Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Folhas Caídas - ADELINE YEN MAH
FOLHAS CAÍDAS
A HISTÓRIA VERÍDICA DE UMA CRIANÇA CHINESA INDESEJADA
TRADUÇÃO
ELSA MARIA BOTÃO ALVES
gradiva
Título original inglês: Falling Leaves: The True Story of an Unwanted Chinese
Daughter
(c) 1997, by Adeline Yen Mah Todos os direitos reservados Autorizada a tradução
da edição em língua inglesa por John Wiley & Sons, Inc. Tradução: Elsa Maria
Botão Alves
Revisão do texto: Manuel Joaquim Treira Capa: Armando Lopes
Fotocomposição: Gradiva
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, L.~ Reservados os
direitos para Portugal por: Gradiva-Publicações, L.d°
Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. - 1399-041 Lisboa Telefs. 397 40 67/8 -
397 13 57 - 395 34 70
Fax 395 34 71- Email: gradiva@ip.pt i1RL: http://www.gradiva.pt
2.° edição: Dezembro de 1999 Depósito legal n.° 144283/99
Dedico esta história à minha tia Baba, cuja crença ina
balável no meu valor me amparou ao longo de uma infância angustiada. Dedico-a
também ao meu marido, Bob, sem o amor do qual eu não poderia ter escrito este
livro.
Veja o nosso site na Internet http://www.gradiva.pt
Nota da autora
Esta é uma história verdadeira, grande parte da qual escrita com dor e
dificuldade. Senti, contudo, que esta era uma tarefa a cumprir. Continuo muito
ligada a diversos membros da minha família e não desejo magoar nenhum deles
desnecessariamente. Por essa razão, alterei os nomes próprios dos meus irmãos
ainda vivos, das suas esposas e dos seus filhos. Os nomes dos meus pais são,
todavia, reais, bem como todos os acontecimentos descritos nesta obra.
Indice
Prólogo: Hong-Kong, 19 de Maio de 1988.......................................13
1. Men Dang Hu Dui - A porta certa encaixa na ombreira da casa certa.........17
2. Dian Tie Cheng Jin - Transformar ferro em ouro ..........................
25
3. Ru Ying Sui Xing - Inseparáveis como a própria sombra....................
30
4. Xiu Se Ke Can - Encantos suficientemente surpreendentes para uma festa....37
5. Yi Chang Chun Meng - Um episódio de um sonho de Verão ..................
45
G. Jia Chou Bu Ke Wai Yang - Roupa suja lava-se em casa- ...................
53
7. Yuan Mu Qiu Yu - Subir às árvores para pescar............................
Página 1
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
86
8. Yi Shi Tong Ren - Tratamento igual para todos sem excepção ............. 101
9. Ren Jie Di Ling - Uma aluna brilhante numa terra maravilhosa ........... 109
10.Du Ri Ru Nian - Cada dia como um ano.................................... 116
11.Zi Chu Ji Zhu - Ideias originais para composições literárias ........... 121
12.Tong Chuang Yi Meng - Na mesma cama com sonhos diferentes ...............127
13.You He Bu Ke? - Haverá algo impossível? ................................ 131
14.Yi Qin Yi He - Um só canto, uma só garça ............................... 144
15.Fu Zhong You Yu - Um peixe a nadar num caldeirão ....................... 150
16.Pi Ma Dan Qiang - Um cavalo, uma só lança ...............................161
17.Jia Ji Shui Ji - Casa com uma galinha e seguirás uma galinha ............168
18.Zhong Gua De Gua - Colherás o que semeares ..............................177
19.Xin Ru Si Hui - Corações reduzidos a cinzas ............................ 187
20.Fu Zhong Lin Jia - Escamas e conchas dentro da barriga ................. 201
21.Tian Zuo Zhi He - União paradisíaca .................................... 213
22.Si Mian Chu Ge - Cercados por todos os lados ............................219
23.Chu Cha Dan Fan - Arroz branco e chá de má qualidade ................... 225
24.Yin Shui Si Yuan - Quando beberes da água, lembra-te da fonte .......... 233
25.Yi Dao Liang Duan - Cortar esta relação com um só golpe................. 240
26.Wu Feng Qi Lang - Fazer ondas sem vento ................................ 245
27.Jin Zhu Zhe Chi; Jin Mo Zhe Hei
Junto do vermelhão tornamo-nos avermelhados e junto da tinta [-da -china]
tornamo-nos enegrecidos ...............................................249
28.Jiu Rou Peng You - Amigos apenas para comer e beber ......................257
29.Wu Tou Gong Na - Um caso sem pés nem cabeça ............................. 266
30.Kai Meng Yi Dao - Abre a porta e saúda o ladrão ..........................270
31.Yan Er Dao Ling - Não querer ver o que é evidente.........................274
32.Luo Ye Gui Gen - As folhas que caem regressam às suas raízes .............277
PRÓLOGO
Hong-Kong, 19 de Maio de 1988
Não estaria a dizer toda a verdade se afirmasse que, em quarenta anos, era a
primeira vez que estávamos todos reunidos. Cada um de nós, separadamente, tinha
muitas vezes, algumas mesmo em segredo, participado em reuniões deste tipo,
embora em todas elas tivesse havido um denominador comum: uma ausência. Hoje era
o pai que não estava presente.
Susan, a nossa irmã mais nova, figura bem conhecida na sociedade e mulher do
banqueiro multimilionário Tony Liang, também não se encontrava entre nós. Não
tinha sido convidada para o funeral do pai nem para a subsequente leitura do
testamento. O seu nome não fora incluído no obituário publicado no Sotrth China
Morni~ag Post'. "Joseph Tsi-rung Yen", podia ler-se na nota, "amado esposo de
Jeanne Prosperi Yen, pai de Lydia, Gregory, Edgar, James e Adeline, expirou em
paz a 13 de Maio de 1988 no Hong-Kong Sanatorium."
Na manhã em que falecéra, o pai tinha sido sepultado no cemitério católico de
North Point, situado no lado oriental da ilha de Hong-Kong. Eram agora 4.30 da
tarde e encontrávamo-nos reunidos nos espectaculares escritórios de advogados
Johnson; Stokes & Masters, no
Página 2
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Jornal diário em língua inglesa publicado em Hong-Kong. (N. da T.)
13
17.° andar do Prince's Building, em Hong-Kong, prontos a ouvir a leitura do
testamento.
Ansiosos, aguardávamos na sala de conferências, sentados em volta de uma grande
mesa oval com tampo de granito polido. Tal como o chão, também de granito, a
condizer, a mesa brilhava ao sol da tarde, que inundava o aposento atravessando
as enormes janelas sobre o porto. Lydia, a minha irmã mais velha, chegou-se a
mim e, num gesto protector, passou-me o braço por cima do ombro. Os meus três
irmãos mais velhos, Gregory, Edgar e James, encontravam-se sentados ao lado uns
dos outros, de rosto sombrio. Louise, a bonita mulher de James, mirava
solicitamente a nossa madrasta, sino-francesa, a quem chamávamos - Niang o termo
chinês que significa "mãe". Acompanhada pelo seu advogado, Niang ocupava o topo
da mesa; uma nuvem de fumo libertava-se da boquilha de ouro que apertava entre
os dedos, meticulosamente arranjados. A sala parecia-me enorme e eu sentia-me
agoniada de desgosto.
O meu pai tinha sido um homem muito rico. Correra riscos no seu percurso, mas
fora sem dúvida um dos homens de negócios mais bem sucedidos de Hong-Kong.
Fugido de Xangai em 1949, fundara uma com panhia de importação-exportação, que
diversificara posteriormente para os ramos de produção, construção, comércio e
imobiliário, tendo mesmo chegado a indexá-la na Bolsa de Hong-Kong, conhecida
pelo seu alto grau de competitividade. James e Niang tinham gerido as suas
finanças a partir do momento em que a doença o impossibilitara de o fazer.
Niang apresentava-se impecavelmente vestida num dispendioso fato parisiense de
seda preta. Na lapela ostentava um grande alfinete de diamantes que combinava
com o anel que trazia no dedo. O cabelo,
pintado de preto azeviche, estava cuidadosamente penteado sobre a testa larga.
De uma carteira preta de pele de crocodilo retirou um par de óculos de marca,
que colocou sobre o nariz. Um sinal de cabeça ao advogado bastou para que, nesse
momento, cada um de nós recebesse uma cópia do testamento do pai.
O advogado pigarreou e disse:
- A mãe dos senhores, a minha cliente, Sra. Jeanne Yen, pede que não voltem a
página neste momento. Mais tarde explicar-vos-á o porquê deste pedido.
Iniciou então a leitura da primeira página, cada um de nós suspenso das suas
palavras. Senti-me como se tivesse 7 anos, quando vivia em Xangai.
"Eu, Joseph Yen, residente no n.° 18 de Magazine Gap Road, Magnolia Mansions,
n.° 10a, Victoria, colónia de Hong-Kong, afirmo ser esta a minha última vontade
e o meu testamento", assim se iniciava o documento. Seguia-se a fraseologia
habitual sobre a revogação de todos os testamentos e aditamentos anteriormente
lavrados. O pai apontava então sua mulher, Jeanne Yen, como testamenteira única.
"E a ela lego todos os meus bens, quaisquer que eles sejam e onde quer que se
encontrem." Caso Niang não lhe sobrevivesse, continuou o advogado, James seria o
único beneficiário do testamento do pai.
O advogado chegara ao final da página. Tossiu nervosamente e afirmou:
- É meu dever informá-los de que recebi instruções da Sra. Jeanne Yen, mãe dos
senhores, para vos dizer que não há dinheiro nenhum entre os bens deixados pelo
vosso pai.
Cravámos nele os olhos com o maior dos espantos. Não há dinheiro nenhum? Todos
os olhos se voltaram para Niang, a nossa madrasta. Fixou-nos um por um.
- Dado que não há dinheiro nenhum - disse ela -,não precisam de continuar a
leitura do testamento. Não há nada que vos tenha sido atribuído. O vosso pai
Página 3
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
morreu sem deixar um centavo.
Estendeu a mão e, vagarosa e relutantemente - obedecendo, contudo -, cada um de
nós lhe entregou a respectiva cópia do testamento sem ler a página seguinte,
exactamente como nos tinha sido pedido.
Ninguém proferiu palavra. O silêncio prolongado arrastava consigo uma atmosfera
de mal-estar; entretanto, continuávamos a olhar para Niang, aguardando uma
explicação.
- Nenhum de vocês parece compreender - disse Niang -, o testamento do vosso pai
não faz qualquer sentido porque ele não tinha dinheiro nenhum.
Levantou-se e entregou ao advogado todas as cópias do testamento do pai. A
leitura tinha terminado.
Ninguém pôs em causa a legitimidade das acções de Niang, do mesmo modo que
ninguém voltou a primeira página para ver o conteúdo da página seguinte.
Estupefactos e incapazes de qualquer reacção, acatámos as ordens de Niang. Não
fazíamos ideia do modo como o pai desejara dispor da sua fortuna, nem de como
imaginara o futuro da nossa família.
14
15
O pai fora uma pessoa de grande fortuna e carácter. Por que razão todos nós
devolvêramos o testamento sem o ler, como se fôssemos bonecos sem poder de
decisão?
Para explicar a docilidade de todos nós nessa tarde terei de voltar ao
princípio. Há um provérbio chinês que diz - ~,~~ luo ye gui gen ("as folhas que
caem regressam às suas raízes"). As minhas raízes assentavam numa família de
Xangai chefiada por um pai influente e pela sua mulher euro-asiática, num
cenário de portos e tratados encaixados em concessões estrangeiras, envolvidos
pela colisão do Ocidente com o Oriente, colisão essa que se deu dentro e fora da
minha própria casa.
16
1
Men Dang Hu Dui A porta certa encaixa na ombreira da casa certa
Quando tinha 3 anos, a minha tia-avó proclamou a sua independência, recusando
categoricamente que lhe ligassem os pés e, por isso, rasgava decididamente as
ligaduras assim que lhe eram colocadas. Nascera em Xangai (cidade à beira-mar),
em 1886, durante a dinastia Qing, na época em que a China era governada pelo
imperador-criança Kuang Hsu, que vivia lá muito ao norte na Cidade Proibida.
Menina mimada da família, oito anos mais nova do que o meu avô,
~ Ye Ye, a tia-avó triunfou finalmente quando se recusou a comer e a beber até
que os seus pés fossem, segundo as suas próprias palavras, "resgatados e
libertados".
No final do século Fax, Xangai não tinha par entre as outras cidades da China.
Constituía um dos cinco portos dos tratados abertos à GrãBretanha após a
Primeira Guerra do Ópio, em 1842. Tornou-se, gradualmente, um intermediário
gigante entre a China e o resto do mundo. Estrategicamente situada nas margens
do rio Huangpu, 17 milhas acima do poderoso Yangtse, a cidade estava ligada por
via marítima às pro
17
víncias ocidentais do interior. No outro extremo, mais para leste, o oceano
Pacífico ficava apenas a uns 80 quilómetros de distância. A Grã-Bretanha, a
França e os Estados Unidos da América estabeleceram concessões estrangeiras
Página 4
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
dentro da própria cidade. E ainda hoje, por entre os novos arranha-céus, a
arquitectura de Xangai reflecte a influência dos comerciantes estrangeiros.
Algumas das grandes mansões, anteriormente residências de diplomatas e magnatas
do comércio, ostentam a grandeza eduardina de qualquer casa senhorial nas
margens do Tamisa, em Inglaterra, ou até mesmo o esplendor de uma vila no Loire,
em França.
O termo extraterritorialidade significava que, dentro das concessões
estrangeiras, todos os súbditos, fossem eles estrangeiros ou chineses, eram
governados pelas leis estrangeiras, não sendo abrangidos pela
aplicação das leis chinesas. Os estrangeiros possuíam o seu próprio governo
municipal, polícia e tropas. Cada uma das concessões tornara-se uma cidade
independente dentro da própria cidade: pequenos enclaves de solo estrangeiro
situados nos portos abrangidos pelos tratados ao longo da linha costeira
chinesa. A China era governada, não por leis escritas, mas por regulamentos
provenientes de magistrados nomeados pelo imperador; tradicionalmente, os
cidadãos viam estes mandarins como semideuses. Durante cerca de 100 anos (entre
1842 e 1941), os Ocidentais foram vistos na China como seres superiores cujos
desejos ultrapassavam mesmo os dos próprios mandarins. Os conquistadores brancos
eram tratados com reverência, temor e admiração pelo chinês médio.
Os casos legais eram julgados perante um magistrado chinês, presididos, porém,
por um acessor consular estrangeiro com poder abroluto e a quem competia a
decisão final. A população local sentia-se extremamente humilhada por lhe ser
vedada a posse de ou mesmo o livre acesso a muitos dos sectores mais atraentes
dentro da sua própria cidade. Discriminação, segregação e abusos coloriam a
maior parte dos contactos inter-raciais, com os Ocidentais a considerarem os
Chineses como inferiores e vencidos. De tudo isto emergia um amargo
ressentimento.
A sul da Concessão Francesa de Xangai, o meu bisavô possuía uma casa de chá na
velha cidade murada de Nantao. Estes bairros chineses, também designados por
Cidade Velha, estavam apinhados de edifícios
baixos, pequenos mercados fervilhantes e pequenas alamedas salpica
18
das de letreiros coloridos. O negócio era bem sucedido, apesar da competição dos
vendedores ambulantes, que transportavam os seus fogões com o auxílio de varas
de bambu, vendas de berma de estrada e pequenos cafés de uma única sala. Quando
a tia-avó tinha 7 anos, o pai mudou a casa de chá para um local mais na moda,
situado na Concessão Internacional, resultado da fusão das Concessões Britânica
e Americana. Nessa altura mudou-se com toda a família para uma casa situada a
poucas ruas de distância, numa pacata zona residencial da Concessão Francesa.
Os Franceses construíam jardins, blocos de apartamentos, edifícios de
escritórios e avenidas arborizadas, que baptizavam com os nomes dos dignitários
franceses. Estas avenidas enchiam-se de cafés e automóveis importados, que
coexistiam ao Lado de carrinhos de mão, riquexós e triciclos para transporte de
passageiros. Xangai começou a ser conhecida como a Paris do Oriente, embora a
tia-avó protestasse sempre que era a Paris que deveriam chamar Xangai da Europa.
Os irmãos mais velhos da tia-avó receberam pouca instrução, mas aprenderam a ler
e a escrever com um professor particular. Sendo a mais nova de cinco irmãos, a
tia-avó foi o fruto de uma reflexão posterior. Quando chegou à idade escolar, o
meu bisavô era já um homem próspero. Matriculou-a num estabelecimento de ensino
caro e em voga na época, a McTyeire Christian Girls' School, dirigida por
missionárias metodistas americanas. Foi ela a primeira criança da família Yen a
receber uma educação estrangeira.
Página 5
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Por essa altura Xangai tornara-se o centro do comércio e da indústria chineses.
As oportunidades eram ilimitadas. O irmão mais velho da nossa tia-avó criara um
negócio bem sucedido, ao produzir peças metálicas para riquexós, triciclos,
bicicletas e alguns dos mais modernos electrodomésticos. Todavia, morreria ainda
novo, provavelmente de sífilis, uma vez que se deixara levar pelos três vícios
mais comuns entre os Chineses naquela época: ópio, jogo e bordéis. As mulheres
que dispunham de tempo para si próprias também jogavam e fumavam ópio, mas de
uma forma mais discreta, nas suas próprias casas. O segundo irmão da tia-avó
estabeleceu-se com um negócio promissor de importação e exportação de chá, mas
também ele foi contaminado por uma doença venérea e, como tal, não pôde ter
filhos. A outra irmã de ambos fez um casamento an-anjado, tendo morrido de
tuberculose. O terceiro irmão da tia-avó, o meu avô Ye Ye, era meigo e
tranquilo.
19
Budista fervoroso, alto e magro, fazia tiradas poéticas e tinha maneiras gentis.
Não gostava do corte de cabelo manchu, obrigatório na época, que consistia em
rapar a testa apanhando o resto do cabelo numa única e longa trança. Mesmo na
sua juventude mantinha a cabeça rapada (a única alternativa permitida), usava um
chapéu redondo, ajustado à cabeça, e exibia um bigode rigorosamente aparado.
Decidido a não seguir o caminho da ruína que os irmãos tinham levado, provou
ser, de longe, mais capaz do que qualquer deles.
Durante o período em que foi aluna da McTyeire, a tia-avó desenvolveu uma paixão
pela equitação que a acompanharia ao longo de toda a sua vida. Tornou-se fluente
na língua inglesa, recebeu o baptismo cristão e travou amizades com ocidentais
através da Igreja. Uma dessas amigas, membro da Associação contra os Pés
Ligados, ofereceu-lhe um emprego como funcionária de escritório no departamento
de poupanças do Banco de Xangai. Aí trabalhou durante vinte anos, tendo estudado
todos os aspectos da economia bancária. Ascendeu ao lugar de gerente da sua
divisão.
A tia-avó nunca casou. Nesse tempo, a lei permitia ainda que as filhas fossem
vendidas ou utilizadas como moeda de troca. A esposa era frequentemente tratada
como uma escrava na casa do seu marido, especialmente perante a sogra. Se não
fosse capaz de dar à luz um filho varão, uma ou várias concubinas eram trazidas
para casa. O segundo casamento para os viúvos era considerado uma rotina, mas em
relação às viúvas era visto como falta de castidade. A maioria dos homens
abastados frequentava habitualmente os bordéis, mas uma mulher que fosse infiel
ao marido poderia ser punida com a morte.
Recordo-me da tia-avó como uma figura alta e imponente, tratada com grande
estima por todos os membros da nossa família. Até Ye Ye e o próprio pai
satisfaziam todos os seus desejos, o que era extraordinário numa sociedade onde
as mulheres eram desprezadas. Por respeito, nós, as crianças, devíamos
chamar-Ihe •~; ~~~ "Gong Gong", que significava tio-avô. Era prática comum as
mulheres muito bem sucedidas assumirem, dentro do clã, o título masculino
equivalente ao seu título feminino.
Com 1,67m de altura, aproximadamente, ela era apenas um pouco mais baixa do que
Ye Ye. Direita, com uma postura digna, sem jamais ter tido os pés ligados, era
uma presença admirável, que contrastava claramente com o solícito segundo plano
característico das mulheres do
20
seu tempo. O cabelo negro, cortado acima das orelhas, era penteado para trás,
descobrindo uma testa suave acima de um rosto oval. Por detrás dos óculos
redondos, com aros de metal pintados', uns grandes olhos penetrantes. Sempre
Página 6
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
elegante, preferia os gipaos'- (vestidos chineses) de seda, escuros e de uma só
cor, com colarinhos à mandarim e botões em forma de borboleta. De pele clara,
tinha o nariz levemente salpicado de sardas. Aplicava habitualmente creme no
rosto, íím pouco de roírge e um tudo nada de bâton, adornando as orelhas com
brincos de jade ou pérolas cuidadosamente escolhidos. Movimentava-se com
facilidade e uma graça atlética, montando a cavalo e jogando ténis depois de já
ter entrado na casa dos 60. Guardo uma fotografia dela com um sorriso de
confiança, montada num grande cavalo negro, vestida com uma blusa branca,
gravata preta e calças de montar de bom corte.
Em 1924, a tia-avó fundou o seu próprio banco, o Shanghai Women's Bank. É
impossível sobrestimar este seu empreendimento. Numa sociedade feudal, onde até
a ideia de a mulher ser capaz de tomar as mais simples decisões do dia-a-dia era
motivo de troça (quanto mais de levar a cabo importantes negociações
empresariais!), nessa mesma sociedade a coragem da tia-avó era algo de
extraordinário.
A sua reputação era tão indiscutível, que ela conseguiu o financiamento para o
seu banco sem encontrar dificuldades de maior. Emitiram-se acções, que foram
compradas na sua totalidade. Todo o pessoal do banco era constituído por
mulheres e organizado para responder aos requisitos das próprias mulheres. E
elas foram surgindo: filhas solteiras, com as heranças e as poupanças que tinham
amealhado; primeiras mulheres (as chamadas grandes esposas), com os seus dotes e
o que tinham ganho a jogar mah jong'; concubinas (as chamadas pequenas esposas),
com presentes em dinheiro oferecidos pelos seus senhores; e outras mulheres,
profissionais e instruídas, cansadas de serem amparadas em estabelecimentos
dominados por homens. O Shanghai Women's Bank deu lucro desde o início e assim
permaneceu até a tia-avó se ter reformado, em 1953.
Com os lucros obtidos empreendeu a construção de um edifício de seis andares
para o seu banco, situado no n.° 480 da Rua de Nanquim,
2 Conforme o original. (1V. da T.)
' Jogo h~adicional chinês. (N. da T.)
que nos anos 20 e 30 era o mais prestigiado endereço empresarial na China. O
banco localizava-se no centro nevrálgico da Concessão Internacional, adjacente
aos maiores edifícios de escritórios e grandes armazéns, a cerca de 1500 metros
do Bund (nome dado à Wall Street de Xangai), o famoso passeio junto ao rio,
onde, nessa época, os Chineses não estavam autorizados a possuir propriedade
horizontal. Todo o pessoal do banco vivia em confortáveis instalações nos
andares mais elevados. Apenas os melhores materiais de construção foram
utilizados. Instalaram-se elevadores e a mais moderna canalização, incluindo
autoclismos, aquecimento central e água corrente quente e fria. A tia-avó
ocupava um espaçoso apartamento no 6.° andar, que partilhava com uma amiga, Miss
Guang, conhecimento que travara através da igreja. Falava-se da relação entre
ambas. Partilhavam o mesmo quarto e a mesma cama. Na China, a amizade íntima
estabelecida entre mulheres solteiras era mal vista mas tolerada. Miss Guang,
nascida em 1903, tinha dinheiro e era um dos maiores investidores da tia-avó.
Tornou-se vice-presidente do banco. Mais tarde, a tia-avó adoptou uma filha.
(Esta era uma prática comum em mulheres com meios, mas sem filhos, exigindo
poucas formalidades.) O pessoal da casa era constituído por três criadas, um
cozinheiro e um motorista. Recebiam muito. Muitas transacções eram negociadas
durante o almoço, ao sabor de uma boa sopa de barbatana de tubarão, no
apartamento da tia-avó.
Aos 26 anos, o terceiro irmão mais velho da tia-avó, o meu Ye Ye, contraiu um
casamento arranjado através de uma mei por (casamenteira chinesa). A minha avó,
Página 7
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
então com 15 anos, provinha de uma importante família' de Xangai. O casamento de
ambos foi um casamento men dang her fluis (a porta certa encaixa na ombreira da
casa certa). Do outro lado da rua onde estava instalada a casa de chá do meu
bisavô, o pai da noiva possuía uma pequena ervanária, cheia de folhas secas,
raízes, pó de chifre de rinoceronte, haste de veado, vesícula de cobra seca e
outras poções exóticas. Os noivos viram-se pela primeira vez no dia do seu
casamento, em 1903.
Na véspera do casamento, a avó foi chamada à presença do pai. - Amanhã passarás
a pertencer à família Yen - ouviu ela. - A partir de agora, esta já não é a tua
casa e não poderás entrar em contacto
connosco sem autorização do teu marido. O teu dever é agradar ao teu esposo e
aos teus parentes. Dá-lhe muitos filhos. Esconde os teus próprios desejos.
Torna-te para os Yen o seu pote de cuspir e o seu bacio e sentiremos orgulho em
ti.
No dia seguinte, uma noiva trémula, vestida de seda vermelha e de rosto coberto
por um véu também de seda vermelha, foi depositada em casa da sua futura
família, numa cadeirinha de seda vermelha e dourada , -previamente alugada numa
loja especializada em casamentos e funerais- onde estavam pintados a fénix e o
dragão. O cortejo do casamento foi colorido e bamlhento, ladeado de lanternas
vermelhas, bandeiras, ao som das trombetas e do troar dos gongos. Constituía um
ponto de honra para as famílias delapidarem o que tinham nestas ocasiões.
Contudo, no caso dos meus avós, os amigos e parentes ofereceram inúmeros
presentes de casamento, entre os quais se contavam grandes prendas em dinheiro
para que pudessem fazer face às despesas.
Os receios da noiva não tinham razão de ser, pois Ye Ye provou ser meigo e
atencioso. Por insistência dela, o casal quebrou a tradição e abandonou a casa
da família Yen, mudando-se para uma casa própria, alugada na Concessão Francesa.
Autodidacticamente, a avó dedicou-se ao estudo da matemática e daí tirava grande
proveito nos jogos diários de mah-jong. Lembro-me dela como um espírito sagaz,
com uma vontade de ferro, uma fumadora inveterada, de pés ligados, cabelo curto
e uma língua cortante.
Aos 3 anos de idade, os pés da avó tinham sido fortemente apertados com
ligaduras longas e estreitas, que comprimiam os quatro dedos menores por debaixo
da planta do pé, de tal modo que apenas o dedo grande se estendia. Estas
ligaduras eram apertadas diariamente durante anos, esmagando dolorosamente os
dedos e impedindo permanentemente o crescimento do pé, por forma a obter-se um
pezinho minúsculo, tão do agrado do homem chinês. Na realidade, as mulheres eram
deliberadamente deformadas e a sua incapacidade para andarem com facilidade
simbolizava tanto a subserviência como a riqueza da própria família. Os pés da
avó foram, durante toda a sua vida, a causa de muitas dores. Mais tarde preferiu
enfrentar o ridículo aos olhos da sociedade a infligir à sua própria filha o
mesmo sofrimento.
Os meus avós vieram a amar-se e tiveram sete filhos, uns a seguir aos outros. De
todos eles, só os dois mais velhos sobreviveram. A tia Baba, nascida em 1905, e
o meu pai, que veio ao mundo dois anos mais tarde.
23
A 10 de Outubro de 1911, na altura em que a tia Baba tinha 6 anos, a dinastia
manchu viu chegar o seu fim. O Dr. Sun Yat Sen, chefe dos revolucionários
chineses, regressou a Xangai, vindo do exílio, triunfal mente aclamado no dia de
Natal desse mesmo ano. Foi nomeado presidente da República da China e um dos
seus primeiros actos foi abolir o costume de ligar os pés das mulheres.
Ye Ye sustentava a família através da compra e aluguer de uma pequena frota de
Página 8
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
sampanas 6 que cruzavam a superfície do rio Huangpu no bulício das águas de
Xangai. As mercadorias eram transportadas de e para o interior da China, para
serem depois carregadas nos cargueiros transoceânicos ancorados em frente do
Bund. Ye Ye nunca jogava e jamais gastava o seu dinheiro em bordéis ou em ópio.
Quando chegou aos 40 anos, já tinha acumulado uma riqueza considerável. Foi
então abordado pelo jovem K. L. Li, o dinâmico proprietário de uma prometedora
companhia de importação-exportação - a Hwa Chong Hong -, para que se tornasse
gerente da companhia em Tianjin, uma cidade portuária a cerca de 1600
quilómetros a norte de Xangai.
O certo é que Ye Ye tinha um segredo: enjoava sempre que viajava de barco e
detestava pôr um pé que fosse nas suas próprias sampanas. Assim, e apesar de o
seu próprio negócio estar em franco desenvolvi mento, decidiu vendê-lo e
mudar-se para o Norte, deixando para trás a família, pois a tia Baba e o pai
frequentavam ambos aquelas que eram consideradas das melhores escolas
missionárias católicas na China e ele não desejava de modo algum perturbar-lhes
os estudos.
6
Pequena embarcação chinesa usada no transporte de passageiros ou carga. (N. da
T.)
2
Dian Tie Cheng Jin Transformar ferro em ouro
No ano de 1918, quando Ye Ye se mudou para ~ ;~ Tianjin (ou Átrio Celeste), o
último imperador da dinastia Qing havia sido destituído e a China dividira-se em
pequenos feudos governados por senhores. Ao norte, o Japão tinha já a Coreia sob
controlo e voltava agora os olhos para a China. Na Conferência de Paz de
Versalhes, no fim da primeira guerra mundial, o Japão recebera autorização da
Grã-Bretanha e seus aliados para ficar com as colónias alemãs na província de
Shandong, como recompensa por ter mantido a neutralidade. Assim encorajado, o
Japão iniciava a sua marcha em direcção à Manchúria. Os soldados japoneses
infiltraram-se depois no Sul, em direcção a Tianjin.
Situada nas longas e férteis planícies do Nordeste, Tianjin era o segundo maior
porto dos tratados. Fora aberto ao comércio após a segunda derrota da China pela
Grã-Bretanha (e França) durante a Segunda Guerra do Ópio, em 1858. O Tratado de
Tianjin acrescentara dez novos portos entre a Manchúria e Taiwan. A cidade
enfermava de
24
25
Verões quentes e secos e de Invernos extremamente gelados. Em terreno plano,
cruzado por diversos braços fluviais do rio Huai, era também dada a inundações.
Entre Novembro e Março os rios estavam gelados e, ocasionalmente, havia
tempestades de areia. Enquanto a arquitectura em Xangai reflectia
primordialmente as influências inglesa e francesa, os edifícios de Tianjin
formavam um espantoso caleidoscópio de estilos arquitectónicos, que eram em si
mesmos a imagem dos países aliados na derrota da imperatriz Tsu Hsi durante a
Revolta Boxer, em 1903. Além de edifícios de escritórios de traça vitoriana e de
igrejas francesas, havia também dachas russas, um castelo prussiano, vilas
italianas, casas de chá japonesas e chalés alemães e austro-húngaros, todos eles
situados em concessões separadas, que se sucediam umas às outras, acompanhando a
curva do rio. Mais uma vez Ye Ye voltou a escolher a sua casa na Concessão
Francesa, um enclave em forma de língua, espartilhado entre os Japoneses ao
Norte, os Britânicos ao Sul e os Russos do outro lado do rio. A área da
concessão estava cuidadosamente arranjada, com avenidas arborizadas, linhas de
Página 9
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
eléctricos, uma imponente igreja católica, escolas missionárias e alegres
espaços verdes.
Entretanto, nunca os negócios tinham corrido tão bem. Tanto Tianjin como Xangai
prosperavam. Dinheiro britânico, americano, europeu e japonês voltava a entrar
na China com o final da primeira guerra mundial. Aço e cimento substituíam as
anteriores estruturas vitorianas ao longo do rio. As fábricas surgiam nas áreas
industriais para a produção têxtil em lã e algodão, tapetes, vidro, cimento,
ladrilhos, papel, sabão, fósforos, pasta de dentes, farinha e outros produtos
alimentares. Sob a gestão de Ye Ye, a Hwa Chong Hong conheceu a prosperidade. E
ficou mesmo encantado quando verificou que o bónus que tradicionalmente lhe era
concedido pela altura do Ano Novo chinês excedia largamente o seu salário anual.
Para celebrar a sua prosperidade, amigos e colegas de trabalho instavam-no a
tomar uma concubina que o "servisse". Até o próprio patrão de Ye Ye, K. C. Li,
que estudara em Londres, se prontificou alegremente a "oferecer-lhe" algumas
raparigas juntamente com o seu bónus. De tudo isto Ye Ye deu parte à mulher numa
carta escrita com grande naturalidade, acrescentando ternamente que era um
"homem de uma só mulher".
Pouco tempo depois de ter recebido esta carta, a avó e a tia Baba, então com 15
anos, apressaram-se a ir ter com ele a Tianjin, deixando
26
para trás o meu pai, na altura com 13 anos, ao cuidado da minha tia-avó. A tia
Baba recebeu instruções para deixar de estudar, pois os grandes estudos eram
considerados prejudiciais ao bom casamento de uma jovem. Confúcio tinha afirmado
que "apenas as mulheres ignorantes eram virtuosas".
O pai ficou em Xangai e continuou a frequentar Chen Tien, uma escola católica
para rapazes. O seu inglês era excelente e Ye Ye aconselhou-o a não deixar o
óptimo professor que tinha na época, um missionário irlandês. O pai viveu com a
tia-avó até ao final dos seus estudos secundários, cinco anos mais tarde.
Durante esse tempo converteu-se ao catolicismo, recebendo o nome de Joseph.
Desenvolveu também uma estreitâ relação com a tia-avó, que se tornou para ele um
exemplo a seguir.
Quando terminou o liceu, em 1924, o pai decidiu não ir para a universidade.
Juntou-se à família em Tianjin e arranjou um emprego de paquete num escritório
na firma Hwa Chong Hong, sob a supervisão de Ye Ye. Apesar de receber um magro
salário e de ocupar um lugar sem qualquer importância, o pai afirmaria mais
tarde ser essa a melhor educação para um adolescente inteligente e sem qualquer
experiência. Aprendeu então na prática tudo o que se relacionava com o negócio
de importação-exportação. Devido à sua fluência em inglês, K. C. Li depressa
entregaria ao pai toda a correspondência da firma que era necessário redigir e
traduzir.
O pai comprou uma máquina de escrever em segunda mão e muitas vezes, já em casa,
a seguir ao jantar, escrevia importantes cartas de negócios, com toda a família
apinhada em redor da mesa de jantar na maior admiração. Certa vez, Ye Ye
perguntou em voz alta como reagiriam os chefes dessas importantes companhias se
algum dia descobrissem que documentos da maior importância e que valiam centenas
de milhares de taéis de prata estavam a ser martelados com um só dedo por um
rapaz de 18 anos acabado de sair do liceu.
A Hwa Chong Hong desenvolveu relações lucrativas com importantes companhias
farmacêuticas, incluindo a firma alemã Bayer. Grandes quantidades de uma planta
chinesa chamada ma huartg' eram adquiridas pela Hwa Chong Hong para exportação.
A mesma planta fora utilizada por ervanários chineses durante séculos no
tratamento da
Página 10
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Conforme o original. (N. da T.)
27
asma e do mal-estar. Provavelmente, os cientistas ocidentais identificaram e
extraíram a componente-chave da planta, a efedrina. Esta era então reimportada
pela China na sua forma mais pura, para ser finalmente vendida nas farmácias de
medicina ocidental.
Entretanto, fora das concessões estrangeiras, a presença militar japonesa em
Tianjin tornava-se cada vez mais forte. Cruéis e bem armados, os soldados
japoneses eram a lei e tratavam os Chineses com desprezo. A prosperidade da Hwa
Chong Hong não passou despercebida aos Japoneses. A sede da companhia situava-se
no exterior da Concessão Francesa e, como tal, não era protegida pela lei
francesa. K C. Li era insistentemente convidado a "colaborar". Não existiam
ordens formais, apenas ameaças vagas que apontavam para a necessidade de
"protecção contra elementos criminosos". Durante uma "visita" de rotina
efectuada pelos inspectores japoneses, os empregados de K. C. foram
indiscriminadamente espancados por não mostrarem respeito suficiente pelas
fotografias do imperador do Japão existentes em jornais velhos, que eram
cortados e usados como papel higiénico. K. C. apercebeu-se de que a situação
poderia explodir a qualquer momento. Em vez de ceder à repressão japonesa,
decidiu abandonar Tianjin.
O pai não seguiu a Hwa Chong Hong. Em vez disso, aos 19 anos, em 1926, iniciou a
sua própria firma dentro da Concessão Francesa de Tianjin: a Joseph Yen &
Company.
Ye Ye acreditava de tal modo na oportunidade do negócio do pai que investiu
todas as suas economias - cerca de 200 000 taéis de prata (o equivalente a mais
de 1 milhão de dólares americanos em moeda actual) - na firma criada pelo seu
filho. Ye Ye demitiu-se da Hwa Chong Hong e tornou-se o director financeiro da
nova empresa. Não houve assinatura de contratos formais entre pai e filho.
Também não ficou claro se o dinheiro investido era uma oferta ou um empréstimo.
Todavia, Ye Ye tinha poder para assinar todos os cheques da companhia e
conseguiu arrancar do pai uma promessa verbal de que olharia por todos os
membros da família e pagaria todas as despesas, incluindo o dote da tia Baba, no
caso de ela vir a casar. Por esta altura a minha tia tinha já deixado Tianjin e
estava a viver em Xangai. O banco da tia-avó, acabado de abrir, prosperava.
Havia uma necessidade urgente de empregadas de confiança e a tia Baba foi
enviada para trabalhar no banco.
A companhia fundada pelo pai prosperou desde o início, agarrando a maioria dos
negócios deixados para trás pela Hwa Chong Hong.
28
A exportação de ma huang continuou e o mesmo aconteceu com a de sementes de noz,
chapéus de palha, cera para velas, cerda de porco e frutos secos; no ramo das
importações contavam-se as bicicletas e os produtos farmacêuticos. Numa
atmosfera de turbulência política e de uma presença japonesa cada vez mais
dominante, muitos negócios surgiam no mercado a preços extremamente baixos e a
companhia do pai expandiu-se rapidamente através da compra de acções. Em breve
adquiria uma serração, uma fábrica de tecelagem e uma linha de montagem de
acessórios para bicicletas. O pai conseguiu manter a lealdade do pessoal que
estava em postos-chave através de incentivos sob a forma de acções das suas
novas companhias. A tia-avó e o seu banco desempenharam um papel crucial no
êxito inicial dos negócios do pai e no seu rápido desenvolvimento. Era ela quem
tinha os contactos em Tianjin, entre os quais o gerente da sucursal local do
Página 11
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Banco de Xangai. Com a sua ajuda, a Joseph Yen & Company conseguiu emitir letras
de crédito no valor de meio milhão de dólares americanos garantidos pelo Women's
Bank, da tia-avó. O acordo que tinham entre ambos era a divisão dos lucros
líquidos depois de deduzidas as despesas, na proporção de 70/30 a favor do pai.
Centenas de milhares de taéis de prata mudavam de mãos a cada transacção
efectuada. Todos os negócios davam lucro e em três anos nunca sofreram prejuízo.
O pai começou a ser conhecido no mundo dos negócios como o "rapaz maravilha" que
possuía o dom milagroso de dian tie cheng fin (transformar ferro em ouro).
As casamenteiras movimentavam-se à volta do jovem magnata. Contudo, com a mesma
altivez que lhe trouxera vantagens nos negócios, declarava que não havia
rapariga em Tianjin que não fosse tristonha e provinciana. Mostrava assim
preferir o brilho e a sofisticação das jovens de Xangai.
29
3
Ru ying sui xing
Inseparáveis como a própria sombra
No final dos anos 20 Xangai era uma cidade inebriante para uma jovem como a tia
Baba. Enquanto no resto da China se viajava ainda em carroças, cadeirinhas e
canoagens puxadas por cavalos, em Xangai os automóveis importados corriam as
avenidas pavimentadas ao lado de eléctricos e autocarros. Placares gigantes e
coloridos anunciavam cigarros britânicos, filmes de Hollywood e produtos de
beleza franceses ao longo de passeios apinhados de jovens de fato e gravata e de
raparigas de sapatos de salto alto vestidas com gipaos cheios de estilo. O Bund,
muito próximo do Women's Bank, na Rua de Nanquim, transformara-se num cenário de
edifícios majestosos que acompanhavam a margem do rio Huangpu. Barcos de guerra,
vapores, sampanas e rebocadores engrinaldavam as águas lamacentas. Armazéns de
vários andares, como o Sincere, Wing-On, Dai-Sun e Sun-Sun, transbordavam de
peles, jóias, brinquedos, artigos de casa, ornamentos e artigos que constituíam
o último grito da moda parisiense. Suficientemente gran
30
des para rivalizarem com o Selfridges, de Londres, ou o Macy's, de Nova Iorque,
estes empórios faziam saldos de fim de estação, distribuíam cupões e prémios e
chegavam a realizar concertos e representações teatrais nos jardins dos seus
terraços.
A tia Baba tornou-se amiga de uma rapariga um ano mais nova do que ela e que
trabalhava no novo departamento de contabilidade. Miss Ren Yong-ping tinha a
capacidade de efectuar de cabeça complicadas conversões cambiais com uma
precisão e velocidade espantosas. Mesmo quando a tia-avó verificava os cálculos
com o ábaco, chegava à conclusão de que ela nunca-se enganava. Brilhante,
bem-disposta e cheia de vida, o sorriso fácil e meigo tornava-a atraente.
Miss Ren era oriunda de uma família da classe média de Xangai que lutara para
singrar na vida depois do pai, um empregado dos correios, se ter viciado no ópio
e haver passado os últimos vinte anos da vida com o espírito nublado pela droga.
Única rapariga, tinha três irmãos mais novos, dois dos quais trabalhavam também
nos correios, tendo chegado ao lugar de inspectores. Ela própria foi rapidamente
promovida pela tia-avó a chefe do novo departamento de contabilidade.
A trabalhar nos pisos inferiores e passando o seu tempo livre no dormitório, as
duas raparigas depressa se tornaram grandes amigas. A tia Baba recorda-se de uma
altura em que ela e Miss Ren almoçaram sozinhas no restaurante dos armazéns
Sincere, ao tempo conhecido como o "Harrod's de Xangai", porque o edificio era
muito semelhante ao dos famosos armazéns londrinos. As duas amigas chamaram
riquexós que as transportaram ao longo da movimentada Rua de Nanquim, onde os
Página 12
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
semáforos eram controlados manualmente por polícias Sikh de turbantes vermelhos,
instalados em pequenas cabinas localizadas no topo de postes, cerca de três
metros e meio acima do chão. O restaurante era elegante, as mesas tinham toalhas
brancas, flores naturais e copos de cristal. Nos menus havia apenas pratos
ocidentais, desconhecidos de ambas. Não havia comida chinesa.
Um pouco intimidadas pelo empregado de mesa de fato escuro, perguntaram a medo
se havia um prato do dia. Informada de que havia re gous (carne de cão, servida
quente), a tia Baba não se atrapalhou muito. Já tinha ouvido dizer que em
algumas províncias chinesas a carne de cão era considerada uma iguaria. Miss
Ren, porém, estava
3
Ru Ying Sui Xing Inseparáveis como a própria sombra
a Conforme o original. (1V. da T.)
31
muito mais hesitante, porque se lembrava do cão que havia em casa da família.
Muito despachada, observou que o "prato do dia" significava geralmente "restos
do dia anterior".
O empregado estava a ficar impaciente. Era um daqueles chineses que tinham
adoptado a arrogância dos estrangeiros e preferia servir à mesa quando os seus
clientes eram brancos das concessões. Naquela ocasião, as duas raparigas eram as
únicas chinesas no restaurante. Começaram a sentir-se como duas simplórias e,
mais para se verem livres do empregado do que por qualquer outro motivo, pediram
a carne de cão. A tia Baba foi agradavelmente surpreendida por uma salsicha,
servida no pão, e comeu-a com apetite. Para Miss Ren, contudo, era impossível
deixar de pensar no cãozinho que tinha em casa e não conseguiu passar da
primeira dentada. Riram-se com gosto quando, finalmente, a tia-avó lhes explicou
que ~h ~~ re gott "carne de cão, servida quente" era, na realidade, o clássico
cachorro quente americano.
Numa das inúmeras viagens de negócios que o pai fazia a Xangai, ao Women's Bank,
foi apresentado a Miss Ren. ~~• r~ ~ ~, Xiao giao lirtg loatg (pequenina, viva e
interessante) foi o veredicto do pai. Começaram a escrever-se. Cinco meses mais
tarde estavam casados. Houve um enorme banquete oferecido no Restaurante Xin Ya
(Nova Ásia), situado na Concessão Internacional, logo à saída da Rua de Nanquim.
Além dos familiares directos, foram convidados parceiros comerciais do pai e da
tia-avó. Corria o ano de 1930.
O pai levou a noiva para Tianjin e comprou uma casa grande no n.° 40 da Rua
Shandong, comodamente situada no centro da cidade da Concessão Francesa e muito
perto de um jardim público. Do outro lado da rua situava-se o colégio católico
masculino de St. Louis.
Foi um casamento feliz e em quatro anos tiveram quatro filhos. O jovem casal era
~¿u pi ~~s rtt yitag sui xing (inseparável como a própria sombra). Primeiro
nasceu uma menina. O bebé era grande e a Dr.a Mary Mei-ing Ting, obstetra, teve
de usar o fórceps durante um parto difícil. Foi necessário fazer força e o bebé
(Jun-pei, a minha irmã mais velha) nasceu com o braço esquerdo parcialmente
paralisado. Nasceram depois três filhos (Zi-jie, Zi-lin e Zi-jun). Passaram-se
três anos antes que eu, Jun-ling, viesse ao mundo.
A casa onde vivia a nossa família era espaçosa, tinha dois andares e ainda um
grande sótão, onde os criados dormiam. Com as suas
32
janelas em arco, varandas, um alpendre encantador e um bonito jardim, era
Página 13
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
considerada ultramoderna, pois possuía casas de banho com autoclismo, água
corrente e aquecimento central. Este último constituía o maior dos luxos: muitas
casas chinesas eram ainda aquecidas através de tijolos quentes, a que se dava o
nome de kangs9.
O pai transformou o piso térreo em escritórios para alguns elementos do seu
pessoal. O resto da família vivia com Ye Ye e a avó no 2.° andar. Sete criados
cuidavam da vida doméstica. O pai comprou um grande Bttick preto para seu uso
pessoal e um riquexó preto para a avó utilizar nas visitas aos amigos ou quando
ia jogar mah jong.
Muitas vezes a tia Baba apanhava o comboio de Xangai para Tianjin - uma viagem
que naqueles tempos demorava dois dias - e fazia longas visitas. O pai e a mãe
iam buscá-la à estação no Buick e os três passavam horas a pôr a conversa em
dia, tagarelando sobre as últimas novidades de Xangai ou sobre os últimos
triunfos comerciais da tia-avó. Saíam para comer fora, ir ao cinema ou à ópera
chinesa. Segundo a tia Baba, foi um tempo idílico para todos eles.
Na altura em que nasceram os meus três irmãos, a obstetra da mãe, a Dr.a Ting,
era já quase um membro da família. Tal como a tia-avó, que tinha sido sua colega
de escola e amiga de infância, também ela tinha sido educada em Xangai, no
colégio McTyeire. Convertera-se ao cristianismo e aos 15 anos fora rapidamente
empurrada para um casamento arranjado. O noivo provinha de uma família rica, mas
estava já nessa altura doente, tinha acessos de dores e era viciado no ópio. No
dia do casamento, a noiva desapareceu como que por encanto. Os pais foram
processados e obrigados a pagar à família do noivo um elevado número de taéis de
prata como forma de compensação pela quebra da promessa, para além de terem
perdido a face. Com a ajuda de um tio, Mary escapara para Hong-Kong, onde
prosseguiria os estudos numa outra escola missionária. O tio de Mary seguiu-a
para Hong-Kong, cortou a trança e enviou-a à família em Xangai em gesto de
desafio. Tratava-se de um crime grave que correspondia a uma declaração pública
de rebelião contra o imperador Qing. (Depois de os Manchus terem conquistado a
China, em 1644, tinham imposto o uso de testa rapada e trança a todos os
chineses, vincando assim o seu domínio). Mary e o tio foram ambos deserda
' Conforme o original. (N. da T.)
33
dos. Em Hong-Kong ele empregou-se para pagar os estudos de Mary. Mais tarde, ela
obteve uma bolsa para a Faculdade de Medicina da Universidade de Michigan e
especializou-se em Ginecologia e Obstetrícia. De regresso à China, preferiu
estabelecer-se em Tianjin em vez de Xangai, onde a perseguiam recordações
dolorosas. Fundou o seu Women's Hospital e tornou-se a melhor obstetra da
cidade. A minha irmã e os meus três irmãos mais velhos nasceram todos no
hospital da Dr.a Ting.
Quando a minha mãe ficou à espera de mim própria, a situação política na China
tinha-se deteriorado drasticamente. Em 1928 o senhor da guerra manchu, Chang
Tso-lin, foi assassinado pelos Japoneses enquanto viajava de comboio na sua
carruagem privada. Nos anos seguintes a Manchúria seria invadida por soldados
japoneses. Em 1932 estabeleceu-se um regime fantoche (Manchukuo ou Nação dos
Manchus) sob o imperador Puyi, então uma criança. Os Estados Unidos recusaram um
envolvimento directo. A Grã-Bretanha voltou as costas e recomendou um acordo. A
Liga das Nações prometeu investigar. Chiang Kai-shek, comandante-chefe do
exército e chefe do Partido Nacionalista (Kuomitang), estava totalmente ocupado
no combate aos comunistas; estes, por seu lado, tinham formado um exército
próprio e um governo na cidadela rural de Yan'an, na região noroeste da China.
Página 14
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Animado, o Japão decidiu lançar um ataque em grande escala a Tianjin e Beijing
em Julho de 1937. Foi este o início da Guerra SinoJaponesa, que durou oito
longos anos.
Havia soldados japoneses por todo o lado, usando máscaras cirúrgicas, carregando
baionetas, exigindo vénias e obediência, aceitando subornos e ameaçando com
violência. As concessões estrangeiras
mantiveram-se neutras, pequenos paraísos de independência instável num vasto mar
de terror japonês. O restante território de Tianjin vivia agora sob a enorme
vaga de pavor dos Japoneses. Ao anoitecer havia black-outs e recolher
obrigatório. Para cruzar determinados pontos durante a noite eram necessárias
autorizações especiais, principalmente nas ruas e pontes que ligavam as
concessões às áreas patrulhadas por japoneses.
A minha mãe entrou em trabalho de parto às 4 da manhã do dia 30 de Novembro de
1937. O pai não tinha a autorização necessária para que ela atravessasse os
postos de controlo japoneses em direcção ao
Women's Hospital. No entanto, a Dr.a Ting possuía um passe que lhe
34
permitia viajar livremente durante a noite. O seu Ford preto, conduzido por um
motorista e ostentando uma bandeirinha dos Estados Unidos, chegou a casa dos
meus pais uma hora mais tarde. Nasci sem novidade de maior.
A Dr.a Ting aconselhou o pai a transferir a mãe e o bebé para o seu hospital
para um check-crp e alguns dias de descanso. O pai hesitou. O nascimento tinha
sido tão suave e rápido que considerou a medida desnecessária. Também rejeitou o
conselho da Dr.a Ting para contratar uma enfermeira que cuidasse da minha mãe.
Achava que ele próprio podia olhar por ela, com a preciosa ajuda da tia Baba,
que, nessa altura, estava de visita. Além disso, as enfermeiras com experiência
eram dispendiosas. À cabeceira da mãe foi colocada uma campainha especial para
que pudesse chamar o pai sempre que precisasse. A mãe estava fraca e por isso,
em vez de utilizar a casa de banho do corredor, era mais fácil colocar-lhe uma
arrastadeira. Depois o pai vinha limpá-la com uma toalha, sem luvas e sem lavar
previamente as mãos. A mãe achava que o pai sabia o que estava a fazer. O pai
estava convencido de que sabia o que estava a fazer.
Três dias depois do meu nascimento começaram as dores de cabeça e a febre. A
temperatura da mãe subiu acima de 40°C e aí ficou. Os lábios estavam ulcerados.
O raciocínio turvou-se e ela tornou-se incoerente. A Dr.a Ting fez o
diagnóstico: febre puerperal. Nesse tempo, quando a penicilina ainda não
existia, este diagnóstico equivalia a uma sentença de morte.
A minha mãe deu entrada imediata no Women's Hospital. Puseram-na a soro e, por
via intravenosa, administraram-lhe diversos medicamentos, numa tentativa
desesperada para a salvar. A temperatura subiu a 41°C. Delirava, recusava todo o
tipo de alimentos e bebidas, tentou arrancar todos os tubos, proferindo
acusações cruéis cóntra a Dr.a Ting, afirmando que estava a tentar prendê-la e
envenená-la. A médica compreendeu que não havia qualquer esperança e autorizou
que fosse para casa, para morrer.
O seu estado agravou-se. Os médicos vieram, uns após outros, mas em vão. Uma
nuvem negra pairava sobre toda a família.
Com a aproximação do fim veio também um curto período de lucidez. Com o pai em
lágrimas à cabeceira, ela falou aos seus sogros, observou as crianças uma por
uma, chamando-as pelo nome com saudade. Quando a tia Baba se veio despedir, a
mãe estava fraca,
35
Página 15
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
mas perfeitamente lúcida. Sorriu-lhe e pediu-lhe um cachorro quente. Depois
acrescentou tristemente:
- O meu tempo chegou ao fim. Quando eu me for embora, por favor, olha por esta
nossa amiguinha, que nunca conhecerá a mãe. A minha mãe morreu duas semanas
depois de eu ter nascido, com cinco médicos à cabeceira. Tinha apenas 30 anos e
não sei sequer como era o seu rosto. Nunca vi o seu retrato.
36
4
Xiu Se Ke Can Encantos suficientemente surpreendentes para uma festa
Após a morte da minha mãe, a avó e o pai convenceram a tia Baba a deixar o seu
emprego no Women's Bank para ir para Tianjin tomar conta da casa. Foi assim que
foi incluída na lista de pagamentos da Joseph Yen & Company, recebendo um
salário igual ao que tinha quando trabalhava para a tia-avó. A tia Baba
apressava os criados e resmungava com eles, assegurando que as lides domésticas
decorressem conforme as directivas de outrora. Tornou-se uma mãe substituta,
preocupada com as nossas refeições, roupas, a escola e a saúde. Assim, à volta
dos seus pulsos voluntariosos foram colocadas como que umas algemas de seda, que
inviabilizaram todas as hipóteses de um casamento e da criação da sua própria
família. Nesse tempo, na China, esperava-se que as mulheres sublimassem os seus
desejos ao bem-estar da sua família. Em troca, os homens assumiam o compromisso
de honra de as proteger e sustentar até ao fim da vida.
37
As casamenteiras voltaram a surgir, não por causa da tia Baba, mas por causa do
seu irmão, que acabara de enviuvar. Dois padrões diversos abrangiam homens e
mulheres: as raparigas que ainda estivessem solteiras aos 30 anos deveriam
permanecer como tal para o resto da vida, ao passo que dos homens se esperava
que tomassem pelo menos uma esposa, independentemente da idade que tinham. O pai
tinha acabado de fazer 30 anos e dirigia a sua própria companhia, possuía
propriedades, investimentos e os seus muitos negócios floresciam. Trabalhara
arduamente para conseguir chegar onde chegara, colocando os negócios e o
bem-estar da família à frente da sua realização pessoal. Agora estava decidido a
agradar a si próprio.
Um domingo à tarde, de passeio pela vizinhança com os filhos no vistoso Buick
que possuía, avistou a sua secretária, Miss Wong, à porta de um modesto complexo
de apartamentos a conversar com uma amiga.
Reparou de imediato que se tratava de uma amiga muito jovem e que possuía xiu se
ke can (encantos suficientemente surpreendentes para uma festa).
Jeanne Virginie Prosperi tinha 17 anos e era filha de pai francês e mãe chinesa.
Os seus traços eram uma admirável mistura de delicadeza chinesa com sensualidade
francesa. Com o rosto oval, tinha a tez de um branco-porcelana, olhos escuros,
grandes e brilhantes, completados por longas sobrancelhas. O rosto era coroado
por uma cabeleira espessa e sedosa cor de azeviche. Naquele dia, aquela figura
esguia usava uma simples blusa branca de decote quadrangular arredondado e saia
azul-escura atada por um laço à cintura. Mais tarde, o pai viria a descobrir que
Jeanne era uma costureira exímia e que confeccionava as suas próprias roupas.
No dia seguinte, no escritório, o pai fez algumas perguntas discretas a Miss
Wong e descobriu que Jeanne era sua colega de escola e tinha justamente começado
a trabalhar como dactilógrafa no consulado francês. Durante a hora do almoço
dirigiu-se ao consulado sob pretexto de solicitar licenças de
importação-exportação para França, encontrou-a e travou conhecimento com ela.
O pai de Jeanne fora militar no exército francês e trabalhara na construção dos
Página 16
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
caminhos-de-ferro na China. Desposara uma mulher da província de Shandong.
Tinham tido cinco filhos e pas
sado tempos difíceis. Ele deixara o exército e arranjara trabalho como segurança
numa firma da Concessão Francesa em Tianjin. Fale
cera subitamente em 1936, ao que parece, quando tentava impedir uma rixa de bar.
A viúva fez o melhor que pôde. Recebia uma pequena pensão de viuvez. Juntamente
com uma irmã solteira, Lao Lao, dedicou-se à costura a fim de conseguir
sustentar-se. Cidadãos franceses, as cinco crianças receberam bolsas de estudo
especiais, atribuídas pelas escolas missionárias dentro da Concessão Francesa.
Tanto Jeanne como a sua irmã mais velha, Reine, receberam o diploma da St
Joseph's Catholic School for Girls, um colégio de freiras franciscanas.
Embora Jeanne não tivesse um estatuto social digno de nota, formara-se no melhor
colégio religioso de Tianjin, tendo adquirido alguns dotes que lhe permitiam
brilhar socialmente. Além de mandarim, falava fluentemente francês e inglês. O
pai ficou encantado com a sua beleza e o seu estilo. O facto de ter sangue
europeu fazia dela um troféu que tinha de ser conquistado, aplaudido e exibido.
Durante os anos 30, nos portos dos tratados como Tianjin e Xangai, tudo o que
era ocidental era considerado superior àquilo que era chinês. Uma esposa
europeia jovem, bonita e instruída representava o nível máximo em termos de
estatuto social. Jeanne Prosperi possuía, assim, um encanto considerável. Estava
sempre perfeitamente arranjada, uma característica que manteve ao longo de toda
a sua vida. Ainda adolescente, mostrava todo o encanto da modéstia que lhe fora
instigada no convento. Além disso, havia um brilho nos seus olhos, que revelava
mais do que uma vulgar rapariga acabada de sair do colégio. O pai começou a
desejar Jeanne desesperadamente, num desejo em que a atracção sexual se
misturava com as suas aspirações sociais. Iniciou-se um namoro em conformidade
com as leis do decoro.
Todos os dias o pai a ia buscar ao consulado francês para a levar a casa,
poupando-a aos desconfortáveis apertos dos transportes públicos de Tianjin.
Frequentavam restaurantes caros nos hotéis, dançavam no cottntry clttb e iam ao
cinema. Tianjin orgulhava-se de possuir três cinemas - o Gaiety, o Empire e o
Capitol -, que exibiam filmes românticos de Hollywood. Primeiro ele ofereceu-lhe
flores e bombons; depois pérolas, jade e diamantes. O valor das jóias aumentou
progressivamente. Jeanne teve certamente uma ideia bastante clara acerca do rumo
que as coisas estavam a tomar no momento em que falou do seu desejo de possuir
um casaco de zibelina russo no valor de 4000 taéis de prata. Embora Ye Ye
tivesse objectado na presença de Jeanne,
38
39
referindo-se ao facto como uma "extravagância sem sentido", o pai efectuou a
compra e mandou entregar o casaco três dias mais tarde. O facto de o pai ter
tido uma atitude tão pouco filial era um sinal claro da sua paixão por Jeanne.
Tudo começou da mesma forma que iria continuar: Jeanne impunha as condições e o
pai concordava com elas. Tal como dizem os Chineses: para o pai até os gases de
Jeanne cheiravam bem.
O pai também soube tornar-se agradável para com a família dela. A casa de Jeanne
ficava apenas a acerca de um quilómetro e meio da Rua Shandong. Ciente de que a
sua bonita filha estava prestes a entrar
num mundo muito mais luxuoso do que aquele que algum dia poderia
proporcionar-lhe, a Sr.~ Prosperi encorajou o namoro. O pai suspeitava de que a
Sra. Prosperi provinha de uma família de camponeses. No apartamento alugado e
exíguo onde viviam, a conversa cingia-se aos temas ligeiros do dia-a-dia. O
Página 17
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
mandarim que falava era colorido por um forte sotaque de Shandong e o seu
francês era apenas de nível elementar. Não sabia ler nem escrever nenhuma das
línguas. O seu filho mais velho tinha tido problemas com a polícia e fora
enviado para um campo de trabalho em Hanói. Quanto à filha mais velha, Reine,
tinha casado havia pouco com um francês que trabalhava para as Nações Unidas.
Havia ainda dois filhos mais novos. Mais tarde, o pai acabaria por dar um lugar
na sua companhia ao rapaz mais velho, Pierre, enviando o mais novo, Jacques,
para França, a fim de concluir os estudos.
Quando se tornaram noivos, vieram os brincos de diamantes, uma pulseira também
de diamantes, um colar e um anel tão espectaculares como as restantes peças.
Conforme a tradição, Jeanne não levou dote. A cerimónia do casamento teve lugar
na igreja católica de Notre-Dame des Victoires. O pai estava nervoso no seu
smoking de bom corte. Jeanne estava espectacular num vestido que acompanhava a
forma do corpo, debruado a renda, resplandecente com todas as suas jóias. Nenhum
de nós, crianças, esteve presente. O clã Prosperi tinha muitos convidados,
incluindo um bom número de crianças. Segundo a tia Baba, ela, Ye Ye e a avó
tinham-se sentido um tanto ou quanto desconfortáveis durante a luxuosa recepção
oferecida pelo pai no grande Astor House Hotel. Ye Ye acabou por ser um dos
poucos convidados masculinos vestidos com a longa túnica chinesa a condizer com
o casco de cetim ma-gua (casaco curto), chapéu ajustado à cabeça e sapatos de
pano. Os restantes convidados vestiam à ocidental, de fato e gravata. Os
convidados franceses pediam brindes sucessivos, ao passo que os chineses não
estavam acostumados a beber tanto. A minha tia pensava poder ter envergonhado
Jeanne e a sua família, pois por mais de uma vez se tinha retirado para vomitar.
Mais tarde, Jeanne queixou-se ao pai de que, durante o banquete nupcial, alguns
dos seus parentes chineses tinham ofendido a sua família francesa pelo facto de
falarem muito alto, chegando mesmo a ser estridentes. Contudo, ao dizer isto, a
sua expressão era doce e aparentava modéstia. O pai estava completamente do lado
dela, ao ponto de começar a adoptar ideias ambíguas acerca da sua própria raça.
Tendo crescido nos portos dos tratados, a observar diariamente os símbolos do
poder estrangeiro, a viver dentro dos limites de uma concessão estrangeira no
seu próprio país governado pela extraterritorialidade, o pai, como muitos outros
chineses, via os estrangeiros como mais espertos, mais fortes, maiores e
melhores. Apesar de Jeanne ser fluente em três línguas, não sabia ler nem
escrever em chinês, orgulhando-se deste facto, que demonstrava, uma vez mais, a
sua herança ocidental.
O gosto de Jeanne era o reflexo da sua origem mista. Usava invariavelmente
roupas ocidentais e sabia usá-las. Gostava de se ver rodeada por mobiliário
francês, cortinas de veludo vermelho e papel de parede de textura rica. Ao mesmo
tempo, coleccionava porcelana antiga, quadros e cadeiras chinesas. Gostava de
plantas e flores que perfumassem a entrada de casa, a sala de estar e o seu
quarto. Tal como a avó, fumava sem parar.
Penso que, no início, Jeanne foi feliz. Ye Ye e a avó acolheram bem a ideia de o
pai se casar outra vez, pois não estava certo um homem jovem não ter uma esposa.
Além disso, a tia Baba foi parcialmente libertada das suas obrigações domésticas
e, teoricamente, poderia ter retomado o rumo da sua vida. Sobre a forma como a
minha irmã e os meus irmãos reagiram ao casamento, pouco posso dizer, pois na
época era apenas uma criança. Mas há um provérbio chinês que diz: se tiveres de
ter só um dos teus pais, prefere uma mãe pobre a um pai imperador.
O pai comprou a casa ao lado da nossa na Rua Shandong, ofereceu-a como prenda de
casamento à sua noiva e os recém-casados mudaram-se sozinhos. O resto da família
e os criados permaneceram na casa antiga, local onde o pai continuava a manter
Página 18
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
os seus escritórios. A fa
40
41
mília reunia-se ao jantar todas as noites. O pai e Ye Ye continuaram a trabalhar
lado a lado no piso de baixo e o negócio prosperava. Como a minha irmã e os meus
irmãos mais velhos ainda falavam muitas vezes da nossa falecida mã.e, a quem
chamavam ~-1~ Mama, a avó disse-nos que chamássemos a Jeanne ~~ Niang, uma outra
palavra que também significa mãe. Quanto a nós, Niang deu-nos novos nomes
europeus. Da noite para o dia, a minha irmã Jun-per transformou-se em Lydia e os
meus três irmãos Zi jie, Zi-lin e Zi jun passaram a chamar-se Gregory, Edgar e
James; eu, Jun-ling, recebi o nome de Adeline.
As tropas japonesas, que já ocupavam Tianjin e Beijing, movimentavam-se agora
claramente em direcção ao sul. Surpreendentemente, encontraram uma forte
resistência em Nanquim e, como forma de retaliação, empreenderam uma orgia de
terror na qual se sucederam violações, saques e assassínios. Mais de 300 000
civis e prisioneiros de guerra foram vítimas de tortura e morte durante a
ocupação de Nanquim em 1937 e no início de 1938, quando a cidade foi capturada
pelos Japoneses. Xangai capitulou e Chiang Kai-shek fugiu para o Ocidente
através da China, ao longo do rio Yangtse, penetrando nas profundezas
montanhosas da província de Sichuan. Foi nesse local, na cidade de Chongqing,
que instalou o seu governo em tempo de guerra. Não é difícil imaginar-se toda a
tensão e a agitação que as sublevações políticas do momento imprimiram na vida
familiar chinesa.
Em 1939, repentinamente e sem qualquer aviso prévio, Tianjin foi apanhada por
uma grande cheia. Foi um desastre de grandes proporções. Ye Ye chamou-lhe "A
tristeza da China" e dirigiu-se ao templo
budista para queimar incenso e oferecer preces de su&ágio. Os jornais
pró-japoneses impressos em Tianjin atribuíam as culpas da catástrofe a Chiang
Kai-shek, enquanto a imprensa afecta ao Partido Nacionalista (Kuomitang) em
Chongqing acusava os Japoneses. Os diques no rio Amarelo tinham sido
deliberadamente dinamitados, libertando as águas do rio para que travassem o
avanço das tropas. A cheia atingiu três províncias, destruindo todas as
colheitas à sua passagem. Dois milhões de pessoas ficaram sem casa. Centenas de
milhares morreram de fome e doenças. As escolas foram encerradas. Os negócios
pararam. Contudo, a serração do pai atingiu um alto nível de laboração. O preço
dos brocos a remos disparou de 100 para 800 yzzan", excluindo os remos.
" Unidade monetária da R. P. C. (N. da T.)
42
Devido à cheia, o pai teve de construir uma alta plataforma de madeira que unia
as suas duas casas. A travessia era escorregadia e perigosa, especialmente para
a avó, que pululava em cima dos seus pezinhos ligados. Niang tinha acabado de
dar à luz o nosso meio_irmão, Franklin, e estava ainda em convalescença. Na
verdade, todas as noites, o pai tinha de a transportar para a "casa velha", de
modo que a família jantasse reunida.
Niang pouco se preocupava com as dificuldades que os criados enfrentavam. Do
cozinheiro esperava-se que fosse ao mercado todas as manhãs e que regressasse a
casa com todos os artigos de mercearia, fazendo o percurso numa jangada frágil,
feita de tábuas pregadas umas às outras. Quando Ye Ye falou dos perigos
inerentes a estas idas às compras, Niang respondeu apenas que o cozinheiro
nadava bem e que não achava apropriado colocar um barco a remos à sua
Página 19
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
disposição. Quarenta dias mais tarde, quando as águas finalmente desceram, a avó
ordenou a construção de um quarto, sólido e coberto, que ligasse as duas casas.
Lydia passou a chamar-lhe "a ponte", um lugar onde costumávamos brincar às
escondidas.
A criança mais nova da nossa geração, a nossa meia-irmã Susan, nasceu em
Novembro de 1941. Duas semanas mais tarde, no dia 7 de Dezembro, do outro lado
do Pacífico, em Pearl Harbor, os bombardeiros japoneses atacaram a armada
americana. Subitamente, o Japão tornou-se aliado da Alemanha e entrou em guerra
contra a América e os seus aliados europeus. Nesse preciso momento (8 de
Dezembro na China), os soldados japoneses, em carros blindados, receberam ordem
de avançar contra as frágeis barricadas de arame farpado e de tomar posse das
concessões estrangeiras situadas nos portos dos tratados na China. Ao mesmo
tempo, a marinha japonesa invadia a Malásia e bombardeava Singapura. Num só dia,
o conflito sino-japonês fundia-se com a guerra na Europa, alastrava para a
Malásia, envolvia a América e transformava-se na segunda guerra mundial.
Em Xangai e Tianjin, os colonos britânicos e americanos, antes poderosos e
invencíveis, foram conduzidos em massa para campos de concentração japoneses. Da
noite para o dia, as Concessões Francesas foram transformadas em fantoches
comandados pelos Japoneses. Todo o comércio, especialmente entre a China e o
Ocidente, passou a ser controlado de perto pelos novos senhores. O tribunal
francês de Vichy, que superintendia os negócios do pai, era agora encabeçado por
um
43
novo juiz da Nova Ordem na Ásia oriental, um governo fantoche liderado pelo
traidor Wang Jhing-wei durante a ocupação japonesa. Os poucos homens de negócios
americanos em Tianjin apressaram-se a fugir com as suas famílias e aquilo que
puderam salvar de entre os seus haveres. Nessa altura veio para nossa casa uma
robusta camponesa de 18 anos, apresentada por um dos colegas americanos do pai.
Ela pretendia vir a ser a ama de peito de Susan e pedia um salário três vezes
acima do habitual, fazendo notar que tinha estado ao serviço de um casal
americano e estava habituada a "padrões mais elevados". O seu objectivo era
economizar 500 y~~an até à altura em que Susan fosse desmamada, para poder
comprar um boi, regressar à sua aldeia natal e criar o seu próprio filho ao lado
do marido.
O facto causou um reboliço terrível. Niang estava decidida a contratar a
rapariga; ninguém mais lhe servia. Parecia pensar que só uma mulher que
amamentara uma criança branca americana estava à altura de amamentar a sua
própria filha. O pai acedeu aos seus desejos, embora o salário mensal de 30
yaran que pagava à nova criada enfurecesse todos os outros empregados. Este
ordenado era supostamente secreto, mas todo o pessoal da casa depressa se deu
conta da discrepância. A ama de Franklin exigiu um salário igual para ela, bem
como para todos os outros. Depois de acusar Niang cara a cara de discriminação
injusta, esta voluntariosa empregada fez as malas e partiu.
A tia Baba teve então a tarefa adicional de cuidar de Franklin, que tinha na
altura 2 anos e meio. Relutantemente, aceitou a tarefa, mas a avó fez notar que
Franklin era tão seu sobrinho como nós todos. Foi então que o meu irmão se
juntou a mim e à tia Baba no nosso quarto. Ela costumava comprar-nos "olhos de
dragão", um fruto semelhante à líchia, que tinha fama de tornar os olhos das
crianças grandes e brilhantes.
A tia Baba não se poupava a amabilidades connosco e começou a ensinar-nos os
caracteres chineses elementares. A Lydia frequentava o colégio St. Joseph's, a
mesma escola em que Niang se graduara em 1937. Eu passei também a frequentar o
Página 20
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
mesmo jardim de infancia no Verão de 1941.
44
5
Yi Chang Chun Meng Um episódio de um sonho de Verão
As memórias que tenho de Tianjin são nebulosas. Fotografias de quando era muito
pequena mostram uma menininha com ar solene e punhos cerrados, lábios apertados
e olhos sérios, vestida com lindos vestidos de corte ocidental enfeitados com
fitas e laços. Eu gostava da escola e estava sempre desejosa de lá chegar. Lydia
e eu éramos levadas diariamente no riquexó negro e lustroso da avó e voltávamos
para casa da mesma maneira. De cada um dos lados do carrinho havia uma lanterna
de latão e uma campainha para ser tocada com os pés. Quando volteia Tianjin, em
1987, fiquei surpreendida ao verificar que eram precisos apenas sete minutos
para fazer o caminho a pé de nossa casa até St Joseph's.
Lembro-me de Lydia como uma figura altiva e que impunha bastante respeito. Entre
nós existiam três irmãos e um espaço de seis anos e meio. Havia um mundo que nos
separava.
Lydia gostava de exercer a sua autoridade e de exercitar os seus músculos
"espremendo-me" nos trabalhos de casa, especialmente no catecismo. A sua
pergunta preferida era:
- Quem te criou?,
45
Para esta eu sabia sempre a resposta e papagueava a frase já gasta: - Foi Deus
que me criou.
E então vinha o apertão; um brilho iluminava-lhe os olhos: - Porque é que Deus
te criou?
E a esta questão eu nunca consegui responder, porque a professora nunca foi além
da primeira pergunta. Por essa altura Lydia dava-me um sonoro bofetão com a sua
forte mão direita e chamava-me estúpida. Du-
rante as nossas viagens diárias de riquexó, ela gostava de me fazer esperar e
atrasava-se sempre. Das raras vezes em que fui eu a atrasar-me na aula, ela
mandava o riquexó avançar, ia sozinha para casa e depois mandava o condutor
voltar para me trazer. Mesmo em criança tinha já tendência para ser grosseira. A
deformação física que tinha fazia que tivesse uma postura característica, com o
braço esquerdo semiparalisado, flacidamente pendurado, e o rosto ligeiramente
repuxado para a frente e eternamente enviesado para o lado esquerdo. Da minha
perspectiva de uma criança de 4 anos, ela era a terrível figura da autoridade.
Gregory, o meu irmão mais velho, tinha uma personalidade mais risonha e a
capacidade contagiante de transformar acontecimentos banais em festarolas. A sua
joie de vivre`~ tornou-o querido aos olhos
de muitos. Ser o filho mais velho na China significava ser o predilecto do pai e
dos avós. Lembro-me dele, cheio de maldade, a admirar fascinado um pêlo longo e
negro que esvoaçava para fora da narina direita de Ye Ye, que ressonava numa
tarde de calor. Gregory não conseguiu resistir à tentação. Com perícia, prendeu
o pêlo fortemente entre o indicador e o polegar durante uma expiração. Seguiu-se
uma pausa angustiante. Ye Ye inspirou finalmente, enquanto Gregory resistia
obstinadamente. O pêlo foi arrancado pela raiz e Ye Ye acordou aos gritos.
Gregory foi perseguido por Ye Ye armado de um espanador, mas, como
habitualmente, conseguir escapar-se.
De uma maneira geral, Gregory ignorava-me a mim e a James, pois éramos novos de
mais para o acompanharmos em jogos interessantes. Estava sempre rodeado por
amigos da sua idade. Não gostava de estu
dar, mas, tal como a avó, era excelente em jogos de sorte, como o brídege. Era
Página 21
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
bom aos números e, uma vez por outra, ensinava aos mais novos truques de
matemática, largando sonoras gargalhadas perante a sua própria esperteza.
'z Em francês no original. (N. da T)
De todos os meus irmãos, aquele que eu mais temia era Edgar. Atentava-nos, a
James e a mim, e usava-nos como se fôssemos sacos de boxe para onde atirava toda
a sua frustração. Mandava-nos fazer recados e rapinava-nos os nossos brinquedos,
rebuçados, frutos secos, sementes de melancia e ameixas salgadas. Não era um
aluno brilhante e era altamente inseguro, embora possuísse conhecimentos
suficientes para tirar notas positivas.
O meu san ge (terceiro irmão mais velho), James, era o meu herói e o meu único
amigo. Costumávamos brincar juntos durante horas a fio e desenvolvemos uma
proximidade telepática, confiando um ao outro todos os nossos sonhos e segredos.
Quando ele estava por perto, eu podia abrandar a minha vigilância e o certo é
que precisava desesperadamente desse refúgio. Ao longo da nossa infância sentia
um enorme conforto por saber que podia sempre recorrer a ele em busca de consolo
e compreensão.
Ambos éramos vítimas de Edgar, embora talvez James sofresse ainda mais, pois
durante muitos anos partilhou o quarto com os nossos dois irmãos mais velhos.
Ele detestava fazer ondas. Quando lhe davam ordens, ou aguentava os sopapos
passivamente ou se escondia de quem o atormentava. Quando via Edgar a bater-me,
James escapulia-se rapidamente, num silêncio incompreensível. Mais tarde, depois
de Edgar se ter afastado, esgueirava-se para junto de mim e tentava consolar-me,
sussurrando muitas vezes a sua frase predilecta oSuan le!" (Deixa lá!) ...
De entre os seus dois filhos, Niang preferia claramente Franklin. Quanto ao seu
aspecto físico, era a cara chapada de Niang: um bonito rapaz, de olhos
arredondados e um nariz arrebitado e atrevido. Nessa altura Susan era ainda um
bebé. Contudo, eles já eram especiais. Não me lembro de Edgar ou Lydia alguma
vez lhes terem tocado com um dedo. James e eu éramos os escolhidos para apanhar
de toda a gente. Quando não conseguíamos ser suficientemente rápidos, recebíamos
muitas vezes uma bofetada ou um empurrão, especialmente de Edgar.
Eu sentia-me sempre mais à vontade junto dos meus amigos na escola do que em
casa, onde era considerada inferior e sem importância, em parte devido à má
sorte que tinha trazido por ter sido a causa
" Forma de distinguir os vários irmãos que, consoante a ordem de nascimento, têm
em chinês uma designação diferente. (N. da T.)
46
47
da morte da minha mãe. Lembro-me de ver a minha irmã mais velha e os meus irmãos
a jogarem ao toca-e-foge ou a saltarem à corda e de, nessas alturas, ansiar por
tomar parte nos seus jogos. Embora James e eu fôssemos muito próximos, ele ia
atrás dos outros e transformava-se "num dos rapazes" quando eles queriam fugir
de mim.
Em St. Joseph's as notas saíam todas as sextas-feiras e a aluna com o total mais
elevado recebia uma condecoração de prata, que podia usar ao peito, presa no
bolso, durante toda a semana. O pai reparava logo nas vezes em que eu era
condecorada. Eram essas as únicas alturas em que mostrava orgulhar-se de mim.
Metia-se comigo, dizendo:
- Há qualquer coisa muito brilhante no teu vestido. Brilha tanto que não me
deixa ver nada! O que será?
Outras vezes dizia:
- O lado esquerdo do teu peito não está mais pesado? Vais a cair? Eu bebia as
suas palavras e depressa comecei a usar a condecoração quase todas as semanas.
Página 22
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Na entrega de prémios no final de 1941 o meu nome foi referido como tendo ganho
a condecoração durante mais semanas do que qualquer outra aluna da escola.
Lembro-me de como me senti orgulhosa e triunfante ao subir os degraus, que me
pareceram tão altos e inclinados que tive de subir de joelhos e de me agarrar
com as mãos para poder receber o prémio entregue por um Monsenhor francês.
Ouviram-se aplausos calorosos e gargalhadas divertidas da audiência, mas nenhum
dos membros da minha família estava presente, nem mesmo o meu pai.
No início de 1942, os Japoneses examinavam cada vez mais de perto a
contabilidade do pai, insistiram numa auditoria exaustiva e finalmente exigiram
que os seus negócios se fundissem com uma empresa japonesa. O pai poderia ficar
nominalmente à frente dos negócios, mas os lucros seriam repartidos igualmente.
Esta "oferta" era, na realidade, uma órdem. Uma recusa teria resultado na
confiscação de todos os bens, provavelmente numa pena de cadeia para o pai e
retaliação inimaginável para o resto da família. A aceitação significava
colaborar abertamente com o inimigo, perder de imediato a independência e,
possivelmente, enfrentar represálias da resistência.
Depois de muitas noites em claro, agravadas pelos almoços diários em que os
Japoneses ora lisonjeavam e seduziam, ora ameaçavam, o pai tomou uma decisão
drástica. Num dia frio foi pôr uma carta no correio e nunca mais voltou.
48
Ye ye alimentou esta charada de vida ou morte durante alguns meses. Os tempos
eram caóticos e os raptos, assassinatos e desaparecimentos eram banais.
Dirigiu-se de imediato à polícia local e participou o desaparecimento. Colocou
anúncios nos jornais, oferecendo uma recompensa a quem soubesse do paradeiro do
pai, vivo ou morto. Foi um golpe de mestre e o preço a pagar foi elevado, mas no
final o efeito foi o pretendido. Sem o pai ao leme, a Joseph Yen & Company
debatia-se com dificuldades. Muitos empregados foram despedidos. Os negócios
fraquejavam. Os lucros iam a pique. Os Japoneses perderam todo o interesse.
Entretanto, antes do seu desaparecimento teatral, o pai tinha conseguido
transferir parte dos seus bens e dirigiu-se para o sul em direcção a Xangai - já
ocupada pelos Japoneses - usando um nome falso
~ Yen Hong. Adquiriu então aquela que se iria tornar a casa da
nossa família na Avenida Joffre. Cedo mandou chamar Niang e Franklin, que
fizeram a viagem acompanhados por alguns empregados de confiança.
Para o resto da família, isolada em Tianjin, a vida tornou-se estranhamente
serena. A tia Baba dirigia a casa e encorajava as crianças a convidarem os seus
amigos para brincar, lanchar ou tomar dim sum'~, numa atitude que Niang nunca
teria tolerado. As refeições decorriam informalmente e, à noite, os adultos
jogavam mah-jong até altas horas. Ye Ye mantinha apenas o pessoal essencial no
escritório. Pouco a pouco os Japoneses deixaram-nos em paz. Contratou-se um
motorista e aos domingos íamos a diversos restaurantes para provarmos diferentes
tipos de comida: russa, francesa e alemã. Lembro-me de beber chocolate quente e
de comer bolos no belíssimo Kiessling Restauram ao som de valsas de Strauss e
passagens de Beethoven tocadas por um trio. Às vezes até nos levavam a ver
filmes próprios para a nossa idade.
O pai gostava que o resto da família se juntasse a ele em Xangai. Decorria o
Verão de 1942; a avó deixou-se convencer a fazer-lhe uma visita que durou dois
meses, mas regressou dizendo que Tianjin era a sua nova casa. Teimosamente,
recusou-se a mudar e disse mesmo à tia Baba que o essencial da vida não era a
cidade em que cada um vivia, mas antes com quem cada um vivia.
" Refeiçao chinesa composta por pequenos bolinhos - doces nu salgados -
Página 23
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
cozinhados no vapor. (N. da T.)
49
Num dia especialmente quente, após o jantar, a 2 de Julho de 1943, planeávamos a
ementa do dia seguinte com o cozinheiro. A tia Baba sugeriu que comêssemos
bolinhas à moda de Tianjin em vez de arroz. Cozinhadas na hora, com cebolinho,
carne de porco picada e cebolinhas, as bolinhas no vapor constituíam um dos
nossos pratos preferidos. Estávamos todos a gritar quantas bolinhas seríamos
capazes de comer, atirando números altíssimos. A avó ficou com uma dor de cabeça
de toda aquela comoção. Retirou-se para o seu quarto, acendeu um cigarro e
deitou-se. A tia Baba sentou-se ao seu lado e leu-lhe uma das histórias da
Lertda do Rei Macaco. Embora a avó conhecesse diversas histórias deste clássico
chinês, sentia-se descontrair ao ouvir lê-las vezes sem conta pela voz da sua
própria filha. Tirou os sapatos, as meias e as ligaduras que prendiam os pés
pequeninos e deformados antes de os mergulhar em água quente para aliviar a dor,
que era permanente, e soltou um suspiro de alívio. A tia Baba deixou-a e estava,
também ela, a tomar o seu banho quando Ye Ye bateu à porta. A avó torcia os
lábios, de onde se soltava uma espécie de espuma. Chamou-se o médico, mas era já
tarde de mais, pois ela nunca mais recuperou a consciência. Morreu de apoplexia.
Recordo-me de acordar envolta no calor abrasador de uma manhã de Verão em
Tianjin. A tia Baba estava sentada no seu penteador e chorava. Disse-me que a
avó tinha deixado este mundo para não mais voltar; a sua vida tinha-se evaporado
como - yi chang chun meng (um episódio de um sonho de Verão). Lembro-me do som
estridente das cigarras no pátio traseiro, ao mesmo tempo que o som dos badalos
de madeira anunciava a presença dos vendedores ambulantes, que, lá em baixo, no
passeio, davam a conhecer os seus produtos através de melodiosos pregões:
- Fitas quentes com carne de vaca! Requeijão com feijões! Conservas acabadas de
fazer!
Perguntava a mim mesma como podia a vida continuar exactamente na mesma se a avó
já não estava entre nós.
O corpo da avó foi colocado num caixão, na sala. Sobre ele estava a sua
fotografia e havia uma decoração elaborada com flores, velas, fiutos e faixas
decorativas de seda branca, onde figuravam diversos
's Dá-se o nome de fitas às massas chinesas ligeiramente largas e espalmadas
utilizadas na preparação de sopa ou de outros pratos. (N. da T.)
dizeres que exaltavam as suas virtudes, pintados numa caligrafia elegante. Seis
monges budistas, envoltos em longas vestes, velaram o corpo. A nós, crianças,
ordenaram-nos que dormíssemos no chão, na própria sala, para fazermos companhia
à avó. Estávamos todos aterrorizados, atónitos perante as cabeças rapadas e
luzidias dos monges, que entoavam os seus sutras à luz trémula das velas.
Durante toda a noite, um sentimento de medo alternou-se dentro de mim com o
desejo de ver a avó empurrar a tampa do caixão e retomar o seu lugar no meio de
nós.
No dia seguinte teve lugar um grande funeral. Os que estávamos de luto
vestimo-nos de branco e colocámos faixas brancas ou bonitas fitas em volta da
cabeça. Seguimos o caixão a pé até ao templo budista. Ao longo do percurso, os
participantes no cortejo atiravam ao ar notas falsas para apaziguar os
espíritos. Na ausência do pai, ainda escondido, o meu irmão Gregory tomou o
lugar de principal. Caminhava logo a seguir ao caixão, que seguia num carro
puxado por quatro homens. A cada passo caía de joelhos e, aos gritos, desatava a
lamentar a perda da avó, batendo repetidamente com a cabeça no chão em sinal de
obediência. Seguíamos Gregory silenciosamente, maravilhados com a sua actuação.
Finalmente chegámos. O caixão foi colocado no centro de um altar, rodeado por
Página 24
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
arranjos de flores brancas, mais faixas de seda branca e o jantar favorito da
avó. Lá estavam cerca de dezasseis pratos de legumes, frutos e doces. O ar
estava pesado de incenso. Os monges entoavam preces. Tal como nos haviam dito,
fizemos kowtow'6, ajoelhando-nos e tocando repetidas vezes com a cabeça no chão.
Os monges trouxeram vários recortes de papel, reproduzindo diversos. artigos de
que ela poderia necessitar no outro mundo. Havia muitos lingotes de "ouro" e
"prata", um automóvel de cartão muito elaborado que parecia o Buick do pai, um
conjunto de peças de mobiliário e utensílios diversos e até um jogo de
mah-joaag. Todas estas imitações foram queimadas numa grande urna. Esta parte
encantou-nos e, de boa vontade, nós, crianças, ajudámos a encher a urna lançando
às chamas as imagens de papelão. E na excitação do momento esquecemo-nos da
celebração em que estávamos e até brigámos pelo carro de papel, que estava muito
bem feito e todo forrado a folha de alumínio. Anos mais tarde, a tia Baba
contou-me que tudo (incluindo faixas, monges, flores, músicos e
'6 Teimo chinês que sign~ca "ajoelhar-se e tocar o chão com a testa". (1V. da
T.)
50
51
imagens de papelão) tinha sido preparado por uma loja da especialidade dedicada
a eventos desse género e que fornecia todos os adereços adequados.
Lembro-me de estar a ver as várias imagens de papel a queimarem-se furiosamente
e os rolos de fumo a elevarem-se no ar e de acreditar que tudo se reuniria
algures no céu na forma de objectos para o uso exclusivo da avó,
Em seguida, os nossos familiares e amigos acompanharam-nos a casa, onde foi
servida uma refeição longa e elaborada, posto o que às crianças foi pedido que
brincassem no jardim. Lydia arranjou uma urna
de imitação. Fizemos fogões, camas e mesas de papel e demos início ao nosso
funeral da avó. Em pouco tempo a urna, que não passava de um vaso de flores em
madeira, ardia também. Ye Ye foi lá fora, furioso, ligou a mangueira e
inundou-nos a nós e ao nosso funeral. Mandaram-nos para a cama, mas o incidente
teve o condão de nos ajudar a esquecer o pavor e a tristeza desses dois últimos
dias; sentimos que a avó seria feliz no outro mundo.
Lá longe, em Xangai, o pai sofria profundamente. Não podia acreditar que a sua
querida mãe tinha morrido, acabada de fazer 55 anos. A partir de então passou a
usar apenas gravatas pretas em sua memória.
O funeral marcou o fim de uma época. Embora não o soubéssemos, os anos
despreocupados da nossa infância tinham chegado ao fim.
6
Jia Chou Bu Ke Wai Yang Roupa suja lava-se em casa
Num dia de Agosto de 1943, mais ou menos seis semanas depois da morte da avó,
Lydia, Gregory, Edgar e eu fomos levados à estação dos caminhos-de-ferro com as
nossas malas. Numa plataforma cuja placa indicava "Para Xangai" estava
estacionada uma longa fila de carruagens.
Num compartimento de 1ª classe, em cuja indicação se podia ler "Camas Macias",
encontrámos o pai, vestido de negro, sentado, sozinho, perto de uma janela.
Ficámos muito surpreendidos, pois sempre pensámos que continuava "desaparecido"
e ninguém nos dissera que já tinha voltado. Os seus olhos estavam vermelhos;
tinha estado a chorar.
O pai viera de propósito para nos levar até Xangai. Ye Ye, a tia Baba e Susan
ficariam em Tianjin por mais dois meses, a fim de cumprirem o tradicional
Página 25
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
período budista que determinava cem dias de luto pela morte da avó. James, que
estava ainda a convalescer de sarampo, ficaria também e viajaria com eles mais
tarde.
52
53
A viagem de comboio de Tianjin a Xangai demorou dois dias e uma noite. Durante o
percurso parámos em várias estações onde o pai comprava a merenda aos vendedores
ambulantes que se juntavam em redor.
Deliciámo-nos com ovos à hora do lanche, asas de galinha assadas, peixe fumado,
man toar" (pão cozido no vapor) e fruta fresca. O tempo estava extremamente
quente e húmido. O pai deixava abertas todas as janelas do nosso compartimento.
Dormi numa rede por cima da cama do pai e, durante a noite, sonhei que estava a
ser sugada pela janela. Acordei a chorar pela tia Baba; indiferente, o nosso
comboio rumava ao sul.
Quando chegámos, o pai levou-nos para a casa que tinha comprado. Situava-se num
loaag taaag (complexo de casas) bem no coração da Concessão Francesa. O nosso
loaag ta~ag era constituído por setenta
residências de estilo semelhante, coladas umas às outras e rodeadas por um muro
comum. De cada um dos lados havia três alamedas estreitas que se abriam para uma
avenida central, terminando na Avenida Joffre, agora chamada Huai Hai Road. A
nossa casa tinha três pisos e fora construída nos anos 20. Tinha as
características de uma Bauhaus e uma simplicidade que evocava as linhas simples
da Art Deco. Havia um terraço no topo e um jardinzinho à frente rodeado por um
muro de pouco mais de 2 metros. Tudo isto se encontrava devidamente arranjado
com um pequeno relvado, buxos de camélias e uma magnólia, cujos botões cheiravam
maravilhosamente. Arrumada a um dos cantos estava a casota do cão, construída em
madeira, onde dormia Jackie, um feroz pastor-alemão, propriedade do pai.
Encostada à parede i~avia uma fontezinha engraçada dentro da qual, em cestos
presos por cordas, se guardavam as melancias, que eram, assim, mantidas frescas
durante todo o Verão.
Uns degraus de pedra conduziam às portas de estilo francês que ofereciam
passagem para a sala, situada no rés-do-chão. Esta divisão estava mobilada de
modo formal, com sofás forrados de veludo verme
lho-escuro, cortinados de veludo a condizer e uma carpeta de Tianjin a cobrir
parcialmente o soalho em parquet de teca. O papel de parede tinha listas
aveludadas a condizer com os sofás e os cortinados. Os encostos de cabeça e os
braços das cadeiras eram protegidos por coberturas de renda branca. No centro da
sala havia uma mesa de café, imitação Louis XVI.
" Conforme o original. (N. da T.)
54
À esquerda, a sala de jantar era ladeada por amplas janelas em arco, que
permitiam uma vista agradável sobre o jardim. Era mobilada com uma mesa de
jantar oval, rodeada por cadeiras com encosto de palhinha. Havia ainda um
aparador e um frigorífico.
Na parte de trás da casa situava-se a cozinha, a casa de banho, os aposentos dos
criados e a garagem. Nós, as crianças, tínhamos de entrar e sair de casa pela
porta das traseiras, que abria para um caminho de passagem, delimitado de um dos
lados pelos muros dos jardins vizinhos.
Lá em cima, no 1º andar, o pai e Niang ocupavam o melhor quarto. Além de uma
grande cama de casal, o quarto possuía um penteador em madeira trabalhada e um
espelho; havia ainda uma pequena divisão que dava para o jardim e funcionava
Página 26
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
como área de estar. James chamaria mais tarde a este quarto o "Santo dos
Santos". Uma casa de banho separava o quarto da "antecâmara", que era o quarto
de Susan e Franklin, com uma varanda de onde Franklin atirava frequentemente
comida ou brinquedos para Jackie, que deambulava lá em baixo.
No início, quando acabámos de chegar a Tianjin, nós, os "que não tínhamos" (18)
fomos relegados para o 2.° andar. Ye Ye tinha o seu próprio quarto com varanda.
A tia Baba e eu partilhávamos um quarto e os meus três irmãos partilhavam outro.
Foi tacitamente entendido que nós, cidadãos de segunda classe, estávamos
proibidos de pôr os pés na antecâmara ou no "Santo dos Santos". Contudo, "eles,"
os residentes do 1.° andar, invadiam os nossos aposentos sempre que lhes
apetecia.
No princípio, Lydia tinha também um quarto no "nosso andar". Mais tarde
deram-lhe um quarto no primeiro andar, "o andar deles", motivo pelo qual se
passou, em parte, para "o lado contrário".
A minha nova escola, ~ ~~, a escola primária Sheng Xin (Sagrado Coração), ficava
situada a cerca de 2 quilómetros e meio de casa. No primeiro dia, o cozinheiro
levou-me no guiador da sua bicicleta, pois ia a caminho do mercado. Ye Ye e a
tia Baba ainda não tinham chegado de Tianjin. Como não estavam em casa, ninguém
se lembrou de me ir buscar.
(18) No texto original "the have-nots", expressão que marca a diferença clara
entre os doi grupos de irmãos. (N. da T.)
No final do dia de escola vi que todas as outras meninas da 1ª classe eram
ansiosamente esperadas ao portão pelas suas mães. Lembro-me de ter esperado
horas a fio e de que o meu pavor aumentava à
medida que via desaparecerem as meninas da minha sala, cada uma de mão dada com
a mãe. Finalmente, fiquei sozinha. Énvergonhada de mais para voltar à escola,
vagueei hesitante pelas ruas de Xangai. Quanto mais andava, maior era a
multidão. Os passeios enchiam-se de transeuntes, coolies' 9 transportando fardos
nas extremidades de canas de bambu, vendedores ambulantes e pedintes - alguns
com as pernas amputadas, cegos ou com outras deformações - que batiam no chão
com as suas latinhas de esmolas, procurando obter mais algumas. Toda a gente ia
para qualquer lado; todos menos eu. Deambulei desesperadamente ao longo de
quilómetros à procura de alguma coisa que me fosse familiar. Nada a fazer.
Estava perdida e não sabia o meu endereço.
Nesses tempos sem lei, as crianças eram raptadas frequentemente e desapareciam
nos meandros de Xangai. Eram vendidas como ya tou (meninas escravas), algumas
vezes a bordéis. Ao cair da noite fui
atacada por medo e fome. Quando dei por mim, estava em frente de uma loja de dim
saem brilhantemente iluminada e, com os olhos, devorava as bolinhas no vapor, as
fitas, o pato assado e as espetadas de porco que estavam na montra. A
proprietária veio cá fora, mirou o meu uniforme escolar novinho em folha e
perguntou:
- Estás aí à espera da tua mãe?
Assustada de mais para poder responder, só consegui baixar a cabeça. - Vem cá! -
disse ela.
Segui-a.
De repente, pelo canto do olho, vi a minha salvação! O telefone! Eu fixara o
nosso novo número de telefone de Xangai: 79281. O meu irmão Gregory tinha queda
para os números e na semana anterior tinha -me ensinado a brincar com o número
de trás para a frente e de frente para trás, para tentarmos terminar obtendo o
número 13. O restaurante estava cheio de gente e barulho. Ninguém reparou quando
eu levantei o auscultador e marquei o número. Do outro lado o pai atendeu.
Página 27
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
- Onde estás? - perguntou calmamente.
" Designação atribuída aos trabalhadores asiáticos sem qualquer formação técnica
e que iam trabalhar para fora da sua terra. (N. da T.)
56
Ninguém tinha dado pela minha falta.
. Num restaurante em qualquer sítio. Estou perdida.
Ao ouvir o ruído de fundo, o pai pediu para falar com a dona. Ela deu-lhe as
indicações necessárias e ele apareceu rapidamente no seu grande carro preto para
me levar. Guiava em silêncio, perdido nos seus próprios pensamentos. Quando
chegámos a casa, deu-me umas palmadinhas na cabeça e disse:
- Não te terias perdido se tivesses levado um mapa e estudado cuidadosamente o
local da tua casa e da escola.
Com esta experiência aprendi a contar só comigo. Percebi que, sem a tia Baba,
ninguém olhava por mim. Nessa mesma noite pedi a Gregory que me ensinasse a ler
um mapa. Nunca mais me perdi.
Dois meses mais tarde, Ye Ye, a tia Baba, James e Susan chegaram de Tianjin. Eu
estava numa grande excitação. Niang estava separada da filha desde a Primavera
de 1942, altura em que Susan tinha apenas alguns meses. Quando se reuniram
novamente em Xangai, Susan tinha-se tornado uma bonita criança que já andava,
tinha olhos arredondados, bochechas gorduchas e uma farta cabeleira negra. No
dia do encontro com a mãe, a tia Baba tinha-a vestido com umas bonitas calças
cor-de-rosa e um casaquinho chinês almofadado a condizer. O cabelo estava
penteado em duas tranças armadas. A criança estava encantadora e corria pela
sala de estar examinando os objectos expostos; de vez em quando tirava um deles
e ia mostrá-lo à tia Baba. Foi então que Niang se aproximou e tentou pegar em
Susan ao colo. Para a minha irmã de 2 anos, a mãe era apenas uma estranha. Susan
esquivou-se, esperneou e resistiu quanto pôde. Finalmente, rompeu num pranto e
começou aos gritos:
- Não te quero! Não te quero! Tia Baba! Tia Baba!
Ninguém se atreveu a dizer fosse o que fosse. Todos se calaram e olharam para
Susan, que dava pontapés e se debatia nos braços de Niang. Foi então que,
horrorizada, vi Niang forçar a filha a sentar-se no sofá ao seu lado e dar-lhe
uma forte bofetada na cara. Susan pôs-se a chorar ainda mais alto. Irritada e
sem qualquer controlo sobre a situação, Niang deu uma série de bofetadas à
filha, na cara, nas orelhas e na cabeça. Todos nos encolhemos.
Fiquei completamente atónita. Não conseguia perceber como é que o pai, Ye Ye ou
mesmo a tia Baba não tinham intervindo para pôr fim àquela tortura. Quis sair da
sala, mas os meus pés pareciam colados ao
57
chão. Sabia que devia estar em silêncio, mas o peso das palavras sufocava-me e
eu tinha de as deitar cá para fora. Esqueci-me de quem era e de onde estava e
atirei numa voz trémula:
- Não lhe bata mais! Ela é só um bebé!
Niang voltou-se e fitou-me ferozmente; os olhos pareciam saltar-lhe das órbitas
e por um momento pensei que se ia voltar contra mim. A tia Baba deitou-me um
olhar de aviso para que me calasse. Até mesmo os soluços de Susan quase deixaram
de se ouvir. O meu protesto cortara o acesso de fúria de Niang e eu
transformara-me no objecto da sua raiva.
Foi nesses escassos momentos que nós, crianças, entendemos tudo: tudo não só
acerca de Niang, mas também acerca do pai, de Ye Ye e da tia Baba. Tínhamos
testemunhado o outro lado do seu carácter. Com o desaparecimento da avó ela
Página 28
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
assumira o controlo total.
A minha apreensão aumentava à medida que ela olhava para mim. Uma torrente de
palavras escapou-lhe dos lábios cerrados:
- Sai! - gritava ela. - Desaparece imediatamente da minha vista! Como é que te
atreves a abrir a boca?
Enquanto eu corria para a porta, ela ainda teve tempo de dizer, numa ameaça
gélida:
- Nunca esquecerei e nunca perdoarei a tua insolência! Nunca! Nunca! Nunca!
Esta foi a forma como decorreu a nossa reunião de família no mês de Outubro de
1943, na casa que o pai tinha na Avenida Joffre, em Xangai.
Depois de mudarmos de cidade as nossas vidas modificaram-se radicalmente. O pai
mandou-nos a todos para colégios missionários, onde as aulas eram dadas em
chinês e o inglês era ensinado como uma segunda língua. Durante o tempo que
estive em Sheng Xin, os meus três irmãos foram inscritos em St John's Christian
Boys' School e Lydia frequentou a Aurora Catholic Middle School. O pai encetou
um programa de austeridade para nos ensinar o valor do dinheiro. Não recebíamos
semanada e não tínhamos outras peças de vestuário além do nosso uniforme
escolar. Tínhamos também de ir e vir da escola a pé todos os dias. No caso dos
rapazes, o trajecto era de quase 10 quilómetros diários, ida e volta. Tinham de
se levantar às 6.30 da manhã para estarem na escola às 8. A escola de Lydia era
ao lado da
s8
minha e distava apenas 2 quilómetros e meio de nossa casa. Os eléctricos iam
quase de porta a porta.
Depois de Ye Ye ter chegado de Tianjin perdemos toda a vergonha de lhe pedir o
dinheiro para o eléctrico, pelo que, todas as noites, recebíamos um dinheirinho
para esse fim. Duas linhas de eléctrico paralelas percorriam a parte central da
Avenida Joffre e terminavam no Bund, acompanhando a margem do rio Huangpu. A
minha paragem era mesmo à esquina da nossa rua. Nas manhãs em que tinha sorte,
chegava a este local no momento exacto em que um eléctrico aparecia na direcção
que eu queria. O bilhete custava vinte _feia-° para os adultos e 10 para as
crianças. À medida que o eléctrico se aproximava, todos se acotovelavam e se
empurravam para conseguir entrar. Nunca ninguém se dava ao trabalho de fazer
bicha.
A primeira paragem era em Jardins Duo Yuen. Dois anos mais tarde, quando os
Japoneses perderam a guerra, o pai e Niang apressaram-se a deslocar-se a Tianjin
para reivindicarem os seus negócios. Nessa altura Ye Ye levava-nos a mim e a
James a fazermos piqueniques nesse jardim. Tratava-se de uma prenda rara, pois,
de acordo com o regime de Niang, nós, as crianças, estávamos proibidas de sair
de casa, excepto para irmos à escola. O cozinheiro preparáva-nos umas sanduíches
deliciosas, em pão francês fresco e estaladiço, recheadas com gordas camadas de
ovos temperados com alho, cebolas e fiambre de Yunan. Ente árvores altíssimas,
relvados verdejantes e bonitos canteiros de flores, Ye Ye praticava o seu t'ai
chi' logo de manhãzinha, enquanto James e eu jogávamos às escondidas ou aos
teatros, fingindo ser algumas das personagens das lendas tradicionais chinesas
de que mais gostávamos. Às vezes, num pavilhão do jardim, havia também um
contador de histórias profissional, que tinha para nós lendas maravilhosas.
A segunda paragem era no Cinema Cathay. Como eu ansiava por ver aqueles filmes
maravilhosos! Os títulos, os grandes anúncios e as fotografias das estrelas
estavam expostos nas paredes do lado de fora das salas de cinema, que à noite
Página 29
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
estavam iluminadas como se fossem palácios. Assim que a guerra terminou, os
filmes de Hollywood varreram Xangai como se de um fogo se tratasse. Clark Gable,
Vivien
z° Subdivisão da unidade monetária da China. (N. da T.) a' Variedade de
ginástica chinesa. (N. da T.)
59
Leigh, Laurence Olivier e Lana Turner tornaram-se nomes familiares. E Tudo o
Vento Levou, sabiamente traduzido num único carácter chinês, ; Piao, um termo
bastante romântico que significa "flutuan> ou "vogar", foi um êxito estrondoso
em 1946. Na escola partilhávamos revistas sobre cinema e recortávamos
fotografias de artistas americanos. Houve mesmo um dia em que uma rapariga que
andava dois anos à minha frente recebeu uma fotografia de Clark Gable que se
dizia ter vindo directamente de um estúdio de cinema em Los Angeles. Clark Gable
tinha até assinado num dos cantos inferiores da fotografia! Durante o recreio,
todas as meninas se juntavam à volta dela, pois todas queriam dar uma olhadela
ao famoso actor e era como se ela própria também se tivesse tornado uma
celebridade.
A terceira paragem era na esquina da rua que dava para as escolas Sheng Xin e
Aurora. Pelo caminho havia um grande número de lojinhas que vendiam fruta
fresca, dim sum, massa chinesa, pão francês,
bolos com creme e pastelaria variada. Muitas vezes era uma tortura para mim
passar à frente destes estabelecimentos porque tinha fome constantemente e os
meus bolsos estavam sempre vazios. Já iam longe os dias de Tianjin em que
podíamos pedir à tia Baba o que quiséssemos para o pequeno-almoço, contanto que
a avisássemos com antecedência: ovos com bacon e fatias douradas; fitas fritas
com fiambre e vegetais; bolinhas no vapor; bolinhas de arroz adocicadas com
pasta de sésamo; chocolate quente. Agora só estávamos autorizados a ter um único
tipo de pequeno-almoço: nas palavras de Niang, a alimentação apropriada para
crianças que estavam a crescer. Davam-nos uma espécie de canja, um caldo feito
de arroz e água epickles de legumes. De vez em quando, aos domingos, serviam-nos
um ovo de pato cozido, salgado e completamente ressequido.
Mas a austeridade não foi apenas em relação a nós, os enteados; incluiu também
Ye Ye e a tia Baba. Em Tianjin o pai e Ye Ye tinham uma conta conjunta e Ye Ye
assinava todos os cheques como chefe das operações financeiras. Ao regressar a
Xangai, em 1943, Ye Ye, com confiança cega, transferira todos os fundos de
Tianjin para as contas bancárias do pai em Xangai, abertas dois anos antes no
novo nome do pai: Yen Hong. Bastou um simples traço de caneta e Ye Ye, tal como
o Rei Lear, assinara o fim de toda a sua fortuna. Além do pai só havia
n Pequenos bolinhos chineses, na sua maioria cozinhados no vapor. (1V, da T.)
60
Irais um titular da conta: Niang. Nesse altura, Ye Ye e a tia Baba acharam-se
sem um tostão e totalmente dependentes da generosidade do pai e de Niang, mesmo
para as compras mais insignificantes.
Inicialmente, Ye Ye tinha consigo algum dinheiro de bolso e dava-nos
frequentemente uma ou duas moedinhas só pelo prazer de ver a alegria brilhar nos
nossos olhos. E, até o seu dinheiro chegar ao fim, era Ye Ye quem nos dava todos
os dias o dinheiro de ida e volta para o eléctrico.
Mais ou menos dois meses depois do início das aulas, o tema dos bilhetes do
eléctrico veio à baila durante o jantar. A refeição estava quase no fim e já
estávamos a descascar a fruta quando a tia Baba encetou o assunto, dizendo que
decidira voltar ao trabalho de caixa no Women's Bank da tia-avó. Pelos lábios
Página 30
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
fortemente contraídos de Niang pôde perceber-se que ela estava aborrecida.
- Tens aqui tudo o que necessitas - disse o pai. - Por que razão queres ir
trabalhar?
Educadamente, a tia Baba respondeu que tinha demasiado tempo livre durante o
dia, uma vez que todos nós estávamos na escola e que havia muitas empregadas que
tratavam das tarefas domésticas. Nem sequer chegou a mencionar aquilo em que
todos estávamos a pensar: que um ordenado lhe daria alguma independência.
O pai voltou-se para Ye Ye:
- Acha que é uma boa ideia? - perguntou ele. - É que assim ela estará fora de
casa a maior parte do dia. Se ficasse em casa, far-lhe-ia mais companhia.
-Deixa-a fazer o que ela quer - disse Ye Ye. - Além do mais, ela gosta de ganhar
um dinheirinho extra para o gastar todo numa ou noutra coisa.
-Se o que precisas é de dinheiro - disse o pai com ar magnânimo, dirigindo-se à
tia Baba -, porque não mo pedes? Já disse a ambos várias vezes que, quando
precisarem de dinheiro, basta pedirem-mo. E, mesmo quando eu estiver no
escritório, Jeanne está sempre disponível para vos passar um cheque.
Senti um arrepio na espinha só de pensar que alguém, e sobretudo o meu meigo Ye
Ye, se ia dirigira Niang, sua nora, para lhe pedir dinheiro.
Ye Ye pigarreou.
- Já há algum tempo que ando para dizer isto: as crianças precisam de um
dinheirinho de bolso de vez em quando.
61
- Um dinheirinho? - disse o pai, voltando-se para Gregory e Lydia. - Para quê?
- Bem - respondeu Lydia -, em primeiro lugar para o bilhete de ida e volta do
eléctrico quando vamos para a escola.
- Dinheiro do eléctrico? - perguntou Niang. - Quem é que vos deu licença para
irem de eléctrico?
- St. John's é tão longe! - balbuciou Gregory. - Se tivéssemos de ir a pé,
provavelmente demorávamos a manhã inteira. Mal chegássemos lá, tínhamos de
iniciar o caminho de volta. Nesse caso, mais
valia não irmos à escola e, em vez disso, dávamos um longo passeio todas as
manhãs para fazer exercício!
- ` ~~ ~,~~ ì~! Har shuo ba dao! (Não digas disparates oito vezes seguidas!) -
exclamou o pai. - Estás sempre com exageros! Andar faz sempre bem à saúde.
Gregory ainda conseguiu balbuciar:
- Detesto andar a pé! Especialmente de manhã cedo! É uma perda de tempo!
-Atreves-te a contradizer o teu pai? - gritou Niang. - O teu pai trabalha dia e
noite para vos sustentar a todos nesta casa. Se ele acha que vocês devem ir a pé
para a escola, é a pé que vão. Ouviram bem?
Seguiu-se um silêncio de morte. Voltámo-nos para Ye Ye à espera de apoio.
Finalmente, a Lydia falou:
- Há dois meses que Ye Ye tem estado a pagar-nos os bilhetes de eléctrico.
Estamos habituados a ir assim para a escola.
- Como é que se atrevem a fazer coisas às escondidas do vosso pai e a
incomodarem Ye Ye por causa de dinheiro? - perguntou Niang. - Estão proibidos de
pedir dinheiro a quem quer que seja! E isto é
para todos! O vosso pai farta-se de trabalhar para que vocês possam frequentar
escolas caras e terem uma educação a sério! Com certeza não quer que vocês
cresçam como crianças mimadas e sem préstimo algum!
Embora os seus comentários fossem dirigidos a nós, todos sabíamos que pretendia
atingir Ye Ye e a tia Baba.
Página 31
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
- Não há ninguém na minha turma que vá a pé para a escola -protestou Lydia. - A
maioria dos meus amigos vão de carro com motorista.
- O vosso pai deseja que vão a pé para a escola! O vosso pai e eu queremos que
vocês saibam que não podem pedir mais dinheiro a Ye
62
ye nem à tia Baba. Quando acharem que precisam de dinheiro, peçam-mo
directamente a mim. O dinheiro não cai do céu. Neste momento penso que o que
devem fazer é estenderem a mão se quiserem receber dinheiro. Vamos ensinar-vos
algumas coisas da vida ... - e fez uma pausa. - Não queremos dizer que não vos
vamos dar o dinheiro para o eléctrico! Mas queremos que cada um venha ter
connosco individualmente. Peçam desculpa pelo vosso comportamento. Admitam que
se comportaram como crianças mimadas. Voltem a página. Venham falar connosco e
peçam-nos o dinheiro para o eléctrico e pode ser que vo-lo demos, mas terão de
aprender que o dinheiro do eléctrico não é um direito adquirido. Só o receberão
se se mostrarem arrependidos.
Nem ousávamos réspirar. As empregadas mantinham-se ocupadas, entregando a cada
um de nós uma toalhinha molhada para limparmos as mãos e a boca. Finalmente, o
jantar chegou ao fim. Esperávamos ansiosamente que Ye Ye e a tia Baba dissessem
alguma coisa, qualquer coisa. Mas seguiu-se apenas o silêncio. Será que não
podiam fazer nada? Será que a nora de Ye Ye, a sua nora que tinha sangue
estrangeiro, é que era agora a matriarca da família`?
Niang, olhando directamente para Ye Ye, acrescentou então, no seu tom mais doce
e mais lisonjeiro:
- Já provou estas tangerinas? São tão sumarentas! Vá, deixe-me descascar-lhe
uma!
E foi assim que a tia Baba começou a trabalhar no Women's Bank e que nós
passámos a ir e vir da escola a pé. Ficámos furiosos por Niang ter insinuado que
Ye Ye nos estragava com mimos ao dar-nos o dinheiro para o eléctrico. Todos nós
percebemos que a questão do dinheiro do eléctrico representava um grande
conflito dentro da família. Ao irmos a pé para a escola, mostrávamos a nossa
lealdade a Ye Ye, que víamos ainda como chefe da família, e, ao mesmo tempo,
protestávamos contra a usurpação de Niang. (Na verdade, Niang tinha assumido o
comando logo a seguir à morte da avó. Anos mais tarde, quando pedi à minha tia
que me falasse da minha mãe, ela disse-me que, pouco depois do funeral da avó, o
pai tinha mandado destruir todas as fotografias da minha mãe.)
Lydia foi a primeira a ceder. As aulas dela começavam e acabavam uma hora depois
das minhas e por isso nunca íamos e vínhamos juntas. Passadas duas semanas
reparei que chegava a casa apenas quinze minutos depois de mim. Percebi logo que
tinha desistido.
63
*Os meus irmãos resistiram durante dois meses. St. John's ficava mesmo muito
longe. À medida que o Inverno avançava, começaram a levantar-se ainda de noite
para conseguirem chegar a horas à escola,
Todas as tardes, a seguir ao treino de futebol ou de basquetebol, eles tinham
ainda pela frente o longo caminho de regresso a casa, às vezes já com pouca luz.
Um a um, todos se renderam.
Não sei bem como, mas durante todos aqueles anos em que vivi em Xangai - de 1943
a 1948 - nunca consegui pedir a Niang o dinheiro para o eléctrico. Os dias
transformaram-se em semanas. As semanas passaram a meses. Os meses formaram
anos.
De vez em quando, Ye Ye e a tia Baba tentavam convencer-me a ir lá a baixo
negociar. Nunca o fiz.
Página 32
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Era frequente aos domingos à tarde ouvirmos, de repente, o pai ou Niang chamar:
- Horas da distribuição da semanada para o eléctrico!
Ao ouvir isto, sentia um espasmo de profunda agonia. A tia Baba fazia-me então
um sinal:
- Vá lá! Vai lá buscar o teu dinheiro do eléctrico! Vai lá abaixo e fala com
eles. Basta dizeres: "Também posso receber o dinheiro para o eléctrico?", e
receberás a tua parte, tal como os outros.
De vez em quando, a tia Baba tinha uma reunião de negócios logo pela manhã e
acordava-me um pouco mais tarde. Eu saía de casa primeiro, percorria a nossa rua
a correr e esperava pela minha tia uns metros mais adiante, na Avenida Joffre.
Ela chamava um riquexó, daqueles que estavam estacionados na nossa rua,
apanhava-me e deixava-me em Sheng Xin.
Nos meses de Junho e Setembro, quando a chuva caía em catadupas e o vento uivava
pelas ruas, eu praguejava contra Niang enquanto me debatia para conseguir
percorrer a Avenida Joffre, transportando a
minha pesada mala da escola, patinhando pela água, que às vezes me chegava aos
tornozelos, e agarrando desesperadamente um guarda-chuva empurrado pelo vento.
Tive ainda de suportar a troça das minhas colegas que atravessavam
cuidadosamente umas pranchas de madeira, as quais impediam que se molhassem até
chegarem aos carros. Entretanto cochichavam entre elas que eu vinha diariamente
para a escola no meu eléctrico particular número onze, querendo com isto dizer
que o que me transportava eram as minhas próprias pernas.
Dia após dia, duas vezes por dia, de manhã e à tarde, quando ia e vinha da
escola, perseguia a minha sombra no passeio e, invariavel
mente, evitava as rachas no pavimento. Também inventava contos de fadas e
abandonava-me em terras encantadas, fruto da minha imaginação apenas. Era uma
forma de passar o tempo. Nas minhas histórias em série, que tinham seguimento de
um dia para o outro, eu era uma princesinha disfarçada, atirada, por engano,
para este meio familiar cruel em Xangai. Se eu fosse uma menina realmente boa e
se estudasse muito, um dia a minha mãe viria do Céu para me libertar e
levar-me-ia com ela para vivermos no seu castelo encantado. Na verdade,
deixei-me absorver de tal maneira por estas fantasias que passeia ansiar por
estas caminhadas obrigatórias. Contei à tia Baba que, na minha cabeça, tinha uma
chave que me permitia entrar num reino encantado. Em Xangai não havia náda tão
misterioso e tão cativante como este reino secreto que eu podia visitar sempre
que me apetecesse. Lá bem no alto das montanhas, por entre as nuvens, esse lugar
estava repleto de bambus, pinheiros de troncos entrelaçados, rochas de formas
fantásticas, flores selvagens e pássaros de mil cores. Mas o melhor de tudo era
a minha mãe, que vivia nesse lugar, e todas as crianças, que eram aí bem-vindas
e sempre desejadas. À noite, quando não trazia trabalhos da escola, costumava
rabiscar tudo isto num papel, no meu quarto. De regresso à escola, vibrava ao
mostrar as minhas histórias às minhas colegas, que, aos risinhos, passavam de
carteira em carteira, às escondidas, estas minhas tentativas de escrita
criativa.
Uma vez uma das meninas não gostou que eu tivesse usado o seu apelido num dos
vilões. Riscou-o e substituiu-o pelo meu próprio apelido, Yen. Indignada, voltei
a colocar o nome dela, pelo que começou a chorar. Ao tentar explicar-lhe que se
tratava apenas de faz-de-conta, usei um nome totalmente diferente e nesse
momento comecei a perceber o terrível poder da escrita e a sua enorme
responsabilidade.
Quando ia a caminho de casa, gostava particularmente do troço junto dos Jardins
Do Yuen. Junto ao parque, do lado de fora, havia uma grande praça onde, em dias
Página 33
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
de sol, os vendedores ambulantes vendiam as suas mercadorias. De entre os
habituais, havia um velhote, com um aspecto instruído, que montava a sua bancada
de livros no extremo mais distante. O quiosque assemelhava-se a um conjunto de
estores de madeira que, ao serem abertos, mostravam prateleiras e prateleiras de
romances de Kung Fu em capas de papelão, de pontas dobradas e esfareladas, que
podiam ser adquiridos ou alugados. Por SO.fen, pagos adiantadamente pela tia
Baba, eu podia alugar até cinco livros por
64
65
semana. As obras, muito do gosto dos estudantes chineses, eram impressas a preto
e branco em papel barato. Cada um dos livros contara a história de heróis ou
heroínas, mestres em artes marciais, que participavam em batalhas em defesa dos
fracos e oprimidos. Muitas destas histórias eram baseadas em lendas tão
importantes para a cultura chinesa como a lenda do Rei Artur e do Robin dos
Bosques para a cultura ocidental. Depois de lutas desesperadas, o bem triunfava
sobre a força e a vitória era, invariavelmente, dos defensores dos oprimidos.
Estes livros deram-me esperança.
O programa de austeridade do pai abrangia todos os aspectos da nossa vida
diária. Nem Lydia nem eu estávamos autorizadas a usar o cabelo comprido ou com
permanente; podíamos apenas usar cortes de
cabelo considerados sensatos, higiénicos e também fora de moda. Quanto aos três
rapazes, a situação era ainda pior: eram obrigados a ter a cabeça completamente
rapada. Era assim que o pai pensava conseguir ensinar-nos que a vida não era uma
coisa que devesse ser vivida ao de leve. Os meus irmãos transformaram-se no
motivo de troça da escola que frequentavam e, quando apareciam com as cabeças
rapadas de fresco, arranjaram a alcunha de "as três lâmpadas", por causa do seu
aspecto luzidio.
O nosso almoço era a refeição mais barata que arranjávamos na escola. Quando a
América ganhou a guerra contra o Japão, em 1945, nés, as alunas da Sheng Xin
recebemos as rações C que sobejavam do
exército americano e que eram incorporadas no nosso almoço. Comíamos enlatados
que continham fiambre, carne guisada, biscoitos secos, queijo e chocolate. Esta
ementa durou enquanto houve rações. Antes de cada refeição rezávamos e
agradecíamos aos nossos aliados americanos por terem ganho a guerra e por nos
oferecerem rações C.
O jantar era a nossa única refeição decente e um acontecimento digno de nota.
Pontualmente às 7.30, a sineta do jantar tocava e nós perfilávamo-nos lá em
baixo, na sala de jantar. Aí, à volta de uma mesa oval, Sentávamo-nos no lugar
que nos estava atribuído. Ye Ye, como senhor da casa, presidia, no topo da mesa
de frente para o jardim; a tia Baba sentava-se à sua direita, o pai e Niang à
sua esquerda. Gregory e Edgar sentavam-se ao lado da tia Baba. James e eu éramos
relegados para a outra extremidade da mesa. Durante o tempo em que vivemos em
Xangai, Franklin e Susan não comiam connosco.
Todas as noites nos apresentávamos vestidos com os nossos uniformes da escola, o
cabelo penteado, a bexiga vazia e as mãos lavadas. Sentávamo-nos muito direitos
nos nossos lugares, ansiosos e rígidos, esperando que ninguém reparasse em nós.
Nós, os enteados, nunca falávamos durante o jantar, nem mesmo entre nós. Sempre
que chamavam por mim, eu era dominada por um medo opressivo e o meu apetite
desaparecia. Seguia-se, invariavelmente, uma cena desagradável.
Havia sempre seis ou sete pratos apetitosos. Duas empregadas traziam a comida:
lombo de porco, galinha assada, peixe cozinhado no vapor, caranguejo à moda de
Xangai, legumes salteados e, no final, uma terrina de sopa.a fumegar. O pai
Página 34
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
gostava realmente de ver os seus filhos comerem à hora do jantar. Éramos
encorajados a comer tantas tigelas de arroz quantas nos apetecesse. Contudo,
estava fora de questão deixar qualquer resto de comida na tigela, nem que fosse
apenas um grão de arroz.
James e eu tínhamos aversão a carne gordurosa. Como éramos obrigados a comê-la,
cedo arranjámos maneira de esconder pedaços nos bolsos, meias, dobras das calças
ou mesmo de os colar debaixo do tampo da mesa. Às vezes corríamos para a casa de
banho com as bochechas cheias de carne gordurenta, que deitávamos na sanita.
Quando todos estes métodos falhavam, não tínhamos outro remédio senão engolir
tudo.
A seguir ao jantar servia-se sempre fruta fresca. Quando o pai tinha visitas,
nós comíamos as sobras. Embora houvesse menos comida, gostávamos de comer
sozinhos. Nessas alturas lembrávamo-nos dos bons velhos tempos em Tianjin,
quando não precisávamos de esconder a carne cheia de gordura, podíamos rir-nos à
vontade, falar, enfim, sermos nós próprios.
Para tomar conta de Franklin e Susan contratou-se uma governanta. Tratava-se de
Miss Chien, uma senhora supostamente instruída. Os três tomavam as refeições
separados de nós, no quarto, e podiam pedir para a cozinha tudo o que lhes
apetecesse. Aparentemente, a austeridade parava no primeiro andar. Ao
pequeno-almoço eram-lhes servidos ovos com bacoca, torradas e cereais, morangos
frescos e melão. O cabelo de Franklin era cortado à moda pelo melhor
cabeleireiro de crianças de Xangai. Susan usava vestidos coloridos enfeitados
com laços e rendas. Muitas vezes eles acabavam por crescer antes de terem usado
os seus lindos fatos. Recebiam muitos brinquedos e brincavam na sua varanda
66
67
privativa. Todas as tardes tomavam chá com sanduíches, biscoitos de chocolate,
pãezinhos doces, bolos e outras guloseimas.
Embora fosse aparentemente tutora de Franklin, Miss Chien actuava também como
espia e informadora das actividades e conversas dos "inquilinos" do 2.° andar.
Procurando agradar e mostrar-se agrade
cida, Miss Chien nunca ultrapassava, contudo, os limites que lhe haviam sido
traçados. Ela e Lydia tornaram-se amigas. De nós todos, Lydia era a única que
tomava chá com eles na antecâmara do 1º andar.
Ficávamos sentidos com os padrões duplos que nos eram estabelecidos. Lydia
mantinha uma série de encontros no 2.° andar. Propusemos diversas estratégias.
Greve da fome? Uma rebelião? Uma entre
vista a sós com o pai? Uma carta anónima dando conta de todas as injustiças?
Cochichávamos, queixávamo-nos e sentíamo-nos verdadeiros conspiradores. Fizemos
muitos planos. Nenhum foi posto em prática. Um domingo à tarde James levantou-se
para ir à casa de banho a meio de um dos nossos planos secretos; encontrou Niang
a escutar atrás da porta entreaberta. Encararam-se fixamente durante alguns
segundos terríveis. Niang levou, então, os dedos aos lábios e fez-lhe sinal que
continuasse o seu caminho. James percebeu que tínhamos sido apanhados.
Trancou-se na casa de banho durante muito tempo, temendo as represálias.
Finalmente regressou. Niang já lá não estava. Lydia ainda fazia planos. Foi um
silêncio de morte quando James nos revelou a sua descoberta. Ficámos
aterrorizados. Quando a sineta do jantar tocou, a reunião terminou abruptamente
e descemos em silêncio para a sala de jantar. Mas a refeição começou e acabou
sem que o assunto fosse mencionado. Começámos a duvidar da história de James e
de que estivesse no seu juízo perfeito, mas foi sol de pouca dura.
A nova estratégia de Niang era dividir para reinar. Alguns dias mais tarde Lydia
Página 35
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
foi chamada ao Santo dos Santos (o quarto do pai e de Niang) e foi informada de
que se devia mudar para um quarto que estava vago no 1.° andar. Ofereceram-lhe
uma secretária só para ela, uma cómoda e uma colcha de renda branca novinha em
folha com cortinados a condizer. Tínhamos de bater à porta antes de poder entrar
nos seus domínios. Ficámos roídos de inveja.
A partir desse dia Lydia passou a ocupar os dois andares e os dois lados das
nossas vidas. Tal como Miss Chien, também ela levava
68
histórias aos ouvidos do pai e de Niang. Contava-lhes coisas não só sobre os
três rapazes e sobre mim, mas também sobre a Ye Ye e a tia Baba. Como recompensa
recebia pequenos favores: doces, presentes, dinheiro, roupas novas, saídas com
os amigos. Com o passar do tempo desenvolveu uns ares que a distinguiam de
qualquer um de nós e que nos recordavam permanentemente o seu "estatuto
especial".
por vezes, quando descia ou subia as escadas, via Lydia à porta do quarto de
Franklin e Susan, a pedir uma fatia de bolo de castanha e natas ou uma
sanduíche. A sua postura aduladora revoltava-me muito. Quase não suportava ouvir
a sua vozinha queixosa, pedinchando e tentando levar o espertalhão do Franklin a
dar-lhe "uma dentadinha" das gulodices. Nessas alturas eu passava por ela sem
olhar e desejava tornar-me invisível. James comentou uma vez que preferia morrer
de fome a ter de pedir comida a Franklin.
Na escola, Lydia era excelente em Inglês, mas fraca em Matemática e Ciências. O
pai pediu-lhe que ajudasse Gregory nos trabalhos de casa de Inglês. Munida da
autoridade de uma professora, o seu poder crescia de dia para dia. Sem medo,
Gregory ripostava. As lições de Inglês depressa se transformaram em sessões de
gritaria.
- És ignorante, preguiçoso e pateta! Já a semana passada te tinha dito que
estudasses estes verbos de inglês!
- E tu és uma idiota! Imagine-se não saberes como se resolvem fracções e
apanhares um zero no teste de Matemática! ~ ~Da ling data (Ovo grande e redondo
que nem um zero!).
É isso que
tu és!
Furiosa, Lydia pregou a Gregory uma sonora estalada, esquecendo-se de que
Gregory era já mais alto e mais forte do que ela. Gregory levantou-se e
agarrou-a pelo braço saudável:
- Se tornas a fazer-me isso, dou-te um soco que te deito ao chão. Sai já do meu
quarto!
Lydia foi fazer queixa a Niang. Quando o pai chegou, Gregory recebeu uma
repreensão e, como castigo, foi posto num canto com a cara voltada para a parede
durante trinta minutos. Gregory resmungou que estava a fazer mais progressos em
Inglês do que ela em Matemática. Além disso, qualquer pessoa podia ver que ele
tinha a cara inchada da bofetada de Lydia. Gregory queixava-se de que ela tinha
uma direita tão forte como o campeão de boxe americano Joe Louis e que a força
que tinha do lado direito compensava a fraqueza do esquerdo.
69
Depois deste incidente acabaram-se as lições de Inglês. A Matemá_ tica de Lydia
não melhorava. Quando as fichas de avaliação eram distribuídas no final de cada
período, a sua média rondava perigosa
mente os níveis negativos. O único de nós todos que conseguia ter um
aproveitamento ainda mais baixo era Franklin, mas o pai achava que o seu cérebro
ainda não estava suficientemente maduro para um estudo a sério. O pai repreendeu
Página 36
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Lydia no Santo dos Santos e disse-lhe que se concentrasse na Matemática. Ela
saiu de lá com os olhos vermelhos e o nariz a fungar e apregoou aos quatro
ventos que fizera o melhor, mas que a Matemática era muito mais difícil em
Aurora do que tinha sido em St. Joseph, em Tianjin.
Em St. John os rapazes aprenderam a jogar brídege com os colegas e, apesar de eu
ter apenas 7 anos, ensinaram-me a jogar, porque eram precisos quatro elementos.
Um domingo Lydia encontrou-nos a jogar
brídege. Depois de ter estado a ver o jogo durante uns momentos, ficou sentida e
achou que não lhe ligávamos nenhuma, tão absorvidos estávamos no jogo. De súbito
ordenou-me que lhe desse o lugar, porque também queria jogar. A pontuação dos
jogadores era muito semelhante e o jogo estava aguerrido. De longe o melhor
jogador, Gregory, como um verdadeiro cavalheiro, tinha-me escolhido como
parceira de jogo. Levava o jogo de brídege muito a sério e era capaz de gritar e
de se enfurecer de cada vez que eu jogava a carta errada ou perdia um trunfo.
Embora detestasse que me chamassem palerma e ignorante, aceitava estes insultos
porque o raciocínio de Gregory era sempre lógico e tinha elevadas capacidades.
Agora era Lydia a parceira de Gregory. O jogo estava mais complicado do que ela
tinha esperado. Cálculos matemáticos rápidos e avaliação de probabilidades não
eram o seu forte. Para delírio de Edgar e James, os novos parceiros começaram a
perder jogada após jogada.
Pouco disposta a aceitar as críticas de Gregory, que surgiam num volume cada vez
mais elevado, Lydia atirou com as cartas e precipitou-se escada abaixo, jurando
que não voltaria a jogar com Gregory. Este
replicou que preferia jogar comigo, com Franklin ou mesmo com Susan, que tinha 3
anos, a ter Lydia por companheira de jogo. Nessa mesma noite, ao jantar, o pai
repreendeu Gregory por ter faltado ao respeito à sua irmã mais velha.
O tratamento especial concedido a Lydia tornava-se cada vez mais visível. Uma
das recordações que tenho é a de Lydia a subir as escadas
num domingo à tarde com um bonito vestido cor-de-rosa de corte ocidental,
sapatos a condizer, a cantarolar melodias do último filme de Hollywood e a fazer
tilintar o dinheiro que trazia no bolso. Sem parar, com ar de desdém, colocou em
frente de cada um dos meus irmãos a quantia exacta para os bilhetes de eléctrico
dessa semana, evitou olhar para mim e apressou-se escada abaixo. Em silêncio, os
rapazes contaram as moedas enquanto ela cantarolava ainda Yot~ are the
strttshijie ...
Ela entrou na antecâmara; a porta bateu atrás dela e o silêncio encheu o hall.
Finalmente, Gregory explodiu:
- Exibicionista!.
Indiscutivelmente, Lydia tinha-se tornado um dos membros do mundo elitista de
Niang.
Em Xangai, a tia Baba também atravessava momentos difíceis, pois já não possuía
o lugar informal, mas respeitado, que tinha em Tianjin. Niang retirara-lhe
importância e fazia que se sentisse como uma solteirona perfeitamente
dispensável.
A tia Baba fora sempre uma mãe para mim. Nessa altura aproximámo-nos ainda mais.
Ela dava a maior atenção a tudo quanto me dizia respeito: a minha aparência, a
minha saúde e a minha personalidade. Acima de tudo, preocupava-se com a minha
instrução, provavelmente porque a sua tinha sido abreviada. Todas as noites a
tia Baba verificava os meus trabalhos de casa. Nos dias em que tinha teste
acordava-me às 5 da manhã, para sair para a escola com a cabeça cheünha de
revisões de última hora. Estava decidida a que eu obtivesse um grau
universitário ... o meu bilhete de partida, a passagem para a independência,
Página 37
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
para sucessos sem fim. Havia coisas que ela não dizia, mas eu entendia. Ela
sabia que eu era a criança menos amada por ser uma rapariga e, além do mais,
pelo facto de a minha mãe ter morrido ao dar-me à luz. Nada do que eu fazia
parecia agradar ao pai, a Niang ou mesrno a algum dos meus irmãos. Contudo,
nunca deixei de acreditar que, se me esforçasse o suficiente, um dia mais tarde
o pai, Niang e todos os membros da minha família ficariam orgulhosos de mim.
Por essa razão eu estudava a sério, não só para agradar à minha tia, mas também
porque eram esses os únicos momentos em que eu podia libertar-me, esquecer-me
dos meus medos e, durante algum tempo, sair daquela casa tão cheia de manobras
sinistras e maquinações obscuras.
70
71
Na escola ganhei a alcunha de "génio" porque era a melhor aluna em todas as
matérias, excepto em Arte. Por detrás desta perfeição escolar enervante, as
minhas colegas apercebiam-se da minha vulnera_
bilidade e do meu desejo de ser aceite por todas. Elas devem ter percebido que
havia em mim qualquer coisa de patético. Eu nunca falava da minha família, não
tinha brinquedos, ornamentos ou roupas bonitas. Nunca tinha dinheiro para
comprar doces ou para ir a passeios. Recusava todos os convites para ir a casa
das colegas e nunca convidava ninguém para ir a minha casa. Não confiava em
ninguém, mas ia para a escola todos os dias com uma enorme solidão dentro de
mim.
Em casa fazia os meus trabalhos da escola, inventava jogos nos meus momentos de
solidão e lia as novelas de Kmag Fu.
Deve ter sido muito esquisito para uma Niang de 23 anos admitir a presença de
cinco enteados perante os amigos do pai. Suspeitávamos que negava frequentemente
a nossa existência e que, intencionalmente, dava a impressão de que o pequeno
Franklin e o bebé Susan eram os únicos filhos do pai. Foi por esse motivo que
fomos agradavelmente surpreendidos quando um dos colegas do pai veio visitar-nos
e trouxe como presente uma grande caixa, dentro da qual descobrimos, deliciados,
sete patinhos. Como sempre, Franklin e Susan foram os primeiros a escolher.
Lydia, Gregory, Edgar e James escolheram a seguir. Quando chegou a minha vez,
restava-me o patinho mais pequenino, o mais magrinho e o mais fraquinho, com uma
cabecita minúscula e uma penugem amarela, fofa e macia. Apaixonei-me
imediatamente por ele e dei-lhe o nome de Pequeno e Precioso Tesouro ou,
abreviadamente, PPT.
A PPT tornou-se, desde logo, tudo para mim. Eu devia ter uns oito anos na
altura. Depois da escola costumava ir para casa a correr para pegar na PPT ao
colo e levá-la toda ternurenta desde o terraço até ao quarto que partilhava com
a minha tia. Fazia os trabalhos de casa com a PPT a saltitar de uma cama para a
outra. A tia Baba nunca se queixava quando me ajudava a lavar as penas da PPT
com champó ou quando tinha de fazer uma limpeza depois dos seus pequenos
descuidos.
Por vezes eu explorava o jardim à procura de vermes para o jantar da PPT. Um
sábado, acho que me aproximei de mais dos domínios de Jackie, o feroz
pastor-alemão que o pai tinha. O cão disparou na minha direcção, ladrou
furiosamente, como era seu hábito, e mostrou os den
tes afiados. Tentei acalmá-lo, estendendo a mão para lhe fazer festinhas na
cabeça, mas ele ferrou os dentes no meu pulso esquerdo. Consegui soltar-me e
corri para o meu quarto. Estava a lavar o sangue quando a tia Baba entrou.
Quando a vi, desfiz-me em lágrimas.
A tia Baba pegou em mim e embalou-me, secou-me as lágrimas e entendeu o meu
Página 38
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
desgosto. Jackie era o animal de estimação deles. Seria melhor não dizer nada,
não causar sarilhos, não chamar a atenção. Tratou da ferida com mercúrio,
algodão e fez um pequeno penso. Depois confortámo-nos uma à outra à nossa
maneira habitual: a observar as minhas fichas de avaliação desde as do jardim de
infância até outras mais recentes.
A nossa arma secreta, o nosso plano mais importante, estava nesses registos.
Será que um dia seria uma escritora famosa? Banqueira? Cientista`? Médica? Bem,
qualquer coisa, desde que fosse famosa. E as duas juntas, sozinhas, divagávamos
sobre este assunto.
Entretanto tínhamos de ter boas notas. A tia Baba estava extraordinariamente
orgulhosa do meu êxito nos estudos. De cada vez que recebia uma folha de
informações, observava-a com toda a atenção, visivelmente emocionada
- Oh, olhem só para isto! Um A em quatro disciplinas e um B+ em Desenho! De
certeza que este ano vamos ser as melhores da aula outra vez!
A tia Baba fez-me acreditar que eu era brilhante. O orgulho que sentia nos meus
pequenos êxitos inspirava-me. Todas as folhas informativas que recebia eram
guardadas num cofre, cuja chave pendurava ao pescoço, como se as minhas notas
fossem tesouros preciosos e impossíveis de substituir. Quando a vida nos corria
mal, ela retirava-as do cofre para nos consolar e observávamo-las juntas.
- Vês esta aqui? Com 6 anos e já na 1 ° classe e com "As" em todas as
disciplinas! Meu Deus!
E acrescentava:
- Eu acho que não há ninguém que queira ir para a universidade e tenha umas
notas tão boas como estas.
Outras vezes dizia:
- Vais ser uma banqueira de sucesso, tal como a tua tia-avó, e vamos trabalhar
juntas no nosso próprio banco.
Nesse sábado, enquanto percorríamos as folhas de avaliação, esqueci-me da dor
que tinha no pulso e fomos felizes ... até à hora do jantar.
72
73
Estava uma noite de Verão quente e húmida e o pai decidira que nos
refrescássemos na relva do jardim. Jackie andava a receber treino de obediência
por um treinador alemão, Hans Herzog. O pai queria verificar os progressos.
- Depois do jantar - anunciou o pai - vamos sentar-nos no jardim e testar o
Jackie com um daqueles patinhos que ofereceram às crianças.
Nesse momento o meu apetite desapareceu, um arrepio de horror percorreu-me o
corpo, enquanto o meu pai se virava para o meu irmão mais velho:
- Vai buscar um dos patinhos à gaiola para eu fazer o teste - ordenou.
Soube imediatamente que o meu patinho era o que estava destinado a morrer.
Gregory correu para o terraço e regressou com a PPT. Evitou encarar-me. Mais
tarde, quando estávamos sozinhos, disse-me:
- O patinho sacrificado tinha de ser o que pertencia ao dono mais fraco. Não é
uma questão pessoal, percebes?
O pai colocou a PPT na palma da mão e dirigiu-se ao jardim. Senti uma náusea. A
PPT parecia tão frágil e cheia de vida. Jackie saudou o dono alegremente. Estava
uma noite linda. A Lua estava cheia. As estrelas brilhavam. O pai sentou-se numa
cadeira de jardim com Niang, a tia Baba e Ye Ye a seu lado. Nós, as crianças,
sentámo-nos na relva. Eu tremia à medida que o pai colocava cuidadosamente a PPT
na relva; partiu-se-me o coração.
Jackie recebeu ordem para se sentar a cerca de 2 metros de distância. O cão
arfou, resistiu, impacientou-se, mas sentou-se. De súbito, PPT viu-me. Piou
Página 39
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
suavemente e moveu-se na minha direcção. Nesse instante Jackie saltou. Um salto
preciso eJackie tinha a perna esquerda de PPT entre as suas poderosas
mandíbulas. O pai precipitou-se, zangado com a desobediência de Jackie. Jackie
largou imediatamente o meu patinho, mas o mal já estava feito.
Dei uma corrida e apanhei o meu bichinho de estimação. A perna balouçava, solta
em relação ao corpo, o seu pezito minúsculo, unido pela membrana, torcido num
ângulo grotesco. Uma onda de desolação maior do que todas as outras que tinha
conhecido desceu sobre mim. Sem articular uma única palavra, levei-a para o meu
quarto, coloquei-a sobre a cama com todo o cuidado, embrulhei-a no meu melhor
cache
74
col e deitei-me a seu lado. Nunca consegui esquecer a noite que passei com pPT.
Vivi uma tristeza esmagadora, da qual nunca consegui falar a nenhum dos meus
amigos. Não havia ninguém que me pudesse ter compreendido, nem mesmo a minha
tia.
ppT recusou-se a comer, a beber e morreu muito cedo, na manhã seguinte. A tia
Baba deu-me uma antiga caixa de costura, que eu usei como caixão. James e eu
enterrámo-la juntos debaixo da magnólia, que nessa altura floria em pleno. Ainda
hoje não sou capaz de sentir o cheiro das magnólias sem experimentar a mesma
sensação de perda irrecuperável. Colocámos um ramo de flores numa garrafa de
leite em frente da campa e juntámos um prato já velho com alguns grãos de arroz,
um pouco de água e as minhocas que PPT adorava.
Enquanto estávamos assim, lado a lado, lamentando aquela perda, James olhou para
a minha cara manchada de lágrimas e murmurou, procurando consolar-me:
- Não há-de ser sempre assim. Vais ver que as coisas vão melhorar ... Stta~t le!
Senti-me grata, mas foi difícil agradecer-lhe. Em vez disso respondi: - Hoje é
domingo e ainda estão todos a dormir. Não sei porquê, mas neste momento parece
que somos só nós dois contra o mundo todo!
A ferida no meu pulso sarou, mas a cicatriz ficou, como uma homenagem a um amigo
caído, acompanhando-me sempre, fizesse o que fizesse, fosse para onde fosse.
Quando eu tinha 10 anos, houve dois acontecimentos que ocorreram num espaço de
poucos dias e que fizeram deteriorar substancialmente a minha relação com Niang.
Uma das minhas colegas convidou-me para a sua festa de anos, que calhou num
feriado católico: um dia feriado no colégio das freiras de Sheng Xin, mas não
nas outras escolas.Embora soubesse que estava proibida de ir a casa de qualquer
uma das minhas amigas, pensei que, se planeasse tudo com cuidado, não seria
descoberta.
Na manhã do dia da festa vesti o meu uniforme do colégio e peguei na pasta como
se fosse para a escola. A tia Baba tinha-me oferecido uma moeda de prata, que eu
guardara cuidadosamente. Coloquei-a no bolso para, depois do almoço, comprar uma
prenda de anos à minha amiga. Encontrámo-nos na casa dela, que ficava a curta
distância da
75
minha, e passámos uma manhã maravilhosa a brincar com a sua enorme colecção de
bonecas. O meio-dia chegou rapidamente. (Por essa altura, as rações C dos
Americanos já se tinham esgotado e eu era esperada em casa à hora do almoço.
Davam-me dinheiro para o eléctrico, mas apenas para a viagem de ida e volta à
Página 40
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
hora do almoço.) Disse às minhas colegas que tinha de ir a casa fazer um recado,
mas que voltava daí a uma hora. Pediram-me o meu número de telefone e eu dei-o,
sem pensar.
Corri até casa, muito bem disposta, e dirigi-me ao meu quarto. Aí,
inesperadamente, dei de caras com Niang. Nunca descobri o que estava ela lá a
fazer.
Ela foi apanhada de surpresa e, tal como eu, sobressaltou-se. - Porque já estás
em casa tão cedo? - perguntou ela.
- Bem, saí um pouco mais cedo - menti eu e, estupidamente, acrescentei -, saí da
escola, é claro!
- Vem cá! - ordenou ela, desconfiada.
Lembro-me de sentir o coração aos saltos, à medida que me aproximava dela. Niang
estava irrepreensivelmente penteada, impecavelmente vestida: uma pantera pronta
a saltar sobre a sua presa.
Revistou-me e encontrou o dólar de prata que a tia Baba me tinha oferecido.
- De onde é que isto veio? - perguntou.
Eu menti, tentei fugir à questão, senti-me como um verme. Eu não ia, não podia
implicar a tia Baba no assunto. O interrogatório continuou.
Ela esbofeteou-me com força. Uma, duas, três vezes. O interrogatório
prolongou-se, parecia não ter fim.
- A quem é que roubaste isto? Não houve resposta.
- Vendeste alguma coisa de cá de casa? - perguntou ela.
Eu estava mesmo a pensar em confessar um roubo como solução para aquele assunto,
quando ambas reparámos na nova empregada que estava de pé, timidamente, à
entrada da porta.
- Desculpe interrompê-la, ,~ ~ ~, Yen tai tai (Sr.a Yen) - disse a rapariga -,
há uma chamada telefónica para ela ... - e apontou para mim.
Lembrei-me de repente de que tinha as amigas à minha espera para . continuarmos
a brincadeira. Deviam ter-se cansado de esperar e telefo
76
naram-me. Niang correu ao telefone, que estava ao fundo das escadas. Conseguia
ouvir-lhe a voz, num tom melado, revoltante.
. A Adeline agora está ocupada. Fala a mãe. Quem está ao telefone, por favor?
Seguiu-se uma curta pausa ...
-Mas não têm de ir hoje à escola?... Ah, sim, estou a ver. Porquê? Um feriado?
Que bom! E o que é que estão todas a fazer? - Seguiu-se o inevitável. - A
Adeline não poderá voltar a vossa casa esta tarde. Eu digo-lhe que telefonaram,
mas não esperem mais por ela.
Regressou e olhou-me nos olhos:
- Não és só uma ladra; és também uma mentirosa e calculista. O problema é teres
~ o sangue ruim da tua mãe. Nunca serás nada na vida! Quanto a mim, nem sequer
mereces viver e ser alimentada nesta casa. O teu lugar é num orfanato!
Enquanto o mundo se desmoronava à minha volta, ela ainda acrescentou:
- Ficas no teu quarto até o teu pai chegar a casa! Não tens direito a comer seja
o que for enquanto este assunto não estiver resolvido! Sentia-me assustada e na
maior das misérias. Sozinha, sentei-me no meu quarto, no 2.° andar, e pus-me a
olhar para Jackie, que andava inquieto pelo jardim: para a frente e para trás,
para a frente e para trás. O barulho da louça e risos fez-se ouvir na antecâmara
do 1.. andar, onde o chá era servido. Pouco depois Franklin surgiu na varanda
com um prato de bolinhos. Indiferente, vi-o cuspir bolo de castanhas, rolinhos
de salsicha e sanduíches de galinha para Jackie, que saltava deliciado e deitava
as garras a estas maravilhas. Lembro-me ainda de desejar ardentemente poder
Página 41
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
transformar-me em Jackie, nem que fosse apenas por umas horas: sem ralações,
sempre alegre e bem alimentado.
Mais tarde, o pai veio ter comigo ao quarto, sombrio e trazendo consigo o
chicote que Hans, o treinador do cão, lhe tinha oferecido no último Natal.
Quando me perguntou sobre o dólar de prata, não consegui mentir.
Ordenou-me que me deitasse na cama de barriga para baixo e deu-me com o chicote
no rabo e nas pernas. Enquanto ali estava a tremer de dor e de vergonha vi um
rato atravessar o soalho, as orelhas alerta e uma longa cauda movimentando-se de
um lado para o outro. Quis gritar de pânico, mas permaneci em silêncio enquanto
durou a sova.
77
Então, o pai enrolou o chicote no braço e declarou que a tia Baba era uma má
influência para mim e que teríamos de ser separadas. Só de pensar em tal
possibilidade me sentia apavorada.
Dois dias mais tarde, estava eu ainda dentro de uma espécie de nuvem, desabou a
segunda catástrofe. Por ter sido sempre a melhor aluna durante quatro anos
consecutivos, fui eleita chefe de turma. Na
mesma tarde em que celebrava o meu triunfo fui a pé para casa, eufórica,
esquecendo-me, por momentos, das minhas desditas. Um grande grupo de colegas
lideradaspela minha chefe de campanha- deviam ser umas doze ao todo - tinha
decidido seguir-me em segredo até minha casa para me oferecer uma
festa-surpresa. Cinco minutos depois de eu ter entrado em casa a campainha
tocou. A empregada foi abrir e descobriu um grupo de rapariguinhas risonhas e
bem dispostas vestidas com o mesmo uniforme, todas elas gritando que queriam
ver-me. Ciente do regime que vigorava em minha casa e da desgraça em que eu
própria me encontrava, ela hesitou; depois pediu que entrassem para a sala de
estar e subiu as escadas calmamente até ao 2.° andar.
Já não me lembro do nome da empregada, mas lembro-me perfeitamente da expressão
alarmada do seu rosto ao dizer-me quase em segredo;
- Um grupo de rapariguinhas lá da sua escola veio visitá-la. Perguntam por si.
Empalideci de preocupação: - Niang está em casa?
- Receio bem que sim. E o seu pai também. Estão no quarto. - Importa-se de dizer
às minhas amigas que não estou em casa? - perguntei já em desespero de causa.
- Receio bem que não. Tentei dizer algo de semelhante quando fui abrir a porta,
mas parece que a seguiram até aqui e que a viram entrar em casa. Querem
fazer-lhe uma festa-surpresa por ter ganho as eleições para chefe de turma. A
intenção é boa.
- Eu sei.
Não tive outro remédio senão descer e ir cumprimentar as minhas amigas. Enquanto
percorria vagarosamente as escadas atrás da criada, já se ouvia a euforia
incontrolável de uma dúzia de meninas de 10 anos a ecoar por toda a casa.
78
Os dez minutos seguintes formam um conjunto difuso e sombrio na minha memória.
As minhas colegas estavam demasiado excitadas e felizes para se aperceberem do
silêncio inexpressivo da minha cara. Juntaram-se à minha volta, gritando-me os
parabéns, cheias de alegria e rindo-se às gargalhadas. O meu estômago
contorcia-se.
"Eu só tenho 10 anos", dizia eu de mim para mim, "não pedi a ninguém para cá
vir. De certeza que Niang não me vai matar por isto." Nesse preciso momento a
criada reapareceu à porta:
-A sua mãe quer vê-la.já.
Página 42
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Com esforço, fiz qualquer coisa parecida com um sorriso.
- Desculpem - disse eu. E acrescentei com um encolher de ombros: - O que quererá
ela agora?
Deslizei escada acima e plantei-me em frente da porta fechada do quarto deles, o
Santo dos Santos. Não conseguia pensar em nada e tinha os olhos rasos de água
quando bati à porta. Estavam à minha espera. Encontravam-se sentados lado a lado
na pequena alcova que dava para o jardim. Através das brilhantes vidraças
panorâmicas avistei Jackie, que saltitava entre os arbustos atrás de um
passarinho.
Assim que entrei percebi logo que ia ser pavoroso. Quando tentei fechar a porta
atrás de mim, Niang anunciou com uma doçura grotesca:
- Deixa a porta aberta. Em nossa casa não há segredos.
Fiquei de pé em frente dos meus pais. -Em silêncio, o único barulho que ouvíamos
eram os risos de contentamento que voavam escada acima.
- Quem são esses selvagens que estão lá em baixo na sala de estar? - perguntou
Niang em voz alta, fumegando raiva.
- São minhas amigas.
Serrei os punhos e senti as unhas cravarem-se na palma das mãos, mas estava
decidida a não chorar.
- Quem é que as convidou?
-Ninguém. Foram elas que decidiram vir para comemorar a minha vitória como chefe
de turma.
- Esta festa é ideia tua?
- Não, Niang. Não tenho nada a ver com isso. - Vem cá! - gritou ela.
Devagar, relutantemente, aproximei-me da cadeira onde estava sentada. Deu-me uma
bofetada com tanta força que pèrdi o equilíbrio.
79
- Estás a mentir! - continuou ela - Planeaste tudo, não foi, para mostrares a
tua casa às tuas amigas que não têm um tostão. Pensaste que nós não estávamos em
casa.
- Não, Niang, não foi assim.
Já não conseguia segurar as lágrimas quentes que me corriam pela cara abaixo.
- O vosso pai trabalha tanto por vocês todos e no fim vem para casa para dormir
a sesta e não consegue ter um minuto de sossego. Isto não pode ser! Sabes muito
bem que não podes convidar as tuas amigas para virem cá a casa. Como é que te
atreves a convidá-las para a sala de estar?
- Já disse que não as convidei! As minhas amigas sabem que eu não posso ir a
casa delas depois da escola e acho que foi por isso que decidiram vir até aqui.
Elas não sabiam que era proibido.
Ela deu-me outra bofetada, desta vez com as costas da mão.
- Mentirosa! Planeaste isto tudo só para te armares! Hei-de ensinar-te que não
se fazem as coisas às escondidas! Vai já lá abaixo e diz àquele bando de
selvagens que se vão embora imediatamente. E diz-lhes também que nunca mais cá
voltem. Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais! Elas não são bem-vindas!
Saí do quarto e arrastei-me penosamente pela escada abaixo para enfrentar as
minhas amigas. Um silêncio constrangedor tinha já substituído a alegria
anterior. Limpei o nariz e os olhos à manga e vi uma mancha de sangue.
Horrorizada e envergonhada, descobri que as bofetadas de Niang me tinham posto o
nariz a sangrar e que a minha cara estava marcada com uma mistura de lágrimas
ensanguentadas.
Quando regressei à sala de estar para enfrentar as apoiastes da minha campanha,
Página 43
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
devia estar numa bela figura. Despida de quaisquer defesas, obviamente mal amada
e indesejada pelos meus próprios pais, não fui capaz de olhar para elas olhos
nos olhos e elas também não conseguiram olhar para mim. Sabiam que eu sabia que
elas tinham ouvido tudo. As minhas amigas não faziam a mínima ideia de como era
a minha situação familiar. Perante o mundo exterior eu fazia um esforço
desmedido para dar a ideia de que fazia parte de uma família encantadora. Agora,
a máscara que eu tão cuidadosamente tinha preservado fora arrancada, deixando
transparecer uma realidade patética. Tentei arranjar um pouco de dignidade e
disse para a geral:
- Desculpem, o meu pai precisa de dormir. Eles pedem-me que vos diga que se vão
embora.
A minha chefe de campanha, Wu Chun-mei, uma rapariga alta e atlética, cujo pai
era um médico formado na América, tirou o lenço e deu-mo~ Enervada com esta
atitude, procurei agradecer-lhe com um sorriso, mas, não sei como, não fui capaz
quando vi a compaixão estampada nos seus olhos vermelhos. Então, com as lágrimas
a correr, disse-lhes:
- Obrigada por terem vindo. Nunca me esquecerei da vossa lealdade.
Saíram umas atrás das outras, deixando ficar os presentes que tinham trazido. Wu
Chun-mei foi a última a sair. Quando passou pelas escadas, gritou subitamente lá
para cima:
- Isto é injusto! Vocês são bárbaros e cruéis! Vou dizer ao meu pai!
Agarrei nos meus presentes e subi as escadas. A porta do quarto deles estava
escancarada. O pai chamou-me e ordenou-me que fechasse a porta. Ficámos os três
sozinhos.
- A tua Niang e eu - começou o pai - estamos muito preocupados com o teu
comportamento e a tua atitude. Convidaste as tuas amiguinhas para cá virem a
casa hoje à tarde, não foi?
Em silêncio, abanei a cabeça, negando.
O pai olhou para o meu monte de presentes, alguns embrulhados em bonitos papéis
coloridos e com laços.
- Põe-os em cima da cama -ordenou - e abre-os. Apressei-me a obedecer. Ficámos a
olhar para uma variedade de coisas: uma novela de Kung Fu, alguns livros de
banda desenhada, um jogo de damas chinesas, pacotinhos de coisas boas: carne
seca, ameixas em conserva, sementes de melão, tirinhas de gengibre adocicado,
limas com sal, amendoins~3, uma folha de papel de caligrafia com a palavra
"vitória" pintada numa letra grande e infantil, uma corda de saltar. - Pega em
tudo e deita no cesto dos papéis.
Obedeci o mais depressa que pude.
- Porque se lembraram as tuas amigas de cá vir e de te oferecer prendas? -
perguntou Niang.
- Acho que foi por causa de eu ter ganho as eleições hoje. Agora eu sou chefe de
turma. Esforcei-me muito por isso ...
z' Conjunto de aperitivos muito apreciados pelos Chineses, que conjugam
frequentemente os sabores doce e salgado. (N. da T.)
81
- Deixa-te de histórias! - gritou Niang. - Com é que te atreves? Não me
interessa nada do que dizes ser na escola; aqui não és nada sem o teu pai. Nada!
Nada! Nada!
O pai falou calmamente:
- Atua Niang e eu estamos especialmente preocupados com o facto de teres tentado
Página 44
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
virar as tuas amigas contra nós e de teres pla_ neado trazê-las cá a casa para
nos insultarem.
- Mas eu não fiz nada disso.
- Não contradigas o teu pai! Estas a tornar-te uma menina muito orgulhosa! O que
pensas que és`? Alguma princesa a quem as tuas colegas devam prestar vassalagem?
- Wu mei! (Quinta filha mais nova!) - acrescentou o pai tristemente. - Na
verdade, não nos resta outra solução. Jia chou bu ke wai yang (As mazelas da
família nunca devem ser mostradas em público). Quebraste a confiança que
depositávamos em ti quando pediste às tuas amigas que nos insultassem.
- O que é que me vai acontecer? - perguntei a medo.
- Ainda não sabemos - foi a resposta cruel que recebi do pai. - Já que não és
feliz cá em casa, terás de ir para outro lugar.
- Mas para onde é que eu posso ir`? - perguntei eu.
E já me via vagueando sem destino pelas ruas de Xangai. Já tinha visto bebés
abandonados embrulhados em jornais deixados à beira da estrada e crianças
andrajosas à procura de restos de comida nos caixo tes de lixo. Havia alguns
pobres nas redondezas da nossa casa, a elegante Avenida Joffre, todavia
reduzidos às cascas dos plátanos que ladeavam a rua. Fiquei aterrorizada.
Caí de joelhos em frente deles, esperando comover o pai e amolecer Niang. Em vez
disso ele afirmou:
- Nos tempos difíceis que atravessamos devias era estar agradecida por teres uma
casa que te recebe e arroz na tua tigela todas as noites.
- E estou, pai.
- Pede desculpa à tua Niang. - Desculpe, Niang.
- Não sabes a sorte que tens - disse ela. - Vais sair do quarto da tia Baba. Na
verdade, não devias sequer voltar a falar com ela. Ela é uma má influência para
ti. Estragou-te com mimos, alimentou a tua arrogância e ainda te ensinou a
mentir e a enganar os outros, dando-te
82
dinheiro sem nós sabermos. Entretanto vamos procurar um orfanato para ti até
teres idade suficiente para ires trabalhar e ganhares o teu sustento. O teu pai
já tem preocupações suficientes para ainda ter de se preocupar com gente da tua
laia. É tudo.
- Obrigada, pai. Obrigada, Niang.
Levantei-me, lancei um olhar demorado ao cesto dos papéis e fui para o quarto
que partilhava com a tia Baba, talvez pela última vez. Os meus olhos foram cair
sobre os livros que tinha deixado em cima da minha secretária, antes de a criada
me ter chamado. Havia composições, trabalhos de história, matemática, inglês e
caligrafia à espera de serem feitos. Com grande determinação, deitei-me ao
trabalho ... e iniciei a minha fuga para o meu mundo escolar, onde as regras
eram simples, justas e imutáveis, um mundo de que Niang não fazia parte e onde a
sua autoridade sobre mim não existia.
A minha angústia desaparecia à medida que ia escrevendo. O meu nariz parou de
sangrar. A cara já não me doía. Só via números e letras negras em folhas de
papel muito branco. Os problemas eram um desafio e chamavam por mim. As soluções
compensavam-me e gratificavam-me. Eu controlava o meu destino. À medida que ia
terminando cada uma das tarefas, havia um vazio que se preenchia dentro de mim.
Nessa noite, depois de um jantar cheio de pressentimentos e durante o qual nem o
pai nem Niang olharam para mim ou me dirigiram a palavra, fui direita para o meu
quarto. A tia Baba tinha saído para jogar ntah jottg. Com os trabalhos de casa
acabados, não conseguia arranjar mais nada para fazer. O desespero chegou a
Página 45
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
pouco e pouco. Niang estava à beira de me arrancar a única pessoa que me amava.
Uma após outra, as horas foram passando. Não conseguia dormir. Escorreguei para
fora da cama e sentei-me, às escuras, no cimo das escadas, à espera de ouvir os
passos da tia Baba. Já passava das 11. Ela devia estar a chegar. Pensei em
fugir, em apanhar um comboio para a longínqua província de Sichuan, na fronteira
com o Tibete. Através das minhas novelas de Kung Fu tinha conhecido mosteiros
budistas situados nas lendárias montanhas E May, onde os monges rezavam e
praticavam artes marciais. Talvez algum deles me aceitasse como noviça. Já me
via como was pessoa experiente nas artes de wu-chu, judo e caraté, saltando
agilmente sobre telhados, vingando o mal feito aos que têm esperança ...
No escuro, devo ter passado pelas brasas, encostada ao corrimão. Acordei com uma
dor. A luz do hall estava acesa. A figura grosseira
83
de Edgar elevava-se comò uma torre. No caminho para a casa de banho tinha
tropeçado no meu corpo adormecido e estava furioso.
- O que estás aqui a fazer a meio da noite? - perguntou. - Quaso me fizeste
cair! Idiota! Atravessas-te sempre no meu caminho! Ensonada, esfreguei os olhos.
Achei que era mais seguro ficar calada - Responde, minha estúpida!
Eu continuava muda. Comecei a levantar-me devagar. Por pura maldade, ele
dobrou-se, agarrou-me no braço e torceu-o com força, Mordi os lábios para não
chorar. Olhei para ele com ar de desafio, decidida a não dar um pio.
- Responde! - repetiu ele, torcendo-me o braço ainda com mais força.
Nesse preciso momento James saiu do quarto. Em silêncio, olhando em frente, como
se nada visse nem ouvisse, passou por nós apressadamente, em direcção à casa de
banho. Aliviou-se sem fechar a porta completamente e voltou para a cama.
Edgar deitou-me ao chão e começou a dar-me pontapés, uns atrás dos outros.
Depois desta amostra de valentia corri para a casa de banho e tranquei a porta.
Um dos pontapés acertara-me em cheio no nariz, que estava a sangrar muito.
Fiquei a olhar para o espelho, para a minha cara pisada e ensanguentada e, de
repente, rompi num choro incontrolável, tentando, ao mesmo tempo, abafar
desesperadamente os meus soluços, para que Edgar não tivesse o prazer de saber
que me fizera chorar. A pouco e pouco, a noção de injustiça de tudo aquilo
tornou-se mais clara e uma fúria terrível foi-se apoderando de mim. Finalmente
ouvi os passos da tia Baba. Era quase 1 da madrugada.
Bastou-lhe olhar para mim para perceber tudo o que se tinha passado. Enquanto
contava as minhas mágoas, vi-lhe no rosto que a noite também não tinha sido
fácil para ela. Estava ligeiramente deprimida, um estado de espírito resultante
de perdas consideráveis à mesa do mah jo~ig. Contei-lhe que estava a pensar
apanhar o comboio para a província de Sichuan e pedi-lhe dinheiro emprestado
para a viagem.
- Mas que grande mistura de ideias boas e disparatadas! Às vezes até me esqueço
de quantos anos tens!
Eu estava mesmo a falar a sério.
- Confie em mim! - disse-lhe eu - Não vou desperdiçar o seu dinheiro! Vou
aprender tudo, regresso e ponho tudo nos seus devidos lugares. Vou tomar conta
de si e de Ye Ye.
84
Deixa-te de lirismos! Andas a ler novelas a mais. Se apanhares esse comboio, o
mais certo é seres raptada e vendida como ya tou (rapariga escrava).
Página 46
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Ye Ye e eu nunca mais conseguiremos encontrar-te. Mesmo aqui, dentro de Xangai,
a polícia encontrou uma vez trinta crianças desaparecidas acorrentadas à parede
de uma fábrica de conservas, cheias de fome e espancadas quase até à morte.
Aquelas que conseguissem viver para além da infância seriam vendidas para
bordéis.
wu mei (Quinta filha), tens que saber distinguir entre o sonho e a realidade.
Concentra-te naquilo que sabes fazer bem. Agarra a instrução que te é dada o
melhor que puderes. Esquece os mestres de Kung Fu, as artes marciais e todos
esses disparates. Quanto a Niang, vai ter com ela amanhã e engole a tua
amargura. Bate-lhe à porta; pede-lhe perdão. Diz-lhe tudo aquilo que ela gosta
de ouvir. Sabes tão bem
quanto eu aquilo que deves dizer. Que mais podemos nós fazer? É ela q
que tem o dinheiro e o poder. Se for necessário, ajoelha-te e bate com a cabeça
no chão. Com humildade, pede-lhe o dinheiro para os bilhetes do eléctrico. Se
fizeres isso, tudo há-de correr bem, vais ver. Agora deita-te e dorme, que
amanhã é dia de escola.
Deitei-me, mas não consegui dormir. Não podia sequer pensar na ideia de me
render. Depressa ouvi a tia Baba a ressonar suavemente. À medida que a noite ia
passando, eu ficava cada vez mais decidida a não me render, independentemente da
crueldade da tortura que me fosse infligida. Sem outras defesas que não a minha
determinação, a única coisa de que eu tinha a certeza era de que tinha de agir
assim, na esperança de que Niang não tivesse poder para me derrotar.
85
7
Yuan um qiu yu
Subir às árvores para pescar
Aos 65 anos de idade, Ye Ye viu-se sem um único tostão em seu nome. O pai deixou
claro que tanto Ye Ye como a tia Baba tinham de negociar o seu subsídio com
Niang. Nunca tal se tinha ouvido, especialmente numa cultura onde os sogros
raramente se dignam dirigir a
palavra às respectivas noras, quanto mais pedir-lhes dinheiro. Além disso, ao
quebrar o laço confuciano de piedade filial, o pai estava a destruir o respeito
próprio de Ye Ye. Gentil, mas com firmeza, Ye Ye recusou, dizendo à tia Baba que
não tinha qualquer intenção de *,~. ~, yzzaza mu gizz yu (subir a uma árvore
para pescar).
Em vez disso, pai e filha foram visitar a tia-avó ao Women's Bank e a tia Baba
pediu-lhe que a voltasse a admitir. Na cerimoniosa sala de jantar da tia-avó, no
seu apartamento do 6.° andar, foram recebidos com um delicioso jantar, que
incluía as iguarias preferidas de Ye Ye: os pratos típicos de Ningpo. Serviu-se
caranguejo no vapor e fitas amarelas com aroma de peixe, barbatana de tubarão e
camarões frescos com ervilhas, tenros rebentos de bambu e porco com anis. A tudo
isto
86
se juntaram três sobremesas bem ao gosto dos convidados: bolinhas de arroz com
glúten acompanhadas com pasta de sésamo, pudim das oito delícias e n:ozzsse de
maçãs silvestres. Com a voz amaciada pelo vinho de an'oz servido quente, os dois
irmãos acabaram por cantar em conjunto algumas áreas das suas óperas preferidas.
Desde a sua fuga de Tianjin vinte meses antes, o pai escondia-se dos Japoneses
no apartamento da tia-avó durante o horário normal de trabalho. Muitas das suas
operações financeiras eram executadas através do banco dela. Ela sabia melhor do
que ninguém o dinheiro que o pai estava a ganhar. Agora elogiava o seu sucesso a
Ye Ye e à tia Baba. Receando perder a face, Baba acabou por não mencionar a
Página 47
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
verdadeira razão do seu pedido. Com o objectivo de proteger o seu filho das
censuras dos outros, Ye Ye tinha pedido à tia Baba que nunca dissesse a verdade.
Entre pai e filho os assuntos relacionados com dinheiro não voltaram a ser
discutidos. A tia Baba voltou ao trabalho. No dia de pagamento, ela trazia o seu
salário em dinheiro e depositava metade das notas na gavetinha de cima do lado
esquerdo da secretária de Ye Ye. Era este o único dinheiro que Ye Ye tinha ao
seu dispor para as parcas compras de que necessitava: rebuçados, tabaco e ervas
chinesas, idas ao médico ou ao barbeiro, almoços num restaurante ou, de vez em
quando, um brinquedo para os seus netos.
Viviam num ambiente de inquietação constante. Niang deixou bem claro que a sua
presença era penosa. Para salvar as aparências, sorria-lhes sempre, mas eles
sentiam o desprezo por detrás da máscara. Longe de poder desfrutar de uma
reforma digna e calma, Ye Ye recebeu um telhado onde se abrigar, três refeições
diárias e nada mais. O pai nunca visitava o 2.° andar. Quando Niang recebia
visitas em casa, esperava que Ye Ye e a tia Baba permanecessem lá em cima, nos
seus quartos, tal como nós todos, os enteados. Os criados, esses, reagiam
consoante a patroa: os que eram protegidos de Niang tornaram-se atrevidos e
insolentes.
Para Ye Ye a vida tornou-se cada vez mais solitária e, embora não estivesse
proibido de receber a visita dos seus amigos, Niang conseguiu que deixassem de
se sentir à vontade por detrás de toda aquela aparência de delicadeza. A pouco e
pouco deixaram de aparecer.
Ye Ye passava todo o seu tempo a ler e a praticar caligrafia. Certa vez escreveu
um carácter ~? rezt (suportar). Disse à tia Baba que estudasse a palavra.
87
- Divide ~? ren (suportar) nos seus dois componentes, superior e inferior. O
componente superior, Tj dao, significa "faca"; contudo possui uma espécie de
bainha no centro da espada ~J. O componente inferior, •L: xin, significa.
"coração". A combinação de ambos forma uma palavra e essa palavra conta-nos uma
história. Embora o meu filho esteja a ferir o meu coração, eu vou embainhar essa
dor e vou sobreviver. Para mim, a palavra ,~ rera, é o emblema da civilização
chinesa.
Quando a tia Baba olhou para a palavra, pôde ver nitidamente toda a dor e a
raiva evidenciadas em cada uma das pinceladas. Ye Ye não expunha os seus belos
trabalhos de caligrafia na parede com medo de ofender Niang.
Lydia, a minha irmã mais velha, não era brilhante na escola. Com o braço
esquerdo defeituoso, o seu futuro não se afigurava prometedor. Niang e o pai
receavam por ela. Decidiram, por isso, arranjar-lhe um casamento o mais cedo
possível. Logo na visita seguinte que fizeram a Tianjin levaram Lydia com eles e
apresentaram-na a Samuel Sung.
Samuel era o filho mais novo do médico da nossa família em Tianjin. Tinha-se
formado em Engenharia pela Universidade desta cidade. Fora professor durante
alguns anos, tendo obtido o grau de mestre pela Universidade de Purdue, Indiana.
Em 1948 regressara da América e andava à procura de esposa. Tinha já 31 anos;
era, portanto, três anos mais velho de que Niang. Media cerca de 1,60 m, a sua
cabeça era grande e estava quase careca, tinha os olhos pequenos e astutos e as
sobrancelhas inclinadas para cima davam-lhe um aspecto sinistro. Enviesados para
um lado, os lábios pareciam estar sempre a querer abrir-se num sorriso estranho.
Página 48
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Embora não fosse exactamente uma estampa, falava calmamente e tinha boas
maneiras.
Recordo-me de Lydia a falar alegremente do seu casamento_ já próximo com Samuel
e de andar a rabiscar vezes sem conta o seu futuro nome de Sr.a Samuel Sung, em
inglês e chinês.
Muitos anos mais tarde foi a própria Lydia quem deu uma versão dos
acontecimentos que levaram ao seu casamento, pintando um quadro completamente
diferente.
"Quando eu tinha 17 anos, o pai chamou-me ao seu quarto para uma longa conversa.
Disseram-me que me pusesse em frente do espelho e que observasse a imagem. Como
eu não estava a perceber onde é que
88
queriam chegar (porque todos os dias me via ao espelho e não descobria nada de
especial), pediram-me que olhasse com atenção para a minha mão esquerda, que
tinha um defeito devido à paralisia de Erb, mas de que eu nunca pensara ter a
culpa.
O pai disse:
. Estás a chegar à idade do casamento e encontrámos um homem muito bom para ti.
É para teu bem, para o bem do teu futuro, porque tens agora uma boa
oportunidade. Se não te casas enquanto és jovem, acabas por te tornar mais uma
solteirona na família e nós não vamos deixar que isso aconteça. A nossa decisão
está tomada.
As suas palavras caíram como uma bomba e eu senti-me aterrorizada, miserável.
Não sabia o que fazer ou o que pensar, pois nunca me tinha passado pela cabeça
casar-me aos 17 anos. Em vez disso, sentia admiração por algumas das minhas
colegas que iriam prosseguir os seus estudos no estrangeiro. Eu tinha boas
hipóteses neste campo, pois o meu inglês era bom. Nunca ninguém me tinha falado
sobre sexo ou sobre amor. Todavia, tinha de fazer o que me mandavam, pois, de
contrário, iria para um convento e seria freira até ao fim dos meus dias. Ainda
hoje consigo ouvir a voz de Niang:
-Não vou ter de certeza mais outra solteirona cá em casa! De que é que estas à
espera? Vais de certeza para um convento se não fizeres o que te mandamos. Se
obedeceres, seremos bons para ti!
Com isto percebi que estava realmente a mais e que não era desejada. Quando
olhei para o espelho, vi que realmente não era muito bonita e que tinha uma mão
defeituosa. Embora nessa altura eu não tivesse consciência de que cada criança
tem os seus direitos (que incluem o direito à educação e à escolha do seu
esposo), eu sentia, mesmo assim, um impulso irreprimível de me rebelar contra
aquela tirania egoísta. Fui ter com Ye Ye e com a tia Baba em busca de ajuda.
Eles disseram-me que não podiam fazer nada, porque, em primeiro lugar, o meu pai
era o meu pai e, em segundo lugar, eles próprios dependiam do pai para viver.
Aos 17 anos eu era ingénua e pueril e confiava inteiramente no pai; pensava que
as suas decisões eram as melhores para o meu futuro. Só mais tarde quando ele
enviou todos os meus irmãos para Inglaterra, a fim de prosseguirem os seus
estudos, é que percebi que tinha sido uma palerma. Senti-me desgraçada e
deprimida por me ter submetido a um plano tão baixo, que consistia apenas em
transferirem um fardo para as
89
mãos de outra pessoa. Odiei-os pela discriminação que fizeram, quando eu tinha
confiado completamente no pai. Agora, ao olhar para trás penso que o pai
defendia o conceito feudal da supremacia masculina,>,
Segundo Lydia, Niang tinha-a praticamente forçado a casar com Samuel,
Página 49
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
recordando-lhe que o pai tinha sete filhos para sustentar e que ela era a mais
velha. Uma vez que seria difícil para ela arranjar um
emprego com o braço esquerdo deformado, era inútil gastar dinheiro enviando-a
para a universidade.
- Se te casares com Samuel - disse-lhe Niang -, o pai dá-te um dote.
Pressionada desta forma, Lydia cedeu.
Em 1948 tiveram uma grande festa de casamento com mais de 500 convidados, todos
eles chineses. Como mestres de cerimónias, foram contratados dois conhecidos
comediantes da rádio. Nos meses que prece
deram o casamento, os presentes começaram a chegar a nossa casa e foram
cuidadosamente escolhidos. Os melhores ficaram para Niang.
Os meus três irmãos receberam ordens para raparem cuidadosamente a cabeça para a
ocasião. Vestiram-se com os tradicionais fatos chineses, longos e escuros.
Quanto a Franklin, vestiu um fato ao estilo ocidental, de bom corte e feito por
medida, o cabelo ondulado, bem à moda. Susan usou um vestido de cetim, cheio de
rendas e franzidos. Durante a cerimónia e nos dias subsequentes, os meus irmãos,
"as três lâmpadas", foram cruelmente gozados pelos seus pares. Os amigos do pai
fizeram notar o tratamento desigual conferido aos dois grupos de crianças pelas
suas duas mulheres.
Conforme o prometido, Lydia recebeu um dote de 20 000 dólares americanos, uma
soma enorme naquela época. Ela e Samuel mudaram-se directamente para Tianjin,
para casa dos pais de Samuel. Não os voltei a ver durante os trinta e um anos
que se seguiram.
Depois de o Japão ter perdido a guerra, o pai reivindicou os seus negócios e as
suas propriedades em Tianjin. Acompanhado por Niang, viajava frequentemente para
lá. Os rapazes tornavam-se cada vez mais independentes durante a ausência dos
pais. Lembro-me de os ver a namoriscarem umas raparigas que moravam atrás da
nossa rua, utilizando elásticos para enviarem cartas "por via aérea" contendo
rebuçados, que atiravam a partir da janela de trás do seu quarto.
Gregory cansou-se do pequeno-almoço diário, que consistia em canja e vegetais de
conserva. Numa manhã de domingo, em que o pai e Niang não estavam em casa,
dirigiu-se propositadamente à cozinha. Como shao ye (patrão mais novo) da casa,
exigiu ovos ao pequeno-almoço. O cozinheiro objectou, replicando não haver ovos
suficientes em casa. Nesse momento, um Gregory mais determinado, dirigiu-se à
despensa. Encontrou então dezasseis ovos, que partiu sistematicamente, uns atrás
dos outros, para uma grande tigela. Fez ele próprio uma omeleta gigante com os
dezasseis ovos e regalou-se com cada garfada até esvaziar tudo o que tinha no
prato.
Uma tarde, quando andava à procura de uma bola perdida enquanto os meus irmãos
ainda estavam na escola, fui espreitar debaixo da cama de Gregory e
deparou-se-me com uma caixa sem tampa contendo material escolar, tinta e um
selo. Mais tarde James contou-me que Gregory tinha resolvido os seus problemas
de dinheiro fabricando facturas falsas com pequenas somas para a papelaria da
escola. Gregory tinha feito amizade com um dos funcionários da contabilidade,
que fazia "reembolsos" em dinheiro de pagamentos a mais. Assegurava deste modo a
sua semanada e uma vida feliz.
Entretanto Ye Ye começou a reparar que de tempos a tempos lhe desapareciam notas
da gavetinha do lado esquerdo da sua secretária, o lugar onde a tia Baba
colocava regularmente metade do seu ordenado do mês. Ye Ye suspeitava de um de
nós, mas não mencionou o assunto. Discordava do programa de austeridade do pai e
simpatizava com a nossa luta; nunca fez qualquer denúncia sobre os
desaparecimentos periódicos de dinheiro. Era uma situação estranha, pois nem
Página 50
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
aprovava o roubo nem as circunstâncias que o motivavam.
As coisas atingiram o ponto máximo num dia de 1948. A inflação era galopante e o
dinheiro chinês valia cada vez menos. Sendo uma boa funcionária, a tia Baba
recebia em dólares americanos e em dólares de prata (estes eram chamados as
grandes cabeças, pois eram cunhados com uma imagem de perfil de Yuan Shih-kai,
um general da dinastia Qing que se tinha autoproclamado imperador da China
durante oitenta e três dias em 1916). Como de costume, ela colocou metade do seu
salário na secretária de Ye Ye.
A moeda chinesa desvalorizava-se tão rapidamente que o banco central em Xangai
não era capaz de imprimir dinheiro com a rapidez necessária. Depressa o dólar
americano passou a ser trocado por 2
90
91
milhões de yuans chineses. Em cada compra simples eram utilizados enormes maços
de notas.
O ladrão, que por acaso era Edgar, tinha tirado alguns dólares americanos da
gaveta de Ye Ye e tinha-os trocado no mercado negro. Em virtude desta operação
recebera um grande saco cheio de moeda local. Encontrou-se então no terrível
dilema de ter tanto dinheiro que não era possível escondê-lo. Na verdade, as
notas eram demasiadas para serem escondidas debaixo do colchão e, além do mais,
os três rapazes partilhavam o mesmo quarto.
Edgar cavou um grande buraco no quintal e enterrou todo o dinheiro. Julgou ter
conseguido pôr o segredo a salvo, mas tinha-se esquecido de Jackie, o cão do
pai.
No dia seguinte, enquanto estávamos na escola, Jackie escavou a terra com as
patas e descobriu todo o dinheiro. Rapidamente passou a haver notas a voar por
todos os cantos do pátio. Entretanto as criadas encontraram um recibo de câmbios
no bolso das calças de Edgar, no cesto da roupa suja.
Niang disse aos criados que apanhassem todas as notas e colocassem o jardim em
ordem. Não se ouviu uma única palavra sobre o assunto até o jantar estar
terminado. Nessa altura, em vez da habitual taça de fruta, as criadas trouxeram
um grande prato cheio de notas manchadas de terra, um autêntico monte de moeda
local.
Tão surpreendido como os restantes, o pai lançou-se numa tirada terrível. Depois
de vários impropérios e ameaças intermináveis, Niang revelou o que já sabia: que
Edgar era o culpado. Seguiu-se um dos discursos críticos do pai sobre
desonestidade, ausência de confiança, o sangue ruim da nossa mãe e um futuro
amaldiçoado para todos nós, especialmente para Edgar, que nada traria senão
vergonha áo nome da família Yen. Insinuou ainda que tanto Ye Ye como Baba nos
tinham mimado tanto, que agora não servíamos para mais nada. Finalmente, levou
Edgar para cima e espancou-o com o chicote de Jackie.
Nós, os residentes de segunda, juntámo-nos no quarto de Ye Ye. Aí conseguíamos
ouvir o zumbido das vergastadas e os soluços de Edgar. Ye Ye, Baba, Gregory e eu
estremecíamos a cada chicotada, mas James limitou-se a encolher os ombros e a
sugerir um jogo de brídege para "passar o tempo".
Durante toda a nossa infância, James foi o único que escapou sem ser castigado.
Sobreviveu, pois conseguiu isolar-se emocionalmente.
Éramos muito próximos um do outro e partilhávamos muitas confidências, mas ele
nunca saiu em minha defesa. Uma vez deu-me este conselho:
Não confies em ninguém. Tens de ser um peixe frio. Eu não magoo ninguém e
Página 51
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
ninguém me consegue magoar.
Franklin e Susan eram os mimados: o filho e a filha da imperatriz eram
favorecidos e privilegiados. Para nós, os habitantes do 2.° andar, a antecâmara
parecia o paraíso. Contudo, o paraíso não era senão o Jardim do Éden de
Franklin.
Ele implicava com Susan, tirava-lhe os brinquedos, puxava-lhe os cabelos,
dava-lhe bofetadas e torcia-lhe os braços. Niang ignorava tudo isto. Todas as
noites se dirigia ao quarto de Franklin para lhe dar um beijo de boa-noite.
Sentava-se na borda da cama dele e falava-lhe baixinho, brincava ou conversava
com ele sem sequer notar a presença de Susan. Nas noites em que Franklin estava
com os primos franceses ou com os amigos, Niang nem se dava ao trabalho de ir ao
quarto deles.
Ye Ye e o pai não podiam estar mais contentes com o fim da ocupação japonesa,
depois de a América ter lançado as bombas atómicas, em 1945. Todavia, a guerra
civil recomeçou quase imediatamente, envolvendo os nacionalistas (Kuomintang) e
os comunistas. Nos três anos que se seguiram, o seu receio foi aumentando à
medida que verificaram que o poder pendia cada vez mais para a esquerda. Mao
Zedong, o líder comunista, e os seus exércitos empreendiam uma marcha
inexorável.
Nessa época os jornais estavam repletos de histórias de atrocidades cometidas
pelos comunistas contra os comerciantes e os proprietários de terras. Havia
notícias diárias de novas barbaridades e selvajaria atroz. A ideia que
predominava, e que era alimentada por Chiang Kaishek (que governava a China
desde a morte de Sun Yat-sen, em 1925) e pela imprensa afecta ao Kuomitang, era
a de que, se Xangai viesse a cair nas mãos dos comunistas, haveria um banho de
sangue.
Em 1948, um vento frio veio afectar o clima de negócios dos homens como o meu
pai. Num último esforço para estabilizar a moeda, o governo nacionalista acabava
de anunciar a emissão de nova forma monetária a que chamou "Certificado Yuan
Dourado". A medida era necessária, dado que o povo tinha perdido toda a
confiança na antiga
93
moeda, a chamada Fa Bi ou moeda corrente. A inflação galopante tinha atingido um
ponto em que o dólar americano era trocado por 11 milhões de ytra~a chineses:
mais ainda do que Edgar tinha obtido em troca dos seus dólares roubados.
Comunicados oficiais apelavam a todos os chineses para que entregassem as suas
notas antigas, numerário em ouro ou prata e moeda estrangeira até 30 de Setembro
de 1948. Os certificados Yuan Dourados seriam distribuídos em troca, estavam
supostamente garantidos por ouro e cada grupo de quatro valia 1 dólar americano.
Houve de imediato uma corrida ao ouro, pois muitos depositantes particulares
correram a levantar os seus metais preciosos e moeda estrangeira dos bancos
locais. Ninguém no seu juízo perfeito ia alguma vez acreditar que houvesse ouro
suficiente para apoiar os referidos certificados. Os grandes capitalistas, como
o meu pai, conseguiram passar as fortunas para Hong-Kong, os Estados Unidos e a
Europa. Os que auferiam baixos salários, como a tia Baba, foram obrigados a
obedecer às instruções do governo. O valor dos Certificados Dourados caiu a cada
vitória comunista, até chegarem a um ponto em que não tinham qualquer valor, tal
como a antiga moeda que tinham vindo substituir. Ao obedecer âs ordens de Chiang
Kai-shek, a tia Baba perdeu todas as suas economias.
O pai fazia toda a espécie de planos para qualquer eventualidade e foi só uma
questão de tempo até dar o seu passo.
Penso que foi no domingo imediatamente a seguir à visita desastrosa das minhas
Página 52
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
colegas; o pai surgiu de repente, sozinho, à porta do quarto de Ye Ye. Chamou a
tia Baba e ordenou-me que fosse brincar para o terraço. Parecia preocupado, mas
procurou um ar de respeito perante o seu próprio pai e a sua irmã. A tia Baba
reparou com tristeza que era a primeira vez que conversavam os três sozinhos
desde que a família se mudara para Xangai, cinco anos antes. Por momentos
conseguiram reviver uma espécie de intimidade. O pai começou a falar da guerra
civil e da possibilidade de Xangai vir a ser ocupada pelos comunistas. Ele e
Niang tinham decidido mudar-se para Hong-Kong. Ye Ye e a tia Baba estariam
dispostos a ir com eles?
Era claro para a tia Baba que, para além de deixar os seus amigos, teria que
abandonar também o seu lugar no banco da tia-avó e voltar à situação de
solteirona a viver de caridade e sob o olhar crítico de Niang. Perguntava a si
própria se a vida sob o regime comunista seria, na verdade, pior. do que a vida
sob a alçada de Niang. Decidiu ficar em Xangai.
94
Entretanto, gotas de suor surgiram na fronte de Ye Ye e ele empalideceu de medo.
Timidamente, aceitou o convite do filho para se mudarem para Hong-Kong e
arriscarem juntos as suas hipóteses sob o domínio britânico.
. De certeza que não teremos de partir imediatamente! - aventou. - Talvez o
velho Chiang (Kai-shek) consiga travar as coisas com o auxílio dos Americanos.
- Claro que não teremos de ir já! - replicou o pai. - Temos ainda alguns meses,
pelo menos. Jeanne e eu planeamos voar para Tianjin na próxima semana para
tentarmos vender tanto quanto possível. Ao que parece, Beijing e Tianjin vão
cair antes de Xangai. Vou cambiar os meus fundos em dólares de Hong-Kong e
levá-los comigo para Hong-Kong.
O pai pediu então a Ye Ye que lhe mostrasse onde guardava o dinheiro,
sublinhando que devia estar sempre fechado à chave. Distraidamente,por meias
palavras, acabou por dizer que não estava certo que as crianças estivessem
sujeitas a tentações e depois virou-se para a minha tia e acusou-a de me
favorecer em relação aos meus irmãos. A tia Baba desfez essa ideia,
acrescentando que também teria dado 1 dólar de prata às outras crianças caso
tivessem sido as melhores da turma. Lembrou-lhe ainda que as crianças precisavam
de ser recompensadas quando o seu desempenho era excelente.
O pai começou a desfiar o rosário das minhas deficiências: era baixa e magra;
tinha pouco apetite, sem dúvida devido a lanches entre as refeições
proporcionados pela tia Baba; era arrogante e desinteressada. Exigiu que a tia
Baba apontasse num papel todos os centavos que me tinha oferecido ao longo do
último ano e pôs um ar céptico quando a minha tia reafirmou que o dólar de prata
era a única coisa que eu tinha recebido. Empurrou-a para o seu quarto e ordenou
que abrisse a sua caixinha de aperitivos, que ela estava habituada a guardar. De
seguida fez uma lista dos mesmos:
Ameixas de conserva salgadas: 2 pacotes Carne de porco seca (doce): 1 pacote
Carne de vaca seca (picante): 2 pacotes Amendoins torrados: 1 pacote de 100 g
Rebuçados de amendoim: 1 frasco de 200 g Pevides de melão: 1 pacote
95
Ye Ye e a tia Baba observavam atónitos enquanto ele fazia este inventário. O pai
iniciou então um sermão sobre a minha falta de préstimo para qualquer coisa,
falta de princípios morais, consumo excessivo de aperitivos e o meu
comportamento monstruoso. A tia Baba tentou defender-me, dizendo-lhe que eu era
apenas uma menininha que nem sequer conhecera a mãe, mas o pai não quis saber
Página 53
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
destes protestos.
A tia Baba perguntou se o pai tinha planos para os seus filhos. Lydia vivia em
Tianjin com Samuel e os sogros. Quanto aos rapazes, o pai gostaria que
terminassem o liceu em Xangai e depois pensava mandá-los para a universidade em
Inglaterra. Franklin e Susan iriam para Hong-Kong com os pais. Houve uma curta
pausa.
- E .~ ~ wcc mei (quinta filha mais nova)? - perguntou Ye Ye. - Que pensas fazer
com ela?
O pai pegou na lista da comida e examinou-a.
- Ultimamente ela tem sido muito rebelde. O seu bom desempenho na escola fez que
passasse a ter uma elevada opinião de si própria. Vocês estragaram-na porque a
elogiaram de mais. Nós decidimos discipliná-la.
Ye Ye sobressaltou-se.
- Mas o que foi que ela fez para merecer isto`? - perguntou ele. - Ela é apenas
uma menina da escola primária. Porque é que a castigas?
- Pois aí é que está o problema! - retorquiu o pai. - Vocês são demasiadamente
protectores. A questão não é o que ela fez ou não fez. Ela tem de aprender a ser
obediente e modesta. Devia saber qual é o seu lugar e perceber que as suas
opiniões e desejos não contam. Na verdade, sem o seu pai e sem Niang ela não é
nada. Decidimos retirá-la deste ninho de permissividade. Quando formos para
Tianjin, na próxima semana, levamo-la connosco. A nossa ideia é interná-la em St
Joseph's. Ela vai lá ficar sozinha. Estão proibidos de lhe escrever ou de lhe
enviar pacotinhos de comida iguais a estes!
Nesse momento começou a abanar a lista à frente da cara da tia Baba.
- Ela estará proibida de enviar ou receber cartas. As freiras receberão
instruções para a deixarem fechada atrás dos portões até acabar o liceu.
- E os comunistas? Então e os comunistas? - perguntou a tia Baba. - Os jornais
dão conta de combates acesos na Manchúria.
96
centenas de milhares de refugiados estão a chegar a Tianjin. Não te lembras de
ter lido notícias sobre os estudantes universitários que fogem para o sul?
Estavam a fazer manifestações em Tianjin exigindo comida e abrigo, quando foram
atingidos pelas tropas do Kuomitang. Será que é seguro para ela ir lá frequentar
a escola?
- Isto tem de parar já! - gritou o pai, brandindo a lista. - Ela tem de ser
separada de vocês os dois.
E, ainda agarrando na lista, saiu do quarto da tia Baba, batendo com a porta.
- Mas o que é isto? - perguntou a tia Baba a Ye Ye com a voz trémula. - A
criança não fez nada. Ele comporta-se como se quisesse destruí-la. Ele sabe que
vai shang xin (destroçar-lhe o coração) ir para longe de nós. Consegue perceber
alguma coisa disto tudo?
Ye Ye sabia.
- Esta criança não fez nada de mal. Mas, cada dia que passa, a sua presença é
como um espinho para eles: ela aborrece-os simplesmente porque existe. Mandam-na
embora porque querem ver-se livres dela.
Foram tempos de incerteza. Todas as famílias com propriedades, ligações ao
Kuomitang ou mesmo formação profissional ocidental desesperavam sobre qual a
decisão a tomar: partir ou ficar. Para os homens de negócios já estabelecidos,
com casas, escritórios, famílias, amigos eguanxi (influências), a escolha era
particularmente difícil. O tempo passava. O exército de Chiang Kai-shek perdia
cidade atrás de cidade. Será que os comunistas eram tão maus como se dizia?
Alguém podia ter a certeza de como as coisas iriam evoluir no novo regime?
Página 54
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Muitos houve que não ficaram para ver. Todos os dias comboios, aviões e barcos
partiam cheios de refugiados rumo a Taiwan e Hong-Kong.
Anos mais tarde, o pai contaria a história do destino de um amigo que hesitara
no último momento. Dirigia-se ao aeroporto de Xangai com a mulher e o filho. Não
conseguia acreditar que tinha importância a ponto de vir a ser perseguido. Parou
na casa de um primo. Trocaram de lugares. O primo voou com a mulher e a filha
para uma vida próspera em Nova Iorque. O amigo do pai ficou e foi desapossado de
tudo quanto tinha. O filho foi preso por criticar Jiang Qing, a mulher de Mao. A
esposa suicidou-se durante a Revolução Cultural.
O pai, Niang, Franklin e Susan partiram para Hong-Kong em Dezembro de 1948. A
tia-avó não conseguiu deixar o seu banco. Decidiu
97
ficar e tentar a sua sorte com os novos governantes. A partida de ye Ye foi de
cortar o coração. Ele adorava a sua cidade natal e duvidava poder algum dia
voltar a vê-la. Os anúncios, os cheiros, os sons e ~ memórias de Xangai eram
insubstituíveis. Receava a vida que se estendia a seus pés em Hong-Kong, mas
sabia que tinha de partir. Até ao último minuto tentou fazer a tia Baba mudar de
ideias, mas isso ela não podia fazer. Trinta anos mais tarde, a minha tia foi
incapaz de descrever a sua separação definitiva sem angústia.
Uma após outra, as cidades foram caindo: Luoyang, Kaifeng, Jinzhou, Chanchun,
Mukden. Em Dezembro de 1948, as tropas comunistas montaram cerco à cidade de
Beijing. Em Janeiro de 1949 os
dados estavam lançados, no momento em que a batalha de Huai Hai foi finalmente
ganha pelos comunistas. Mais de 300 000 soldados do Kuomitang foram feitos
prisioneiros. Em Janeiro de 1949, Chiang Kaishek renunciou ao cargo de
presidente da República. O Exército de Libertação do Povo atravessou o rio
Yangtse no mês de Abril. Em menos de um mês tomaram Nanquim, Soochow e Hangchow.
O Exército Vermelho fez uma entrada triunfal em Xangai no dia 25 de Maio de
1949. Jovens, zelosas e disciplinadas, as tropas do ELP puderam ser observadas a
marchar, subindo e descendo a Rua de Nanquim. Numa atitude amigável, ajudaram os
residentes e os comerciantes a limparem os sacos de areia e outros materiais
reunidos pelos nacionalistas. Os soldados eram bem-educados e estavam bem
alimentados. Não houve saque.
Para a minha tia seguiu-se um período de paz e felicidade como nunca tinha
visto. O banco da tia-avó reabriu no espaço de dias. Os comunistas fizeram um
grande esforço para manterem a lei e a ordem. Lojas e restau rantes retomaram o
seu movimento habitual. A inflação foi finalmente travada. Os Certificados Yuan
Dourados foram trocados por Jen Min Pi, a nova moeda da República Popular. O
preço dos bens estabilizou e os fornecimentos voltaram a estar disponíveis no
mercado. Os serviços públicos, tais como transportes, entrega de correio e
limpeza de ruas pareciam melhores do que anteriormente. O novo regime assegurava
repetidamente à população, através dos jornais e da rádio, que as propriedades e
os negócios dos comerciantes chineses e estrangeiros seriam sempre protegidos e
as suas religiões respeitadas.
A tia Baba ficou encarregue do foro doméstico, com a supervisão dos meus três
irmãos, que frequentavam ainda a escola em Xangai.
98
O ordenado que recebia do banco gastava-o nas suas necessidades pessoais; o
dinheiro que lhe advinha das propriedades do pai utilizava-o para o governo da
casa. Reduziu o pessoal doméstico a duas criadas e a Miss Chinn. Comoveu-se
profundamente quando ouviu o presidente Mao, numa emissão de rádio, a partir de
Beijing, no dia 1 de Outubro de 1949, proclamar o nascimento da República
Página 55
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Popular da China. Todas as suas colegas de trabalho se juntaram à volta de um
rádio para ouvir o comunicado de Mao: "O Povo Chinês pôs-se de pé."
Os seus dias decorriam de uma forma calma e ordeira. Após o pequeno-almoço
enviava os rapazes para a escola, antes de ela própria partir para o trabalho.
Jantavam juntos às 7.30, como de costume, e os rapazes eram encorajados a levar
os amigos a casa. Cada um passou a receber uma semanada justa, para poder sair
de vez em quando. A intei~erência comunista não foi além do registo obrigatório
do agregado familiar, que incluía a governanta de Franklin, Miss Chien.
Formou-se um hu kou (comité de residentes) com fins administrativos. Mais tarde,
estes comités transformaram-se em instrumentos de controlo do governo, dando
conta de todos os movimentos de cada habitante de Xangai.
Miss Chien era solteira e andava pela casa dos 30. Depois da partida de Franklin
e Susan, as suas funções em casa deixaram, obviamente, de existir e ela começou
a recear que a despedissem. A sua instrução parara aos 14 anos, pelo que já não
poderia ensinar qualquer disciplina aos rapazes. Procurou então ganhar os
favores da tia Baba, confeccionando iguarias regionais da sua cidade natal. No
Inverno, quando as temperaturas desceram, ela aquecia a cama da tia Baba com
botijas de água quente e chegou mesmo a comprar garrafas térmicas para a água
quente do banho que a tia Baba tomava à noite. Passava os dias na leitura de
jornais, à conversa com as duas criadas, a escrever cartas e a fazer tricô. A
tia Baba estava admirada com o fornecimento inesgotável de lã de boa qualidade,
que começava a tornar-se difícil de encontrar nas lojas da vizinhança. Muitos
dos bens importados chegavam em Pequenas quantidades, uma vez que os
estrangeiros partiam aos magotes e muitas companhias também estrangeiras
fechavam as suas Portas. Generosamente, Miss Chien oferecia muitos dos casacos
que tricotava à tia Baba e aos rapazes.
Gregory terminou o liceu em 1950. De acordo com as ordens do pai, ele e Edgar
seguiram de comboio para Tianjin, onde mandaram fazer
99
uns fatos de corte ocidental no alfaiate do Tio Pierre. Nessa altura ainda se
podia viajar facilmente e à vontade. Deixaram Tianjin de barco, rumo a
Hong-Kong, equipados de roupa nova. Três anos depois partiriam para Inglaterra,
a fim de prosseguirem os estudos.
James continuou a frequentar a escola por mais um ano, durante o qual a tia Baba
se dedicou inteiramente ao seu cuidado. As criadas receberam instruções no
sentido de cozinharem os seus pratos preferidos. James foi inscrito em
dispendiosas lições de equitação, recebia os seus amigos em casa e fazia
excursões às cidades vizinhas. Galante e espirituoso, acabou por ser uma grande
companhia para a minha tia. Muitas vezes liam em conjunto as cartas de Ye Ye e
James era instado a escrever semanalmente ao pai e, por vezes, também a Ye Ye.
Gozava de uma liberdade considerável em Xangai; tanta que, quando, em 1951,
recebeu ordens do pai para partir rumo a Hong-Kong, mostrou relutância em
fazê-lo. A tia Baba procurou a interferência de Ye Ye para o caso de James, mas
foi em vão. Como resposta, Ye Ye disse apenas que os dois deviam ter perdido o
juízo. Acrescentava ainda que não era sequer conveniente mostrar aquela carta ao
pai.
Na altura em que James partiu, em Julho de 1951, as restrições de viagem eram
mais apertadas. Acompanhado pelo seu terceiro tio, Frederick (o irmão mais novo
da nossa mãe, já falecida), viajou de comboio até Cantão. Aí era necessário
obter um documento especial para atravessar a fronteira para Hong-Kong,
documento que não possuíam. Passaram então a salto, num barquito pouco seguro,
pela calada da noite. A sorte acompanhou-os e entraram em paz no porto de
Página 56
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
HongKong. Para trás, em Xangai, ficava a tia Baba, agora sozinha com duas
criadas e Miss Chien.
100
8
Yi Shi Tong Ren Tratamento igual para todos sem excepção
O pai e Niang levaram-me ao Norte, a Tianjin, em Setembro de 1948, no auge da
Guerra Civil. Umas atrás das outras, as províncias foram caindo nas mãos do
Exército Vermelho. A maior parte das pessoas fugia na direcção oposta àquela que
nós seguíamos.
A seguir ao desmembramento do exército do Kuomitang, na Manchúria, os refugiados
chegavam à média de 600 por dia, arrastando consigo peste e miséria. A população
de Tianjin aumentou cerca de 10 % num espaço de meses. Os serviços da cidade, já
extremamente desgastados, deixaram de satisfazer as necessidades. Pouco tempo
depois, os refugiados foram impedidos de entrar através do uso da força e
abrigados em campos com condições primitivas. A disenteria grassava.
Mesmo com este panorama, Niang internou-me em St. Joseph's. Restavam apenas
cerca de 100 alunas. Eu era uma das 4 internas; todas as outras eram alunas
externas. Esporadicamente, havia aulas, mas o
número daquelas que as frequentavam variava. Durante as semanas seguintes, o
número de raparigas diminuiu. Em breve fomos reunidas numa única sala de aula,
que incluía alunas dos 7 aos 18 anos. Não se falava chinês durante o horário
lectivo. Na realidade, na época em què eu frequentei esta escola não se ensinava
chinês. Éramos obrigadas a comunicar em inglês ou francês.
Senti-me amargurada. O chinês tinha sido a minha língua de estudos durante a
instrução primária em Xangai. O inglês era a segunda língua; nunca aprendi
francês. Sentia-me muito só e ansiava por voltar para
junto da tia Baba, de James e dos meus amigos em Xangai. Extravasava o meu
desespero em longas cartas, pedindo apenas que me enviassem de casa algumas
palavras simpáticas. Dia após dia esperei ouvir o meu nome aquando da
distribuição do correio. Nunca recebi nenhuma carta. Desconhecia as instruções
que os meus pais tinham dado às freiras: não poderia receber visitas,
telefonemas ou correio.
Enclausurada num mundo hermético por detrás das grades de um convento,
desconhecia .por completo que, entretanto, os comunistas, após a captura da
Manchúria, estavam a atravessar a Grande Muralha, dirigindo-se determinadamente
a Beijing e Tianjin. As tropas do Kuomitang e as tropas comunistas travaram
acesas batalhas pelo controlo do Norte da China. Muitas estudantes e respectivas
famílias fugiram para Taiwan e Hong-Kong. As aulas normais deixaram de existir.
Passámos a ler livros em língua inglesa que nós próprias escolhíamos. Mergulhei
no dicionário de inglês-chinês. Um dia, durante uma aula informal de
conversação, a nossa professora pediu a cada uma de nós que dissesse o nome do
seu livro preferido. Toda a gente se riu quando eu disse que o meu era o
dicionário. E se eu pudesse satisfazer um desejo, qual seria? Receber uma carta.
Só uma. De qualquer pessoa.
À medida que o exército comunista se aproximava, havia um número cada vez maior
de alunas que deixavam a escola. Em St. Joseph's deixou de haver festas de
despedida. As meninas deixavam simples mente de ir às aulas. As freiras tinham
um aspecto triste e preocupado. Começavam a ser aconselhadas pelas suas
superioras em França a abandonar Tianjin, a fim de escaparem a perseguições.
Página 57
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Passava todos os domingos e feriados entregue a mim mesma, incluindo Natal e Ano
Novo. Todas as outras internas regressavam a casa, à companhia dos seus
familiares. Eu não estava autorizada a
102
aceitar qualquer convite das minhas amigas. As freiras não sabiam o que fazer
comigo. Como um fantasma, cirandava de aula em aula e passava a maior parte do
meu tempo na biblioteca a ler contos de fadas. A minha recordação desse Natal é
estar sentada sozinha num refeitório enorme a comer presunto, batatas e pudim de
ameixa, a fingir que não tinha uma única preocupação no mundo. Lá fora ouvia-se
no ar o refrão ~ Noite Feliz, enquanto eu, estoicamente, evitava os olhares
solícitos da bondosa irmã Hélène, que saía e entrava enquanto eu jantava sozinha
no dia de Natal.
A 31 de Janeiro de 1949, as tropas comunistas, vitoriosas, entraram em Seijing
sem dispararem um só tiro. No dia seguinte, Fu Tso-I, o general nacionalista,
rendeu-se com todos os seus exércitos e ricos aprovisionamentos. Pelo feito foi
recompensado com o posto de ministro da Conservação da Água da República
Popular. Tianjin foi tomada, pela mesma altura, pelo general comunista Lin Biao.
Lydia, a minha irmã mais velha, estava a viver em Tianjin com o marido, Samuel,
e os sogros na época em que eu estive fechada no convento. Nunca me foram
visitar nem quiseram saber notícias minhas. Quando fugiram dos comunistas e
foram para Taiwan, em Janeiro de 1949, deixaram-me para trás sem terem sequer
tentado um contacto.
Os dias corriam uns atrás dos outros e eu passava-os sentada na biblioteca a
pensar no que seria de mim. A minha rotina escolar desaparecera. Não havia aulas
e todos os dias eram dias "livres". As minhas professoras pareciam não saber
como educar uma única criança que falava apenas um pouco de inglês e francês. O
ambiente no convento era de pânico controlado a muito custo e era apenas
aliviado pelos rituais católicos romanos.
Uma manhã, inesperadamente, a irmã mais velha de Niang, a tia Reine, apareceu na
portaria da escola. Fiquei doida de alegria, pois, desde que entrara no colégio,
não recebera uma única visita. Embora mal nos conhecêssemos, chorei quando a vi.
Ela preparava-se para deixar Tianjin com o marido e os dois filhos e tinha-se
lembrado de que eu estava presa em St. Joseph's. De sua própria iniciativa e sem
consultar ninguém, retirou-me da escola.
Tianjin tinha acabado de ser libertada. Nas ruas viam-se soldados comunistas,
vestidos de uniformes de Inverno acolchoados, usando bonés de pala. Tinham por
tarefa remover os sacos de areia, trincheiras ou fortificações construídas pelos
nacionalistas para impedir a passa
103
gem de veículos e tropas inimigas. Mais tarde a neve derretida tinha
transformado os sacos de areia em montes de lama. As ruas estavam estranhamente
calmas. O trânsito era quase inexistente. Percorremos a pé a curta distância que
nos separava das duas casas do pai, na Rua Shandong.
Nesse dia tudo me pareceu estranho e incompreensível e, mais do que tudo, voltar
a uma casa onde eu tinha armazenado uma série de memórias muito queridas. Aí fui
encontrar o tio Jean Schilling (que trabalhava para as Nações Unidas) e os seus
dois filhos, Victor e Claudine. Sentia-me envergonhada, mas todos foram
simpáticos e pro_ curaram fazer que eu me sentisse à vontade. Victor, que era da
minha idade, convidou-me para brincar no seu quarto. Fizemos aviões de papel e
andámos a atirá-los por toda a casa. A tia Reine, que tinha reparado no meu
nervoso lacónico, passou o braço em volta dos meus ombros e segredou-me:
- Não te preocupes, eu vou dar yi shi tond ren (um tratamento igual a todos sem
Página 58
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
excepção) aos três.
Já à mesa do jantar, o tio Jean explicou que os meus pais se encontravam em
Hong-Kong e que nós iríamos ter com eles logo que fosse possível. No dia
anterior, os soldados comunistas tinham tentado entrar e tomar posse das duas
casas do pai, a fim de as utilizarem como aquartelamento temporário do general
Lin Biao. O tio Jean içara a bandeira das Nações Unidas para proteger as casas e
impedir que fossem ocupadas pela força.
Nessa altura todos os familiares de Niang viviam nas casas que o pai possuía em
Tianjin. A mãe tinha morrido. Lao Lao, a tia chinesa de Niang que era solteira,
vivia com o irmão mais velho de Niang, Pierre, na casa "velha", juntamente com
um número mínimo de empregados. Pierre era ainda o administrador dos negócios do
pai em Tianjin, mas fugiria em breve para Marrocos. Reine e a família viviam na
casa "nova". O pai tinha enviado Jacques, o irmão mais novo, para Paris e pagava
os seus estudos na Sorbonne.
Alguns dias mais tarde a família Schilling e eu embarcámos num navio em direcção
a Hong-Kong.
A ilha de Hong-Kong (~;~ Porto Fragrante) fora cedida para sempre aos Britânicos
depois da derrota da China na Primeira Guerra do Ópio, em 1842. No final da
Segunda Guerra do Ópio (1858-60), a Grã
104
Bretanha "recebeu" a ponta da península de Kowloon, ao sul de Boundary Street,
como possessão permanente. Em 1898, a Grã-Bretanha fez novas exigências e obteve
o arrendamento do resto da península de gowloon (a norte de Boundary Street) por
99 anos. Essa área ficou conhecida como "Novos Territórios" e deveria ser
restituída à China a 1 de Julho de 1997.
A tia Reine tinha conseguido fazer passar os diamantes de Niang para fora de
Tianjin, forrando as pedras de tecido e cozendo-as ao seu casaco de Inverno como
se fossem botões. A forma como tudo isto nos foi revelado foi de uma intensidade
dramática: cada uma das pedras preciosas saltava das tesouras de Reine para cima
da mesa do café, cheia de um brilho magnífico. À medida que cada uma delas ia
surgindo, Niang mostrava-se tão satisfeita, que o seu humor se modificou de
forma notória e nem mesmo a minha presença inesperada lhe causou a fúria
imediata que eu antecipara.
O pai, Niang, Ye Ye, Franklin e Susan viviam num apartamento alugado em Boundary
Street, Kowloon, mesmo em frente ao colégio de freiras Maryknoll. Em 1949 esta
colónia britânica era apenas uma imagem distante do bulício fervilhante de
Xangai; faltavam-lhe também a tradição e a cultura de Tianjin. Era uma
cidadezinha pacata e arrumada, uma cidade de província, com ruas limpas,
autocarros vermelhos de dois andares, trânsito ordeiro e um porto magnífico. A
língua falada era maioritariamente o cantonense. O inglês era apenas falado em
hotéis de 1a classe, como o Península.
Todos os dias Niang levava a família Schilling a visitar a cidade no seu carro
com motorista. Eu ficava em casa com Ye Ye e os criados. Polidamente, Niang
perguntava a Ye Ye se gostaria de os acompanhar. Ele recusava sempre. Quanto a
mim, nunca fui convidada. Estava automaticamente esclarecido que estes passeios
não me incluíam.
No fundo, isso alegrava-me. Era maravilhoso estar com o meu Ye Ye. Acompanhava-o
em pequenos passeios a pé e, como a vista já lhe ia faltando lia-lhe os jornais
todas as manhãs. Jogávamos às damas chinesas e,~generosamente, ele trocava
muitas vezes um cavalo (cavaleiro) por um carro (torre). Estes jogos eram
competitivos e ele parecia apreciá-los, pois analisava o resultado final,
Página 59
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
independentemente de quem ganhava ou perdia. Contava-me histórias retiradas das
Lendas dos Três Reinos e acompanhava estas narrativas com excertos de ópera
chinesa, quando estava de bom humor. Ensinou-me a magia e o mis
105
tério escondidos em muitos caracteres chineses, ilustrando estas explicações com
exemplos brilhantes que me encantavam. Uma vez fez-me notar que as palavras ~ ~
(negócio) continham o segredo para todas as riquezas do mundo.
- `~ significa "comprar", ~ significa "vender" - disse ele. ._ As duas palavras
são idênticas, excepto no símbolo ~, que significa "lama" ou "terra" e está
colocado no topo de "vender". A essência de ~ ~ (negócio) é comprar-vender; e o
seu ingrediente mais importante é ~ isto é, lama ou terra. Nunca te esqueças
disto.
Muitas vezes sentávamo-nos apenas em silêncio, contentando-nos com a companhia
um do outro, enquanto Ye Ye fumava calmamente o seu cachimbo.
Num domingo, ao pequeno-almoço, Niang sugeriu que almoçássemos todos no luxuoso
Repulse Bay Hotel, na ilha de Hong-Kong. Amontoámo-nos no grande carro do pai.
Foi um verdadeiro aperto. Eu fui a única a ficar, triste, de pé, no passeio, com
os criados.
Foi Victor quem falou:
-Não é justo, mamã. - disse ele em francês à tia Reine - Porque é que a Adeline
nunca vai connosco a lado nenhum?
Já impaciente com a partida, e como não percebia francês, o pai perguntou a
Victor em inglês:
- Precisas de ir à casa de banho? Niang interrompeu em francês:
- A Adeline não vai porque o carro já está muito cheio. Não há mais espaço.
- Então e ontem? E no dia anterior? - perguntou Victor em francês.
- Entra no carro, Victor! - ordenou a tia Reine - Estás a atrasar tudo! Bem vês
que hoje não há mais espaço no carro.
- Não é justo! - insistiu Victor - Porque é que tem de ser sempre ela a ficar
para trás?
- Porque é assim mesmo! - exclamou Niang, rispidamente, em francês. - Ou vens
agora connosco ou ficas com ela.
- Nesse caso, fico a fazer companhia a Adeline.
Victor desceu do carro e ficou comigo enquanto todos se afastavam. Nunca
esquecerei esta gentileza.
O tio Jean e a família partiram em breve para Genebra, local onde tinha sido
colocado pelas Nações Unidas.
106
O pai tinha alugado um escritório em Ice House Street, o centro de negócios do
lado de Hong-Kong, conhecido por Central. Todos os dias o motorista o levava ao
terminal do Star Ferry` para a travessia - de sete minutos - do porto de
Victoria entre Kowloon e Hong-Kong. Uma vez do lado de Hong-Kong, uma pequena
caminhada a pé levava-o até ao escritório.
O pai adaptou-se rapidamente à vida dos negócios na colónia britânica. Começou
por montar uma prometedora empresa de importação-exportação. Mais tarde passou
astutamente a negociar em acções, bens e moeda estrangeira. Lançou uma empresa
imobiliária, a Mazman, mais tarde incorporada na bolsa de Hong-Kong. A Mazman
comprava terras escolhidas nos leilões do governo e construía prédios para
habitação e indústria. O pai adquiriu o direito exclusivo de dispor do cascalho,
Página 60
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
pedras e terra aquando do alargamento da Stubbs Road, no coração dos
Mid-levels~s, em Hong-Kong, a meio caminho entre o porto e o Peak26. Criou uma
pedreira temporária e vendia o produto das escavações a pedreiros desejosos de
adquiri-lo. Tornou-se membro dos mais prestigiosos clubes em Hong-Kong e era
conhecido como um empresário de sucesso de Xangai.
Niang e o pai atingiram uma posição de destaque dentro do pequeno círculo
ocidentalizado da alta sociedade de Hong-Kong. Nessa época havia poucos
empresários chineses a falarem inglês e muito menos a poderem sentir-se à
vontade entre ocidentais. Niang e o pai, pelo contrário, sentiam-se confortáveis
em ambos os mundos.
Elegante e fotogénica, Niang surgia nas colunas sociais dos jornais e revistas
locais. Contratou um cozinheiro analfabeto, oriundo do Park Hotel, em Xangai, e
que sabia todas as receitas de cabeça e tinha fama de conhecer cem maneiras
diferentes de cozinhar galinha. Em casa davam-se jantares espectaculares. Os
convites eram encarecidamente recebidos, devido à qualidade da comida e à lista
exclusiva de convidados de Niang. Durante estas festas, o nome de Ye Ye e o
nosso, o dos
4 A empresa Star Ferry faz ainda hoje as carreiras de ligação por mar entre a
ilha de Hong-gong e Kowloon, atravessando o porto em cerca de sete minutos. (N.
da T.)
n Zona situada a meia encosta na colina de Honk Kong, hoje palco de luxuosos
prédios residenciais e dispondo de vista soberba sobre o mar. (N. da T.)
Z6 o ponto mais alto da ilha de Hong-Kong, com acesso por estrada ou elevador,
~spondo de um passeio para peões, com diversos miradouros, de onde se podem
apreciar diversas vistas do porto de Victoria. (N. da T.)
107
enteados (quando estávamos em casa), nunca era mencionado e em ocasião alguma
fomos apresentados. Subentendia-se que devíamos manter-nos escondidos nos nossos
quartos e nunca envergonhar ninguém com a nossa presença, especialmente quando
havia convidados ocidentais.
Dois dias depois da partida da família Schilling, Niang ordenou-me que fizesse
as malas. Eu estava de partida.
Lembro-me desse sábado à tarde como se fosse hoje. O pai estava no escritório.
Susan estava numa festa de anos. Ye Ye estava a dormir a sesta. Niang, Franklin
e eu sentámo-nos lado a lado no Studebaker, no banco de trás. O carro estava
inundado do perfume caro de Niang e eu já estava tonta só de pensar no que me ia
acontecer.
Para meu espanto, o carro parou em frente do elegante Hotel Península. Parecia
que Franklin queria lanchar. No fresco restaurante de tectos altos, no lobby do
hotel, decorado com palmeiras em vasos, mobiliário de verga e ventoinhas no
tecto, sentei-me numa grande cadeira de bambu. A orquestra tocava o "Danúbio
Azul". Franklin queria um gelado e Niang pediu sanduíches, enquanto eu ainda
percorria nervosamente o longo menu. Senti-me enjoada. Queria fugir rapidamente
para a casa de banho, mas fiquei colada à cadeira, a pensar se era agora que ela
ia pôr em prática a ameaça de me deixar num orfanato. Seria aquela a minha
última refeição antes do golpe de misericórdia?
Os meus negros pensamentos foram bruscamente interrompidos pela voz aguda de
Niang:
- Adeline - disse ela já impaciente -, podes pedir aquilo que quiseres,
percebes? Tens é de te despachar!
108
9
Página 61
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Ren Jie Di Ling
Uma aluna brilhante numa terra maravilhosa
A Sacred Heart Convent School and Orphanage pertencia à Ordem das Canossianas de
Itália e situava-se em Caine Road, na ilha de HongKong, nos Mid-levels, frente
ao mar. Depois de atravessar o porto de
,ferry, nessa mesma tarde, o nosso carro percorreu a movimentada zona de
Central, onde o pai tinha o seu escritório, e dirigiu-se ao elevador para o
Peak. Logo por debaixo dos Jardins Botânicos, voltámos à direita, na direcção do
palácio do governador, guardado por sentinelas fardadas de branco e rodeado por
um viçoso relvado verde; seguimos para oeste durante cerca de meio quilómetro,
para nos determos nos estreitos portões do colégio, mais a norte. Uma escadaria
íngreme de pedra conduzia à portaria, onde, após uma curta espera, fomos
saudados pela Irmã Mary e pela Irmã Louisa.
Em 1949, o Sagrado Coração era um dos poucos colégios de HongKong que aceitavam
internas e órfãs. Estes dois grupos usavam uniformes diferentes e o convívio
entre eles era proibido. As órfãs não frequentavam as aulas normais; eram-lhes
ensinadas "actividades prá
109
ticas", tais como costura, limpeza de roupa, cozinha e passagem a ferro. Durante
a missa sentavam-se num lugar a elas reservado. Depois da escola, enquanto as
internas jogavam, recebiam aulas particulares de Arte ou Música, ou liam na
biblioteca, as órfãs ajudavam na lavagem da roupa, na cozinha ou no jardim.
Esperava-se que deixassem o colégio aos 16 anos e que arranjassem um emprego
como empregadas de mesa, criadas ou funcionárias de lojas.
As raparigas eram um bem barato na China. As filhas não desejadas eram vendidas
como escravas, às vezes por intermediários, a famílias desconhecidas. Uma vez
vendida, o destino de uma rapariga ficava completamente à mercê do seu
comprador. Ela não tinha documentos nem direitos. Algumas, embora muito poucas,
poderiam eventualmente ter a sorte de serem adoptadas pelos seus compradores. A
maior parte era sujeita a maus tratos e outros abusos. A prostituição e até
mesmo a morte eram o destino de algumas crianças escravas.
Eu não sabia quais eram as intenções de Niang, mas o meu futuro estava nas mãos
dela. Acompanhada por Franklin, conferenciou com as duas freiras numa salinha
privada durante o que me pareceu uma
eternidade. Eu, entretanto, esperei lá fora, percorrendo todos os folhetos que
descreviam a escola e o orfanato. Fiquei a saber que a grande maioria das 1200
alunas do Sagrado Coração era constituída por externas, que entravam às 8 da
manhã e saíam às 3.30. Foi uma espera horrível. Fiquei sentada, a tremer,
lembrando-me das ameaças de Niang, três anos antes, em Xangai ...
Finalmente, todos voltaram a aparecer. Para minha grande surpresa, Niang sorriu
e fez-me festinhas na cabeça em frente das freiras. Foi esta a primeira e última
vez que ela me tocou durante a minha infância, se exceptuarmos as bofetadas.
- Vê bem a sorte que tens! - exclamou ela. - A Irmã Mary aceitou a tua admissão
no internato a meio do ano lectivo!
Quando entrei, havia 36 internas. Durante os anos que lá passei nunca superei
realmente o medo que tinha de ser transferida para a secção do orfanato, onde
não custaria um único tostão ao meu pai.
Ao ser admitida como interna, cada criança recebia um número de identificação. A
partir de então, todos os nossos haveres eram carimbados com esse número. O
Página 62
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
nosso dia começava às 5.45, altura em que éramos acordadas por uma sonora
campainha. A missa diária era obri
gatória. A minha amiga Mary Suen, que não gostava de se levantar cedo, costumava
queixar-se de que aquilo era exactamente como se fôssem°s freiras, quer
quiséssemos ser santas quer não. A única desculpa aceitável para escapar à missa
era uma doença grave, verdadeira ou não. Durante esta celebração, muitas de nós
tínhamos apenas um pensamento: sair da capela o mais rapidamente possível e
correr para a sala de jantar para tomarmos o pequeno-almoço. Os lugares eram
fixos e não podiam ser alterados; éramos sentadas por idades. Mary sentava-se ao
meu lado esquerdo.
A cada uma de nós era atribuído um cacifo no grande louceiro da sala. As
internas arrumavam no seu espaço próprio e numerado as provisões que traziam de
casa. A abundância ou escassez da comida de cada aluna era claramente visível
por todas as outras, o que constituía também o barómetro do grau de afecto que a
respectiva família tinha por cada uma. Durante todo o tempo que passei no
Sagrado Coração, o meu cacifo esteve eternamente vazio.
Os ovos tinham um significado especial. Tinham de ser trazidos de casa e eram
arrumados no frigorífico da cozinha. Antes de os entregar, cada uma das internas
tinha de pintar o seu núnero a tinta-da-china em todas as cascas.
Ao pequeno-almoço, cada uma de nós recebia duas fatias de pão, uma porção de
manteiga e de doce. Aquelas que tinham sorte e cujos pais pagavam mais 15
dólares por mês bebiam leite quente ao qual podiam juntar o seu próprio
chocolate ou Ovaltine, que guardavam no seu cacifo do louceiro. Algumas meninas
chegavam a trazer pasta de anchovas, Marmite, pasta de fígado ou atum enlatado
para pôr no pão. Depois a Irmã Mary trazia um recipiente enorme cheio de ovos
quentinhos, acabados de cozer. Ela costumava tirar os ovos um a um e colocá-los
em recipientes individuais, lendo os números à medida que os distribuía. Quando
alguém ouvia o seu número, dirigia-se a ela para ir buscar o seu ovo.
Esses ovos tornaram-se símbolos de um raro privilégio. Eram baratos e vendiam-se
em qualquer mercado, mas, quando alguém ouvia a Irmã Mary chamar o seu número,
isso significava que a família a amava o suficiente para lhe enviar ovos e, por
conseguinte, para lhe proporcionar um pequeno-almoço bem nutritivo. O facto de
uma família ser rica não significava que uma pessoa recebia automaticamente um
ovo. Os ovos não eram debitados na conta como o leite ou as lições
de Piano. O ovo do pequeno-almoço, mais do que tudo o resto, dividia, -nos em
dois grupos perfeitamente distintos: as que eram amadas e aquelas que não o
eram. Escusado será dizer que eu nunca tive ovos durante todo o tempo que passei
no Sagrado Coração.
A seguir ao pequeno-almoço corríamos a buscar os nossos livros à sala de estudo
e íamos ter com as externas ao pátio. As aulas começavam às 8. As lições eram
dadas em inglês, mas falávamos umas com as outras em cantonense. Com grande
surpresa, descobri que os meses passados em St. Joseph me tinham dado a
preparação suficiente para acompanhar os estudos.
Ao meio-dia o colégio parava para o almoço. Uma campainha chamava as internas
para a sala de jantar, onde íamos encontrar um prato de esparguete com bolas de
carne, ou macarrão com queijo. Nos dias melhores tínhamos costeletas de porco
com arroz e legumes salteados com puré de batata.
- E chamam a isto comida ocidental! - resmungava Mary por entre dentes. - Uma
taça da mesma sopa todos os dias!
À tarde, as aulas iam da 1.30 às 3.30. Às 4 servia-se o chá na sala de jantar.
Era a única refeição que só tomávamos se quiséssemos. Era esta a refeição onde
Página 63
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
aquelas "que tinham" podiam realmente brilhar perante as "que não tinham". Além
do pão, da manteiga e do doce, como era habitual, lá apareciam as guloseimas
trazidas durante as visitas dos domingos: chocolates, biscoitos, rebuçados,
carne seca, fruta cristalizada, nozes. No dia dos anos, a aniversariante era
autorizada a trocar o seu uniforme por um vestido bonito. Vestida de bonitas
rendas, laços e tufos, exibia a sua largueza, desfilando ao lado da Irmã Mary
atrás de um enorme bolo de aniversário com as respectivas velas acesas. Todas
cantávamos os "Parabéns a você!". O bolo era partido e colocado numa travessa.
Então a Irmã Mary e a aniversariante iam de lugar em lugar, servindo - ou não -
uma fatia, conforme os desejos da menina dos anos. Depois deste joguinho
discriminatório, a aniversariante abria os seus presentes, enquanto nós íamos
soltando "ahs" ou "ohs".
Eu costumava ir para o lanche um pouco mais tarde, devorava o meu pão com doce e
manteiga tão depressa quanto podia e depois escapava-me. Sabia muito bem que
nunca teria uma festa de aniversário e que nunca poderia retribuir nem comprar a
ninguém qualquer presente. A minha amiga Mary e eu nunca falávamos uma à outra
nestes assuntos, mas eu encontrava muitas vezes pequenas surpresas que ela
deixava no meu prato: rebuçados de coco, um pacote de ameixas cristalizadas, um
pedaço de fruta.
A iviary não era o que se pudesse considerar uma boa aluna. Tinha dificuldades
em Matemática e pedia-me ajuda muitas vezes. Costumava sentar-se ao meu lado
enquanto eu a ajudava nos trabalhos e dizia:
- Agora parece tão evidente. Como é que eu não pensei nisso
antes?
Eu desfrutava da admiração dela e tentava ser ainda melhor. Noutros aspectos,
Mary era madura para a idade que tinha. Quando Daisy Chen entrou no colégio como
interna, apercebi-me de que tinha sotaque de Xangai e tive curiosidade em
conhecer a sua história. Fiz certamente perguntas de mais; Daisy tornou-se
esquiva e evasiva. Mais tarde Mary disse-me:
- Não lhe faças tantas perguntas! As raparigas como nós, que acabam em colégios
como este, vêm geralmente de famílias infelizes. É melhor não perguntares mais
nada! De qualquer modo, vamos sempre acabar por saber a sua história.
Recriminei-me por ser tão insensível e tão maçadora.
Depois do chá havia uma hora de recreio. Podíamos brincar com as nossas bonecas,
ler, saltar à corda, treinar no piano, andar de patins, jogar basebol ou
basquetebol. Geralmente eu ia para a biblioteca.
Era uma grande sala rectangular, encaixada num canto da ala das internas. As
suas prateleiras repletas de livros elevavam-se até ao tecto. A maioria das
obras era em inglês, algumas em italiano ou latim. Não havia livros em chinês.
Ó quanta magia entrar e ver todo aquele tesouro, onde a palavra escrita era
senhora e rainha! As janelas eram pequenas. As luzes eram fracas. Por estes
motivos, a sala era escura e pouco cativante. Não havia bibliotecária. Muitos
dos volumes eram usuais ou revistas, que não podiam ser retirados. Tudo o resto
era uma amálgama de assuntos jazendo ao sol. Estávamos autorizadas a levar
quantos livros quiséssemos. A Irmã Louisa era quem estava encarregada de fechar
as portas pontualmente às 5 horas. Dado que o lanche decorria das 4 às 5, eu era
geralmente a única a frequentar a biblioteca. Muitas vezes, à saída, com os
braços carregados das últimas leituras, cruzava-me com a Irmã Louisa. Tornei-me
uma figura tão habitual que, geralmente antes de fechar a porta, ela ia ver onde
é que eu estava.
- O sábio já saiu da sua toca - brincava ela, enquanto abanava o molho de chaves
- ou será que vai aí passar a noite?
Página 64
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Tinha-me dado essa alcunha por causa de um problema de Matemática que eu tinha
ajudado Mary a resolver e cuja solução acabou por ser mais correcta do que
aquela que estava no seu próprio livro. Provavel
mente fora apenas um erro de impressão, mas esta história acabou por correr o
colégio e chegou aos ouvidos das outras internas. Muitas vinham ter comigo
quando tinham problemas com os seus trabalhos de casa.
Deixaram de reparar no meu único vestido de domingo, que já estava
demasiadamente curto e apertado para mim, nos meus sapatos já gastos e com
buracos nas solas, no meu cacifo permanentemente vazio e na ausência dos ovos.
Os domingos eram os dias de visita. Entre as 10 e o meio-dia, nós, as internas,
vestíamos as nossas roupas mais bonitas e, de cabelo penteado e sapatos
engraxados, esperávamos pelos nossos pais na recepção. Havia cadeiras dispostas
em grupos para as reuniões de família. Não nos misturávamos com os familiares
das nossas colegas.
No princípio eu ainda era apanhada pela excitação da visita dos domingos e
preparava-me para receber a minha família com tanta animação como todas as
outras. Todavia, invariavelmente, não tinha visitas. Tornou-se difícil ignorar
os comentários mordazes e os olhares de pena domingo após domingo. Entre todas
as internas, eu era claramente a filha indesejada.
Finalmente, resolvi a questão retirando-me de cena. Aos domingos de manhã,
quando todas as raparigas se aprontavam ao espelho, eu agarrava numa pilha de
livros e, despercebidamente, escapava-me para a casa de banho. E aí ficava até
ouvir o ruído das conversas e das gargalhadas quando as minhas amigas voltavam a
subir, carregadas de alimentos e presentes, fazendo comparações entre elas,
trocando comida e experimentando roupa e sapatos novos. Assim que percebia que
tinham voltado todas, enfiava os livros debaixo do uniforme e saltava cá para
fora com um ar de indiferença. Com um certo tacto, ninguém falava das minhas
desaparições aos domingos.
Muitas vezes, já tarde, quando toda a gente já tinha adormecido, eu estava ainda
acordada, muito ansiosa, cheia de pensamentos cinzentos
acerca do meu futuro. No Inverno, quando o tempo realmente arrefecia,
enrolava_me debaixo das cobertas e lia os meus livros preferidos à luz da
lanterna, para que as freiras não vissem qualquer reflexo a dançar no tecto.
Como sempre, as minhas agitações interiores desapareciam com as dificuldades e
atribulações das minhas personagens e eu acabava por adormecer.
Entre Abril e Setembro, o tempo era desesperadamente quente e húmido. Durante as
aborrecidas férias de Verão eu estava entre as poucas internas que permaneciam
no colégio; por vezes era mesmo a única. Acabei por desenvolver a técnica de a
meio da noite rebolar em silêncio por debaixo das camas vazias até chegar ao
outro lado, onde as janelas se abriam para uma varanda que dava para o porto. Aí
eu costumava trepar para cima da fresca balaustrada e, sob um céu estrelado e
azul-escuro, observava os enormes navios que salpicavam as águas da baía.
Adorava sentar-me, agarrada aos joelhos, observando a paisagem lá em baixo, com
os meus próprios sonhos a pairarem a quilómetros e quilómetros de distância.
Às vezes, um dos navios apitava, num sinal de partida. Quanta magia, ao ouvir
aquele som cheio de lembranças! Cheios de desejo, os meus olhos seguiam o navio
até ele mergulhar calmamente na escuridão. Imaginava-me a mim própria na sua
proa, a deslizar por entre as águas calmas e escuras, de partida para uma viagem
fascinante para temas fabulosas: ~ l~l Ying Gt~o (País de Heróis) e ~ ~ Mei Gtro
(País Maravilhoso)! Estas palavras, que significam Inglaterra e América,
representavam ediflcios de colégios relvados, cidadelas de saber em forma de
Página 65
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
castelos senhoriais e de sagradas catedrais. Tal como é descrito pelo poeta Wang
Bo, da dinastia Tang, eram esses os lugares místicos que eu tanto desejava
visitar para me poder transformar numa ~4~f~~ ren jie di lir:g (aluna brilhante
numa terra maravilhosa).
A partir de então, sempre que ouço uma buzina de nevoeiro que apita a meio da
noite, sinto ainda a dor acutilante dessas horas tardias, num som que me
persegue, como um oráculo que atravessa o oceano dos tempos, convidando-me para
uma terra de sonhos.
115
10
Du Ri Ru Nian Cada dia como um ano
As longas vestes chinesas de Ye Ye, os seus casacos bordados e a sua cabeça
rapada pareciam ainda mais fora de moda em Hong-Kong do que antes, em Xangai. Ye
Ye permanecia um budista convicto. Não falava inglês nem cantonense e sentia-se
um estrangeiro completo nessa cidade do Sul. Não tinha amigos e mal conseguia
comunicar com as criadas. Os únicos prazeres que tinha eram as refeições
diárias, o charuto que fumava depois do jantar e as cartas que escrevia e
recebia da tia Baba. Dos netos que lhe restavam, Franklin era insolente e Susan
era pequena de mais para lhe despertar interesse. Por essa razão, voltou-se cada
vez mais para James e para mim. Nas três ocasiões em que fui autorizada a ir a
casa (duas vezes no Ano Novo chinês e uma em que estive a convalescer de uma
pneumonia) dormi numa cama colocada no quarto que Ye Ye partilhava com James.
Quando queria fazer pequenas compras, como cigarrilhas ou selos, tinha de pedir
dinheiro ao pai. Lembro-me de Ye Ye, envelhecido e triste, a ler calmamente os
seus jornais da manhã na sala de estar.
Nos últimos anos de vida, Ye Ye sofria de diabetes. Era guloso, pelo que lhe era
muito difícil ver-se privado de um dos seus parcos prazeres. Era o pai quem,
diariamente, lhe dava as injecções de insulina. De vez em quando Ye Ye comia um
chocolate ou um biscoito, pequenas infracções que Niang conseguia sempre
descobrir. Quando o pai regressava a casa, havia sempre uma sessão de gritaria.
Ye Ye ficava então reduzido a um velhote encolhido e confessava que sim, que
tinha comido o chocolate. Sim, sim, ele sabia que estava proibido e que lhe
fazia mal à saúde. Não, não queria morrer. E geralmente tudo terminava de uma
forma humilhante, com o pai a dar-lhe uma injecção de insulina.
O pai decidiu alterar a dieta de Ye Ye. Eliminou o vinho de arroz, a carne de
porco assada, o peixe frito em molho agridoce, os legumes salteados, o leite
fermentado. Sob a recomendação de um qualquer médico ocidental, Ye Ye passou a
comer um único prato, em que cada um dos componentes era cuidadosamente pesado
pelas criadas. Havia algumas cenouras, um pouco de peixe cozido, uma pilha de
batatas cozidas e um monte de arroz cozido no vapor. Esta mesma refeição era-lhe
servida três vezes ao dia, sete dias por semana. Deixou de comer connosco. Este
repasto era-lhe servido pontualmente às 8, ao meio-dia e às 6. Nos intervalos
estava proibido de comer o que quer que fosse.
Quando Ye Ye protestou, explicaram-lhe que eram "ordens do médico". Durante as
minhas raras visitas a casa, lembro-me de que me ia sentar ao pé dele enquanto
comia. Até doía ver a sua expressão de angústia ao engolir esta dieta monótona,
odiando cada dentada.
O pai acreditava, provavelmente, que este tipo de privação era para bem de Ye
Ye. De outro modo, como poderia ter aguentado a atitude desesperada de Ye Ye
durante aquelas refeições horríveis? Anos mais tarde, Lydia contou-me que Ye Ye
se tinha rebelado e que tinha exigido sair e ir morar sozinho. Certo dia
Página 66
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
anunciou que tinha decidido voltar a casar e que ia consultar uma casamenteira.
A recusa foi categórica. Não havia nada que lhe fosse permitido fazer. Uma
depressão profunda instalou-se. Escreveu à tia Baba, dizendo-lhe que queria
voltar a Xangai e passar os últimos anos da sua vida com ela (sabia, contudo,
que, pelo seu passado capitalista, esse era um desejo impossível). Contou-lhe
ainda que em Hong-Kong a vida era tão infeliz que não havia mais nada a fazer
senão suicidar-se. A tia Baba mostrou estas
cartas a Lydia antes de serem destruídas pelos Guardas Vermelhos durante a
Revolução Cultural.
No Verão de 1951 apanhei uma pneumonia e dei entrada no hospi_ tal. Jaines, que
tinha vindo há pouco tempo de Xangai, lembrava_se de como Ye Ye ficara
extremamente preocupado ao saber da notícia e decidira ir visitar-me. Niang
tinha ficado com o carro para ir ao jogo semanal de brídege. Foi ela que lhe
disse que não fosse, porque era incómodo e desnecessário; eu já estava a ser
tratada pelos "melhores médicos que o dinheiro podia pagan>. Mas Ye Ye insistiu.
Pediu a James que o acompanhasse, porque não conhecia bem as ruas, os autocarros
ou os .férries de Kowloon para Hong-Kong.
Ye Ye vestiu então o seu melhor fato chinês. A chuva começou a cair. Não podia
usar os seus confortáveis sapatos de pano de Xangai e nem conseguia encontrar os
sapatos de sola. Finalmente, depois de muito procurar, Franklin encontrou-os.
Parece que sempre tinham estado no armário do corredor, embora James e Ye Ye já
lá tivessem ido procuaá-los. Saíram de casa sob chuva intensa; James segurava o
guarda-chuva e Ye Ye apoiava-se pesadamente no seu braço. Os passeios estavam
molhados e escorregadios. Quando saíram, James disse-lhe:
- Niang disse-lhe que não fosse. Não atire as culpas para cima de mim se
escorregar e cair com esta chuvada!
Ye Ye caiu pesadamente, mesmo antes de virarem a esquina de Boundary Street para
Waterloo Road, ondeiam apanhar o autocarro. Tiveram de desistir da viagem. Ye Ye
escorregava a cada passo. Quando iam a chegar ao apartamento, Ye Ye viu Franklin
empoleirado na varanda a gesticular à chuva. Gritava e ria na maior excitação:
- Vê, eu não lhe disse que ia cair? Eu é que tinha razão! Eu é que tinha razão!
Niang bem lhe disse que não fosse! Ela disse-lhe que não fosse! Foi o próprio Ye
Ye quem me contou todo o episódio, quando tive alta do hospital e estive em casa
a convalescer durante alguns dias ... Fê-lo calmamente, tristemente, pedindo
desculpa por não ter ido visitar-me enquanto estivera doente.
- O mais assustador - dizia Ye Ye - foi a completa ausência de piedade filial da
parte de Franklin. Quando caí, perdi o sapato. Apanhei-o da sarjeta e percebi
que a sola estava engordurada. Quando voltei a casa, examinei os sapatos. As
solas estavam cobertas com uma substância gordurosa que cheirava a pasta de
dentes Darkie. (Tratava-. -se de uma conhecida marca de pasta de dentes
fabricada em Hong
gong. Os donos da companhia eram os nossos vizinhos de baixo no apartamento de
Boundary Street e muitas vezes tinham a gentileza de nos oferecer amostras.)
ye Ye era bom de mais para acusar Franklin directamente, mas apercebia-se da
minha tristeza e da minha raiva.
- Tens a vida toda pela frente. Tens de ser esperta. Estuda com vontade e
torna-te independente. Receio bem que tenhas muito poucas hipóteses que receber
um dote.
Aquiesci com a cabeça.
- Não acabes casada como Lydia. Tens de confiar em ti mesma. Mesmo que te roubem
tudo, nunca serão capazes de te tirar os teus conhecimentos. O mundo está a
mudar. Tens de construir a tua vida fora desta casa.
Página 67
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
No final do ano de 1951, o pai mudou-se com a família para uma moradia isolada
em Stubbs Road, nos Mid-levels, na ilha de HongKong. Stubbs Road era uma rua
principal, com carros que a percorriam a grande velocidade. Não havia comércio
nas proximidades e andar a pé era perigoso. Para a mais pequena compra era
necessário usar o carro. As cartas de Ye Ye para a tia Baba tornaram-se cada vez
mais desesperadas.
- Todos nós nos agarramos à vida com tanta força - escrevia Ye Ye -,mas há
destinos que são piores do que a morte: solidão, apatia, insónia, dor física.
Trabalhei arduamente toda a vida e economizei todos os tostões. Agora pergunto a
mim próprio de que me serviu tudo isso. A agonia e o medo da morte são
certamente piores do que a própria morte. A ausência de respeito à minha volta.
A inexistência de esperança. Nesta casa onde eu não valho nada, du ri ru nian
(cada dia é como um ano). Achas que a morte poderá ser pior? Diz-me, minha
filha, o que posso eu esperar?
Ye Ye morreu no dia 27 de Março de 1952, com complicações advindas da diabetes
de que sofria. Nos últimos três meses de vida escreveu à tia Baba falando-lhe
sobretudo do passado. Falava-lhe das refeições festivas com dez pratos que o seu
próprio pai preparava na altura do Ano Novo chinês, na casa de chá que possuíam
na velha cidade murada de Nantao; dos passeios a cavalo com a tia-avó quando era
rapaz, em Xangai, quando a maior parte de Xangai era ainda zona rural; de
observar as sampanas enquanto desciam o rio Huangpu; dos dias felizes que
passara com a avó quando o pai e a tia Baba ainda eram
pequeninos. Pedia também desculpa por nunca ter arranjado um casamento adequado
para a tia Baba.
- Se eu errei, errei por me preocupar demasiado - dizia ele na sua carta. - Não
sei como, mas sempre achei que não havia ninguém à tua altura. Sempre pensei que
precisavas de alguém especial, que tomasse
conta de ti. Talvez essa pessoa não exista senão nos meus pensamentos. Quando Ye
Ye morreu, o pai estava demasiado ocupado para poder informar a tia Baba. Em vez
disso, ela recebeu a notícia por outras vias: através de uma carta enviada por
um dos empregados do pai.
11
Zi Chu Ji Zhu Ideias originais para composições literárias
Quando estive doente em 1951, foi durante as férias de Verão. A maior parte das
meninas já tinha ido para casa. Comecei a tossir sangue, a minha febre subiu a
40°C e tinha dificuldade em respirar. Dois dias mais tarde dei entrada no
hospital. No início os médicos pensaram que eu ia morrer e informaram a minha
família.
Sentia-me sozinha e assustada. Da minha casa não chegava ninguém. Mary, a minha
melhor amiga do colégio interno, era a minha única visita. O pai de Mary tinha
uma concubina. Ela vivia com a mãe numa outra casa situada a pouca distância do
hospital. Dizia-me que não tinha outras coisas importantes para fazer.
Estava-lhe profundamente grata por aquela atenção, quaisquer que fossem as
razões que ela tivesse para ma dispensar. À medida que ia melhorando, ela
trazia-me alguns presentes: mangas doces e frescas, amendoins torrados, gelados
~ Dairy Farm2' e diospiros secos. Jogávamos às cartas, pintávamos,
n Marca de lacticínios produzida em Hong-Kong. (N. da T.)
120
Página 68
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
fazíamos prrzzles e comíamos juntas a comida que trazia. A febre baixou. A tosse
foi diminuindo.
Certo dia, pela hora do almoço, o pai apareceu de repente. Mary tinha ido para
casa almoçar. Sem se fazer anunciar, entrou bruscamente no meu quarto,
admiravelmente vestido num fato azul-escuro. Ficou à beira da minha cama com uma
expressão preocupada.
- Como te sentes? - perguntou ele. Quando lhe respondi, queria descansá-lo: -
Sinto-me bem, pai. Já estou muito melhor.
Uma mistura de alegria, medo e surpresa fez-me perder a fala e não consegui
dizer mais nada.
Quanto a ele, parecia que também não conseguiria articular uma palavra.
Observou-me por minutos, até que o nosso silêncio se tornou incómodo. Tocou-me
ao de leve na fronte para ver se eu tinha febre e sussurrou:
- Cuida de ti. E saiu.
Nesse momento Mary entrou no quarto acompanhada de uma enfermeira.
- Quem era aquele? - perguntou a enfermeira. Respondi com orgulho:
- Era o meu pai.
Pôs um ar de espanto e disse:
- Mas pensávamos que era órfã!
- Quase órfã, mas não exactamente.
Olhei para Mary, como que a perguntar se já tinha falado de mais. - Eu também
faço parte da mesma categoria geral - disse Mary à enfermeira.
- Na verdade - disse eu com ar entendido -, no Sagrado Coração somos cerca de
cinquenta nesta categoria geral.
- Mas só entre as internas - atirou Mary e desatamo-nos a rir
descontroladamente.
A enfermeira saiu. Nesse momento senti-me muito próxima da minha amiga de
escola. De repente veio-me à cabeça que, dia após dia, tinha ansiado pela visita
da minha família e, contudo, quando o meu pai viera finalmente, não tínhamos
nada para dizer um ao outro. Por que razão havia de forçar a relação com os meus
pais quando tinha amigos leais?
122
Mary e eu começámos a fazer planos para fugir de Hong-Kong e ir viver para
alojamentos de estudantes em universidades bem longe dali: Londres; Tóquio ou
Paris.
Quando regressei ao colégio, depois de uma semana de convalescença em casa,
apercebi-me de que era a única interna, pois as férias ainda não tinham acabado.
Não havia ninguém com quem pudesse conversar nem nada que pudesse fazer. Passava
muito tempo na biblioteca, folheando livros e revistas. Numa dessas ocasiões
tropecei no anúncio de um concurso de peças de teatro, aberto a todas as
crianças que falassem inglês, dos 10 aos 19 anos. Encafuada na biblioteca e com
todo o tempo do mundo, deitei-me ao trabalho. A minha peça chamava-se Para Longe
com os Gc!fànhotos'8. O enredo girava à volta da devastação que tais insectos
causavam em África. O tempo corria rapidamente e fiquei triste quando cheguei ao
final da peça. Enviei o meu trabalho e não pensei mais no assunto. A escola
recomeçou e as meninas voltaram.
Numa segunda-feira, meses mais tarde, estava eu a jogar basquetebol no recreio
do almoço, quando a Irmã Valentine (a quem chamávamos Cara de Cavalo) se
aproximou e interrompeu o nosso jogo para me dizer que o motorista da minha
família estava à minha espera. Ye Ye tinha morrido e o funeral era nesse dia.
Levaram-me directamente ao templo budista, vestida com o uniforme do colégio, e
Página 69
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
foi aí que eu vi a fotografia de Ye Ye colocada em cima do seu caixão. Desatei a
chorar e não conseguia conter as lágrimas, embora visse que ninguém mais estava
a chorar. O pai, Niang, James, Franklin e Susan estavam sentados em frente dos
empregados, do cozinheiro e do motorista, de rostos brancos, sem deixarem
transparecer uma emoção. Não havia outras pessoas presentes.
Chorei durante toda a cerimónia, inundada de uma terrível sensação de perda.
Quando saí do templo, ainda soluçava, sem me aperceber de que as minhas lágrimas
irritavam Niang cada vez mais.
- Porque é que estas a chorar? - murmurou ela furiosa.
Cheia de tristeza, olhei para ela com os olhos vermelhos de chorar, o nariz a
correr, habilitando-me a algum comentário mais áspero.
E foi o que aconteceu. Ela voltou-se para o pai:
- Acho que a Adeline, quanto mais cresce e quanto mais velha está, mais feia se
está a tornar!
~ No original Gone with the Locusts. (N. da T.)
123
Regressámos a casa depois do funeral e Niang chamou-me à sala de estar. Vestia
um elegante fato preto e tinha as longas unhas pintadas de vermelho. O forte
cheiro a perfume incomodava-me e senti que estava
prestes a perder os sentidos. Ela ficou a olhar para o meu uniforme do colégio
já muito surrado, para o meu cabelo escorrido, sem permanente, e para as unhas
roídas das minhas mãos. Senti-me minúscula, feia; senti que não prestava para
nada.
- Senta-te, Adeline! - disse ela em inglês. - Queres um sumo de laranja?
- Não, muito obrigada.
-Reparei que estavas a chorar ainda agora, no funeral - disse ela. - Estás a
ficar crescida. Devias gastar algum tempo a cuidar de ti. Torna-te uma pessoa
apresentável. Não há homem nenhum que queira uma noiva feia.
Movi a cabeça em sinal de assentimento e repeti para mim própria que não era
aquela a verdadeira razão pela qual me tinha chamado. Cerrei os punhos e
esperei.
- O teu pai - disse ela - tem sete filhos para sustentar. Graças a Deus que
Lydia já está casada e em segurança. Contudo, restam ainda seis. Já não é
demasiado cedo para pensarmos no teu futuro. Quais são os teus planos?
Pensei na minha ficha de avaliação carregada de "As" e naquela presença
ameaçadora à minha frente. Eu sabia muitíssimo bem que, caso dependesse dela, eu
não teria qualquer futuro pela frente.
Aterrorizada, de olhos fixos nos meus próprios pés, murmurei qualquer coisa
sobre ir estudar para uma universidade, como os meus irmãos, de preferência em
Inglaterra.
Fui logo interrompida:
- O dinheiro do teu pai não é inesgotável. Já decidimos que vais aprender
estenografia e dactilografia para arranjares um emprego. Eu tinha na altura 14
anos e Ye Ye tinha acabado de morrer. Nesse mesmo Verão James ia para Londres
para continuar os 'seus estudos. As minhas professoras tinham-me dito que as
melhores universidades eram na Europa e na América. Quando voltei ao colégio,
escrevi cartas e mais cartas ao pai e a Niang, pedindo-lhes que me deixassem ir
para Londres com James e juntei as minhas fichas de avaliação repletas de
recomendações e de prémios. Nunca obtive resposta. Considerei seriamente a
hipótese de fugir para Xangai e ir ter com a tia
124
Página 70
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Baba para continuar os meus estudos. Estava decidida e ir para a universidade.
Um mês depois, num sábado à tarde, a Irmã Valentine veio novamente ter comigo
para me dizer que o carro da minha família estava lá fora à espera. Perguntei a
mim própria quem é que teria morrido daquela vez. O motorista assegurou-me que
estavam todos bem de saúde. Perguntei-me logo a seguir o que teria eu feito de
errado. Senti-me apavorada durante todo o percurso até casa.
Finalmente, a minha sorte tinha mudado. Eu não sabia, mas tinha ganho o 1º
prémio no concurso de peças de teatro em que me tinha inscrito sete meses atrás.
O júri tinha comunicado os resultados por escrito ao departamento de educação de
Hong-Kong, que, por sua vez, tinha feito o comunicado à imprensa. A notícia
merecera grande destaque, com direito a um espaço na primeira página.
Mencionavam o meu nome, idade e escola, bem como o facto de o concurso ser
aberto aos estudantes dos territórios de expressão inglesa. O pai ia a subir no
elevador para o seu escritório numa manhã de sábado, quando um conhecido lhe fez
sinal e lhe mostrou o artigo de jornal.
- Por acaso a vencedora, Adeline Junling Yen, é da sua família? - perguntou ele.
- É que têm o mesmo apelido fora do vulgar.
O pai, cheio de orgulho, leu e releu o artigo. Nessa mesma tarde mandou-me
chamar.
Quando cheguei a casa, ordenaram-me que fosse imediatamente ao Santo dos Santos,
um quarto onde eu nunca tinha entrado. Niang tinha saído e o pai estava sozinho.
Percebi logo que estava de bom humor. Mostrou-me o artigo do jornal. Eu nem
queria acreditar! Tinha ganho! O pai queria conversar comigo sobre o meu futuro.
O meu coração começou a bater com toda a força.
- Pai, por favor, deixe-me ir estudar para Inglaterra. Deixe-me ir para a
universidade.
- Bem, acho que tens potencial - replicou ele - e talvez até tenhas zi chu ji
zhu (ideias originais para composições literárias). Quais são os teus planos
para o futuro? O que pretendes estudar?
Fiquei em silêncio durante longos momentos. Não fazia a menor ideia do que
queria estudar. Ir para Inglaterra era tudo o que eu sempre tinha sonhado. Era
como ir para o Paraíso. Tinha alguma importância aquilo que uma pessoa fazia
depois de entrar no Paraíso?
125
O pai estava à espera de uma resposta. Cheia de emoções com o meu último
triunfo, atrevi-me a dizer:
- Acho que vou estudar Literatura. Vou ser escritora.
- Escritora! - zombou ele. - Que espécie de escritora? E em que língua é que
vais escrever? O teu chinês é muito elementar. E quanto ao teu inglês, não achas
que os Ingleses hão-de escrever melhor do que tu? Concordei logo. Seguiu-se
outro daqueles silêncios incómodos.
- Já estive a pensar no assunto - anunciou o pai. - Vou dizer-te qual é a melhor
profissão para ti.
Senti um certo alívio. Faria o que ele me aconselhasse.
- Vais para Inglaterra com James para estudar Medicina. Quando acabares o curso
especializas-te em Obstetrícia, tal como a melhor amiga da tia-avó, a Dr.`' Mary
Ting. As mulheres têm bebés e alguém tem de os ajudar a nascer. E neste caso as
mulheres que dão à luz preferem médicas.
Nessa noite fui autorizada a dormir em casa. James e eu ficámos a conversar até
tarde. Estávamos cheios de planos. O futuro parecia-nos sem limites. Pouco
depois comecei a preocupar-me. E se os Ingleses exercessem qualquer tipo de
Página 71
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
discriminação contra nós? E se nós fôssemos os únicos chineses nas nossas
escolas inglesas e eles nos achassem esquisitos? À meia-noite ainda andávamos à
volta com o dicionário, com James a proclamar que, se os Ingleses gostassem de
nós, nos chamariam "raros", se isso não acontecesse, usariam a palavra
"esquisitos". Nesse preciso momento a porta abriu-se e Niang entrou.
O pai e Niang tinham ido jantar fora. Ela vestia um vestido preto de
lantejoulas, diamantes em volta do pescoço e brincos e anéis a condizer. As suas
longas unhas estavam pintadas de preto. Não parecia muito contente.
- O que é que ainda estão a fazer, a rir a estas horas da noite e a gastar
electricidade? - inquiriu. - Não é já suficiente não fazerem mais nada senão
comerem e dormirem durante o dia, quanto mais ainda andarem a desperdiçar o
dinheiro do vosso pai na brincadeira até altas horas da noite!
E foi deste modo que nos apagou a luz e saiu do quarto, batendo com a porta.
Calmamente, metemo-nos nas nossas camas. Tentei consolar James: - Pelo menos não
nos proibiu de irmos para Inglaterra - disse-lhe. - Por muito mau que seja em
Inglaterra - declarou James -,por muita discriminação que haja, por muitos nomes
que nos chamem, não pode, de certeza, ser pior do que isto!
126
12
Tong Chuang Yi Meng Na mesma cama com sonhos diferentes
Em Janeiro de 1949 Lydia fugira de Tianjin para Taiwan com o marido Samuel e os
pais deste. O pai de Samuel, o médico da nossa família em Tianjin, depressa
abriu novo consultório em Taipé. Iniciou ainda nova ligação com uma mulher mais
jovem e transformou-a despudoradamente em sua concubina. Para a mãe de Samuel a
situação tornou-se intolerável. Depois de uma amarga contenda, esta voltou a
partir e regressou a Tianjin em 1950.
Nos anos 40 Taiwan era uma ilha semitropical com uma economia baseada na
agricultura e na pesca. A indústria era quase inexistente. Havia poucos empregos
e as condições de vida eram primitivas. Samuel não conseguiu obter.um lugar
adequado às suas qualificações. Após o nascimento de uma filha decidiram seguir
a mãe de Samuel e regressaram a Tianjin.
O pai procurou convencê-los a não regressarem à China, avisando-os repetidas
vezes das dificuldades e da tirania do domínio comunista.
127
Meses depois do seu regresso, em 1950, Samuel foi preso e acusado de ser um
contra-revolucionário. O tio de Samuel tinha sido uma figura política de
destaque no governo do Kuomitang, um membro bem co
nhecido da "classe exploradora". Muito embora esse tio se tivesse voltado para o
lado dos comunistas em 1949, o passado de Samuel era considerado sujo e requeria
um exame mais aprofundado. Durante o tempo em que o marido esteve preso, Lydia e
a filha, Tai-ling, viveram com a mãe de Samuel. As duas mulheres não se davam
bem.
Seis meses mais tarde, quando Samuel foi posto em liberdade, a mãe informou-o de
que teriam de arranjar outro lugar para viver. Foi nessa ocasião que marido e
mulher se lembraram das duas casas que o
pai tinha na Rua Shandong. Das duas residências, uma estava ocupada pelos
empregados do pai e a outra por Lao Lao, tia de Niang. Lydia e o marido
decidiram ir viver com ela.
Quando Niang descobriu que lá viviam, ficou furiosa e disse ao pai que lhes
escrevesse e os ameaçasse com despejo, caso não saíssem de imediato. Samuel e
Lydia contra-atacaram. Avisaram o pai de que
Página 72
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
tinham provas de que os seus empregados negociavam ilegalmente em moeda
estrangeira e metais preciosos desde os últimos anos da década de 40 e mesmo
depois da libertação. Se o pai tentasse pô-los fora de casa, denunciá-lo-iam às
autoridades, bem como aos seus empregados. Exigiram também uma quantia em
dinheiro, que lhes foi entregue. Continuaram a viver na casa do pai, mas ele
nunca lhes perdoou.
Para Lydia, os anos que passou sob o regime comunista foram ainda mais árduos
pela distância que a separava da sua família. Tornou-se cada vez mais amarga,
atribuindo ao marido todas as culpas do seu infortúnio. Começou a odiá-lo e,
embora continuassem a partilhar a mesma cama, não tinham com toda a certeza
sonhos comuns: fel 1* ~ ~~~ tong chuang yi meng (na mesma cama com sonhos
diferentes).
Mais tarde, depois da nossa partida para Inglaterra, Franklin passou a ser o
senhor da casa. Niang satisfazia todos os seus desejos e dava-lhe grandes
semanadas, ao passo que Susan não via um único tostão.
Um dia, tinha ele 13 anos e regressava a casa vindo de uma festa de anos, quando
passaram por uma plantação de morangos. Franklin avistou então uma pilha de
caixas com a fruta acabada de apanhar Mandou parar o carro e comprou duas
grandes caixas. A caminho de casa comeu todos os morangos, sem deixar um único.
128
Dias mais tarde apareceu com a garganta inflamada e febre. O pai estava a
habalhar e Niang participava num qualquer evento social. Colocou os patins e
saiu para a rua sob o sol quente da tarde. Meia hora depois entrava em casa
queixando-se de uma forte dor de cabeça. Pediu a Susan que lhe fosse buscar um
copo de água e meteu-se na cama. Quando Susan voltou com a água, bebeu um golo,
queixou-se de que não estava suficientemente fria e atirou-lhe com o copo. Susan
apanhou-o e saiu do quarto.
Três horas mais tarde, quando Niang regressou, Franklin delirava e emitia
estranhos sons guturais. Numa ambulância deu entrada no Hospital Queen Mary.
Consultou-se o professor McFadden (Lo Mac ou o velho Mac para os alunos). Nessa
altura Franklin já não conseguia engolir. Pedia água constantemente, mas, quando
tentava engoli-la, esta saía-lhe pelas narinas. Lo Mac chamou os meus pais e
fez-lhes o diagnóstico. Franklin tinha poliomielite bulhar: tratava-se de uma
perigosa manifestação desta doença que afectava a base do cérebro. Provavelmente
apanhara o vírus através dos morangos que comera sem lavar. Os agricultores
chineses fertilizavam os campos com dejectos humanos, um meio bem conhecido de
transmissão do vírus da polio. Lo Mac afirmou que não havia tratamento
específico para a doença, podiam apenas tomar algumas medidas de apoio. Assim,
fizeram-lhe um oriflcio na traqueia e colocaram-no num ventilador. O seu estado
ora melhorava ora piorava. O pai visitava-o todos os dias; Niang vivia
praticamente no quarto do hospital. Susan ficou fechada em casa para não apanhar
a doença. A pouco e pouco Franklin parecia melhorar.
John Keswick, o taipanz9 da Jardine Matheson, dava um baile que era, na
realidade, o evento social da época. Niang fazia grande questão de ir e
consultou Lo Mac. Este disse-lhe que não devia parar a sua vida social por causa
de Franklin. Além de tudo o mais, o estado do filho parecia estacionário.
Era de facto uma ocasião proeminente. Niang tinha passado a noite a dançar num
vestido de seda verde com brincos de jade a condizer, quando recebeu uma chamada
urgente. Era o próprio professor McFadden. A sua voz soou cansada e abatida.
Disse a Niang que se sentira no dever de lhe dar pessoalmente a notícia: o
estado de Franklin piorara de repente e ele morrera.
Página 73
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
z' Termo utilizado em Hong-Kong para designar o chefe máximo de uma organização.
iN. da T.)
129
Niang nunca conseguiu ultrapassar a morte de Franklin. O pouco amor que ela era
ainda capaz de dar morrera com Franklin. Depois disso não se voltou para o pai
nem para a sua única filha.
O pai também ficou arrasado com a perda do seu filho preferido. Embrenhou-se no
trabalho e não se queixou, embora fosse cada vez mais evidente que era mais
feliz no escritório do que em casa.
Susan tornava-se cada vez mais bonita, alta e graciosa, com um cabelo negro e
espesso, olhos escuros de longas pestanas e dentes alvos. Era obstinada, franca
e inteligente. O pai adorava-a. Niang não
apreciava o prazer que eles tinham na companhia um do outro. Sentiu-se
ultrapassada pela sua própria filha.
O pai e Niang começaram a afastar-se. De cada vez que tinham divergências, Niang
amuava e não se levantava da cama. O pai tinha de dormir no quarto de hóspedes.
Voltava do escritório e procurava animar e acalmar Niang, que uma das vezes
ficou dois meses na cama. O pai começou a levar Susan com ele para todo o lado,
claramente orgulhoso da sua bonita filha. A proximidade entre os dois ainda
agravava o estado de Niang.
130
13
You He Bu Ke? Haverá algo impossível?
Em Agosto de 1952 James e eu partimos para Inglaterra no grande paquete da P&O
SS Canton. Eu mal conseguia acreditar na sorte que tinha ao lembrar-me das
noites passadas na varanda do meu colégio interno a sonhar com uma viagem
daquelas. Durante a travessia marítima de um mês senti-me inundada de
felicidade.
Finalmente ali estávamos nós, numa maravilhosa viagem de descoberta e
independência. A vida pulsava de esperança. James relembrou-me uns versos bem
conhecidos Ja Ts, rk ~ , ~ SeT x "°7 shan gao shui chang/ you he bu ke? (as
montanhas são altas e os rios são longos/ haverá algo impossível?). Fizemos
amizade com o pequeno grupo de chineses a bordo. Passaram a chamar-nos João e
Maria, pois éramos inseparáveis.
Depois de aportarmos a Southampton, um agente do serviço de viagens do pai
estava à nossa espera para nos transferir para um comboio que partia para
Londres. Tinha estudado fotografias de Londres na biblioteca do colégio, mas não
estava preparada para o frio cinzento da
131
capital de Inglaterra, ainda marcada pela destruição da segunda guerra mundial.
Havia crateras de bombas em lugares bem conhecidos da cidade.
Já em Londres, encontrámos Gregory e Edgar e pusemos a conversa em dia. No
início Gregory sentira-se muito triste: era o único aluno chinês na escola,
odiava aquele clima terrível e a comida sensaborona;
carneiro quase todos os dias, cheio de nervos e malcheiroso. Quando reparou que
os seus colegas judeus comiam feijão estufado ou ovos de cada vez que o
pequeno-almoço era ovos com bacon, pensou num plano e foi ter com o reitor.
- Senhor reitor, estive a pensar no conceito de tolerância religiosa em
Inglaterra. Aplica-se a todas as religiões?
- Mas é claro! Não fazemos qualquer tipo de discriminação!
Página 74
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
- Acho isso admirável. Quem me dera que tivéssemos tolerância religiosa na
China. Infelizmente só temos intolerância bárbara. Sinto muito ter que incomodar
o pessoal da cozinha, mas a minha religião proíbe-me de comer certos alimentos.
- Ó meu caro rapaz, temos de rectificar esta situação! E que alimentos são
esses?
- Bem, o principal é carneiro, carneiro cozinhado de qualquer maneira.
- Sinto muito, vou informar a cozinha imediatamente. E, de acordo com a sua
religião, o que é que poderia comer quando os outros rapazes comerem carneiro?
- Para ser mais fácil na cozinha, ovos com bacon estará muito bem! - Com
certeza, com certeza! A propósito, qual é o nome da sua religião?
Gregory tinha pensado em tudo:
- É uma seita muito rara e de que pouco se ouve falar, oriunda da região entre o
Tibete e a Mongólia - disse ele, murmurando algumas palavras em chinês, cujo
significado era "Associação contra os Que Se Alimentam de Carneiro".
Tal como Somerset Maugham,. Gregory acreditava que, para se alimentar bem em
Inglaterra, tinha de tomar três pequenos-almoços por dia.
Gregory e Edgar chegaram à conclusão de que a escola que frequentavam não lhes
oferecia muitos cursos na área das Ciências e, passado um ano, inscreveram-se,
em Londres, numa escola tutorial que prepa
132
rava alunos para os exames. Na altura em que nós chegámos viviam em quartos
alugados em Earl's Court. Gregory entrou no Imperial College para estudar
Engenharia Mecânica e Edgar tornar-se-ia meu companheiro na Faculdade de
Medicina.
Enquanto andou a estudar, o principal interesse de Gregory foi o bridege.
Tornou-se capitão da equipa de brídege e chegou o dia em que pensou que seria
muito mais interessante dedicar o resto da sua vida a este jogo do que à
engenharia. Foi então que escreveu uma carta de seis páginas aos nossos pais,
pedindo licença para trocar os estudos pelo brídege. Estava convencido de que
seria mais feliz como jogador de brídege profissional do que cómo engenheiro. O
objectivo final era ou não ser feliz?
A resposta do pai veio através de um telegrama sucinto: EM vEz DISSO PORQtiE NÃO
TE TORNAS LiM CHULO?
Gregory fez o curso até ao fim.
O pai tinha-me inscrito num colégio interno católico, mas laico, em Oxford,
chamado Rye St Anthony. Durante a minha viagem de um mês no SS Cafitora
tornei-me amiga da viúva de um missionário metodista americano, que insistiu em
que eu visitasse a cunhada inglesa que vivia então em Oxford, depois de ter
passado muitos anos em Xangai. Na devida altura telefonei a Lady Ternan e,
depois de conversarmos um pouco sobre a cunhada, fui convidada para tomar chá.
Lady Ternan também era viúva e vivia sozinha numa imponente propriedade
eduardina. Fui recebida por uma criada fardada e pareceu-me que era a única
convidada. Serviu-se o chá.
- Quer mais chá e bolo? - perguntou ela num sotaque esquisito. Ao princípio
pensei que fosse uma brincadeira. Ao telefone ela tinha falado num inglês
normal. Do outro lado da mesa, as minhas feições chinesas devem ter accionado
uma espécie de antigo reflexo condicionado, há muito esquecido. Senti uma
tremenda vontade de rir. Para lhe agradar respondi na minha própria versão de
inglês crioulo, inventada naquele momento. À medida que ia falando, comecei a
aperceber-me de que este dialecto me colocava no meu "devido lugar". Ao falar em
crioulo ela reafirmava a sua própria superioridade e, através de cada vogal
Página 75
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
arredondada e de cada consoante encurtada, fazia notar que não éramos iguais.
Escusado será dizer que nunca mais nos encontrámos.
133
Embora tivesse sido recomendada aos meus pais como uma boa escola de raparigas
com elevada reputação académica, Rye St Anthony era na realidade uma escola
terminal. Não eram oferecidos quaisquer
cursos da área de Ciências. Em vez de Física, Química e Biologia, aprendíamos a
apreciar música, a dançar e a montar. Acabei por me transferir para a escola Our
Lady of Sion, situada em Notting Hill Gate, frequentei um curso tutorial durante
as férias de Verão e consegui preencher os requisitos necessários para entrar na
Faculdade de Medicina. Aos 17 anos dei entrada em University College,
Bloomsbury, onde o meu irmão Edgar também andava.
Dos meus três irmãos mais velhos, Edgar era o menos favorecido do ponto de vista
do seu aspecto físico. Tinha uma cabeça quadrada e uma testa proeminente, que
era ainda realçada por grandes entradas. Os seus olhos eram pequenos e muito
juntos. Os lábios, finos, estavam permanentemente premidos um contra o outro,
dando-lhe um ar de determinação perspicaz.
Edgar não tinha o encanto de Gregory nem a boa aparência ou a inteligência de
James. Estava entalado no meio e não era o favorito de ninguém. Quando todos
éramos crianças, ele descarregava toda a sua frustração em mim, o membro mais
insignificante da família. Irritava-o sobremaneira ver o orgulho que o pai tinha
nos meus sucessos académicos. No início, ele andava um ano à minha frente na
Faculdade de Medicina. Contudo, acabou por falhar o segundo exame MB3° e
acabámos por ter algumas aulas juntos. Ele tomou o facto como um insulto
pessoal. A pouco e pouco, este ressentimento foi-se transformando num ódio
patológico.
Na Faculdade recusava-se a admitir que éramos irmãos ou até familiares; dizia
aos nossos colegas que não me conhecia. O pai e Niang tinham perfeita
consciência do nosso antagonismo, embora nenhum deles tivesse feito qualquer
esforço para pôr fim às nossas divergências. Niang, muito pelo contrário,
parecia contente com a nossa animosidade recíproca e alimentava as nossas
querelas. Chegava mesmo a ser extremamente simpática para mim quando queria
magoar Edgar, cavando ainda mais o fosso entre nós.
'° Bachelor ofMedicine, sendo este grau o primeiro a ser concedido pela
Universidade. (N. da T.)
134
Nos anos 50, os preconceitos raciais estavam muito em evidência em Inglaterra.
Os estudantes chineses eram poucos e dispersos e havia uma certa distância entre
os meus colegas de turma ingleses e eu. Muitos deles nunca tinham estado tão
próximos de um chinês. Alguns sentiam-se desconfortáveis perto de mim. Um
pequeno grupo mal conseguia disfarçar o desprezo. Outros, ainda, mostravam-se
protectores, aparentando uma aceitação liberal. Condescendiam em fazer
referências à China, ou a Xangai, ou aos pauzinhos - normalmente a propósito de
um assunto em que ressaltavam diferenças evidentes. Todos tomavam como base a
superioridade ocidental.
Descobri que nem todas as palavras inglesas transmitiam o que aparentemente
representavam. Num contexto social, palavras como "exótico" ou "interessante"
escondiam uma discriminação subtil. "Exótico" significava "possivelmente
decorativo na China, mas realmente muito estranho e com certeza fora do grupo
Página 76
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
dos meus favoritos". "Interessante" significava "deixa-me dar-te a minha
preciosa atenção por agora, enquanto passo os olhos pela sala para ver se
encontro alguém que valha a pena".
A liberalidade e a magnanimidade britânicas eram postas em evidência nas funções
escolares para as quais os meus professores me seleccionavam, a fim de
demonstrarem que até aceitavam alunas asiáticas na Faculdade de Medicina.
Enquanto se davam uns aos outros palmadinhas nas costas, eu era deixada de lado,
como um troféu, mantendo a todo o custo um sorriso amistoso, merecedor, claro
está, da atenção deles.
As alunas de Medicina constituíam menos de 20 por cento da turma. Éramos, bem de
longe, um grupo estudioso e honesto. Os rapazes ressentiam-se constantemente com
o nosso esforço constante e as boas notas que obtínhamos. Chamavam-nos MEM
(malditas elevadoras de médias). Alguns diziam bastante abertamente que todas as
estudantes de Medicina eram feias. Outros proclamavam que, por capricho,
"roubávamos" aos estudantes masculinos o número de entradas na Faculdade de
Medicina e que as que tinham bolsas ou subsídios não estavam senão a
"desperdiçan> os fundos governamentais para a educação.
Por vezes era difícil ignorar o desdém racial e sexual que encontrávamos ao
longo de percurso. Era frequente eu sentar-me e almoçar sozinha na cafetaria da
Universidade, enquanto os meus colegas se
135
reuniam uns com os outros nos bares das redondezas. Certa vez, quando arranjei
coragem suficiente para me juntar e levar o tabuleiro do almoço para a mesa
deles, apareceu logo um rapaz que se sentou no último lugar disponível. Fiz de
propósito e fui arranjar outra cadeira. Fez-se silêncio à minha volta. Todos
devoraram a comida a uma velocidade recorde e saíram. Dei por mim sozinha,
rodeada de pratos sujos e de cadeiras vazias.
A minha companheira de dissecação, Joan Katz, e eu tínhamos o costume de ir para
o laboratório de Anatomia em alguns fins-de-se_ mana, a fim de trabalharmos no
corpo masculino de 81 anos que nos era destinado. Pusemos-lhe a alcunha de
Rupert. Ao que parece, o nosso zelo provocou uma onda de descontentamento entre
os nossos pares masculinos. Um sábado de manhã descemos entusiasmadas para o
laboratório escuro e terrível, a fim de iniciar a dissecação. Por detrás das
portas pesadas, a sala estava escura como breu e cheirava fortemente a aldeído
fórmico. Joan estendeu a mão para puxar o fio que acendia a luz e deu um grito
lancinante. A luz acendeu-se. Ouviram-se uma série de gargalhadas desabridas e
estridentes, produzidas por um grupo de rapazes escondidos no escuro. Tinham
cortado o pénis a Rupert para o colocarem no fio da lâmpada. Ouviu-se o disparo
de algumas máquinas fotográficas e Joan foi apanhada com a mão no ar, segurando
um pénis, com uma expressão incrédula na cara. Os rapazes fizeram circular a
fotografia entre eles com a seguinte legenda: "Primeiro prémio em anatomia
humana".
Apesar destes problemas, foi uma época maravilhosa na minha vida. O mundo da
ciência abria-se para mim. Mal conseguia esperar que as aulas começassem todas
as manhãs. Fisiologia, Biofísica, Farmácia e Bioquímica eram como peças de um
pttzzle gigante ilustrando o mistério daprópria vida. As experiências faziam-me
lembrar jogos de xadrez complicados. O meu adversário era o grande
"desconhecido", prestes a ser desmascarado. Pelo caminho ia encontrando pistas
deliciosas.
Página 77
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
De forma consistente, estudei e dei o meu melhor. Sonhava regressar a Hong-Kong
com as mais altas qualificações académicas, fazer um nome na cidade onde o meu
pai vivia, para que ele pudesse ter orgulho em mim.
Muitos dos meus amigos da Faculdade que não eram chineses, eram judeus.
Tratavam-me como igual, convidavam-me para casa e nunca
136
faziam comentários estereotipados. Discutíamos os nossos estudos, jogávamos
xadrez e comíamos em restaurantes chineses. Sentia que, finalmente, a vida tinha
começado. Nunca sofri os momentos de depressão que por vezes afectavam os meus
colegas. Chamavam-me pollyanna, mas eu não me importava. Como podiam alguma vez
perceber a alegria que eu sentia por me ver finalmente fora do alcance da sombra
eminente de Niang?
Morava em Campbell Hall, uma residência a dois quarteirões da Universidade. A
Associação dos Estudantes Chineses era em Gordon Square, ali pertinho. A
Associação dos Estudantes da Universidade de Londres era do outro lado da rua.
Mais tarde, a Casa de Hong-Kong ficou situada em Lancaster Gate, a uns 5
quilómetros dali. O pai enviava-me a quantia anual de 500 libras, menos 100
libras do que aos meus irmãos por eu ser rapariga. Esperava que geríssemos o
nosso dinheiro, que deveria durar todo o ano. A minha vida girava em torno da
Universidade e das associações de estudantes. Juntei-me à equipa de
pingue-pongue e jogava xadrez pela minha Universidade. James entrara em
Cambridge, em Engenharia Civil. Visitava-o frequentemente aos domingos.
Passávamos tardes muito agradáveis a tomar café e a conversar, nos seus
aposentos medievais em Trinity College, inebriados pela nossa recente liberdade.
Sentia-me radiante por poder passear pela calçada ao lado do meu bonito irmão
mais velho, vestido com o seu fato da Universidade e o seu lenço de Cambridge,
enquanto à nossa volta se ouvia o repicar dos sinos a chamar para as orações da
tarde.
A carapaça que me protegia das feridas dos preconceitos e injustiças também me
servia de esconderijo secreto para onde me podia retirar: Permitiu-me formar e
desenvolver uma amizade que teria espantado todos os meus pares e deixado
preocupados alguns deles, caso tivessem sabido do que se estava a passar.
Karl Decker era um dos meus assistentes. Para os meus olhos de rapariga de 17
anos, ele era o homem ideal: inteligente, sensível, alto e bonito. Apaixonado
pelo seu trabalho, passava longas horas no laboratório. Era um alemão de 34
anos, gaguejava e tinha um forte sotaque. Inserida no grupo de que ele era
tutor, comecei a reparar em Karl por causa da sua honestidade. Ele costumava
anotar longas correcções nas margens dos meus ensaios e eu ficava sensibilizada
com o trabalho que ele tinha com as minhas tarefas. Às vezes reparava que as
anotações
137
tinham sido apagadas e que as tinha voltado a escrever laboriosamente com uma
letrinha meticulosa.
Começou a comentar as minhas roupas e a minha aparência,
- Que blusa tão bonita! - notava ele, assim que eu entrava na aula, Nesse
momento tornava-me muda e pouco natural.
Durante meses e meses recusei admitir, mesmo para mim própria que o Dr. Decker
era meu admirador. Custava-me a acreditar que aquele brilhante cientista pudesse
estar seriamente interessado numa
adolescente chinesa, estudante de Medicina, acabadinha de sair de um colégio
interno.
Ele passava horas a discutir as suas experiências comigo, dando_se ao trabalho
Página 78
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
de me mostrar todos os artigos importantes sobre o tema, Nos dias mais frios
ensinou-me a aquecer café num bico de Bunsen no seu laboratório e depois
bebiamo-lo juntos por duas grandes.provetas.
Mas, sobretudo, escrevia-me. As notas rabiscadas nas margens dos meus ensaios
foram sendo substituídas por longas páginas cheias de revelações pessoais. Li
sobre a morte da sua mãe quando ele tinha 10 anos, o novo casamento de um pai
severo e autoritário, as memórias ténues e dispersas e de uma adolescência
emocionalmente agitada. Escreveu-me acerca de uma doença misteriosa chamada
esquizgfrenia, que o afectara quando ainda era um jovem estudante de Medicina em
Praga; falou-me de vozes sombrias, convicções estranhas, tormentos terríveis.
Ingénua e inexperiente, envaidecida e sensibilizada por estas revelações
extraordinárias, envolvi-me sem me aperceber de que trilhava um caminho
perigoso. Cheio de medos, dúvidas e restrições, ele era para mim a imagem de uma
educada sensibilidade temperada de uma gentil melancolia, que encantava a minha
imaginação. Uma parte desta admiração baseava-se certamente na minha enraizada
reverência chinesa pelo saber, pela idade e pela sabedoria.
As suas cartas começaram a desempenhar um papel central na nossa vida emocional.
Ele escrevia sobre poesia, música e filosofia; os seus pensamentos, humores e
receios; a sua solidão e ânsia de me ver. A tudo isto estava subjacente todo o
abandono de uma existência sombria e o tabu de um romance inter-racial que
despontava entre um professor e a sua aluna
Karl tinha auto-suficiência e autocontrolo. Não tinha amigos. Vivia para o seu
trabalho, passando rotineiramente os seus dias de 14 horas no laboratório,
inclusivamente aos sábados e domingos. Tomava todas
138
~ refeições na cafetaria da Universidade e praticamente não sabia nem se
importava com o que comia.
Tinha uma vida austera, ascética, vazia de entusiasmos ou indulgências.
Raramente saíamos juntos para qualquer lado. Nenhum de nós desejava ser visto em
público. Os casais de raças diferentes eram ainda raros nessa época. Além disso,
fazíamos um par estranho. Aos olhos dos outros não tínhamos sido feitos um para
o outro.
Ele não queria que os colegas soubessem que andava a sair com uma das suas
alunas, muito menos com uma rapariga chinesa. Eu também não queria que os meus
amigos chineses descobrissem, para que nenhum rumor chegasse aos ouvidos da
minha família.
Por estas razões, os nossos encontros eram totalmente privados. O laboratório de
Karl na faculdade transformou-se no nosso paraíso. Era um dos poucos lugares
onde ninguém olhava para nós com olhos inquisidores e onde nos sentíamos
completamente seguros.
Para mim, desajeitada e com pouca inclinação para a vida social, era muito
estranho ver o meu querido professor, um homem com o dobro da minha idade, tão
tímido e inseguro à minha frente. Quando estávamos sozinhos, os seus modos
desastrados, a sua gaguez envergonhada e as suas grandes saudades varriam todas
as minhas defesas.
Um dos meus amigos chineses, Yu Chun-yee, um pianista de Singapura, dava um
recital em Wigmore Hall. Sabendo que eu desejava apoiá-lo, Karl comprou 11
bilhetes e dividiu-os em dois grupos, um de 8 e um de 3. Deu-me os 8 bilhetes
para que pudesse convidar os meus amigos chineses. Ele também foi ao concerto
com o seu colega doutorado e a mulher. Nenhum dos meus amigos chineses sabia que
Página 79
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
tinha sido Karl quem tinha arranjado tudo, mas, durante todo o espectáculo,
senti a sua presença atrás de mim.
Era uma situação impossível e, todavia, prolongava-se. Éramos tão diferentes,
mas a afinidade entre nós era imensa. Eu sentia simultaneamente atracção e
repulsa pela dedicação fanática que ele tinha ao trabalho, excluindo tudo o
resto. Disse-me que precisava de preencher o seu tempo com ciência para poder
derrotar os demónios.
Vezes havia em que a sua instabilidade emocional me espantava e até me
assustava.
- É tudo tão triste e tão difícil - dizia ele. E acrescentava quando se
apercebia do meu ar espantado:
- Claro que não devias gastar tanto tempo comigo. Tu, tu que és cheia de vida e
de esperança!
139
Nunca roubou tempo suficiente às suas experiências para poder perceber os
valores culturais chineses que moldavam a minha personalidade. Nunca conseguiu
compreender aquilo que considerava ser a minha obsessão pela comida e dizia que
a minha busca permanente pelo "restaurante chinês ideal nas redondezas" era uma
busca vã do Santo Gral. Nunca conseguiu aperceber-se de quão essencial é a par-
tilha da comida nas festividades chinesas. E, acima de tudo, não conseguia
entender a minha recusa permanente de consumar a nossa relação. Para além da
minha juventude e educação católicas, eu estava impregnada da crença confuciana
de que, para uma mulher, a perda da virgindade fora do casamento era um destino
pior do que a morte,
Um ano, no dia do seu aniversário, passei uma semana inteira a preparar um
jantar especial, fazendo inúmeros planos e compras, á procura dos ingredientes
mais frescos na época, arranjando flores e frutos frescos, limpando o seu
apartamento pouco mobilado e cheio de pó. Ele comeu a refeição de seis pratos em
quarenta e cinco minutos sem fazer qualquer comentário: sopa de brócolos
frescos, ganso estufado com alho-porro, couve-flor salteada com gengibre,
galinha picante, ervilhas com cogumelos e arroz cozido no vapor. Olhava
repetidamente para o relógio, desejoso de voltar a alguma das suas experiências
no laboratório. Lavei os pratos depois de ele sair a comer, dizendo para comigo
que fora um esforço em vão.
Havia algumas noites - raras, contudo - em que as experiências de Karl estavam
acabadas, os tubos de ensaio lavados e secos, os sapos alimentados e os meus
trabalhos de casa já feitos. Nessas noites, empoleirados nas cadeiras do
laboratório, conversávamos até altas horas. Houve momentos em que atingimos uma
intimidade profunda, uma compreensão mútua, tudo o que alguém pode esperar que
aconteça entre um homem e uma mulher.
Karl insistia que não era pessoa para mim e que eu devia permitir que alguns dos
rapazes da Associação de Estudantes Chineses me fizessem a corte. Para coroar a
confusão emocional em que me encontrava, tais saídas eram sempre precedidas ou
seguidas de uma longa carta de Karl, plena de angústia e arrependimento. Essas
cartas deixavam-me desfeita. Os meus amigos chineses eram uma parte importante
da minha vida. Quando estava com eles, podia abandonar as minhas defesas e ser
eu própria. Eu precisava de falar a minha própria língua de me descontrair entre
o meu povo, que se ria das mesmas coisas que
140
Página 80
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
eu. De vez em quando troçávamos de algumas das grandes personalidades do país
que nos recebia. Havia alunos chineses que vinham não só da China e Hong-Kong,
mas também de Singapura, Malásia, Indonésia, Maurícias e de outros lugares,
dando uma dimensão internacional ao mundo chinês.
Os avós ou os pais de muitos destes estudantes chineses do Sudeste asiático
tinham emigrado das províncias chinesas costeiras de Fujian ou Guangdong, em
virtude das dificuldades existentes na sua terra. Embora Yu Chun-yee, o meu
amigo de Singapura, nunca tivesse posto um pé na China, tinha lido os mesmos
romances chineses, adorava os pratos picantes de Sichuan,, e tinha muitos dos
mesmos valores culturais. Sob muitos aspectos, ele era mais chinês do que um
chinês.
Três das minhas colegas da residência que eram de Hong-Kong também frequentavam
a Universidade em Londres. Todos sofríamos a influência de C. S. Tang,
presidente da Associação de Estudantes Chineses.
C. S. vinha de Xangai. A família negociava no ramo da navegação. Era muito
bonito e fazia o doutoramento no Imperial College. C. S. tinha ideias
esquerdistas. Ao contrário de nós todos, tencionava regressar a casa para servir
o povo da mãe-pátria. Era o nosso irmão mais velho.
Aos fins-de-semana, C. S. organizava excursões de barco na Serpentina em Hyde
Park ou de patinagem no gelo em Queensway. Organizava bailes e jantares em que
havia sorteios e em que os pratos estavam repletos de pimentas e alho. Alugava
filmes chineses que retratavam comunistas em luta pela liberdade, vencendo
oficiais corruptos do Kuomitang e senhores da terra. Ao vê-los, sentíamo-nos
muito progressistas e idealistas e sonhávamos voltar um dia à China para, com as
nossas capacidades, podermos contribuir para a glória da nossa mãe-pátria.
C. S. não sentia nada senão desprezo pelos estudantes chineses que saíam com
ocidentais.
- Traidor! - resmungava entre dentes. - Afazer amizades com o inimigo!
Uma vez, num restaurante chinês perto de Leicester Square, o nosso grupo pediu
uma das especialidades da casa: pato à Beijing servido com cebolinhas, molho de
ameixa e panquecas muito fininhas. O empregado de mesa disse-nos que o último
pato já estava no forno e
prestes a ser servido a um branco sentado com uma rapariga chines algumas mesas
mais adiante. C. S. colocou um braço à volta do empregado de mesa, um cantonense
muito baixinho, oriundo de Hong_Kong~ chamado Little Chang, e disse-lhe que
durante muitos anos a China o nosso grande país, tinha sido maltratado pelos
bárbaros. Repetiu a história do aviso no parque de Xangai que proibia a entrada
a cães e a chineses.
- O que aí tens é um bárbaro que vai partilhar o último pato com uma bonita
rapariga chinesa. Não podes permitir que isso aconteça! Os bárbaros nem conhecem
a comida chinesa! Não conseguem distingui um pato de uma galinha quando estão
vivos, quanto mais quando estão mortos ou assados. Porque não lhes dás qualquer
coisa saborosa? Deitas-lhe um pouco de molho de ameixa e chamas-lhe pato à
Beijing! Não deve ser muito difícil enganar um bárbaro.
E foi assim que eu e os outros comemos o pato. Contudo, senti-me pouco à vontade
com o ataque de C. S. ao "bárbaro". Mais para o final da refeição atirei-lhe:
- Quando falas em enganar os bárbaros, isso não é uma espécie de racismo ao
contrário?
C. S. moveu a cabeça e pôs-se a pensar. Passou os dedos pelo cabelo espesso e
brilhante, como se fosse um rapazinho. Dirigiu-se a mim, chamando-me pelo meu
Página 81
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
nome chinês:
- Junling, tu fazes-me perguntas dificílimas! Como é que eu te hei-de responder
sem parecer um idiota? Acho que a questão é esta: na vida de todos nós existem
prioridades. As minhas são estas e por esta ordem: o meu país, o meu líder - o
oresidente Mao -, a minha família, os meus pais, os meus irmãos, os meus amigos
chineses. O meu professor, os meus colegas e outros amigos bárbaros. E depois as
outras pessoas. Não posso deixar de sentir uma certa proximidade pelos do meu
povo, como o Little Chang. Little Chang parece sentir o mesmo por nós.
Durante esse período passado em Inglaterra, mais ou menos entre 1955 e 1963, a
maior parte de nós sentia-se orgulhoso do modo como a China se tinha elevado aos
olhos do mundo. Contudo, não tínhamos todos as mesmas esperanças relativamente
ao futuro da nossa nação. Alguns desejavam que a China se transformasse numa
brilhante sociedade capitalista como a América do Norte. Outros esperavam Que ~
políticas revolucionárias de Mao sobre o colectivismo e o socialismo
142
se enraizassem de modo mais firme. Uns poucos eram tão evangélicos como C. S.,
divulgando panfletos e filmes de propaganda que mostravam criancinhas de faces
rosadas, trabalhadores felizes, fábricas enormes e números de produção incríveis
e sempre crescentes: a China estava a mudar. Acho que a maior parte de nós, numa
altura ou noutra, se chegou a ver como um grupo de licenciados cheios de
capacidades, treinados nas áreas mais desenvolvidas da tecnologia. ocidental,
sonhando regressar a casa, servir a nossa mãe-pátria e corrigir os erros de
outros tempos.
No laboratório tentei transmitir a Karl o orgulho e o entusiasmo da vida que
levava na Associação de Estudantes Chineses, mas ele deitava abaixo o meu zelo
excessivo.
- Já passei por esses disparates patrióticos no meu próprio país durante a
segunda guerra mundial. Acredita, a realidade é bem diferente. Então agora
pensas que todos na China eram anjos só porque Mao Zedong libertou o país! De um
dia para o outro já ninguém pensa em si próprio! Já não há inveja, ódio ou
maldade! Só existe bondade, amor e justiça universal! Acreditas realmente nisso,
minha tontinha?
143
14
Yi Qin Yi He Um só canto, uma só garça
H. H. Tien era estudante de pós-graduação em Matemáticas Aplicadas no Imperial
College. Era de estatura média, magro, usava óculos muito graduados e, embora
não fosse considerado bonito, tinha um
certo charme e afabilidade. Excepcionalmente bom e generoso, H. H. era um líder
natural e parecia possuir tudo o que mais se esperava para o futuro da China.
Admirávamo-lo, não por causa dos seus argumentos lógicos ou persuasivos, mas
devido ao seu magnetismo e personalidade. O pai era um banqueiro rico que tinha
casado por amor, desprezando amantes e concubinas, um comportamento pouco comum
entre os Chineses. Nos anos 30 o Sr. Tien tinha sido um membro activo da
Associação de Boicote Antijaponesa e tinha lutado com o Exército da 19.a Estrada
pela defesa de Xangai contra os Japoneses antes de se juntar ao Partido
Comunista na clandestinidade. Alegrara-se com a libertação de Xangai, em 1949, e
enviara ao seu filho H. H., em Londres, uma carta de oito páginas, proclamando o
amanhecer de uma nova China. Contudo, para se proteger, e de uma forma muito
pragmatica, abriu outro banco em Hong-Kong e mudou-se para lá em 1951
Página 82
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
144
Uma noite, pouco depois da sublevação húngara, em 1956, fui com H. H. a um
concerto em Albert Hall. No início dessa semana, Karl tinha andado preocupado
pelas notícias que ouvira na BBC, segundo as quais a Rússia tinha enviado tropas
para Budapeste. H. H. e eu tivéramos uma acesa discussão, durante a qual eu
papagueei muitas das suspeitas de Karl. H. g. descrevia os actos da Rússia como
o abraço protector de um irmão mais velho que tentava evitar o caos dentro da
mesma família política.
- Como podes ter a certeza de que a China se tornará um grande país -
argumentei. - Já que houve tanta ganância e corrupção no tempo de Chiang
Kai-shek, porque havia um novo governo de alterar a natureza dos Chineses?
Tínhamos chegado à entrada da minha residência em Tavistock Square. Como não nos
apetecia acabar ali a noite, caminhámos à volta de Campbell Hall. Subitamente,
H. H. deu uma gargalhada:
- Sabes o que eles dizem de Chiang Kai-shek? - perguntou ele em inglês. -
Levanta o meu cheque, Chiang Kai-shek!
E voltou ao dialecto de Xangai, que usávamos habitualmente nas nossas conversas:
- Agora a sério: quando a liderança é corrupta e inapta, essas características
geralmente vêm a impregnar as massas. Sob o regime comunista, a China entrou
numa nova era de reforma radical. Mao e os seus generais fizeram grandes
progressos e trouxeram a China para a arena mundial. Em vez de se curvarem ao
general MacArthur, forçaram a América a um cessar fogo com a Coreia. Tal como
disse o presidente Mao, "A China finalmente pôs-se de pé".
Sob a fraca luz dos candeeiros da rua, os seus olhos brilhavam de fervor e de
esperança. Como eu o admirava! Começou a chover. Levantei a gola do casaco para
me proteger do frio cortante. H. H. tirou o seu cachecol da Universidade e
enrolou-o à volta do meu pescoço. Senti-me tão segura e confortável na sua
companhia. Aos poucos tinha-lhe confiado partes da minha infancia dolorosa, uma
informação que eu raramente dava.
- Sou quase 8 anos mais velho do que tu - disse H. H. - Às vezes desejava que
fosses mais velha. Há tanta coisa que te quero dizer. passaste tempos tão
difíceis com a tua madrasta. Precisas de alguém como eu para te defender e
cuidar de ti para o resto da vida.
- Agora tenho de entrar - disse eu, subitamente inquieta e confusa. - O meu
irmão Gregory disse que quando um rapaz e uma
145
rapariga se juntam, é como apanhar um autocarro. Apanhas um autocarro porque o
número certo passa na hora certa. Desde aí nunca mais deixei de pensar nisto.
Abri a porta da frente e devolvi a H. H. o seu cachecol. Observei-o enquanto
seguia o seu caminho, tentando desviar-se das poças, antes de virar a esquina
acenou-me e gritou:
- Achas que eu sou o número certo? Estás pronta para entrar no autocarro?
E desapareceu.
Lá dentro estava escuro e morno. Quando ia a subir, reparei que havia uma carta
na minha caixa do correio. Era de Karl.
Seria muito bom, talvez até mais do que isso, se nos pudéssemos encontrar depois
da tua sessão tutorial na quarta-feira. Mas concordo contigo que não devemos
misturar as coisas. É natural que, por causa da
tua juventude, as tuas preocupações te pareçam mais importantes quando
comparadas com as minhas: pais, notas, a face, amigos chineses, o teu futuro e a
China (agora a Grande Questão). Limito-me apenas a tentar identificar outro
problema biofisico e estou a tentar resolvê-lo. É claro que não haverá
Página 83
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
compensações, talvez nem um papel no fim; e, contudo, a tarefa parece-me bem
importante. Será que conseguia manter o meu lugar na Universidade se os meus
sentimentos por ti se tornassem conhecidos de todos? Seria tão bom ter-te
permanentemente na minha equipa, mas isso está totalmente fora de questão e tu
só tens 18 anos.
Por isso não tenho esperança de te ver a sós nos tempos mais próximos. Se, no
entanto, vires que há alguma possibilidade, lembra-te de que eu estou livre
quarta-feira quase todo o dia. Talvez tenhamos alguma coisa importante a dizer
um ao outro; ou talvez possamos apenas estar felizes juntos, como aconteceu
durante os últimos meses, algumas vezes ... Não te deixes seduzir pela retórica.
O comunismo cativa os homens e as mulheres que buscam a utopia. Não vai dar
certo. O conflito, a inveja e a maldade estarão sempre no coração do homem,
qualquer que seja o governo. É óbvio! Não te sintas tentada a abraçar uma
determinada religião só porque gostas do padre.
Minha pequenina! Minha femme fatale"! Disse muito pouco daquilo que tinha
pensado dizer. Pensar em ti enche-me de emoções inquietantes
"Em francês no original. (N. da T.y
146
Querida Adeline,
que eu hesito em transcrever. Basta dizer-te que apagaste do meu coração uma
tristeza que me sinto feliz por ter abandonado. Embora saiba que me devia
afastar, por favor, lembra-te de que, para onde quer que vás, eu esperarei
sempre por ti no meu laboratório.
Karl
p, a doce melodia das palavras! Nunca mais saí com H. H.
A Guerra Fria atingiu o auge durante os anos 50 e 60. Alguns dos meus
contemporâneos mais idealistas foram convidados pelo departamento de imigração a
deixar a Grã-Bretanha em 1961, por serem pessoas "indesejáveis". Tinha-se
divulgado recentemente que Kim Philby era o número três a seguir a Burges e
McClean: um círculo de espiões ingleses que floresceu durante os anos 30,
enquanto faziam a universidade em Cambridge. As autoridades britânicas acusavam
Beijing de infiltrar agentes secretos através dos círculos estudantis em
Londres, transformando-nos em imberbes comunistas.
C. S. casou com uma rapariga chinesa de Singapura. Regressou com ela a Xangai
para ensinar e trabalhar como investigador na Academia das Ciências de Beijing.
Vieram a sofrer bastante durante a Revolução Cultural. Na altura em que volteia
vê-lo e à sua mulher, em 1980, C. S. tinha perdido o cabelo e o patriotismo. Já
não falava de reconstruir a China, mas perguntou-me, em vez disso, se eu podia
ajudá-lo a obter uma bolsa de pós-graduação nos Estados Unidos. O que mais o
preocupava eram os planos que tinha para a educação dos filhos e um sítio
agradável onde pudesse gozar a sua reforma com a mulher. Não se queixou uma
única vez da sua decisão de regressar à China. Continuava a ser afável,
generoso, honesto e bom.
Outros tiveram menos sorte. H. H. tinha 33 anos e era ainda solteiro quando foi
convidado a sair. Regressou à China em 1962, contra o conselho dos pais. Os
meses passaram e não mais tivemos notícias dele. Alguns de nós escrevemos para a
morada que nos tinha dado antes de partir. Nunca tivemos resposta. Evaporara-se
nas entranhas da China, engolido por 800 milhões de chineses.
O seu "desaparecimento" preocupou-nos e deixou-nos perplexos. Tínhamos a certeza
de que havia alguma coisa de errado naquilo tudo e suspeitávamos que as coisas
Página 84
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
não lhe tivessem corrido bem. No meu
147
caso pessoal, o seu silêncio abalou todas as fantasias de uma mãe-pária gloriosa
e nunca mais pus seriamente a hipótese de regressar e trabalhar na terra onde
tinha nascido.
Anos mais tarde ouvimos dizer que H. H. tinha sido perseguido e preso durante a
Revolução Cultural. Os que o prenderam recusaram_se a acreditar que um jovem
cientista de elevada craveira académica pudesse recusar viver com a sua família
rica em Hong-Kong, num estilo de vida ocidental e confortável, e uma carreira
promissora para servir o seu país. Insistiram em como teria com certeza outro
motivo e procuraram convencê-lo a confessar. H. H. recusou e suicidou-se em
1967, deixando uma mensagem com quatro caracteres chineses -~-.._ Yf qin yi he
(um só canto, uma só garça), querendo com isto dizer que era incorruptível e
recto até à morte. Tinha 38 anos.
Outros dos que foram convidados a sair da Grã-Bretanha na purga de estudantes
esquerdistas chineses tiveram uma sorte diversa. S. T. Sun (Little Sun), formado
em Arquitectura, enamorou-se de Rachel Yu, uma das minhas colegas do tempo do
Colégio do Sagrado Coração. Quando Little Sun foi convidado a sair, o namoro era
já uma coisa séria. Regressou a Hong-Kong quando a construção civil estava em
franco desenvolvimento, o que se veio a prolongar por trinta anos e ainda hoje
continua. Rapidamente abriu a sua própria firma de arquitectura e embrenhou-se
no milagre económico que fez passar Hong-Kong de um entreposto adormecido no Sul
da China à metrópole vertical em que hoje se transformou. Todos os pensamentos
sobre a terra-mãe se desvaneceram com o advento dos cheques de pagamento de seis
dígitos. Longe de Londres e de Raquel, voltou ao amor da sua infància. Mais
tarde toda a família abraçou a cidadania canadiana, vivendo hoje entre Hong-Kong
e Vancouver.
Os anos foram passando. Fui a muitos casamentos e cada vez me sentia mais vazia
e esquecida. Dos meus amigos, aqueles que ainda não se tinham casado pareciam
prestes a fazê-lo, ao passo que eu conti nuava a navegar numa relação que não
conduzia a parte alguma. Embora tivesse conseguido manter a minha ligação
emocional a Karl como um segredo, de um modo geral tinha ficado a perder, pois
era incapaz de, simultaneamente, me ligar emocionalmente a qualquer outra
pessoa. A base neurótica do nosso relacionamento alimentava-se de si própria. Ao
acreditar que os nossos sentimentos mútuos eram
148
insubstituíveis, Karl acreditava também que, para nós, o casamento seria um
desastre. Insistia em encorajar-me a sair com rapazes chineses, às vezes ele
vinha também para examinar os meus acompanhantes. Uma noite, estava eu sentada
entre um possível apaixonado e Karl numa escura sala de cinema, ele acariciou-me
a mão.
Depois de ter acabado o curso e de ter trabalhado como interna, passei dois anos
a trabalhar e a estudar numa pós-graduação em Edimburgo possivelmente tentando
fugir de Karl. Passei os exames em Medicina Interna e tornei-me MRCP em Londres
e Edimburgo. Nessa cidade tristonha, húmida, fria e ventosa, aceitei finalmente
que tinha de deixar a Inglaterra. Tantas_ e tantas vezes eu tinha tentado
libertar-me desse envolvimento impossível. Nenhum dos conflitos alguma vez se
resolveria. Já no final, num dos raros dias em que Karl tinha sido especialmente
carinhoso, disse-me que estava tão feliz que lhe apetecia morrer. Depois
acrescentou tristemente:
-Não fomos feitos um para o outro. É mais fácil morrer por ti do que viver
contigo.
Página 85
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Quando o dia da separação chegou, foi particularmente difícil. De certo modo,
nunca consegui ultrapassá-lo. Karl foi o meu professor, o meu mentor, o meu
primeiro amor, o grande pai que nunca tive. Mas, qualquer que fosse a maneira de
colocar racionalmente a questão, ele rejeitou-me e o nosso relacionamento
falhou. Num momento de angústia desesperada, rasguei todas as suas cartas.
Pouco tempo depois, em 1963, deixei a Inglaterra, rumo a HongKong.
'' Member of the Royal College of Physicians (Membro do Real Colégio dos
Médicos). (N da T,)
149
Algumas semanas antes de deixar Londres escrevi ao professor McFadden, Lo Mac,
da Faculdade de Medicina da Universidade de Hong-Kong. Recebeu com agrado a
minha candidatura a professora assistente no seu departamento, felicitou-me
pelas minhas notas altas, comunicou-me o salário e acrescentou que tinha direito
a alojamento. Portanto, foi confiante, mas também com pena, que voei para
HongKong em 1963.
Gregory e James foram esperar-me ao aeroporto de Kai Tak no Mercedes do pai,
conduzido pelo motorista. Ambos estavam a trabalhar para o pai já há um ano.
James foi o primeiro a voltar, depois de ter concluído os seus estudos em
Cambridge. O salário que recebia era tão baixo que só lhe chegava para viver no
YMCA33. A vida tornou-se-lhe mais fácil quando Gregory voltou de Montreal, onde
tinha estado a fazer o mestrado na McGill University. O pai pagava a cada um
deles
" Young Men's Christian Association. (N. da T.).
149
15
Fu Zhong You Yu
Um peixe a nadar num caldeirão
um ordenado mensal de 2000 dólares de Hong-Kong, o equivalente a Z50 dólares
americanos. Conseguiram alugar um pequeno estúdio em conjunto, que se situava
por cima de um clube nocturno em Nathan Road, Kowloon.
Hong-Kong já não era a cidadezinha parada que eu tinha deixado onze anos atrás.
As ruas estreitas, pequenas, iluminadas pelos néons, formigavam agora de peões e
trânsito, mesmo depois das 9 da noite. Havia um grande número de edifícios
novos, alguns deles ainda em construção e com os andaimes de bambu. Anúncios
coloridos e iluminados piscavam. A vitalidade saltava à vista.
- Esta não é a Hong-Kong que eu deixei. - disse eu aos meus irmãos - Esta é uma
reencarnação de Xangai!
- Exceptuando o facto de serem ainda maiores, melhores e mais modernas -
replicou James -, Kowloon e Hong-Kong são como uma grande Rua de Nanquim.
- Ainda bem que voltaste - disse Gregory com afabilidade. - Este é o lugar certo
no tempo certo. A cidade vai explodir. O espertalhaço do Velhote está a fazer
uma razia.
- O pai ainda continua no negócio da importação-exportação?
-Importação-exportação! -troçou Gregory, que mal podia acreditar na minha
ignorância. - Será possível não teres ouvido falar da Guerra da Coreia? Não
soubeste que os aliados fizeram un bloqueio económico à China quando Mao Zedong
apoiou a Coreia do Norte? Os mercados onde o pai negociava fecharam as portas da
noite para o dia. Este contratempo fez que o pai diversificasse os negócios para
o ramo da manufactura e indústria ligeira. Abriu três fábricas: de flores
artificiais, luvas de cabedal e produtos lacados e agora diz que é um
Página 86
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
industrial.
Contaram-me então que a fábrica de produtos lacados era especialmente lucrativa,
produzindo utensílios de cozinha coloridos, objectos para campismo e toda uma
variedade de louça inquebrável. Recentemente o governo nigeriano tinha entrado
em contacto com o pai para que construísse uma sucursal da fábrica em Port
Harcourt. As condições eram extremamente favoráveis e o governo nigeriano
oferecia subsídios, incentivos fiscais e terrenos a baixo preço. Os meus dois
irmãos estavam envolvidos no projecto.
Tínhamos chegado ao ferry de Yaomati, também para automóveis e na época o único
meio de transporte entre Kowloon e Hong-Kong. Depois de embarcarmos, saímos os
três do carro e ficámos na amurada
durante a travessia. Em frente de nós estava a ilha de Hong_Kong, brilhante como
uma jóia, com milhares de luzes que faiscavam na noite. Os meus dois irmãos
vestiam fatos azúis, camisas brancas e gravatas conservadoras. Parecia que iam
os dois para uma reunião de negócios.
Olharam com desdém para o meu velho vestido do Marks and Spencer, demasiado
grande para mim, e Gregory comentou:
- Se realmente decidires estabelecer-te e exercer medicina em Hong-Kong, tens de
prestar mais atenção ao que vestes. As pessoas de Hong-Kong dão grande
importância à moda e o que trazes vestido não é suficientemente bom.
- Nunca fui nenhuma beldade - balbuciei à defesa - e, além de tudo o mais, acabo
de sair de um avião.
- Ela parece-me muito bem - disse James gentilmente com um sorriso caloroso,
enquanto me passava o braço pelo ombro. - Não conheço ninguém que pareça o
último grito da moda depois de estar fechado num avião durante horas e horas.
- Como é o apartamento deles agora? - perguntei eu, desviando o assunto da
conversa.
Depois da morte de Franklin, em 1953, o pai convencera-se de que o.feng shui
(vento e água ou geomancia) da vivenda de Stubbs Road era mau. Lembrou-se também
de que Ye Ye tinha morrido em 1952, quando também vivia na mesma casa. Puseram
fim ao contrato de aluguer e alugaram um novo apartamento no Peak.
- É um apartamento de dois quartos, bonito e luxuoso - respondeu Gregory. - Já
lá vivem há dez anos.
- Número 115, Plunket Road, no Peak - disse eu. - Há hoje alguma discriminação
contra os chineses que vivem no Peak?
- Durante o século XIX, os Chineses não estavam autorizados a viver lá, mas
penso que isso acabou em 1904.
E Gregory continuou a explicar que, nos dias que corriam, o dinheiro era o rei e
que nós, os Chineses, podíamos viver em qualquer lado, desde que tivéssemos
dinheiro. Contudo, era ainda desproporcionado o enorme número de brancos que
vivia na zona do Peak. Acrescentou que o pai tinha comprado há pouco tempo um
novo apartamento nos Mid-levels, nas Magnolia Mansions, com vista para o porto.
Tinha quatro quartos e o pai tinha mesmo dito que havia espaço à vontade para eu
poder lá ficar.
152
Que simpático da parte deles! - exclamei eu, rejubilando de alegria.
Não deites foguetes antes da festa! - disse James de forma um pouco sombria. - A
Velhota opôs-se. Disse várias vezes que o apart~nento não era suficientemente
grande. Penso que a ideia do Velhote ficou arrumada, pelo menos por algum tempo.
Entretanto, o carro subia já as ruas cheias de curvas da encosta íngl'eme, rumo
ao topo da ilha de Hong-Kong, onde a vista era espectacular e o ar era fresco e
sem poluição. Doíam-me os ouvidos devido à altitude e tinha o estômago revolvido
Página 87
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
por causa do cansaço e das curvas. Enquanto esperávámos pelo elevador na entrada
pavimentada a mármore e granito fui invadida pela mesma sensação de insegurança
que me dominava sempre que tinha de enfrentar os meus pais. Embora tivesse
estado em Inglaterra durante onze anos e fosse agora médica, naquele momento não
me sentia nada diferente da rapariguinha de escola que partira em 1952.
Fui cumprimentada formalmente com sorrisos e apertos de mão. O pai estava pouco
mais ou menos na mesma, mas a silhueta graciosa de Niang tornava-se mais
volumosa e as suas feições tinham endurecido. O apartamento estava mobilado de
forma elegante, mas impessoal, com cadeiras chinesas antigas, de espaldar recto
e de madeira, sofás ao estilo ocidental, com cobertas nos braços, e um tapete de
Tianjin. Para baixo, uma vista panorâmica da cidade de Hong-Kong e do porto de
Vitória.
Bastante tensos, sentámo-nos em volta de uma mesa de jantar de pau-rosa, a comer
fitas que nos eram trazidas por uma criada que eu já não conhecia. Por uma
qualquer razão, a conversa fazia-se em inglês. Depois do meu regresso de Londres
nunca mais me voltaram a falarem chinês, o que veio a aprofundar o meu
sentimento de exclusão; era como se eu fosse um empregado que tinha de
justificar o seu ordenado. Contei-lhes que o professor McFadden me tinha
oferecido um lugar de assistente no seu Departamento de Medicina Interna.
- Tenho andado a pensar nisso - começou o pai lenta e propositadamente, como se
tivesse ensaiado o discurso - e penso que não é um bom passo. Em vez disso
devias pensar na obstetrícia e na ginecologia. Lembras-te da Dr.° Mary Ting, que
vos viu nascer a todos! É uma das melhores médicas que eu conheço. A medicina
interna não é uma boa área para mulheres. Os médicos não vos indicarão aos
pacientes deles.
153
Tinha-me esquecido completamente de que o pai já traçara a aninha carreira onze
anos atrás, mesmo antes de eu partir para Inglaterra, Não consegui dizer nada.
Era uma decisão séria que envolvia o meu futuro
mas, do ponto de vista do pai, a decisão era dele, e não minha. Acrescentou que
a professora Daphne Chun, uma amiga dele do Departamento de Obstetrícia e
Ginecologia da Universidade de Hong-Kong, estava disposta a dar-me um lugar como
interna especial. O salário que ele mencionou era insultuosamente baixo e o
lugar era-me oferecido apenas por eu ser filha de quem era. A professora Chun
tinha-lhe dado muita "face".
Já sabia que se tratava de um fait accompli. O pai perderia a face se eu me
recusasse a aceitar este "favor". Mesmo assim, tentei protestar, lembrando-lhe
que já tinha trabalhado como interna em Londres dois anos antes. A oferta do
professor McFadden de um lugar de assistente significava que eu iria ocupar uma
posição inusitadamente elevada para uma jovem médica de 26 anos. O pai ignorou
completamente as minhas explicações.
- Porque não tentas o lugar oferecido pela professora Chun? Se não gostares,
poderás sempre mudar mais tarde. Vais ver que não te vais arrepender. Além do
mais, ainda não te comprometeste com o professor
McFadden, pois não? Portanto, não tens nenhuma obrigação. Eu só estou a pensar
no teu bem-estar - continuou ele. - Achas que o teu pai te indicaria o caminho
errado? Lembra-te de que ainda és muito jovem, acabadinha de sair da
universidade. Se tomares a decisão errada agora, irás arrepender-te daqui a dez
anos, e então já será tarde de mais.
Lembrou-me de Lydia e Samuel 13 anos antes, quando tinham insistido em voltar a
Tianjin, ao contrário do que tão bem lhes aconselhara.
- Olha para a confusão em que se meteram! E só por culpa deles. Hão-de apodrecer
Página 88
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
por lá até ao fim da vida! - disse ele, proferindo aquelas palavras com um certo
gosto, quase feliz, porque as suas profecias de desgraça se tinham vindo a
realizar como uma vingança.
Enquanto ouvia, as minhas decisões anteriores foram-se desvanecendo. Só sabia
que, acima de tudo, queria agradar ao meu pai. E tanto, tanto! Queria ser aceite
por ele, ser amada, nem que fosse só por uma vez na vida.
~ Em francês no original. (N. da T.)
154
Muito bem, Adeline! Estamos orgulhosos de ti!
É claro que, ter-me a trabalhar com um dos seus conhecimentos, Significava muito
para ele. Recusar a oferta do lugar de assistente do professor McFadden (com
alojamento) e trocá-la pela promessa de um posto de interna junto da Dr.a Chun
era dar ao pai uma grande quantidade de "face". E certamente que isso me faria
subir alguns pontos na sua consideração.
Mais uma vez me traía mim própria e acedi aos desejos do pai. Quando nos
recolhemos, eu já estava praticamente a agradecer-lhe pelo trabalho que tinha
tido por minha causa.
No quarto dia após o meu regresso de Hong-Kong, Niang disse-me que fizesse as
malas. Nesse dia o pai estava fora, a jogar golfe com um parceiro de negócios.
Estava uma tarde de domingo cheia de sol quando Ah Mo, o motorista, nos levou, a
Niang e a mim própria, ao Hospital Tsan Yuk, onde trabalhava a Dr.a Chun. O
lugar parecia deserto. Ficámos de pé, à entrada, a falar a uma telefonista
extremamente atarefada, que tratava das ligações telefónicas e era
simultaneamente recepcionista. Por fim, lá percebeu que eu era a nova interna
extra acabada de chegar da Universidade de Londres, contratada pela professora
Chun para começar a trabalhar na segunda-feira. Disse-nos que, já que a
professora não estava e nem nenhum dos outros médicos para nos mostrar as
instalações, deveríamos voltar na segunda-feira de manhã.
Niang, todavia, não se deixava intimidar facilmente. Mandou chamar o interno que
estava de serviço. No momento em que uma jovem médica chegou, Niang, ordenou, em
inglês, que ela me fosse mostrar o local onde eu iria dormir. Embora eu fosse na
altura uma mulher adulta e médica, Niang ignorou-me como se eu fosse ainda uma
criança. Foi informada que não havia alojamento para internos.
- Então onde é que você dorme? - perguntou Niang insolentemente, enquanto eu me
encolhia de vergonha.
- Durmo na sala dos que estão de serviço - replicou a interna, a Dr.a Chow,
deitando-me um olhar breve e desviando rapidamente os olhos, percebendo a minha
atrapalhação.
- Quantas camas é que há e quantas estão ocupadas? - insistiu Niang,
- Há quatro camas e hoje duas estão ocupadas, uma por mim e outra pela pediatra
interna que está de serviço.
155
- Estou a perceber - disse Niang, raciocinando rapidamente, - Então há duas
camas nesse quarto que não estão ocupadas.
- Sim, mas só estão desocupadas até amanhã, quando o esquema rotativo de serviço
é anunciado.
- Então está muito bem! - disse Niang com o seu sorriso encantador. - Leve-nos,
por favor, à sala dos que estão de serviço,
O seu tom era autoritário e a sua presença imperativa. Quando a Dr.a Chow
hesitou em satisfazer aquele pedido perfeitamente inusitado, Niang fez rodar o
Página 89
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
anel de diamantes de seis quilates à volta do dedo.
A jóia vistosa reflectiu a luz, emitindo uma mensagem de dinheiro e poder. Foi
então que Niang acrescentou:
- A professora Chun é uma grande amiga minha.
Nessa altura a Dr.a Chow estava já completamente intimidada e indicava o
caminho, seguida por Niang, por mim e por Ah Mo, que levava as minhas duas malas
com todos os meus haveres. Entrámos
num grande quarto vazio com quatro camas, uma a cada canto. Não havia
guarda-fatos. As únicas peças de mobiliário eram as mesas de cabeceira que
ladeavam cada uma das camas e em cada uma delas havia um telefone. A roupa de
cada um dos médicos de serviço pendia em cabides de parede colocados junto das
camas.
Niang caminhou até à janela sem cortinas, os vidros opacos de poeira. Olhou lá
para fora e abaixo de nós podia ver-se o porto de Vitória em todo o seu
esplendor. O Sol brilhava, o ar estava leve, o mar tinha um azul resplandecente
e as embarcações eram coloridas. Ela ordenou a Ah Mo que colocasse as minhas
malas junto de uma das camas desocupadas. Voltou-se para mim e sorriu:
- Ó Adeline, que vista maravilhosa aqui do teu quarto! Que sorte tu tens!
Enquanto eu olhava para ela embasbacada, muda de assombro e vergonha, ela
acrescentou:
- Infelizmente, o pai e eu estaremos ocupados durante toda a próxima semana, mas
talvez possamos almoçar todos juntos no domingo que vem. Telefona-me na
quinta-feira, está bem? - E acrescentou, voltando-se para Ah Mo - Agora leva-me
à Sr.a Ning! - ordenou ela. - Já estou atrasada para o chá!
Ah Mo apressou-se atrás dela, seguido pela Dr.a Chow, que disse qualquer coisa
relacionada com ter de ir ver um doente. Fiquei sozinha.
156
permaneci junto da janela suja, a olhar para a "vista maravilhosa" durante muito
tempo. Todo o meu ser estava inundado de solidão e de um sentimento que eu
conhecia demasiadamente bem: rejeição total. E perguntei a mim própria porque me
tinha dado ao trabalho de voltar para casa.
No início dos anos 60, Hong-Kong era um lugar extraordinário. No ponto de
viragem para um destino brilhante, tinha substituído Xangai no seu papel de
porta para o Ocidente. Tudo estava em marcha. A vida girava à volta de
passaportes e dinheiro. As pessoas entravam ou saíam.
Noventa e nove por cento da população era chinesa. A maioria era oriunda da
vizinha província de Guangdong (Cantão). Depois de 1949, um grande número de
chineses tinha chegado de Xangai e de outras partes da China. À medida que o
tempo foi passando, tornou-se cada vez mais perigoso entrar em Hong-Kong através
do canal que separava a cidade da China. Mais tarde, o exército britânico erigiu
uma vedação de arame farpado com cerca de 38 quilómetros de comprimento ao longo
da fronteira com a China, que era patrulhada por batalhões de Gurkhas (soldados
mercenários nepaleses) e cães, que afastavam todos aqueles que tentavam entrar
ilegalmente na colónia superpovoada. Os que eram bem sucedidos possuíam a forte
determinação de construir uma vida melhor para sie para os seus filhos.
Vim a encontrar cidadãos de diversos ramos que trabalhavam 14 a 16 horas por dia
em troca de magros salários: taxistas, cabeleireiros, empregadas de mesa,
enfermeiras, telefonistas. Em comparação com Londres, tudo era barato, excepto o
alojamento. Foi durante este período que Hong-Kong ficou conhecida como armazém
de pechinchas e Meca de compras do mundo. Talento e oportunismo eram as Pedras
de toque da economia. Hong-Kong tornou-se o admirável mundo novo para os
oprimidos da China.
Página 90
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Abundavam as histórias de trabalhadores com salários banais, alguns mesmo
analfabetos, que, através de trabalho árduo e persistente e da economia de todos
os tostões, conseguiam comprar um pequeno aPartarnento ou mandar os seus filhos
estudarem para o estrangeiro. Criadas e motoristas começaram a investir no
imobiliário e a especular na bolsa de Hong-Kong.
157
O meu trabalho em Tsan Yuk era fisicamente puxado, mas não apresentava grandes
desafios intelectuais. Durante o tempo que lá estive não se fez qualquer
trabalho de investigação médica. A discri.
minação sexual era grande e flagrante. Os médicos ganhavam mais 25 % do que as
médicas da mesma categoria, embora executássemos trabalhos idênticos e
atendêssemos igual número de chamadas nocturnas.
Eu não era de modo algum popular. Os meus colegas internos ressentiam-se por
causa de eu ter instalação permanente na sala dos médicos de serviço. Por fim
atribuíram-me um quarto particular no hospital, pelo qual eu pagava uma renda
altíssima. A administradora do hospital deu-me os parabéns pela sorte que tivera
em conseguir aquele quarto. A professora Chun tinha-lhe dito que a minha família
era extremamente rica e que eu própria tinha uma boa independência financeira.
Não tinha para onde ir ao fim do dia e aos fins-de-semana. Tomava a maioria das
minhas refeições no hospital. Gastava a maior parte do meu magro salário na
renda, alimentação, livros e (num esforço ilusório para ganhar o seu afecto) em
presentes caros para os meus pais,. como caixinhas de prata ou camisolas de
caxemira.
Os meus colegas não gostavam de mim porque eu não era cantonense e a minha
licenciatura fora tirada em Londres, e não em HongKong. As minhas duas
especializações em Medicina Interna não eram referentes ao Departamento de
Obstetrícia e Ginecologia. O modo como eu falava inglês era considerado
"não-chinês", diferente, incompreensível e irritante. Puseram-me a alcunha de
Loy Lo Fu, ou seja "mercadoria importada".
Quando, por fim, entrei em contacto com o professor McFadden, ele confirmou a
sua oferta do lugar de assistente no Departamento de Medicina Interna, com
alojamento gratuito. Senti-me fortemente ten tada a aceitar, mas não podia
deixar que o pai perdesse a "face". Mais tarde vim a descobrir que era forte a
rivalidade entre departamentos e que era um pequeno sucesso para a professora
Chun eu ter escolhido trabalhar como interna em vez de ter aceite a promessa de
um lugar como assistente junto do professor McFadden, especialmente quando eu já
possuía um MRCP obtido em Londres e outro em Edimburgo Havia ainda outra razão
para que eu não aceitasse: nessa altura eu Ja sabia que tinha de sair de
Hong-Kong e fazer a minha vida noutro
158
sítio. A posição oferecida pelo professor McFadden teria sido permanente. E ele
tinha sido mais do que generoso, mantendo o lugar em aberto ao longo de um ano.
Todos os domingos à noite éramos esperados para o jantar no novo apartamento que
o pai e Niang tinham comprado recentemente nos Mid-leveis. Esses jantares eram
verdadeiras provas. Niang parecia saber de tudo: da conta bancária de Gregory
com um saldo Ironicamente negativo, das suas multas numerosas em Kowloon e
Hong-Kong (na opinião do pai, dignas do Gttitatess Book); do consumo de uísque
que James fazia; das minhas tentativas para alugar um apartamento maior para mim
e para os meus dois irmãos, a fim de podermos ter qualquer coisa que se
parecesse com uma vida de família; da correspondência que Susan mantinha com um
amigo americano.
Página 91
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Com o tempo fiquei a odiar os pontos de vista que exprimiam nesses jantares de
domingo, onde eu permanecia invariavelmente calada, como se fosse um ~ ~ ~~
~,/it zhottgyott ytt (um peixe a nadar num caldeirão), cheia de um
descontentamento frustrante.
Regularmente, os meus pais acusavam e condenavam os cantonenses de Hong-Kong
pela sua avareza, materialismo excessivo e carácter ostensivamente pouco
refinado. Contudo, eu não podia deixar de reparar na obsessão que eles próprios
sentiam pelo dinheiro. Por outro lado, os preconceitos que tinham eram grandes e
católicos. Além dos Cantonenses, criticavam também os Judeus, os Indianos e os
Japoneses. Quanto aos potenciais parceiros comerciais nigerianos, Niang
considerava-os sub-humanos e nem sequer merecedores de qualquer sentimento de
desprezo.
Em 1963 toda uma geração de jovens chineses bilingues fazia parte da força de
trabalho de Hong-Kong. Já nessa altura alguns dos mais ricos de Hong-Kong eram
ricos para além do que se pode imaginar. Os seus filhos e filhas regressavam das
melhores universidades da Inglaterra e da América, transformados em pessoas
impecavelmente vestidas, com fatos escuros de marca feitos em Paris ou em
Londres, que usavam mesmo no pino do Verão. Falavam um inglês perfeito. Os
filhos tinham por vezes .fart gzti nui (mulheres estrangeiras "diabos") entre os
braços. Os melhores clubes de Hong-Kong, os clubes de élite, Já não excluíam
membros chineses. O novo critério já não era a raça, mas sim o dinheiro. Nessa
nova Hong-Kong dos anos 60 havia muitos milionários cantonenses que eram muito
mais ricos do que Niang e o
159
pai. Dado que os meus pais estavam convencidos da sua superioridade inata em
relação aos cantonenses, estas ideias eram difíceis de digerir. A única defesa
que tinham era considerar todos os cantonenses como esquisitos, embora no fundo
invejassem aqueles que subiam mais depressa nessa nova sociedade. Com uma fina
ironia, Niang comentava ocasionalmente que achava deploráveis os casamentos
inter-raciais e dizia que os filhos não seriam carne nem peixe.
A minha tia-avó também era conhecida por Gong Gong (tio-avô) por causa do
respeito que lhe tinham como presidente do Banco das Mulheres de Xangai, fundado
por ela em 1924. Parte de uma geração de três irmãos, recusou-se a ter os pés
ligados. Frequentou uma escola missionária fundada por metodistas americanos e
usava o inglês fluen
temente. O seu banco, no n ° 480 de Nanjing Lu, em Xangai, está ainda em
actividade.
Os meus irmãos e irmãs. Na última fila a partir da esquerda: Gregory, James,
Edgar. Na fila da frente, da esquerda para a direita: Lydia com a meia-irmã
ainda bebé, Susan, e Adeline. A fotografia foi tirada em Tianjin em 1942, antes
da morte da nossa avó. Todos vestíamos roupas ocidentais bem à moda e usávamos
os cabelos muito bem cortados
Página 92
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Nos dias em que era uma região em desenvolvimento, Tianjin ofereceu
oportunidades económicas a Ye Ye, o meu avô (à direita); o filho, o meu pai, à
esquerda, e K. C. Li, ao centro. K. C. foi um dos primeiros chineses a
licenciarem-se pela Escola de Economia de Londres e fundou a Hwa Chong Hong, uma
empresa bem sucedida no ramo da importação-exportação. Tanto o meu avô como o
meu pai trabalhavam para ele
Os meus irmãos e irmãs alguns anos mais tarde. Atrás, da esquerda para a
direita: Susan, Franklin, Adeline e o cão, Jackie. A fotografia foi tirada em
1946, pela altura em que nos ofereceram os patinhos de estimação
A minha madrasta, Niang ("mãe"), e o meu pai com Ye Ye (no meio) nos anos 40. Ye
Ye era um budista devoto. Rapava sempre a cabeça, usava um chapelinho redondo no
Inverno e vestia roupas chinesas
Niang, Franklin e o meu pai no início da década de 40. Franklin, o meu
meio-irmão, era o filho predilecto. Niang comprava-lhe a roupa nas melho res
lojas de roupa infantil na Avenida Joffre e mandava cortar-lhe o cabelo em
grande estilo nos cabeleireiros de criança mais à moda
Ye Ye e a minha meia-irmã, Susan. A fotografia foi tirada logo a seguir à sua
chegada a Xangai, quando vieram de Tianjin, em Outubro de 1943
Jeanne Prosperi tinha 17 anos quando conheceu o meu pai, que tinha acabado de
enviuvar. Depois de se casar com o meu pai, passámos a chamar Niang ("mãe") à
nossa madrasta. Filha de pai francês e de mãe chinesa, era uma mulher de uma
beleza espantosa. Embora falasse fluentemente inglês, francês, mandarim e o
dialecto de Xangai, nunca aprendeu a ler ou a escrever em chinês e nunca falou
cantonense
A tia Ba Ba cuidou sempre de mim enquanto era criança, elogiando os meus êxitos
na escola, verificando os meus trabalhos de casa e dando-me boleias de riquexó.
Nunca casou e dependeu financeiramente do meu pai
e da minha madrasta durante toda a vida. Era meiga, paciente e cheia de
sabedoria. Amei-a muito
Os meus dois meios-irmãos, Franklin e Susan, com a sua ama e tutora, Miss Chien.
Havia dois sistemas na nossa família: nós, os enteados, éramos cidadãos de
segunda classe; Franklin e Susan receberam tratamento preferencial desde o dia
em que nasceram
Franklin ao lado de Jackie, o cão de estimação do meu pai. O pai contratou um
treinador alemão para ensinar Jackie a ser obediente apenas ao pai, a Niang e a
Franklin. Eu tinha muito medo de Jackie, que costumava ladrar-me
Niang e o meu pai gozavam de um confortável estilo de vida. Formavam um bonito
par, que brilhou nas décadas de 40 e 50, ocupando uma elevada posição social em
Xangai e Hong-Kong
16
Pi Ma Dan Qiang Um cavalo, uma só lança
Sete meses depois de eu ter iniciado o meu período como interna entrou um
Página 93
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
estudante de Medicina de vinte e cinco anos, de ascendência chinesa e americana.
Martin Ching vinha inserido num programa de intercâmbio da Faculdade de Medicina
da Universidade de Nova Iorque para o mês de Julho. Era filho único de pais da
classe trabalhadora, que tinham emigrado de Guangdong para a América nos anos
30. O pai, trabalhador árduo numa lavandaria, e a mãe, empregada de mesa,
esperavam tudo de Martin e tinham poupado todos os tostões para que ele pudesse
ir para a universidade estudar Medicina e para comprar uma casa em Queens, a %m
de Martin poder viver fora da Chinatown de Nova Iorque enquanto andasse na
universidade. Quanto a eles, continuaram a viver por cima da loja que tinham,
enquanto Martin alugava quartos a outros estudantes para ajudar a pagar a
hipoteca. Era um bom rapaz, estudioso e responsável.
Por vezes, à noite, depois do trabalho, Martin e eu sentávamo-nos à conversa.
Estávamos ambos num beco sem saída e não tínhamos para
onde ir. Ele mal sabia falar cantonense. Os médicos e as enfermeira achavam
muito maçador terem de traduzir tudo para inglês sempre que ele estava presente.
Além de tudo o mais, Martin era "apenas" um estudante de Medicina.
- Nunca tinha sentido tanta discriminação como a que estou a sentir aqui em
Hong-Kong - disse-me Martin. - As pessoas daqui são distantes. Mantêm sempre uma
atitude defensiva e olham para mim com desprezo porque eu tenho o aspecto de um
chinês, mas não falo nem escrevo chinês fluentemente. Pensam que sou um palerma.
Nesse Verão de 1964 o tempo estava extremamente mau. Parecia que as chuvas nunca
mais tinham fim. Um dia o departamento de meteorologia fez içar os sinais de
tufão. A todos os trabalhadores, excepto aos que estavam em serviços de
emergência, foi dito que deveriam permanecer em cása. Aulas marcadas foram
canceladas. Martin e eu ficámos no hospital, porque não tínhamos mais lugar
nenhum para onde ir.
Lá fora a chuva intensa era empurrada por um vento forte, transformando as águas
azuis do oceano em ondinhas brancas, batidas, zangadas. O serviço do Star Ferry
foi suspenso: foram canceladas todas as travessias entre Hong-Kong e Kowloon até
ordem em contrário. O trânsito desapareceu. Ficámos isolados no Hospital Tsan
Yuk, rodeados por trovões, relâmpagos, chuvas torrenciais e rajadas de vento
devido ao tufão. Em frente das vidraças foram montados tapumes de madeira que as
protegiam. Àquelas que estavam menos expostas foram aplicadas tiras de fita-cola
larga. Hong-Kong era uma cidade cercada pelas forças da natureza.
Martin e eu sentámo-nos numa das extremidades de uma longa mesa de conferências
rectangúlar que existia na biblioteca e ali ficámos a observar a fúria da
tempestade lá fora. A violência das chuvas torrenciais criava a ideia de
conforto e segurança ali dentro.
- Estás aqui a desperdiçar o teu tempo e os teus talentos - disse Martin. -Aqui
até podias fazer o teu trabalho de olhos fechados e, no entanto, ainda tens de
perfazer as horas e fazer as vigílias. Porque não vais ter com o professor
McFadden e aceitas o trabalho que ele te ofereceu?
- Eu não posso ir ter com Lo Mac! - repliquei. - Eu preciso é de sair de
Hong-Kong.
- Então volta para Londres! Consegues arranjar facilmente um lugar académico com
os dois MRCP que tens.
162
_
~ Não, não, Londres está fora de questão! Não volto para lá! - Nesse
momento pensava em Karl e até senti uma dor. Eu nunca mais poderia voltar
àquilo. - Além disso, não ia a lado nenhum. As cartas são contra mim: chinesa,
Página 94
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
mulher. O racismo e o sexismo são por demais evidentes em Inglaterra.
- E então, qual é a novidade? - perguntou Martin retoricamente. ,r Racismo e
sexismo há-os por todo o lado, até na América.
- Como é que é crescer na América?
- O que tu queres saber é o que é crescer na América branca com uma cara
asiática, não é?
E contou-me como era frequentar uma escola na Chinatown de Nova Iorque e
identificar-se apenas com a América dos Brancos. Odiava a escola chinesa, porque
não queria ser diferente dos seus colegas brancos. A pouco e pouco compreendeu
que, embora pensasse em si próprio como um americano, seria sempre um
estrangeiro, um chinês, aos olhos dos seus pares de raça branca. Martin
sentia-se encurralado entre dois mundos. Convencera-se de que o preconceito era
inerente à natureza humana e de que estava presente em todas as sociedades,
,incluindo a sua própria casa. Os seus pais tinham mostrado grande desagrado
quando, certa vez, saíra com uma rapariga indiana, chamando-lhe see yct gui nc~i
(diabo estrangeiro, molho de soja em forma de mulher). Concluiu finalmente que,
quando comparada com qualquer outro lugar, a América era ainda o país mais
tolerante e de espírito mais iluminado. Considerou que tinha sorte em ter
nascido nos Estados Unidos da América.
Martin especializara-se em História pela Universidade de Colúmbia antes de
ingressar na Faculdade de Medicina. Dividia a emigração chinesa em três grandes
ondas: antes da Guerra do Ópio - movimento constituído por artesãos, artífices e
comerciantes, provenientes das províncias costeiras do Sul em direcção aos
países vizinhos (Tailândia, Vietname, Malásia e Filipinas); cerca de setenta
anos depois da Guerra do Ópio, camponeses analfabetos (os abandonados e os mais
pobres) rumaram à América na esperança de uma vida melhor, até à data em que as
leis de exclusão fizeram diminuir estes números. Depois da segunda guerra
mundial, influentes homens de negócios chineses em Taiwan e Hong-Kong começaram
a enviar os seus filhos para universidades no estrangeiro, especialmente na
América. As recentes reformas na área da imigração haviam facilitado esta nova
vaga de "imigra-
ção intelectual". Muitas vezes, estes estudantes acabavam por ficar na América e
nunca mais regressavam à sua terra de origem.
- Conheço dois rapazes de Taiwan que alugaram quartos em minha casa - continuou
Martin. - Nenhum deles tem intenção de regressar. Um deles está a tirar a
especialidade de Patologia e o outro é engenheiro, Uma vez que não és feliz em
Hong-Kong, porque não vens para a América? Um diploma de Medicina da
Universidade de Londres é bem visto em Nova Iorque. E, a propósito, há uma série
de professores na Universidade de Nova Iorque que se formaram em Inglaterra.
Subitamente, uma nova perspectiva se abria aos meus olhos. A América! ;~ ~ Mei
Guo (País Maravilhoso)! Fiquei de pé, junto à janela a observar a devastação da
tempestade lá fora, esperando de alguma forma ver um arco-íris surgir no
horizonte.
- Obrigada pela tua generosidade. Já me animaste mais do que podes supor. As
tuas palavras encheram-me de optimismo. Tudo é possível, não achas?
- Ouve, regresso a Nova Iorque na próxima semana. Eu ajudo-te a encontrar um
trabalho. Não fiques com esse ar preocupado! Não vais ter problemas. Verás.
Quando Martin deixou Tsan Yuk, era já o final do mês de Julho. O meu contrato
com a professora Chun terminava daí a três meses. Ansiosa por deixar Hong-Kong,
candidatei-me a todos os hospitais indicados por Martin. A maioria das respostas
sugeriam a data de 1 de Julho do ano seguinte para início dos trabalhos.
Contudo, o Presbyterian Hospital, em Filadélfia, aceitava-me imediatamente para
Página 95
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
iniciar uma especialidade em obstetrícia. Mais tarde vim a saber que estavam
desejosos que eu ocupasse o lugar, pois não tinham conseguido preencher todas as
vagas para especialidades e corriam o risco de ver cancelado todo o programa de
formação. Nessa altura havia falta de médicos na América.
Aceitei imediatamente o trabalho que me ofereciam. O salário era de 450 dólares
por mês, além do alojamento e alimentação. Havia apenas um problema: eu não
tinha dinheiro suficiente para pagar o bilhete de avião de Hong-Kong para
Filadélfia e perguntei a mím própria se o pai e Niang não me fariam um
empréstimo.
No jantar de domingo lá consegui arranjar coragem para anunciar que tinha
decidido emigrar para a América. A notícia foi acolhida por um silêncio
sepulcral. O pai sabia que eu não estava feliz em Tsan Yul~
164
Também tinha consciência de que a oferta do professor McFadden para o
Departamento de Medicina Interna ainda estava de pé. Contudo, o meu plano de ir
para a América era novidade para eles.
Dei a entender os meus parcos recursos e perguntei em voz alta se os bancos não
me fariam um empréstimo para comprar a passagem aérea. Niang falou:
- Bem, Adeline, nunca hás-de saber se não fizeres o pedido, pois não? E se o
banco recusar, paciência, não é?
Com esta resposta, percebi que as hipóteses de que eles me emprestassem o
dinheiro eram nulas.
Nessa mesma noite despedi-me cedo, pois tinha uma cirurgia marcada para a manhã
seguinte. Por volta da meia-noite, Gregory telefonou-me.
- Falaram de ti quando saíste. O meu coração quase parou: - O que é que eles
disseram?
- Disseram que tinham feito todo o possível para te ajudarem em Hong-Kong, mas,
já que isso não te basta, ficas entregue a ti própria daqui por diante. Não
querem sequer saber o que farás daqui para frente. Londres, Nova Iorque, Tóquio
ou Filadélfia, é-lhes indiferente. Mas não penses que te vão oferecer o bilhete,
porque não vão.
Ficámos em silêncio por momentos.
- Bem, obrigada, Gregory - disse eu, por fim. - Vou pensar numa maneira de
resolver o problema.
Depois do telefonema de Gregory já não consegui dormir. Desatei a chorar e
pensei que era muito baixo da parte deles regatearem o preço de um bilhete para
Filadélfia - uma ninharia para eles - e nem sequer ficarem tristes por saberem
que eu ia deixar Hong-Kong. É que nem sequer tinham dito umas palavrinhas, como
"Vamos ter saudades tuas" ou "Escreve-nos muitas vezes, sim?". A minha partida
iminente não lhes interessava nada, a não ser na possível despesa que iam ter
com um bilhete de avião.
Levantei-me, vesti a minha roupa já muito usada e fui para a biblioteca do
hospital. Estava deserta. Disse para mim própria:
- Teres pena de ti própria e pores-te a chorar não te vai resolver o problema do
bilhete de avião.
Sentei-me e escrevi uma longa carta à secretária do Departamento de Ensino de
Medicina do Presbyterian Hospital, em Filadélfia.
165
Confessei a esta estranha a minha triste história. Era solteira, mulher e
chinesa. Toda a minha vida tinha sonhado poder montar um consultório em
Hong-Kong, junto do meu pai. Quando finalmente tinha re
gressado a casa, ao fim de onze anos, não encontrara nada senão desencanto.
Página 96
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Tinha decidido emigrar para a América, aceitando a oferta do Presbyterian
Hospital.
Contei-lhe de seguida que não tinha dinheiro para a passagem aérea e perguntei
se me podiam conceder um empréstimo a descontar futuramente no meu ordenado. E
nessa carta eu escrevia ainda: "Não sei qual é a sua origem nem qual é o seu
passado, mas talvez algum dia alguém lhe tenha dado também a mão e a tenha
ajudado a realizar o seu sonho americano. Peço-lhe humildemente que agora faça o
mesmo por mim."
O Presbyteriam Hospital não me deixou ficar mal. Duas semanas mais tarde eu
recebia a resposta. Ao que parecia, o meu pedido não era inédito. A política do
hospital era conceder um adiantamento para despesas de viagem a médicos
estrangeiros que tivessem passado o ECFMG, um exame especial para médicos
estrangeiros. O preço do bilhete de avião mais o valor dos juros eram
mensalmente deduzidos do ordenado: Enviavam-me um impresso para eu assinar.
A carta trazia ainda uma nota manuscrita da secretária do Departamento de Ensino
de Medicina: "Fiquei comovida com a sua carta. Gostaria apenas de lhe transmitir
que a porta da nossa casa estará sempre aberta para si, caso venha a precisar de
alguma ajuda quando estiver em Filadélfia."
Foi esta a minha estreia como estrangeira na América. Ela mostrou-se mais
bondosa para comigo do que os meus próprios pais.
Pouco tempo depois deixei Hong-Kong. Gregory e James foram ao aeroporto
despedir-se. Niang foi ao seu jogo habitual de brídege. Enquanto Gregory
estacionava o carro, James enfiou-me na mala uma nota já muito gasta de 20
dólares. Este gesto comoveu-me até às lágrimas, pois eu sabia que aquela era uma
soma muito para além das suas possibilidades.
Meia hora antes da partida, o pai surgiu a correr para se despedir. Juntámo-nos
junto à porta de embarque e, quando chegou a hora de nos separarmos, dissemos
adeus com um aperto de mão. Quis dizer ao pai que tinha feito tudo o que pudera
para ficar contente comigo; porém,
166
as palavras ficaram presas. Depois de um silêncio doloroso, o pai disse
fnalmente:
Bela, agora é que estás mesmo sozinha. In !~ :~ ~~ Pi ma dan giajlo (Um cavalo,
uma só lança, querendo significar que eu estava só num combate contra a vida).
Vamos ver o que és capaz de fazer.
167
17
Jia Ji Shui Ji Casa com uma galinha e seguirás uma galinha
Martin foi esperar-me ao aeroporto. Para poupar dinheiro, eu tinha comprado o
bilhete mais barato que havia e o resultado fora uma viagem de quase quarenta e
oito horas. Durante o voo os nervos não
me tinham deixado dormir e naquele momento, enquanto Martin ia a conduzir de La
Guardia até Queens contra os faróis de um trânsito intenso e rápido, já não
conseguia pensar em mais nada senão no sono que me atormentava. Os olhos
fechavam-se-me à medida que ele ia falando animadamente acerca de me apresentar
aos amigos, de ir jogar bowling ou dançar. Adormeci rapidamente.
Ele teve que me abanar para eu conseguir acordar quando chegámos à sua casa de
três pisos com varandas, situada numa zona calma dos subúrbios. Na sala de
estar, mal iluminada, reparei, ainda ensonada,
Página 97
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
que o sofá de vinil e a mesinha de café em plástico estavam limpos e arrumados.
Havia luz na cozinha e ouvia-se o barulho de alguém que mexia em pratos e
tachos.
168
17
Depois de trazer as minhas duas malas, Martin fez-me uma festa nos cabelos.
Bem-vinda à América, dorminhoca! - exclamou ele animadamente. - Aqui é que é o
meu poiso! O que é que achas?
Atrás de nós alguém tossiu. Voltei-me e vi um jovem alto e elegante, de cabelo
cortado à marinheiro. Mesmo cansada como estava, ainda consegui reparar que era
um rapaz extremamente bonito. Ele avançou, estendendo a mão direita.
- Olá, sou o Byron Bai-lun Soon. Vivo aqui em casa do Martin - disse ele com o
forte sotaque dos chineses do Norte.
De forma possessiva, Martin passou o braço em volta dos meus ombros, enquanto
fazia as apresentações. Afastei-me instintivamente e sentei-me pesadamente no
sofá.
- Aqui estás em segurança -.disse Martin. - Vamos tomar os três uma cerveja
antes de eu te levar a jantar.
- Para mim não - respondeu Byron. - As raparigas chinesas não bebem cerveja. Do
que ela está a precisar numa noite fria como esta é de uma boa caneca de água
quente. E a seguir uma tigela de sopa de fitas cheia de molho de carne com sabor
a pimenta. Vou já tratar disso.
- Água quente! - exclamou Martin, torcendo o nariz. - Olha que ela não é uma
velhota da chinatown como a minha mãe! Ela precisa é de uma boa cerveja gelada e
não quer nenhumas fitas. Acabei de te dizer que vamos sair para jantar.
Passado pouco tempo eu estava com a água quente e a cerveja gelada à minha
frente, bebendo ora um golfinho de uma ora um golfinho de outra.
Martin levou-me a um restaurante japonês das redondezas, embora eu tivesse
gostado mais da ideia de Byron da sopa de fitas e de uma almofada fofa. Passo
após passo lá fui comendo alguns camarões ternparra, enquanto Martin discursava
com entusiasmo sobre Nova Iorque. Por essa altura eu praticamente já dormia em
pé. Como um zombi, disse que estava pronta às 9 da manhã para irmos visitar a
Faculdade de Medicina onde ele andava e onde fazia as rondas de sábado.
Na manhã seguinte não acordei com o meu despertador nem com Martin a bater-me à
porta com toda a força. Um sol brilhante atravessava os cortinados, quando eu
acordei sobressaltada à 1 da tarde. Sabia que tinha deixado Martin ficar mal.
Vesti-me à pressa e corri
169
escada abaixo. Encontrei Byron na sala sozinho, a ler calmamente um livro de
engenharia.
- Estava mesmo a perguntar a mim próprio quando tu irias descer - disse ele a
sorrir.
Vestia uma camisa branca, nova, e camisola azul. Assim, à luz do dia, parecia-me
ainda mais espantoso. Agora, que estávamos sozinhos, falava-me num mandarim
fluente, claramente mais à vontade na sua língua-mãe. Timidamente, entregou-me
um bilhete que Martin tinha deixado na mesa do café. Num tom ligeiramente
recriminatório, Martin rabiscara: "Tentei acordar-te, mas não consegui. Quase
fiquei sem mão, mas não serviu de nada. Deves estar mesmo estoirada! Estarei em
Página 98
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
casa por volta das 5.30. Até logo. Vamos ao bowlifag logo à noite!"
- Ainda bem que adormeceste - declarou Byron -,porque assim tenho-te só para mim
durante algumas horas. Vamos almoçar? Já está tudo preparado.
Sentámo-nos à mesa da cozinha e comemos as fitas com molhos de carne de sabor a
pimenta que Byron tinha preparado. Ele tinha nascido em 193 8, na província de
Hunan, onde o pai era general no exército do
Kuomintang. Depois da tomada do poder pelos comunistas, os pais separaram-se. A
mãe permanecera na China com uma irmã mais nova e o pai fugira para Hong-Kong
com Byron e Arnold, o irmão mais velho. Os dois rapazes haviam completado o
liceu em Hong-Kong antes de terem ingressado na Universidade de Taiwan. Depois
de se terem formado, ambos tinham resolvido viajar para a América, a fim de
fazerem as respectivas pós-graduações. Arnold tinha casado com a sua namorada
dos tempos da universidade e estava a fazer o doutoramento em Matemáticas pela
Universidade da Pensilvânia. Byron tinha arranjado um trabalho nocturno numa
firma de engenharia e estava a tirar o mestrado no Instituto Politécnico de
Brooklyn. Já possuía um cartão verde e o seu desejo era tornar-se cidadão
americano. Alugava o quarto a Martin há nove meses.
- Ontem pensei em ti durante toda a noite! - confessou Byron. - Quando li o
recado de Martin, decidi não ir às aulas. Este vai ser o meu dia de sorte! O meu
dia passado contigo ao sol. E sozinhos! Os olhos brilhavam-lhe de excitação.
Agarrou-me a mão:
- Nunca senti isto antes: Diz-me, quais são as minhas hipóteses? Eu estava
boquiaberta. Esfreguei os olhos, mas ele ainda lá estava: o meu herói das
novelas de Kung Fu, confessando-me toda a sua
170
devoção Não retirei a minha mão da sua e, à medida que a tarde ia avançando,
fiquei cada vez mais encantada por ele. Finalmente, ele levantou-se para sair.
Acariciou-me a mão com meiguice:
. Este é o dia mais feliz da minha vida. Vou até fazer uma previsão, Antes do
final de 1964 vais ser minha mulher.
Nessa noite encontrei uma carta de Byron na minha almofada; estava escrita em
chinês. Era curta, mas com bonitas frases e temperada com citações dos poemas
T'ang, que eu lhe tinha dito que adorava. Anotei a hora a que pretendia partir e
passei a carta por debaixo da porta dele, conforme me tinha pedido.
Na manhã seguinte apanhámos os três um táxi para a estação de Pensilvânia,
Martin e Byron a competirem abertamente para chamar a minha atenção. Martin foi
ficando cada vez mais irritado. Sentia-me lisonjeada, mas era uma situação muito
estranha e fiquei aliviada quando por fim me pude meter no comboio para
Filadélfia.
Casei-me com Byron na City Ha1135 de Nova Iorque, apenas seis semanas depois de
ter chegado à América e antes do final de 1964, tal como Byron tinha previsto.
Martin pediu a Byron que abandonasse imediatamente a casa, pois os pais
proibiam-no de alugar quartos a casais. Nenhum de nós voltou a falar a Martin ou
a vê-lo sequer. Num dos raros momentos que tive para pensar, já depois da
cerimónia do casamento, fiz um cálculo e descobri que se somasse todo o tempo
que Byron e eu tínhamos passado juntos a sós não chegava a dez horas.
Enviei um telegrama ao pai e a Niang, informando-os de que me tinha casado. Um
mês depois recebi deles uma carta de parabéns com um cheque de 600 dólares, a
sua prenda de casamento.
Tentei racionalizar o meu casamento, dizendo a mim mesma que muitos dos
Página 99
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
casamentos arranjados na China começavam da mesma maneira. No fundo, todos os
casamentos eram um jogo e viver diariamente com alguém tinha de implicar
cedências de parte a parte.
O meu contrato com a Presbyterian era por sete meses, isto é, até Junho de 1965.
Para conseguir ver Byron aos fins-de-semana endividei-me ainda mais e comprei um
Volkswagen em segunda mão.
Duas semanas depois do meu casamento, quando lavava a roupa dele, encontrei no
bolso de umas calças uma carta do Chase Manhattan Bank a cancelar-lhe a conta
devido ao saldo negativo.
's Modo de desnignação da câmara municipal das cidades americanas. (1V. da T.).
Quando lhe telefonei para a firma de engenharia onde dizia que trabalhava, fui
informada de que ele lá ia apenas de vez em quando e em regime de part-time.
Mais tarde recebi uma chamada de alguém com um forte sotaque cantonense. Pela
mensagem era mais do que óbvio que o principal trabalho de Byron era como
empregado de mesa num restaurante chinês.
Algo alarmada, decidi confrontá-lo. Tínhamos ido ver o filme My Fair Lady em
Queens. Enquanto esperávamos pelo início da sessão comecei por lhe dizer que
estava magoada por ter descoberto que ele não me tinha dito toda a verdade.
-Não há nada a discutir! - atirou ele irritado. - E, além do mais, eu casei-me
contigo, não foi? Que mais é que queres?
- Quero compreender-te, tal como espero que tentes compreender-me.
- Agora não me apetece falar. Quero ver o filme e divertir-me. - Podemos falar
depois do filme?
- Não. Vê se percebes que, quando eu digo não, é não! Não há mais nada a
discutir.
- Mas o que é isto? Uma ditadura? Somos marido e mulher ou escrava e senhor?
Porque não podemos falar das coisas com calma e com lógica?
- `~~k~~f I~ái~" ~+k~~7 i~~~7 Jia ji shui ji, jia you shui you (Casa com uma
galinha e seguirás uma galinha; casa com um cão e seguirás um cão).
- Mas que disparate! - exclamei, acrescentando algo sarcasticamente: - Foi isso
que aprendeste com a tua leitura extensiva dos grandes clássicos chineses? A tua
paixão pelos poemas T'ang transformou-se nesta mostra profunda de sabedoria?
À luz fosca fui-me apercebendo da sua irritação crescente. Sem qualquer palavra,
levantou-se e saiu.
Com a pressa deixou o casaco de Inverno e as luvas no assento. . Comecei a ficar
preocupada, a pensar que andava pelas ruas geladas de Nova Iorque só com uma
camisola e umas calças de polyester.
E comecei a recriminar-me pelos meus comentários cortantes. Fiquei desiludida ao
descobrir que as leituras do meu marido se limitavam afinal a jornais e livros
de engenharia. A sua pretensa paixão pela poesia T'ang não passava de um desejo
de impressionar a rapariga que amava.
172
O filme passava e eu não me atrevia a ir-me embora com receio de que ele
voltasse e já não me encontrasse. Quando acabou, encaminhei-me para a saída,
como toda a gente, com alguma esperança de o encontrar à porta. Não estava lá. A
neve passava em revoadas por ruas que eu não conhecia. Fiz sinal a um táxi e
pedi que me levasse ao apartamento, embora não tivesse a chave. Já passava das
11. Byron ainda não tinha chegado a casa. Fiquei encolhida à porta, como uma
velhinha sem abrigo, cheia de medo só de pensar que poderia aparecer algum
bêbedo que me agarrasse na escuridão.
"Casa com uma galinha e seguirás uma galinha; casa com um cão e seguirás um
Página 100
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
cão." Talvez eu devesse animá-lo e fazer o papel da esposa chinesa submissa. A
única alternativa era a separação, o divórcio. Afastei logo a ideia. Nunca
poderia admitir o meu fracasso perante Niang e o pai. Decidi salvar o meu
casamento, custasse o que custasse.
Finalmente, Byron voltou; eram quase 2 da manhã. Vinha maldisposto e irritado.
Tinha ido ao restaurante chinês onde normalmente trabalhava, pedira um grande
jantar e depois tinha ficado a ajudar até ao fecho. Foi direito à casa de banho
sem me dizer uma palavra e eu fui para a cozinha preparar umas fitas. Quando a
comida ficou pronta, arranjei duas tigelas e chamei-o. Estava a dormir
profundamente; parecia um anjo. Comi ambas as tigelas sozinha.
Na manhã seguinte Byron comportou-se como se nada se tivesse passado.
Exuberante, mostrou-me uma carta do advogado de imigração, informando-o de que
tinha "boas hipóteses" de conseguir um cartão verde, esquecendo-se totalmente de
que no nosso primeiro encontro me tinha dito que já tinha um cartão verde. Mordi
a língua e não disse nada. Ficámos por ali, sentados a tomar o café com
doughnuts e a ler a edição de domingo do New York Times. Andava à procura de um
emprego permanente na área da engenharia junto de uma grande companhia no Sul.
Na última página demos com um anúncio de página inteira: "Engenheiros!
Convidamo-lo a vir para a fantástica Califórnia do Sul, onde o Sol brilha todos
os dias! Venha trabalhar com a Douglas Aircraft em Long Beach! Precisamos de
si!"
Algures no fundo da minha mente lembrei-me daquela maravilhosa fotografia de
Clark Gable que tinha sido autografada e enviada de Hollywood a uma das minhas
colegas de Xangai muitos anos atrás. Como eu a tinha invejado! E basicamente
foram estas as razões pelas
173
quais acabámos na Califórnia do Sul: um anúncio no New York Times e a magia de
Clark Gable.
A Douglas Aircraft contratou-o por 800 dólares por mês. Para conseguir obter uma
licença para exercer medicina na Califórnia tive de fazer um exame especial e
completar um período como interna num
hospital da Califórnia devidamente reconhecido. E foi assim que no dia 1 de
Julho de 1965 recomecei pela terceira vez a trabalhar como interna no St Mary's
Hospital em Long Beach.
Pagavam-me apenas 300 dólares por mês, mas podia utilizar um bungalow situado
junto ao hospital. Apesar da boa figura e do bom aspecto fisico de Byron,
continuei a sentir por ele uma profunda indife
rença. Do ponto de vista emocional, era para mim um estranho. De cada vez que me
tocava, parecia ter o condão de me transformar numa pedra. Simultaneamente,
sentia-me cheia de culpa pela minha falta de reacção. Tinha casado com ele por
razões práticas: companhia, filhos, segurança emocional e aceitação social.
Ingenuamente, acreditara que, se tentasse com todas as minhas forças, o amor
viria. Isso nunca aconteceu.
Byron e eu mantínhamos as distâncias. Era assim que ele queria o casamento. As
conversas de coração aberto deixavam-no desconfortável. Citava frequentemente o
provérbio chinês ~ -~. ~q ;i~-~u ~ _f t qi
xiangjing rtt bitt (marido e mulher devem respeitar-se um ao outro tal como se
respeitam os convidados de honra). Com isto queria ele dizer que eu devia
abster-me de quaisquer críticas, comentários negativos ou conversas íntimas. Eu
Página 101
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
evitava tocar em temas controversos e tentava animar-me. Não havia conversa;
logo não existia intimidade.
A televisão era a sua companhia permanente. Ligava-a assim que chegava a casa e
sentava-se em frente do aparelho durante horas, mudando de canal de cinco em
cinco minutos. Levantava-se com relutância quando eu o chamava para o jantar e
voltava a sentar-se logo a seguir, enquanto eu lavava a loiça. Tomávamos as
refeições em silêncio. Byron lia o Los Angeles Times e eu lia os meus livros. À
noite deitávamo-nos ao lado um do outro, dois seres obrigados a partilharem a
mesma cama.
Apesar de tudo, em Outubro de 1965, eu fiquei grávida. Byron parecia estar
contente com a perspectiva de vir a ser pai. Com um bebé a caminho, eu limitei
as minhas escolhas em termos de carreira ao campo da anestesia, uma
especialidade com base no hospital. A prática da anestesiologia tinha-me sido
descrita como horas de aborrecimento interrompidas por momentos de pânico. A
responsabilidade era grande.
174
Habitualmente, os pacientes eram deixados inconscientes por processos de rotina,
ficando suspensos entre a vida e a morte. Os honorários eram proporcionalmente
elevados. Concorri e fui aceite para uma especializaçã° em anestesiologia no
Orange County General Hospital, na Universidade da Califórnia, Irvine.
O bebé devia nascer no início do mês de Junho. Byron e eu juntámos os nossos
ordenados e preparámo-nos para deixar o bungalow. Demos o sinal para uma nova
casa em Fountain Valley, a cerca de 16 quilómetros de distância.
Estávamos ambos radiantes com a compra da nova casa, que vinha de encontro aos
nossos desejos de criarmos raízes na América. Nessa noite, depois de assinarmos
o contrato, eu cozinhei uma refeição para comemorarmos. Descontraídos pela
comida, começámos a discutir o estatuto dos nossos vistos. Byron tinha recebido
o seu cartão verde e era já residente permanente, mas eu tinha ainda um cartão
de "estudante em programa de intercâmbio".
- Devias consultar um advogado especializado em assuntos de imigração e mudares
o teu estatuto o mais depressa possível. - disse Byron. - Se tivesses dado
início ao processo quando nos conhecemos, já terias o teu cartão verde.
- Quando nos conhecemos, tu também ainda tinhas um visto de estudante - disse eu
irreflectidamente.
A sua expressão mudou:
-Estás a chamar-me mentiroso? Se eu não tivesse casado contigo, nunca
conseguirias arranjar um cartão verde.
- Vamos primeiro ao que é importante! Sabes muito bem que não tinhas nenhum
cartão verde quando nos encontrámos em casa de Martin Ching -insisti.
Subitamente enfureceu-se. Levantou-se e começou a gritar:
- Se desejas secretamente voltar a ver o Martin, porque é que não vais atrás
dele para Nova Iorque?
Para meu grande alívio, o telefone tocou nesse momento. A telefonista do
hospital não conseguia localizar o interno de serviço. Será que eu podia ir
imediatamente para atender a dois doentes que tinham acabado de dar entrada
depois de um acidente de carro? Balbuciei qualquer coisa acerca de uma
emergência e saí a correr.
Regressei quatro horas mais tarde. Por essa altura eu estava exausta. A minha
grande barriga pesava como um saco de pedras, já abaixo do
175
que antes tinha sido a minha cintura. Tinha os tornozelos tão inchados que até
tinha dificuldade em tirar os sapatos antes de acender a luz. Foi então que os
Página 102
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
meus olhos encontraram um cenário inacreditavelmente caótico. Num acesso de
fúria, Byron tinha puxado as gavetas e atirado para o chão da sala todo o seu
conteúdo. Por todo o lado havia roupa, lençóis, utensílios de cozinha, livros,
artigos de toilette e comida. Na cozinha, os pratos sujos tinham sido atirados
para cima da mesa e para o lava-louça. De Byron, nem rasto.
Depois de ter limpo a cozinha, fiz uma chávena de chá. De seguida comecei a
arrumar a desordem da sala, colocando mecanicamente cada coisa no seu lugar.
"Bem, quando acontece alguma tragédia", disse eu para mim própria, "todos nos
sentimos melhor se fizermos algo de positivo. Podia ter sido bem pior. Pelo
menos, não pegou fogo à casa."
Pelas 6 da manhã, quando a limpeza já ia a meio, ouviu-se uma chave na porta e
Byron entrou. Nessa altura eu estava de gatas. Deve ter havido alguma coisa na
minha estranha posição que o fez pensar, porque não me tocou. Passou para o
quarto, preparou uma maleta e saiu novamente a correr e sem dizer palavra.
Desapareceu durante cinco dias. Acreditei que o meu casamento tinha chegado ao
fim. O bebé deveria nascer dentro de duas semanas. Refugiei-me no meu trabalho
diário, criando a ilusão de ordem e normalidade. Era reconfortante sentir que os
meus pacientes precisavam de mim, embora o meu próprio mundo estivesse a cair
aos bocados.
Foi então que, inesperadamente, ele voltou. Uma tarde, quando regressei do
hospital por volta das 6 horas, encontrei-o a ver televisão e a mudar de canais,
como se nunca tivesse saído dali. Cozinhei o jantar e comemos em silêncio,
enquanto ele lia o Los Angeles Times. As dores de parto começaram às 6 da manhã
do dia 8 de Junho de 1966. Byron mostrou-se solícito. Levou-me ao hospital,
tirou o dia e sentou-se ao meu lado na sala de partos. Roger, o nosso filho,
nasceu nessa noite. Era lindo e saudável.
Centrei toda a minha ternura no nosso bebé. Corria para casa depois do trabalho
para lhe dar banho e o alimentar. Sentia-me uma mulher cheia de sorte por poder
dar-lhe todo o amor que me tinha faltado durante a infancia.
Embora o meu casamento fosse um desastre, por fora transmitíamos a imagem de uma
perfeita família sino-americana.
176
18
Zhong Gua De Gua Colherás o que semeares
O South Coast Plaza era um centro comercial regional ultramoderno que tinha
acabado de abrir as portas em Costa Mesa, a cerca de 24 quilómetros dali. Byron
e eu estávamos desejosos de lá ir. Fomos juntos no dia de Ano Novo de 1967 e
pretendíamos comprar um fato novo para Byron. É tradição na China que, no dia de
Ano Novo, a roupa nova simboliza um novo começo. Nessa mesma noite Byron tinha
convidado quatro colegas da Universidade de Taiwan e respectivas esposas para
jantar.
Estava uma manhã encantadora, soalheira, com uma pequena brisa e sem névoa. À
medida que avançávamos para sul no novo troço da auto-estrada de S. Diego, íamos
observando as montanhas com o topo coberto de neve estampadas num céu sem
nuvens. O ar era limpo e fresco. No rádio íamos ouvindo uma música ligeira.
Estávamos ambos com um humor estupendo. Byron arrumou o carro num grande parque
de estacionamento, fechou-o e deu-me as chaves para as guardar na minha bolsa.
Ele estava belíssimo, vestindo uma camisola de lã grossa sobre a camisa.
177
Dirigimo-nos à secção masculina da Sears Roebuck. Enquanto ele escolhia o fato,
dei um pulo à secção de bebés para escolher um brinquedo. Quando voltei, o
vendedor ajudava Byron a provar um casaco.
Página 103
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
- Penso que devia despir a camisola grossa antes de experimentar os casacos -
dizia o vendedor. - É já o quarto casaco que experimenta e não lhe vai assentar
bem porque não é este o seu tamanho. As mangas estão demasiadamente compridas,
claro, porque o tamanho é grande de mais.
Byron estava a olhar para o espelho e ajustava as mangas compridas. Ignorando o
vendedor, voltou-se para mim:
- Gostas da cor? O que é que achas? Nessa altura o vendedor voltou-se para mim:
- Está a ver, minha senhora, aqui .., até o colarinho assenta mal. É que este é
o número 44 e o número do senhor é o 40, 42 no máximo. Sem pensar, eu disse a
Byron:
- Acho que este senhor tem razão. Porque não tiras a camisola, como ele sugeriu,
e experimentas um 40?
Fixou-me. Depois, sem uma única palavra, despiu o casaco, virou-se bruscamente e
abandonou a sala.
Fiquei pendurada, a fazer figura de pateta até que decidi ir para o carro e lá
esperei durante duas horas. Telefonei à Sr.a Hsu, a ama de Roger, mas ela
disse-me que Byron ainda não tinha regressado. Era quase 1 hora. Voltei para
casa.
A Sr.a Hsu ajudou-me a decorar a casa e a preparar alguns pratos. 3 horas e nem
sinal de Byron. Comecei a ficar preocupada. Mal sabia os nomes dos seus amigos
de Taiwan, quanto mais das suas mulheres. O que é que eu havia de fazer se
chegassem todos e Byron ainda não estivesse em casa? Por fim, não consegui
aguentar mais. Telefonei aos convidados, um por um, disse-lhes que Byron tivera
uma intoxicação alimentar e cancelei o jantar.
Na sala devo ter passado pelas brasas, quando ouvi Byron meter a chave à porta.
Tinha vindo a pé do centro comercial. Caminhara três horas e meia.
- Onde estão os meus convidados? - perguntou ele, deitando um olhar à comida que
tínhamos preparado e que continuava na mesa da cozinha. Olhei para o meu
relógio; já passava das 6.
- Como não sabia que vinhas a caminho de casa - respondi eu, ensonada e
esfregando os olhos -, cancelei o jantar.
178
Quem é que te autorizou a fazer isso? Eles são meus convidados! E era a minha
festa! - explodiu ele.
Tião respondi, com medo de o provocar ainda mais. Levantei-me do sofá e fui para
a casa de banho.
No minuto seguinte ouvi o estrondo de uma porta a ser empurrada á força, mobília
a partir-se e o pranto aterrorizado do meu bebé. Corri para o seu quarto e vi
Byron com as mãos na cintura debruçado sobre o meu bebé de 6 meses, que gritava
no berço caído. Fui tomada de um acesso de fúria assassina. Levantei o meu
filho, que chorava, fui para o nosso quarto e tranquei a porta.
O que ouvi a seguir foi um estrondo enorme que vinha da cozinha. Depois a porta
da frente bateu e Byron partiu. O bebé não parava de chorar. Examinei-o com
cuidado e verifiquei com alívio que não havia mazelas graves. Na cozinha
encontrei uma Sr.a Hsu muito alarmada, a observar um monte de cacos e de comida
espalhada por todo o lado. Byron tinha simplesmente pegado numa ponta da mesa
cheia de pratos, virando tudo.
A Sr.a Hsu era uma viúva educada, oriunda da Pequim, na altura com cerca de 70
anos. Eu tinha-me afeiçoado a ela e sentia-me profundamente envergonhada por ela
ter presenciado uma cena daquelas.
Em silêncio, limpámos toda a confusão. Depois comemos as fitas habituais que
Página 104
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
tínhamos preparado para saudar o novo ano.
- Na China há muitos homens como o seu marido - disse a Sr.a Hsu. - Nos dias de
antigamente, os homens tinham por hábito maltratar as suas mulheres e agora ele
faz-lhe o mesmo a si. Quanto mais aturar, mais violento ele se há-de tornar. Se
não tivesse outro arroz para comer, tinha de engolir esta amargura. Mas o seu
caso é diferente, a senhora tem a sua profissão.
Byron não apareceu durante uma semana. No regresso colocou o cheque do ordenado
em cima da mesa depois do jantar, num gesto de paz. Fiquei comovida, mas não
conseguia afastar a repulsa que sentia.
Com pouca vontade de o enfrentar, escrevi-lhe um bilhete: "Por agora, por favor
dorme lá em cima no quarto de hóspedes. Vou deixar o teu cheque em cima da mesa.
Compreendo perfeitamente se quiseres gastá-lo separadamente."
Quando Byron percebeu que dessa vez eu não iria tentar uma reconciliação,
tornou-se mais agressivo. Para minha grande vergonha, mui
179
tas vezes ele descarregava a sua frustração sob a forma de violência física em
mim e no bebé. Sentia-me culpada e humilhada de cada vez que tinha de mentir aos
colegas acerca dos meus olhos negros ou de marcas na cara, não querendo trazer
os meus problemas domésticos a público. Suportei os seus golpes porque não podia
sequer pensar na vergonha que era o divórcio e na subsequente desonra que traria
à minha família.
Trabalhei mais do que nunca, fazendo turnos na sala de urgências sempre que
havia oportunidade. Byron e eu deixámos de fazer uma vida social comum. Aos
fins-de-semana ele jantava com os colegas ou os engenheiros da Universidade de
Taiwan e eu ia com o bebé e a Sr.a Hsu a parques ou a restaurantes chineses.
Depois de a Sr.° Hsu se ter reformado, tive imensa sorte em encontrar uma viúva
caucasiana com cerca de 50 anos, Ginger Morris, que passou a ser a ama de Roger.
Ginger veio para nossa casa em 1968 e ficou durante onze anos.
Completei o período de especialização em Junho de 1968 e foi também por essa
altura que consegui obter o meu cartão verde. Havia muitos empregos. Ao fazer
muitas substituições e oferecer-me para noites extra e chamadas de
fim-de-semana, adquiri rapidamente uma experiência enorme. Só o meu ordenado do
mês de Julho fora igual ao ordenado de um ano inteiro enquanto estivera a tirar
a especialidade. Byron e eu tínhamos vidas separadas, mas mantínhamos uma conta
conjunta, cujo saldo crescia a olhos vistos.
No final de 1968, Byron decidiu comprar um restaurante chinês em Costa Mesa. Uma
noite chegou a casa cedo com alguns papéis para eu assinar. Mostrou-se
encantador:
- Provavelmente não sabes - disse ele -, mas eu costumava trabalhar que nem um
escravo em vários restaurantes chineses de Nova Iorque. Agora que posso comprar
um, quero orientá-lo à minha maneira.
Encolhi os ombros e assinei.
Após a abertura do restaurante reparei que a nossa conta conjunta ia diminuindo
rapidamente, a fim de suportar o novo empreendimento. Contratou um jovem como
gerente, Lee Ming. Todos os dias, depois do trabalho, Byron ia directamente para
o restaurante, tomava lá todas as refeições e só voltava a casa depois das 11.
Os fins-de-semana eram particularmente movimentados e ele estava fora das 10 da
manhã à meia-noite.
O meu próprio horário de trabalho estava cada vez mais apertado. Eram os tempos
áureos da prática da medicina privada na América. A legislação sobre a
Medicare3ó tinha acabado de ser implementada. Apesar das apreensões dos meus
colegas, acabou por ser o caminho aberto para o fornecimento de fundos
Página 105
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
governamentais inesgotáveis destinados ao tratamento dos idosos americanos nos
quinze anos que se seguiram.
Manter um restaurante acabou por ser mais difícil do que Byron tinha imaginado.
Não passou muito tempo sem que estivesse metido num sem-número de desavenças com
o pessoal. Numa sexta-feira à noite o restaurante ficou sem ovos. Byron correu
ao mercado local e comprou dez embalagens. Durante a sua ausência, Lee Ming
ficou a orientar. Com a chegada de um grande grupo de clientes, Lee Ming
conseguiu sentar a maioria e pediu aos restantes que esperassem. Quando Byron
voltou, deu com uma sala cheia e meia dúzia de casais à espera. Foi então que
começou a andar de mesa em mesa, dizendo agressivamente àqueles que ainda
estavam na sobremesa e no café que se despachassem. Ignorando os protestos de
Lee, foi ao armazém, trouxe algumas mesas e cadeiras e conseguiu sentar toda a
gente. Os dois homens tiveram uma discussão violenta. Lee sabia que o
restaurante não se poderia manter sem ele e por isso fez uma oferta a Byron para
o comprar. A maioria do pessoal tinha vindo com Lee do restaurante anterior e
era-lhe leal. Entraram então numa campanha deliberada para sabotar Byron. O
cozinheiro entrava de baixa em dias críticos e com a casa cheia. Os pratos eram
salpicados com sal ou com molho picante, o que os tornava impossíveis de comer.
Encomendas-chave não eram entregues nas alturas devidas. As mesas não eram
levantadas e os pratos não eram lavados.
Um dia, em Junho de 1969, Byron deixou um recado na minha almofada. Dizia-me que
planeava vender o restaurante a um homem que tinha conhecido numa festa na noite
anterior e perguntava-me o que é que eu achava da ideia. Respondi "sim" por
baixo da mensagem e coloquei-a em cima da cama dele lá em cima, concluindo
tristemente que a nossa comunicação se reduzia a recados escritos por detrás de
velhos envelopes. Para meu grande espanto, o comprador que Byron tinha arranjado
era uma pessoa séria e o negócio fez-se realmente por
36 Esquema de assistência médica proporcionado pelo governo dos Estados Unidos,
e~clalmente aos idosos. (N. da T.)
180
venda a dinheiro pouco tempo depois. Segundo Byron, recuperamos a maior parte do
nosso investimento por causa das deduções nos impostos. Lee e a sua equipa
concordaram em ficar e mais tarde vim a saber que o negócio prosperara e fora
vendido por um preço alto alguns anos mais tarde.
Tínhamos nessa altura 20 000 dólares na nossa conta conjunta. Pela primeira vez
na vida eu tinha tanto dinheiro que não sabia o que havia de fazer com ele. Uma
tarde, no mês de Agosto, depois de ministrar sete anestesias, fui a um stand de
automóveis, comprei um Mercedes branco novinho em folha e registei-o em nome de
ambos.
Voltei para casa e coloquei os papéis do registo em cima da cama de Byron para
ele assinar. Assinou-os sem qualquer comentário, mas daí em diante nunca mais
contribuiu com nada para as despesas da casa.
No final de 1969 partiu de repente para um emprego em HongKong, deixando uma
nota de despedida no meu travesseiro, onde dizia que voltaria dentro de um ano.
Li aquela mensagem com alívio, feliz por poder canalizar toda a minha energia
para o meu filho e a minha carreira.
Durante a sua estada em Hong-Kong, Byron e o pai foram fazer uma visita de
cortesia aos meus pais no Ano Novo chinês, que é tradicionalmente a época da
reunião das famílias. A visita não foi um êxito. Levaram como presente um cesto
de fruta e chegaram quinze minutos antes da hora combinada. Niang queixou-se de
que "chegar cedo, como chegar atrasado, era um sinal de má educação. Em ambos os
casos os convidados incomodavam os anfitriões." Niang insistiu em falar inglês e
Página 106
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
mais tarde comentou "o seu fraco domínio da língua e o , sotaque terrível".
Quando os meus pais tiraram o celofane que envolvia o cesto de fruta,
descobriram que muitos dos frutos estavam podres, pelo que Niang concluiu que o
cesto estava largamente fora do prazo de validade e fora uma compra barata.
Byron regressou de Hong-Kong após uma ausência de sete meses. Retomou o trabalho
na Douglas Aircraft e voltámos a viver as nossas vidas separadamente sob o mesmo
tecto.
Em Outubro desse ano de 1970, o pai e Niang faziam uma viagem à volta do mundo e
decidiram fazer-nos uma visita. Nos últimos seis
" Oferta habitual na época do Ano Novo chinês. (1V. da T.)
182
anos eu tinha-lhes escondido toda a verdade acerca do meu casamento infeliz. As
minhas cartas limitavam-se a relatar acontecimentos importantes, êxitos
conseguidos e comentários sobre o clima da Califórnia. No dia em que chegaram,
Byron e eu fomos com Roger esperá-los ao aeroporto Niang insistiu em ficar em
Universal City, a cerca de 80 quilómetros de distância da nossa casa, num hotel
que pertencia a uns amigos ricos americanos, os Jules Stein. A bagagem de ambos
era composta por seis malas. Durante a longa viagem do aeroporto até ao hotel
tentei desesperadamente manter a conversa. Niang ainda usava o seu perfume de
sempre, um aroma que me era familiar desde a infância. Eu sabia que Byron não
conhecia o labirinto complicado de auto-estradas na zona Enquanto tentava
decifrar o mapa de estradas à luz difusa do automóvel, estava aterrorizada só de
pensar que poderia dar a Byron as indicações erradas e causar-lhe um acesso de
mau humor. Quando, por fim, chegámos, corri para a casa de banho e vomitei.
Dois dias mais tarde tirei uma folga para os levar a nossa casa para uma visita
de fim-de-semana. No átrio do hotel, o pai e Niang tiveram uma discussão. O pai
tinha dado ordens na portaria para que lhes fizessem as malas e colocassem toda
a bagagem no depósito das malas até ao seu regresso. Ao que parece, não tinha
falado com Niang sobre o assunto.
Ela contrariou estas ordens:
- Não há necessidade nenhuma de se fazer isso. A nossa roupa deve ficar
pendurada no guarda-fatos, em vez de ficar a amarrotar-se dentro das malas.
Deixa-a onde está! Pagamos o quarto enquanto estivermos fora.
O pai nada disse. Não havia qualquer dúvida sobre quem dava as ordens. Enquanto
percorremos silenciosamente os 80 quilómetros, o pai adormeceu. Parecia infeliz
e oprimido. Observei-o através do espelho retrovisor. Os ombros descaídos, a
cabeça pendente, as mãos cruzadas lembrava outros tempos, outros lugares.
Subitamente lembrei-me. Oh sim, o pai começara a parecer-se com Ye Ye nos seus
últimos anos.
Levei-os até ao hospital onde trabalhava, apresentei-os aos meus colegas e
visitámos um complexo de apartamentos que eu estava a pensar em adquirir. Eu
estava a investir pela primeira vez em propriedades rentáveis e fiquei encantada
quando percebi que o pai gostaria de participar no empreendimento. Niang estava
muito longe de se mostrar
183
satisfeita e conseguiu fazer que eu e o pai não tivéssemos qualquer momento a
sós.
Durante a visita ficaram no meu quarto. Byron continuou a dormir lá em cima e eu
fiquei no sofá da sala. Eles devem ter-se apercebido de que tínhamos problemas
no nosso casamento. Byron, entre_
tanto, estava irrepreensível. Marcou um grande jantar em honra dos meus pais num
Página 107
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
conhecido restaurante, o Delaney's, e apresentou_ -os aos colegas, esquecendo-se
de que também eu nunca os tinha visto na vida.
O pai, Niang e eu estávamos sozinhos quando eu os levei de volta ao seu hotel.
Uma parte de mim própria ansiava poder contar-lhes a triste história do meu
desastroso casamento. Outra parte, contudo desejava manter a fachada de uma
filha cheia de sucesso em todos os campos da sua vida: carreira, vida doméstica,
saúde, dinheiro, um filho encantador, um bonito marido. Senti repulsa de mim
mesma por alimentar esta mentira.
Durante algum tempo tagarelámos acerca de assuntos sem importância, até que o
pai perguntou inesperadamente:
- Diz-me, Adeline, quem é que pagou ontem à noite o jantar no Delaney's?
Esta pergunta simples, totalmente fora de contexto, apanhou-me de surpresa. Será
que Byron tinha usado o dinheiro da nossa conta conjunta ou da sua conta
pessoal? Não fazia a mínima ideia.
Entretanto, o pai continuava à espera de uma resposta. De certo modo na
defensiva, respondi:
- Na verdade não sei. Mas acha que tem importância'?
- Por vezes - aconselhou - é necessário prestar atenção ao dinheiro. Neste
momento a tua carreira está a começar a desenvolver-se. És jovem e saudável;
tens o mundo a teus pés. Se tiveres cuidado, tens a oportunidade de fazer uma
grande fortuna. Mas não será assim para sempre. Um dia ficarás velha e sem
forças. Certifica-te de que estás preparada quando esse dia chegar. Tens de
arranjar as coisas de maneira que possas controlar o teu próprio dinheiro. Não
confies em ninguém. As pessoas mudam e os seus sentimentos também.
Niang assentiu com a cabeça.
- O teu marido - perguntou ela de repente - está bem? O que eu quero dizer é se
ele não estará um pouco apanhado da cabeça
184
Fiquei atónita. Quantas vezes eu também já me tinha interrogado sobre a sanidade
mental de Byron. Sem querer dizer demasiado, respondi com outra pergunta:
E nós, não somos também um pouco doidos? Ele, por exemplo, deve pensar que eu
sou a tonta da família.
- E quanto ao bloco de apartamentos que nos foste mostrar há dois dias - disse o
pai -,aquele que estás a pensar comprar, em que nome ë que vai ficar o título de
propriedade? Quem é que vai ficar como proprietário legal?
- Dei o nome de ambos como compradores, pai - respondi eu sem mentir. - É assim
que se costuma fazer na América. Quando comprámos a nossa casa, também ficou
registada em nome dos dois.
- O que estás a fazer não é sensato e vai trazer-te complicações - avisou o pai.
- ~ ~ ~ ;~ 1~ Zhorag gua de gua (Colherás o que semeares). Quando Byron esteve
em Hong-Kong, ele e o pai disseram-nos que tinham comprado uma propriedade em
Kowloon. O teu nome também figura no título de propriedade?
Gaguejei, chocada:
- Penso que não, pai. Byron nunca me pediu que assinasse papéis nenhuns.
Dolorosamente, a conversa ia-se transformando numa sessão sobre o estado do meu
casamento.
- Então porque colocas o nome dele nos teus apartamentos quando ele não
contribuiu com um único centavo para os comprar? Não sejas ingénua, Adeline! Não
penses que podes pairar acima destes assuntos de dinheiro, porque não podes. Vai
consultar um bom advogado e certifica-te de que a propriedade fica só no teu
Página 108
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
nome. Percebeste bem?
Senti um nó na garganta e os olhos encheram-se-me de lágrimas. Apesar do meu
fingimento, tinham visto tudo. As directivas rígidas do pai eram apenas a
expressão do seu cuidado e preocupação. Estava a tentar proteger a filha. Acenei
com a cabeça e engoli as mágoas. Quando já estávamos perto do hotel, Niang
acrescentou:
- Há qualquer coisa no teu marido que não está bem. Nunca te esqueças: aconteça
o que acontecer, os teus pais serão sempre os teus pais. Ouve o teu pai e faz o
que ele te disse.
Foram estas as palavras mais amáveis que ela me dirigiu em toda a minha vida.
185
Durante o longo caminho de regresso reflecti sobre os conselhos que me tinham
dado. Apesar de não o terem feito explicitamente indirectamente tinham-me dado a
perceber que eu deveria divorciar_
-me. Decidi agir e fui imediatamente consultar um advogado. Eles tinham-me dado
permissão para o fazer.
Alguns dias mais tarde, munida de um documento legal preparado por um advogado
especializado em casos de divórcio, esperei que Byron chegasse a casa. Depois do
jantar e de ter deitado Roger, fui para a sala e sentei-me no sofá ao lado dele.
Juntos, assistimos a um jogo de boxe. Por fim arranjei coragem para lhe entregar
o documento, explicar o seu conteúdo e informá-lo de que era necessário assinar.
Byron deitou um olhar maldisposto ao papel e voltou ao jogo de boxe; eu sustinha
a respiração. Finalmente perguntou-me por que é que eu queria o divórcio e se
havia mais alguém na minha vida. Havia algo de desolador no timbre da sua voz
que tocou no meu coração. Comecei a chorar:
- Não, não há mais ninguém. É que eu acredito sinceramente que esta'é a melhor
solução para nós os três.
Pela primeira vez na vida vi-lhe a angústia nos olhos. Para o aliviar daquela
dor, acrescentei:
- Lamento profundamente. Apostámos ambos e perdemos ambos. Passaram-se algumas
semanas e Byron assinou, tal como lhe fora pedido. Depois disso fechou-se no
andar de cima e só descia à hora das refeições, que decidiu tomar sozinho. Tinha
tomado uma decisão, sentia-me estranhamente em paz e tinha esperança de que a
separação fosse amigável. Nesse Natal comprei-lhe um relógio de ouro embrulhado
num bonito papel e coloquei-lho em cima do travesseiro. No dia seguinte Ginger
fez-me sinal para que a seguisse até às traseiras da casa. No caixote do lixo
estava o meu presente ainda embrulhado e com o laçarote.
No dia a seguir ao de Natal, Byron foi transferido para Oceanside. O meu
advogado levou-lhe os papéis do divórcio antes de ele partir novamente para
Hong-Kong, em 1971. Ele disse que não entraria em litígio se eu lhe desse a
minha parte da casa de Fountain Valley e se eu desistisse do pedido de pensão e
sustento da criança. Concordei imediatamente e mudei-me para outra casa. Depois
do divórcio, Byron jamais escreveu ou voltou a ver o seu filho.
186
19
Xin Ru Si Hui Corações reduzidos a cinzas
Em 1965, no auge da Guerra do Vietname, o pai transferiu a fábrica de louça para
Port Harcourt, na Nigéria, obtendo a ajuda do governo nigeriano na forma de um
generoso subsídio e entrando também em parceria com o seu gerente, o Sr. Fong.
Era um empreendimento de monta, que incluía o transporte de inúmeras peças de
maquinaria e de centenas de trabalhadores especializados de Hong-Kong. Em Port
Página 109
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Harcourt construiu-se alojamento para o pessoal chinês, juntamente com os
edifícios administrativos e novos blocos da secção fabril.
Nesse mesmo ano Gregory desposara Matilda, uma rapariga chinesa, cujos pais
tinham feito parte da onda de gente de talento que se deslocara de Xangai para o
sul em 1949. Pareciam radiantes com a perspectiva de verem a filha casar-se na
nossa família. Na altura o pai era considerado um dos homens mais ricos de
Hong-Kong e Gregory era, aparentemente, o seu herdeiro.
~ pai fez de Gregory o gerente da nova fábrica na Nigéria. Pouco tempo depois do
casamento, os noivos mudaram-se para um bungalow
19
187
situado nas proximidades da fábrica em Port Harcourt. Longe da família e dos
amigos, privados de acontecimentos sociais e culturais, sem sequer se poderem
valer de uma mercearia decente, Gregory e Matilda encontraram uma vida difícil e
cheia de solidão. James continuou a trabalhar para o pai em Hong-Kong.
Em Outubro desse mesmo ano, a empresa Star Ferry decidiu aumen_ tar o preço dos
bilhetes da travessia de sete minutos através do Porto de Vitória, nessa altura
o único meio de ligação entre Hong-Kong e
Kowloon. Apesar de ser um bilhete barato e de nunca ter sofrido qualquer aumento
desde 1946, o facto deu origem a ocupações, manifestações e insurreições, que
resultaram num morto, além de vários feridos.
Uma movimentação violenta abalou a colónia. De repente todos os residentes de
Hong-Kong começaram a perguntar a si próprios o que aconteceria se os comunistas
marchassem sobre a cidade. Para onde iriam sem um passaporte válido? Quem os
aceitaria?
Na nossa família, o pai tinha obtido a cidadania britânica em 1955. Niang era
cidadã francesa desde que nascera. Lydia permanecia em Tianjin e, na opinião do
pai, "fora vencida pelos comunistas por
sua livre vontade". Susan e eu tínhamos tido direito à cidadania britânica
quando o pai se naturalizara, dado que na altura tínhamos ambas menos de 21
anos. Porém, os meus três irmãos continuavam a ser cidadãos chineses, o que
constituía para eles motivo de preocupação.
Por essa altura, em Port Harcourt, Matilda ficou grávida e Gregory escreveu ao
pai dizendo-lhe que eles talvez devessem voltar ao Canadá, onde tinham estudado,
e tentar obter a cidadania canadiana. Além disso, seria melhor se o bebé já lá
nascesse. Durante a sua ausência, Gregory sugeria que James assumisse a direcção
dos negócios na Nigéria.
Alguns dias mais tarde, Gregory reconsiderou. Hesitante entre o ódio que tinha
pelo estilo de vida que levava na Nigéria, o seu medo de não pertencer a país
nenhum e a sua preocupação de que James pudesse usurpar o seu lugar, escreveu
nova carta pedindo, afinal, para permanecer na Nigéria. O pai escreveu-lhe a
dizer que decidira substituí-lo por James.
E a carta prosseguia: "Os Fong chamaram-me a atenção para ° modo como tens
andado a esbanjar o dinheiro da companhia." Gregory
188
e Matilda eram acusados de gastarem dinheiro de mais em comida e bebidas e de
dormirem a sesta a seguir ao almoço, para fugirem ao calor atroz das tardes da
África ocidental. O pai terminava a sua carta exigindo uma explicação
satisfatória para aquelas extravagâncias.
Não havia na missiva uma única palavra de agradecimento por tudo o que Gregory
tinha conseguido, mas tão-somente um julgamento sem júri, o despedimento e o
Página 110
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
afastamento de todas as empresas do pai. Gregory fez o que lhe haviam mandado. A
injustiça, porém, tornou-o amargo e foi James quem se transformou no alvo de
todas as suas frustrações.
Em Abril de 1966, uma querela industrial em Hong-Kong conduziu a confrontações
entre os qué aderiram à greve e aqueles que não o fizeram. Decorriam os meses
que precederam a Revolução Cultural, que em breve iria agitar a China. O caos
neste país alastrou a HongKong e ao território português de Macau. Núcleos de
esquerda organizaram insurreições contra a polícia. Slogans anticolonialistas
liam-se por todo o lado. Altifalantes apregoavam propaganda pró-comunista. Foram
encontradas bombas nas ruas. Aos estrangeiros atiraram-se pedras e insultos. Em
Macau, as tropas portuguesas abriram fogo, matando oito pessoas.
Os residentes de Hong-Kong foram tomados de pânico quando lhes chegaram aos
ouvidos notícias sobre as acções dos Guardas Vermelhos e o seu reinado de terror
na China. A maior parte das pessoas convenceu-se de que a China estava prestes a
tomar Hong-Kong, expulsando os Britânicos. Toda a gente queria vender; já
ninguém comprava nada. As propriedades vendiam-se ao desbarato. Houve uma
corrida à bolsa e os preços caíram drasticamente.
Tal como aconteceu a muitos milhares dos mais influentes residentes de
Hong-Kong, os meus pais fugiram. Foram para Monte Carlo e aí compraram um
apartamento com vista para o Mediterrâneo. O pai optou por esperar e ver o que
aconteceria e transferiu a maioria da sua liquidez para bancos na Suíça;
conservou, todavia, as suas propriedades em Hong-Kong. Regressaram no início de
1967, depois da oferta do governador português para entregar Macau ter sido
dramaticamente recusada pela China. Este gesto deixou bem claro que tanto
HongKong como Macau permaneceriam, por enquanto, colónias administradas pelo
Ocidente. Os preços continuaram em baixa e a retoma só se iniciou no final do
ano de 1968.
189
No final da minha permanência em Hong-Kong, em 1964, James saía com Louise Lam
tendo em vista um compromisso sério. A sua boa figura, o passado da sua família
e a sua formação em Cambridge faziam de James um partido apetecível, muito
cobiçado pelas mães com filhas em idade de casar. Suspeitei logo desde o início
que Louise era especial para James, pois a própria Louise tivera Niang por
casamenteira.
Beverly, a mãe de Louise, era amiga de Niang. Tratava-se de uma amizade
desigual, pois era Niang quem dominava a amiga. Beverly era bonita, sabia estar
e sabia apagar-se. Com cinco filhas e um marido difícil, a vida era-lhe pesada.
Assim que Louise crescera o suficiente, Beverly delegara as suas
responsabilidades na filha mais velha. Enquanto Beverly se divertia com as
amigas, Louise organizava a vida diária das irmãs, preparava-lhes os almoços,
resolvia as questões entre elas e supervisionava os seus estudos.
Niang encorajara este romance, pois, para ela, melhor era que James casasse numa
família que não fosse demasiadamente pobre, para os Yens não perderem a face,
nem demasiadamente rica, para que Niang não perdesse o poder e o controlo.
Regularmente, uma vez por semana (nem mais nem menos), James saía com Louise.
Era sempre galante e gentil, mas nunca íntimo. Gregory contou certa vez em ar de
graça que na noite anterior tinha visto Louise a dançar com um belo acompanhante
num conhecido clube nocturno da cidade. James limitou-se a encolher os ombros.
Gregory acusou-o de indiferença fingida, mas o que eu penso é que ele não queria
tomar um compromisso antes de receber aprovação superior. Tenho a certeza de
que, se os nossos pais tivesse levantado quaisquer objecções, Louise teria sido
Página 111
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
afastada num segundo.
Segundo as instruções de Niang, James e Louise tiveram um casamento simples, na
América, em 1966, bem longe dos amigos e dos parceiros comerciais do pai, eles
próprios, à data, no limiar da bancarrota. Segundo Niang, a cerimónia seria
"muito mais íntima e muito mais romântica". Casaram-se em Maryland, em casa de
uns tios de Louise. James recebeu ordens para não convidar e nem sequer informar
nenhum dos seus irmãos.
Antes do casamento, o pai deu ordens a James para que comprasse um dos
apartamentos que acabara de construir em Happy Valley, independemente da
instabilidade da situação política e da baixa do mercado imobiliário. Durante
dois anos, depois de ter sido autorizado
190
a casar com Louise, James economizara o seu magro salário, dólar a dólar, a fim
de ter uma reserva quando assentasse na vida. Foi nesse momento que recebeu a
ordem de enterrar todas as suas economias num dos apartamentos do pai, a um
preço especulativo e que, na altura, ninguém estava interessado em pagar. Contra
a sua própria vontade, obedeceu. Quando Louise protestou que os Guardas
Vermelhos estavam praticamente às portas de Hong-Kong e que todo o dinheiro que
possuíam poderia ser confiscado de um momento para o outro, James respondeu
oSuatt le!" (Deixa lá!). Dos vinte e quatro apartamentos que o pai tinha
construído nesse ano, mais nenhum se vendeu.
Depois de Gregory e Matilda terem partido para o Canadá, James tornou-se o braço
direito do pai. Durante os primeiros dez anos do seu casamento trabalhou em Port
Harcourt, na Nigéria. Louise permaneceu em Hong-Kong com os três filhos do
casal. James era apenas autorizado a visitar a família duas vezes por ano: seis
semanas, do Natal ao Ano Novo chinês e oito semanas no Verão, para substituir o
pai, quando este e Niang iam para Monte Carlo para fugir ao calor húmido de
Hong-Kong.
Quase imediatamente a seguir ao casamento de James e Louise, Beverly e Niang
tiveram um desentendimento. A partir do momento em que viu a filha casada e em
segurança, Beverly tornou-se mais agressiva e deixou bem claro que desejava
nunca mais ser a dama de companhia de Niang. A amizade entre ambas deteriorou-se
rapidamente: passaram de um aceno de cabeça em eventos sociais para uma fase de
não reconhecimento mútuo.
Depois do despedimento de Gregory, James foi nomeado director-geral da fábrica
na Nigéria. Gregory recebeu 60 000 dólares americanos para se estabelecer no
Canadá. Com Matilda comprou uma casa em Vancouver e tiveram dois filhos. Matilda
adquiriu experiência no ramo da farmácia e Gregory conseguiu um lugar estável ao
serviço do governo canadiano como engenheiro ambiental. Contudo, sonhava ainda
poder voltar ao lar, acreditando erradamente que o pai o chamaria a Hong-Kong.
De tempos a tempos queixava-se de "usurpação" por parte de James ou de
"sabotagem" por parte de Niang. Os seus pedidos de empréstimos para negócios
eram invariavelmente recusados. Embora o pai tivesse um fraquinho pelo seu filho
mais velho e muito ansiasse pelas suas cartas e visitas, estava convencido de
que Gregory era fraco
e incapaz. Niang chamava-lhe hrr trr (cabeça baralhada), preguiçoso e
extravagante. À medida que os anos foram passando, os sonhos de Gregory de
montar o seu próprio negócio foram-se desvanecendo, Tornou-se cada vez mais
económico, colocando todas as suas esperanças nos seus dois filhos e limitando
as suas ambições a uma parte da herança que lhe caberia em sorte.
Após a Faculdade de Medicina, Edgar e eu não tivemos qualquer contacto durante
muitos anos. Edgar especializou-se em Cirurgia Geral. Na Grã-Bretanha era
Página 112
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
difícil para os asiáticos arranjarem clientela. Em 1969, depois de tirar o
FRCS3g, Edgar começou por ir viver para o Canadá. Os trabalhos bem pagos não
abundavam e as oportunidades eram limitadas. Decidiu então ir ter comigo à
Califórnia.
Em Outubro de 1970, durante a estada do pai e de Niang em Fountain Valley,
recebemos uma carta de Edgar, surpreendentemente educada, segundo a qual ele
tinha esperança de que eu lhe arranjasse um emprego no hospital onde eu estava a
trabalhar.
A minha primeira reacção foi de prazer e satisfação. Estava tão sequiosa do
afecto da minha família que até esta espécie de oferta de paz era bem vinda.
Mostrei ao pai a carta de Edgar.
- Deixa-me fazer-te esta pergunta - disse ele -, estás feliz no teu trabalho?
Dás-te bem com os teus colegas e achas que podes ter um futuro brilhante à tua
frente?
- Claro! Adoro o meu trabalho e consigo imaginar-me a fazer o mesmo até ao fim
dos meus dias.
- Nesse caso, Adeline - continuou o pai -, aconselho-te vivamente a não
responderes a esta carta. Todos sabemos o que Edgar sente por ti. Nada de bom te
pode vir daí. Quanto mais sucesso tiveres, mais ciúmes ele sentirá por ti. Tens
subido sozinha numa excelente carreira. Vai em frente. A América é um grande
país. Não há necessidade nenhuma de Edgar se vir enroscar no teu canto. Tem o
resto da América para construir o seu próprio ninho.
Olhei para Niang. Ela assentiu com um gesto de cabeça.
- Ouve sempre o teu pai, Adeline - disse ela. - Ele conhece-vos a todos como a
palma das suas mãos.
'g Abreviatura de Fellow of the Royal College of Surgeons (Membro do Real
Colégio de Cúurgiões). (N. da T.)
Segui o conselho do pai e não respondi à carta de Edgar. Não ia certamente
desobedecer ao meu pai só para agradar a Edgar. O meu silêncio foi interpretado
como um insulto deliberado e ele nunca mais me perdoou.
Edgar continuou a sua formação em St Louis, no Missuri, e casou-se com uma
rapariga americana de ascendência alemã, vinte anos mais nova do que ele. Depois
andou de cidade em cidade, na Califórnia, em busca do local ideal para abrir o
seu consultório. Durante uns tempos viveram na pequena cidade de San Joaquin
Valley. A maior parte da população era nascida e criada ali mesmo e eles
acabaram por achar a vida insuportável. Alguns anos mais tarde, Edgar vendeu o
consultório e mudou-se para Hong-Kong, enquanto a mulher acabava a faculdade na
América. Deste casamento infeliz não nasceram filhos.
Em Hong-Kong, Edgar trabalhava num hospital privado pertencente a missionários.
Embora fosse trabalhador e consciencioso, não possuía o talento nem a elegância
para ingressar nas fileiras dos "cirurgiões de sociedade". Além do mais, não
falava cantonense. A sua fluência em mandarim e inglês não lhe foi de grande
utilidade em Hong-Kong. As enfermeiras cochichavam nas suas costas que Edgar era
na verdade um dai luk yee san (um médico da China). Também era difícil entrar no
círculo apertado dos médicos locais, a maioria dos quais formada na Universidade
de Hong-Kong e com padrões de referência já desde os tempos de faculdade. Os
médicos vindos de fora eram vistos como competição indesejável.
Dois anos mais tarde, Edgar regressou aos Estados Unidos e comprou outro
consultório noutra pequena cidade de San Joaquin Valley. A sua jovem mulher
concluiu o curso e divorciaram-se. Em 1986, Edgar casou com a enfermeira do seu
próprio consultório, divorciada, branca, mãe de dois filhos. Tiveram três filhas
Página 113
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
e pareciam estar bem um para o outro.
Em 1964 Susan concluiu o curso na América e regressou a HongKong. Trabalhava
como professora em Maryknoll Convent School e vivia em casa dos meus pais. A
pressão para que casasse depressa se fez sentir. Susan era muito bonita e tinha
uma mão-cheia de admiradores. Niang fazia-lhe perguntas sobre cada passo, cada
carta, cada telefonema. Susan saía com um dentista havia cerca de três meses.
Niang perguntava constantemente se ele já a tinha pedido em casamento.
193
Susan não gostava deste tipo de interferência e não dizia nada, o que deixava a
mãe furiosa. Niang decidiu então averiguar por si própria, Assim que o dentista
voltou a ligar, Niang interceptou a chamada, Depois de lhe fazer ver que saía
com Susan havia três meses, Niang indagou educadamente quais eram as suas
intenções. Ao ouvir do dentista que ainda não tinha a certeza, Niang respondeu
arrogantemente que Susan tinha muitos pretendentes e que não podia "perder mais
tempo" enquanto ele continuava sem tomar qualquer decisão. Em suma, pediu-lhe
que não telefonasse mais vez nenhuma antes de ter as ideias perfeitamente
claras. Dizendo isto, desligou. Face à perspectiva de uma sogra daquela
envergadura, o dentista não voltou a ligar.
Susan, que tinha ouvido a conversa, ficou lívida. Seguiu-se uma terrível
discussão entre mãe e filha. Susan fez as malas e ameaçou sair de casa. Niang
meteu-se na cama e o pai corria de uma para a outra,
tentando acalmá-las. Uma noite, quinze dias mais tarde, Susan acordou com o
barulho dos passos do pai, que, sem conseguir dormir, andava na sala de um lado
para o outro. Na manhã seguinte, ao observar o rosto enrugado e ansioso do pai,
Susan vergou e pediu desculpa a Niang.
Esta aproximação foi apenas temporária, pois ambas sabiam que era só uma questão
de tempo até surgir um novo conflito. Pouco tempo depois Susan foi apresentada
por Gregory a Tony Liang, licenciado pelo Instituto de Tecnologia de
Massachusetts e filho de um prestigiado homem de negócios de Xangai que tinha
prosperado em Hong-Kong. Decidiram casar-se.
Por insistência de Niang, o casamento teve lugar em Honolulu, numa cerimónia
pequena e íntima. Nem o pai nem Niang estiveram presentes e, quanto a nós, nem
sequer fomos convidados. Susan não recebeu qualquer dote. Transformou-se na Sr.a
Tony Liang e levou consigo apenas duas malas de roupa usada. Também não levou
qualquerjóia. A mãe de Tony, uma senhora antiga e bondosa, ficou atónita ao ver
os escassos pertences de Susan. Passou os braços em volta de Susan e perguntou
amavelmente:
- Tem a certeza de que é a filha da Sr.a Joseph Yen e não a sua enteada?
E com isto tirou os anéis, as pulseiras e os colares e ofereceu-os a Susan.
Tony herdou não só os negócios do pai, como também a sua argúcia empresarial. O
jovem casal Liang subiu à ribalta da alta sociedade de
194
xong_Kong e o nome e a fotografia de Susan surgiam frequentemente no South
Chiraa Morning Post e no Hong-Kong Standard. Em público, Niang era
constantemente ultrapassada pela filha.
Niang tornou-se uma crítica acérrima de Susan: as jóias que usava eram demasiado
exuberantes, os vestidos demasiado decotados, a maquilhagem reles, o gosto
tremendo. Susan era uma demonstração de egoísmo e não tinha qualquer lealdade
para com os pais. No Dia da Mãe, Susan comprou-lhe uma caixa de bombons. A caixa
Página 114
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
era pequena de mais e os chocolates baratos de mais.
Susan começou a odiar as visitas a Niang. Tinha um casamento feliz e a família
do marido tinha orgulho nela. As visitas a casa tornaram-se cada vez mais raras,
até ficarem reduzidas aos jantares obrigatórios dos domingos à noite. Como eu e
Edgar estávamos na América, Gregory no Canadá e James na Nigéria, Susan tinha-se
transformado no único bode expiatório de Niang.
Shirley Gam, uma amiga de infância de Susan, veio de Nova Iorque a Hong-Kong
numa visita relâmpago. A única altura em que ambas tinham disponibilidade para
se encontrarem era num domingo à noite. Susan telefonou a Niang a pedir desculpa
por não poder ir ao jantar de domingo. Todavia, a conversa não correu bem. Susan
mudou de planos e ofereceu, em vez disso, um almoço de domingo a Shirley e às
colegas de escola. Nessa noite, pontualmente às 7, apareceu como sempre em
Magnolia Mansions.
Durante todo o jantar, Niang mostrou-se fria e cruel. Acusou Susan de ser
ingrata, desleal para com os pais, indigna de confiança e desfiou o rosário de
cada transgressão cometida pela filha desde a sua infância. Chamou-lhe orgulhosa
e leviana. Começou a chorar, lamentando a morte de Franklin, e desejou que
tivesse sido Susan a morrer. Ultrapassou muito o limite daquilo que Susan podia
suportar e ela explodiu:
- Franklin era um monstro sádico e ainda bem que morreu! Mesmo sendo minha mãe,
eu acho-a má e vingativa. A mãe não gosta de ninguém a não ser de si mesma. É
óbvio que não gosta de mim, nem nunca gostou!
Niang foi completamente apanhada de surpresa. Branca de fúria, esbofeteou Susan.
- Como é que te atreves a falar-me desse modo? Gastei rios de dinheiro contigo,
mandei-te estudar nas melhores escolas, até nos Estados Unidos! Susan, tu não és
nada! Não serias nada se não fosse eu! Como é que me podes dizer tais coisas
quando me deves tudo?!
195
Esbofeteou Susan outra vez, desta feita com quanta força tinha. Calmamente,
Susan pegou na carteira e tirou o livro de cheques. - Quanto é que lhe devo? -
perguntou ela. - Qualquer que seja
a soma, deixe-me passar-lhe um cheque. Lembre-se de que agora eu sou uma mulher
casada e de que eu própria tenho uma filha. Trate-me como uma pessoa adulta, não
como uma escrava que lhe deve tudo. Niang pôs-se a gritar:
- Sai, sai daqui e nunca mais cá voltes! Para mim estás morta! Morta!
O pai correu atrás de Susan pela porta da frente. Tinha um aspecto abatido e
cansado. No átrio, enquanto esperavam pelo elevador, disse tristemente:
- Susan, não era preciso teres feito uma cena daquelas. A tua mãe estava apenas
ofendida por não a teres convidado para o almoço com Shirley. Porque não o
fizeste? Ela sentiu-se excluída.
As lágrimas corriam pelo rosto inchado de Susan.
- O paizinho não compreende. É bom de mais para ela. A porta do elevador
fechava-se; Susan disse ainda:
- paizinho, eu telefono-lhe para a semana, para irmos almoçar. Encontraram-se
para almoçar na sala principal do elegante Hong-Kong Club, situado a curta
distância do escritório do pai em Swire House (chamada nessa época Union House).
Sentaram-se num canto calmo, longe de um conjunto que tocava músicas dos
Beatles. Instalaram-se em cadeiras baixas, de braços, em frente um do outro e
pediram as bebidas. O pai tinha um aspecto horrível. Tinha o olhar vazio e as
feições sem vivacidade alguma. Um dos lados do rosto estava ligeiramente
descaído devido a um ataque de paralisia de Bell, o que se notava mais em épocas
de maior stress. Quando pestanejava, apenas movia o olho são, parecendo uma
Página 115
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
máscara.
- Como têm corrido as coisas, paizinho? - perguntou Susan. - Niang voltou a
meter-se na cama?
Foi como se não tivesse ouvido nada. Como um autómato, levou a mão ao bolso do
casaco e tirou uma folha de papel de avião. Susan pôde distinguir a letra de
Niang, quase igual à sua própria caligrafia, através do papel transparente e
cor-de-rosa. O pai colocou os óculos e leu uma lista de regras e condições às
quais Susan tinha que aderir se quisesse continuar a ser um membro da família
Yen. Lentamente, abanou a cabeça.
196
O pai tirou os óculos. Numa voz cava e trémula de emoção, o pai perguntou-lhe se
a sua escolha era não mais voltar a ver os seus pais e ser por eles deserdada.
. Não me resta outra alternativa, paizinho. Tenha dó!
O pai deixou algum dinheiro em cima da mesa e levantou-se para
sair.
. paizinho, ainda não tocou no sumo e nem comeu nada. Não vai ficar com fome?
Olhando em frente, com um olhar vazio, o pai disse: - Darei o teu recado à tua
mãe.
Pestanejou nervosamente, num gesto espasmódico que partia o coração de Susan.
Enquanto se apressava escada abaixo, passando por todas as pessoas que esperavam
por uma mesa, pelos paquetes vestidos de branco e pelo respectivo chefe de
chapéu pontiagudo, abrindo atempadamente a porta de vidro irrepreensivelmente
brilhante, a banda tocou a popular canção dos Beatles Let it be.
Foi deste modo que a minha irmã Susan foi deserdada em 1973.
Nós, os quatro que estávamos a viver no estrangeiro, recebemos a seguinte
mensagem por correio registado.
Caros Gregory, Edgar, James e Adeline,
É nosso desejo informar os quatro de que Susan deixou de fazer parte da família
Yen. Não mais deverão falar-Ihe, escrever-Ihe ou de qualquer forma associar-se a
ela. Se desobedecerem às nossas instruções, também vocês serão deserdados.
Afectuosamente, Pai e Mãe
Esta carta não incluía Lydia, pois também ela tinha sido deserdada em 1951.
James comentou a propósito que parecia ter sido escrita por pais com .~ -~~
~é,,t~ xin rtr si fiai (corações reduzidos a cinzas), completamente desprovidos
de qualquer sentimento de humanidade.
Nenhum de nós enviou qualquer resposta. Cada um lidou com a situação à sua
maneira. Gregory e eu continuámos a ver Susan nas nossas visitas a Hong-Kong.
Edgar ignorou-a daí em diante.
197
Quando James regressou a casa para gozar a sua licença de Verão Susan voltou-se
para ele e para Louise em busca de consolo. As duas mulheres eram
aproximadamente da mesma idade e tinham muitos interesses em comum. James
encontrou-se então numa situação em que ninguém desejava encontrar-se. Não podia
dar-se ao luxo de cortar totalmente com os pais. Achava que Susan tinha sido
injustamente tratada, mas confessou que tanto ele como Louise eram obrigados
pelo menos a dar mostras de obediência às ordens de Niang. Ela tinha
categoricamente proibido James e Louise de se associarem a Susan. Em breve
cessariam todos os contactos. Mesmo naquelas alturas em que Niang se encontrava
em Monte Carlo, os convites de Susan eram recusados, os seus telefonemas e
cartas ficavam sem resposta. Se os dois casais se cruzavam por acaso em qualquer
Página 116
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
evento social, James e Louise praticavam "visão seleccionada" ou "não
visualização", uma prática corrente na alta sociedade de Hong-Kong. A única vez
em que entraram em contacto com Susan foi quando a filha mais velha se
candidatou a Maryknoll nove anos mais tarde, pois necessitavam de uma
recomendação de Susan, na qualidade de membro da direcção desta escola.
Gregory escondeu de James os seus encontros com Susan. Certa vez James
avistou-o, quando ia no Mercedes de Susan conduzido pelo motorista em Queen's
Road Central. Mais tarde, num encontro com Gregory, perguntou-lhe por Susan.
Todavia, Gregory negou ter estado com ela, temendo, sem dúvida, que James
contasse a história a Niang.
- Aquilo magoou-me muito - queixou-se-me James muito indignado. - Gregory não
confia em mim! O que me interessa a mim se ele vê ou não vê Susan? Isso são
coisas que só lhe dizem respeito a ele. Achará ele realmente que eu desceria tão
baixo, ao ponto de ir contar histórias nas suas costas só para obter os favores
de Niang? A opinião que Gregory faz a meu respeito será realmente tão baixa?
A verdade é que Gregory já não confiava em James. De tempos a tempos dizia-me:
-Tanto Susan como eu sentimos que James está diferente. Passou-se inteiramente
para o lado de Niang.
Por instinto, eu saltava de imediato em defesa do meu ? "~- San ge (Terceiro
Irmão Mais Velho):
- Acho que não, Gregory. Ele tem tão bom coração. É outro Ye Ye.
198
Não confies tanto nele. Não confies tanto em ninguém. Vais magoar-te.
Eu ria-me e abanava a cabeça.
. Um dia, quando Niang tiver desaparecido - dizia eu a Gregory - hás-de ver o
verdadeiro James, - .~ ~ yi chun bu ran (sem estar contaminado por um único grão
de poeira). Puro como a mais pula pétala do lírio.
Muitos dos amigos dos tempos da universidade de James tinham regressado a
Hong-Kong. A oferta de emprego abrangia principalmente engenheiros civis e
arquitectos, pois os arranha-céus germinavam, ocupando cada centímetro de espaço
livre na cidade. Os moradores de prédios situados nas encostas sobre o porto
sentiram o desconsolo de verem a excelente vista sobre a baía tapada por
estruturas mais novas e mais altas, construídas mais abaixo na encosta. Torres
de escritórios estavam a ser construídas em novos aterros. Abundavam os
empregos, especialmente para homens bilingues formados em universidades de
prestígio no Ocidente. Hong-Kong foi-se desenvolvendo gradualmente,
transformando-se num dos maiores centros do comércio mundial com a mais elevada
densidade populacional da história da humanidade: o número colossal de 1E5 000
pessoas por quilómetro quadrado. Muitos dos nossos colegas que tinham estudado
connosco em Inglaterra fundaram companhias que deram emprego a centenas, por
vezes a milhares de trabalhadores. Era espantoso poder ver a rápida expansão que
as suas empresas ganhavam. Produtos com a etiqueta "Made in HongKong" eram
exportados para os quatro cantos do mundo. E, à medida que tudo isto acontecia,
parecia inacreditável que James, um brilhante engenheiro civil formado em
Cambridge, continuasse a agir como um fantoche, executando cegamente as ordens
dos seus pais.
Niang interferia em todos os aspectos das suas vidas. Punha objecções às lições
de piano das crianças, ordenou a Louise que deixasse as aulas de pintura,
criticava a sua maneira de vestir e chegava a ralhar com ela por gastar tempo de
mais em visitas à sua própria mãe. Como Louise não ousava fazer frente a Niang,
Página 117
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
conseguia apenas arranjar pequenas desculpas, por vezes com a conivência dos
seus próprios filhos.
Niang aborrecia-se muitas vezes com Louise e chegava a ignorá-la meses a fio.
Nos jantares de domingo amesquinhava-a à frente de James, que parecia ficar
imperturbável perante os insultos sistemáticos
199
à sua própria mulher. O pai mantinha-se geralmente à parte e coibia-se de dar
opinião, excepto em assuntos financeiros.
James nunca recusava a comida oferecida por Niang, independen_ temente do que já
tivesse comido ou de gostar ou não do prato. Tornou-se o símbolo da sua
subserviência; era como um cesto do lixo, onde ia parar tudo o que Niang
despejava. Bastava que ela deitasse um olhar aos restos que ficavam nos pratos
das crianças, para que James os metesse na boca.
As crianças, normalmente vivas e bem-dispostas, ficavam encolhidas num silêncio
tímido. Niang odiava crianças barulhentas. Estas, por sua vez, detestavam ir a
casa da "Vovó", onde não lhes era permitido serem elas próprias.
Quando o pai adoeceu pela primeira vez, em 1976, James, então com 42 anos, foi
finalmente autorizado por Niang a deixar a Nigéria e a fixar a sua residência em
Hong-Kong durante todo o ano. Porém, todas as grandes decisões estavam sujeitas
à aprovação de Niang, que colhia os créditos de cada sucesso e culpava James por
cada fracasso.
Durante as minhas visitas frequentes a Hong-Kong, James e Louise contavam-me as
histórias da sua existência infeliz. Louise chegou a contar-me que já não
suportava os insultos e a interferência constante de Niang. Esta, por seu lado,
queixava-se amargamente de Louise, concluindo invariavelmente que era, ela
própria, infelizmente, a responsável pelo casamento dos dois.
Muitas vezes, ao longo dos anos, aconselhei James a levar a família para os
Estados Unidos e fazer lá a sua vida. Para mim era bem claro que a única
hipótese que tinham de ser felizes era fugirem da teia de Niang.
- Venham viver connosco para Huntington Beach - insistia eu. - Tu és tão
esperto, James. És talvez o membro mais esperto da nossa família. Podes fazer
qualquer coisa. Podíamos divertir-nos e entrar num negócio juntos; tudo dividido
a meias. Lá fora não é assim tão mau. Não há nada que seja tão mau na vida como
estar debaixo do pé de Niang. Estás farto de saber isso, James!
- Aqui é como se fôssemos prisioneiros - lamentava-se Louise. - Sinto-me como se
estivesse dentro de um colete-de-forças! Nem consigo respirar! Vamos embora com
ela, James. Estou pronta a fazer seja o que for, a viver seja onde for. Não
preciso de muita coisa.
- Bem sei - respondia James, baixando a cabeça e servindo-se uma vez mais de
uísque -, mas ainda não chegou a hora.
200
20
Fu Zhong Lin Jia Escamas e conchas dentro da barriga
Em Xangai, a tia Baba continuava a trabalhar no Women's Bank. Morava ainda na
casa da Avenida Joffre com Miss Chien e duas criadas. Miss Chien, a ama de
Franklin, tinha medo de ser despedida e fazia tudo para agradar à minha tia.
Levantava-se de madrugada para encerar o chão de parquet e bater as carpetas.
Convenceu a minha tia a dispensar uma das criadas e tomou a seu cargo as tarefas
menos agradáveis, tais como lavar as casas de banho e esfregar o fogão. Lavava e
engomava toda a roupa da minha tia e tratava da limpeza dos cortinados. Todas as
Página 118
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
noites, quando a minha tia voltava do trabalho, a casa brilhava e vinha também
encontrar uma saborosa refeição preparada por Miss Chien. À medida que o Inverno
se aproximava, ela tricotava casacos de malha, grossos e coloridos, para a minha
tia.
Depois de o pai ter vendido o Buick, em 1948, a garagem fora transformada num
armazém. Corriam tempos de incerteza e por isso a minha tia ia mantendo uma
reserva de artigos de primeira necessidade: sacos de arroz, garrafas de óleo,
vegetais secos, peixe salgado, molho de soja. Além
201
da comida, a garagem aramazenava ainda muitas caixas de paina e de lã
australiana. Dezenas de anos antes, Ye Ye tinha comprado umas acções numa
fábrica de seda de Xangai. Os anos passaram e essa fábrica, bem gerida,
prosperou, exportando paina e importando lã australiana. Em vez de receberem os
dividendos em dinheiro, os accionistas recebiam do excedente que havia em rolos
de paina e em meadas de lã. O algodão era da melhor qualidade, muito leve e
fofo, próprio para ser utilizado no enchimento de cobertas, agasalhos, robes e
casacos. Porém, em finais de 1951, o dono da fábrica fora perseguido durante _=_
~~ _~ F~ as campadas Sara , fáaa - waa , fàn (Os Três Antis - Os Cinco Antis). A
fábrica foi reorganizada e não houve mais distribuição de dividendos. A paina
tornou-se rara e valiosa.
~~ ~,~ _fi t,~ As campanhas San _ fan - wu . fan (Os Três Antis - Os Cinco
Antis) foram dois movimentos paralelos lançados pelo governo comunista em 1951.
Os Três Antis eram contra a corrupção, o desper
dício e a burocracia entre os próprios membros do Partido Comunista. Os cinco
antis eram dirigidos a elementos fora do Partido que tinham tirado proventos
através de suborno, fraude, roubo, fuga aos impostos e obtenção de informação
por meio de corrupção. Os dois grupos tinham frequentemente ligações um com o
outro.
Foi por esta altura que a minha tia foi transferida para uma dependência do
banco perto do Cinema Cathay, apenas a duas paragens d~ eléctrico da poaia de
casa. Muitos dos clientes eram residentes da zona que a conheciam pessoalmente,
sendo um deles um alfaiate chamado Yeh. Este alfaiate era dono de uma pequena
loja mesmo ao lado do banco e muitas vezes, quando o movimento era fraco,
aparecia para trocar dois dedos de conversa. Um dia pediu à tia Baba para
entregar um casaco acolchoado a alguém que vivia na mesma rua. A cliente era
Miss Chien.
Assim que olhou para o casaco, a minha tia percebeu logo que Miss Chien estava a
ser desonesta e que tinha tZ~ ~ , `~. fu zhong lin, jia (escamas e conchas
dentro da baariga). Como era seu costume, o alfaiate Yeh tinha colocado dentro
de um saco de papel, juntamente como o casaco, todo o algodão que não chegara a
utilizar, bem como outro material que lhe tinha sobejado. Paina de qualidade tão
boa como aquela não estava à venda em lado nenhum em Xangai. Miss Chien fora
roubá-la à garagem.
Nessa mesma tarde, a tia Baba pediu-lhe que devolvesse as chaves da casa e
descobriu que a antiga ama tinha também andado a surripiar comida e lã.
Comunicou o roubo ao pai e pediu-lhe que a despedisse,
202
acrescentando que não mais podia partilhar a mesma casa com uma pessoa tão
indigna de confiança.
Página 119
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
As ordens do pai fizeram-na retroceder: Miss Chien não deveria, sob pretexto
algum, ser demitida. Pelo contrár io, continuaria a viver na mesma casa com a
minha tia, recebendo o seu salário e a gratificação habitual por altura do Ano
Novo chinês. A minha tia não precisava de se preocupar com os artigos
"desaparecidos". A família Yen podia dar-se ao luxo de arcar com a perda. O pai
tinha obviamente uma agenda secreta.
A tia Baba e Miss Chien deixaram de se falar. Miss Chien continuou a tricotar
com a lã que tinha acumulado, vendendo camisolas descaradamente e chegando mesmo
a aceitar encomendas. O fornecimento abundante de lã importada era o alvo das
invejas de toda a vizinhança. À noite, durante as reuniões infindáveis para se
discutir as campanhas dos Três Antis e dos Cinco Antis, havia muitos olhos na
sua hu kou (unidade residencial) que se fixaram nas agulhas imparáveis de Miss
Chien, enquanto os defensores do Partido discursavam sobre corrupção e suborno.
Ela nunca mais se dirigiu à minha tia como Miss Yen, mas falava dela como "essa
personagem do andar de cima". Começou a receber os membros da sua própria
família na sala do rés-do-chão e a combinar a ementa com a criada, Ah Song.
Tagarelava com os vizinhos e cochichava que os seus senhores em Hong-Kong a
tinham encarregado de "guardar e de lhes enviar relatórios" sobre a minha tia,
dando a entender a existência de um desequilíbrio mental, uma relação imoral ou
pior ainda.
Para a tia Baba o ambiente em casa tornou-se insuportável. Ah Song começou
também a ter laivos das atitudes insolentes de Miss Chien. Uma manhã em que Ah
Song estava a ser particularmente impertinente, a tia Baba despediu-a ali mesmo,
num acesso de fúria. A criada foi chorar para junto de Miss Chien, mas não havia
nada que pudessem fazer.
A tia Baba contratou uma nova criada, Ah Yee, que passou a trabalhar só para
ela. Montou uma cozinha no quarto livre do 2.° andar e passou a tomar as suas
refeições em privado. O despedimento de Ah Song pareceu, de alguma forma,
desencorajar a arrogância de Miss Chien. Seguiu-se um período de tréguas
tacitamente aceites. A anterior hostilidade declarada de Miss Chien foi
substituída por uma fria atitude de cortesia. Continuou a enviar os seus
"relatórios secretos de evolução semanal" ao pai.
No Inverno de 1951, durante uma auditoria de rotina ao Women's Bank da tia-avó,
foi feito um inventário de todos os bens guardados no depósito
203
gigantesco que o banco possuía. No decorrer deste processo, a tia Baba recebeu
uma carta proveniente da Autoridade de Auditoria Bancária dirigida a Wang
Jie-xiang, a minha avó, falecida em Tianjin, em 1943,
Nos anos 40, por diversas razões, o pai comprava frequentemente artigos e
propriedades, colocando-os no nome de solteira de sua mãe entretanto falecida,
Wang Jie-xiang. No início deve ter sentido necessidade de usar este nome, pois
era perseguido pelos Japoneses. No entanto, o pai depressa descobriu que havia
vantagens em registar um "fantasma" como dono dos seus bens tangíveis. Era
impossível processar, contactar, ameaçar, subornar ou raptar um fantasma. Esta
prática era comum durante os anos 40, tempos sem lei.
O terceiro tio, o terceiro e também o irmão mais novo da minha falecida mãe,
tinha sido aprendiz do meu pai durante a adolescência. O pai deu-lhe o nome
inglês de Frederick e deixou-o como encarregado .
dos seus negócios em Xangai após a sua partida para Hong-Kong. Inicialmente,
depois da entrada do governo comunista, os negócios decorreram sem alterações.
Durante o ano de 1949, provavelmente seguindo ordens do pai, que previa um
aumento do preço de certos bens, o tio Frederick adquiriu algumas centenas de
Página 120
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
caixas de cera branca de abelhas em nome de Wang Jie-xiang a armazenou-as no
depósito do banco da tia-avó. Todavia, o preço da cera continuou a baixar.
Resolvido a não vender enquanto o preço estivesse em baixa, decidiu esperar.
Dois anos mais tarde, com a deterioração do ambiente político, o meu tio
acompanhou o meu irmão James a Hong-Kong, transportando consigo a cera de
abelhas que ainda não tinha vendido. Dois meses depois de ter recebido o aviso
da Autoridade de Auditoria Bancária, a tia Baba foi chamada pelo administrador
da sua dan wei (unidade de trabalho). O registo numa dan wei era absolutamente
obrigatório. A esmagadora maioria dos trabalhadores permanecia na mesma dan wei
durante toda a sua vida, pois a transferência para uma outra dmt wei era
extremamente difícil. Durante a reunião, a minha tia ficou surpreendida, visto
que o chefe da sua hu kou (unidade residencial) também se encontrava presente.
As htt kous foram inicialmente formadas dentro do espírito dos comités de
vizinhos, ou seja, associações onde se faziam reuniões e se veiculavam as
queixas existentes. Contudo, por volta de 1951, estas associações tornaram-se
poderosos instrumentos do controlo governamental. Com o passar do tempo, o
registo numa hu kott tornou-se também obrigatório e, quando o racio- ,
namento foi instituído, apenas os residentes registados tinham direito a cupões
de alimentos. Entre a dan wei e a hu kott não havia habitante da cidade de
Xangai que não estivesse registado. Os dois comités interferiam em todos os
aspectos da vida privada dos cidadãos. Nada passava despercebido.
Perguntaram à minha tia quem era Wang Jie-xiang e onde podia ser contactada.
Quiseram ainda saber por que razão não estava registada. Embora o comité a
tratasse de forma cordial, a minha tia pôde perceber pelo grosso arquivador que
se encontrava à sua frente que o assunto era sério. Fez uma narrativa verdadeira
dos factos, tal como os conhecia, e recebeu o aviso de que voltasse uma semana
mais tarde com mais pormenores. Consultou rapidamente a tia-avó, que, por sua
vez, também se encontrava a braços com a sua própria luta. A minha tia foi
encaminhada para o Sr. Nee, um colega de trabalho, cuja tarefa era lidar com
agências governamentais a tempo inteiro. Alto, agradável e bem parecido, ele e a
mulher tornaram-se amigos da minha tia e o Sr. Nee compareceu a muitos
interrogatórios como seu representante. À medida que o caso ia evoluindo, tinham
reuniões frequentes, com o objectivo de discutir os últimos desenvolvimentos. As
horas a que o Sr. Nee chegava e partia eram descaradamente registadas por Miss
Chien e devidamente comunicadas aos meus pais. Após vinte e oito meses de uma
investigação penosa, o Sr. Nee conseguiu com sucesso resolver o caso da cera das
abelhas. Todas as culpas foram atribuídas ao meu tio Frederick, que, como
convinha, estava ausente. A cera foi confiscada e a minha tia repreendida, mas
não castigada. Não foi este um feito de somenos importância, pois ninguém
desejava assumir responsabilidades e o Sr. Nee tinha sido enviado de uns
departamentos para os outros como uma bola de pingue-pongue. Alturas houve em
que se sentiu totalmente incompreendido, "como uma galinha a falar para um
pato".
O passatempo preferido da tia Baba - jogar mah.jong-foi considerado decadente.
Uma das suas amigas tinha uma cave e, no início, o grupo reunia-se lá para jogar
secretamente mah jortg silencioso. Para isso, a base de cada uma das peças do
jogo fora cuidadosamente forrada. Para evitar serem descobertos, colocavam um
vigia à porta, mas o risco que corriam era grande e a coragem limitada. Mudaram
rapidamente para o Jogo de brídege, pois os jogos de cartas continuavam a ser
autorizados.
Campanha atrás de campanha, a situação no Women's Bank começou a piorar. O
Movimento de Reforma do Pensamento era contra os
Página 121
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
204
205
proprietários de terras no campo. Depois vieram Os Três Antis (contra os membros
do Partido) e Os Cinco Antis (contra os capitalistas, tais como comerciantes e
banqueiros).
Em 1952 tiveram início as reuniões de luta contra a minha tia-avó. Estas
reuniões tinham como objectivo "ajudá-la a interpretar a sua desobediência no
passado" e "dar-lhe a oportunidade de corrigir os seus erros". Muitos dos seus
anteriores empregados denunciaram_na. Alguns fizeram-no para salvarem a própria
pele. O veredicto de "culpada" era uma conclusão inevitável. A minha tia-avó foi
multada numa grande quantia em dinheiro em 1953 e forçada a demitir-se de todas
as suas funções no Women's Bank, mas autorizada a continuar a viver no seu
luxuoso apartamento do 6.° andar. Os privilégios que tinha foram-lhe sendo
retirados um a um. Tiraram-lhe o motorista, depois o carro, a cozinheira e até o
direito a usar o elevador para subir até ao 6.° andar. Nessa altura começou a
viver como um eremita sob prisão domiciliária. Subir os cinco lanços de escadas
causava-lhe grandes dores no peito. Mesmo assim, quase todos os dias era
obrigada a subi-los para tomar parte nas reuniões organizadas pela sua har kotr
e pela sua antiga dan wei.
Com o passar dos anos seguiram-se outras campanhas, todas elas com o mesmo
padrão: primeiro surgia grande propaganda nos jornais, emissões radiofónicas e
cartazes de parede a explicar qual o grupo visado. Depois seguiam-se marchas com
tambores e gongos, música militar e o som de microfones transmitindo discursos
inspiradores. Vinha mais tarde um sem-número de reuniões obrigatórias, durante
as quais familiares, amigos, colegas de trabalho e vizinhos eram encorajados a
espiar e a transmitirem informações uns sobre os outros, por vezes de forma
anónima, deixando papéis em caixas de recepção.
A tia Baba tinha sempre evitado as luzes da ribalta e não gostava de ~~ ~~ chis
. feng tou (estar na primeira linha). Durante este tipo de reuniões escolhia
sempre um canto despercebido: uma solteirona de meia-idade, modesta, inofensiva
e pacata que alinhava com a opinião da maioria e não tinha ponto de vista
próprio. Nos tempos em que a tia-avó estava a ser atacada, a tia Baba não disse
uma única palavra em sua defesa, pois sabia que era essa a única maneira de
sobreviver.
Em 1955 chegou o Movimento Cooperativo Rural, durante o qual os camponeses ricos
foram denunciados. Pouco depois seguiu-se a Campanha do Extermínio dos
Contra-Revolucionários Escondidos. Todas as
206
indústrias e negócios ainda em poder de privados foram nacionalizados. Os
proprietários que "mereciam" recebiam anualmente, e durante dez anos, 7 % do
valor líquido do seu negócio como forma de indemnização. O problema era decidir
quem "merecia." ou não.
Em 1956 a camppanha intitulada "Deixem Desabrochar Cem Flores" encorajava toda a
gente a transmitir as suas críticas ao governo. A este movimento se chamava
"liberdade de expressão". Um ano mais tarde, durante a campanha antidireitista,
aqueles que tinham falado mais alto contra o regime no ano anterior receberam o
castigo por se terem "atrevido a deitar cá para fora os seus gases intestinais".
As vítimas foram na sua maioria professores, artistas e cientistas.
1958 foi o ano do "Grande Salto em Frente", o ano em que Mao Zedong decidiu
aumentar a produção de aço da China e, da noite para o dia, transformar o país
numa potência industrial ao nível internacional. A campanha foi um fracasso e
Página 122
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
conduziu ao colapso económico e a uma onda de fome generalizada. Arroz, óleo,
açúcar, tgfü39 e carne eram racionados, o mesmo acontecendo com tecidos, lã para
tricotar, enchimento de algodão e mantas acolchoadas. O governo exercia um
controlo apertado. A minha tia foi subitamente informada de que todas as
propriedades do pai que se encontravam alugadas em Xangai seriam confiscadas. Há
muito que ela esperava que isto acontecesse e ficou quase agradecida quando as
autoridades a aliviaram dessa responsabilidade.
A tia Baba tinha frequentemente trabalho que lhe era destinado em sucursais do
banco longe de casa. Tratava-se de um meio de controlo para evitar os subornos.
Para chegar ao seu local de trabalho tinha de apanhar vários autocarros
superlotados. Tomava as refeições sozinha e ia a reuniões das dan wei, onde não
conhecia ninguém. Sentia dores de estômago e começou a vomitar sangue. Pela
"porta do cavalo" - pois pela porta da frente era completamente impossível -
conseguiu ser vista por um importante cirurgião no seu dia de folga.
Diagnosticou-lhe uma úlcera no duodeno, receitou-lhe uns medicamentos muito
eficazes e aconselhou-a a reformar-se.
Ela recuperou, mas ficou muito abalada. Devido à pobreza e à fome, o governo
começou a encorajar a venda de terrenos para sepulturas aos chineses que se
encontravam fora do país. A tia Baba escreveu ao pai,
" Produto derivado da soja, com aspecto semelhante ao do queijo fresco, rico em
proteínas e utilizado em diversos pratos da cozinha chinesa. (N. da T.)
207
contou-lhe da sua reforma e pediu-lhe que lhe enviasse 400 yuan por mês para seu
sustento. Pedia-lhe ainda que comprasse uma parcela de terreno num cemitério
budista nos arredores de Beijing, onde o .1èng shari (vento e água, ou
geomancia) era auspicioso.
O pai concordou e enviou-lhe de Hong-Kong as cinzas de Ye ye para que fossem
enterradas ao lado das da avó. A minha tia viajou para Tianjin, por forma a
tratar do funeral. Esta visita deu-lhe a oportunidade de visitar Lydia, a minha
irmã mais velha, pela primeira vez desde a libertação.
Em 1958, Lydia e a família ainda estavam a viver na casa que o pai tinha no n.°
40 da Rua Shandong. Samuel, o marido, era professor na Universidade de Tianjin e
Lydia estava em casa a tratar dos dois filhos do casal.
A tia Lao Lao, de 72 anos, também vivia com eles. Esta irmã da mãe de Niang, já
falecida, era uma solteirona simpática e simples, que não sabia ler nem
escrever. Não tinha os pés ligados e falava mandarim com um forte sotaque de
Shandong, o que a tornava quase incompreensível.
A tia Baba só precisou de alguns dias para transferir o corpo da minha avó para
a sua nova sepultura, mas teve tempo suficiente para perceber que Lydia era uma
mulher profundamente infeliz. A minha irmã mais velha tinha um profundo
ressentimento por saber que todos os seus irmãos estavam a estudar na
universidade em Inglaterra, enquanto ela estava atolada num casamento sem amor e
na China comunista. Descarregava a sua frustração em Samuel e atirava-lhe
insultos. Ele nunca respondia, mas saía a correr para fora de casa a meio de uma
qualquer tirada em que Lydia ainda gritava "Ovo de tartaruga!", "Odeio-te!" ou
"Espero que morras!".
Ainda pior era a forma como tratavam a tia Lao Lao. Juntamente com uma criada,
fazia praticamente todo o trabalho de casa, correndo de uma tarefa para outra e
não se atrevendo a dizer fosse o que fosse. Sofria de artrite, dores no peito e
falta de vista. Lydia implicava com ela sempre que lhe apetecia, dando murros na
mesa e insultando-a aos gritos. Em várias ocasiões chegou mesmo a bater-lhe.
Página 123
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Samuel ainda ajudava a mulher, fazendo comentários como "O que é que uma
Prosperi faz em casa da família Yen?", esquecendo-se que ele próprio era tão Yen
como a tia Lao Lao.
208
A minha tia tentou chamar Lydia à razão, mas sem êxito, pois ela vivia corroída
pela inveja e pela amargura. Suplicou à minha tia que escrevesse ao pai em seu
nome, pedindo-lhe ajuda. Quando regressou a Xangai, a minha tia escreveu a carta
prometida, mas nunca recebeu qualquer resposta.
Entre 1959 e 1966 os anos decorreram com relativa calma para a tia Baba. A
escassez de alimentos foi-se desvanecendo e por volta de 1963 já a maioria dos
produtos estava acessível. As reuniões políticas tornaram-se menos frequentes.
De manhã já não precisava de correr para apanhar um lugar no autócarro; podia
ficar na cama e deliciar-se com o People's Daily e o seu chá quente. Muitos dos
seus amigos também se reformaram e havia um grupo que se juntava regularmente
para jogar brídege. Chegaram mesmo a juntar os cartões de racionamento para
poderem voltar a fazer jantares.
No Verão de 1966, grupos de Guardas Vermelhos varriam as ruas de Xangai à
procura de sarilhos. Alteravam os nomes das ruas: a Bund passou a chamar-se Rua
da Revolução; partiam montras e janelas; pilhavam casas; assaltavam quem ia na
rua. A tia Baba já não se atrevia a sair. As habituais marchas, desfiles e
propaganda nos jornais eram indícios de que uma nova purga política estava já em
marcha. Na rua da tia Baba havia cartazes denunciando os "inimigos da Revolução
Cultural". As reuniões das hc~ koz~ eram agitadas e chegavam a durar todo o dia
e toda a noite. No início as vítimas foram essencialmente professores e membros
da alta hierarquia do Partido.
No dia 14 de Setembro de 1966, vinte e cinco Guardas Vermelhos bateram
estrondosamente à porta de casa da tia Baba. Eram adolescentes, rapazes e
raparigas, acompanhados por alguns homens na casa dos 20. Algumas das crianças
frequentavam escolas secundárias das redondezas e conheciam a minha tia.
Ordenaram a todos que se ajoelhassem no chão. Miss Chinn batia com a cabeça no
chão e dizia que era grande amiga da minha tia. Esbofetearam-na com tanta força,
que dois dos seus dentes saltaram. Gritaram-lhe que admitisse o seu verdadeiro
estatuto. Quando ela respondeu "criada", gozaram-na e chamaram-lhe mentirosa,
mas deixaram de lhe bater. Voltaram-se, em vez disso, para a minha tia, a dona
da casa. Partiram-lhe a dentadura, puxaram-lhe os cabelos, bateram-lhe com os
cintos e deram-lhe pontapés até cair; em seguida esmurraram-lhe as costas já
feridas.
209
Fizeram uma fogueira no quintal, queimaram todos os livros, álbuns de
fotografias e quadros até tudo ficar reduzido a um monte de cinza na relva do
jardim, molhada por um súbito aguaceiro de Setembro, Obrigaram-na a tirar a
chave que trazia ao pescoço e a abrir o cofre, mas ficaram furiosos ao
descobrirem que não havia dinheiro nem jóias, mas somente as cartas de Ye Ye e
as minhas fichas de avaliação e recomendações da escola primária. Antes de
saírem, partiram as antiguidades, reviraram a mobília, rasgaram as cartas que a
tia Baba guardava como um tesouro, bem como as minhas fichas de avaliação,
partiram objectos, despedaçaram as cortinas, romperam os colchões e cortaram a
roupa. Miss Chinn recebeu ordens para sair no prazo de vinte e quatro horas.
- Mas para onde hei-de eu ir? - lamentava-se ela. - Vivo aqui há vinte e dois
anos, muitos antes de a maior parte de vocês ter nascido. Não tenho direito a
pelo menos um quarto até morrer?
- Prà merda! Fora daqui velha estúpida e ignorante! De onde é que és?
Página 124
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
- Nasci em Hangzhou.
- Então volta para Hangzhou amanhã! Não és de Xangai nem desta casa!
Mais tarde, e pela primeira vez em quinze anos, Miss Çhien falou para a tia Baba
num tom educado. Disse-lhe que lamentava toda aquela selvageria, ajudou-a a
ligar a cabeça que tinha sido ferida com vidros e pediu que lhe emprestasse umas
malas. A minha tia deu-lhe uma velha mala e despediram-se amigavelmente.
Uma semana depois a tia Baba recebeu ordem para se mudar para um quarto na casa
de um vizinho que ficava situada mesmo por detrás do seu jardim. Entretanto
houve outras famílias que se mudaram para a casa onde vivia e onde foi proibida
de entrar. A sua conta bancária foi congelada e as cartas do pai não lhe eram
entregues. O governo dava-lhe 15 yuan por mês para despesas de sobrevivência e
ordenaram-lhe que usasse uma faixa preta sobre o peito com a inscrição ~ %• ~~
hei litt lei (seis categorias negras) em caracteres bem visíveis. Era agora uma
"negra" desprezível. Os negros eram os capitalistas, proprietários de terras,
direitistas, camponeses ricos, contra-revolucionários e criminosos. Faziam os
piores trabalhos e eram sempre os últimos a serem atendidos nas filas para
comida ou outras, especialmente quando os produtos eram escassos. Alguns eram
abandonados ao sofrimento e por
pezes à morte, estendidos no chão dos hospitais à espera de cuidados médicos.
Todas as escolas foram encerradas. Autocarros e comboios estavam repletos de
Guardas Vermelhos que viajavam para libertarem toda a China. Não havia
distribuição de correio e os telefones particulares foram desligados. Os templos
budistas e as igrejas cristãs foram destruídos. Muitos dos que residiam nas
cidades foram enviados para o campo, a fim de "reformarem o seu pensamento
através do trabalho á~~duo e de aprenderem com os camponeses".
Embora tivesse sido rotulada como "negra", a minha tia não foi mandada embora.
Ela pensava que Xangai tinha enlouquecido, mas atribuía todas as culpas à
Revolução. Acreditava que Mao Zedong, Zhou Enlai e o resto dos da ren (os
grandes) executavam um plano misterioso para libertarem a China.
As condições não melhoraram até ao Inverno de 1971. Corriam rumores de que Lin
Biao, ministro da Defesa e aparentemente o sucessor de Mao Zedong, tinha morrido
em Outubro. Lin era um general comunista cujos exércitos tinham participado na
libertação da Manchúria, Beijing e Tianjin. Chegou a ser o número dois durante a
Revolução Cultural, altura em que muitas das altas patentes do Partido Comunista
foram eliminadas. A versão oficial da sua morte conta que Lin tentara assassinar
Mao, mas falhara. Tentara então escapar para a Rússia com a mulher e o filho,
mas o avião despenhara-se sobre a Mongólia. Depois da morte de Lin, as reuniões
políticas na hu kou da tia Baba tornal-asn-se visivelmente menos agitadas. Uma
noite, todos receberam ordens para rasgar e destruir as duas primeiras páginas
do Pegttetto Livro Vermelho, de Mao, que continham o prefácio escrito por Lin
Biao.
Após o reconhecimento oficial da China pelo presidente Nixon, a vida do chinês
comum melhorou substancialmente. 1972 foi um ano de viragem: houve mais
alimentos e menos reuniões políticas; as contas bancárias foram descongeladas e
o subsídio mensal do pai voltou a chegar a Xangai.
A tia Baba escreveu ao pai, suplicando-lhe que enviasse uma mensalidade à
tia-avó. Como todos os outros, ela tinha sido expulsa do seu luxuoso apartamento
pelos Guardas Vermelhos em 1966. Os seus depósitos bancários foram
permanentemente congelados e a sua transferência proibida. Mal conseguindo
sobreviver com os quinze yuan mensais atribuídos pelo governo, ela tinha
frequentemente frio e fome.
210
Página 125
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Depois de receber a carta da tia Baba, o pai passou a enviar regula._ mente
dinheiro à tia-avó até à sua morte por pneumonia, três anos mais tarde.
Em 1974, à campanha "Criticar Lin Biao" seguiu-se uma outra: "Criticar
Confúcio". Confúcio era alcunha do primeiro-ministro Zhou Enlai, inventada pela
Sr.a Mao. A hu kou da minha tia tentou avivar o entusiasmo durante as reuniões.
Contudo, e apesar de a participação ser obrigatória, muitos faltavam alegando
motivos de doença. As pessoas estavam pura e simplesmente cansadas destas
campanhas intermináveis.
Em Abril de 1976 houve uma manifestação de massas na Praça de Tiananmen para
assinalar a morte de Zhou Enlai. Era um sinal de apoio a Deng Xiaoping (o
protegido de Zhou Enlai) e de crítica camuflada à Sr.a Mao. Polícias e soldados
armados usaram bastões para dispersar a multidão. Milhares de manifestantes
desarmados foram espancados, alguns ficaram feridos e outros foram presos. Foi
este o primeiro incidente de Tiananmen.
Em Julho de 1976, um violento tremor de terra que atingiu 8,0 na escala de
Richter abalou Tangshan, uma cidade industrial nas proximidades de Tianjin.
Pereceu mais de um milhão de pessoas. Na China dizia-se por toda a parte que o
tremor de terra era um sinal do fim de Mao Zedong. Mao morreu dois meses depois.
A 8 de Outubro de 1976, na rua onde a tia Baba morava, foi convocada uma reunião
da hu koa~ para depois do jantar. O objectivo era anunciar a prisão do "Bando
dos Quatro", uma designação inventada por Mao Zédong para descrever a Sr.a Mao e
três dos seus seguidores de Xangai -Yao Wenyuan, Zhang Chunqiao e Wang Hongwen
-, reunidos para liderarem a Revolução Cultural. O seu poder fôra absoluto, pois
haviam contado com o apoio de Mao até à morte deste.
No dia seguinte realizou-se uma parada comemorativa da queda da Sr.a Mao. A
minha tia não participou alegando motivos de saúde. Deng Xiaoping foi
reabilitado e nomeado vice-primeiro-ministro em 1977. A China começou a abrir as
portas ao mundo exterior e deu-se início à era das reformas.
212
21
Tian Zuo Zhi He União paradisíaca
Depois de ter obtido o divórcio em 1971, a minha carreira continuou a evoluir
bem. Depois das previsões sombrias de médicos mais velhos, segundo as quais, num
espaço de cinco anos, a medicina privada seria uma coisa do passado, a
legislação sobre a Medicare veio ainda trazer, sem se esperar, uma espécie de
bonança para médicos como eu. Como anestesista, os meus honorários baseavam-se
numa tabela publicada pela Sociedade Americana de Anestesiologia. Três anos
depois de eu começar a exercer, os honorários tinham subido 20 %. Contudo, a
maior parte dos pacientes não tinha consciência deste grande aumento, porque a
despesa não era paga do seu bolso. As despesas relacionadas com a saúde eram
automaticamente reembolsadas pela Medicare, bem como por outras seguradoras. Na
realidade, a discussão dos honorários com o médico era considerada um sinal de
falta de educação.
No início dos anos 70, a discriminação racial e sexual fazia-se ainda sentir
claramente. A camaradagem que existia na sala de operações
213
desvanecia-se quando os procedimentos cirúrgicos estavam terminados. Entre os
meus colegas médicos havia uma espécie de hierar_ quia implícita na disposição
dos lugares para o almoço. No topo da mesa sentavam-se os homens brancos,
"produtores primários" em prestigiadas especialidades cirúrgicas. Seguiam-se os
internos. Depois vinham os de clínica geral. No fundo da lista situavam-se os
Página 126
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
médicos baseados nos hospitais: radiologistas, patologistas e anestesistas,
especialmente os que não eram brancos e que, como eu, eram mulheres. A nossa
falta de popularidade devia-se particularmente ao facto de não termos os nossos
próprios pacientes, mas, como aves de rapina, vivermos dos pacientes dos outros.
Além disso, a nossa base era o hospital, não tínhamos consultório alugado e nem
dispúnhamos de pessoal de enfermagem, originando, por conseguinte, custos
baixos: Uma vez que o número de admissões que um médico fazia no hospital e o
seu padrão de referência determinavam o grau de atenção e respeito que lhe era
concedido pelos colegas, os nossos pares podiam seguramente ignorar-nos e
centrar-se naqueles que se encontravam em posição de lhes enviar pacientes
susceptíveis de lhes aumentarem a renda. Esta atitude partia do conselho de
administração e fazia-se sentir até aos funcionários.
Nos anos 60 e princípio dos anos 70, as médicas eram ainda raras. Tornei-me
amiga de Alcenith Crawford, uma oftalmologista divorciada. Trinta anos mais
velha do que eu, Alcenith tomou-me sob a sua protecção. Numa época em que era
difícil até para as mulheres mais privilegiadas estudarem Medicina, Alcenith
fizera a faculdade recorrendo a eínpréstimos e trabalhos por fora. O quadro de
pessoal do West Anaheim Community Hospital, onde eu trabalhava, tinha apenas
mais duas médicas. Elas costumavam sentar-se no refeitório dos médicos e
queixár-se dos respectivos maridos. Na verdade, todas nós tínhamos uma vida
privada atribulada.
Alcenith dava esta explicação:
- Nós, médicas, temos casamentos infelizes porque, na nossa cabeça, somos as
estrelas da nossa família. Sobrevivemos às agruras da Faculdade de Medicina e
esperamos encontrar a nossa recompensa em casa. Temos de lutar contra tudo e
contra todos e, quando, finalmente, conseguimos acabar o curso, poucas são
aquelas que continuam tímidas. É preciso um homem muito especial para aguentar
isso. Os homens gostam de se sentir importantes e de ser inequivocamente os
214
chefes da família. Um homem não gosta de esperar pela sua mulher enquanto ela
opera para salvar uma vida. O que ele espera é que ela e os filhos se lhe
agarrem ao pescoço. Todavia, nós habituámo-nos a dar ordens nos hospitais e a
que nos obedeçam. Uma vez chegadas a casa, é difícil adaptarmo-nos. Além disso,
na maior parte das vezes ganhamos mais do que os nossos maridos. É preciso um
homem generoso e excepcional que nos perdoe tudo isto.
O sucesso que fiz na minha carreira não me compensava pelo desmoronar do meu
casamento. Na minha cabeça, o divórcio equivalia a um fracasso escuro e
profundo. Em frente dos meus colegas mantinha a fachada da médica
auto-suficiente, mas cá por dentro sentia um vazio doloroso. A minha amiga
Alcenith compreendia o vazio da minha vida quando me via a funcionar como uma
máquina bem oleada à qual faltava uma peça. Decidiu arranjar-me o que me faltava
e preparou-se um encontro surpresa. Ele era o professor Robert Mah, um
sino-americano amigo do filho e que ensinava na UCLA. Estava combinado
encontravmo-nos em frente da School of Public Health.
Estávamos em 1972 e a tarde era de Primavera, daquelas que são típicas da
Califórnia do Sul: quente, soalheira e enevoada. Embora tivesse seguido as
indicações pormenorizadas que o professor me dera ao telefone, perdi-me. Quando
perguntei ao funcionário de uma estação de serviço qual era a melhor maneira de
entrar na UCLA, ele respondeu-me que era estudando!
Quando cheguei, com trinta minutos de atraso, vi-o de pé nas escadas a observar
a estrada. Fiquei entusiasmada ao reparar que era bastante bonito e alto, de
Página 127
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
cabelo negro, espesso e brilhante e ar de rapazito. Sorriu e disse:
- Chegou ao sítio certo. Eu sou o Bob.
Bob nascera na Califórnia e nunca pusera os pés na China. Nascidos na aldeia de
Toishan, província de Guangdong, os pais haviam emigrado para S. Francisco em
1906. Sem estudos e sem preparação especial para um trabalho específico,
ganharam o seu sustento num restaurante em Fresno, que era na época uma pequena
comunidade rural com cerca de 30 000 habitantes no vale de San Joaquin.
Convertidos ao catolicismo, tiveram oito filhos (seis rapazes e duas raparigas),
sendo Bob o mais novo. Quando ele tinha 3 anos, o pai morrera de ataque
cardíaco, deixando à mulher muito pouco dinheiro e muitos filhos, o mais velho
dos quais tinha então 17 anos. Com tantas bocas para alimentar, a
215
mãe de Bob não teve outra alternativa senão recorrer à assistência social.
Quando Pearl Harbour foi atacado, o pequeno Bob, então com 9 anos, foi obrigado
a usar um distintivo onde se podia ler "Eu sou chinês", para que se diferençasse
dos seus colegas japoneses e evitar que fosse rotulado como "inimigo". Mesmo
dessa idade sentira_se confuso e zangado por ver que as crianças japonesas eram
insultadas e internadas. A sua própria família também teve de combater os
preconceitos, para além da pobreza. As crianças tornaram-se extrema_ mente leais
umas para com as outras e para com a mãe. Ela encorajava_ -os a participarem no
esforço de guerra e a serem bons americanos. Dois dos irmãos mais velhos de Bob
alistaram-se. Ed tinha então 19 anos e deixara a Universidade de Stanford para
servir o seu país, tendo sido enviado para a Alemanha. Isolado num abrigo com
nove soldados feridos, resistiu sozinho a um contra-ataque alemão. Pela bravura
e sucesso heróico foi-lhe atribuída a Cruz de Bronze.
Outro dos irmãos de Bob, Earl, não foi aceite no exército por ter uma mão
deformada. Cursou engenharia em Fresno State College ao mesmo tempo que
trabalhava a tempo inteiro em folhas de metal nas Rohr Industries. Assim que se
tornou economicamente exequível, a mãe pediu a Earl que escrevesse uma carta à
assistência social cancelando os benefícios que até então recebiam. Como
complemento dos seus parcos ganhos, a mãe plantava legumes chineses no quintal
da casa de West Fresno, doando parte dos lucros para o esforço de guerra. A sua
saúde era frágil e, pouco depois de a guerra ter acabado, sofreu um forte ataque
que a deixou deficiente e afásica.
Os filhos mais velhos tomaram então, em conjunto, a responsabilidade de olhar
pela mãe e pelos dois irmãos mais novos. A irmã mais velha de Bob ficou em casa
para poder cuidar permanentemente da mãe. A outra irmã, que ainda não tinha
terminado o liceu, ofereceu-se para fazer os trabalhos domésticos e para
cozinhar. Além de frequentar a faculdade e de ter um emprego exigente como
engenheiro, Earl ainda arranjou tempo para cuidar de Bob, corrigir os seus
trabalhos de casa, arranjar-lhe os almoços e acordá-lo para que não perdesse o
autocarro da escola. Os outros juntavam os cheques dos seus ordenados para
pagarem as despesas da casa e a faculdade de Bob. Com esta ajuda, Bob
licenciou-se em Microbiologia e tornou-se professor. Não pude evitar a
comparação entre este amor e apoio mútuo e as discórdias e
216
invejas que grassavam na minha própria família. Enquanto a família tinha ajudado
Bob a realizar as suas ambições, eu sentia que tudo o que tinha o havia
conseguido apesar da minha família. Enquanto ele tinha tido amor em abundância,
eu estava sequiosa de afecto.
Quando Bob me convidou para jantar em sua casa, percebi que há já dois dias que
andava a preparar aquela refeição. Cortara e lavara legumes frescos; tirara
Página 128
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
todos os pedacinhos de gordura da carne de porco e da galinha, deixando-os a
marinar em taças separadas. Pensara especialmente bem na escolha dos vinhos que
acompanhariam cada um dos pratos. Enquanto partilhávamos esta refeição preparada
com tanto amor, atrevi-me a ter esperança de que estivéssemos destinados um ao
outro. Será que os deuses iriam finalmente sorrir para mim? Seria esta a ~.4~.z,
ú tian za~o zhi he (união paradisíaca) cantada pelos poetas T'ang?
Nessa noite contei-lhe a minha infância. Foi como se uma torrente tivesse
irrompido sem eu conseguir parar. Ele estava sentado e segurava-me na mão e eu
falei de toda a minha dor e de toda a minha ansiedade. Eu era como um ser
estranho, marginalizado, ansiando ser aceite; o patinho feio ansiando
transformar-se num bonito cisne; a filha chinesa desprezada e indesejada,
obcecada pela empresa de fazer que, de algum modo, os meus pais sentissem
orgulho de mim. Um dia, certamente, se eu tentasse com todas as minhas forças
ajudá-los na adversidade, eles haveriam de me amar.
Como eu estava a trabalhar o mais possível e aceitava chamadas de emergência
três vezes em cada quatro noites, não dispunha de muito tempo para ver Bob,
excepto nas raras noites em que estava de folga. Muitas vezes o meu bip apitava
nos momentos mais inoportunos, chamando-me à sala de operações, como se uma
corda me puxasse. As operações prolongavam-se frequentemente noite adentro, mas,
qualquer que fosse a hora a que regressasse a casa, encontrava o jantar feito e
Bob à minha espera. Em toda a minha vida nunca encontrei ninguém que se
importasse tanto comigo nem nunca me senti tão acarinhada. Ele era bom não só
para mim, mas para o meu filho Roger, acompanhando-o aos jogos de basquetebol e
participando em actividades da escola mesmo quando eu me encontrava nas
urgências. Mas, acima de tudo, ele dava-me a estabilidade pela qual eu sempre
tinha ansiado. Bob foi o único homem que conheci que professava o seu amor, não
através de
217
palavras, mas através de todos os seus actos. No final do ano, pelo seu
aniversário, enviei-lhe um cartão. "O dia em que nasceste foi o dia mais feliz
da minha vida. O teu amor protege-me dos piores golpes da vida. Junto de ti
sinto-me completamente segura. Obrigada por me apoiares sempre."
Com alguma apreensão, escrevi aos meus pais, pedindo-lhes permissão para me
casar com Bob. Juntamente com o seu castão de Natal anual vinha uma pequena
mensagem: "Ainda bem que arranjaste tempo
para nos escreveres antes do teu casamento", escrevia o pai, relembrando-me a
minha negligência da primeira vez. "Bob parece ser um bom homem e com uma boa
profissão. Contudo, a que propósito é que, com essa idade, ainda não se casou?
Terá tendências homossexuais? Assegura-te de que todas as tuas propriedades
permanecem no teu nome."
Casámo-nos pouco tempo depois. A nossa filha Ann nasceu dois anos mais tarde.
Por fim senti que tinha chegado a casa, mas passou-se muito tempo primeiro que
me convencesse de que ninguém me ia tirar a minha felicidade.
Mudámo-nos para uma nova casa em Huntington Beach, situada num lote em frente ao
mar. A porta da frente abria-se para uma escadaria em arco, suspensa sobre um
átrio cheio de bambus, palmeiras, filodendros, piteiras e até um gi~iseng. Era
uma casa grande, cheia de luz e espaço e foi amor à primeira vista.
218
22
Si Mian Chu Ge Cercados por todos os lados
Página 129
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Durante os anos 60 e no início dos anos 70, os negócios do pai foram sempre
imensamente lucrativos. Em Hong-Kong construiu vários blocos de apartamentos e
algumas vivendas grandes, que vendeu com êxito. O seu edifício industrial em Cha
Wan, construído em terreno adquirido a baixos preços durante as sublevações de
1966 em HongKong, estava totalmente alugado. Possuía ainda duas toneladas de
ouro, que estavam depositadas em segurança em bancos na Suíça.
No Verão de 1976, o pai e Niang foram, como habitualmente, para Monte Carlo,
procurando fugir do calor. Nas lições particulares de francës, o pai participava
cada vez menos, recusando-se a repetir as frases da professora, não obstante o
entusiasmo que esta tentava transmitir-lhe. As sessões transformaram-se em
dispendiosas conversas diárias entre Niang e a professora, com o pai de olhar
vazio posto no Beginner's French, Part I.
Em eventos sociais, o pai foi-se tornando cada vez mais retraído. Durante o
baile anual da Cruz Vermelha, oferecido pela princesa Grace,
219
recusou-se a dançar com quem quer que fosse. Em casa ficava sentado horas a fio
a ler, ou a fingir que lia, o Wall Street Journal e o International Herald
Tribune. Eram mais as vezes em que dormitava do que aquelas em que não o fazia.
Certa vez, quando conduzia pelas estradas do Mónaco cheias de curvas, raspou a
parte lateral do seu Mercedes. Quando Niang lhe fez perguntas sobre o assunto, o
pai respondeu que aquela montanha nunca lá tinha estado. Enquanto ela discursava
intempestivamente sobre a sua hu ttt (confusão), descobriu com surpresa que ele
adormecera.
Quando regressou a Hong-Kong, deixou de pintar o cabelo. Assinava o nome com
dificuldade e treinava-se durante horas seguidas com a porta trancada,
procurando manter a mão firme. Depois da sua morte eu descobri uma pilha de
blocos de apontamentos escondidos por detrás de umas toalhas. Todas as páginas
estavam diligentemente preenchidas com a sua assinatura. À medida que ia lendo o
seu nome uma e outra vez, apercebia-me perfeitamente do espanto e da vergonha
que deveria ter sentido.
De manhã levantava-se cada vez mais cedo. Nos dias em que ia jogar golfe chamava
o motorista às 4 da manhã para que o levasse ao clube, em Stanley. Quando lá
chegavam, era ainda noite cerrada e dormitavam no carro, enquanto esperavam que
os portões se abrissem, às 6 horas.
No início do 1977 recebi uma carta de Niang. Um conceituado médico de Hong-Kong
tinha aconselhado o pai a deslocar-se à Universidade de Stanford para exames
médicos. Convidei-os a ficarem em nossa casa. Embora estivesse seriamente
preocupada com o pai, fiquei muito feliz por terem recorrido a mim para os
ajudar.
E foi deste modo que, com receio e emoção, eu e Bob tirámos o dia para os irmos
esperar ao aeroporto. Ao ver o pai com um aspecto tão frágil e enfraquecido,
chorei. O seu cabelo embranquecera completamente. O olhar era vazio e
assustadiço. Cumprimentámo-nos formalmente, com um aperto de mão.
Bob tinha conhecido os meus pais três anos antes, numa visita de dois dias a
Monte Carlo, e ficou chocado com a mudança drástica na aparência de ambos.
Embora impecavelmente vestida com um casaco de caxemira lilás e usando diamantes
e pérolas, Niang aparentava ter muito mais idade do que os seus 56 anos. Ginger,
a nossa governanta, abriu-nos a porta da frente quando chegámos. Contra um fundo
de
220
grandes bambus na entrada cheia de frescura, estavam os nossos dois filhos,
Roger e Ann, que correram para nós, ansiosos por cumprimentarem os avós.
Página 130
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
O pai atravessou a ombreira, parou e soltou um pequeno suspiro de prazer perante
a vista maravilhosa sobre o porto, através de uma entrada elevada, brilhante e
repleta de plantas. A expressão de orgulho do pai deve ter sido de mais para
Niang, que exclamou num tom irritado:
- Joseph, entra e vai-te sentar! Para onde é que estas a olhar? É só a casa de
Adeline!
Bob e eu deslocámo-nos de avião a S. Francisco para os acompanhar. Alugámos um
carro e registámo-nos no hotel Holiday Inn, antes de nos dirigirmos ao centro
médico onde o pai deu entrada. Fez diversos testes, inclusivamente um TAC.
Depois levaram-nos para o consultório do professor Hanbury, onde o pai tinha uma
entrevista pessoal com o médico. O pai conseguiu responder a todas as perguntas
de rotina até ao momento em que o professor Hanbury lhe pediu que subtraísse 7
de 100.
Fez-se uma curta pausa.
Finalmente, e com grande alívio meu, o pai respondeu: - Noventa e três.
- Por favor, continue. Quanto é 93 menos 7`?
O pai pensou, pensou. Começou a suar. O rosto tornou-se vermelho. Não conseguia
dar a resposta. Já em desespero de causa, explodiu: - Porque é tudo tão difícil
para mim'? Eu costumava resolver estes problemas facilmente. Agora é-me
impossível. Porquê, doutor, porquê`?
Senti-lhe o medo e desejei de todo o coração poder fazer alguma coisa que o
sossegasse. Olhei para Niang, de pé, com uma expressão aborrecida, e tentei
passar-lhe o braço em redor dos ombros, mas ela afastou-se, franzindo
ligeiramente o sobrolho.
- Lamento, mas isso faz parte do processo de envelhecimento - respondeu o
professor Hanbury. - Vamos deixar as matemáticas de lado, Sr. Yen. Quantos
filhos tem?
Novamente o pai hesitou. Tentou responder por duas vezes, mas não foi capaz. As
lágrimas caíram-me pela cara abaixo. Foi de mais para mim.
Bob segurou-me na mão e levou-me lá para fora. Limpou-me as lágrimas com um
lenço de papel.
221
- Não chores. Afinal aquela pergunta sobre os filhos era difícil. O teu pobre
pai já não sabe, provavelmente, o que há-de pensar, Conta as filhas deserdadas
ou não? E, além disso, as que ontem foram deserdadas poderão voltar a cair nas
suas boas graças amanhã.
O pai submeteu-se a novos testes e ficou no centro durante alguns dias. O
professor Hanbury informar-nos-ia do diagnóstico final pelo correio.
Colocámo-nos na bicha do sector administrativo para saldar as
contas e obter os papéis da alta. Por ser cidadão britânico de HongKong, sem
seguro médico válido para a América, fomos informados de que deveríamos pagar
imediatamente a quantia total. Ao receber a factura, pude perceber que Niang
ficara perplexa com o montante. Não estava habituada às tarifas médicas
americanas. Suavemente, retirei-lhe os papéis das mãos e eu própria passei um
cheque na totalidade da soma, prometendo-lhe que todas as despesas médicas do
pai na América ficariam a meu cargo e de Bob.
No Aeroporto de S. Francisco, enquanto tomávamos qualquer coisa no coffee shop à
espera do voo para Los Angeles, Niang levantou-se para comprar uns postais. O
pai sentia-se aliviado, quase bem-disposto, com o final de todos os exames
médicos. Para lhe afastar os pensamentos da doença comecei a fazer-lhe perguntas
sobre o seu passado e quis saber qual fora a melhor época de toda a sua vida.
Pensou durante alguns momentos.
Página 131
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
- Foi quando eu era ainda um jovem em Tianjin e vocês eram todos muito
pequenitos. Tinha acabado de fundar a minha própria companhia e o negócio ia
bem. Comecei a exportar nozes e andava de campo em campo para inspeccionar a
qualidade dos fiutos. Costumava começar esta volta de madrugada e, quando dava
por isso, já tinha escurecido e estava na hora de voltar a correr para casa para
o jantar. Era então que percebia que estava esfomeado e que tinha passado todo o
dia sem comer. Esse foi para mim um tempo muito feliz.
- Conte-me coisas sobre a Adeline! - pediu Bob. - Como era ela quando era
pequenina?
- Era um ratinho de biblioteca e excelente na escola - respondeu o pai com um
sorriso. - Habituei-me de tal forma a que fosse a primeira da aula que, quando
ficava em segundo lugar, censurava-a por isso.
O seu peito enchia-se de orgulho e os meus olhos estavam marejados.
222
Lembro-me de uma vez em que ela ganhou um concurso de escrita que era aberto a
todas as escolas do mundo em língua veicular inglesa...
A voz tornou-se-lhe mais fraca. Vi-lhe no rosto uma expressão de desconforto e o
seu olhar fixou-se para além de nós. Bob e eu voltámonos e vimos Niang de pé,
mesmo atrás de mim. Estávamos tão absortos que ninguém a tinha ouvido
aproximar-se.
- Bem! - disse ela secamente. - De que é que estão a falar? Nenhum de nós sabia
o que responder, pois não queríamos ser desagradáveis.
- Joseph! - exclamóu ela, irritada. - O que é que foi? O gato comeu-te a língua?
O pai permaneceu mudo e quedo, mas subitamente pareceu diminuir. Enquanto
estávamos na fila de embarque, veio-me à ideia que, com o passar dos anos, o
silêncio se tinha tornado a sua couraça.
De regresso a casa, em Huntington Beach, o estado de espírito do pai melhorou o
suficiente para que sugerisse que convidássemos James para passar umas pequenas
férias connosco.
Pouco depois da chegada do meu irmão recebemos finalmente a carta do professor
Hanbury. Niang já tinha sido prevenida pelo médico em Hong-Kong e os seus
receios acabaram por se confirmar, quase como um anticlímace. O pai sofria de
atrofia generalizada do cérebro, devido à doença de Alzheimer. O TAC indicava
que o seu cérebro já só apresentava dois terços do tamanho normal. Era um
diagnóstico sem esperança, que previa a deterioração progressiva e irreversível
das suas faculdades mentais, até ao ponto de se tornar num ser vegetal. Em tudo
o resto estava saudável e não sofreria dores físicas. Não havia tratamento
conhecido, apenas medidas de apoio.
Sentia boca a secar à medida que ia lendo a carta por cima do ombro de James.
Lancei os olhos a Niang, que estava sentada ao lado de James e perguntei a mim
própria se ela estaria consciente das trágicas implicações deste sofrimento.
Levantou-se de repente e foi para o seu quarto, murmurando que tinha chegado ao
limite das suas forças e que precisava de descansar. James e eu ficámos
sozinhos.
Nessa tarde falámos de muitas coisas, pois as implicações da senilidade do pai e
o eventual controlo dos negócios por parte de Niang estavam iminentes.
Aconselhei-o, uma vez mais, a tomar conta da sua própria vida.
223
- Não posso abandoná-los agora. - disse ele. - Não justamente agora quando estão
s~ ~u ~~ si ntian chu ge (cercados por todos os lados). Não têm mais ninguém.
Ainda que muito me custasse, assenti.
- Além do mais - confessou ele - a velhota está a melhorar. Ontem disse-me uma
Página 132
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
coisa muito interessante: "O teu pai tem tantos filhos, mas, quando precisa
deles, só podemos contar contigo e com a Adeline." Há muito de verdade nesta
frase, não achas`?
- Só tu é que consegues aturar Niang! - exclamei eu com admiração - Qualquer
outra pessoa já se teria ido embora há muito tempo,
O meu relacionamento pessoal com Niang modificou-se como da noite para o dia
depois desta visita. Ela chegou a pedir-me que os ajudasse a comprar uma casa
perto da nossa, onde pudessem passar o Verão, em vez de Monte Carlo. O facto de
termos sido nós a pagar as contas médicas do pai - ascendendo a cerca de 50 000
dólares americanos - tocou-a possivelmente. Como médica, eu tinha plena
consciência do esforço que a doença do pai implicava e não podia deixar de
sentir compaixão por ela.
O resultado desta aproximação foi a exclusão deliberada de Edgar. Mais tarde,
nesse mesmo ano, Niang ofereceu uma festa em HongKong para comemorar os 70 anos
do pai. Gregory e Matilda vieram do Canadá com os seus dois filhos, Bob e eu
comparecemos com Roger e Ann, James, Louise e a respectiva prole também
estiveram presentes. Para além da família imediata, havia cerca de uma dúzia de
convidados. Edgar nunca foi sequer informado e só descobriu o que se tinha
passado muito tempo depois.
224
23
Chu Cha Dan Fan Arroz branco e chá de má qualidade
Depois da morte de Mao Zedong, em 1976, Deng Xiaoping tornou-se presidente
adjunto e deu início a uma série de reformas liberais, incluindo a abertura da
China ao turismo. Em 1979, uns amigos americanos convidaram-nos a irmos com eles
numa excursão organizada a Hong-Kong, Guangzhou, Xangai e Beijing.
Assim, em Dezembro de 1979 embarcámos numa viagem cuja realização teria sido
absolutamente impensável três anos antes. Eu estava encantada com a ideia de
voltar a ver a minha tia Baba e foi neste estado de espírito que escrevi a
contar-lhe da nossa próxima visita. A nossa correspondência esporádica, sempre
mal vista por Niang, tinha sido interrompida pelo governo chinês desde o início
da Revolução Cultural, em 1966. A minha tia respondeu-me imediatamente. Voltar a
olhar para a sua caligrafia encheu-me de saudades. Estava a viver num quarto
situado na casa de um vizinho, na mesma rua, desde 1966 e era lá que eu deveria
procurá-la. Dizia-se cheia de alegria e ansiosa pelo nosso reencontro.
225
Em Hong-Kong a nossa excursão ficou alojada no Hilton Hotel (que viria a ser
demolido em 1995), apenas a dez minutos de táxi das Magnolia Mansions. Do
aeroporto de Kowloon para Hong-gong atravessámos o novo túnel por debaixo do
porto; o demorado ferry para transporte de veículos já não existia. Não ia a
Hong-Kong desde 1978 e, ao ser surpreendida pela altura da linha dos prédios,
fiquei maravilhada com o desenvolvimento fulminante da colónia.
Niang tinha-nos escrito a dizer que o pai estava já incontinente. Da Califórnia
trouxemos vários pacotes de fraldas para adulto. Quando fomos visitá-los, James
e Louise já tinham chegado. O aspecto do pai era muito pior. Depois de nos
cumprimentar com um pequeno sorriso, não disse qualquer palavra durante toda a
refeição e parecia incapaz de compreender a conversa à sua volta.
Após o jantar fomos para a sala de estar e o pai retirou-se, acompanhado pela
sua enfermeira da noite. Lá mais em baixo, as luzes de Hong-Kong e Kowloon
acenavam umas às outras por sobre as águas do porto. O pai costumava falar com
enlevo da magnífica vista da sua varanda, que se iluminava noite após noite num
Página 133
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
perpétuo desfilar de luzes.
Niang ofereceu um cigarro a James e ela própria acendeu um. Era este o seu
ritual todas as vezes que James jantava com ela. James confidenciara-me muitas
vezes que odiava aqueles cigarros; isso, porém, não o impedia de os aceitar e de
os fumar.
Enquanto fumava lançou-se numa tirada de críticas contra a tia Baba. Fosse o que
fosse que a minha tia nos contasse, pregava Niang, ela enviava-lhe o seu
subsídio mensal e "dava-lhe tudo aquilo que ela desejava". De seguida começou a
falar furiosamente contra Lydia, avisando-nos de que a minha irmã ia
possivelmente tentar que a ajudássemos a levar os filhos para fora da China.
- Não façam nada disso! - ordenou ela. - Se o vosso pai pudesse falar,
dir-vos-ia que toda a família Sung é um frasco de veneno. Quero que saibam que
Samuel e Lydia fizeram chantagem com o vosso pai quando regressaram a Tianjin,
em 1950. À vossa frente hão-de elogiar-vos; nas vossas costas hão-de conspirar
contra vocês. Se ajudarem um dos membros da família, os outros exigirão que
também o façam por eles e o mais certo é acabarem todos à porta de vossa casa.
Vão acabar por virar a vossa vida de pernas para o ar e nenhum deles vos ficará
agradecido.
226
Adeline - continuou ela -, segue os meus conselhos. A vida tem-te sorrido. Por
que razão precisas de te misturar com pessoas da laia de Lydia e Samuel?
Aviso-te, se te meteres com cobras, serás
mordida. Diz a Lydia que o teu pai e eu te proibimos de levantar um só dedo para
os ajudar. Deixa-os apodrecer na miséria! É o que eles merecem! - concluiu Niang
numa voz cada vez mais estridente.
Despedimo-nos assim que pudémos. James e Louise levaram-nos de volta ao Hilton.
- A velhota é vingativa - comentou James já no carro. - A tia Baba deve tê-la
ofendido no passado. Niang odeia-a e nunca deixará de o fazer.
- E tu, pensas que devo ajudar Lydia, se ela me pedir? - Escreveste-lhe a dizer
que vinhas à China?
- Não. A única pessoa que quero ver é a tia Baba.
- Então porque não deixas as coisas como estão? Suan le!
O nosso grupo de quarenta pessoas fez a viagem de comboio de Hong-Kong para
Guangzhou no dia de Natal de 1979. Fomos conduzidos ao Hotel Baiyun (Nuvem
Branca), um edifício de trinta e três andares. Mesmo sendo um hotel só com dois
anos, tanto os quartos como o mobiliário tinham um aspecto usado e maltratado.
Não eram autorizadas gorjetas e o pessoal do hotel era mal-encarado. O
pequeno-almoço era servido pontualmente às 7.45. Quarenta ovos estrelados
surgiam em quarenta pratos, dispostos em quatro mesas redondas, de dez pessoas
cada. A maior parte das pessoas do grupo ainda estava a dormir, enquanto os ovos
esperavam em cima das mesas até ficarem secos. Chaleiras de metal eram atiradas
para cima das mesas, juntamente com oitenta fatias de pão torrado, vinte para
cada mesa. Às 9 em ponto terminava o pequeno-almoço. Ovos, torradas e chá eram
retirados em cinco minutos por empregadas de mesa com ar de exploradas. Foi esta
a nossa apresentação à vida na China comunista.
Dois dias mais tarde partimos de avião para Xangai. À medida que o nosso
autocarro ia do aeroporto Hongqiao para o Hotel Jinjiang, onde estava previsto
ficarmos, senti-me a rebentar de emoção. Passámos por umas bonitas mansões da
época Tudor, de tijolo vermelho, ao estilo colonial inglês, com jardins murados
e relva verdejante. O autocarro dobrou uma esquina e dei por mim na conhecida
Avenida Joffre. Uma vez mais apreciei a avenida larga, recta e ladeada de
Página 134
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
árvores,
227
estendendo-se a perder de vista. Estiquei o pescoço para ler as tabuletas das
ruas, escritas nos novos caracteres chineses abreviados. A Avenida Joffre
chamava-se agora Rua Huai Hai. O autocarro virou para leste, cada vez mais para
leste, para longe do sol da tarde, afugentando centenas de bicicletas à sua
passagem, como uma baleia gigante rodeada pelo peixe miúdo. Estávamos na Rua
Huai Hai Zhong (Central). Comecei a reconhecer alguns edifícios. Eram 5 horas da
tarde e, por entre o tilintar das campainhas das bicicletas e o restolhar das
folhas do arvoredo, nuvens de trabalhadores, igualmente vestindo os seus casacos
à Mao, corriam para casa depois do trabalho.
E subitamente lá estavam eles! À medida que o nosso autocarro se aproximava do
centro da antiga concessão francesa, da paisagem citadina destacou-se uma visão
mais poderosa para mim do que qualquer outra: dois modestos pilares guardavam a
entrada da rua da minha lao jia (antiga casa da minha família). Lá estavam as
casas cinzentas de cimento, sólidas, imutáveis, como uma gravura do passado. De
muitas das janelas emergiam paus de bambu carregados de peças de roupa a secar:
roupa interior, lençóis, cobertores, fatos à Mao, todas elas esvoaçavam ao
vento.
Rapidamente o autocarro passou além dos limites da minha infancia. Deitei o
olhar aos Jardins Do Yuen e ao Cinema Cathay. As inúmeras lojas das redondezas
já não ostentavam tabuletas coloridas e bilingues. Longe ia o tempo dos anúncios
de néon em azul, vermelho, verde, roxo e branco. Longe ia o tempo dos
cabeleireiros, casas de modas, livrarias, cafés e padarias francesas.
Agora as lojas, sem nova pintura e gastas pelo tempo, mostravam nomes mortiços
escritos nos novos caracteres chineses simplificados, anunciando os seus
produtos. Não se vendiam artigos de luxo. Trinta anos haviam passado, um período
durante o qual Xangai tinha perdido o seu brilho e a sua alegria, mas durante o
qual, pelo menos, tinham desaparecido os mendigos e os corpos de meninas
recém-nascidas embrulhados em jornais.
O autocarro voltou em direcção ao norte, muito perto do Cinema Cathay, e parou
em frente do nosso hotel, a poucas centenas de metros da minha antiga escola
primária Sheng Xin. Bob e eu largámos a nossa bagagem e apanhámos imediatamente
um táxi para ir visitar a minha tia. Era o mês de Dezembro e o dia estava
extremamente frio. Na cidade, a linha do horizonte estava envolta numa bruma
amarelada de
228
poluição. Bob pediu-me que dissesse ao motorista do táxi que desse uma pequena
volta pelo Bund, em tempos conhecido com a Wall Street da China. Estava radiante
por poder conversar no meu dialecto de origem e de o ouvir à minha volta uma vez
mais, passados trinta anos. Depressa me pareceu que nunca tinha saído da cidade.
Quinze minutos depois percorríamos já a ampla curva do rio Huangpu, passando
rapidamente pelo Parque Huangpu (o mesmo onde cães e chineses eram infamemente
proibidos de entrar) e pelas imponentes torres de escritórios erigidas pelos
Britânicos nos anos 30. Não havia qualquer alteração nas fachadas exteriores,
embora das janelas de alguns andares altos saíssem inapropriadamente os paus de
bambu repletos de roupa a secar.
O nosso táxi voltou à esquerda no Peace Hotel, com a sua inconfundível torre
triangular a brilhar contra o céu do entardecer, seguiu a movimentada Nanjing Lu
(anterior Rua de Nanquim) a formigar de peões e bicicletas. Passámos pelos
grandes armazéns, estúdios fotográficos, restaurantes e mercados abastecedores;
Página 135
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
avistamos o banco da minha tia-avó, no n.° 480 da Rua Nanquim, ainda um edifício
imponente, agora chamado Banco de Comércio e Indústria. Era já escuro quando
chegámos ao nosso destino. A tia Baba vivia no n.° 21, outrora uma magnífica
casa, agora a precisar de arranjos, aliás como todas as da vizinhança. A rua era
mal iluminada e tivemos de tactear o caminho dentro do edificio. A porta da
frente estava entreaberta para quem quisesse entrar.
Mal penetrámos no edifício, o cheiro atingiu-nos como um golpe fisico. Nunca
tínhamos visto nada assim. O lixo e o suor dos que ali tinham vivido nos últimos
trinta anos entranhara-se em tudo. Cheirava a comida apodrecida, corpos por
lavar, roupa suja e canos entupidos. Embora houvesse lixo e poeira pelas escadas
e entrada, havia algumas bicicletas polidas, oleadas e fechadas a cadeado
encostadas às paredes sujas.
À medida que subia as escadas, o coração ia-me pesando e chamei: - Tia Baba, tia
Baba!
E lá estava ela, uma figurinha minúscula no contraluz da porta entreaberta. Que
pequenina que era! Bob e eu éramos umas torres à vista dela! Abracei-a com toda
a força e senti o corpito esquelético dentro do casaco à Máo largueirão. Não
pesava mais de 40 quilos.
Levou-nos ao seu quarto e fez-nos sentar na cama dela. Deitou-nos um olhar
demorado, os olhos a brilharem de orgulho.
229
- A tua letra não é muito diferente da daquela menina que partiu daqui em 1948!
Não é caligrafia de uma médica que estudou em Inglaterra e na América. Ainda é a
letra de uma criança da escola primária! - exclamou ela com a voz repleta de
emoção.
O quarto era frio e cinzento. A única peça de mobiliário era uma cama, uma mesa
de madeira e uma pequena cadeira de costas direitas. Tudo o que tinha no mundo
era guardado num grande baú de madeira
e dentro de algumas caixas de cartão arrumadas em filas. Tinha ainda um pequeno
fogão de querosene, no qual estava a cozer uma panela de sopa de fitas. Debaixo
da cama havia um bacio de plástico. Da parte central do tecto pendiam alguns
fios eléctricos, aos quais estava ligada uma lâmpada sem quebra-luz.
Ela considerava-se uma pessoa de sorte por ter tido um quarto só para si durante
trinta anos. O próprio dono da casa tinha de partilhar um quarto com a mulher e
dois filhos. O edifício abrigava agora nove famílias.
Serviu-nos as fitas acabadas de cozinhar com vegetais em conserva. Observei-a
atentamente enquanto se movimentava no quarto, tal e qual como costumava fazer
quando era pequenina e ela era todo o meu mundo. O seu cabelo fininho estava
agora quase branco e cuidadosamente apanhado num totó preso na nuca. Os seus
grandes olhos pareceram-me encovados, delineados pelas sobrancelhas da mesma cor
que o cabelo.
Apertei a sua mão pequenina, enquanto contávamos uma à outra as histórias das
nossas vidas, tentando percorrer a distância de trinta anos que nos separara. A
voz da minha tia transformou-se num sussurro. O medo de denúncias e dos
informadores não seria vencido tão depressa. - Parece impossível podermos
estarem frente uma da outra, assim, a falar de tudo e de nada! Há três anos,
durante a Revolução Cultural, isto teria sido perigoso.
Falámos pela noite fora. Tornou a contar-me a história da nossa família e
pediu-me que escrevesse estas memórias antes que o tempo as apagasse de vez.
- Toda a nossa família sofreu quando Niang veio para nossa casa. O encanto que
ela lançou ao teu pai foi como o da raposa das histórias antigas. Para além da
sua juventude e beleza, ele provavelmente encan tou-se com o seu sangue
Página 136
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
estrangeiro. Lembra-te de que ele cresceu na concessão francesa, numa época
única na China. Todos nós somos vítimas da história.
230
Nessa noite, antes de nos despedirmos, a tia Baba disse-nos que tinha um
presente para nós. Rebuscou durante algum tempo dentro de um velho baú e
finalmente, de dentro do forro do seu casaco de Inverno, tirou um envelope
cuidadosamente dobrado. Ao abri-lo, descobri uma velha nota de 100 dólares que
ela devia ter guardada há, pelo menos, trinta anos. Ficámos em silêncio durante
longos minutos, receosos de que as palavras pudessem quebrar a magia daquele
momento, que estava para além de toda a alegria e de toda a tristeza.
No dia seguinte levei a tia Baba até ao nosso hotel, onde pôde tomar o seu
primeiro banho em muitos anos. O guia do nosso grupo, um membro do partido,
olhou-a com desprezo. Nesse tempo era política não oficial da China dividir as
pessoas em quatro grupos, recebendo cada um deles um tratamento distinto.
À primeira classe pertenciam os turistas, especialmente se eram norte-americanos
ricos. Na segunda classe incluíam-se os chineses ultramarinos que falavam
chinês. Eu pertencia a esta categoria. Éramos tratados como heróis regressados a
casa, proporcionando à China o apoio para uma nova estrutura económica. Na
terceira classe arrumavam-se os hua giao (pessoas de etnia chinesa nascidas na
América), cujos pais tinham emigrado antes de 1949 e que não falavam chinês. Era
o caso de Bob. Eram recebidos com um tudo-nada de desprezo misturado com honras
manifestas; o prato da balança pendia para um dos lados, de acordo com o sucesso
profissional e a prosperidade atingida. A ideia geral era a de que toda a gente
que vinha da América era rica e tinha bons conhecimentos. À quarta categoria
pertenciam as centenas de milhões de chineses nascidos na China, como a tia
Baba. A roupa que usavam e a atitude que tinham faziam que facilmente se
distinguissem dos restantes.
O guia da nossa excursão ficou furioso quando convidei a minha tia para almoçar
connosco na sala de jantar do 11.° andar do Hotel Jinjiang. Repreendeu-a por não
se saber pôr no seu lugar e por abusar da minha hospitalidade. Bob e eu não
escondemos o nosso desagrado. Com o apoio dos outros participantes da excursão,
a tia Baba tomou o almoço, mas recusou-se a pôr novamente os pés na sala de
jantar.
Durante os cinco dias que passámos em Xangai fui buscar a minha tia para que ela
tomasse o seu banho quente no quarto do nosso hotel. O tempo não era suficiente
para dizermos uma à outra tudo o que queríamos.
231
Ofereci-me para lhe comprar um apartamento em Xangai, nurn prédio que estava a
ser construído nas proximidades do nosso hotel. Ela recusou, dizendo que não era
seu desejo sair da zona onde sempre tinha vivido.
- Vivo na mesma rua desde 1943 - disse-me ela -, a minha casa é aqui. O único
sítio para onde gostaria de ir era a nossa antiga casa, no n.° 5. Se conseguires
voltar a comprá-la para mim, morrerei feliz.
Dois anos mais tarde, Bob e eu conseguimos comprar a casa em nome dela. Lá viveu
até à data da sua morte.
Perguntei-lhe se se arrependia de ter ficado em Xangai. Como resposta ouvi um
"não" inequívoco:
- Tenho passado mal aqui, com todas essas campanhas e reuniões de luta, a
selvajaria da Revolução Cultural, pobreza, agruras e medo. Mas, honestamente,
acho que todas estas misérias juntas se suportam melhor do que viver com a tua
Página 137
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Niang, debaixo do mesmo tecto. Estou satisfeita com cu cha dan fan (chá de má
qualidade e arroz branco). Penso muitas vezes na vida como um depósito de tempo.
A cada um de nós são atribuídos uns tantos anos, tal e qual como uma determinada
soma num banco. Quando as vinte e quatro horas acabam de passar, gastei mais um
dia. Li no People's Daily que a esperança média de vida para uma mulher chinesa
é de 72 anos. Eu já tenho 74. Já esgotei o meu depósito há dois anos e já estou
a gozar um bónus. Cada dia é um presente. De que me posso queixar?
O nosso olhar cruzou-se. A coragem desafiante que encontrei nos seus olhos
surpreendeu-me. Depois, uma voz cuja eloquência contrastava estranhamente com a
fragilidade do seu corpo disse:
- Da maneira como eu as vejo, as coisas são assim: o século xix foi o século
britânico; o século xx é um século americano. Prevejo que o século xxí seja um
século chinês. O pêndulo da história oscilará das cinzas ying trazidas pela
Revolução Cultural para a fénix yang que surgirá dos seus destroços.
°° Na mitologia e filosofia chinesas, ying é o princípio feminino gerador oposto
a yang, o princípio masculino. (N, da T.)
232
24
Yin Shui Si Yuan Quando beberes água, lembra-te da fonte
O nosso grupo voou para Beijing na véspera de Ano Novo. À chegada a tarde estava
soalheira, mas fria. Sobre o telhado do novo terminal do aeroporto uma
fotografia gigante do presidente Mao sorria-nos, ladeada por dois caracteres
chineses gigantes, pintados a vermelho, 3E; ,~ Beijing (Capital do Norte). Aos
microfones, uma voz feminina e graciosa anunciava: "Beijing dá-vos as
boas-vindas."
Quando saímos do sector da imigração, uma chinesa de meia-idade correu para nós.
O seu cabelo preto estava mal pintado e usava um casaco castanho com uma gola de
pele artificial.
- Wu mei! - chamou ela. - .~.~ Wu mei (Quinta Irmã Mais Nova)! És tu?
Nunca mais ninguém me chamara wu mei desde os tempos longínquos da minha
infância em Xangai. Agora ali estava ela, à minha frente, com um sorriso de
orelha a orelha. Qualquer coisa na sua postura, os ombros um pouco desiguais e
descaídos, a cara arredondada e inclinada, a mão esquerda semiparalisada,
firmemente agarrada pela
233
direita com os dez dedos entrelaçados, tudo isto me trouxe à lembrança memórias
do passado distante. Sem querer, comecei a falar o chinês familiar da minha
infância:
- -~ ~ Jie jie (Irmã Mais Velha) - respondi respeitosamente sou eu.
Embora não estivesse à espera de ninguém, a minha irmã Lydia e toda a sua
família tinham feito a viagem de Tianjin até ali para nos virem esperar ao
aeroporto. A tia Baba tinha telefonado de Xangai a dar-lhe o nosso itinerário.
Já lá iam trinta e um anos desde que eu tinha visto Lydia e o marido. Não
conhecia os filhos.
Assim, lado a lado, apercebi-me de que era agora uns 5 centímetros mais alta do
que Lydia. Cheia de emoção, ela gesticulava para o resto da família. Samuel
estava já na casa dos 60, vestia um fato à Mao coberto por um sobretudo
brilhante de vinil azul-escuro e um boné de trabalhador. Atrás dele estava um
jovem alto de 27 anos, o filho Taiway, e uma filha baixinha de 30, Tai-ling.
Página 138
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Estava previsto que o nosso grupo ficasse no grande Friendship Hotel. Construído
pelos Soviéticos nos anos 50, era um edifício claramente russo, tanto na sua
arquitectura como no desenho formal dos jardins, fazendo-me lembrar fotografias
que eu tinha visto dos palácios de Inverno dos czares. Lydia e a família tinham
feito uma reserva no mesmo hotel. O táxi deles seguiu o autocarro da nossa
excursão e fizemos o registo em conjunto. Encolhi-me quando vi alguns rapazes da
portaria a empurrarem Samuel para o lado, enquanto, respeitosamente, passavam
alguns membros do nosso grupo para a frente da fila.
A seguir ao jantar, Bob e eu fomos à suite de Lydia, conforme combinado. A
filha, Tai-ling, não se sentia bem e já se tinha ido deitar. Sentámo-nos os
cinco e começámos aquela que seria uma noite muito longa.
Em tom de remorso, Lydia confessou:
- É-nos penoso lembrar como foste rejeitada quando eras criança. A culpa foi
principalmente minha, porque, sendo a irmã mais velha, deveria ter dado o
exemplo. Falhei. Sendo tu a mais nova e a enteada menos importante, foste não só
insultada, mas também ameaçada por todos nós. Só tenho desculpa por também eu
ser ainda uma criança. Além disso, não éramos encorajados a sermos leais uns
para com os outros, porque Niang tinha medo de que nos pudéssemos unir contra
ela.
234
- Quando eras pequenina - continuou Lydia -, os nossos pais deixaram bem claro
que tu eras indesejável e inútil. Às vezes Niang até dizia em voz alta que eras
horrível. Quando o pai e Niang vieram a Tianjin, em 1948, Niang deu ordens para
que eu não te fosse visitar em St Joseph's nem te retirasse do colégio durante
as férias. Ela vincou que não toleraria qualquer desobediência e que as freiras
tinham ordens para lhe enviarem relatórios regularmente. Nessa altura eu própria
me sentia triste de mais para pensar em ti. Estava enganada e peço-te que me
desculpes.
Lydia culpava Samuel pela sua "estupidez" em regressar à China com a família em
1950 e falou da infelicidade deles como se ele fosse pessoalmente responsável
por ela. Era culpa dele se os Guardas Vermelhos lhe tinham rapado metade do
cabelo, se a tinham fechado num armário e se tinham enviado os seus filhos para
comunas rurais. Durante todo o tempo em que Lydia falou, Samuel esteve sentado
ao seu lado com um sorriso forçado. O quarto estava tão quente que o seu couro
cabeludo, agora careca, se cobria de gotas de suor. A sua expressão nunca se
alterou e nem um só músculo se moveu.
- Durante estes anos tenho escrito muitas vezes aos nossos pais a pedir-lhes
ajuda. Nunca acusaram sequer a recepção das minhas cartas. Niang é uma mulher
doente, a fervilhar de ódio. Conheço-a bem. Aquilo de que mais gosta são
intrigas. Quanto mais nós sofremos, mais feliz ela se sente.
- Na nossa família - continuou Lydia - tu és a única que tem a coragem de fazer
o que está certo e de desafiar Niang. Gregory e Edgar são egoístas e avarentos.
Susan e eu fazemos uma grande diferença de idades. James é um homem honesto, mas
dirá sempre "ámen" a tudo e não tem força de vontade.
Foi então que Lydia chegou ao ponto que queria. Para ela e para Samuel não
desejava nada. Tai-ling estava quase arrumada, pois tinha um bom namorado em
Tianjin e não desejava sair da China. Além disso, tanto ela como Samuel estavam
a ficar velhos e precisavam que a filha estivesse por perto. Mas, quanto a
Tai-way, ela expôs o caso com empenho:
- Os meus dois filhos são tão diferentes como o dia da noite. A minha filha é
egoísta e difícil, mas o meu filho tem um coração bom e leal. É um músico de
Página 139
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
talento e ganhou muitos concursos de piano. Estuda agora com Liu Shi-kuen, o
famoso vencedor do concurso de
235
composições de Tchaikovsky para piano, em Moscovo. O que te peço é que lhe dês
uma oportunidade e que o patrocines para ir fazer a universidade na América.
Lydia voltou-se então para o filho:
- Tai-way também te quer dizer algumas palavras. Tai-way falou em mandarim:
- Quinta Tia, não a conheço e a tia também não me conhece. É muito generoso da
sua parte gastar o seu tempo para se encontrar connosco. Por aquilo que a minha
mãe me contou, vejo que teve de lutar muito para chegar onde está hoje. Talvez
no seu coração encontre maneira de me dar uma ajuda.
Contou-nos então como tinha parado.de estudar durante dez anos por causa da
Revolução Cultural. Tinha sido enviado para uma comuna na província de Shanxi,
onde as condições de vida eram primitivas e a comida escassa. Em vez de ir à
escola, trabalhava numa quinta como qualquer outro trabalhador. Tudo isto teria
sido suportável se houvesse uma réstia de esperança para o futuro. Porém, na
China esse era um sonho impossível.
- Por vezes - dizia Samuel -, quando penso na minha vida daqui a dez ou vinte
anos, sou tomado de desespero. Vejo-me a tocar piano numa aldeola remota, a
ensinar música a crianças desinteressadas ou a acompanhar espectáculos de
amadores montados por camponeses. Continuarei talvez a lutar pela vida tentando
manter juntos a alma e o corpo, insistirei provavelmente em escrever cartas à
tia Baba, pedindo-lhe embalagens de alimentos. O meu pai tem parentes ricos em
Taiwan e os pais da minha mãe vivem em Hong-Kong. E, contudo, ninguém quer
ajudar-me. É inútil e degradante continuar a escrever-lhes. Não tenho mais
ninguém a quem recorrer; a tia é a minha única esperança. Por favor, ajude-me a
ir para a América e eu ficar-lhe-ei grato para o resto da vida.
Enchi-me de pena daquele rapaz que por acaso era meu sobrinho. Não tive como
recusar. Limpando uma lágrima com um grande lenço já fora de moda, Lydia
acrescentou:
- É muito o que te pedimos para fazeres: arriscas-te à raiva de Niang ao
patrocinares Tai-way. Poderás mesmo ser deserdada, se eles descobrirem que nos
estás a ajudar. Seja o que for que decidas, estou contente por termos passado
esta noite juntos, numa conversa em que os nossos corações falaram. Aconteça o
que acontecer, gostarei sempre de ti. ~ ~k m ~~ Yin shui si yuan (Quando beberes
água, lembra-te da fonte).
236
Vieram-me à ideia muitos pensamentos. Parecia-me injusto a vida ter-me dado
tanta coisa, ao passo que a ela lhe mostrava o lado mais desastroso. Seria esta
reunião uma das tais encruzilhadas para testar a minha coragem? Se os papéis
estivessem invertidos e eu tivesse sido a filha deixada na China comunista,
ficaria de certeza grata se a minha irmã me desse uma ajuda.
Senti que não tinha outra alternativa e assegurei-lhes que ficaria muito
contente por fazer o que pudesse por Tai-way. Acrescentei que pediria a
colaboração de todos os nossos irmãos, na esperança de que a educação de Tai-way
no Ocidente fosse o elo catalisador da união entre todos nós.
Quando regressei à América, consegui inscrever Tai-way na University of Southern
California. Assinei a declaração de sustento e o meu sobrinho chegou alguns
meses depois. Durante os catorze meses que se seguiram tratámo-lo como um
segundo filho.
Página 140
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Durante o segundo ano transferiu-se para a University of Indiana, onde Leonard
Bernstein o aconselhou a prosseguir a sua carreira musical na Alemanha. Um ano
mais tarde partiu para Estugarda e tornou-se financeiramente independente,
depois de obter um emprego como acompanhante de ballet. Continuamos a manter
contacto permanente com ele.
Em 1983, o professor John Leland, um grande amigo e colega de Bob, tinha
previsto passar um ano sabático na Universidade de Tianjin. Apresentámo-lo a
Samuel e a Lydia. Ele e a mulher tornaram-se amigos de toda a família Sung.
Ficamos encantados ao saber que ele tinha conseguido arranjar uma bolsa completa
a Tai-ling para a Universidade da Carolina do Norte quando o seu romance
efervesceu. Lydia e Samuel ficaram tão gratos que nos enviaram uma carpeta como
forma de agradecimento especial.
Em 1986 Lydia viajou para a Alemanha para ver Tai-way. Comprei-lhe um bilhete de
avião para que pudesse ir a Nova Iorque ver a filha e fazer-nos uma visita na
Califórnia. Durante os dez dias em que esteve em nossa casa passamos muitas
horas a conversar sobre os anos em que tínhamos estado separadas.
Confidenciei-lhe que andava a aconselhar James a emigrar de Hong-Kong antes de
1997, uma ideia que Niang não aceitava muito bem. Dei-lhe notícias da vida
desolada que Niang levava e mostrei-lhe fotografias do pai, já senil, deitado,
encolhido, indiferente a tudo, no Sanatório de Hong-Kong.
237
O pai dera entrada no quarto 525 do Sanatório de Hong-Kong em 1982. Nunca mais
deixou o hospital e ocupou o mesmo quarto até morrer, seis anos mais tarde.
Niang contratou três enfermeiras durante o dia e duas durante a noite.
Diariamente, e durante uma hora, vinha também um fisioterapeuta. As suas duas
criadas cantonenses tinham instruções para cozinharem os seus pratos favoritos,
que o motorista ia entregar.
Susan ficou extremamente preocupada quando soube da hospitalização do pai. Foi
visitá-lo ao seu quarto particular. Era tarde de mais. O pai já não a
reconheceu. As enfermeiras comunicaram as visitas de
Susan a Niang, que, por sua vez, ficou furiosa. Deu instruções a James para
ameaçar Susan com uma acção em tribunal caso a nossa meia-irmã tentasse visitar
o pai outra vez.
Niang criou a sua própria rotina. Todas as manhãs passava duas horas no
escritório do pai em Swire House. James e o Sr. Lu, o leal director financeiro
do pai, relatavam-lhe o abrandamento e a venda dos
vários negócios do pai. Sete tardes por semana, das 4 às 6, ia visitar o pai ao
hospital. Passava as suas noites em casa e deixara de participar em eventos
sociais. Todos os domingos James, Louise e as três crianças iam jantar com ela,
relutante, mas prontamente.
Tornou-se uma fumadora inveterada e passava horas sentada no seu sofá imitação
de Luís XVI, voltada para o Porto de Vitória a fumar, enchendo a sala de fumo. À
noite, e apesar da grande quantidade de
comprimidos que tomava, tinha dificuldade em dormir. Contratou uma enfermeira
que vinha fazer-lhe companhia durante a noite e conversava com ela nas primeiras
horas da manhã.
Confessei a James que me era extremamente penoso ver o pai reduzido àquele
estado em que se encontrava e acrescentei que devia ser ainda mais difícil para
Niang.
- Não te deixes levar por tudo isso - disse James. - A maior parte do que faz é
só para que os outros vejam. A sociedade de HongKong é muito pequena. Tanto
Gregory como Edgar estão inconsoláveis
Página 141
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
238
Com os olhos rasos de lágrimas, ela pediu-me que interviesse: Lydia queria ver o
pai pela última vez e ser uma companhia para Niang. Telefonei a Niang e fiz-lhe
o pedido. A nossa madrasta cedeu final
mente e concordou em recebê-la. Comprei imediatamente a Lydia uma passagem para
Hong-Kong. Lydia e Niang reconciliaram-se e Niang perdoou-me finalmente por
ajudar a família de Lydia.
por ela ter transferido todo o dinheiro do pai para o seu próprio nome. ge ela
desse algum sinal de negligência para com o pai, abriria contra si própria uma
acção em tribunal. Na verdade, os nossos dois irmãos mais velhos já puseram em
causa a legitimidade das suas operações financeiras. Não falaram contigo sobre
esse assunto?
- Falaram. Gregory telefonou-me a perguntar se eu me juntaria a ele e a Edgar
numa acção legal contra Niang. Teme que Niang possa casar-se outra vez. Eu
disse-lhe que não pensasse nisso. Acho que neste momento Niang precisa é do
nosso apoio moral.
Sempre que 1997 vinha à baila, Niang hesitava entre permanecer ou não em
Hong-Kong.
- Não vai acontecer nada. Hong-Kong é valiosa de mais para os comunistas
chineses - argumentava ela. - Seria um suicídio financeiro para todo o país. O
mais provável é que o milagre económico de Hong-Kong alastre à China depois de
1997.
Uma vez ela chegou a dizer-me:
- Na verdade, o teu pai e eu somos cidadãos do mundo. Se a situação piorar,
podemos ir para qualquer país de um momento para o outro. Gostaria que
procurasses uma casa para nós em Huntington Beach, perto da vossa, para o caso
de termos de sair de Hong-Kong.
Em 1984 foi assinada uma declaração conjunta depois de anos de diálogo entre a
Grã-Bretanha e a China. A totalidade do território de HongKong seria entregue à
China a 1 de Julho de 1997, o que incluía a ilha de Hong-Kong, a península de
Kowloon e os Novos Territórios. Contudo, aos cidadãos de Hong-Kong era
assegurado que gozariam das mesmas liberdades e direitos legais por mais
cinquenta anos após a transferência da soberania. Entre 1997 e 2047 Hong-Kong e
a China seriam um só país, mas com dois sistemas diferentes de administração
governamental.
O valor das propriedades em Hong-Kong sofreu uma descida abrupta depois deste
anúncio. James estava pessimista quanto ao futuro da colónia. Todos os seus
amigos influentes planeavam emigrar. Muitos tinham já obtido a cidadania
americana, britânica, australiana ou canadiana. Na maioria dos casos, o
emigrante permanecia neste país de adopção durante o período mínimo de tempo
para obter um passaporte e regressar depois a Hong-Kong. Por vezes só a mulher e
os filhos permaneciam no estrangeiro e o marido transformava-se num tai hong ren
(astronauta de um vaivém) entre os dois países.
239
25
Yi Dao Liang Duan
Cortar esta relação com um só golpe
Em Maio de 1988 recebemos um telefonema de James a dizer que o pai tinha piorado
subitamente e que não se esperava que vivesse mais de vinte e quatro horas.
Telefonei a Lydia em Tianjin, pressupondo que mais ninguém o tivesse feito.
- Nunca ninguém se lembra de mim - lamentou-se ao telefone -, não me dão
Página 142
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
importância nenhuma. Provavelmente, nem me caberá nada do testamento do pai.
Ao ouvir estas palavras, lembrei-me de que o pai tinha deserdado Lydia na altura
em que ela e o marido tinham feito chantagem com ele, pelo que os seus receios
não deixavam de ter fundamento.
- Não te preocupes, Lydia - disse-lhe eu -, o que me couber divido contigo.
O pai morreu algumas horas mais tarde.
Em Hong-Kong James foi esperar-me ao aeroporto e conduziu-me a um pequeno hotel
- o New Asia - perto do seu apartamento, onde Niang tinha feito as reservas para
todos nós. Viajei sozinha, pois Bob
não pudera deixar o trabalho. Todos ficámos surpreendidos ao saber que Lydia já
tinha chegado de Tianjin e tinha sido convidada por Niang a ficar em Magnolia
Mansions.
James levou-nos no carro até à sala do funeral, em North Point. Aí encontrámos
Niang, Lydia e Louise. Numa sala grande, nua e gelada, onde o ar condicionado
estava exageradamente frio, de paredes forradas a pequenos azulejos brancos e
tresandando a desinfectante, encontrámos o corpo do pai sobre um divã negro,
coberto por um lençol de seda branca encimado por uma grande cruz amarela.
Parecia ter encolhido e perdido qualquer esplendor. A doença de Alzheimer tinha
cobrado a sua factura, devorando, célula após célula, todo o seu cérebro durante
doze longos anos, até deixar de ser um ser humano. Um padre católico pronunciou
apenas algumas palavras:
- As cinzas às cinzas, o pó ao pó.
Cumprido o destino do pai, nós, "as crianças", transformámo-nos subitamente na
geração mais velha.
Em fila, atravessámos inúmeras salas onde outras famílias velavam os seus
mortos. Monges budistas, de cabeças rapadas e túnicas esvoaçantes, usavam o
elevador lado a lado com os padres católicos nas suas batinas negras. Havia
arranjos florais por todos os cantos e o gelo da morte corria no ar.
Além dos membros da nossa família apenas estavam presentes as enfermeiras, as
criadas e o Sr. Lu, o empregado de confiança do pai há mais de trinta anos.
Embora Gregory e eu tivéssemos informado Susan da morte do pai, Niang não a
tinha convidado e, propositadamente, omitira o seu nome da secção de óbito dos
jornais. Não houve amigos presentes. Seguimos o cortejo fúnebre até ao cemitério
católico. O caixão do pai foi levado por carregadores profissionais, pela
escadaria íngreme que conduzia ao local da sepultura, encastoada na colina.
Durante alguns dias o tempo ganhou uma dimensão diferente, à medida que o
passado e o presente se fundiam. Quando demos por nós, estávamos reunidos no
escritório dos Johnson, Stokes & Masters para a leitura do testamento do pai. A
última vez em que estivéramos todos reunidos fora quarenta anos antes em Xangai.
Sentei-me na minha cadeira, de costas direitas, saia preta imediatamente acima
do joelho, quase à espera de que surgissem algumas empregadas com os pratos para
o jantar. No topo da mesa, Niang e o jovem advogado conferenciavam com ar sério
em voz baixa.
240
241
À minha esquerda, Lydia tinha um aspecto sombrio e colocara o seu braço são
afectuosamente à minha volta. Os olhos de Gregory ainda estavam vermelhos e
inchados. Nervosamente, James cruzava e
descruzava as mãos, enquanto gotas de suor lhe perlavam a fronte. Louise, a sua
mulher, tinha um aspecto elegante num vestido preto de corte simples. As feições
de Edgar mantinham o seu habitual aspecto grotesco, que o desgosto acentuava
ainda mais.
Página 143
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
No momento em que o jovem advogado leu a primeira página do testamento do pai,
anunciando depois que não existia um centavo nos seus haveres, ouviu-se um "oh"
colectivo. Engolimos em seco e
olhámos para Niang. Calmamente, ela encarou-nos um a um. A sua expressão era uma
mistura de triunfo e desprezo e, numa voz fria e clara, anunciou que o
testamento do pai não tinha qualquer significado, pois ele tinha falecido sem um
tostão.
Embora todos soubéssemos que ela tinha transferido todo o dinheiro do pai para a
conta que tinha em seu nome, ficámos boquiabertos ao perceber que tinha ficado
com tudo o resto: duas toneladas de lingotes
de ouro na Suíça, acções na bolsa e em empresas, condomínios em Monte Carlo e
Hong-Kong, edificios industriais em Cha Wan, o escritório alugado em Swire
House, terrenos na Florida ... O pai tinha morrido sem um tostão, mas vivia há
já algum tempo também sem um tostão.
Anos antes, em 1950, o pai tinha ido com Gregory visitar um conhecido adivinho
em Hong-Kong, que tinha a alcunha de "Ábaco de Ferro", pois fazia previsões com
uma grande precisão. Acima de tudo, na mente do pai estava esta pergunta: "Será
que Gregory, o meu filho mais velho, vai ser um homem rico?"
O Sr. Ábaco de Ferro não se quis comprometer:
- A riqueza é tão relativa ... - disse ele ao pai - Para o homem do riquexó 100
dólares de Hong-Kong é uma grande riqueza, mas para si isso não é nada. O seu
filho mais velho vai ter uma vida confortável. Todavia o pai achou que esta
resposta não era suficiente:
--- O que eu desejo saber é se o meu filho mais velho vai ser mais rico do que
eu.
O adivinho fez alguns cálculos e em seguida exclamou:
- Sim, sim, Sr. Yen! O seu filho será muitas, mas muitas vezes mais rico do que
o senhor. Disso tenho absoluta certeza.
242
O pai ficou satisfeito. Porém, à medida que os anos foram passando e Gregory não
singrava na carreira, o pai abanava a cabeça e murmurava que o Sr. Ábaco de
Ferro gozava de uma falsa reputação.
~ ~ .~ ~j` Tu jiao gui mao, you ming wu shi (Tal como os chifres do coelho e os
pêlos da tartaruga, o adivinho tinha fama, mas não possuía substância).
Quando íamos a atravessar o hall de granito da Johnson, Stokes & Masters,
cutuquei Gregory e disse-lhe baixinho:
- Parece que o Sr. Ábaco de Ferro acertou outra vez em cheio! . ,
Gregory,
por sua vez, sussurrou:
- Eu sempre disse ao Velhote que me desse tempo.
Nessa noite Niang quis deitar-se cedo. Lydia telefonou a dizer-me que o
motorista de Niang a deixaria no nosso hotel, pois queria passar a noite comigo.
Depois do jantar Lydia e eu voltámos para o meu quarto. Vestimos a camisa de
noite e cada uma de nós se meteu na sua cama, lado a lado. Com a ajuda do
candeeiro da mesinha-de-cabeceira colocada no meio das nossas duas camas, eu via
a expressão do seu rosto: uma espécie de determinação cega, uma fúria de
concentração. A amargura da sua vida foi jorrando numa torrente de palavras.
Começou por me culpar por eu não ajudar a filha Tai-ling. Segundo ela, eu era
avarenta e deveria ter dado a Tai-ling o mesmo dinheiro que dera a Tai-way.
- Além do mais - acrescentou ela friamente -, só ajudaste Taiway por ele ser
jovem e bonito.
- O que é que queres dizer com isso? - perguntei eu zangada. - Tira as tuas
Página 144
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
conclusões.
Fiquei sem fala perante acusações deste calibre, totalmente inesperadas e
formando um tão grande contraste com as suas anteriores manifestações de amor e
gratidão. Era como se esta mulher estranha e infeliz me tivesse atirado para um
redemoinho. Cada uma das minhas respostas dava origem a novos ataques cheios de
veneno. ,
- O que é que se está a passar entre nós? O que é que tens contra mim? -
perguntei de forma patética.
- Durante estes dias tens-te comportado como uma rainha e tens-me tratado como
uma criada - continuou sem perder o fôlego. Cheguei a um ponto em que já não
podia mais. Passava das 3 da manhã e eu estava exausta.
243
- Se são esses os sentimentos que tens por mim, vamos pôr um ponto final no
assunto. Fiz o melhor que pude para te ajudar a ti, ao teu filho e à tua filha.
Mas, por razões que só tu pareces conhecer, parece
que tens qualquer coisa contra mim. A solução é muito simples -11 T~ ~! Yi dao
liang duan! (Vamos cortar esta relação e com um só golpe).
Subitamente Lydia virou-me as costas, puxou as cobertas e começou a chorar.
Fiquei a observá-la a mover os ombros, mas, como as lágrimas rapidamente se
transformaram em roncos, compreendi que a
única razão que a levara ali naquela noite fora levar a cabo um rompimento
comigo.
Dois dias mais tarde voei para Los Angeles completamente esgotada e cheia de
pressentimentos.
244
26
Wu Feng Qi Lang Fazer ondas sem vento
Apesar da discussão que tive com Lydia, Tai-way manteve-se continuamente em
contacto connosco. Em Março de 1989 recebemos um convite para o casamento de
Tai-ling em St. Paul, no Minnesota. Porém, Bob aconselhou-me a não ir:
- É melhor não, sobretudo depois de teres ouvido coisas tão feias e deselegantes
da boca de Lydia em Hong-Kong.
Foi então que recebemos um telefonema de Tai-way, de Estugarda, a pedir-nos que
fôssemos ao casamento:
- Os meus pais vão de Tianjin especialmente para a ocasião. Por que é que vocês
não vêm também para fazermos uma verdadeira reunião familiar?
Ele iria estar nos Estados Unidos durante um mês após o casamento e até planeara
visitar-nos na Califórnia. Ficámos deliciados com a perspectiva.
- A mãe está preocupada com a possibilidade de vocês ainda estarem aborrecidos
com ela, mas eu disse-lhe que vocês não são do tipo de guardarem rancores. Por
favor, venham ao casamento, quanto mais não seja por mim, pois sei que a vossa
vinda também é muito
245
importante para Tai-ling e para o pai. Além disso, tenho a esperança de que tudo
se resolva quando estiverem face a face com a mãe. Voámos para St. Paul na noite
da véspera do casamento e no dia seguinte, na igreja, Lydia, Samuel e Tai-way
cumprimentaram-nos de forma extremamente calorosa, como se a discussão anterior
nunca tivesse acontecido. Eu fora o único membro da nossa família a fazer a
Página 145
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
viagem, o que, no dizer de Lydia, lhe dava muita face. Ela nunca mais esqueceria
o nosso gesto.
Era a primeira vez que víamos Tai-ling desde o nosso breve encontro no aeroporto
de Beijing nove anos antes, e, como tal, mal a reconhecemos. Quando lhe
oferecemos um cheque chorudo como prenda
de casamento, ela limitou-se a passá-lo ao seu noivo, um caucasiano de nome
Alan, dizendo-lhe para o "pôr em qualquer lado". Pelo seu tom, era manifesta a
sua intenção de ser hostil.
Depois da cerimónia levámos Lydia e Samuel até ao local da recepção no nosso
carro alugado e foi então que o assunto da questão que tivéramos em Hong-Kong
foi trazido à conversa.
- Hoje, vocês são ambos nossos convidados para jantar - disse-nos Lydia. E
acrescentou: - Depois vos explicarei tudo. Perguntei-lhe então se Tai-ling
estava zangada connosco.
- Se realmente querem saber - disse após uma longa pausa - ela não está de todo
muito contente convosco, pois pensa que deveria ter recebido de vocês o mesmo
apoio que deram a Tai-way.
Lembrei-lhe que o amigo de Bob, o professor Leland, tentara arranjar uma bolsa
de estudos completa para Tai-ling e fora ela que não a quisera. - Isso não é o
mesmo - respondeu-me com aspereza. - Tai-ling pensa que o teu dever como tia era
dar-lhe a mesma quantia de dinheiro que antes tinhas dado a Tai-way. Sentiu-se
discriminada.
Foi após este breve diálogo que chegámos. Tai-way aproximou-se de nós com um
sorriso aberto e com taças de champanhe. Mostrou um imenso entusiasmo pelo seu
trabalho como um acompanhante na ópera
em Munique. Agradeceu-nos por lhe termos dado, a ele e a toda a sua família,
"aquele ingrediente fundamental para a felicidade ... que é a esperança".
Continuou a conversar revelando-nos os preparativos para o jantar daquela noite,
altura em que a mãe explicaria tudo acerca do que se passara em Hong-Kong.
- Sabes, nunca teríamos vindo se não fosse a tua insistência - disse-lhe eu. E
perguntei-lhe: - Diz-me com toda a franqueza, a tua mãe está verdadeiramente
contente com a nossa vinda aqui?
246
- Claro que está! - disse Tai-way enfaticamente. - E quero contar-lhe um
segredo: Niang deu ordens à mãe para não vos convidar para o casamento de
Tai-ling, mas a mãe desobedeceu-lhe deliberadamente.
Ao ouvir estas palavras soou no meu espírito o sinal de alarme. Não fora há
muito tempo que Niang me admoestara pelo facto de ter ajudado Tai-way a sair da
China. Durante trinta anos as relações entre as duas mulheres tinham sido de
grande animosidade. Mas agora, que já estavam reconciliadas, porque é que Niang
aconselhara Lydia a não nos convidar para o casamento de Tai-ling?
O som de um gongo anunciou entretanto que o jantar já estava servido. Eu e Bob
ficámos sentados na mesa de Samuel e Lydia. Houve discursos, brindes e um
recital de piano por Tai-way. Não tive um único momento de concentração, já que
as palavras de Tai-way ecoavam continuamente na minha cabeça. Mexi e remexi o
comer que me fora servido e num momento de maior silêncio entre os discursos,
debrucei-me pela frente de Bob na direcção de Lydia e perguntei-lhe em voz
baixa:
- Diz-me, é realmente verdade que a Niang te aconselhou a não me convidares para
o casamento de Tai-ling?
Lydia ficou calada durante tanto tempo que cheguei a pensar que ela não me tinha
ouvido. A minha pergunta parece que a tinha deixado petrificada. Finalmente,
Página 146
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
respondeu-me com uma voz apagada:
- Sim, o Tai-way deve ter-te dito. Explico-te tudo esta noite. Depois do almoço,
a recepção teve lugar na casa da mãe de Alan, que vivia nas redondezas.
Estávamos a ajudar a dona da casa a servir as bebidas e a fazer conversa de
ocasião, quando Lydia interrompeu a nossa conversa e nos puxou à parte. Samuel
estava-se a sentir mal e ela pediu-nos que os levássemos de carro de volta a
casa de Alan, onde se tinham hospedado. Encontrar-se-iam connosco mais tarde
para o jantar. Ela tinha feito uma reserva "no melhor restaurante de St. Paul" e
ficou combinado que nos telefonaria por volta das 6.30 para dar algumas
indicações.
O telefone tocou às 6.30 no quarto do nosso hotel e Bob foi atender. Era Tai-way
e Bob parecia perplexo.
- Mas porquê? - perguntou ele. Depois só o ouvi dizer - Penso que é melhor seres
tu próprio a dizer isso à tua tia.
Carregou na tecla da função de "espera", voltou-se para mim e disse: - Tai-way
diz que o jantar foi cancelado, mas não foi capaz de dar nenhuma explicação.
247
Sentou-se na borda da cama e puxou o telefone para junto de mim. Eu estava
preparada para uma longa conversa, que de facto não viria a acontecer.
Só ouvi o meu sobrinho com uma voz comprometida a repetir a mensagem. E depois
de uma pausa ele disse em mandarim:
- Tem algo a ver com as vossas infâncias. Tudo isto é muito complicado para eu
entender. De qualquer forma, o jantar está cancelado.
- Posso falar com a tua mãe? - perguntei.
De novo se fez um momento de silêncio após o qual ele acabou por dizer:
- Ela não pode vir ao telefone. Não quer falar contigo. - E o teu pai, pode?"
- O meu pai!
Pela forma como falou, parecia incrédulo, achando que o seu pai era a última
pessoa com quem eu podia querer falar.
- Ele não sabe nada! Ele nada pode fazer. E, além disso - acrescentou -, o meu
pai também não quer falar contigo.
- E tu - perguntei -,também não tens nada para me dizer? - Eu não tenho o
direito de te dizer o que quer que seja. - A sua voz tornou-se ainda menos
natural. - E quero ainda acrescentar que não vos irei visitar à Califórnia.
- Então suponho que isto é um adeus - disse-lhe, sentindo-me confundida e
magoada. O meu sobrinho não disse mais nada e eu pousei o telefone devagar.
Foi assim que eu e Bob deixámos St. Paul após o casamento de Tailing. Depois de
tudo nunca recebemos nem uma carta nem um telefonema que nos esclarecesse acerca
do que se tinha passado. De qualquer forma, o extracto do banco mostrou-nos que
o cheque que tínhamos oferecido a Tai-ling tinha sido levantado na segunda-feira
imediatamente a seguir ao sábado do casamento.
Quando, pelo telefone, falei disto a James, ele disse-me de forma enfática que
não confrontasse Niang sobre os convites para o casamento da Tai-ling.
- Não ~ ~t, ~ ~~ wu feng qá lang (faças ondas sem vento). Como é que os Ingleses
dizem isto? "Não acordes cão que dorme!"
248
27
Jin Zhu Zhe Chi; Jin Mo Zhe Hei
Junto do vermelhão tornamo-nos avermelhados e junto da tintá [-da-china]
Página 147
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
tornamo-nos enegrecidos
Há um provérbio chinês que diz que "Quando a China espirra, Hong-Kong apanha uma
pneumonia." A China estava a viver momentos históricos. O casamento de Tai-ling,
em Abril de 1989, coincidiu com o início das manifestações estudantis em
Beijing, exigindo maior respeito pelos direitos humanos, mais justiça,
democracia e o fim da corrupção e do nepotismo. Encorajados pela imprensa
ocidental, cerca de 50 000 estudantes desfilaram na praça Tiananmen no dia 4 de
Maio. O resto é história.
Subitamente, os cidadãos de Hong-Kong deram-se conta de que para 1997 só
faltavam oito anos. Em solidariedade com os estudantes de Beijing, 40 000
pessoas estiveram presentes na primeira manifestação em Hong-Kong, no dia 20 de
Maio, apesar da chuva torrencial e dos fortes ventos que anunciavam a
aproximação do tufão
249
Brenda. No dia seguinte, 500 000 pessoas vieram para as ruas e, segundo algumas
contagens, no dia 28 de Maio mais de 1 milhão de pessoas juntou-se em Central
clamando por democracia. Na noite do dia 3 de Junho, o batalhão 27 do presidente
Yang Shang-kung abriu fogo na Praça de Tiananmen e prendeu os líderes
estudantis. Em Hong_ Kong a Bolsa caiu 581 pontos num só dia. Uma manifestação
de solidariedade foi marcada para dia 7 de Junho. As pessoas desfilaram vestidas
de preto e branco, mostrando o seu luto à maneira do Ocidente e do Oriente.
Tiveram lugar alguns motins na Nathan Road, tendo a polícia usado gás
lacrimogéneo para dispersar os manifestantes. Com receio da China Comunista, os
cidadãos de Hong-Kong pediram que lhes fosse concedido o direito de emigração
para a Grã-Bretanha após 1997.
James e Louise ainda não tinham passaportes estrangeiros. Eles sabiam que Niang
queria que ficassem com ela em Hong-Kong depois de 1997. Ela, porém, claro, com
o seu passaporte francês e a sua
propriedade em Monte Carlo, era livre de partir quando muito bem entendesse. Era
nítido na cabeça de James que, se se decidissem a emigrar, Niang se juntaria a
eles, para onde quer que fossem. Por outro lado, ao encetar o processo de
emigração sem a convidarem, corriam o risco de a ofenderem e punham a herança em
risco. Secretamente então, James começou a tratar da emigração da sua família
para o Canadá, onde os impostos sobre os rendimentos eram mais leves. Contratou
advogados para tratarem da burocracia e comprou uma casa em Toronto no início do
Verão de 1989.
Quando telefonei para Niang, em Julho, foi a criada quem atendeu. Disse que
Niang estava no Sanatório de Hong-Kong e acrescentou que era uma situação muito
triste, pois que, imediatamente a seguir à morte do pai, Niang era agora
apanhada por uma doença.
Telefonei para o seu quarto no Sanatório.
- Ah! Olá Adeline. - Pela voz pareceu-me educada, mas fria. - Que simpático
teres-me telefonado! Como conseguiste o meu número de telefone?
Quase a 13 000 quilómetros de distância, endireitei-me na minha cadeira e
ajeitei a minha saia.
- Foi a Ah Fong quem mo deu quando tentei telefonar-lhe para casa. Como se
sente? O que aconteceu? Não acha necessário que eu me meta no primeiro voo para
estar perto de si?
Com uma voz um tanto ou quanto gelada, disse-me que tinha notado manchas de
sangue nas fezes e que tivera de fazer uma biopsia ao cólon. Depois de se
recompor um pouco e com uma voz mais leve, acrescentou:
- Já me estou a sentir melhor e dentro de dias já posso ir para casa. Não é
Página 148
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
necessário que venhas. Posso cuidar de mim sozinha.
- James está consigo?
- Não. James e Louise foram de férias para Toronto.
Pelo que ela me disse, fiquei preocupada. Imaginei Niang sozinha, num quarto de
hospital, não longe do lugar onde o pai tinha sofrido durante sete longos anos,
prestes a receber más notícias acerca do seu estado de saúde. Este quadro fez-me
ficar profundamente triste. Por isso insisti em ir para o pé dela, mas ela
recusou categoricamente a ideia, dizendo que estava perfeitamente bem e que,
além disso, ela não teria tempo para me "acompanhar.
- Acompanhar-me?! Não é essa de modo nenhum a minha intenção! Eu só quero ajudar
no que puder.
- Eu não preciso da tua ajuda. Porque insistes? Já te disse inúmeras vezes que,
se tiver necessidade da tua ajuda, te telefono. E, se não te importas, agora
tenho de desligar. Preciso de descansar.
Imaginei imediatamente que James não saberia do estado de saúde de Niang, pois,
de outra forma, não se teria ausentado para o Canadá. James pareceu-me deveras
surpreendido quando lhe liguei.
- Como soubeste que eu estava no Canadá? - A sua voz estava tensa e mostrava
nervosismo. - Quem te deu o meu número de telefone?
- Não me lembro - disse em tom de brincadeira. - Não sei se terá sido a CIA, o
FBI ou a polícia canadiana.
- Vá lá! Diz-me lá, quem foi? - disse ele com voz sincopada e mostrando um pouco
de irritação.
- Pronto, deixa lá ... Podes ficar calmo! Foi Niang quem mo disse e Ah Fong
deu-me o teu número de telefone.
Consegui ouvir um suspiro de alívio. Disse-lhe então que Niang estava no
Sanatório de Hong-Kong e que os sintomas apontavam para um cancro no cólon.
Percebi que ele não estava de modo nenhum dentro do assunto.
- Ofereci-me para ir para junto dela, mas não me quis lá. Não percebo porque foi
Niang tão fria comigo. Será que a ofendi sem dar por isso?
250
251
- Talvez seja por causa da doença - disse James. - Não acho que seja nada de
especial contra ti. Acho que é melhor ir eu para ver se tudo está em ordem. Se
ela te disse que não voasses para Hong_
Kong, é melhor não ires contra a sua vontade. De qualquer forma telefono-te mal
saiba os resultados da biópsia. - Mas James não telefonou. Esperei mais ou menos
uma semana antes de lhe telefonar para Hong-Kong. O meu diagnóstico estava
correcto. Niang tinha um cancro no cólon e precisava de ser operada. James
alvitrou a possibilidade de a operação ser realizada na Califórnia, mas ela
recusou.
- Nesse caso irei para aí para estar junto dela durante a operação. Senti
nitidamente hesitação da parte de James. Depois de alguns momentos disse com voz
pausada, comò que para se assegurar de que a mensagem era por mim cabalmente
compreendida:
- Por ora, ela não quer que tu venhas.
Por um momento não consegui articular palavra. Do outro lado da linha pude ouvir
James a gritar:
- Está? Está? - E depois o mesmo em cantonense - Wei? Wei? Estás-me a ouvir?
Cerrei os dentes e perguntei-lhe: - Porquê?
Ele evitou a questão e a gritar, como que para me assegurar claramente do que
dizia, afirmou:
Página 149
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
- Pensei que a chamada tinha caído. Penso que devemos desligar agora, até porque
a ligação está muito má. Niang decidiu que seria o Dr. Lim a fazer a operação. É
formado pela Faculdade de Medicina de
Harvard. Ela pediu-me que te enviasse uma cópia da biopsia, assim como o número
de telefone do consultório do Dr. Lim em Hong-Kong, para com ele te inteirares
melhor da situação.
- O que é que se passa James?
- A pobre velhota está doente - ripostou James. - Por favor, faz as coisas como
ela quer.
- Certíssimo. Mas o que se passa? Porque não me quer ela junto de si?
- Contactar-te-ei mais tarde por fax - disse ele sem responder à minha questão.
E desligou.
Poucos dias depois recebi os resultados da biopsia. O conteúdo era devastador. O
cirurgião tinha retirado as células cancerígenas dos in
testinos, mas encontrara dois grandes quistos no fígado. Niang recusou ser
operada ao fígado ou sujeitar-se a quimioterapia. A irmã dela, a tia Reine,
tinha morrido alguns anos antes com um cancro no fígado, apesar de doses maciças
de drogas e de radiações, que lhe tinham causado um enorme sofrimento. Tentei em
vão persuadir Niang a vir até à América a fim de ouvir uma segunda opinião
médica. De todas as vezes que lhe telefonei, a enfermeira disse-me sempre que
ela estava a descansar e que não queria ser incomodada. E até recebi um
telefonema de James a recomendar-me que não "incomodasse o descanso dela."
Porém, alguns dias após a grande operação, foi a própria Niang quem me telefonou
a convidar toda a minha família para uma visita de Natal em Hong-Kong. Pareceu
muito afectuosa e desculpou-se por não ter escrito ou telefonado enquanto
estivera no hospital, dizendo que não o fizera por querer esquecer a sua doença
e continuar a sua vida normal.
Bob e eu pegámos nas duas crianças e passámos umas férias de Natal bem
agradáveis com Niang em Hong-Kong. Durante todo o tempo nunca mostrou qualquer
sinal de doença, participando em todos os festejos, trocando presentes e
assinando os seus cartões "Com muito afecto, Mãe." Despedimo-nos calorosamente.
Durante os oito meses que se seguiram telefonou-me com bastante frequência para
me dar conta dos seus planos para emigrar para a América antes de 1997. Edgar
ajudara-a a obter o "cartão verde" e ela tinha ainda recentemente comprado uma
propriedade em Nob Hill, São Francisco. Cheguei mesmo a desejar poder ter com
ela uma conversa de coração aberto e sonhei com um "rapprochement" junto ao seu
leito de morte, num momento em que tudo seria esclarecido e ela poderia então
morrer em paz, rodeada de toda a minha família. Insisti com ela que viesse até
Huntington Beach passar algum tempo connosco, mas ela recusou sempre.
Um dia, em finais de Agosto, quando lhe telefonei, Ah Fong disse-me que ela
tinha voltado para o hospital. Já vestida e pronta para sair, Niang sentira-se
de súbito muito fraca e incapaz de andar. Deu entrada no Hospital Baptista de
Kowloon. Quando lhe telefonei directamente, confessou-me que se sentia muito mal
e, para meu grande espanto, acrescentou que "gostaria que pudesse ir ter com ela
e levá-la para a América~>.
Em francês e em itálico no original. (N. da T.)
252
253
Nem podia acreditar no que ouvia! Tinha-me oferecido antes tantas vezes para ir
ter com ela para a trazer para a América e agora era ela que do hospital mo
estava a pedir. Tentando ter algum sangue-frio, perguntei-lhe se o Dr. Lim a
achava em condições de viajar, ao que ela me ripostou dizendo que não lhe
Página 150
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
interessava mais a opinião dos médicos e o que verdadeiramente queria era que eu
a levasse para os Estados Unidos e arranjasse maneira de ela ficar melhor. James
sabia da sua nova hospitalização? Não, não sabia. E tornou-se insistente nos
seus desejos. Iria eu buscá-la ou não? Prometi-lhe que sim e pedi-lhe que
entretanto descansasse. Deu-me uma resposta carregada de amargura. Que sentido
fazia estar deitada para descansar se nem dormir conseguia? Informou-me que
nunca mais dormira bem desde que o pai tinha falecido. Perguntei-lhe então se o
médico não lhe prescrevera alguns comprimidos para dormir, mas ela respondeu-me
mostrando nítida exasperação na voz:
- Ó Adeline, estou muito cansada. Por favor, faz o que te peço. Vem cá e leva-me
para a tua casa na América.
Telefonei para o médico dela no Hospital Baptista, que me revelou que Niang
tinha fluidos no abdome e que, por isso, não mais poderia andar e duvidava que
ela resistisse mais de um mês. Quanto a ir para a América, poderia aguentar a
viagem, mas só se a fizesse numa maca. A propósito das insónias disse o
seguinte:
- Ela tem tomado tantas drogas para dormir durante os últimos anos, que agora já
nada lhe faz efeito. Muito francamente, as doses são alarmantes, mas talvez lhe
possa administrar morfina para lhe dar algum alívio.
Fiz uma chamada para James, que se encontrava no Canadá a matricular a filha no
Tufts College, e dei-lhe conta do inesperado desejo de Niang. Devia agir de
acordo com o desejo de Niang ou de acordo com o que o Dr. Lim me dissera, isto
é, que Niang estava a morrer? James aconselhou-me a esperar pela sua ida para
Hong-Kong, para ele pessoalmente poder falar com Niang, já que estava a pensar
regressar exactamente no dia seguinte.
Dois dias depois James chegou a Hong-Kong e telefonou-me com uma voz cheia de
cansaço, a dizer que Niang já não o reconhecera. Perguntei-lhe se ainda valia a
pena pensar ir a Hong-Kong e trazê-la para a Califórnia.
- Olha, ela está no seu leito de morte e não se encontra em condições de ir onde
quer que seja. O Dr. Lim diz que ela é'capaz de mor
254
rer dentro de poucos dias. Podes é preparar-te para vir ao funeral e para a
leitura do testamento. Eu estou já a tomar as devidas providências. Porém,
Niang, embora inconsciente e a morrer, estava prestes a lançar a sua melhor
cartada. Filhos seus tinha dois, um morto e um deserdado; mas ficara, contudo,
com cinco enteados, com quem ainda podia fazer o seu jogo final. Fizera-nos
acreditar que era possuidora de uma das maiores fortunas do mundo. Há algum
tempo atrás, no início da década de 70, quando o pai ainda estava activo, a
família Yen era considerada uma das mais ricas de Hong-Kong. No final da década
de 80 a fortuna do pai tinha-se diluído progressivamente. Só James tinha acesso
a documentos e revelou-nos que o seu real valor era aproximadamente de 30
milhões de dólares.
Para mim a verdadeira preocupação não era o dinheiro como tal. Tanto Bob como eu
tínhamos empregos estáveis e bem pagos, com direito a pensões bastante razoáveis
Havia, isso sim, uma necessidade que para mim era básica: a aceitação pelos
outros e a ocupação do meu correcto lugar na família - o que, no fundo, me fora
negado em toda a minha juventude. Em todos nós havia um enorme desejo de sermos
tratados com justiça e igualdade. Não conseguia suportar a ideia de ser eu, ou
qualquer outro de entre nós, a ser deixado de fora por mera discriminação ou
negligência. Apesar de saber que Niang não era uma pessoa nem terna nem boa,
sempre aspirei pela sua aprovação, como antes tinha aspirado pela bênção do pai.
Neste particular eram os dois uma só unidade.
Página 151
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Niang jogou com o nosso sentido confuciano de piedade filial, a fim de ir
impondo a sua influência. A sua ânsia permanente de domínio transcendia toda a
lógica. A extensão da unidade familiar é o laço e a força motivadora que liga
qualquer chinês às suas raízes. Exceptuando Susan, que, com grande força de
vontade, se tinha tornado independente, todos nós estivéramos ao longo de toda a
nossa vida acorrentados a Niang.
Telefonei para Gregory em Vancouver para discutir o desaparecimento iminente de
Niang e ele pareceu-me preocupado com o facto de não ir herdar muito, já que
Niang nunca tinha gostado dele.
- Achas que ela amou algum de nós? - perguntei.
- Claro que não! Mas acho que quem ela mais detestava era eu, uma vez que, sendo
o filho mais velho, ameacei a sua posição na hierarquia familiar.
255
Foi então que Gregory me espantou:
- Ajudas-me, Adeline, no caso de só o James ficar com tudo? É que estou a contar
com esta herança.
Respondi-lhe da forma mais verdadeira que pude naquela altura: - Sabes que será
muito difícil para mim lutar contra James, mas penso que ele nunca seria capaz
de ser assim tão injusto. E, além do mais, acho que James merece uma parte
maior. Afinal de contas, ele deu a Niang trinta anos da sua vida.
Mas Gregory não se comoveu:
- Nunca ninguém lhe fez frente. Obviamente que ele sentiu que teria mais
possibilidades de aumentar a sua parte junto a Niang do que longe dela, vivendo
a sua vida por si. Nunca podes estar assim tão
certa do comportamento das pessoas quando há dinheiro pelo meio. ~L ~ ~ ~ , ~C
.~ ~- ~ Jing zhu zhi chi jing mo zhi hei (Junto do vermelhão tornamo-nos
avermelhados e junto da tinta [-da-china] tornamo-nos enegrecidos). James mudou
muito ao longo dos anos.
E passou mais uma semana, até que no dia 9 de Setembro, domingo, James deixou
uma mensagem no atendedor de chamadas: "A velhota faleceu há hora e meia, às 4
da madrugada de domingo."
256
28
Jiu Rou Peng You Amigos apenas para comer e beber
O funeral de Niang foi marcado para o dia 17 de Setembro de 1990. Alguns dias
antes, Bob e eu voámos para Hong-Kong e eu discuti com James os pormenores do
enterro de Niang. Durante as nossas conversas ao telefone dei conta a James das
desconfianças de Gregory.
Niang tinha tomado doses tão fortes de soporíferos que Gregory e a mulher, que
era farmacêutica, receavam pela sua sanidade. Tinham sobretudo receio que ela
tivesse alterado o testamento original do pai sob a influência das drogas.
Poderia também ter, para além de Susan, excluído Gregory do testamento?
James dissera que nunca fora consultado e, por conseguinte, não tinha a mínima
ideia acerca do conteúdo do testamento de Niang. De súbito perguntou-me se eu me
lembrava de Miss Chien, a antiga preceptora de Franklin. Os Guardas Vermelhos
tinham-na obrigado a sair da casa do pai em 1966, após o que, durante doze anos,
viveu na mais completa pobreza na casa da família do irmão, em Hangzhou, como
uma tia solteirona. A sorte não a bafejara e acabara por contrair cancro de
pele, que alastrara
257
aos ossos e ao fígado. Um dia, já em 1978, James recebeu com surpresa uma carta
Página 152
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
de Miss Chien endereçada ao pai, que na altura já se encontrava senil. Miss
Chien estava às portas da morte, com o corpo torturado pelo sofrimento e não
tinha dinheiro nem para os medicamentos nem para a alimentação. Implorava por
uma pequena soma para aliviar os seus últimos dias. James estava a preparar-se
para lhe enviar um cheque, quando Niang entrou no escritório:
- Não faças nada! - ordenou. - Miss Chien já viveu para além de poder ser útil.
- Senti um arrepio da cabeça aos pés ao ouvir as suas palavras - confidenciou
James. - Ninguém podia esperar razoabilidade ou justiça da parte de Niang. Era
de facto uma pessoa cruel. Qualquer um de
nós, em qualquer altura, podia ter sido deserdado sem causa aparente. O velório
teve lugar na mesma casa mortuária em North Point onde, dois anos antes, se
tinha realizado o funeral do pai. Niang estava deitada num estreito caixão e a
sua face parecia manchada, apesar da maquilhagem muito carregada. Estava
arranjada com um pesado vestido preto e tinha os braços rigidamente postos ao
longo do corpo. O seu cabelo pintado cor de ébano estava esticado para trás,
mostrando saliências na fronte que, enquanto era viva, se esforçara por esconder
com bastante sofrimento.
As criadas cantonenses de Niang, Ah Fong e Ah Gum, vieram vestidas com as suas
túnicas brancas e com as calças largas e pretas. Tinham servido fielmente o pai
e Niang durante trinta anos. O seu motorista fez
uma breve aparição. Chegaram também duas enfermeiras, que tinham sido
contratadas para fazer companhia a Niang durante a noite.
Susan e o marido foram os últimos a chegar. A nossa irmã mais nova estava
magnífica num fato preto de bom corte, com o cabelo comprido penteado com muito
cuidado às ondas. Informou-nos que
tinha pedido que fosse celebrada uma missa pela alma de Niang na capela
católica, naquela tarde.
Sentámo-nos em cadeiras de metal naquela sala fria e anti-séptica, à espera das
demais pessoas. Tinha visto fotografias e ouvido inúmeros relatos de
dispendiosos almoços, jantares, bailes e recepções.
- A única coisa má de viver em Hong-Kong - disse-me uma vez !Viang - é a
permanente roda-viva de festas e mais festas.
Esperei que um grupo de amigos seus entrasse a qualquer momento pela porta. Mas
ninguém chegou a aparecer para lhe prestar uma última homenagem e para lhe dizer
um último adeus.
Revi então a minha triste infancia e pensei no contínuo abuso que Niang sempre
dispensara a todos quantos a tinham rodeado. Revivi o orgulho que sentira quando
finalmente me tinha conseguido livrar do seu reino de terror e opressão. E,
ainda assim, continuava a ser importante para mim o facto de ela me amar ou não.
Quando deixei os meus pensamentos e olhei à minha volta, vi o Sr. Lu, o fiel
chefe da contabilidade do pai, levantar-se e ir para junto de Bob.
Sussurrou-lhe:
- Penso que não virá mais ninguém. Ela não tinha verdadeiros amigos, só tinha
jiu rou peng you (amigos apenas para comer e beber). Como vocês os dois sabem,
ela era uma pessoa peculiar. Não gostava de muita gente. Vejam como ela empurrou
Susan para fora da sua vida e do seu testamento, ela que era a sua única filha,
os seus gu rou (ossos e carne).
A minha pálpebra direita começou a tremer incontrolavelmente, enquanto eu fixava
os meus olhos no Sr. Lu, ao mesmo tempo que tentava perceber o verdadeiro
sentido das suas palavras.
- O que está a tentar dizer-nos, Sr. Lu? - perguntei com alguma ingenuidade. -
Porque não vai directamente ao assunto em vez de continuar com rodeios?
Página 153
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
O Sr. Lu voltou-se para Bob, mas as palavras eram para mim:
- Parece que ninguém lhe diz nada - lamentou ele. - A Niang dela não quis que
ela soubesse, mas é possível que não lhe caiba nada amanhã aquando da leitura do
testamento.
- Não acredito em si! - gritei. - Ainda há três semanas ela estava a pedir-me
que a levasse daqui para a minha casa na América! Acho que deve ter tido alguma
ternura por mim, já que estava disposta a ir morrer na minha casa.
O Sr. Lu abanou a cabeça, ao mesmo tempo que evitava cruzar o seu olhar com o
meu.
- A causa do pedido dela deve ter sido originada por motivos posteriores, com
vista a voltar todos os seus parentes contra si. Ela possuía o "cartão verde" e
era cidadã permanente dos Estados Unidos. O governo americano deveria cobrar
imposto de sucessão sobre os seus bens, caso ela morresse na América. E você
seria censurada pelo facto de a ter levado para sua casa para morrer.
Comecei a tremer e tive por momentos dificuldade em respirar. Eu tinha 6 anos e
era Ano Novo chinês. Nós, as crianças, estávamos
259
vestidas com roupas novas e brilhantes e toda a gente estava reunida para tomar
o tradicional almoço da ocasião: pães gelatinosos, bolos de arroz doce, enquanto
se ouvia na rua o barulho dos panchões. Um a um, todos nós recebemos um ya sui
chien°s, um envelope tradicional de cor vermelha, contendo dinheiro e decorado
com caracteres que diziam "Feliz e Próspero Ano Novo". Todos receberam, excepto
eu. Fui a única criança esquecida - castigada por ter falado contra o facto de
Niang ter batido em Susan, que era ainda um bebé.
- Um momento - interrompeu Bob -,está realmente seguro do que está a dizer? Já
leu o testamento de Niang? E James, também já o leu? - Ainda nenhum de nós leu o
testamento - explicou o Sr. Lu -, mas temos a certeza absoluta dos seus traços
gerais. Acredite, só falei neste assunto porque não vejo necessidade de a
Adeline ir amanhã à leitura do testamento e ser desnecessariamente magoada.
O resto daquela tarde passou a correr e sem eu ter dado conta. Todos fomos à
missa católica que tinha sido pedida por Susan. Eu não via o momento de voltar
ao hotel e ouvir de James toda a verdade. Mal
chegámos, telefonei-lhe. A empregada dele informou-me que Louise já se deitara,
mas que James estava com todos os seus irmãos no Hotel New Asia. Bob e eu
descemos de elevador até ao quarto do Gregory.
Já no corredor, ouviam-se gargalhadas. Dentro do quarto encontrámos os meus três
irmãos, a minha irmã Lydia e o Sr. Lu, que ainda vestiam os fatos negros do
funeral. Em cima da mesa estava uma
garrafa de uísque meio vazia e alguns copos. Os enteados de Niang estavam a
celebrar o seu desaparecimento. Era óbvio que tinham tido conhecimento do
conteúdo do testamento.
Quando entrámos, fez-se um silêncio pesado. Olhei na direcção de James, que
estava corado por causa do uísque e ainda se ria da última piada que ouvira.
- Desculpem termos vindo interromper a vossa festa - disse eu com secura -, mas
posso falar contigo em particular durante alguns minutos?
O sorriso desapareceu dos lábios de James.
- De facto - disse ele -, ia mesmo agora levar o Sr. Lu a casa no meu carro.
Está-se a fazer tarde.
°z Envelope tradicional que se oferece na época do Ano Novo chinês e que em
cantonense se chama lai si. (N, da T.)
260
Página 154
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
- Então, eu e Bob vamos convosco, se não se importam. - Muito bem - murmurou
James. - Vamos então.
Durante o percurso através do túnel que liga Hong-Kong a Kowloon até casa do Sr.
Lu, Bob tomou a minha mão na sua, mas não trocámos palavra. Eram quase 11 horas
e o tráfego estava fluido. Enquanto o Sr. Lu falava constante e nervosamente
veio-me à memória um incidente que há muito esquecera.
Era um dia escaldante de Verão no pico de uma onda de calor em Xangai. Eu tinha
acabado os meus trabalhos de casa e estirara-me em cima da minha cama. Niang e o
pai estavam fora durante alguns dias e a atmosfera na casa era de distensão e de
sossego. Sentíamo-nos à vontade na ausência deles.
A empregada entrou no meu quarto e disse que os meus irmãos me esperavam na sala
de jantar. Eles tinham um presente especial para mim. Dei um pequeno salto, mas
ela informou-me que James também lá se encontrava. Ser chamada pelos meus três
irmãos mais velhos era para mim misterioso e excitante. Corri até ao
rés-do-chão. Em cima da mesa da sala de jantar estava um grande jarro de sumo de
laranja rodeado de quatro copos, três vazios e um cheio.
Edgar foi o primeiro a falar, com um sorriso de orelha a orelha: - Dado que está
um dia tão quente e que recebeste tão boas notas nas tuas fichas de avaliação,
pensámos que, como prémio, merecias um copo de sumo de laranja, já que o pai não
está aqui para te dar os parabéns.
- Mas porquê? - indaguei com suspeição. - Vocês nunca foram bons para mim antes.
- Bebe! - disse Edgar em tom de ordem, dando-me uma pancadinha nas costas.
- Não quero. Porque tenho de beber isso? Porque não o bebes tu?
- Até tem gelo, vês? - Edgar pegou no copo e os cubos de gelo tilintaram. -
Vai-te refrescar num instante.
Inspeccionei o sumo e fitei Gregory.
- Achas que posso beber isto, ~ ~ Da ge ( Irmão mais Velho)? - Claro que podes.
Fomos nós que o fizemos com o concentrado de laranja desta garrafa aqui, vês?
Fizemos-te este copo de sumo por causa dos teus resultados tão bons na escola.
Dito isto, todos se riram estridentemente.
261
A sala estava quente e fazia-se sentir muita humidade no ar. O gelo flutuava
fresquinho na garrafa do líquido alaranjado.
Peguei no copo e apelei para James, sabendo que ele nunca me desapontaria:
- Posso beber, _-~- San ge (Terceiro Irmão)?
- Podes - disse James. - Este é o teu prémio por teres sido exemplar na escola.
Aliviada e apoiada, bebi um enorme gole. Mal entrou na boca, cuspi todo aquele
líquido. Os meus três irmãos tinham misturado a urina de todos eles com o
concentrado de laranja e enganaram-me. Desfiz-me
em lágrimas, não tanto por causa da malícia de Edgar ou por causa da mentira de
Gregory, mas sim pela traição de James.
Entretanto o Sr. Lu saiu do carro e eu sentei-me no lugar da frente ao lado de
James, que nos conduzia agora de volta ao hotel. Senti que ele estava bastante
comprometido. Apesar de o ter negado repetidas
vezes, como é que era possível que não tivesse conhecimento do que o Sr. Lu me
tinha antes dito? Ou, pior ainda, ele devia ter acordado com Niang em manter-me
na ignorância.
James pagou os 10 dólares da portagem e, acelerando, atravessou de novo o túnel
e saiu do lado da ilha de Hong-Kong. Graças a Deus que estava escuro, pois assim
não tive a consciência de quão peri
gosa foi a sua condução. Começou a chover e James ligou o limpa-pára-brisas.
- O Sr. Lu informou-me - comecei eu com todo o cuidado - de que tinha sido
Página 155
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
excluída do testamento de Niang e que, por isso, não receberei nada.
James não fez qualquer comentário e iniciou a curva para a Rua Wong Nai Chong,
mas pela primeira vez não tentou negar. Por um momento deixou de fingir. Virou
mais uma vez noutra rua e pouco
tempo depois já estávamos estacionados em frente do hotel, mas ele ainda não
tinha dito nada.
- Diz qualquer coisa! - pedi. - O Sr. Lu está a dizer a verdade? Sem ter
desligado o motor do carro e olhando em frente, fixando o movimento compassado
dos pára-brisas, acabou por dizer:
- Sim.
- E o pai? E o pai? Também fui excluída do testamento do pai? Algumas lágrimas
rolaram-me pela face. Veio-me à ideia a imagem io meu pai deitado, mudo e sem se
poder mexer durante anos no quarto
?62
525 do Sanatório de Hong-Kong. Seria possível que ele também me tivesse
rejeitado?
- Já te disse que não li o testamento do pai - disse James sem esconder a sua
irritação. - Como poderei eu saber o que é que o pai quis? Mas, de qualquer
maneira, o testamento do pai é irrelevante, pois todos os bens estavam em nome
de Niang.
- Mas porque me excluiu Niang? O que fiz eu que a tivesse ofendido?
- Olha - disse James com azedume -, eu não tenho todas as respostas. Niang ficou
com uma impressão muito má de ti quando estiveste com ela em 1987. Ela disse que
tu querias pôr o pai num apartamento em Kowloon e que, além disso, não estavas
nada agradecida pelos estudos de Medicina que ela te proporcionara em
Inglaterra.
- Pôr o pai num apartamento em Kowloon? Isso é tão fora da realidade que chega a
ser risível! Porque quereria eu que Niang fizesse semelhante coisa? Achas mesmo
que é essa a verdadeira razão?
- Eu já não sei em quê e em quem hei-de acreditar. Simplesmente estou a repetir
o que Niang me disse. Detesto conflitos, especialmente quando se arrastam pelos
tribunais, tanto mais que na minha idade começo a pensar que a vida é muito
curta para isso. É importante para mim gozar em paz os anos que ainda tenho para
viver. Lembra-te - disse ele - que eu serei o executante do testamento, por
isso, se decidires alguma acção judicial, estarás a confrontar-te comigo e serei
o teu adversário em tribunal.
Enquanto ele falava senti um frio gelado dentro dos ossos, pois tinha a certeza
de que estava a ouvir um discurso antes preparado. Aquela não era a fala
espontânea de um irmão preocupado.
Bob, que se tinha deixado ficar sentado no banco de trás em silêncio, dobrou-se
para a frente e pôs a sua mão no meu ombro.
- Não vês que tudo isto a está a deixar arrasada? Neste momento ela sente-se
atraiçoada e enganada.
- Não me venhas com essa conversa piegas! - disse James com rudeza. - É de
dinheiro que vocês andam atrás? Se é de dinheiro, eu posso ajudar-vos. Diz-me
quanto é que precisam?
Olhei de lado para o meu irmão, que se tinha deixado cair sobre o volante, tenso
e triste. Veio-lhe um rubor carregado à face e parecia por momentos inchado com
a vergonha.
263
- Tu e eu, James, já passámos por tanto juntos e deixas que tudo acabe desta
Página 156
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
forma tão baixa? Seguramente que tu, mais do que qualquer outra pessoa, devias
saber que não é de dinheiro que se trata aqui. Trata-se de família e de fair
play e da nossa insistente procura de uma mãe. - Nem Bob nem James disseram
palavra. - Ainda não consigo entender porque me deserdou Niang enquanto me fazia
passar por parva. Amanhã - continuei - irei ao funeral pela manhã. Mas ir às 4
da tarde ouvir a leitura do testamento ... isso não consigo aguentar. Esperarei
por vocês no meu quarto de hotel. Podes depois vir dizer-me o que se passou
quando já estiver tudo acabado? E, por favor, podes trazer-me uma cópia do
testamento?
O testamento foi lido às 4 horas e às 6.30 James entrava no meu quarto com uma
cópia do testamento. O seu hálito cheirava a álcool e mostrava que tinha
bastante pressa em sair. Tinham todos ido directa mente do escritório do
advogado para a Sala Clipper, no Hotel Mandarim, para celebrarem e um jantar
estava marcado para aquela noite no Shanghai Club. Susan, eu e os nossos
respectivos maridos não tínhamos sido convidados.
- Eu sou um homem de palavra - declarou James. - Esta é a tua cópia do
testamento de Niang e desculpem, mas não me posso demorar muito. Estão todos à
minha espera para o jantar e ainda por cima sou eu quem convida.
- O que é que está aí escrito?
- Gregory e Edgar recebem 20 por cento. Eu recebo 50 por cento. Lydia recebe 10
por cento. E Susan e tu não recebem nada.
Folheei apressadamente os papéis até encontrar o meu nome.
- "Adeline Yen Mah" - li eu alto na direcção de Bob -, "dado que nem sequer é
minha filha, Adeline Yen Mah não receberá de forma alguma nenhum dos meus bens."
- a minha voz fraquejou - Porquê, James, porquê? Porque me desprezou ela sempre
tanto? "De forma alguma", é o que aqui está. "De forma algumau!
James, que estivera sentado todo o tempo, levantou-se na direcção do bar, tirou
um copo e serviu-se generosamente de uísque. Bebeu-o de um só trago.
- Não leves esta questão tão a peito - disse então. - Olha, deixa-me dar-te
algo. Que tal o apartamento de Niang? Porque não ficas com ele? Lembra-te de
que, se fores para tribunal, quem ganha são os advogados - continuou - e já tens
dinheiro que chegue. 10 ou 20 por
264
cento a mais não é o que te vai fazer alterar o teu estilo de vida. Bem, tenho
de ir. O jantar é às 7.30 e eu ainda tenho de aqui voltar para levar Lydia. Ela
quer telefonar aos filhos para lhes contar as boas notícias.
- Não é incrível que Lydia, que Niang odiava e que há quatro anos não quis
sequer ver, receba 10 por cento, enquanto eu, que comprei em 1986 a passagem
aérea para Lydia para que ambas se pudessem reconciliar, tenha sido deixada de
fora?
- Esta foi a forma como a Velhota quis que as coisas ficassem no fim - disse
James. -Vá-se lá saber, porquê? De qualquer modo, amanhã de manhã todos estamos
convidados para irmos ao apartamento dela para se fazer a divisão da mobília,
das antiguidades e das jóias. Telefona-me caso queiras ir também. Agora tenho
mesmo de ir. Até amanhã.
265
29
Wu Tou Gong An Um caso sem pés nem cabeça
Página 157
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Susan foi bem mais clarividente do que eu.
- O quê?! - exclamou - Lydia ficou com 10 por cento e tu ficaste sem nada? Que
justiça é esta?
- Tu também não herdaste nada .J•~ Xiao mei (Irmã Pequena). Estava a mostrar
preocupação pelos sentimentos de Susan em relação a mim, quando no fundo ela
estava na mesma situação.
- Ela tinha-me deserdado em 1973. Não estava à espera de nada nem nunca mais
quis nada que fosse dela! Mas tu, o que é que tu fizeste para merecer isto? Era
de facto uma mulher ínvia! Porque teve ela de te castigar desta forma?
Pensei como seria dificil para Susan admitir que uma pessoa assim era os seus gu
rou (ossos e carne). Mas depois veio-me à memória a valentia que ela tinha
mostrado há dezassete anos, ao voltar as costas ~ Niang, coisa que nunca nenhum
de nós conseguira fazer.
- James disse que foi porque em tempos quis pôr o pai num apartamento em Kowloon
e porque não me mostrara suficientemente agradecida quanto à educação médica que
recebera.
- Que disparate mais completo! Então eles devem ter discutido o testamento entre
si ... e, se de facto o fizeram, porque não te defendeu James?
A minha irmã mais nova tinha posto o dedo na ferida.
- Eu não te sei responder, mas uma coisa é certa: antes de deixar Hong-Kong
tenho de ter acesso ao que foi o testamento do pai. James ofereceu-se para me
dar o apartamento de Niang. E ainda para mais convidou-nos a todos, tu incluída,
para irmos a Magnolia Mansions amanhã para ser feita a divisão do seu recheio.
- Ele deve estar a brincar! - disse a Susan a rir. - Nem pensar que eu lá irei
alguma vez. E as coisas de Niang, além de me causarem repulsa, trar-me-iam má
sorte. A última coisa que eu quero é que algo ma faça lembrar! Os preços caíram
drasticamente e continuam em baixa por causa dos acontecimentos em Tiananmen.
James está a tentar comprar-te pelo preço mais baixo. Possivelmente está com
medo que tu ponhas o testamento em causa; coisa, aliás, que tens todo o direito
de fazer.
Durante a noite seguinte tive um sono muito agitado. Acordei às 4 da madrugada e
desde aí voltei-me e tornei a voltar-me na cama, mas não mais preguei olho. Bob
abraçou-me longamente. Mas, mesmo assim, como nenhum de nós conseguia dormir,
saímos para dar um longo passeio a pé à volta do hipódromo de Happy Valley e
acabámos à porta de James e de Louise. Eram 8 da manhã e eles estavam a tomar o
pequeno-almoço.
Pouco depois Gregory e Edgar chegaram; este último, mal me viu, saiu logo, mas
Gregory sentou-se junto de mim e aceitou uma chávena de chá.
- O testamento de Niang deixou-me muito triste - começou Gregory. - É tão
injusto que não te tenha cabido nada. O que pensas que nós podíamos fazer para
tornar o testamento mais justo e não te sentires tão mal? Eu sugiro que cada um
de nós te dê 10 por cento da parte que lhe coube, para que acabes por ficar com
10 por cento do total.
As suas palavras fizeram que algumas lágrimas me caíssem pela face e fiquei com
um nó na garganta. Esperei uns momentos até sentir que podia falar com uma voz
minimamente segura.
- Agradeço-te do fundo do coração, acho que a tua oferta é mais do que generosa.
267
- Dado que eu tenho a parte maior - interrompeu James -, os meus 10 por cento
são equivalentes a 5 por cento do total, o que inclui também o apartamento de
Niang. - Olhou de soslaio para Louise, que se deixou ficar cabisbaixa. Ninguém
disse nada. - Tal como já disse antes, estou muito velho para batalhas
Página 158
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
judiciais. O que eu agora quero é gozar o meu dinheiro, portanto acho que sim, a
minha resposta é sim.
- Fica então assim combinado - concluiu Gregory. - Depois falarei a Edgar e a
Lydia.
Louise olhou para o relógio e disse:
- Dissemos a Ah Fong que estaríamos lá às 10 horas. Já são quase 9.30 e ainda
temos de ir buscar Lydia e Edgar. Acho que devemos sair quanto antes.
- Eu por mim vou só ao cabeleireiro. Não estou interessada nas jóias nem na
mobília de Niang. Tudo o que eu quero é o testamento do pai.
Voltei-me então para James e pedi:
- Podes dar-nos, a mim e a Bob, permissão para irmos esta tarde ao apartamento
de Niang para o procurarmos?
- Acho que vais só gastar o teu tempo - replicou James -, mas muito bem. Vai lá
procurar e podes levar todos os documentos que quiseres! Eu e o Sr. Lu já vimos
e revimos todos os papéis de Niang e não conseguimos encontrar o testamento.
Depois de ter lavado a cabeça e composto o cabelo voltei para o meu quarto de
hotel bastante mais fresca. Mal tinha acabado de entrar bateram à porta. Era
Gregory.
- Falei a Edgar e Lydia. Edgar recusou liminarmente dar-te o que quer que seja e
Lydia a princípio também recusou, mas, depois de eu lhe ter lembrado que ela
tinha sido deserdada e, se não tivesses sido tu, ela não teria ficado com nada,
ela concordou em te dar 5 por cento na condição de tu fazeres uma confissão
completa.
- Uma confissão completa? Mas o que é que eu tenho de confessar? - perguntei
incrédula.
- Foi o que eu também lhe perguntei, mas ela não me disse bem o quê. Ela chamou
ao facto de teres sido deserdada um ;~. ãl~ ~~~ ~ wu tou gong an (um caso sem
pés nem cabeça). Ela quer que tu confesses as verdadeiras razões que estão por
detrás deste caso. Penso que esta ideia lhe vem dos seus tempos de comunista.
Ela delicia-se a ouvir as confissões dos outros. Acho que a fazem sentir-se
poderosa. Na China,
268
durante a Revolução Cultural, as pessoas passavam a vida a confessar-se em todos
os lados.
- Então Lydia quer deveras ouvir a minha verdadeira confissão. Bem, o facto é
que eu também gostaria de saber as verdadeiras razões. Gregory, diz a Lydia que
fique com o dinheiro dela - disse eu. - Não quero nada seu.
269
30
Kai Men yi Dao Abre a porta e saúda o ladrão
Bob e eu acordámos estremunhados às 5 da tarde, depois de nos termos deixado
dormir durante toda a tarde. Arranjámo-nos a correr e saímos muito apressados,
apanhando um táxi para Magnolia Mansions.
No patamar de mármore do 10.° andar fomos assaltados por cheiros que me eram
familiares: o perfume de Niang, a cânfora e o tabaco. Lembrei-me então de
quantas vezes ali tinha estado naquele lancil com as mãos a suar e o coração a
palpitar! Ah Fong abriu primeiro a porta de madeira e em seguida o portão de
ferro.
No interior tudo estava como dantes. Ali estavam os quadros de Castiglione, o
jesuíta italiano do século xviii na corte do imperador Qian Long. Contra uma das
Página 159
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
paredes estavam quatro cadeiras ricamente trabalhadas, que datavam do tempo do
último imperador da China. De frente para o porto encontrava-se uma chaise
longue imitação Luís XIV. Por cima da mesa de café da dinastia Qing vi uma caixa
de prata Tiffany, que eu lhe tinha enviado dezasseis anos atrás por altura do
aniversário dela. Mesmo ao lado dessa caixa faiscava um isqueiro em ouro
que Bob lhe tinha dado num Natal. Há alguns anos aconselhara-a a deixar de
fumar, ao que me respondeu como um tiro:
- Deixa-me em paz! Não preciso que sejas tu a dizer-me que fumar faz mal à
saúde. Isso está escrito em todos os maços de cigarros. - E depois de um
silêncio acrescentou de forma um tanto patética: - É o único prazer que tenho
desde que o teu pai ficou doente.
Não lhe respondi, pois sabia que era inteiramente verdade.
Ah Fong andava à nossa volta a perguntar-nos se queríamos algo para nos
refrescarmos e, de súbito, lembrámo-nos ambos que não tínhamos almoçado. Bob
perguntou-lhe então, no seu cantonês rudimentar, se ela não nos podia preparar
chá e algumas torradas. Posto isto, começámos sem mais demoras a busca no quarto
de Niang.
Desde o início da doença do pai que Niang se tinha mudado do quarto principal
para um mais pequena mesmo em frente da verde encosta da montanha, que ficava
mesmo por detrás do apartamento. Era decorado com uma cama de solteiro, uma
escrivaninha antiga chinesa com a cadeira respectiva, uma cómoda com um relógio
que lhe tínhamos oferecido alguns anos antes, um guarda-fatos e um armário
incrustado na parede.
Comecei a inspeccionar o guarda-fatos e vi uma enorme fila de vestidos
impecavelmente pendurados, dúzias de pares de sapatos em fileiras tal como
soldados em parada, além de malas vazias arrumadas umas ao lado das outras numa
prateleira em cima. O testamento não se encontraria por certo ali. Todavia, o
mero contacto com os seus objectos pessoais deu-me náuseas. A fraca luz no
tecto, bem como a da mesa-de-cabeceira, coavam a luminosidade e faziam sombras
sinistras. Senti o peito a apertar-se pelo forte efeito da sua aura; os meus
sentidos ficaram saturados com o seu odor.
Fui então ver a antiga escrivaninha chinesa. Seis anos antes, Niang tinha
prometido a Bob que lhe deixaria exactamente esta peça. "Trabalhada por
excelentes artífices durante o período da dinastia Ming", lembro-me que foi o
que ela disse nessa ocasião. Estaria ela já a mentir nessa altura? Pus-me então
a observar com atenção o magnífico trabalho de madeira e experimentei o deslizar
perfeito da gaveta de cima, que abri.
Os maços de cartas deixaram-me de boca aberta. Pilhas e pilhas de envelopes de
correio aéreo, num total de talvez duzentas cartas, irrepreensivelmente
arrumadas em filas. Comecei pelas que estavam
270
271
manuscritas em pequenos e familiares caracteres chineses com selos coloridos da
República Popular da China. Todas vinham de Tianjin e eram endereçadas à Senhora
Joseph Yen. Eram todas escritas por Lydia.
A visão destas cartas deixou-me grudada ao chão. Por que razão tinha Lydia
escrito a Niang quase dia sim, dia não? Num acesso de maior curiosidade, peguei
no envelope de cima e tirei de lá a respectiva carta. À medida que comecei a
ler, o aperto no meu peito fez-se sentir com mais força. Senti uma tontura, como
se estivesse no cimo de uma torre e visse tudo em baixo a andar à roda.
Carta após carta, todas elas estavam cheias de mentiras a meu propósito,
incitando Niang contra mim. Eu era "cruel, egoísta e miserável" e Lydia
Página 160
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
aconselhava Niang a tratar comigo com todo o cuidado, pois que ela já não se
encontrava numa posição de força. Acusava-me de desobediência pelo facto de ter
continuado a contactar Susan e de me ter juntado a ela e a todos os meus outros
irmãos para ajudar Taiway, com a intenção pura e simples de desafiar as suas
ordens. O ano de 1997 aproximava-se a grande velocidade, quando Hong-Kong
passaria a ser governado por Beijing. Ela jogava com os medos e as fobias de
Niang, escrevendo-lhe que eu andava a incitar James a emigrar, a fim de deixar
Niang só e abandonada durante os seus últimos anos. Por fim pedia segredo a
Niang.
Mesmo por debaixo destas cartas estavam outras de Samuel e de Tai-ling com
acusações semelhantes. Com o coração pesado, dei-me conta de que ao ir contra as
ordens de Niang ajudando a família de Lydia, tinha kai men yi dao (aberto a
porta e saudado o ladrão).
Quando me voltei para mostrar a Bob as cartas de Lydia, ele deu um grito de
alegria. Tinha estado a remexer papéis na dispensa de Niang e era sem sombra de
dúvida melhor detective do que eu. Apareceu junto de mim a abanar triunfalmente
um documento. Era o testamento do meu pai.
Bob e eu sentámo-nos na borda da cama de Niang e lemos repetidas vezes o
testamento do pai. Parecia que ouvia de novo a voz de meu pai, como se se
tivesse levantado da sua campa e eu o estivesse a abraçar de novo. Os seus
desejos aliviaram o meu coração. O testamento de meu pai, escrito a 2 de Maio de
1974, era radicalmente diferente do de Niang, escrito a 2 de Junho de 1988,
menos de três semanas após a sua
272
morte. O pai tinha dividido os seus bens em sete partes. Deixava uma parte para
mim, outra para Gregory, uma também para Edgar, duas para James e as outras duas
para os seus netos que tivessem o apelido Yen. Nenhuma parte era deixada para
Susan. Além disso, tinha escrito no testamento: "Gostaria de esclarecer que
nenhuma parte dos meus bens é deixada a Lydia Yen Sung."
Ao dobrar de novo o papel do testamento, senti-me a abraçar o meu pai.
- No final de contas o testamento de Niang não é importante. Aconteça o que
acontecer, este documento, o testamento do meu pai, é o que é importante para
mim. Ele pelo menos não me excluiu. No fundo, talvez me amasse. E, além de tudo
o mais - acrescentei -, James fará o que é correcto. É ele o executor do
testamento e é um homem honesto.
Ao acaso tirámos algumas das cartas de Lydia e juntámo-las ao testamento do pai
dentro da minha mala de mão. Sentados já no táxi a caminho do nosso hotel, Bob
agarrou-me a mão e disse-me:
- Lembra-te que sempre me terás a mim ...
273
31
Yan Er Dao Ling Não querer ver o que é evidente
Na manhã seguinte, eu e James encontrámo-nos para o pequeno-almoço numa loja de
dim sum43. Sentámo-nos um em frente do outro em banquinhos que estavam dispostos
em volta de uma mesa, tudo ao estilo da "Velha Xangai". Havia ventoinhas que se
moviam lentamente no tecto,
janelas com vidros martelados, chão em parquet encerado, fotografias da época,
vasos com crisântemos frescos. Éramos os únicos clientes.
Lá fora chovia copiosamente. Serviram-nos chá e nós pedimos uma tigela de sopa
de fitas cada um. Em silêncio passei o testamento para as mãos de James e ele
mostrou-se admirado com a facilidade com que
Página 161
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
o encontráramos. Voltou a dizer que tanto ele como o Sr. Lu o tinham procurado
"por toda a parte", mas sem qualquer resultado.
- Eu gostaria de ficar com este testamento. Bem sei que não tem qualquer valor,
mas quero tê-lo na mão para o advogado que vai tratar das partilhas.
°' Refeição matinal chinesa composta de pequenos pratos leves, geralmente com
comida preparada no vapor. (N. da T.)
- Além do testamento, também encontrámos muitas cartas na escrivaninha de Niang.
Talvez umas duzentas. A grande maioria foram enviadas por Lydia. Trouxemos
algumas connosco quando deixámos o apartamento de Niang ontem à noite.
Tirei uma pilha de cartas da minha mala de mão e pu-la junto ao testamento do
pai. James olhou para as cartas, franziu o sobrolho e cerrou os lábios. Já lhe
tinha visto esta expressão muitas vezes, especialmente quando no fim de um bem
disputado jogo de xadrez, pouco antes do seu lanço final para cheque-mate.
- Não tinhas o direito de tocar nessas cartas, e muito menos de as tirar da
escrivaninha de Niang - disse ele com uma voz gelada. - Essas cartas são
privadas!
- Eu penso que as devias ler. Olha aqui - disse eu com alguma ênfase -,esta
carta tem a data de 7 de Outubro de 1987. Enquanto eu tentava ajudar os filhos
dela, Lydia conspirava contra mim.
- Eu não quero ler essas cartas envenenadas.
- Mas não queres conhecer a verdade? - perguntei eu, agora de forma um tanto
patética. - Tu não podes ~~ ~ ~. i; yan er dao ling (não querer ver o que é
evidente).
- Será que existe a verdade absoluta? - lançou ele com retórica. - Tudo depende
do ponto de vista das pessoas. De qualquer forma, é tudo água que passa sob a
ponte. Suan le (let it be)! Além disso, detesto conflitos! Lembra-te que, se
denunciares o testamento, estarás a entrar em confronto comigo. E, se, por
acaso, tu e eu nos tivermos de confrontar em tribunal, então estaremos a
deixar-nos apanhar pela armadilha de Niang, pois que isso foi sempre o que a
velhota sempre quis.
- Tu foste apanhado pelas teias dela há já muito tempo. Ela sempre soube como
lidar contigo. Tu nunca foste um desafio para ela. Somente Lydia era
suficientemente ínvia para competir com ela.
James deu uma gargalhada.
- Tens razão! São as duas tiradas do mesmo molde. Pena foi que só compreendesses
isso muito tarde e à tua própria custa. Foste tu quem levou Lydia e Niang a
reconciliarem-se. Se elas não se tivessem encontrado em 1986, as coisas
ter-se-iam passado de uma forma muito diferente. - Pousou os pauzinhos e pediu a
conta. - O teu grande problema, Adeline, é que estás sempre a transferir para os
outros os teus próprios sentimentos e pensamentos. Quiseste sempre que todos nós
partilhássemos o teu sonho de uma família unida, mas de facto nunca
nenhum de nós se importou com isso, excepto tu. Desculpa, mas agora tenho de ir.
Está-se a fazer tarde para mim.
O seu olhar por momentos cruzou-se fixa e obstinadamente com o meu. Levantou-se
e agarrou no testamento do pai e nas cartas de Lydia. - Enviar-te-ei uma
fotocópia do testamento do pai, mas, quanto a estas cartas, como são privadas,
vou queimá-las.
Saímos e continuava a chover, como se todo o mundo chorasse naquele momento.
Durante a nossa infância e juventude, bem como quando já éramos adultos, sempre
fôramos um para o outro um ombro amigo. Ao longo de anos Niang deve ter sentido
sempre um certo rancor por esta inclinação especial que sempre tivemos um pelo
outro. Por fim, com a intenção de destruir este nosso laço, levou-o a participar
Página 162
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
numa fraude que ele detestava. Nada mais lhe agradaria do que ver-nos discutindo
e lutando por causa da sua herança.
Quando o vi começar a afastar-se, protegendo-se da chuva, chamei-o: - `_ ~-! San
ge! (Terceiro Irmão mais Velho)! Foi um grande infortúnio termos tido Niang como
madrasta. Mas não te preocupes, pois eu não vou contestar o seu testamento.
Nunca deixarei que ela triunfe à minha custa.
276
32
Luo Ye Gui Gen As folhas que caem regressam às suas raízes
Num dia cinzento de Março de 1994 recebi uma carta da minha tia pedindo-me que
fosse ter com ela a Xangai. As notícias deixaram-me num estado de grande apatia,
que se conjugava naquele ano com um tempo excepcionalmente frio e cinzento para
o clima do Sul da Califórnia.Embora tivesse de continuar com os meus afazeres
diários, tinha uma dor latente, que se agravava sempre que me vinha à ideia a
imagem dela a morrer sozinha na sua enorme casa.
No meu íntimo algo me dizia que aquela minha visita seria a última.
Instintivamente rejeitei a ideia, para mim inaceitável, de que a tia Baba
pudesse partir deste mundo para sempre num futuro muito próximo. Durante a longa
viagem de Los Angeles para Xangai, via Tóquio, fui fazendo planos detalhados de
como a trazer para a América a fim de ser observada pelos melhores
especialistas.
A Xangai dos anos 90 tinha-se transformado numa cidade onde palpitava energia e
vitalidade. Os carros atravancavam as ruas. Por todos os lados se viam
guindastes na construção de novos edificios. O hori
277
zonte estava envolto numa nuvem de fumo formada por esta renovação geral de
velhos edifícios e por novas construções.
Uma vez mais entrei na rua que me era tão familiar, onde ela tinha vivido
durante os últimos cinquenta anos. Estava agora suja, com restos de cimento e
materiais de construção. Fiz o meu caminho pelo meio de motas de grande
cilindrada e de carros de luxo importados. Do lado do jardim empurrei a nova
porta de vidro pintado francês, dirigi-me até à antiga sala de estar, que era
agora o seu quarto, e abracei a minha tia.
Ela encontrava-se de cama com uma anca partida por causa de uma queda que dera.
Os raios X haviam mostrado que ela tinha cancro no cólon e que este já se tinha
espalhado. Para minha grande surpresa, encon trei-a com muita alegria e sem
dores, em parte, se calhar, devido às pequenas doses de morfina que lhe estavam
a administrar. Estava rodeada de vizinhos e de amigos que se revezavam ao seu
lado dia e noite. Neste ambiente ao mesmo tempo acolhedor, barulhento e
extremamente gregário em torno da cama de um doente, tão diferente da rigorosa e
estéril solidão dos quartos de hospital americanos, a vida dela tinha-se
surpreendentemente tornado uma contínua festa de despedida.
Bob, que na altura me acompanhava, tinha andado a aprender mandarim. Tentou usar
os seus novos conhecimentos com a minha tia, apesar de eu achar que aquilo que
dizia não se assemelhava a nenhum dos dialectos que eu alguma vez ouvira. Após
alguns momentos, quando ele se tinha embaralhado numa frase de sintaxe tortuosa,
a tia Baba interrompeu-o e perguntou-lhe qual era a língua que ele estava a
falar. Quando ele lhe respondeu que era mandarim, ela retorquiu com ironia:
- Para a próxima, quando começar a falar chinês, por favor diga-me "eu vou agora
falar mandarim consigo." De outra forma, os meus velhos ouvidos poderão julgar
que continua a falar inglês.
Página 163
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Tinha de facto voltado para o aconchego do mundo da tia Baba, com a certeza de
que ela fora a pessoa para quem eu sempre seria importante. Ali, tendo as suas
mãos nas minhas e ouvindo o seu falar cantado próprio de Xangai, até me esqueci
do peso que tivera na minha cabeça desde que soubera da sua doença. Muito longe
do medo e da tristeza, a tia Baba emanava uma tranquila euforia. Ela tinha
recusado categoricamente considerar a hipótese de uma operação ou de uma
hospitalização, repreendendo-me com gentileza quando lhe expus os meus planos
grandiosos de a levar dali, pois os achava "macabros" e "antinaturais".
278
- Tive uma vida feliz durante oitenta e nove anos. É tempo de aceitar o fim,
pois que, se não há esperança de cura, para quê prolongar a minha agonia?
Até ao final as suas preocupações eram somente as pessoas que amava e que tinha
de deixar. Quis mesmo dar-me forças para eu poder enfrentar o meu sofrimento.
Deitei-me na borda da cama dela junto do seu corpo fraco e magro ... como tantas
vezes fizera durante a minha infância, especialmente quando não me vinha o sono
por tudo ser tão terrível e a vida me parecer sem esperança. Então ela
aconchegou-me, tal qual como no passado, fazendo-me festas no cabelo e
contando-me uma história. Chamava-lhe "A Ferida Incurável".
- Há muito, muito tempo, havia uma criança chamada Ling-ling que era uma artista
muito habilidosa. Depois da morte da mãe, a concubina favorita do seu pai
começou a tratá-la bastante mal, mostrando nítida preferência pelos seus
próprios filhos. Ling-ling não tinha ninguém com quem brincar e passava o seu
tempo a pintar. Ora acontece que os seus quadros se tornaram muito famosos e ela
conseguiu vendê-los por muitos taéis de prata. Isto não fez mais do que
espicaçar o ciúme que a sua madrasta tinha por ela. Uma noite, foi até junto da
cama de Ling-ling e cravou um prego sujo na mão da criança, não sem antes ter
espalhado fezes no prego para causar uma infecção.
Passados alguns dias, a mão de Ling-ling estava vermelha e inchada. Apesar de o
prego ter sido retirado, continuava a sair mudo pus da ferida. Porém, Ling-ling
continuava a pintar.
Entretanto, algo de extraordinário aconteceu. A ferida nunca mais sarava, mas
Ling-ling continuava a pintar e a sua pintura era cada vez de melhor qualidade.
Quanto mais pus saía da ferida, maior beleza tinham as suas obras. Nunca se
tinha ouvido nada semelhante em toda a China. O sofrimento que lhe advinha da
ferida na mão parecia ter enchido Ling-ling da essência da invencibilidade,
dando-lhe forças para ~, ~n ,;G ~, I`fJ ~n .~ ~, zhan er bi sheng, dou er bi ke
( vencer em todas as batalhas, ultrapassar todas as adversidades).
A fama de Ling-ling chegou mesmo aos ouvidos do imperador e este chamou-a certo
dia ao palácio para que ela fizesse o retrato do príncipe herdeiro.
Apaixonaram-se um pelo outro e casaram. Todavia, apesar de se terem consultado
todos os melhores médicos do Império e de Ling-ling ter tomado todos os remédios
por eles preparados para si, o certo é que a sua ferida não sarava de maneira
nenhuma. Conti
279
nuou, porém, sempre a pintar de forma surpreendente até à hora da sua morte, o
que aconteceu era ela já velhinha.
'
As palavras da tia Baba eram como uma suave brisa que passa por entre as nuvens
negras. A sua crença nas minhas capacidades dera-me sempre forças para
ultrapassar as minhas inumeráveis dificuldades. E, naquele momento, a sua
história tocou-me por artes mágicas como uma varinha de condão, trazendo-me
harmonia e alívio.
Página 164
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
Dia após dia, sentada a seu lado, via-a cair em estado de coma, de onde nunca
mais acordaria, e acreditei que a minha proximidade a ajudaria a empreender esta
sua última viagem. Reflectindo nos seus 89 anos, que haviam coberto a quase
totalidade do século xx, dei-me conta de quão sábia tinha sido a minha mãe ao
ter-me deixado aos cuidados desta minha tia tão especial. Com os seus modestos
modos e sem nunca o confessar, ela incutiu em mim um espírito de independência,
que, aliás, ela também tinha demonstrado quando recusou sujeitar-se a Niang e
preferiu deixar-se ficar em Xangai. A tia Baba não era, além disso, uma pessoa
para se deixar afectar e abater pelas provações por que passou durante a
Revolução Cultural. Amor, generosidade e humor foram sempre seu apanágio.
A vida tinha fechado o seu ciclo. i~ -~ ;~ ~~ Luo ye gui gen. (As folhas que
caem regressam às suas raízes.) Senti-me em profundo repouso, em calma
serenidade.
280
colecÇão gradiva
1. O JARDIM DE CIMENTO lan McEwan
2. ACHADA NA RUA Patricia Highsmith
3. AS BRUXAS DE EASTWICK John Updike
4. ALGUNS LUGARES MUITO COMUNS
Eduarda Dionísio
5. A ÁRVORE DOS TESOUROS Henri Gougaud
6. O SISTEMA PERIÓDICO Primo Levi
7. PRIMEIRO AMOR, ÚLTIMOS RITOS
Ian McEwan
8. UM MÊS NO CAMPO J. L. Carr
9. AS PAIXÕES PARTILHADAS Félicien Marceau
10. CATÁSTROFES Patricia Highsmith
11. AMOR E DEDINHOS DE PÉ Henrique de Senna Fernandes
12. AS SETE GERAÇÕES Eva Figes
13. A CRIANÇA NO TEMPO Ian McEwan
14. SEREIAS NO CAMPO DE GOLFE
Patricia Highsmith
15. ENTRE OS LENÇÓIS Ian McEwan
16. PALAIS-ROYAL Richard Sennett
17. O ÍDOLO Robert Merle
18. UM DIA NO VERÃO J. L. Carr
19. UM ALMOÇO NUNCA É DE GRAÇÀ
David Lodge
20. O ABISMO OCULTO Pierre Bettencourt
21. O INOCENTE Ian McEwan
22. OS HOMENS QUE AMARAM EVELYN COTTON
Frank Ronan
23. OS DESPOJOS DO DIA Kazuo Ishiguro
24. ESTRANHA SEDUÇÃO Ian McEwan
25. PIQUENIQUE NO PARAÍSO Frank Ronan
26. VOX
Nicholson Baker
27. NOTÍCIAS DO PARAÍSO David Lodge
28. O MELHOR ANJO Frank Ronan
29. CÃES PRETOS Ian McEwan
Página 165
Adeline_Yen_Mah_-_FOLHAS_CAIDAS
30. ALGUNS HOMENS, DUAS MULHERES E EU
Maria do Rosário Pedreira
31. A BELA DE MOSCOVO Victor Erofeev
32. A MORTE DE UM HERÓI Frank Ronan
33. O SONHADOR Ian McEwan
34. OS HOMENS BRONZEADOS FICAM BONITOS
Frank Ronan
35. OS INCONSOLADOS Kazuo Ishiguro
36. TERAPIA David Lodge
37. OS MELHORES AMIGOS Joanna Trollope
38. OS LIVROS DE PASCALE Maurizio Maggiani
39. O CONHECIMENTO DOS ANJOS
Jill Paton Walsh
40. LOVELY Frank Ronan
41. CONTACTO
Carl Sagan
56. O OUTRO LADO DO ESPELHO
42. UMA CASA EM PORTUGAL
Marya Hornbacher Richard Hewitt
43. O FARDO DO AMOR
57. O AMANTE ESPANHOL
Ian McEwan
Joanna Trollope
44. ATÉ ONDE SE PODE IR?
58. O DIÁRIO DE EDITH
David Lodge
Patricia Highsmith
45. PARENTES PRÓXIMOS Joánna Trollope
59. REGRESSO À CASA EM PORTUGAL Richard Hewitt
46. O PRIMEIRO GOLO DE CERVEJA E OUTROS PRAZERES MINÚSCULOS
60. FOLHAS
CAÍDAS
Philippe Delerm Adeline Yen Mah
47. A SOMBRA DE FOUCAULT Patricia Duncker
48. IDORU William Gibson
49. FOLHAS MORTAS Bárbara Jacobs
50. BEBER: UMA HISTÓRIA DE AMOR
Caroline Knapp
51. HILDA FURACÃO Roberto Drummond
52. AMESTERDÃO Ian McEwan
53. MEUS QUERIDOS MORTOS Erika de Vasconcelos
54. O INSECTO IMPERFEITO Beatriz Lamas de Oliveira
55. QUARENTENA Jim Crace
Carla Maria Ferreira dos Mártires
2001-12-27
Página 166