a ter a importância dos elementos infantis, o
que, segundo uma frase que citamos anteriormente, equivale a
equipará-los às pedras fundamentais da psicanálise (Mezan, 2006:
206).
As conseqüências do complexo na estruturação do sujeito passam a ser abarcadas por Freud
em termos de identificação: os investimentos da criança em relação a seus pais são
abandonados e substituídos por identificações que a estruturam psiquicamente. As instâncias
do sujeito passam a ser descritas como resquícios das diversas modalidades das relações de
objeto. A psicanálise acaba por conferir ao mecanismo da identificação o valor central de
operação pela qual o sujeito se constitui a partir da assimilação do outro como modelo.
20
Freud, nos seus últimos trabalhos teóricos, ainda se questionava sobre a inteligibilidade da sexualidade
feminina para a psicanálise, o que nos faz pensar o quanto o complexo de Édipo não teve um formato definitivo,
permanecendo de certa forma com pontos de abertura, o que também contribuiu para que os pós-freudianos o
retomassem.
78
Ainda com o intuito de melhor analisar as argumentações de Butler (2003) acerca do
complexo de Édipo e do conceito de identificação, cabe aqui expor brevemente a tese central
de Freud sobre a melancolia no texto de 1917. Do luto ao quadro clínico da melancolia há
duas especificidades que fazem dessa última um processo patológico: (1) o objeto é perdido
sem que o sujeito possa precisar no que, ou do que, consiste essa perda; (2) ocorre um
empobrecimento do ego, cujos sintomas são as críticas e as humilhações que o indivíduo
dirige a si próprio. O autor explica o quadro clínico da melancolia através do conceito de
identificação: a libido que esteve investida no objeto, a partir da perda deste, é retraída em
direção ao ego. Tal processo justificaria o porquê das recriminações que o sujeito dirige a si
mesmo, já que a identificação causaria uma coincidência entre o ego e o objeto, de modo que
o ódio dirigido até então para o objeto passa a recair sobre o ego. Essa equivalência entre ego
e objeto se dá porque a identificação típica da melancolia se apresenta segundo o modelo da
“incorporação”, segundo “o modo de relação com o objeto característico da fase oral, que
consiste na sua ingestão e destruição simultâneas” (Mezan, 2006: 186). Trata-se, então, de um
regresso da libido a uma organização pré-genital e narcísica, em que o objeto perdido é
introjetado no próprio ego.
Butler (2003) reconhece na articulação desses elementos teóricos o que considera ser
uma explicação, baseada em Freud, sobre como se constitui a identidade de gênero.
Valorizando a tese psicanalítica acerca do tabu do incesto, sua sugestão principal se torna: se
a melancolia ocorre a partir da perda de um objeto de amor, então, nos é válida para pensar a
formação de gênero, pois esta, segundo a autora, seria inaugurada por uma perda de objeto,
aquele interditado pela proibição do incesto. O próprio Freud, em O Ego e o Id (1996 [1923]),
identifica o processo melancólico, antes visto sob seu caráter patológico, com o procedimento
típico da constituição do sujeito, em que as identificações produzidas pela dissolução do
complexo de Édipo formam o núcleo do ideal do ego.
Quando acontece uma pessoa ter de abandonar um objeto sexual,
muito amiúde se segue uma alteração de seu ego que só pode ser
descrita como instalação do objeto dentro do ego, tal como ocorre na
melancolia. [...] Pode ser que essa identificação seja a única condição
em que o id pode abandonar seus objetos. De qualquer maneira, o
processo, especialmente nas fases primitivas de desenvolvimento, é
muito freqüente, e torna possível supor que o caráter do ego é um
79
precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém a
história dessas escolhas de objeto (Freud, 1996 [1923]: 42).
Essa é a ponte para Butler (2003) afirmar que, sendo tanto o complexo de Édipo quanto o seu
herdeiro, o ideal do ego, instrumentos de consolidação da identidade masculina e feminina, a
assunção do gênero, em Freud, se inicia com a perda de objeto de amor provocada pelo tabu
do incesto. Sob seu ponto de vista, a interdição do incesto, seja em Freud
21
ou em Lévi-
Strauss
22
, serve à naturalização da distinção entre a natureza e a cultura. No caso da teoria
freudiana, a lei que proíbe o incesto aparece tanto como elemento central na fundação da
civilização quanto na constituição do sujeito, tendo como função incidir sobre a sexualidade
tida como “natural” e “irrestrita”.
A autora critica o estatuto de universalidade conferido à proibição do incesto por Freud
e Lévi-Strauss. Mezan (2006), referindo-se a uma das primeiras menções freudianas ao
conflito edípico, feita em uma carta a Fliess (Freud, 1996 [1987b]) destaca como
“surpreendente” a universalidade que Freud atribui a esta constelação de sentimentos retratada
na lenda do Rei Édipo: “Cada pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na fantasia,
exatamente um Édipo como esse” (Freud, 1996 [1978b]: 316). No entanto, o que para Mezan
(2006) não se configura um problema, para Butler (2003), trata-se de negligenciar o que seria
um fato: a perspectiva psicanalítica é baseada em um formato específico de sociedade, aquela
que tem por norma a heterossexualidade e a opressão das mulheres. A idéia de que o tabu do
incesto marca a inauguração da cultura e do sujeito seria uma comprovação de sua tese, pois
através dele se estaria delimitando as formações sociais e subjetivas tal como quer a ideologia.
Butler (2003) realiza uma releitura dessa interdição, cuja intenção é trazer à tona o
que, segundo a autora, encontra-se implícito na teoria freudiana: a proibição, junto ao tabu do
incesto, da modalidade de desejo homossexual. Ao longo da construção do conceito de
complexo de Édipo, Freud evidenciaria o tabu como uma lei que incide sobre a criança
interditando o seu objeto de amor parental, seja este do mesmo ou do outro. No entanto,
Butler (2003) acrescenta que, em se tratando de uma modalidade de desejo homossexual, não
apenas o objeto de mesmo sexo ficaria interditado, mas também a modalidade de laço em si.
Nesse sentido, Freud não negaria a existência de um laço primário da criança com o genitor
do mesmo sexo, tanto que admite tanto a mãe quanto o pai como objetos de desejo para o
21
Os textos freudianos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, de 1905, e “Totem e Tabu”, de 1913, são
os citados por Butler (2003) na discussão sobre a interdição do incesto.
80
menino. O seu equívoco estaria no desfecho que dá a cada um desses laços, momento em que
recorreria a uma distinção entre eles, segundo seu cunho homo ou heterossexual. A
modalidade de escolha objetal heterossexual consolidaria a identidade de gênero,
permanecendo presente em todo o desenvolvimento do sujeito, com a única diferença de que,
com a dissolução do complexo, seria deslocada para outros objetos que não o progenitor. Ao
contrário, a modalidade de desejo homossexual seria reprimida junto com o objeto do mesmo
sexo. A relação primária de cunho homossexual seria recalcada na evolução do Édipo e na sua
dissolução.
Butler (2003) reconhece, assim, uma distinção quanto ao desfecho esperado por Freud
da relação edípica de cunho homo ou heterossexual. Enquanto essa última dependeria de um
processo de luto normal, em que a libido retirada do objeto perdido se desloca para novos
objetos, a primeira seria substituída por uma identificação melancólica, em que o objeto
perdido é incorporado ao ego. A autora defende que a psicanálise restringe o processo
melancólico ao destino da escolha objetal homossexual, identificando a exclusão de tal
modalidade de relação através da sua transformação em um tipo especial de identificação.
No caso de uma união heterossexual proibida, é o objeto que é
negado, mas não a modalidade de desejo, de modo que o desejo é
desviado desse objeto para outros objetos do sexo oposto. Mas no
caso de uma união homossexual proibida, é claro que tanto o desejo
como o objeto requerem uma renúncia e, assim, se tornam sujeitos às
estratégias de internalização da melancolia (Butler, 2003: 93).
Em A Organização Genital Infantil, de 1923, Freud começa a valorizar o papel da castração
para o complexo de Édipo, de forma que em 1924, no texto A Dissolução do Complexo de
Édipo,
sua tese central passa a ser a de que o complexo e a fase fálica sucumbem à ameaça de
castração, dando origem ao período de latência. O complexo de castração é centrado numa
fantasia construída pela criança frente ao enigma da distinção anatômica dos sexos. O autor
demonstra a significação narcísica que o pênis adquire nas construções fantasmáticas tanto
dos meninos quanto das meninas, pois ao mesmo tempo em que o menino teme a castração a
partir da ameaça paterna frente à sua atividade sexual, a menina percebe a ausência do pênis
como um dano sofrido, pretendendo negá-lo, compensá-lo ou repará-lo. Adquirindo ao longo
22
A referência bibliográfica em que Butler (2003) se baseia é: LÉVI-STRAUSS, Claude. “The Principles of
Kinship”. In: The Elementary Structures of Kindship. Boston: Beacon Press, 1969.
81
do movimento psicanalítico um caráter fantasmático, a angústia de castração pode ser
resultado de experiências traumáticas diversas, que intervém sob um elemento de perda, de
separação de um objeto. Nessa direção, adquire uma função primordial na dissolução do
complexo de Édipo e sua substituição pelo ideal do eu. Tomando como ilustração o modelo
masculino, o autor afirma:
Se a satisfação do amor no campo do complexo de Édipo deve custar
à criança o pênis, está fadado a surgir um conflito entre seu interesse
narcísico nessa parte de seu corpo e a catexia libidinal de seus objetos
parentais. Nesse conflito, triunfa normalmente a primeira dessa forças:
o ego da criança volta as costas ao complexo de Édipo (Freud, 1996
[1924]: 196).
A articulação freudiana entre os complexos de Édipo e da castração é outro ponto de objeção
de Butler (2003), que subentenderá na concepção do “medo da castração” um “medo de
castração”. Sua sugestão se inicia com a seguinte constatação: se Freud aponta que a criança
será obrigada a fazer uma escolha entre dois tipos de objeto, ou mais precisamente, entre dois
tipos de predisposições sexuais (masculina e feminina), também demonstra ser mais comum a
escolha heterossexual. A autora propõe, a partir de então, que essa normalização da escolha
heterossexual não pode ser explicada pelo medo do menino frente à ameaça da perda do pênis
infligida pelo pai, mas sim pelo medo de castração, isto é:
[d]o medo da ‘feminização’, associado com a homossexualidade
masculina nas culturais heterossexuais. Com efeito, não é
primordialmente o desejo heterossexual pela mãe que deve ser punido
e sublimado, mas é o investimento homossexual que deve ser
subordinado a uma heterossexualidade culturalmente sancionada
(Butler, 2003: 94).
Em seu livro sobre os limites materiais e discursivos do “sexo”, Cuerpos que importan
(2002), a autora parte da distinção própria à psicanálise entre repressão e foraclusão para
esclarecer o valor do assunção de gênero na obra freudiana. Anterior à repressão que incide
sobre o vínculo amoroso da criança pelo genitor de sexo oposto estaria a necessidade de
82
foraclusão da união com o objeto de mesmo sexo, em que esse último conceito concebe uma
outra ordem de proibição, que se constitui fora do circuito de auto-reflexão.
A autora nos confere, então, a seguinte leitura: a relação objetal cujo objetivo é
heterossexual exige a repressão do objeto, que desencadeando um processo de luto, desloca a
libido para outros objetos que não o interditado, mas de mesmo sexo que este. Já a relação
objetal cujo objetivo é homossexual exige a foraclusão do objetivo, o que é possível pelo
desenvolvimento de um processo melancólico, já que, como nos diz Freud, a transformação
da libido do objeto em libido narcísica “obviamente implica um abandono de objetivos
sexuais, uma dessexualização – uma espécie de sublimação, portanto” (Freud, 1996 [1923b]:
43).
A razão para que a psicanálise faça essa distinção entre o vínculo amoroso da criança
com o genitor de mesmo sexo, que deve ser foracluído, e aquele com o de sexo oposto, que
deve ser reprimido, é justamente o que relacionaria essa teoria a uma ideologia heterossexista.
Butler (2002) pretende demonstrar que a teoria acerca da identidade sexual em Freud não
admite o fato de que tanto a heterossexualidade quanto a dominação masculina são normas
sociais e contingentes, vulneráveis ao campo histórico e passíveis de transformação. No seu
entender, o saber psicanalítico acaba por apelar a uma anterioridade ao campo do social, cuja
função seria impor limites nos conformes da matriz heterossexual. A crítica recai, assim,
sobre a tendência da psicanálise a universalizar identidades sexuais quando as normas de
gênero são contextuais. O conhecimento psicanalítico sobre a sexualidade acabaria
funcionando como um dispositivo de poder, no sentido foucaultiano do termo, pois
[...] a lei repressiva efetivamente produz a heterossexualidade, e atua
não como código meramente negativo ou excludente, mas como uma
sanção e, mais apropriadamente, uma lei do discurso, distinguindo o
que é dizível do que é indizível (delimitando e construindo o campo
do indizível), o que é legítimo do que é ilegítimo [parênteses da
autora] (Butler, 2003: 101/102).
A autora conclui que é o desejo da psicanálise pela diferença sexual que desvaloriza a função
do mesmo no processo de constituição subjetiva. Enquanto dispositivo de saber, a psicanálise
estaria toda marcada por esse “desejo”, tendo em vista a sua constituição como um a priori no
qual se baseiam posteriormente as construções teóricas subjetivas. Ainda baseada em
Foucault, Butler (2003) leva esse raciocínio adiante, defendendo que as teses freudianas
83
acabam por modular as formações de gênero, restringindo e delimitando os limites do
enunciável, como também produzindo o campo da visibilidade.
A autora utiliza as categorias “gêneros inteligíveis” e “gêneros não inteligíveis”, cuja
fronteira seria delimitada, no caso da psicanálise, como que por uma fórmula: a de que os
opostos se atraem. Os autores psicanalíticos atribuiriam retroativamente o desejo por uma
mulher a uma posição desejante necessariamente masculina. Butler (2002) trata essa
formulação como uma conseqüência da lógica freudiana e aponta para mais outra, a de que, se
através da identificação melancólica e de seu efeito de incorporação o objeto perdido acaba
por ser introjetado ao ego, então, o sujeito deve escolher como objeto de amor aquilo no qual
tem medo de tornar-se.
Nesse ponto da tese de Butler, Žižek (1999) comenta a ambigüidade inerente a seu
argumento que, para o autor, oscila entre duas posições subjetivas: a identidade de gênero
assumida através da incorporação melancólica do mesmo ou como defesa contra assumir a
posição subjetiva (a identidade de gênero) referente ao sexo oposto. O movimento pendular
da autora se dá entre a idéia de que uma mulher ama um homem por este ser um homem e a
hipótese de que o ama justamente para tornar-se uma mulher (desejante por um homem e
desejada por ele). Trata-se, então, de uma confusão entre a noção freudiana de escolha de
objeto e a teoria da identificação.
O conceito inicial do complexo de Édipo ou a sua forma “simples e positiva” limitava-
se à dimensão das escolhas de objeto. Tanto o conflito edipiano masculino quanto o feminino
eram descritos da mesma forma: a criança se sente atraída pelo progenitor do sexo oposto e
hostiliza o do mesmo sexo. Com a inexistência dos conceitos de identificação e das
organizações pré-genitais da libido, o complexo edípico era localizado no momento de
subordinação das pulsões parciais à zona genital, ou seja, na puberdade. A partir da
elaboração das teses sobre o narcisismo, que tem uma face voltada para o ego e outra para o
objeto, e sobre a identificação, Freud começa a traçar a gênese do ego, na qual os fatores
intersubjetivos assumem um lugar central na estruturação do sujeito. É sob o ângulo do ego
que o complexo passa a ter sua forma completa, com sentimentos ambivalentes frente aos dois
genitores. Nesse contexto, Freud observa que
[i]sso nos conduz de volta à origem do ideal do ego; por trás dele jaz
oculta a primeira e mais importante identificação de um indivíduo, a
sua identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal. Isso
aparentemente não é, em primeira instância, a consequência ou o
84
resultado de uma catexia do objeto; trata-se de uma identificação
direta e imediata, e se efetua mais primitivamente do que qualquer
catexia do objeto. Mas as escolhas objetais pertencentes ao período
sexual e relacionadas ao pai e à mãe parecem normalmente encontrar
seu desfecho numa identificação desse tipo (melancólica), que assim
reforçaria a primária [parênteses nosso] (Freud, 1996 [1923b]: 44).
Como sugerido em nota de pé de página pelo editor, tomemos o capítulo sobre identificação
do texto freudiano de 1921, Psicologia de Grupo e Análise do Ego, a fim de esclarecer do que
se trata essa identificação “primária”. Nas palavras do próprio Freud:
É fácil anunciar numa fórmula a distinção entre a identificação com o
pai e a escolha deste como objeto. No primeiro caso, o pai é o que
gostaríamos de ser; no segundo, o que gostaríamos de ter, ou seja, a
distinção depende de o laço se ligar ao sujeito ou ao objeto do ego. O
primeiro tipo de laço, portanto, já é possível antes que qualquer
escolha sexual de objeto tenha sido feita. É muito mais difícil fornecer
a representação metapsicológica clara da distinção [grifos do autor]
(Freud, 1996 [1921]: 116).
Este texto nos interessa aqui na medida em que Freud é conclusivo em afirmar que a
identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto, de modo que a
vinculação objetal libidinal lhe é posterior. Essa distinção temporal entre identificação
primária e escolha de objeto libidinal, não reconhecida por Butler, comporta a tese de que a
primeira é um derivado da fase oral da organização libidinal, em que o objeto que prezamos é
assimilado (e aniquilado como tal) por ingestão.
Em contraposição ao esquema de Butler que vincula necessariamente a perda do objeto
edípico do mesmo sexo à identificação melancólica, Freud, em O Ego e o Id (1996 [1923]),
reconhece uma dissimetria entre a evolução do processo de identificação da menina e do
menino. No caso deste último, a tomada do pai como modelo e como objeto de desejo são
mutuamente excludentes, de forma que a identificação no menino não corresponde à retenção
melancólica do objeto perdido. Esta seria mais comum no Édipo feminino, já que, a
identificação da menina com o pai reforçaria os traços masculinos de seu caráter, sem, no
entanto, conduzir à homossexualidade. Essa distinção se dá porque, no caso da menina, há a
85
possibilidade do desejo de ser um homem ser substituído pelo desejo de possuir um homem,
através das séries de equivalência apresentadas pelo autor em 1917, no texto As
Transformações do Instinto Exemplificadas no Erotismo Anal
. No entanto, o próprio Freud,
em O Ego e o Id (1996 [1923]), ainda não dá a devida importância a dissimetria entre os
Édipos feminino e masculino, acabando por enfocar outra reflexão, aquela acerca da
bissexualidade constitucional.
Por outro lado, Freud reconhece o quanto é difícil obter uma inteligibilidade sobre as
primitivas escolhas de objeto e identificações, afirmando que na fase oral primitiva do
indivíduo, a catexia do objeto e a identificação são indistinguíveis. Atribuirá tal complicação à
bissexualidade original e constitucional da criança e à sua conseqüente versão completa do
Édipo, que faz com que um menino não tenha apenas uma relação ambivalente frente ao pai e
uma escolha objetal afetuosa pela mãe, como também o inverso.
Mais complicado ainda se torna explicar a dissolução do complexo, visto que a
presença de duas disposições sexuais simultâneas dá origem a conflitos que complexificam a
assunção do sexo. O autor se vê, assim, às voltas com a necessidade de explicar como as
quatro tendências em que o complexo consiste se transformarão de forma a produzir uma
identificação paterna ou uma identificação materna, sendo que a primeira “preservará a
relação de objeto com a mãe, que pertencia ao complexo positivo e, ao mesmo tempo,
substituirá a relação de objeto com o pai, que pertencia ao complexo invertido; o mesmo será
verdade, mutatis mutandis, quanto à identificação materna” (Freud, 1996 [1923b]: 46). Ainda
nesse texto, a contribuição do autor para o tema se refere à idéia de que uma das disposições
sexuais prevalecerá em qualquer indivíduo, de forma que uma identificação se tornará mais
intensa e consolidada.
Quanto à noção de bissexualidade em Freud, Butler (2003) retoma sua crítica frente ao
pressuposto psicanalítico de que apenas os opostos de atraem.
A conceituação da bissexualidade em termos de predisposições,
feminina e masculina, que têm objetivos heterossexuais como seus
correlatos intencionais sugere que, para Freud, a bissexualidade é a
coincidência de dois desejos heterossexuais no interior de um só
psiquismo.
Com efeito, a predisposição masculina nunca se orienta
para o pai como objeto de amor sexual, e tampouco se orienta para a
mãe a predisposição feminina (a menina pode assim se orientar, mas
isso antes de ter renunciado ao lado ‘masculino’ da sua natureza
86
disposicional). Ao repudiar a mãe como objeto do amor sexual, a
menina repudia necessariamente sua masculinidade e ‘fixa’
paradoxalmente sua feminilidade, como uma consequência. Assim,
não há homossexualidade na tese de bissexualidade primária de Freud,
e só os opostos se atraem [grifos da autora] (Butler, 2003: 96).
Como podemos ver, para a autora, a bissexualidade integra uma concepção maior que associa
de forma rígida e a priorística identidade e objetivo sexuais. A disposição feminina estaria
condicionada a um objeto amoroso masculino e vice-versa.
Outro ponto crucial para Butler (2003) em relação à tese da bissexualidade recai sobre
os momentos em que Freud não abre mão da idéia de que existe uma “tendência” ou uma
“predisposição” que acabará por provocar o recalque da bissexualidade primária em direção à
consolidação identitária de gênero. A psicanálise freudiana estaria sugerindo a existência da
bissexualidade apenas enquanto uma configuração sexual que deve ser superada pelo
fortalecimento de uma sexualidade “secundária”, limitando-se a uma interpretação
evolucionista da identidade de gênero, influenciada pelas normas hegemônicas.
A noção de bissexualidade primária é criticada por referir-se restritamente a um
“antes” da inserção do indivíduo na cultura, pressupondo um “depois” e servindo à
naturalização da distinção entre natureza e cultura. Assim como o complexo de Édipo, as
disposições bissexuais, oferecendo uma maneira de situar a construção primária de gênero, é
alvo de contestações quanto à fixidez das posições masculina e feminina, rigidez que
perpetuaria o modelo da diferença sexual anatômica para se pensar a questão da alteridade.
Esta leitura acerca das teses freudianas, segundo a qual a psicanálise é um dispositivo
de poder que serve à reprodução da heterossexualidade compulsória, não é unânime. Alguns
autores se empenham em demonstrar o equívoco dessa interpretação, esclarecendo os
conceitos no interior da própria teoria.
A concepção freudiana de que existiria uma bissexualidade original em todo ser
humano é uma interpretação reconhecidamente influenciada por Wilhelm Fliess, de quem
Freud acaba se distanciando. O autor se mostra reticente quanto a sua posição frente à idéia de
bissexualidade, de forma que, mesmo afastando-se dela de uma maneira geral, em alguns
momentos a retoma. Por exemplo, torna-se difícil conciliar essa noção com a da primazia do
falo, tese segundo a qual este prepondera para ambos os sexos. Além dessa ambigüidade
teórica, o termo também acaba por complicar o entendimento das reflexões de Freud, já que o
que o autor pretende dizer, muitas vezes, se distancia daquilo que a palavra parece indicar. Já
87
em 1905, no texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, o conceito de bissexualidade
designa uma monossexualidade inicial, a existência de uma só libido, a masculina. A questão
da bissexualidade se colocaria, então, apenas para as mulheres e para os homens
homossexuais. No entanto, nesse mesmo livro, em nota acrescentada em 1915, Freud sublinha
a relevância para a psicanálise de se compreender o “masculino” e o “feminino” no sentido de
“atividade” e “passividade”.
André (1998) observa que essa nota foi acrescentada por Freud aos Três Ensaios no
momento em que está elaborando o conceito de pulsão, cuja originalidade é fundamental para
distinguir a leitura psicanalítica da sexualidade das demais; questão cara àqueles que se
empenham em defender a psicanálise das críticas que vem recebendo quanto à sua
potencialidade de normatização. A pulsão não é organizada a partir do pólo macho/fêmea,
mas sim em torno de oposições fundamentalmente assexuadas, como atividade/passividade e
sujeito/objeto, o que instaura novos entendimentos acerca da diferença sexual. O
deslocamento que Freud faz de uma visão anatomo-biológica da sexualidade e do corpo
humano para uma teoria pulsional desemboca em um outro deslocamento, relevante ao nosso
tema: a polaridade pulsional assume o lugar da diferença entre os sexos. Conseqüentemente,
do ponto de vista do inconsciente, a atração entre homem e mulher não é um dado a priori,
como faz entender Butler (2003) a partir da tese de que Freud normatiza as normas de gênero
e a heterossexualidade.
O conceito de pulsão passa a ser valorizado no debate contemporâneo por aqueles que
se empenham em esclarecer os equívocos das leituras pós-freudianas no que se refere ao tema
da sexualidade e da alteridade. Duas teses retiradas da teoria das pulsões são de grande valor
nesse sentido; são elas: (1) a de que a diferença sexual não corresponde à diferença sexual
sustentada pelo modelo do dimorfismo sexual, segundo o qual há uma divisão binária e
hierárquica dos sexos e (2) não há objeto predeterminado da pulsão, de forma que esta não
prescreve comportamentos individuais.
Elia (1995), em Corpo e Sexualidade em Freud e Lacan, discorre sobre a distinção
metodológica da psicologia e da psicanálise, contribuindo para um maior esclarecimento
acerca da novidade freudiana em relação ao corpo e à sexualidade. A primeira disciplina teria
como objeto o indivíduo, categoria cujo estatuto passa pela ontologia e cuja lógica insiste
numa concepção psicobiológica do mesmo, pois depende da natureza e de suas regularidades
reconhecidas. Enquanto isso, o campo pulsional teorizado por Freud divide o espaço
psicofísico, rompendo com a unidade individual e trazendo à tona o fato de que não há
88
recobrimento do corpo orgânico pelo pulsional. A sexualidade não é apreensível no interior de
um sistema psicobiológico, o que deixa de fora a própria diferença sexual anatômica.
Na dimensão do inconsciente, não há representação da categoria “homem” ou
“mulher”. Isso se dá na dimensão imaginária e mesmo na simbólica, porém a sexualidade
aparece como uma questão do sujeito, pois este se constitui de forma atrapalhada em relação a
seu sexo. Na verdade, essa interpretação psicanalítica da sexualidade depende radicalmente da
noção de sujeito que postula, em que este é dividido pelo inconsciente. A postulação de
inconsciente traz uma conseqüência radical para a idéia de indivíduo, pois este nunca mais é
visto pela psicanálise como tal.
Freud constata que a diferença de órgãos apresentada pela anatomia
do corpo humano não significa, ao nível do inconsciente, como uma
divisão entre dois sexos. [...] Freud chegará – em vez de se apoiar
numa clivagem entre dois sexos – a inscrever a divisão que se
introduz com a sexualidade, no ich, no próprio sujeito do inconsciente
(André, 1998: 21/22).
Se, em 1905, Freud já apontava para a impertinência de se pensar “masculino” e “feminino”
em
seu
sentido
biológico
ou
sociológico,
designando-os
pela
polaridade
atividade/passividade, postulará a partir daí uma série de outras oposições até anunciar a
primazia do falo para ambos os sexos e o complexo de castração.
É a isso que Freud chama o falo, isto é, o pênis enquanto podendo
faltar. Em outras palavras, o menino, diante do órgão genital
feminino, vê alguma coisa, mas o que vê não é um sexo feminino, é a
castração. À partição masculino-feminino que a anatomia sexual
parece colocar em evidência, o saber inconsciente prefere, de alguma
forma, a oposição não-castrado/castrado (André, 1998: 22).
A partir do estudo das perversões, Freud reconhece que alguns sujeitos, diante do órgão
genital feminino, têm duas reações contrárias e simultâneas, a de constatar a falta do pênis e a
de pronunciar que ele está presente. Tal observação culmina na conclusão de que a polaridade
não castrado/castrado pode se produzir no interior do sujeito. Ampliando essa tese para além
do campo da perversão, o autor defende a existência de uma clivagem subjetiva em todos os
89
sujeitos, mesmo que as versões desta divisão entre o desejo e o real se dê de forma distinta em
cada uma das estruturas clínicas. A diferença sexual em Freud deve ser localizada entre duas
posições do sujeito, sendo estas representadas pela clivagem do Id e pelos pólos
atividade/passividade e eu/objeto.
Outra contribuição do conceito de pulsão para o debate contemporâneo acerca da
sexualidade em Freud se inicia a partir da noção de objeto. Enquanto o instinto designa um
padrão fixo de comportamento, comum a todos os membros de uma espécie, e exige um
objeto específico e pré-determinado de satisfação, a pulsão constitui-se como uma medida de
trabalho imposta pela ligação do psiquismo com o corpo, impossibilitando a pré-determinação
do objeto. A pulsão não traz consigo um objeto específico e nem adequado, já que não há
recobrimento apropriado do corpo anatômico pelo pulsional.
O objeto da pulsão, como já foi claramente demonstrado
anteriormente, é o que há de mais variável numa pulsão, sendo
escolhido tão-somente por prestar-se mais proficientemente à
satisfação, na contingência de uma dada situação singular [grifo do
autor] (Elia, 1995: 47/48).
Do ponto de vista pulsional não há prescrição de objeto e nem de comportamento individual,
tese que vem demonstrar o fracasso das possíveis soluções padronizadas e normativas do
Édipo sublinhadas por Butler (2002, 2003). Soler (2005) chama a atenção para o trio
conceitual com o qual Freud explica a sexualidade humana: pulsão, identificação e escolha de
objeto. Para a autora, através do complexo de Édipo e da teoria da identificação, o autor dá
consistência às normas, modelos, obrigações e proibições vindas do discurso do Outro com
relação à identidade anatômica. Enquanto é conferida à fase edipiana a função de corrigir a
sexualidade infantil pela unificação, através do processo de identificação, das pulsões
perversas polimorfas, Freud descreve como a solução padronizada heterossexual se impõe ao
complexo de castração, ao preço de sacrifícios e fiascos, além do caráter atípico conferido a
outra configuração. No entanto, o autor reconhece a impossibilidade da saída edípica pré-
determinada ser realizada plenamente, tanto que demonstra os limites que lhe impõe as
pulsões recalcadas, que não cessariam de retornar no sintoma.
A partir do texto freudiano, mas indo além deste, Lacan cunha o termo “sexuação”
para enfatizar como o sexo não se determina segundo um dado anatômico, mas segundo a
relação do sujeito com a castração, essa sim, reveladora de uma dissimetria entre homens e
90
mulheres. O deslocamento realizado por Freud da questão da diferença dos sexos para a
divisão do sujeito será ampliado em Lacan, para quem, o Édipo assume um caráter estrutural,
como veremos a seguir.
3.2 Controvérsias acerca das noções de diferença sexual em Lacan
O percurso lacaniano que se dá em torno da sexualidade e da diferença sexual foi
desenvolvido no segundo capítulo deste trabalho. Nosso intuito, nesse momento, é o de
analisá-lo a partir do debate atual sobre a noção de alteridade na psicanálise. Lacan é
referência imprescindível na discussão suscitada pelo contexto contemporâneo das novas
sexualidades, porque, ao mesmo em que deu continuidade ao pensamento de Freud, foi além
deste, propondo teses de repercussões polêmicas tanto dentro da comunidade psicanalítica
como fora dela. Iremos seguir a mesma direção de seu trabalho, tomando como ponto de
partida conceitos originados em sua fase estruturalista até alcançar a sua tentativa de abarcar
teoricamente a dimensão do real. Para melhor apresentarmos as discussões entre os autores
contemporâneos diante das formulações lacanianas, dividiremos este subcapítulo em dois
eixos, um referente ao contexto teórico do simbólico estrutural e o outro às fórmulas da
sexuação. Posteriormente, trabalharemos as propostas de Judith Butler e Slavoj Žižek que vão
ganhando forma ao longo do debate: as normas de gênero histórico-contingentes e a diferença
sexual formal sem conteúdo; o ato ético e os deslocamentos disruptivos biopolíticos.
3.2.1 A análise crítica do simbólico estrutural
A quarta concepção do complexo de Édipo freudiano ganha em Lacan um estatuto
estrutural. Isso é possível porque é nesta passagem que o seu conteúdo empírico deixa de ser
valorizado como determinante, perdendo importância para o aspecto simbólico da oposição
presença/ausência do pênis. A divisão dos sexos deixa de se relacionar com o par
masculino/feminino quando Freud observa que o órgão genital da mulher não é representado
por um esquema corporal que lhe seja próprio. A partir daí, o autor confere uma primazia ao
91
falo enquanto operador único para os dois sexos, desvalorizando a função da anatomia para a
constituição da sexualidade.
O pênis, porém, não é somente uma parte do corpo; como elemento
diferencial entre si e os outros, ele possui o valor simbólico de definir
o sujeito; em outras palavras, um valor narcisista que o converte em
Falo (Mezan, 2006: 284).
Em termos lacanianos, não há significante que represente o órgão feminino, o que impede que
a oposição se coloque em termos de masculino e feminino; esta passa a ser representada pelo
par fálico/castrado. Como efeito desta torção, o conceito de castração freudiano também se
desloca, passando a ser priorizado em sua dimensão fantasmática e não em suas versões
experimentais, o que, para Mezan (2006), suscita uma nova elaboração sobre a sexualidade
feminina em sua especificidade, visto que passa a ser reconhecida em sua não-simetria com a
masculina. A quarta fase do complexo de Édipo inauguraria, assim, uma verdadeira tentativa
de dar lugar à diferença.
A anatomia é o destino, mas não a tragédia. A experiência da
diferença sexual anatômica já o mostra, pois não é a vagina, como
elemento diferencial positivo, que impressiona a criança, mas a
ausência de um signo.
Estamos, nunca é demais repeti-lo, no domínio
simbólico, em que o Falo coincide com a Fala, jamais com a falha. O
simbólico concerne à constituição do sujeito, independentemente do
sexo empírico ser o masculino ou o feminino. Como a repetição e o
Édipo, a castração é da ordem do transcendental, dos princípios
fundadores, nada tendo a ver com a vivência psicológica ou com a
empiria genital [grifo do autor] (Mezan, 2006: 286).
Lacan enfatiza no Édipo freudiano seu caráter constituinte para o sujeito, estando este para
além da imaginária relação afetiva da criança com os pais; que passa a ser entendida como a
forma fenomenal do complexo, resultado da sua forma estrutural, e não sua condição.
Adquirindo uma compreensão que não se esgota nos conteúdos genitais empíricos de homens
e mulheres e nem no triângulo familiar, o Édipo funciona como princípio transcendental,
aproximando-se a uma “categoria vazia” (Mezan, 2006: 287).
92
Segundo Lacan, o sujeito só passa a existir sob condição de um recalcamento primário
dos prazeres incestuosos e pré-individuados associados ao corpo materno. Recorrendo à
proibição do incesto e à exogamia de Lévi-Strauss, o autor pensa a cultura como um conjunto
de estruturas e significações lingüísticas, em que a lei do incesto institui esse recalque
primário que funda o sujeito. Instaurando a perda do objeto e sua conseqüente insatisfação, a
lei paterna, por intermédio da linguagem, propicia a busca do sujeito pelo prazer
irrecuperável.
Apesar de reconhecer o mérito de Lacan por romper com visões essencialistas sobre o
sujeito e, conseqüentemente, sobre homens e mulheres, Butler (2003) considera que o autor
constrói uma outra ontologia do ser, já que insiste em uma concepção do simbólico como uma
estrutura universal que precede a existência, pré-determinando-a. O entendimento de que o
“ser” é produzido pelas estruturas de significação, podendo denotar posições e funções
variáveis, faz-se plausível a partir do apelo a conceitos transcendentais, qualidade que a autora
questiona, tendo em vista a sua anterioridade frente às subjetividades. Ao invés de conferir
explicações, tais conceitos passam a fornecer e forçar as delimitações entre os campos do que
é inteligível e do que não é. Assim, se a diferença sexual, sob o ponto de vista da psicanálise,
não é a anatomo-biológica, é, no entanto, ainda restrita a duas outras posições do interior da
linguagem: a de “ser” e a de “ter” o falo.
Na visão de Butler (2003), os mecanismos de diferenciação descritos pelo autor ficam
sempre atrelados à figura do pai, enquanto à mãe é conferido o poder de alienação, de
manutenção da indistinção entre ela e a criança. Se o Édipo prescreve duas funções, denotadas
“paterna” e “materna”, a partir das quais o sujeito depende para a sua constituição e para a sua
entrada no simbólico e na cultura, então, o raciocínio lacaniano normatiza a dualidade mulher-
natureza/homem-cultura. Segundo Arán (2008b), tomar como um a priori transcendental a
equação mãe-alienante/pai-separador faz da psicanálise um saber comprometido com as
normas de gênero, tendo em vista que o simbólico e a diferença ficam localizados apenas no
âmbito do “masculino”, associado à função “paterna”; enquanto que a dimensão “feminina” e
“materna” se restringiria ao domínio do “fora”, ou ainda, daquilo que é “anterior” (ao
simbólico ou à cultura, ou ainda, à civilização).
Não há portanto inquirição da ontologia per se, nenhum acesso ao ser,
sem uma inquisição prévia do ‘ser’ do Falo, a significação
autorizadora da lei que toma a diferença sexual como pressuposto de
sua própria inteligibilidade [grifo da autora] (Butler, 2003: 74).
93
A leitura de Butler (2003) enfatiza que o discurso psicanalítico é atravessado pela matriz
heterossexual, que acaba por instaurar a diferença sexual como um pressuposto da lei
simbólica, fazendo com que não haja acesso ao ‘ser’ sem o encontro com a diferença sexual.
Até então, a autora está referida às idéias desenvolvidas no texto lacaniano A Significação do
Falo
(1998 [1958]) a fim de demonstrar como as versões estruturais do Édipo e da castração,
ambos centrados no falo como significante, aproximam-se de uma inteligibilidade
heterossexista, cujo efeito é prescrever a dualidade dos sexos, ainda que disfarçada em outra
roupagem, que não a do “masculino” e a do “feminino”.
Neste trabalho, Lacan trata da relação do homem com a linguagem e dos seus efeitos
sobre o primeiro. O atravessamento do sujeito pela estrutura da linguagem resulta no fato de
que o falo passa a ter uma função de significante, que é o ponto de partida para o autor
apontar as estruturas sob as quais serão submetidas as relações entre os sexos. Descreve,
assim, duas posições, a de “ser” e a de “ter” o falo, sendo que a primeira é vista como
referência para se pensar a posição da mulher, enquanto a segunda fica associada à posição do
homem.
Onde Lacan diz que a posição das mulheres de “ser” o falo se refere a “ser o
significante do desejo do Outro”, Butler (2003) lê que o “ser” feminino é ser objeto de um
desejo masculino heterossexualizado. Essa definição do feminino, em sua concepção, não
confere a ele uma dimensão alteritária, visto que é atravessada por uma interpretação
masculina acerca das mulheres. Entender a mulher enquanto aquilo que ela é para o homem é
uma auto-elaboração masculina que não compreende o outro em sua diferença, mas apenas
em sua objetificação.
A autora chama a atenção ainda para a dialética conferida à identidade feminina: “ser”
o falo e, ao mesmo tempo, ser seu Outro: a mulher, a quem falta o falo, é também quem é o
falo. Butler (2003) sublinha como efeito desse paradoxo a interpretação de que as posições
sexuadas são simultaneamente excludentes e dependentes entre si, visto que “ser” o falo para
quem o tem garante a ilusão do sujeito masculino de “ter” o falo. “Ter” o falo é ter a ilusão de
uma autonomia, sendo esta mascarada e desmascarada pela mulher a todo o momento. Esta,
em sua posição de “ser” o falo, torna-se fundamental para o estabelecimento e a manutenção
da ilusória autonomia masculina, mas também pode revelar sua incoerência. Segundo a
autora, essa relação de dependência entre as posições sexuadas é negada e afirmada pela
psicanálise num movimento pendular ininterrupto: ora o sujeito deve ser afastado do corpo
materno, recalcando os prazeres incestuosos, ora o corpo materno retorna em objetos
94
substitutivos, como deslocado para o corpo da mulher-esposa. As mulheres, a partir de sua
própria falta, acabam por estabelecer a função essencial dos homens de “ter” o falo. Para
Butler (2003), “ser” o falo equivale a ser o emblema da circulação contínua da lei paterna, é
ser objeto constituído de troca, através da qual a lei paterna estende o seu poder. Numa crítica
que se desdobra a Lévi-Strauss, a autora defende que o intercâmbio de parentesco estruturado
a partir da troca exogâmica de mulheres é relativo a um tipo específico de sociedade, em que
se naturaliza a subordinação do desejo feminino à lei paterna.
Se para Lacan as posições sexuais são estruturadas pela própria linguagem e instituídas
por demandas simbólicas através das relações constitutivas da vida cultural, para Butler
(2002) essa construção acaba por conferir à identidade de gênero um aspecto fantasístico,
visto que, identificar-se com uma posição simbólica implica em jamais alcançá-la.
A posição feminina [...] vale como metáfora do Outro, na medida em
que este é impossível de ser atingido, enquanto permanece para
sempre Outro. Uma mulher fica, então, enquanto mulher,
radicalmente fora do alcance do sujeito, inclusive do sujeito que se
alinha na posição feminina (André, 1998: 169).
“Ter” e “ser” o falo são, na verdade, posições idealizadas e impossíveis, estando fadadas ao
fracasso no nível da experiência subjetiva. Nessa leitura, o simbólico lacaniano é
invariavelmente fantasístico, não compartilhando medidas com a realidade, o que passa a ser
interpretado como o próprio propósito de uma concepção transcendental, pois a distância
inevitável entre a identificação imaginária e a posição simbólica é a ameaça que vem reforçar
a importância de se ajustar ao modelo.
Assim, verifica-se a impossibilidade necessária ou pressuposta de todo
esforço para ocupar a posição de “ter” o Falo, com a consequência de
que ambas as posições, a de “ter” ou a de “ser”, devem ser entendidas
nos termos de Lacan, como fracassos cômicos, todavia obrigados a
articular e encenar essas impossibilidades repetidas (Butler, 2003: 77).
Butler (2002, 2003) realiza uma nova leitura do complexo de castração, entendendo que a
ameaça do castigo que acompanha a assunção do sexo na teoria psicanalítica do complexo de
Édipo é justamente o temor de se ocupar as identidades não inteligíveis. A ameaça diante da
95
qual o Édipo sucumbe nada mais é do que a da homossexualidade abjeta, entende a autora.
Enquanto um “dispositivo” no sentido foucaultiano, a psicanálise
organiza-se em torno de
regimes de luz e de enunciação, distribuindo o visível e o invisível, o dizível e o indizível, de
forma que a “assunção” de uma identidade necessariamente passa pela exclusão de outras. No
âmbito da identidade sexual, delimita-se a fronteira entre os sexos inteligíveis e os abjetos.
Para Butler (2002), trata-se de uma lógica do repúdio, uma necessidade política de governar
certas posições através da prática da exclusão. A psicanálise, enquanto teoria sobre a
subjetividade, constitui-se às voltas com as suas restrições políticas, reconhecidas pela autora
como as figuras do gay afeminado e da lésbica fálica. Através da identificação fantasmática, o
simbólico lacaniano operaria a imposição heterossexista, tornando a homossexualidade e a
heterossexualidade incompatíveis entre si.
Si asumir un sexo es em cierto sentido uma “identificación”, pareceria
que la identificación es un sitio en el qual se negocian insistentemente
la prohibición y la desviación. Identificarse con un sexo es mantener
cierta relación con una amenaza imaginaria, imaginaria y vigorosa,
que es vigorosa precisamente porque es imaginaria (Butler, 2002:
153)
23
.
Como dito acima, a lei descrita pela psicanálise produz um corpo tenebroso e o rechaça como
sendo um corpo “anterior” à lei. Tomando-o como ameaça imaginária, prescreve uma
identidade de gênero fixa e coerente. As figuras de abjeto da psicanálise, inseridas no
simbólico apenas como exemplo desse corpo tenebroso de “antes” da lei, servem à
diferenciação e à organização hierárquica das posições sexuadas, de forma que “todo o resto,
então, torna-se incompreensível caso não corresponda a este esquema binário hierárquico, e
permanece como um excesso impossível de ser inscrito no âmbito simbólico” (Arán e Peixoto
Júnior, 2007:13).
Para defender sua hegemonia de gênero, a identificação prevista pela psicanálise inclui
a prescrição de certos desejos e a proteção contra outros. No entanto, numa análise
foucaultiana, a proibição de certas posições sexuadas tem como efeito a produção ambivalente
do desejo, contendo em si a possibilidade de resistência e transgressão do quadro binário caro
23
O trecho correspondente na tradução é: “Se assumir um sexo é em certo sentido uma “identificação”, parece
ser que a identificação é um lugar no qual se negociam insistentemente a proibição e o desvio. Identificar-se com
96
ao paradigma masculino heterossexualizado. A impossibilidade de concretização plena das
identificações idealizadas pela lei simbólica da psicanálise, numa perspectiva foucaultiana,
seria a evidência da própria impropriedade política dessa concepção de lei. Valorizados
enquanto resistência, os “fracassos” identificatórios seriam a direção mesma para alteração da
lei. O fato de que o repúdio às figuras de abjeto deve ser reiteradamente reforçado através da
ameaça de castigo, a fim de coibir o sujeito a se instalar dentro das fronteiras e a construir sua
pretensa “integridade”, sinaliza o quanto a desestabilização indentitária também funciona
como ameaça. Isso sinaliza o quanto a idéia de uma identidade coerente e fixa é, na verdade,
uma fantasia que nega sua originária (re)construção social pela complexidade discursiva.
A uniformidade do gênero e da heterossexualidade é o pressuposto de uma teoria que
acaba por tomar o sexo como idêntico a si mesmo, responsável pela masculinidade e
feminilidade. Porém, essa aparente unidade é construída por práticas reguladoras através da
lei, que, num mecanismo de reafirmação de sua autoridade, deve reinvestir invariavelmente
no risco de seu fracasso. Se o simbólico implica na desgraça das tarefas que ele mesmo
impõe, seu propósito não pode ser o de alcançar um objetivo, visto que não o alcançaria
jamais. Seu propósito, adianta Butler (2003), parece ser a escravização do sujeito frente a sua
ordem, tendo em vista o fato de que a inevitabilidade do seu fracasso não leva a medidas de
transformação da configuração da lei.
Como em Lacan é o simbólico que cria a cultura, não havendo nada pré-discursivo,
como negar que é o discurso que demarca o domínio daquilo que é inteligível e do que não é?
Tendo essa indagação como guia de análise, Butler (2002) busca comprovar que o recalque é
secundário à exclusão, estando esta sempre a delimitar a lei simbólica e seus objetos de
subordinação. As posições sexuadas não seriam anteriores a lei, mas fruto dessa enquanto
ficção. Há uma reiteração dessa crítica ao simbólico a priorístico de Lacan numa referência à
Genealogia da Moral
, de Nietzsche, quando este sugere que o Simbólico inacessível, no caso
falava de Deus, não é inacessível por si, mas é assim constituído por um poder, que se
apresenta como impotente na tentativa de mascarar a origem de tal inacessibilidade. A
psicanálise se relacionaria com o simbólico tal qual com um deus, conferindo-lhe uma
estrutura transcendental, invariável e determinante, como se tal transcendência não fosse sua
própria criação. O simbólico da psicanálise é definido por Butler (2002) como a própria
dimensão normativa da constituição do sujeito sexuado, que através de sua suposta
transcendência, fundamenta e sustenta uma formulação sobre a diferença sexual específica de
um sexo é manter certa relação com uma ameaça imaginária, imaginária e vigorosa, que é vigorosa precisamente
porque é imaginária”.
97
um contexto histórico-social. No estruturalismo lacaniano não cabe o reconhecimento das
diversas formas de constituição das subjetividades, o que significa também um não
reconhecimento da alteridade.
Žižek (2008) defenderá que Lacan nunca deixou de evidenciar a determinação
histórica do simbólico e a sua dependência aos contextos ideológicos específicos, de modo
que o mesmo não é concebido como uma rede formal dada a priori que limita as práticas
humanas. A seu ver, o autor se interessa por precisar como os gestos de simbolização se
entrelaçam com e se inscrevem na práxis coletiva. No entanto, influenciada pela obra de
Foucault, a crítica de Butler (2002) à psicanálise lacaniana recai sobre a sua produção de
universais. Em nome da “estrutura”, Lacan cria universais irredutíveis a transformações
sociais, o que, para a autora, é uma construção que deve ser explicada, ao invés de tudo
explicar. As posições sexuadas em Lacan, enquanto forem reconhecidas como modelo
universal para explicar a assunção do sexo, ainda constituirão mecanismos de modulação das
subjetividades. A autora pretende explicitar que o simbólico lacaniano é um dispositivo de
poder construído social e historicamente com fins políticos, como a sustentação da
heterossexualidade e do binarismo masculino/feminino. Arán (2008b) se apropria de outra
noção foucaultiana, a de “formas de subjetivação”, para justificar a necessidade de se
abandonar o Édipo enquanto única forma de constituição do sujeito. Reconhecendo-o como
apenas uma forma possível de subjetivação, a autora realiza uma abertura para outras
diferentes possibilidades de constituição subjetiva.
3.2.2 A problematização das fórmulas da sexuação
Quando se encontra às voltas com o que denominou de “a não existência da relação
sexual”, isto é, com o impacto dos paradoxos constitutivos da sexuação e com o deslocamento
da questão do desejo para a do gozo, Lacan propõe as fórmulas da sexuação como uma
tentativa de dar inteligibilidade aos modos de gozo dos sujeitos inseridos na linguagem. Para
isso, recorreu ao falo, enquanto quantificador universal, que é conceituado pelo autor
enquanto significante da falta, em torno do qual o “masculino” e o “feminino” se definem,
visto que se posicionam de maneira distinta em relação a ele. A originalidade presente nas
fórmulas frente às posições evocadas anteriormente diz respeito ao reconhecimento de uma
dimensão “para além da lógica fálica”. Já em uma passagem de valorização do real frente ao
98
simbólico e ao imaginário, Lacan nos fala de dois modos de gozo para indicar a constituição
da sexuação do sujeito.
Para os comentadores de Lacan, sob a ótica do gozo, a constituição sexual do sujeito
se distanciaria tanto da materialidade do sexo quanto da idéia de gênero, pois refere-se a duas
maneiras a partir das quais os sujeitos falantes, homens e mulheres, se inserem na função
fálica. Não é a função em si que as faz diferentes; o que as faz diferentes é a posição subjetiva
através da qual os sujeitos se anunciam submetidos a ela. Apesar disso, as fórmulas serão
tomadas por autores contemporâneos como uma réplica das modalidades hegemônicas de
gênero.
O lado esquerdo e masculino da fórmula significa que todo homem está no âmbito da
castração, mas que isso só se faz reconhecido pela existência de uma exceção: pelo menos um
não é castrado. Inspirado pela função de desvio do pai da horda primitiva do texto freudiano
Totem e Tabu,
de 1913, formula que a exceção subsiste no inconsciente masculino,
confirmando a regra geral de que o que torna alguém homem é a marca da falta (David-
Ménard, 1998).
Em relação à formula feminina, a primeira proposição equivale a dizer que “não existe
nenhuma mulher que não tenha relação com a lógica da castração”, enquanto que a segunda
diz “não é tudo, de uma mulher, que está ligado com este função” (David-Ménard, 1998). A
fórmula indica que a mulher está “não toda” na função fálica, o que aponta um “para além” do
falo:
Isso corresponde também à idéia de que as mulheres não são marcadas
pela castração a propósito de tudo; algo do que as faz mulher joga-se
no excesso com relação a esta determinação, que entretanto lhes
concerne também (David- Ménard, 1998: 99).
Trata-se justamente de uma tentativa lacaniana de ressituar o gozo feminino em relação à
castração: reconhece-se que a feminilidade se coloca para aquele que não se assujeita
inteiramente ao Édipo e à lei da castração.
Com este objetivo, Lacan acentuará menos a questão da identidade
feminina do que a do gozo feminino, e menos a castração e a
reivindicação dela decorrente do que a divisão que o primado do falo
introduz na menina [grifos do autor] (André, 1998: 209).
99
Lacan defende a tese de que as mulheres não fazem um todo. Não há nada que as una num
conjunto, tal como a função de exceção faz com os homens, fundamentando a regra masculina
e possibilitando a descrição desses a partir de um certo compartilhamento. O lado direito das
fórmulas conjuga-se, assim, com uma outra proposição, a de que “A mulher não existe”, o que
reforça a idéia de que elas não fazem Um, permanecendo como um conjunto aberto, só
podendo ser contadas uma a uma. Estar “não toda” na função fálica enuncia um “gozo a mais”
feminino para além do simbólico, que estaria indissociável da idéia de que as mulheres não
são capazes de dizer em que consiste sua posição de mulher, visto que, não se inserindo
“toda” no universal, não podem constituir uma classe.
Segundo André (1998), o gozo feminino lacaniano é uma suposição baseada na
experiência descrita por algumas mulheres e algumas místicas sobre um gozo para-além da
linguagem. Reconhece, assim, a possibilidade de que se trate de uma “produção imaginária”,
já que, situando-se fora-da-linguagem, seria impossível dizê-lo. Essa crença em um outro
gozo que não se pode definir vem da insatisfação do sujeito com o gozo fálico, visto que este
não convém à relação sexual.
Este a-mais só aparece como margem da castração: é preciso que se
passe por esta para que se desenhe um bordo para além do qual um
lugar seja furado por um mais-além. Mas esse produto da castração é
vazio, inconsistente, a não ser que se lhe dê consistência imaginária
(André, 1998: 224).
Esta “suposição” lacaniana coloca a mulher em afinidade com o ponto de falha do simbólico,
de modo que se encontra, assim, fora do discurso, como um enigma para si mesma e para os
homens. Para David-Ménard (1998), aqui fica claro o quanto Lacan constrói sua tese a partir
de um paradigma da subjetividade masculino: “este último (o gozo feminino) só parece aos
homens tão misterioso porque não tem como alavanca o único gozo representável para eles,
do qual seu sexo é o emblema” (David-Ménard, 1998: 107).
A construção sobre o feminino pela negativa – não toda na lógica fálica -, se levada a
radicalidade, subverteria a lógica da primazia do falo e do simbólico, pois demonstraria seu
ponto de basta e sua insuficiência para a reflexão acerca das mulheres. Segundo Arán
(2008b), inscrever o feminino como “não todo” na lógica fálica significa transgredir o
“monismo fálico” e demonstrar sua falência. Afinal, se a mulher é não-representável pela
100
lógica fálica, isso exigiria o reconhecimento de outras lógicas alteritárias à fálica. O que a
autora sugere é que Lacan não teve esse mesmo raciocínio, pois fica preso à idéia de que não
há representação positiva que conceba a mulher. Em conseqüência, a negativa que descreve o
feminino significa uma “falha” ou “falta”, sendo que estas ficam associadas à mulher em si, e
não à lógica tipicamente masculina, conferindo à primeira um status pejorativo ou de menor
valia.
A positivação do feminino exigiria pressupor não apenas um além do
falo, mas, antes de tudo, uma outra forma de erotismo, que não tenha
no falo a sua referência (Arán, 2006: 137).
Para os que defendem as fórmulas da sexuação, a lógica do gozo “a mais” não desconsidera as
mulheres, pois confere a elas um gozo suplementar. Enquanto o sujeito do gozo fálico se sente
frustrado, pode-se dizer que uma mulher “goza dela mesma enquanto Outra dela a ela mesma”
(André, 1998: 224). Além disso, o dito “lado masculino” das fórmulas não abarcaria o
conjunto dos homens, assim como o “lado feminino” não corresponderia ao conjunto das
mulheres. Masculino e feminino, aqui, não designam a anatomia sexual, mas dois modos
possíveis do sujeito se inserir na lógica fálica.
Arán (2006) dá continuidade às objeções às teses lacanianas referindo-se à sexuação
como um imperativo categórico: o ser humano deve se determinar como homem ou como
mulher, mesmo que se diga que tal determinação independe da anatomia. Mesmo que o autor
não associe necessariamente as mulheres ao lado direito da fórmula e os homens ao lado
esquerdo, resta ainda uma imposição: um lado ou outro. A sexuação descrita pelas fórmulas
restringe as subjetividades, não fazendo jus a sua intenção de demonstrar os paradoxos da
constituição sexual. A repartição em dois aparece para os críticos de Lacan como uma
necessidade da teoria, uma necessidade pressuposta e imperativa, típica de um dispositivo de
poder. Outras formas de sexuação, que não se enquadram nessa ordem, trazem à tona a
artificialidade das categorias binárias.
Butler (2002) também ressalta a prescrição da norma binária no interior da psicanálise,
a partir do que denominou de uma “compulsão” teórica pela divisão por dois, que produz
incessantemente binarismos que se equivalem às normas hegemônicas de gênero. O que a
autora vem sublinhar é o fato de que não é só o gênero que é submetido à norma sexual, mas a
própria subjetivação. Isso se torna evidente quando se percebe que toda a compreensão
psicanalítica sobre o sujeito e sua constituição é atravessada por discursos reguladores que
101
formam o sujeito “gendrado”. A “lógica binária” influenciaria toda a teoria da formação
subjetiva, subentendendo em seus meandros a lógica do repúdio da homossexualidade e dos
abjetos. Tanto a “sexuação” quanto a “subjetivação” são teses construídas a partir de um
paradigma masculino, em que o imperativo lógico é o da manutenção da distinção sexual
anatômica.
David-Ménard (1998) também indica que no discurso psicanalítico se encontra uma
imposição binária. Para fazer um contraponto a sexuação lacaniana, refere-se à psicanálise
freudiana e à sua teoria acerca da sexualidade perversa polimorfa infantil.
Não há terceiro sexo possível, mesmo que a sexualidade infantil possa
forjar todas as espécies de representações fantasmáticas sobre os sexos
e sua relação com a existência de crianças (David-Ménard, 1998:
109).
Como desenvolveremos em outro momento, a sexualidade infantil passa a ser enfocada por
autores contemporâneos como uma abertura à sexualidade em seu estatuto singular. Aqui, o
adjetivo “infantil” não demarca a necessidade evolutiva de uma superação pela via do
recalque, mas qualifica a própria sexualidade humana e a sua inconsistência simbólica.
Por sua vez, Lacan também se empenha cada vez mais em sustentar que a sexuação
aponta para a inconsistência simbólica da sexualidade, tese que é reapresentada por Žižek
(1999) em seu debate com Butler, a partir da proposta de pensar a diferença sexual como o
encontro com o real.
3.3 Diferença sexual formal sem conteúdo e normas de gênero histórico-contingentes
Na concepção de Butler (2002, 2003), o fato de existirem as ditas “perversões”, como
a homossexualidade e o fetichismo, apesar da heterossexualidade, indica o status de
resistência das primeiras frente à hegemonia da última. Se onde há resistência, há poder,
então, as sexualidades “perversas” provam o fracasso da diferença sexual binária enquanto
injunção social normativa. O que a autora pretende sinalizar através dessa observação da
“falha” da heterossexualidade é que esta corresponde a uma construção histórico-contingente
que foi transformada em norma pelo exercício repetitivo do poder disciplinar. Procura, assim,
102
demonstrar que o gênero é uma categoria suscetível a modificações, sendo sua constituição
influenciada pelas contingências sócio-históricas.
Žižek (1999) não compreende desta forma a “falha” do binarismo sexual. Empenha-se
em demonstrar que este sempre tem um mau êxito, mesmo na heterossexualidade simbólica
normativa. O fato de que o gozo só pode ser obtido a partir de uma falta fundamental
demonstra que a sexualidade está marcada por um fracasso irredutível. A noção de sexuação
precisa da existência de algo que sempre falha em se inscrever tanto imaginária quanto
simbolicamente, que corresponde justamente ao real da diferença sexual. Conforme esta tese,
sempre existe uma lacuna entre o real da diferença sexual e as formas simbólicas da
sexualidade, heterossexuais ou não. Respondendo a Butler, seu intuito é defender que não só a
heterossexualidade é uma articulação simbólica, como também o são as práticas sexuais
referidas pela autora de “perversas”. Toda e qualquer identidade simbólica é determinada
historicamente e depende de um contexto ideológico específico. Ao mesmo tempo, toda e
qualquer formulação sexual simbólica não dá conta de simbolizar o real da diferença sexual.
Assim, se para Butler (2002, 2003) o que foge à heterossexualidade evidencia a condição
histórico-contingente da diferença sexual, para Žižek (1999), trata-se de mais uma evidência
de que a diferença sexual é impassível de simbolização. O autor irá contestar as críticas à
psicanálise a partir de um eixo argumentativo principal: a diferença sexual, para Lacan, é da
ordem do real; onde este é concebido como o limite inerente à linguagem, um “miolo” que
resiste à simbolização. Falar de diferença sexual produz sempre um resto inominável.
Os efeitos do real sob a sexuação são explicitados, sob a ótica psicanalítica, através de
um paradoxo: perder o próprio sexo para sê-lo. Isso significa que para tornar-se mulher, não
se renuncia à masculinidade, mas sim à feminilidade, enquanto algo que se completa. O que
se perde no “tornar-se mulher” é a própria possibilidade de tornar-se verdadeiramente uma
mulher; fato que a figura da “mascarada”
24
representa ao mascarar a falha em ser mulher.
Com o homem não seria diferente. O que está por trás dessa tese é a idéia de que a perda
inserida no processo de sexuação não é externa, mas inerente e comum a ambos os sexos. A
identidade de cada um deles é embaraçada no seu interior pela relação antagônica com o outro
sexo, fato que acaba por impedir sua completa atualização. Recorrendo a um aforismo
lacaniano, diz ele:
24
Lacan realiza uma discussão sobre a mascarada, conceito retomado de Joan Riviere (1929), como designação
da feminilidade, tendo em vista a sua proposição de que a mulher é a falta que encarna o falo.
103
‘There is no sexual relationship’ not because the other sex is too far
away, totally strange to me, but because it is too close to me, the
foreign intruder at the very heart of my (impossible) identity [grifo do
autor] (Žižek, 1999: 272/273)
25
.
A diferença sexual, sob a perspectiva lacaniana, não coincide com a diferença anatômica e/ou
estrutural entre homem e mulher; mas está inscrita no interior do “tornar-se homem” e do
“tornar-se mulher”. Trata-se de um antagonismo real, e não de uma oposição diferencial
simbólica, pois esta última sim pode ser encarada como a responsável pela definição de um
sexo em oposição ao outro.
O autor apresenta ainda um outro eixo de discordância entre a sua leitura de Lacan e
aquela realizada por Butler (2002, 2003), que considera ser o grande equívoco sobre a
sexuação: a equivalência que se faz entre as noções de “diferença sexual” e de “norma
simbólica heterossexual”. Empenha-se, então, em distinguir a diferença sexual como real e a
heterossexualidade como simbólica. A psicanálise lacaniana anuncia a diferença sexual como
real no sentido de que esta nunca pode ser simbolizada, não é passível de ser transposta para
normas simbólicas, como, por exemplo, para a divisão de gênero em masculino/feminino.
Trata-se, então, de uma diferença da ordem do inominável, que o inconsciente tentará
delimitar através da cadeia significante, tal como se rodeia a margem de um furo. Enquanto
para Butler (2000), Lacan eleva a norma heterossexual histórico-contingente a uma categoria
transhistórica, para Žižek (1999), o estatuto real da diferença sexual confere a esta a
impossibilidade de se enquadrar em normas simbólicas quaisquer. Argumenta que a noção de
diferença sexual assim entendida não pode ser vista como uma função normativa justamente
porque se refere a um limite da articulação simbólica.
It thus seems more productive to posit as the central enigma that of
sexual difference – not as the already established symbolic difference
(heterosexual normativity) but, precisely, as that which forever eludes
25
O trecho correspondente na tradução é: “ ‘Não há relação sexual’ não porque o outro sexo está muito longe,
totalmente estranho a mim, mas porque ele está muito perto de mim, o estrangeiro intruso no coração da minha
(impossível) identidade”.
104
the grasp of normative symbolization [grifo do autor] (Žižek, 1999:
271)
26
.
A concepção de que a diferença sexual, mesmo quando simbolizada em termos de aspectos
ideais, contém um aspecto não simbolizável, confere a esta um estatuto distinto das outras
diferenças, tais como “classe” ou “nação”. A primeira é vista como a mais fundamental de
todas, sendo a ela conferida uma dimensão traumática e, por isso mesmo, não simbolizável.
Para Butler (2000), esses aspectos que Žižek confere apenas à diferença sexual dão a ela um
caráter estrutural e transcendental, o que a torna invulnerável às transformações históricas. A
autora critica tal estatuto da diferença sexual, pois funciona como justificativa para a
imposição de normas contingentes através do manejo de ideais psíquicos. O dito “não
simbolizável” tem uma função especial no dispositivo psicanalítico, que é a de pré-figurar as
privações (leia-se, exclusões) como uma ameaça (de castração ou traumática). Sob o seu
ponto de vista, a fronteira entre o que é e o que não é simbolizável é pré-determinada por um
conteúdo social.
Em resposta à autora, Žižek (1999) propõe, então, que a diferença sexual em Lacan
deve ser lida como um “conceito vazio”, como um conceito que não pode ser todo recoberto
por seu conteúdo, havendo sempre um “resto” irrepresentável. Trata-se de um termo que não
representa nada, cujo vazio semântico é a oportunidade de uma série de investimentos
fantasmáticos. A diferença sexual é justamente aquilo que escapa às imposições simbólicas e,
ao mesmo tempo, é furo em torno do qual a prática de simbolização se torna possível. As
articulações imaginárias e simbólicas, estas sim, históricas e contingentes, não recobrem tudo
da distinção dos sexos, produzindo um resto de real. Esta dimensão da diferença sexual que
escapa aos bordados simbólicos e imaginários é o que institui essa noção como um “conceito
vazio”, o que enfatiza seu estatuto não-tematizável e, portanto, incontestável.
Esse raciocínio, segundo Butler (2000), recorre a uma abstração formal kantiana,
segundo a qual, a forma, a partir de uma sublimação perfeita, não pode ser identificada com
seu conteúdo. Para a autora, trata-se do mecanismo utilizado por Lacan quando este diz
“masculino” e “feminino” sem querer, no entanto, reconhecê-los como diferença sexual.
Inspirando-se em Hegel, a autora argumenta que a relação entre conteúdo e forma não é
completamente externa, o que impossibilita uma sublimação perfeita de um para a outra. Em
26
O trecho correspondente na tradução é: “Parece muito mais produtivo posicionar como o enigma central da
diferença sexual – não como a já estabelecida diferença simbólica (normatividade heterossexual), mas,
precisamente, como aquilo que para sempre evita a compreensão da simbolização normativa”.
105
seus termos, todo formalismo, a fim de alcançar a abstração, omite um “resto” de conteúdo,
que é recusado. O objetivo de Butler (2000) passa a ser, então, o de reconhecer o “resto”
excluído na construção do conceito vazio da diferença sexual, para poder, num processo de
desconstrução, desembaraçar a sua fundação. Por isso, retoma a idéia do “fracasso do
binarismo”.
Em alusão aos “corpos que não se enquadram” e ao sofrimento de sujeitos frente às
normas hegemônicas de gênero, Butler (2000) coloca em xeque o estatuto formal e sem
conteúdo da diferença sexual. Assinala que o formalismo realizado por Lacan é um
instrumento para assegurar a conteúdos sociais o lugar de “real”, o lugar de indizível, ou
ainda, de impensável. Na medida em que a noção de diferença sexual, elevada pela
psicanálise a operador incontestável, prescreve e delimita o território da inteligibilidade,
através da foraclusão e da patologização dos gêneros não inteligíveis, tal teoria confunde o
transcendental e o social, colocando a si mesma num patamar que pretensamente a protege
das críticas e das influências sócio-históricas.
[...] continúa siendo problemático el modo en que la teoria fija esos
limites, no solo porque siempre está la cuestión de saber qué
constituye la autoridad del que escribe tales limites, sino además
porque el establecimiento de tales limites está vinculado a la
regulación contingente de lo que se juzgará como un modo inteligible
de ser y lo que no se considerará como tal. Además, la producción de
lo no simbolizable, de lo indecible, lo ilegible, es siempre uma
estratégia de abyección social [grifo da autora] (Butler, 2002, 271)
27
.
A gravidade das teses lacanianas é apontada pela autora como sendo a transformação dos
mecanismos contingentes de produção de sujeitos em leis universais, que se colocam imunes
à própria articulação discursiva que lhe deu origem. O dimorfismo sexual é suposto como
transcendental a fim de fundamentar formas históricas e sociais da diferença sexual. Em
Undoing Gender
(2004), a autora demonstrará que a distinção lacaniana entre a lei simbólica
27
O trecho correspondente na tradução é: “[...] continua sendo problemático o modo em que a teoria fixa esses
limites, não somente porque sempre está a questão de saber que constitui a autoridade do que escreve tais
limites, mas, além disso, porque o estabelecimento de tais limites está vinculado à regulação contingente do que
se julgará como um modo inteligível de ser e o que não se considerará como tal. Além disso, a produção do não
simbolizável, do que não é dito, o ilegível, é sempre uma estratégia de abjeção social”.
106
e as leis sociais não se sustenta, comprovando que a primeira serve à sedimentação de práticas
sociais.
Enquanto Žižek confere à diferença sexual o caráter real de um conceito vazio,
impassível a mudanças, Butler (2004) sustentará que tal dimorfismo sexual é uma norma e
que, enquanto norma, trata-se de uma ficção reguladora. Um ideal de gênero é naturalizado
por uma rede discursiva complexa como sendo uma identidade fixa e coerente. Ao mesmo
tempo, delimita-se o campo da diferença, daquilo que tem o destino certo da exclusão. Ao
contrário do que faz pensar a psicanálise, tanto o campo da identidade quanto o da diferença
têm seus conteúdos delimitados por fatores contingentes e históricos, o que os faz expostos a
influências diversas. A negação do caráter sócio-histórico da diferença sexual da teoria
lacaniana é interpretada pela autora como um desejo pela perpetuação da matriz da
heterossexualidade e da dominação masculina.
Žižek (1999) não reconhece essa associação entre o conceito vazio da diferença sexual
e uma normatização social da idealização de gênero, questionando Butler e sua tese de que a
psicanálise participaria na construção das fronteiras entre os “gêneros inteligíveis e não
inteligíveis”. Lacan, diz o autor, não correlaciona a priori formas e práticas sexuais a
economias subjetivas patológicas, de forma que a perversão não está referida necessariamente
a violação das normas simbólicas. Enfatiza ainda que a dimensão real da sexuação tem como
efeito o fato de que todos os neuróticos estão de certa forma “excluídos”, “de fora”, do âmbito
do simbólico, seja qual for seu gênero ou modalidade sexual. Exatamente porque os
neuróticos atualizam o que Freud chamou de “realidade psíquica”, há sempre um “resto”, que
para Lacan corresponde ao peso do “vínculo apaixonado” primordial, que resiste ao
movimento de simbolização e/ou mediação simbólica, ou seja, o próprio real da sexuação.
Desconstruindo a idéia de que o Édipo direciona necessariamente o sujeito à
heterossexualidade, enquanto o narcisismo à homossexualidade, Mezan (2006) supõe o
motivo para a escolha freudiana por dois mitos gregos para descrever as transformações da
libido.
Narciso e Édipo são figuras do “amor infeliz”, se nos é permetido
parafrasear o conceito hegeliano. O que queremos dizer é que, para
Freud o amor se configura no registro do conflito, enquanto que a
representação usual o concebe como graciosa harmonização.
Impedida por sua própria natureza de compreender a gênese de suas
representações, a ideologia faz com o indivíduo o mesmo que faz com
107
a sociedade: ignora a dimensão dramática e conflituosa da sua
constituição, para encobri-la com a parvoíce da univocidade e da
harmonia preestabelecida [grifo do autor] (Mezan, 2006: 194).
Se em Freud o trânsito libidinal até a consolidação da identidade sexual aparece como um
drama, e não como o melhor dos mundos, em Lacan a ênfase também recai no embaraço do
sujeito com seu sexo, o que não se dá sem uma certa inquietação. Essa observação
psicanalítica decorre do fato de que a diferença sexual não pode ser localizada no domínio do
biológico e nem no do sócio-simbólico, pertencendo, então, ao campo do “entre”. A fim de
exemplificar sua perspectiva sobre a sexuação, Žižek (1999) utiliza-se de uma máxima
lacaniana, segundo a qual, o louco não é apenas o indigente que pensa ser rei, mas também o
rei que pensa ser rei (Lacan apud Žižek, 1999: 247). Isso significa dizer que é “louco” quem
percebe seu mandato simbólico como diretamente baseado no real do seu corpo, e quem acaba
por confundir a distinção entre o vazio simbólico e a lacuna da realidade, a ordem das
“palavras” e a ordem das “coisas”.
O enunciado lacaniano nos é de grande utilidade para trabalhar o paradoxo dialético
do que Lacan denominou de “castração simbólica”, o fato de que uma entidade torna-se X,
apenas quando renuncia a ser X. Existe uma lacuna entre o lugar simbólico e o elemento que
o preenche, de forma que ocupa-se um lugar exatamente quando não se é esse lugar. A
castração se dá pelo fato de que, estando-se sujeito à ordem simbólica, há uma distância
intransponível entre o que se é no imediato e o título simbólico que se assume; o que revela a
impossibilidade do sujeito identificar-se completa e imediatamente com sua identidade
simbólica. Privado de sua insígnia simbólica, a identidade “rei” “se derrete como um boneco
de neve ao sol”
28
. Trata-se justamente de um corte, cuja função é sustentar o domínio do que
está “entre”: o abismo intransponível que se faz entre o real e as simbolizações, a partir de
onde Lacan pensa a diferença sexual. Nesse sentido, a castração simbólica não é o nome do
limite do simbólico no sentido daquilo que interrompe o fluxo das múltiplas simbolizações,
mas é justamente o que sustenta um espaço para estas. O fato de que nenhum conteúdo
simbólico preenche por completo o real é justamente o que impede que a corrente das
simbolizações se interrompa.
28
O texto em língua estrangeira é “se derrite como un muñeco de nieve al sol” (Žižek, 2008: 44).
108
In short: yes, of course, the way we symbolize sexuality is not
determined by nature, it is the outcome of a complex and contingent
socio-symbolic power struggle; however, this very space of contingent
symbolization, this very gap between the Real and its symbolization,
must be sustained by a cut, and ‘symbolic castration’ is the lacanian
name for this cut. So ‘symbolic castration’ is not the ultimate point of
symbolic reference which somehow limits the free flow of the
multitude of symbolizations: on the contrary, it is the very gesture
which sustains, keeps open, the space of contingente symbolizations
(Žižek, 1999: 275)
29
.
Nessa leitura, o simbólico lacaniano não é entendido como um vazio a priori e transcendental,
sobre o qual as simbolizações se produzem. Não se trata de um vazio que pode ser preenchido
por um objeto contingente e positivo, como interpreta Butler (2000) a partir de um
formalismo kantiano. Segundo Žižek (1999), a armação transcendental-formal do simbólico é
estruturada por uma parte de seu próprio conteúdo, o que rompe com a idéia kantiana de uma
sublimação perfeita do conteúdo para a forma. Há um “resto indivisível” da materialidade
contingente que mancha a pretensa universalidade neutra da estrutura simbólica e que
funciona como um cordão umbilical através do qual a estrutura vazia é ancorada em seu
conteúdo.
A partir desse percurso argumentativo, Žižek (1999) retoma a crítica feita por Butler
aos construcionistas sociais, para quem o campo sócio-histórico e contingente das
simbolizações é dado como um a priori. Sob seu ponto de vista, o caráter histórico-contigente
conferido à diferença sexual pela autora não é o que a liberta da pré-determinação, pois a
relação direta entre norma e sexualidade aparece, em Butler, como um pressuposto teórico
fundamental. O autor enfatiza, assim, a ausência de uma proposta explicativa para o campo
simbólico. No entanto, mais do que explicar como esse espaço se sustenta a partir da
castração simbólica, em Žižek (1999), torna-se importante discernir em cada contingência
29
O trecho correspondente na tradução é: “Em resumo: sim, claro, a maneira como simbolizamos a sexualidade
não é determinada pela natureza, ela é o resultado de um complexo e contingente sócio-simbólico poderoso
estrangulamento; no entanto, esse mesmo espaço de simbolização contingente, essa brecha entre o Real e suas
simbolizações, deve ser sustentado por um corte, e ‘castração simbólica’ é o nome lacaniano para esse corte.
Então, ‘castração simbólica’ não é o ponto final da referência simbólica que de certa forma limita o livre curso
da multidão de simbolizações: pelo contrário, é o gesto que sustenta, mantém aberto, o espaço das simbolizações
contingentes”.
109
histórica aquilo que “re-desempenha” a lacuna sobre a qual se abre o horizonte da
historicidade.
3.4 Ato ético e deslocamentos disruptivos biopolíticos
A aproximação realizada por Butler entre as noções de “diferença sexual” e de
“normas simbólicas” coincide, finalmente, com uma outra indistinção entre as idéias de
“vínculo apaixonado” e de “identificação sócio-simbólica”. Essas aproximações influenciam a
sua leitura da psicanálise, saber ao qual a autora recorre com a intenção de explicar como o
poder social incide sobre as formas de subjetivação, restringindo-as e produzindo-as.
A partir da tese de Foucault, segundo a qual há um nível de subordinação
imprescindível na formação do sujeito, Butler (1997) deseja esclarecer, com a contribuição da
psicanálise, como a relação com o poder transforma-se em condição de existência. Em seu
trabalho de 1997, Mecanismos Psíquicos Del Poder, a autora se utiliza o termo “vínculo
apaixonado” para designar a dependência primária do sujeito ao outro; relação esta que o
marca para sempre com uma certa dose de vulnerabilidade à exploração e regulação política.
A perspectiva de que a sujeição consiste nessa dependência fundamental que ao
mesmo tempo nos subordina e nos torna sujeitos vai ao encontro do que Lacan chamou de
uma “escolha forçada”, ou ainda, uma escolha impossível. Lacan e Butler (1997)
compartilham da idéia de que há uma alienação fundamental ao campo sócio-simbólico, ao
qual está condicionada a existência do sujeito. Apesar de tratar-se de um ponto de
concordância pontual, esse também serve como lugar de partida para grandes debates teóricos
entre Butler e autores lacanianos, pois, ao longo de sua produção, a autora defende que a
teoria lacaniana pode ser reconhecida como um dispositivo de poder que constitui estratégia
de sujeição à matriz heterossexual da dominação masculina. Sua leitura sobre a psicanálise é
atravessada por um objetivo principalmente político: como subverter a rede sócio-simbólica
enquanto aquilo que predetermina e limita os critérios de reconhecimento da existência do
sujeito?
Em contraposição à idéia comumente utilizada de que o sujeito é apaixonadamente
apegado à sua própria subordinação, Butler (1997) sugere que tal fixação é ela mesma efeito
do poder. Nenhum indivíduo torna-se sujeito sem antes assujeitar-se a um outro que lhe
confere a possibilidade da existência e que, ao mesmo tempo, lhe marca em sua
110
vulnerabilidade frente às regulações sociais. O “vínculo apaixonado” equivale, nesta leitura,
ao nível mais fundamental de sujeição, aquele que tem como função o suporte inconsciente do
poder, mas que é por ele mesmo produzido. O apego à subordinação não é anterior ao poder,
mas é seu próprio produto, noção que possibilita a indagação: qual injunção social forma tal
“vínculo apaixonado” inconsciente e qual seria a possibilidade de fazer resistência a ela?
Del mismo modo que el sujeto se deriva de condiciones de poder que
lo preceden, el funcionamiento psíquico de la norma se deriva, si bien
no de manera mecánica o predecile, de operaciones sociales anteriores
(Butler, 1997: 32/33)
30
.
Butler (1997) realiza uma redescrição dessa subordinação psíquica que pretende dar conta da
maneira como o poder social produz modos de reflexividade, ao mesmo tempo limitando
formas de sociabilidade, restringindo e produzindo desejos singulares.
Numa perspectiva lacaniana, o que Butler (1997) designou de “vínculo apaixonado”,
aquilo sobre o qual a consistência subjetiva se articula, é a cena da “fantasia fundamental”
masoquista, em que o sujeito vê a si mesmo sofrendo. Essa cena, foracluída, ao mesmo tempo
em que sustenta a subjetividade, a ameaça, devendo manter-se desconhecida. Segundo Žižek
(1999), a autora utiliza a noção de “vínculo apaixonado” ora para se referir ao suporte último
do ser subjetivo, à fantasia fundamental, ora para designar a identificação simbólica, uma
resposta já inserida no âmbito do simbólico para recobrir um certo vazio. Seu intuito, ao
contrário, é o de valorizar a distinção entre o “vínculo primordial”, em que o sujeito é
compelido a foracluir para ganhar uma existência simbólica, e a sujeição à ordem sócio-
simbólica, que interpela o sujeito. A relação entre essas duas noções passa pelo fato de que o
sujeito apenas é capaz de sustentar uma identificação sócio-simbólica se mantém um não-
conhecimento sobre seu suporte fantasmático.
A fantasia fundamental a que Žižek (1999) se refere coincide com o segundo momento
da fantasia, descrito por Freud no texto Uma Criança é Espancada, de 1919, em que o sujeito
se imagina apanhando do pai. Nesse trabalho, o autor dedica-se a elucidar o problema do
masoquismo, além de expandir o conhecimento psicanalítico sobre as perversões de um modo
geral. Atribui-se a este artigo uma considerável importância no que tange a questão dos
30
O trecho correspondente na tradução é: “Do mesmo modo que o sujeito se deriva de condições de poder que o
precedem, o funcionamento psíquico da norma se deriva, se bem que não de maneira mecânica ou previsível, de
operações sociais anteriores”.
111
motivos que conduzem à repressão. Como descrito anteriormente, Freud revela a recorrência
de um tipo especial de fantasia: uma criança é espancada. Desdobrando-a em fases, a
segunda delas é uma construção analítica: “estou sendo espancado pelo meu pai”. A origem
de tal fantasia é explicada por Freud através dos mecanismos de repressão e de regressão. Se a
organização genital da criança, que ainda não a tem firmada, encontra-se com a repressão, a
representação psíquica do amor incestuoso se torna inconsciente, além do que, ocorre uma
regressão a um nível mais baixo da organização genital. “ ‘O meu pai me ama’ queria
expressar um sentido genital; devido à regressão, converte-se em ‘o meu pai está me batendo’
” (Freud, 1996 [1919]: 204/205).
Caracterizada por Freud como permanentemente inconsciente, a fantasia de ser
espancado pelo pai leva Žižek (1999) à análise de que esta construção fantasmática deve ser
entendida como a cena da submissão constitutiva do sujeito, aquela que confere suporte à sua
existência e que, por isso mesmo, deve permanecer inacessível ao sujeito. Nesta compreensão,
é essa fantasia foracluída que nos oferece as coordenadas do “vínculo apaixonado”
primordial. Na primeira, a oposição entre atividade e passividade é subvertida, pois na
internalização da cena de apanhar de um outro, o sujeito se encontra tanto no lugar passivo de
um observador fascinado como também na posição passiva de sofrimento e dor daquele que
está apanhando. Essa dupla passividade pressupõe um engajamento ativo do sujeito,
possibilitado pela consolidação do que o autor denomina de “volta reflexiva”: de forma auto-
erótica, o próprio sujeito (e não um agente externo) frustra a sua própria atividade e domina a
si mesmo. Esta volta reflexiva é o que define o gesto da foraclusão primordial como uma
defesa contra o gozo excessivo e traumático, ou seja, contra a pulsão de morte.
Se a fantasia sinaliza uma “formação defensiva” contra a pulsão de morte, garantindo
minimamente a existência do sujeito, isso implica em pressupor que o sujeito já esteja lá. O
que Žižek (1999) irá enfatizar é que dizer que o sujeito já está lá é reconhecê-lo em sua
existência “negativamente abstrata”, no gesto primordial de não-vínculo com o ambiente. A
fantasia seria uma “formação defensiva” contra o abismo do não-vínculo, sendo esse último
pura pulsão de morte.
Essa leitura do “vínculo apaixonado” de Žižek (1999) se distancia daquela de Butler
(1997), em que o sujeito emerge como sujeição no sentido de submeter-se à figura do Outro,
como no tabu do incesto, por exemplo. Numa concepção lacaniana, a lacuna, que é o sujeito
que já deve estar lá, é anterior à ligação primordial, possibilitando-a. O sujeito como lacuna,
anterior ao vínculo primordial, é a experiência de um “corpo desmembrado” sob o domínio da
pulsão de morte e seu conseqüente distúrbio do princípio de prazer.
112
At this point, then, Butler should be supplemented: the emergence of
the subject is not strictly equivalent to subjection (in the sense of
‘passionate attachment’, of submission to some figure of the Other),
since for ‘passionate attachment’ to take place the gap that ‘is’ the
subject must already be there. Only if this gap is already there can we
explain how it is possible for the subject to escape the hold of the
fundamental fantasy [parênteses do autor] (Žižek, 1999: 289)
31
.
Žižek (1999) insistirá que o sujeito é anterior a sujeição no sentido dado por Butler (1997), o
que nos remete à distinção entre repressão e foraclusão. Enquanto o primeiro termo refere-se a
um ato performado pelo sujeito enquanto um agente que repreende parte de seu conteúdo
psíquico, a foraclusão é um gesto negativo de exclusão que fundamenta o sujeito, um gesto
que não pode ser assumido pelo sujeito, mas sobre o qual se articulará toda a consistência de
sua identidade subjetiva. A Lei interna não é simplesmente uma “extensão” ou
“interiorização” da pressão externa, mas emerge a partir de uma “volta reflexiva”, de uma
foraclusão.
O que Žižek (1999) defenderá é que, quando Butler confunde os dois processos, acaba
não sendo radical em sua proposta de deslocamento da ordem simbólica hegemônica, pois
supervaloriza o potencial subversivo das práticas performativas. Retomemos, então, a
proposta da autora.
Butler (2002), em seu trabalho, se preocupa em produzir deslocamentos nas fronteiras
normativas, a fim de possibilitar novos modos de vida. Faz-se necessário sublinhar que não é
contra o poder que a autora se coloca, visto que considera tal feito impossível, mas contra
certos efeitos do poder, como o não reconhecimento social de algumas formas de
subjetivação. No que se refere ao tema da sexualidade, por exemplo, a autora nega o efeito
disruptivo da abolição da categoria de gênero. Ao contrário, apresenta uma nova concepção
ligada à idéia “ato performativo”. Para desconstruir a idéia de que gênero é identidade fixa e
rígida, a autora cunha este termo para designar o meio pelo qual se produz uma realidade, ou
melhor, uma ilusão de substância. Defende que o sujeito é interpelado e produzido por
normas, cujo efeito é materialização dos corpos e da própria realidade. Por trás da norma
31
O trecho correspondente na tradução é: “Nesse momento, então, Butler deve ser complementada: a emergência
da subjetividade não é estritamente equivalente à sujeição (no sentido de ‘vínculo apaixonado’, de submissão a
alguma figura do Outro), desde que para o ‘vínculo apaixonado’ acontecer a brecha que ‘é’ a subjetividade já
deve estar lá. Somente se a brecha já está lá nós podemos explicar como é possível para o sujeito escapar do
domínio da fantasia fundamental”.
113
haveria um poder regulador, cujo funcionamento se dá mediante a reiteração da primeira,
além da aplicação das exclusões. Tal inteligibilidade é baseada no conceito foucaultiano de
“biopoder”, segundo o qual não há distância entre o poder e o indivíduo, sendo este último um
efeito do primeiro. No âmbito da norma sexual, por exemplo, o sujeito é “gendrado” desde
sempre e isso se dá não só através dos dispositivos de gênero, como pela própria forma de
subjetivação.
Se gênero é uma norma, não uma essência ou estrutura, é uma construção histórico-
contingente, sendo suscetível a transformações. Não caracterizando-o como imutável, a autora
destaca a possibilidade de realização de deslocamentos disruptivos biopolíticos, pois esta
concepção normativa de gênero subentende a existência de uma potencialidade subversiva no
próprio exercício do poder. Visto para se constituir uma realidade, a norma sexual depende da
reiteração incessante, a autora conclui que é na própria prática repetitiva que se produz uma
abertura para a subversão. Esta é concebida, então, como uma repetição diferencial que
provoca deslocamentos nas fronteiras de inteligibilidade.
Desta forma não seria fundamentalmente contra o poder que nascem
as possibilidades de resistência, seja ela singular ou coletiva, mas
contra certos efeitos de poder num espaço paradoxalmente aberto na
própria estratégia de sua constituição (Arán e Peixoto Júnior, 2007:
06).
A partir de uma concepção histórica e contingente das normas de gênero, Butler (2002, 2004)
constrói sua proposta subversiva em termos de deslocamentos das fronteiras entre os gêneros
inteligíveis e os abjetos. Tomando a psicanálise como um dispositivo de poder que delimita o
campo do sujeito e o campo das identificações temidas, a autora passa a traduzir aquilo que é
excluído pela teoria sob o rótulo de “perversões”. Prescrevendo a exclusão recíproca entre
identificação e desejo, a psicanálise transforma em patologia aquilo que não é da ordem da
heterossexualidade e do binarismo sexual.
A intenção transgressiva de Butler (2002, 2004), estando baseada no seu entendimento
sobre o poder, a distancia mais uma vez de Žižek (1999), para quem a performatividade só faz
reafirmar o sistema simbólico. Em torno da noção de perversão, os autores discutem sobre o
que seria uma sexualidade disruptiva. Para o autor, Butler comete dois equívocos. Um deles é
chamar de perversão tudo aquilo que considera ser excluído pelo dispositivo psicanalítico,
associando ela mesma a priori práticas sexuais a categorias clínicas. O segundo é pré-
114
conceber o que chamou de perversão como uma categoria necessariamente subversiva. Critica
ainda seu gesto fundamental de desconstruir a idéia de identidade substancial, trocando-a pela
concepção de uma rede de relações diferenciadas não substanciais.
Segundo Žižek (1999), o deslocamento de fronteiras a partir da reconfiguração
performativa não ocasiona mudanças no campo simbólico, tendo em vista que a “repetição
diferenciada” está inserida no interior do campo hegemônico. Indica que a idéia de
performatividade é uma estratégia de transgressão ainda inserida no campo do Outro,
decodificada por esse, não podendo subvertê-lo, portanto, mas reafirmá-lo. O projeto da
autora se restringiria a uma resistência imaginária, impedindo o verdadeiro deslocamento da
rede sócio-simbólica.
Sob esse ponto de vista, a perversão não pode ser subversiva, já que é uma atitude
socialmente construída e, por isso mesmo, não atrapalha o funcionamento do Outro. A única
possibilidade de atingir o sistema simbólico e de modificá-lo seria, para Žižek (1999), através
do “ato ético”. Para explicar a sua proposta, o autor recorre ao que entende ser um equívoco
de Foucault e de Butler no que se refere à concepção de poder e de resistência. Esses termos
são conceitualizados a partir de uma relação mútua circular, o que impossibilita essa última de
solapar o sistema. Partindo dessa tese foucaultiana, a autora negligenciaria o fato de que o
próprio mecanismo de poder torna-se erotizado, de que este se torna produtor de um excesso
reflexivo. Segundo uma leitura lacaniana, atentar para a noção dialética-materialista de
“efeito” é fundamental para explicar esse excesso reflexivo: se um “efeito” pode superar sua
“causa”, esse é o caso do procedimento repressivo regulatório, que passa a ser libidinalmente
investido e a funcionar como fonte de satisfação.
Para Žižek (1999), a noção de subversão relaciona-se à idéia de ato, cujo efeito
consiste em fazer cessar a articulação simbólica. Sua perspectiva indica a suspensão
momentânea do Outro como única possibilidade de deslocar o campo sócio-simbólico e seus
princípios estruturantes. Isso só seria possível por um gesto não mais coberto pelo Outro
simbólico, ou seja, pela intervenção real do que designou de ato ético. Este último é
caracterizado por sua irredutibilidade ao “ato discursivo” e por coincidir com a forma
elementar da pulsão de morte.
O grande desentendimento entre os dois autores quanto à perspectiva de subversão do
poder pode ser colocado em torno da seguinte controvérsia: para Butler, a subversão do poder
só pode ser exercida no interior do mesmo, através de deslocamentos biopolíticos; já para
Žižek, o ato ético que subverte o sistema é somente aquele o interrompe.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
ALTERIDADE,
DIFERENÇA
E
SINGULARIDADE:
novos
desafios para a psicanálise
O foco de reflexão da presente pesquisa foi construído a partir da discussão
contemporânea sobre a questão da diferença sexual na psicanálise, surgida em meio à nova
cartografia das sexualidades: a teoria psicanalítica se limita a reproduzir a organização social,
restringindo-se à descrição da aquisição (normal ou problemática) do gênero masculino ou
feminino (Porchat, 2007)? Ou pode ser um instrumento valioso na fundamentação de uma
nova proposta, a de pensar “diferentemente o diferente”?
As teorias freudiana e lacaniana têm sido interpeladas por representantes feministas
por reproduzir normas hegemônicas de gênero, e, conseqüentemente, por restringir ao terreno
da invisibilidade os “gêneros não-inteligíveis”. A noção psicanalítica de diferença sexual está
na base dessa interpretação, tendo em vista o lugar crucial que é dado à mesma na
constituição do sujeito. Por outro lado, psicanalistas contemporâneos sugerem uma nova
leitura da psicanálise na intenção de deslocar a problemática da diferença da divisão binária
sexual.
A fim de analisar as duas hipóteses, realizou-se um retorno a Freud e a Lacan e às suas
noções de sexualidade e de diferença. O primeiro capítulo foi dedicado, especialmente à
evolução do conceito de complexo de Édipo. Foi em torno de tal conceito que Freud construiu
um quadro explicativo sobre a assunção da identidade sexual e a constituição da diferença.
Vimos como a diferença sexual, ou mais especificamente a sexualidade feminina, é um
impasse em Freud. Se, por um lado, o autor a distancia da anatomia sexual, propondo uma
fase infantil na qual o monismo sexual fálico é prevalente para ambos os sexos, por outro
lado, tropeça na tentativa de tornar inteligível a constituição da sexualidade feminina e repete
116
o modelo do dimorfismo sexual, de modo que o feminino adquire uma definição em termos
de déficit, determinada pelo paradigma moderno de gênero.
Butler (2003) reconhece na teoria das identificações a demanda teórica da psicanálise
pela diferença sexual, que partiria do pressuposto de que o sexo do objeto de amor e o sexo do
modelo identificatório jamais são os mesmos. Para a autora, mesmo na situação edipiana tida
como invertida, a heterossexualidade aparece como uma condição determinada a priori.
Em relação a Lacan, percebemos que, em sua vertente estruturalista, a diferença sexual
adquire um status transcendental, operador imprescindível e universal para a entrada no
sujeito na cultura; hipótese que mantém a problemática da diferença associada ao dualismo
hierárquico masculino/feminino.
Por sua vez, a dimensão do para-além do Édipo denota a estrutura da castração como
dependente da linguagem, e não mais da função paterna, o que, para os lacanianos, significa
dizer que a perda do gozo se dá para todos aqueles que se inserem na linguagem. A castração,
assim, deixa de exprimir um dos pólos do binarismo sexual e passa a significar o
indomesticável do gozo mediante o discurso. Para além do imaginário e do simbólico, o sexo
começa a ser compreendido em sua vertente real, de gozo. É a partir daí que Lacan indicará as
fórmulas da sexuação, cuja exposição central é tese de que os sujeito podem ser divididos em
dois modos de gozo, um todo fálico e outro não-todo fálico. Se, por um lado, as fórmulas
deslocam a questão da sexualidade do âmbito da identificação e da anatomia genital, por outro
lado, a sexuação dita feminina permanece descrita segundo o paradigma masculino, cuja
conseqüência teórica aparece na impossibilidade de qualquer determinação positivada da
mesma.
O estatuto da noção de diferença sexual na psicanálise é, então, problematizado e
ganha um vulto importante na atualidade na medida em que diz respeito a questões relativas à
interface entre teoria psicanalítica e cultura. Através das leituras de Judith Butler e Slavoj
Žižek, percorremos os principais argumentos que giram em torno do caráter normativo das
teorias da sexualidade.
Para Butler (2002, 2004), os modelos de diferença sexual defendidos pela psicanálise
são normas de gênero histórico-contingentes, ou seja, são injunções sociais normativas. A
autora evidencia sua conclusão a partir do pressuposto psicanalítico de que deve haver
coerência entre sexo, gênero, desejo e prática sexual, o que faz com que a teoria contribua
para que alguns gêneros não tenham inteligibilidade cultural e se tornem relegados à esfera da
não-aceitação. Nesse sentido, Freud e Lacan se limitaram a explicar a aquisição dos “gêneros
inteligíveis”, cooperando para a manutenção da organização social baseada no binarismo
117
hierárquico. Até então, a psicanálise recuou diante da tarefa de analisar as relações de poder
inseridas nas questões de gênero e diante da possibilidade de transformação social. Vimos
como no trabalho de Butler (2002) há uma proposta política bastante clara, qual seja, a de
realizar deslocamentos disruptivos biopolíticos como modo de subverter o poder. O
deslocamento das fronteiras de inteligibilidade seria uma potencialidade inerente ao próprio
exercício do poder, tendo em vista que a reiteração de normas inclui a possibilidade de uma
repetição diferenciada.
Mesmo considerando que a teorização de Butler (2000, 2002, 2003) levaria a uma
crítica radical da diferença sexual em psicanálise, é interessante ressaltar a proposta que
realiza no capítulo “The End of Sexual Difference?”, do livro Undoing Gender (2004).
Apesar da autora insistir na importância da questão da diferença sexual permanecer em
aberto, não resolvida, empenha-se em pensar, através do conceito psicanalítico de pulsão, uma
forma de desatrelar a diferença sexual da normatividade heterossexual.
Uma releitura da noção psicanalítica de pulsão seria uma tentativa de ultrapassar a
dificuldade de se determinar, em relação à diferença sexual, onde se inicia e termina o
biológico, o psíquico e o social. Entendendo-a como o lugar de convergência entre a cultura e
a biologia, porém distinta a ambas, a pulsão fundaria um campo de tematização daquilo que
não é apreensível na sexualidade e que provoca o fato de que as significações do corpo
extrapolam as intenções do sujeito. A pulsão, assim, evidencia a dimensão corporal que não
pode ser totalmente representada, mas que dirige todo sujeito sem, no entanto, que o mesmo
possa conhecê-la.
Butler (2004) faz questão de clarear as diferenças entre a sua proposta e a hipótese da
diferença sexual como real de Žižek (1999). No entanto, esse cuidado parece demandar que
nos debrucemos com mais atenção sobre as possíveis aproximações entre as duas
perspectivas, já que a noção de real também é uma tentativa de nomeação do inapreensível. O
sentido de dizer que a diferença sexual é real está na impossibilidade da mesma ser captada
pela articulação simbólica, incluindo aí as imposições sociais normativas. Trata-se de uma
diferença da ordem do inominável, um furo do simbólico ao redor do qual as cadeias
significantes são produzidas. Isso se aproxima da noção de pulsão enquanto dimensão
corporal que não pode ser totalmente representada.
Por outro lado, não nos esqueçamos daquilo que Butler (2004) coloca como
controverso entre a sua proposta e a da teoria lacaniana. No seu entendimento, o real se
configura como um impedimento lógico do registro simbólico e se esse último adquire um
caráter estrutural e transcendental, a diferença sexual como real também seria apreendida por
118
uma pretensa constância. Ao contrário, para a autora, a pulsão não deixa de estar relacionada
ao biológico e ao social, de modo que o que chama de “inapreensível da dimensão corporal”
também se move e se transforma. A discordância principal seria frente à idéia de simbólico
como estrutura fixa, cuja repercussão produz uma diferença sexual também rígida e universal.
Ao se elevar o real e a diferença sexual à condição de categorias transcendentais, garante-se a
ilusória imunidade das mesmas às transformações sociais e o direito a prescrever fronteiras de
inteligibilidade.
O intuito da autora é justamente o de valorizar a possibilidade de transformação da
pulsão, pois se a mesma se desloca e se transforma, pode-se supor uma pluralização da
diferença sexual (Porchat, 2007). A introdução do termo “diferenças sexuais” é uma tentativa
de fazer jus à multiplicidade de identidades sexuais. Mais do que isso, trata-se de valorizar a
flexibilidade de qualquer postulação identitária, cuja característica primordial é a
potencialidade de provocar deslocamentos biopolíticos.
À medida em que foca as suas críticas ao real pela transcendentalidade da categoria,
Butler (2000) parece se referir novamente ao contexto estruturalista da teoria lacaniana. No
entanto, a proposta de Žižek (1999) se insere em outro contexto teórico, em que há a
prevalência do real sobre os demais registros, além do enlaçamento dos mesmos em um nó
borromeano. Dizer que a diferença sexual é sem conteúdo ou real significa que sua
caracterização, sua divisão em estruturas, é o resultado da ordem simbólica, e que essa, de
certa forma, aniquila o real. O real é não-substancializado. Nessa direção, não faz sentido
tornar plural a diferença sexual, pois “o real de Lacan é sem zonas, subdivisões, altos e baixos
localizados ou lacunas e totalidades: o real é um tipo de tecido inteiro, indiferenciado,
entrelaçado de forma a ser completo em todos os lugares, não havendo espaço entre os fios
que são sua ‘matéria’ ” (Fink, 1998: 44).
A tentativa de aproximar os dois autores não pode trazer soluções para os impasses em
que se desencontram. Acredita-se que Butler e Žižek sustentam pontos de vista diferentes, o
que contribui para o caráter infindável do debate em que se encontram. Para ir além do
binarismo, o objetivo deste trabalho não foi escolher entre um pensamento ou outro, mas sim
valorizar as releituras que estes impasses provocam dentro da própria psicanálise.
Outros autores, em estudos recentes, refletem as contradições da psicanálise frente à
questão da diferença sexual e trazem novas provocações para o campo. David-Ménard (2001),
por exemplo, é outra autora que comenta o inapreensível da sexualidade como o real da teoria
lacaniana. A concepção de real sobre a qual se debruça diz respeito ao lugar ao redor do qual
giram as características identificatórias com as quais o sujeito se define, mas que, ao mesmo
119
tempo lhe escapam. Em outras palavras, o inapreensível corresponde ao inassimilável do
Outro na constituição do sujeito.
Nunes (2000) também defende que a sexuação seja colocada no terreno daquilo que
tem sua produção na relação com o Outro, o que aponta para a influência do desejo dos pais
nessa construção. Os caminhos da libido e a sexualidade do sujeito são determinados a partir
da relação com o outro parental que a engendra.
Esse campo de investigação vem sendo explorado por autores como Birman (1999), a
própria David-Ménard (2001) e Arán (2006), a partir do intuito de construir um outro espaço
sócio-simbólico para a alteridade. Para tanto, realizam novas leituras da teoria pulsional, de
forma pensar a noção de diferença para além do dispositivo da diferença sexual.
Trata-se de demonstrar que o aparelho psíquico descrito por Freud em termos
quantitativos, a partir de noções como força e excesso, revela-nos a possibilidade de pensar a
sexualidade como algo da ordem da economia e a alteridade como algo interno ao sujeito.
Essa perspectiva retoma as postulações freudianas em torno da necessidade imprescindível de
um outro sujeito não só para a sobrevivência do ser humano, como também para a origem do
processo de subjetivação. O desamparo biológico serve de metáfora para a relação do sujeito
com o Outro, tendo em vista que a dependência do infante com a figura do outro promove a
transmissão do erotismo das figuras parentais para o sujeito (Birman, 1999).
O outro, ao inaugurar e modelar a economia pulsional do sujeito, contribuindo para as
experiências de gozo e satisfação, libidiniza seu corpo. Nesse direção, David-Ménard (2001)
equivale sexuação e alteridade. Por que não acrescentar aí a singularidade, já que essa diz
respeito aos destinos pulsionais do sujeito? Birman (1999), a partir de uma releitura da noção
de feminilidade, contribui para o tema da diferença, tornando claro que a esta só pode ser
reconhecida como alteridade quando articulada à singularidade.
Outra noção freudiana que nos leva a enfatizar a relação entre diferença e
singularidade é a de estranho-familiar (Arán, 2006). A distinção entre um “exterior
irredutível” e um “interior-pulsional” é sempre provisória, o que nos permite compreender a
diferença como aquilo que subverte os limites do eu em uma mescla pulsional. A sexuação,
assim, pode ser pensada como “algo que se produz a cada momento, pois sempre se faz
provisoriamente a partir do encontro com o outro” (Arán, 2006: 215).
Como vemos, a partir das revisões da teoria psicanalítica que conferem destaque às
noções de força e economia, podemos romper com a construção de modelos universais da
diferença, em que o outro é determinado a priori. A narrativa pulsional interrompe a repetição
do princípio de identidade, permitindo a compreensão da alteridade sem a transformação do
120
outro em uma alegoria, como vimos fazer o pensamento tipicamente moderno. Ou seja, em
direção contrária à prescrição de modelos universais, transcendentais e hierárquicos para a
diferença, chega-se à idéia de que o encontro com a alteridade, interna ou externa ao sujeito, é
o encontro com a indeterminação e com a contingência.
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