Querida leitora,
Entre as muitas coisas que aguçam a imaginação humana, viajar no tempo é uma delas.
Desde sempre a humanidade sonha com essa possibilidade e muito já foi escrito sobre
isto. Considerando que, tecnicamente, ainda não é possível fazermos esse tipo de
viagem — talvez nunca será —, resta-nos embarcarmos na "nave" da literatura e
partirmos rumo ao passado, sob o comando de Brenna Todd...
Com O Enigma do Medalhão, esta escritora supercriativa nos proporciona uma história
eletrizante. Ela nos mostra que o amor não tem fronteiras, nem de espaço nem de tempo.
Você vai se empolgar com a estranhíssima situação vivida por Anne
Sawyer que, de repente, se vê lançada numa aventura tão misteriosa e ao mesmo tempo
profundamente romântica e sensual!
Receba um forte e carinhoso abraço deste seu amigo
Roberto Pellegrino
Editor
Copyright © 1994 by Brenda Hamilton
Originalmente publicado em 1994 pela Harlequin Books, Divisão da Harlequin Enterprises Limited.
Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial, sob qualquer forma.
Esta edição é publicada através de contrato com a Harlequin Enterprises Limited, Toronto, Canadá.
Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá
sido mera coincidência.
Título original: THE LOCKET
Tradução: Maria Cristina F. da Silva
EDITORA NOVA CULTURAL uma divisão do Círculo do Livro Ltda.
Alameda Ministro Rocha Azevedo, 346 - 9º andar
CEP: 01410-901 - São Paulo - Brasil
Copyright para a língua portuguesa: 1995
CÍRCULO DO LIVRO LTDA.
Fotocomposição: Círculo do Livro
Impressão e acabamento: Gráfica Círculo.
1
— Unidade dois, prioridade um. Dores no peito. O paciente, um homem idoso,
está pálido e suando muito. Embora consciente, apresenta dificuldades respiratórias. O
paciente tem um histórico de problemas cardíacos. Procurem o caseiro da propriedade
Munro, no bulevar West Munro, número trezentos.
Anne Sawyer observou Chuck, seu parceiro de duas semanas, ligar a sirene e dar
partida no motor da ambulância. Enquanto punha o veículo branco e vermelho em
movimento, Chuck assobiou baixinho e comentou:
— Estamos indo socorrer ninguém menos que o velho J.B. Munro.
Anne não questionou o fato de seu parceiro de trabalho saber quem era o
paciente. Afinal, Chuck conhecia todo mundo que vivia na cidade de doze mil
habitantes. Na verdade, todos conheciam uns aos outros em Munro, Oklahoma. Muita
gente tinha laços de parentesco entre si,
— Foi J.B. quem fundou a cidade — prosseguiu Chuck, erguendo a voz para se
fazer ouvir acima do barulho estridente da sirene. — Ele é considerado o "Rockefeller
de Oklahoma", por causa da fortuna que conseguiu juntar na época da expansão das
estradas de ferro nessa região do país. Foi J.B. quem planejou e construiu Munro. O
sujeito deve ter no mínimo uns cem anos.
— Cuidado com aquele Subaru ali na frente — preveniu Anne.
Chuck desviou a ambulância para evitar uma colisão com o pequeno carro
japonês, e depois voltou a pisar fundo no acelerador para atravessar um cruzamento.
Olhando de lado para Anne, brincou:
— Imagino que este tipo de situação faça mais o seu estilo, não é mesmo?
— "Meu estilo"? Como assim?
— Bem, você já está neste emprego há duas semanas, e a coisa mais emocionante
que fizemos até agora foi salvar o cachorro de estimação da Sra. Hixon de morrer
asfixiado.
— Você chama isso de "emocionante"? — riu Anne.
— Foi emocionante para a Sra. Hixon e para o cachorro, pelo menos. — Chuck
diminuiu um pouco a velocidade para fazer uma curva mais perigosa. Em seguida,
argumentou: — Aposto que lá em Detroit você levava uma vida mais excitante.
Anne assentiu com um gesto de cabeça, enquanto observava a paisagem através
da janela da ambulância. Ela sentia falta da emoção, da excitação de trabalhar como
para-médica em Detroit, onde a maioria dos chamados envolvia casos de vida ou morte.
Mas era difícil explicar isso para os outros para-médicos em Munro. Eles apenas
sorriam e davam de ombros quando Anne começava a falar sobre as chamadas de
emergência que já recebera em todos os seus anos de profissão, e depois mencionavam
com orgulho o baixíssimo nível de criminalidade na região. Não acontecera um único
assassinato em Munro nos últimos dez anos. Só três pessoas haviam sido presas por
crimes de pouca gravidade. As lojas de bebidas e os bancos locais não eram assaltados.
Roubo de automóveis e venda de drogas nas esquinas eram ocorrências inéditas na
cidade. As únicas gangues rivais em Munro eram os dois clubes de crochê e tricô — um
deles formado por senhoras da igreja metodista, e o outro por senhoras da igreja batista.
— O ritmo sossegado de vida nesta cidade tem feito bem ao meu pai e à minha
mãe, Chuck — disse Anne, enquanto tentava se convencer intimamente de que a
tranqüilidade do lugar também fazia bem a ela mesma. — Os dois nasceram e
cresceram aqui.
— O seu pai nunca lhe falou a respeito de J.B?
— Não. Acho que era doloroso para o meu pai falar sobre a sua vida em
Oklahoma. Ele sentia tanta falta daqui...
Mas o Sr. Sawyer estava de volta à terra natal, agora, recuperando-se de um
ataque cardíaco que quase o levara à morte.
— Então você não sabe do escândalo, Anne?
— Que escândalo?
— É uma história bastante antiga, que aconteceu por volta dos anos vinte. J.B. e
sua primeira esposa, Virgínia, pegaram para criar a filha de um casal de parentes pobres.
Os dois assumiram a tutela da garota. Virgínia morreu oito ou nove anos mais tarde.
J.B. esperou um ano e depois casou-se com a mocinha, chamada Deborah.
— O Sr. Munro casou-se com a jovem que havia pegado para criar? Que loucura!
Como é que os respeitáveis habitantes de Munro não mudaram o nome da cidade, em
protesto contra uma atitude tão desajuizada?
Chuck riu, antes de acrescentar:
— Você ainda não ouviu nem metade da história! Deborah foi assassinada anos
mais tarde, e nunca descobriram quem a matou. Dizem que Deborah estava tendo um
caso com o sócio de J.B, e que foi o tal sócio que a mandou desta para melhor. Muita
gente, porém, acredita que o foi próprio J.B. que assassinou a esposa, ao descobrir que
estava sendo traído.
Poucos minutos mais tarde a ambulância chegou à grande propriedade que Anne
já vira diversas vezes ao passar pelas proximidades, desde que se mudara para Munro.
Chuck conduziu o veículo pintado de branco e vermelho por um caminho ladeado por
árvores altas. Embora fosse atualmente uma pacata comunidade rural, Munro abrigara
no passado um bom número de milionários que haviam enriquecido explorando poços
de petróleo e estradas de ferro. Alguns deles tinham construído residências nos terrenos
que cercavam a propriedade de J.B, mas nenhuma delas era tão grande e majestosa
quanto a do fundador da cidade.
A mansão de J.B. Munro erguia-se com imponência em meio a um jardim
malcuidado, parecendo mais um castelo da época do rei Artur do que a residência de um
magnata ligado à construção de estradas de ferro. Pequenas torres posicionavam-se nos
quatro cantos das fachadas de pedra; gárgulas esculpidas em pedra enfeitavam os cantos
do telhado da mansão de quatro andares. Um grande escudo de armas adornado com o
nome Munro encimava uma imensa porta dupla de madeira. Não fosse pela falta de um
fosso e de uma ponte levadiça, Anne poderia ter se sentido entrando em território
britânico.
— A mansão é impressionante, não acha? — indagou Chuck.
— Sem dúvida. Mas o jardim precisa de cuidados — observou Anne.
— Sim, é claro que atualmente as plantas precisam ser podadas e que o gramado
precisa ser aparado, mas nos bons tempos este lugar tinha uma aparência fantástica. O
pessoal da cidade costumava chamar a mansão de "o Palácio da Campina". Ninguém
nunca tinha visto uma construção tão magnífica e luxuosa aqui na região.
Chuck estacionou a ambulância em frente ao pórtico que sombreava os degraus
de entrada. Anne pegou a sua maleta de equipamentos e desceu do veículo. Chuck
adiantou-se e bateu à porta, comentando:
— O lugar parece deserto.
Parada ao lado de seu parceiro de trabalho, Anne esperou em silêncio enquanto
ele tentava abrir a porta. Foi inútil, pois a porta estava trancada. Chuck bateu com mais
força na superfície de madeira e depois começou a bater no vidro de uma janela lateral,
gritando:
— Serviço de emergência! Por favor, deixem-nos entrar!
Anne olhou para dentro da mansão por uma outra janela e viu diversos móveis
cobertos por lençóis. Não havia luzes acesas em nenhum dos aposentos.
— Não há ninguém aí dentro — disse Anne. — A menos que o Sr. Munro esteja
num dos andares superiores...
— Talvez. Mas por que o caseiro não está à vista, esperando por nós? — Chuck
voltou para junto da ambulância, avisando: — Vou entrar em contato com a central para
confirmar o chamado.
Depois de bater à porta mais algumas vezes, Anne contornou a casa à procura de
alguma outra porta ou janela que pudesse estar aberta, ao mesmo tempo em que gritava
o nome do Sr. Munro. Ao retornar para a parte da frente da mansão, viu que seu parceiro
ainda estava na ambulância aguardando a confirmação do chamado através do rádio de
comunicação com a central. Frustrada, Anne decidiu bater à porta uma última vez.
Antes que a sua mão encostasse na superfície de madeira, contudo, ela foi
assaltada por um mau pressentimento. Posicionada de frente para a porta, o seu olhar foi
atraído por um desenho gravado em baixo-relevo na madeira. Uma figura celta cercava
um conjunto de iniciais: J.B.M. Apesar de seu inexplicável desconforto Anne deu um
passo à frente, sentindo uma estranha vontade de tocar o baixo-relevo.
Quando as pontas de seus dedos fizeram contato com a madeira, ela
experimentou uma forte sensação de déjà vu e ouviu um enigmático zumbido.
Esquisito... Já vira a mansão ao passar ali perto, mas nunca pusera os pés na
propriedade. Sendo assim, por que tinha a impressão de que já tocara o baixo-relevo,
antes?
Será que já estivera perto da mansão quando criança? Anne e os pais haviam
vindo muitas vezes a Munro para visitar parentes. Talvez ela já tivesse sido trazido até
ali por alguém e...
— Ele está na casa de hóspedes!
Anne virou-se na direção da voz de Chuck. Casa de hóspedes...? No mesmo
instante ela recuperou a presença de espírito. Voltou correndo para a ambulância, jogou-
se no assento do passageiro e afivelou o cinto de segurança.
Chuck, que já havia ligado o motor do veículo, pisou fundo no acelerador.
— Depressa! Ele está lá dentro, deitado no sofá!
Anne e Chuck passaram às pressas ao lado do caseiro parado à porta da casa de
hóspedes. O empregado seguiu-os, explicando:
— Venho dar uma olhada no Sr. Munro todos os dias, e sempre o encontro com
boa disposição. Mas hoje... Acho que ele está bastante mal.
"Bastante mal" era pouco para descrever o estado do idoso senhor. A pele de J.B.
Munro assumira o tom cinzento de alguém que sofrera um ataque cardíaco; o rosto
enrugado estava contorcido numa careta de dor, e as mãos magras apertavam o peito. Os
cabelos brancos do paciente, e também as suas roupas, estavam molhados de suor.
Chuck apressou-se a preparar a máscara de oxigênio e o eletrocardiógrafo.
— Sr. Munro, somos do serviço médico de emergência — disse Anne, enquanto
media a pressão e o pulso do paciente. Ela lançou um olhar preocupado ao seu parceiro,
indicando que as medidas não eram nada boas. — Estamos aqui para ajudá-lo. O senhor
consegue falar?
Um gemido fraco foi a única resposta.
Chuck ligou o eletrocardiógrafo e Anne franziu a testa ao ouvir o ritmo fraco das
batidas do coração de J.B. Munro, que correspondiam à pressão e ao pulso que acabara
de medir.
Anne tornou a olhar para Chuck.
— Precisamos dar soro D5W ao paciente — avisou.
Ela pegou uma embalagem plástica que havia na maleta, abriu-a e tirou um
cateter. Amarrou um torniquete no braço magro de J.B. e procurou uma veia.
Enquanto Anne conectava o cateter ao frasco de soro D5W, Chuck enfiou a
agulha na veia encontrada por ela,. Em seguida, anunciou:
— Vou buscar a maca.
Anne aquiesceu com um gesto de cabeça, antes de pegar uma pequena toalha
felpuda e macia para enxugar o suor do rosto do paciente. J.B. Munro tornou a gemer, e
Anne sentiu pena dele. Pobrezinho, era tão velho! Chuck não errara na estimava que
fizera; o coitado devia ter mesmo uns cem anos ou mais, e parecia tão frágil e
vulnerável quanto uma criança. Uma peculiar cicatriz em forma de "C" perto do olho
esquerdo pulsava, e o rosto enrugado espelhava o mesmo susto e o mesmo medo que
haviam surgido na expressão do pai de Anne na noite em que ele quase morrera. Anne
estremeceu e começou a conversar com J.B, tentando afastar da mente a triste
lembrança.
— Sou do serviço médico de emergência, Sr. Munro — repetiu. — Meu parceiro
e eu vamos levá-lo para o hospital.
O paciente fitou-a, confuso, e repetiu várias vezes uma palavra que Anne não
conseguiu entender.
Forçando um sorriso, ela procurou tranqüilizá-lo.
— Não precisa ter medo, o senhor logo ficará bom. Tente não se mexer muito e...
— Deborah? — murmurou J.B , erguendo uma mão trêmula para tocar-lhe o
rosto. — Meu Deus... É você, Deborah?
— Não, Sr. Munro — respondeu Anne, abaixando-lhe gentilmente a mão.
A desorientação era mais um dos sintomas de um ataque cardíaco. O Sr. Sawyer
tivera o mesmo tipo de reação; ao olhar para a filha, chamara-a pelo nome da mãe.
— Sou do serviço de emergência médica e...
Anne não pôde terminar a frase, pois voltou a ser interrompida por J.B.
— Você continua linda — murmurou o idoso senhor, uma lágrima escorrendo-lhe
pelo rosto pálido. — Deborah, minha querida...
Sem saber por que, Anne sentiu um calafrio. O olhar de reconhecimento de J.B.
parecia tão lúcido!
— Não, Sr. Munro, eu sou...
— Pode me perdoar, Deborah? Nunca tive a intenção de magoá-la...
A voz de J.B. falhou e mais lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Ele segurou uma
das mãos de Anne e apertou-a com as poucas forças que lhe restavam.
— O que eu fiz com você... — A agitação do paciente prejudicou-lhe ainda mais
a respiração. — Por Deus, o mal que eu lhe causei...
— Por favor, Sr. Munro, tente acalmar-se — insistiu Anne, soltando a mão e
enxugando as lágrimas do Sr. Munro com a toalhinha. — Procure não se exaltar, e tudo
terminará bem.
J.B. obedeceu, mas as lágrimas continuaram a molhar-lhe as faces. Ele fitou Anne
com tanta intensidade que ela voltou a sentir um calafrio.
— Não... Não, eu estava errado! — exclamou o paciente, de súbito. — Você não
é Deborah!
— Acalme-se, Sr. Munro, por favor.
— Você não é Deborah...
— Tem razão. Eu sou...
— Não precisa me dizer. Sei quem você é. Você é a outra, e seu nome é Anne...
A porta automática abriu-se e Anne entrou na ala do pronto-socorro do único
hospital da cidadezinha de Munro. O local estava deserto.
Que diferença faziam algumas horas! Durante o dia, um enxame de médicos e
enfermeiras circulava pela área. A essa hora da noite, porém, não havia ninguém ali.
Nenhum sinal de tensão ou ansiedade pairava no ar. O único ruído a perturbar o silêncio
era o zumbido baixo das lâmpadas fluorescentes e do condicionador de ar.
Como sempre, Anne e seu parceiro haviam levado o paciente para o hospital logo
depois de lhe prestarem os primeiros socorros. A única diferença é que, dessa vez, o
homem que fora deixado de manhã ao cuidado dos médicos competentes havia pago a
construção do hospital. E ele chamara Anne pelo nome.
Coincidência, dissera Chuck. Afinal, Anne era nova na cidade e, até aquele dia,
nunca ouvira falar em J.B. Munro. Além disso, o idoso senhor, meio fora de si por causa
da dor, mencionara o nome de várias pessoas que conhecera no passado. Ele chamara
pela esposa morta, não chamara? Talvez J.B. Munro tivesse conhecido alguma Anne,
também. No fim das contas, esse era um nome bastante comum, não era?
Anne ficou andando de um lado para outro em frente à mesa da recepção, seus
sapatos de sola de borracha rangendo baixinho sobre o chão encerado. Embora o
condicionador de ar estivesse regulado para manter a temperatura ambiente na casa dos
vinte e três graus centígrados, ela sentiu um calafrio.
Enfiou as mãos nos bolsos da calça do uniforme, tirou-as logo em seguida e
esfregou os braços. Acomodou-se numa das poltronas da área de espera e checou as
horas em seu relógio de pulso, torcendo para que Janeen, a enfermeira da noite, não
demorasse muito para aparecer.
Anne repousou a cabeça no encosto da poltrona e fechou os olhos, lembrando-se
de uma outra noite passada num outro hospital. Naquela ocasião, estivera esperando
receber notícias do seu pai.
Às vezes Anne tinha a impressão de que um milhão de anos havia passado desde
a noite em que seu pai sofrera um ataque cardíaco. Outras vezes, porém, tinha a
sensação de que tudo acontecera na véspera. Ainda podia ouvir o pai lhe pedindo, com
voz embargada:
— Leve-me de volta para a minha cidade natal, filha. Quero ser enterrado lá
quando morrer, caso contrário minha alma não descansará em paz.
Nesse momento Anne havia jurado a si mesma que o levaria para Munro,
custasse o que custasse. Mas não para enterrá-lo, e sim para que ele pudesse se
recuperar completamente do ataque cardíaco, no lugar que mais amava no mundo.
Isso era o mínimo que Anne podia fazer. Ela era a filha única de um casal que
passara mais de dez anos tentando gerar um bebê. Desde que nascera, transformara-se
no centro da vida dos pais, e nunca deixara de receber amor, atenção, segurança. Por
esta razão, jamais teria coragem de deixar os pais passarem a velhice numa cidade que
começara a lhes causar medo sempre que saíam à rua.
Cada vez que se lembrava do pai deitado na cama do hospital, ou da mãe
torcendo as mãos de nervoso quando saía para fazer compras no supermercado, Anne
sentia que seria capaz de fazer qualquer coisa para vê-los felizes.
E, fiel a seus sentimentos, fizera uma porção de sacrifícios. Ao ir embora de
Detroit com os pais, deixara para trás bons amigos, um emprego excitante, uma vida
social ativa. Sem mencionar o homem que, até então, havia considerado como o
"príncipe encantado" da sua vida. Mas se Brian fosse mesmo o seu "príncipe
encantado", sem dúvida alguma teria entendido a sua decisão e esperado que ela
voltasse para Detroit, mais cedo ou mais tarde. Em vez disso, porém, Brian não havia
demorado nem seis meses para ficar noivo de outra mulher. Anne fora obrigada a
reconhecer, então, que se enganara ao imaginar que com Brian teria um futuro feliz pela
frente. O "príncipe encantado" transformara-se num sapo asqueroso...
— Anne? O que está fazendo aqui?
Anne deixou as lembranças desagradáveis de lado, abriu os olhos e sorriu para a
enfermeira de meia-idade, gorducha e baixinha.
— Olá, Janeen — cumprimentou, enquanto se punha de pé. — Muito trabalho,
esta noite?
— Não, pelo contrário. Como pode ver, a situação está tão tranqüila que até tive
tempo de ir à lanchonete do hospital para tomar um cafezinho — respondeu a
enfermeira. — Mas a que devo o prazer da sua visita, a uma hora dessas? E óbvio que
você não veio fazer plantão extra, pois não há necessidade desse tipo de coisa numa
cidadezinha pacata como a nossa.
— Tem razão. Eu só vim até aqui para saber notícias do Sr. Munro.
Janeen ficou séria de repente e balançou a cabeça, enquanto explicava:
— Fizemos tudo o que foi possível, mas infelizmente ele não resistiu.
Assaltada por uma forte e inexplicável sensação de perda, Anne perdeu a fala por
um momento.
— Ele... Ele morreu? — indagou, quando finalmente recuperou a voz.
— Sim. O Sr. Munro teve outro ataque, bem mais sério que o primeiro.
Anne estremeceu, sem conseguir entender por que estava sentindo uma tristeza
tão intensa. Passara menos de uma hora da sua vida em companhia de J.B. Munro. Não
havia nenhuma razão para que ela sentisse algo mais que simples pesar pelo falecimento
do idoso senhor.
Mesmo assim, lágrimas quentes inundaram-lhe os olhos e escorreram-lhe pelas
faces.
— Oh, querida, sinto muito — murmurou Janeen, abraçando-a. — Parece que a
notícia deixou você arrasada, não é mesmo?
Sem saber como explicar à enfermeira algo que ela não sabia explicar nem a si
mesma, Anne balbuciou:
— Acho... Acho que... Devo ter ficado triste porque me lembrei de papai. Não sei
se já lhe contaram, mas o meu pai teve um ataque cardíaco em Detroit e...
— Munro é um lugar pequeno. Todo o pessoal do hospital ficou a par do
histórico médico do seu pai cinco minutos depois de vocês chegarem à cidade. —
Janeen deu um tapinha amigável nos ombros de Anne e procurou consolá-la: — O velho
J.B. teve uma vida longa, produtiva. Ele tinha cento e sete anos de idade, sabia? Era
bem mais velho que o seu pai.
— Eu sei, e sinto-me uma grande tola por estar chorando desse jeito por causa de
alguém que eu nem conhecia — disse Anne, enxugando as lágrimas com as costas das
mãos.
— Deixe de ser boba — ralhou a enfermeira, com gentileza. — Você está
chorando porque a morte de J.B. Munro a comoveu, e isso é um bom sinal. Afinal, toda
essa história de "manter um distanciamento profissional dos pacientes" não passa de
pura balela. Se não nos preocupássemos com as pessoas das quais cuidamos, seria
melhor que mudássemos de profissão. Além disso, embora a cidade inteira vá fazer o
maior escarcéu por causa da morte de J.B. Munro, não existe ninguém para derramar
lágrimas sinceras por ele.
Anne fungou e pigarreou. Sentia a garganta dolorida e os olhos inchados, como se
houvesse chorado durante horas.
— Você quer dizer que o Sr. Munro não tinha nenhum parente vivo? —
perguntou, por fim.
— Isso mesmo — respondeu Janeen. — Ele não tinha nenhum parente, nenhum
amigo. A menos que se possa chamar de "amigo" o homem que chamou a ambulância
hoje de manhã, e ele era apenas um empregado de J.B. — A enfermeira fez uma pausa,
antes de prosseguir: — Não pense que J.B. não se sentiu grato pela atenção que você lhe
dispensou, Anne. Ele deve ter percebido que você se esforçou ao máximo para ajudá-lo.
— Por que está dizendo isso?
— Porque ele falou de você para mim. J.B. foi levado para o centro de tratamento
intensivo, é claro, mas como havia pouco movimento aqui na recepção fui vê-lo
algumas vezes. Ele estava consciente durante uma de minhas visitas.
Janeen sorriu com melancolia e estendeu uma das mãos para atender ao telefone,
que começara a tocar. Antes de tirar o fone do gancho, porém, finalizou:
— Foi nessa visita que J.B. me disse que um dia você saberia por que ele se
sentia tão grato em relação a você.
2
Anne ouviu o Chevrolet de sua mãe parar em frente de casa. Segundos depois,
escutou o barulho de duas portas abrindo e fechando. As vozes de sua mãe e de sua tia
Shirley soaram no jardim, alegres. Anne ergueu os olhos da revista que lia e sorriu. Seu
pai mudou de posição na cama hospitalar alugada e resmungou, bem-humorado:
— Quantas lojas de antigüidades será que essas duas esvaziaram dessa vez?
— Oh, bom dia, papai — disse Anne, zombeteira, pois já passava das quatro da
tarde.
Ela largou a revista sobre uma mesinha e atravessou a sala. Há dois meses, logo
após a morte de J.B. Munro, Henry Sawyer sofrerá um segundo ataque cardíaco, e ainda
estava em fase de recuperação.
Os horários de sono de Henry ainda estavam desregulados. Ele ficava acordado a
noite toda, virando-se na cama, e dormia durante a maior parte do dia. Na opinião de
Anne, seu pai ainda precisava melhorar muito para poder ser considerado
completamente recuperado.
— Não sei por que você não saiu para fazer compras com elas, minha filha —
ralhou Henry, em tom afetuoso.
Anne riu, ao mesmo tempo em que erguia o braço do pai para medir-lhe a
pulsação.
— Eu já lhe disse antes, papai, não consigo acompanhar o ritmo de mamãe e de
tia Shirley. Elas levam o assunto "fazer compras" a sério demais!
— De qualquer modo, você deveria se divertir mais, Anne. Mulheres jovens
como você não foram feitas para passar o dia inteiro cuidando de gente doente.
— Deixe de tolices, papai. Se eu quisesse estar em outro lugar, fazendo outra
coisa, pode apostar que eu já teria ido embora.
— Tem certeza, filha?
Anne ignorou a pergunta, como já fizera dezenas de outras vezes. No último mês,
seu pai não se cansara de repreendê-la por passar tanto tempo cuidando dele.
A porta da sala se abriu. Dorothy Sawyer e a cunhada, Shirley, entraram no
aposento carregadas de sacolas e pacotes.
— A expressão orçamento doméstico não tem o menor significado para você,
mulher? — indagou Henry à esposa.
Enquanto Shirley caía na risada, Dorothy lançou um olhar de falsa indignação ao
marido.
— Pare de implicar comigo, seu chato! Desde quando você deu para ser pão-
duro?
Largando os pacotes e sacolas em cima do sofá, ela aproximou-se da cama e
beijou o marido no rosto.
— Você está com uma ótima aparência hoje, querido. — Olhando para a filha,
Dorothy perguntou em seguida:
— Você vai demorar muito para permitir que o seu pai levante dessa cama e saia
para dar um passeio?
— Acho que não, mamãe — mentiu Anne.
Os horários irregulares de sono do pai ainda a preocupavam, mas ela não queria
deixar a mãe aflita. O estresse provocado pela doença do marido logo começaria a afetar
a saúde de Dorothy, e Anne não desejava ver também a mãe numa cama hospitalar.
— No entanto, não pense que papai poderá sair logo de cara para fazer compras
com você e tia Shirley — acrescentou Anne, segundos depois. — Nos próximos doze
meses, ele só poderá fazer passeios tranqüilos e curtos.
— Fique tranqüila, filha. Prometo parar com essas maratonas de compras assim
que o seu pai receber alta — afirmou Dorothy.
— Está aí uma boa razão para eu me recuperar mais depressa — riu Henry.
A esposa também riu e deu-lhe outro beijo no rosto antes de virar-se para Anne,
comentando:
— Quando o seu pai brinca desse jeito é porque já está melhor, não é mesmo?
Agora deixe-me mostrar-lhe o presente que comprei para você, minha filha! É um lindo
medalhão antigo, de ouro. Você vai adorar, tenho certeza.
— Por que não mostra o medalhão mais tarde, Dorothy? — sugeriu Shirley. —
Primeiro eu gostaria que Anne fosse comigo tomar um sorvete no Braum's.
— Oh, sim, é claro. A propósito, Shirley, aproveite a chance para conversar com
Anne sobre a possibilidade de ela voltar logo para Detroit. — Depois de falar com a
cunhada, Dorothy dirigiu-se à filha: — Você não deveria estar há tanto tempo aqui
conosco, querida. Sinto que estamos abusando da sua boa vontade e...
— Mamãe, por favor! — protestou Anne, tentando conter uma onda de
impaciência.
Não era a primeira vez que seus pais abordavam este assunto. E agora, para
piorar, a sua mãe envolvera tia Shirley na história!
— Por acaso vocês já me viram fazer algo contra a minha vontade? Se papai não
tivesse sofrido o segundo ataque eu já teria voltado para Detroit, e vocês sabem muito
bem disso — argumentou Anne.
— É claro que sabemos. Você sempre foi do tipo independente, desde pequena —
disse Henry, com uma ponta de orgulho na voz. — Ao mesmo tempo, porém, você
sempre gostou de cuidar dos outros. Quando era garota, levava para casa todos os
animais feridos que encontrava na rua, e não perdia uma única chance de bancar a
enfermeira quando algum amigo seu adoecia. Não foi à toa que você decidiu ser para-
médica, certo?
— Pelo amor de Deus, papai, você não é um animal ferido que encontrei na rua!
Além disso, é meu dever...
— Este é o problema, minha filha — interrompeu-a Henry. — Você está levando
a sério demais a responsabilidade que sente em relação a nós. Apreciamos a sua atitude,
mas já é hora de você começar a cuidar da própria vida.
— O seu pai tem razão, querida — disse Dorothy. — Você sempre gostou de
cuidar dos outros, e talvez por isso a gente tenha passado a depender de você mais do
que seria normal. Nesse último ano, por exemplo, você desistiu de tantas coisas por
nossa causa! Sei que agiu assim porque nos ama, mas nós queremos que você seja feliz,
também.
— Não desisti de tantas coisas assim — assegurou Anne. — Ainda trabalho como
para-médica, e pretendo voltar para Detroit assim que a saúde de papai melhorar.
— Acontece que trabalhar como para-médica em Munro não é a mesma coisa que
trabalhar como para-médica em Detroit — argumentou Dorothy. — Sabemos que você
adora levar uma vida agitada, excitante.
— Tudo bem, mãe, reconheço que o trabalho aqui em Munro é meio entediante.
Mas você e papai cuidaram de mim e me ajudaram durante tantos anos! Por que não
posso retribuir tudo o que já fizeram por mim? Não terei a menor dificuldade para
retomar a minha vida em Detroit depois que papai ficar bom.
— Nós achamos melhor você voltar para Detroit o mais depressa possível,
querida — interveio Henry.
— De modo algum, papai. Sou eu que devo decidir a hora de partir. Se você não
tivesse sofrido um segundo ataque cardíaco...
— Mas eu sofri, minha filha. E mesmo me cuidando direito daqui para frente,
nada impede que eu venha a sofrer novos ataques. Isso não significa, contudo, que você
deva adiar indefinidamente os seus planos de vida por minha causa!
— Acalme-se, por favor — pediu Anne, alarmada, ao ver o rosto de Henry ficar
vermelho.
Aproximando-se da cama, ela fez menção de medir a pulsação do pai.
— Não! — Henry escondeu os braços sob o lençol da cama. — Sou o seu pai, e
não apenas mais um dos seus pacientes, portanto trate de me ouvir!
Anne pestanejou, espantada. Mal conseguia se lembrar da última vez em que seu
pai usara esse tom autoritário com alguém. De certa forma era bom ouvi-lo falar assim,
pois isso demonstrava que Henry Sawyer estava voltando a demonstrar sinais de força.
Ao mesmo tempo, porém, era desconcertante e desagradável levar uma bronca dessas.
Afinal, ela só estava pensando no que era melhor para os seus pais.
O espanto de Anne aumentou ainda mais depois que seu pai fez uma nova
declaração:
— Você não vai nos enrolar dessa vez, filha. Sua mãe e eu já discutimos o
assunto e concluímos que o melhor é mandá-la embora de casa, para o seu próprio bem.
— O quê? Me mandar embora de casa? Mas eu não quero ir, papai! E você ainda
não está bom o bastante para...
— Estou sim, fique sossegada. Dorothy e Shirley ajudarão você a fazer as malas.
— Fazer as malas?!
— Sim, foi isso o que eu disse.
Dorothy aproximou-se da filha e tocou-lhe o braço, argumentando com simpatia:
— Não nos leve a mal, Anne. Adoramos tê-la morando conosco, mas uma mulher
jovem e cheia de energia como você não merece deixar de ter vida própria por causa de
um casal de velhos.
— Tenha dó, mamãe, vocês não são velhos! E eu tenho vida própria, sim, quem
foi que disse que não? — Em busca de uma aliada, Anne voltou-se para Shirley. — Tia,
papai é seu irmão. Por favor, ajude-me a enfiar um pouco de bom senso na cabeça dele
e da minha mãe. Você sabe que esta situação é apenas temporária. Só porque eu vim
morar em Munro para ajudá-los isso não significa que me transformei numa... numa
solteirona desajustada que ainda vive com os pais!
Shirley pigarreou, constrangida, e afirmou:
— Sinto muito, querida, mas fui eu que sugeri a seus pais que a mandassem
embora de casa.
— O quê?! Por que fez uma coisa dessas, tia?
— Porque você estava ficando parecida demais com a sua prima Beth, que tem
trinta e seis anos de idade e nunca passou um dia sequer longe dos pais. Comecei a ficar
aflita com a sua situação, e foi por isso que decidi abordar o assunto com Henry e
Dorothy.
— Pelo amor de Deus, a minha situação não tem nada a ver com a de Beth, que é
uma perfeita pamonha em forma de gente! — retrucou Anne, sem saber se ria ou
chorava da resposta da tia.
— Mas você tem de admitir que nos últimos meses não saiu nem uma vez para
jantar fora com amigos ou para fazer compras com a sua mãe e comigo — argumentou
Shirley, categórica.
— Está bem, está bem! Se é isso o que vocês três querem, vou começar a sair e
me divertir mais, combinado? Ainda hoje pegarei um cineminha para me distrair,
prometo. E então, estão satisfeitos?
para-médica Ir ao cinema é uma ótima idéia, querida. Você precisa mesmo se
distrair — disse Henry. — E enquanto você assiste a um bom filme, Dorothy e Shirley
podem começar a arrumar as suas malas — acrescentou ele, irredutível.
Meia hora mais tarde, enquanto dirigia pela rua principal da cidade, Anne
fumegava de raiva. Um palavrão escapou-lhe dos lábios, e o volante do carro foi alvo de
um soco de irritação. Com mil diabos, por que seus pais eram tão teimosos?
Virando à esquerda numa rua transversal, Anne concluiu que precisaria de pelo
menos mais meia hora de solidão para acalmar-se e voltar a enfrentar Henry e Dorothy.
Tudo bem, sabia que os pais só queriam o melhor para ela. Henry e Dorothy eram
amorosos e atenciosos, preocupavam-se com o futuro da filha. Mas Anne sabia o que
era melhor para os pais. Tudo o que tinha a fazer era ser mais firme com eles.
Meus parabéns, você fala como se fosse mãe deles, disse uma voz interior,
deixando Anne ainda mais irritada.
Ela tentou se convencer de que não estava bancando a mãe de ninguém; queria
apenas o melhor para os seus pais.
Tem razão, concordou a voz. O que será que deu neles, afinal? É muita ousadia
dos dois deixarem de pensar em si mesmos para pensarem no bem-estar da filha, não é
mesmo?
Anne fez uma careta, detestando esse debate íntimo com a própria consciência.
Levando uma das mãos ao medalhão de ouro que ganhara da mãe antes de sair de casa,
sentiu-se culpada. Ao parar o carro no cruzamento da rua com o bulevar West Munro,
suspirou. Que situação... Amava os pais e desejava vê-los felizes e saudáveis.
Exatamente a mesma coisa que eles desejavam em relação a ela.
Uma buzina soou atrás do carro de Anne, arrancando-a de seus devaneios. Ela
virou à direita no bulevar, odiando-se por deixar que a insegurança viesse perturbar uma
decisão que, até segundos atrás, considerava inabalável. Ao aproximar-se da mansão
Munro, que fora aberta recentemente à visitação pública, Anne resolveu conhecê-la. De
nada adiantaria continuar dirigindo sem rumo definido, remoendo dúvidas. Se deixasse
o assunto de lado por algum tempo, talvez fosse capaz de enxergá-lo com mais clareza
depois. Além disso, estava curiosa para saber mais sobre J.B. Munro e a mansão onde
ele havia morado.
As gárgulas de aparência feroz que enfeitavam os cantos superiores frontais da
mansão seguravam entre as garras uma faixa de tecido vermelho onde estava escrito:
"Visite a Propriedade Munro, Agora Aberta ao Público".
Anne enfiou a carteira no bolso da calça jeans e trancou a porta do carro. Ao
seguir na direção da mansão, notou que vários jardineiros podavam as árvores e os
arbustos; o gramado já fora aparado.
Três carros da década de 20, estacionados sob o pórtico, chamaram a atenção de
Anne. Um adolescente, usando boné com a aba virada para trás, observava os
automóveis. O garoto passou a mão sobre a porta esquerda de um Packard em ótimas
condições de conservação e sorriu para Anne, que se aproximara.
— Esses carros antigos são demais, não é mesmo? — disse o adolescente.
— Também acho — respondeu ela tentando imaginar J.B, quando jovem,
dirigindo o Packard.
— Veja só que máquina! — exclamou o rapazinho, entusiasmado, abrindo a porta
e acomodando-se no assento do motorista.
Ele examinou o painel cheio de mostradores, a direção bem maior que a dos
carros modernos, o luxuoso estofamento de couro dos bancos. Em seguida, apontou
para um botão no chão e comentou:
— Meu pai disse que esse botão serve para diminuir ou aumentar a intensidade da
luz dos faróis.
Quando o adolescente fez menção de pisar no botão, Anne o preveniu:
— Não pise aí! Sinto muito, mas o seu pai se enganou. Esse botão serve para dar
partida no motor do carro.
— Sério? Puxa, que legal poder dar partida no motor pisando num botão em vez
de usar uma chave! Parece que você entende bastante de carros antigos, hein?
— Bem... Não entendo muita coisa, não.
Na verdade, Anne não entendia nada de automóveis antigos. Sendo assim, como
sabia que o botão no chão do Packard servia para dar partida no motor?
Foi nesse momento que um grupo de turistas saiu da mansão, conversando em
voz alta.
— Ele gostava de ostentação, não é mesmo?
— Não, para mim o velho tinha estilo. Se você quer a minha opinião, ele sabia
como viver.
— Pode até ser, mas nada no mundo irá me convencer de que foi o sócio de J.B.
que matou a mulher dele. Acho que foi o próprio J.B. que fez o serviço e depois
subornou a polícia para não ser preso.
Deborah. Os turistas estavam falando do assassinato de Deborah, concluiu Anne.
Pode me perdoar, Deborah? Nunca tive a intenção de magoá-la... As palavras de
J.B. Munro voltaram à mente de Anne, que se sentiu compelida a subir os degraus da
escada de entrada da mansão. Uma estranha sensação de dejà vu, mais forte que da
primeira vez, voltou a assaltá-la. Ela levou as mãos ao peito. Sob o tecido fino da
camisa de algodão, sentiu os contornos do medalhão de ouro que ganhara da mãe e que
pendurara numa correntinha também de ouro.
Franzindo a testa, percebeu que a sensação de já ter estado ali antes, muito tempo
antes, tomava-se cada vez mais intensa. Segundos depois sentiu o chão girar à sua volta
e, sem qualquer aviso, uma visão explodiu-lhe na mente com tanta força que o mundo
real à sua volta desapareceu.
Anne viu-se num salão de baile, em meio a um grande grupo de pessoas. Uma
pequena orquestra tocava um jazz animado, e a música misturava-se ao som de vozes e
risos. Homens fumavam charutos, mulheres fumavam cigarros colocados em piteiras
enfeitadas com pedras preciosas. Todos vestiam modelos elegantes dos anos 20. No
centro do salão, casais dançavam sob a luz brilhante lançada por um grande e luxuoso
lustre feito de centenas de pingentes de cristal.
Como que surgido do nada um homem parou ao lado de Anne, que também usava
roupas no estilo em voga nos anos 20. Ela estremeceu diante da intensidade do olhar
que o desconhecido lhe dirigiu. Será que o conhecia? Nunca o vira antes, embora o
rosto lhe parecesse familiar. Ou melhor, muito mais que familiar; ambos tinham um
passado em comum. Confidências, segredos, intimidade... O olhar do desconhecido
revelava tudo isso. No entanto, mesmo que a expressão dele não houvesse revelado
nada, Anne teria adivinhado que laços fortes os uniam, pois jamais se sentira como se
sentia agora perto de qualquer outro homem.
Os olhos do desconhecido, negros como uma noite de inverno, estreitaram-se.
Uma expressão de zanga surgiu no rosto másculo, atraente. Por quê?, Anne teve vontade
de perguntar. Por que está zangado comigo?
O traje que o homem usava era tão elegante quanto o dos outros convidados da
festa, mas de algum modo Anne adivinhou que ele não estava à vontade ali na festa. O
desconhecido possuía uma aura de força e rusticidade que as roupas civilizadas não
conseguiam disfarçar. E fora justamente essa aura que atraíra Anne desde a primeira vez
que o vira. Primeira vez? Mas esta era a primeira vez que o via, não era?
Os convidados da festa dançavam, conversavam e riam, mas o homem continuava
sério. Diga logo!, Anne teve vontade de gritar. Por que está me olhando desse jeito
quando sei que você não me odeia? Ao contrário, você me ama!
A visão desapareceu tão depressa quanto surgira, e o rosto do homem pareceu
partir-se em mil pedaços diante dos olhos de Anne. Ela gemeu baixinho, dominada por
uma profunda sensação de perda. Volte! Não me abandone!
Anne retornou à realidade com a impressão de que fora atingida por um raio.
Deixando os braços caírem ao longo do corpo, deu dois passos para trás. Ofegante, sem
conseguir respirar direito, fitou a porta de entrada da mansão com os olhos cheios de
lágrimas. Confusa e assustada, virou-se e começou a correr na direção do seu carro, sem
enxergar nada do que a cercava.
Abriu a porta do automóvel com mãos trêmulas, jogou-se no banco do motorista
e, depois da terceira tentativa, conseguiu enfiar a chave na ignição. Enxugou as lágrimas
que lhe escorriam pelas faces, tentando entender o que acontecera. Tivera uma visão, ou
sofrera uma alucinação? Quem era o homem que vira? Sabia que não o conhecia, mas
ao mesmo tempo sabia que o amava... Oh, céus, que loucura!
Anne deu partida no motor e engatou a primeira marcha, sem conseguir tirar do
pensamento a imagem do desconhecido de olhos negros. Antes de pôr o carro em
movimento, avistou a mansão pelo espelho retrovisor. Uma espécie de paralisia a
dominou.
De algum modo o homem misterioso estava ligado à mansão. E estava ligado a
ela, também. Mas como?
Como que hipnotizada, Anne desligou o carro e virou-se para trás para observar
melhor a mansão. Será que encontraria alguma resposta lá dentro?
— A mansão demorou cinco anos para ficar pronta — disse Betty, a guia
turística. — O projeto foi executado por um conjunto de arquitetos de renome
internacional, e os melhores artesãos do país foram contratados para trabalhar na
construção. O Sr. Munro tinha gostos caros e era exigente, sempre fazia questão do
melhor.
Ao terminar de falar, a guia apontou para o teto. Anne e os outros turistas
olharam para cima e soltaram uma exclamação de surpresa e admiração. O teto inteiro
era folheado a ouro!
A mansão era uma verdadeira "arca do tesouro". O grupo de visitantes do qual
Anne fazia parte já se deslumbrara com vários outros cômodos da residência: a imensa
cozinha onde podiam ser preparadas refeições para centenas de convidados, salões
cheios de quadros e esculturas de preço inestimável, aposentos decorados com
belíssimos e luxuosos móveis.
No escritório, Betty chamara a atenção dos turistas para um grande retrato no
qual apareciam J.B. e sua primeira mulher, Virgínia. J.B. era mostrado de pé, numa
postura rígida, ao lado da mulher, que estava sentada numa cadeira com as mãos
cruzadas sobre o colo. Virgínia era atraente, mas a boca de lábios finos e os olhos cinza
expressavam frieza. E J.B. não era o homem que aparecera na estranha visão de Anne,
como ela havia imaginado antes de ver o retrato.
Desde então Anne passara a observar com cuidado todos os outros retratos em
exposição na mansão, na esperança de encontrar o tal homem, mas ainda não o vira. O
que ela desejava, no fundo, era uma explicação para a visão que tivera. Talvez já
houvesse visto o retrato do desconhecido em algum lugar e enterrado a imagem dele no
subconsciente. Talvez a Munro Gazette tivesse publicado uma reportagem com fotos
sobre a história da mansão, quem sabe? Nas primeiras semanas após o ataque cardíaco
do pai, Anne procurara distraí-lo lendo o jornal para ele. Desse modo, era possível que
tivesse visto a fotografia do homem no jornal, não era? Mas como poderia ter esquecido
um rosto tão marcante? Que mulher não se lembraria daqueles enigmáticos olhos
negros, mesmo tendo-os visto numa foto granulada em preto e branco?
Interrompendo os devaneios de Anne, Betty — que mais de uma vez lançara
olhares curiosos na direção dela — conduziu o grupo até uma sala de jantar com
paredes revestidas de painéis de mogno. Uma imensa lareira de pedra encimada pelo
brasão da família Munro ocupava boa parte de uma das paredes; diversas peças de
porcelana estavam expostas em cristaleiras bem iluminadas.
Em seguida, a guia turística levou os visitantes para a ala dos aposentos
particulares da família.
O quarto de J.B. era o cômodo mais impressionante da mansão, todo decorado
com móveis em estilo barroco inglês. Duas poltronas ladeavam uma pesada arca de
nogueira. A cabeceira da cama era ornamentada por um delicado trabalho de
marchetaria. Tocheiros italianos iluminavam uma coleção de vasos chineses dispostos
sobre uma cômoda entalhada.
O grupo de turistas percorreu mais uma série de aposentos, incluindo um andar
inteiro de quartos de hóspede, antes de chegar ao último cômodo a ser visitado.
— J.B. Munro pediu que os arquitetos fizessem nessa sala uma cópia de um
aposento de um castelo medieval construído na Europa por um de seus ancestrais —
informou Betty aos turistas. — Estão vendo a lareira? — A guia entrou no "buraco"
formado pelas altas paredes de pedra, onde uma pessoa de tamanho médio podia ficar
de pé sem problemas. — Reparem que há uma porta escondida, aqui. Ela leva aos túneis
que J.B. mandou abrir durante a construção da mansão. Existem outras entradas para os
túneis, incluindo uma na casa de hóspedes.
— Eu já tinha ouvido falar nos túneis — comentou uma mulher de meia-idade. —
Parece que eles eram usados para esconder tonéis de uísque durante a época da Lei
Seca.
— A senhora está enganada — disse Betty. — Lembre-se, J.B. foi o fundador da
cidade. Ele servia bebidas alcoólicas em todas as festas que dava, sem fazer nada para
esconder tal fato. Isso significa, é claro, que os túneis não foram abertos para esconder
tonéis de uísque, e sim por uma questão prática. Muitos dos quadros e esculturas que
enfeitam a mansão foram produzidos num ateliê que J.B. mandou erguer na propriedade
para os artistas contratados. Quando completavam suas obras os artistas as traziam para
a mansão através dos túneis, para evitar que elas fossem danificadas pela poeira, pelo
sol ou pela chuva. Depois que a construção da mansão terminou, os túneis raramente
foram usados.
A mulher de meia-idade franziu a testa, parecendo não gostar de ter sido
contrariada. A seguir, declarou:
— Mas eu ouvi dizer que o gângster Pretty Boy Floyd matou um homem aqui na
mansão por causa de um jogo de pôquer, e depois arrastou o corpo através dos túneis e o
jogou num dos lagos.
— Isso não passa de mero boato — explicou Betty. — E se todos os boatos aos
quais Pretty Boy Floyd está ligado fossem verdadeiros, ele precisaria ter sido mágico
para poder estar em mais de um lugar ao mesmo tempo.
— Podemos conhecer os túneis? — perguntou um rapaz.
— Infelizmente, não. As entradas para os túneis foram fechadas por ordem do
serviço municipal de prevenção contra incêndios — explicou a guia turística, indicando
o cadeado que mantinha trancada a porta dentro da lareira. — Mas ainda temos mais um
item de interesse para ver antes do final da visita. É um retrato de Deborah, a segunda
mulher de J.B. O quadro foi encontrado esta semana, guardado no sótão da mansão.
Anne sentiu um calafrio ao lembrar que J.B. Munro a confundira com Deborah.
Trêmula de expectativa, seguiu o grupo até a extremidade oposta da sala, onde havia um
quadro apoiado num cavalete de metal, coberto por um retângulo de veludo preto.
— A tal de Deborah foi assassinada — afirmou a mulher de meia-idade que
adorava boatos. — Dizem que a polícia acredita que foi J.B. que a matou.
— Na verdade, o mistério do assassinato jamais foi esclarecido, e J.B. nunca
entrou na lista de suspeitos — retrucou Betty, com uma nota de impaciência na voz. —
Mais uma vez, isso não passa de boato. A única coisa que se sabe de concreto sobre o
caso é que Patrick MacKinnon, sócio de J.B. na Ferrovia Munro-MacKinnon, foi
interrogado pela polícia. Diziam, na época, que Patrick era amante de Deborah Munro.
Ele desapareceu logo depois que o corpo de Deborah foi encontrado numa caverna
dentro dos limites da propriedade, e nunca mais foi visto de novo.
— Se o tal Patrick desapareceu logo depois de encontrarem o corpo, então é
óbvio que ele que cometeu o crime! Como foi que ele matou Deborah? Ouvi dizer que...
— Deborah Munro foi estrangulada — declarou Betty com certa rispidez,
perdendo a paciência com a mulher. — E agora, antes do retrato de Deborah, quero
mostrar-lhes outra coisa especial que existe nesta sala. J.B. Munro, que nasceu na costa
leste dos Estados Unidos, interessava-se bastante pela história do Estado onde veio
morar quando já era adulto. Por isso, mandou pintar um mural representando essa
história.
Ao terminar de falar, Betty apontou para o alto.
Anne e os outros turistas olharam para cima e ficaram boquiabertos. No teto da
imensa sala estava pintada a história do Estado de Oklahoma, desde a época em que os
índios ocupavam a área até a chegada das estradas de ferro. Era óbvio que o mural fora
um projeto do qual J.B. se ocupara durante a vida toda. Os eventos históricos não
estavam misturados numa grande colagem, e sim dispostos em ordem cronológica.
Qualquer um que os visse podia acompanhar sem problemas a seqüência dos
acontecimentos.
— E agora, como prometi, vou mostrar-lhes o retrato da segunda esposa de J.B.
— anunciou Betty, conduzindo o grupo para mais perto do retrato e removendo a
cobertura de veludo negro. — Aqui está ela, a Sra. Deborah Richards Munro.
Anne arregalou os olhos e levou as mãos ao peito.
— Como podem ver — disse a guia turística —, Deborah foi retratada usando o
vestido que está em exposição no quarto que lhe pertencia. É fato corrente que a
segunda esposa de J.B. gostava de ser fotografada e retratada em quadros, e não é difícil
entender por quê. Afinal, Deborah era bastante atraente, não acham?
Aturdida, Anne mal ouviu as palavras da guia. Momentos mais tarde, quando o
grupo de turistas se dispersou, ela permaneceu paralisada no lugar. Ao sentir que
alguém a tocava no ombro, deu um pulo de susto.
— Você se manteve meio escondida no meio do grupo, mas não pude deixar de
notar a semelhança — comentou Betty, com um sorriso curioso. — Vocês têm algum
laço de parentesco?
— Não. Não temos — murmurou Anne, em resposta.
— Tem certeza? Não existem registros de nenhum descendente vivo, mas a
semelhança é tão marcante que cheguei a pensar que...
— Não, não temos nenhum laço de parentesco — reafirmou Anne, interrompendo
a guia.
— Que esquisito! Mas, como se costuma dizer, todos nós temos um gêmeo
perdido no mundo, não é mesmo?
— Sim, é o que se costuma dizer.
Logo que Betty se afastou, deixando-a sozinha na sala, Anne voltou a fitar o
retrato, incrédula. "Esquisito"? O caso podia parecer meramente "esquisito" para a guia
turística, mas isso era porque ela não sabia de nada sobre o que acontecera antes: a visão
que Anne tivera na escada de entrada da mansão; o fato de J.B. tê-la chamado de
Deborah e depois tê-la chamado pelo nome verdadeiro, sem nunca tê-la visto antes. E
agora havia o retrato...
Balançando a cabeça num gesto de negação, Anne reparou nos olhos verdes e
amendoados de Deborah, nos cabelos curtos e ruivos, no rosto ovalado. Não, esta não
podia ser Deborah Munro. Era impossível!
A pele da segunda esposa de J.B. não podia ser tão clara, do tipo difícil de
bronzear. O maxilar não podia ser ligeiramente quadrado, e o queixo não podia ter uma
covinha no centro. Estas não podiam ser as feições de Deborah Richards Munro, por
uma razão muito simples: estas eram as feições de Anne.
Pode me perdoar, Deborah? Nunca tive a intenção de magoá-la... Não, eu estava
errado! Você não é Deborah! Você é a outra, e seu nome é Anne...
Anne fechou os olhos e cobriu a boca com as mãos trêmulas. Rezou para estar
tendo uma alucinação, rezou para que quando tornasse a abrir os olhos a imagem de
Deborah Munro fosse diferente. Mas suas preces foram em vão. Quanto mais olhava
para o retrato da segunda mulher de J.B, mais semelhanças encontrava. O sorriso era
igual. Também era igual o nariz ligeiramente arrebitado na ponta.
Tensa, Anne apalpou seu rosto como se quisesse certificar-se de que as suas
feições não haviam sido roubadas para criar a imagem de Deborah. Em seguida,
aproximou-se mais do retrato a fim de examiná-lo melhor. Foi então que notou um
detalhe que a deixou ainda mais assustada. O medalhão que Deborah usava era idêntico
ao que sua mãe lhe dera poucas horas antes. Não, não podia ser possível!
Anne puxou o medalhão para fora do decote da camisa. Acompanhou com a
ponta dos dedos o desenho gravado na superfície de ouro, igualzinho ao desenho no
medalhão usado por Deborah no retrato.
Ao ganhar a jóia da mãe, Anne a abrira e vira que estava vazia. Ao abri-la agora,
porém, teve a sensação de que encontraria algo ali dentro.
Para seu alívio, o medalhão continuava vazio. Mas o que esperara encontrar
dentro dele, afinal? Uma pequena e antiga foto de J.B. quando jovem? A foto de Patrick
MacKinnon, um dos supostos amantes de Deborah?
Ou a foto do homem misterioso que surgira na visão que tivera na escada, cuja
imagem a havia compelido a visitar a mansão?
Voltando a sentir-se assaltada por uma forte compulsão, Anne estendeu uma das
mãos para tocar o retrato. No mesmo instante ouviu um zumbido alto e foi tomada pelo
mesmo mau pressentimento que tivera no dia da morte de J.B. Munro.
Sem saber por que, apertou com força o medalhão que a mãe lhe dera. E quando
finalmente seus dedos tocaram o medalhão do retrato, a escuridão a envolveu e ela
perdeu os sentidos.
3
Anne voltou a si num lugar mal iluminado, frio e úmido. Pelo cheiro que pairava
no ar, parecia que ela estava perto de um lago, ou do mar. Mas não havia qualquer
movimento, nenhuma brisa marinha soprava. O chão, onde estava deitada, era duro e
gelado. Uma única lâmpada acesa, ao longe, mal e mal dissipava a escuridão.
Ela tentou se mover, mas seu corpo, que formigava inteirinho, recusou-se a
obedecer aos comandos do cérebro. Engolindo em seco, Anne lutou para afastar o
pânico. Com extremo esforço conseguiu mexer um pouco a cabeça, e percebeu que se
encontrava numa espécie de corredor de um metro e oitenta de largura por um metro e
oitenta de altura.
Como fora parar ali? E onde seria "ali"? O que acontecera que a deixara
paralisada desse jeito? A última coisa de que se lembrava era de ter tocado o medalhão
no retrato de Deborah Munro.
Foi então que ela ouviu o ruído de passos e vozes.
Anne olhou para a esquerda e avistou duas silhuetas indistintas, uma grande e
outra pequena, vindo em sua direção. Tentou gritar, mas nenhum som escapou-lhe dos
lábios.
Céus, será que tinha morrido? Seria este o famoso túnel mencionado pelas
pessoas que sofriam longas paradas cardíacas e depois eram "ressuscitadas" pelos
médicos? Não, não podia ser. As pessoas que chegavam ao Portal do Paraíso e voltavam
em seguida falavam sempre de uma sensação de paz e segurança, nunca de dor ou
medo. E Anne estava definitivamente apavorada.
As silhuetas aproximaram-se mais e em seguida pararam, a uns seis metros de
distância. Anne pôde ver que a figura menor era de uma mulher e que a maior era de um
homem barbado, mas não conseguiu distinguir-lhes as feições. Os dois estavam
discutindo. Havia ódio na voz do homem, e medo na voz da mulher, mas não dava para
entender direito o que diziam.
Será que nenhum dos dois tinha visto Anne? Parecia que não, pois comportavam-
se como se estivessem sozinhos no corredor.
Segundos mais tarde o homem ficou de costas para Anne, impedindo-a de ver a
mulher. As vozes em tom baixo transformaram-se em gritos. O ruído de uma bofetada
ecoou no ar.
O homem e a mulher começaram a lutar. Anne fechou os olhos e concentrou toda
a sua força de vontade no ato de mexer-se. Foi inútil. Nenhum músculo do seu corpo se
moveu. Tentou gritar de novo, mas sua voz ficou presa na garganta. Voltou a abrir os
olhos, e viu que a luta do casal tomara-se mais violenta. A mulher agitava os braços em
desespero, numa vã tentativa de fugir.
De repente, o corpo da mulher caiu no chão e um pesado silêncio tomou conta do
corredor mal iluminado.
Anne virou a cabeça, sentindo-se nauseada. Lágrimas escorreram-lhe pelo rosto.
Por Deus, este não podia ser o portal do Paraíso. Mas onde estaria ela, então?
Ouviu passos novamente. Era o homem, afastando-se do corpo da mulher. Ele
estava indo embora pelo mesmo caminho que viera. Prendendo a respiração, Anne o
acompanhou com o olhar até vê-lo ser engolido pelas sombras.
Escutou o ruído de uma porta sendo aberta e fechada ao longe, e depois o silêncio
voltou a imperar.
Esta era a chance que Anne esperava para ajudar a mulher. Mas como ajudá-la, se
nem conseguia se mover? Por Deus, que pesadelo!
Segundos mais tarde, o pesadelo intensificou-se. Pontadas de uma dor fortíssima
percorreram o corpo de Anne, começando nos ombros e descendo até as pernas. Se ela
estivesse de pé, a dor insuportável a teria feito cair de joelhos no chão.
Ainda paralisada, Anne não podia fazer mais nada além de tentar suportar a dor
lancinante que tomava conta de seus músculos, tendões e ossos. De repente, teve uma
idéia. Começou a inalar e soltar o ar ritmadamente, seguindo o método de respiração
Lamaze para mulheres em trabalho de parto, conforme aprendera durante o seu curso de
para-médica.
Aos poucos, a dor foi passando. Anne respirou fundo, procurando relaxar.
Lágrimas de alívio inundaram-lhe os olhos. Sem parar para pensar no que fazia, ergueu
uma das mãos para enxugar as lágrimas. Um gritinho de alegria escapou-lhe da
garganta. Sua mão! Conseguira movimentá-la! Seus pés, suas pernas... Não estava mais
paralisada!
Mais que depressa engatinhou para perto da mulher caída no chão, sentindo o
medalhão pendurado na correntinha batendo em seu peito.
— Oh, não! — exclamou, chocada, ao ver o rosto da mulher.
Uma onda de náusea a invadiu. Não foram as marcas vermelhas ao redor do
pescoço da mulher e nem os olhos baços e sem vida que a fizeram ter vontade de
vomitar. Afinal, Anne já vira muitas pessoas mortas desde que começara a trabalhar
como para-médica. O que a chocou foi algo que jamais teria sido capaz de imaginar,
nem mesmo no seu pior pesadelo: ao olhar para a mulher, viu o seu próprio rosto.
— Meu Deus... — murmurou. — Deborah?
Não, impossível! Deborah morrera antes de Anne nascer. A segunda esposa de
J.B. Munro fora assassinada na década de 20! Engolindo em seco, a mente semi-
entorpecida de horror, Anne examinou Deborah à procura de algum sinal de vida, mas
não encontrou nenhum. Baixou as pálpebras da mulher morta para fechar-lhe os olhos,
num gesto respeitoso, e tornou a engolir em seco. Aturdida, observou o modo como
Deborah estava vestida: um glamouroso vestido decotado no estilo dos anos 20, dois
longos colares de contas coloridas, meias de seda, sapatos de salto alto. Os cabelos
ruivos da falecida eram curtos, num corte não muito diferente do que Anne usava. Mas
o que mais chamava a atenção era o rosto dela, parecidíssimo ao de Anne; os olhos, o
nariz e a boca eram praticamente idênticos.
Nesse momento, Anne ouviu a porta sendo aberta de novo. Passos ecoaram
ameaçadoramente pelo corredor.
O mistério do assassinato jamais foi esclarecido... O corpo foi encontrado numa
caverna dentro dos limites da propriedade... Ao lembrar-se das palavras da guia turística
Anne percebeu que precisava fugir, pois o assassino estava voltando para buscar o
corpo, a fim de escondê-lo na tal caverna.
Movida pelo instinto de sobrevivência, ela se pôs de pé e saiu correndo.
Anne sentou-se no chão e enterrou o rosto nas mãos, esforçando-se para conter as
lágrimas de frustração e cansaço que ameaçavam inundar-lhe os olhos. Andara horas
pelo labirinto de corredores, mas não encontrara a saída; encontrara apenas portas
fechadas.
Devia estar no complexo de túneis que J.B. mandara escavar sob a mansão, sem
dúvida alguma. A mente de Anne, porém, recusava-se a aceitar o resto desse
"pesadelo". A mulher que vira ser estrangulada não podia ser Deborah Munro.
Mas e se fosse? Se Anne aceitasse reconhecer o local onde estava, se aceitasse
admitir a identidade da mulher morta, não teria de aceitar também o ano em que estava?
De acordo com a data da morte do assassinato de Deborah...
Céus, em que ano estaria, no fim das contas? Anne suspirou. Só podia ter
enlouquecido, claro. Afinal, só uma louca alimentaria a idéia de que havia viajado no
tempo!
Pondo-se de pé, ela decidiu provar a si mesma que se enganara, que não perdera o
juízo. Tinha de existir uma explicação lógica para o que lhe acontecera, para o crime
que testemunhara. E o melhor era encontrar tal explicação, sem perda de tempo.
Mais meia hora passou. Anne encontrou outras três portas nos túneis, mas todas
estavam fechadas. Exausta, com as pernas fracas e trêmulas, ela se obrigou a continuar
andando. De repente, ao entrar num túnel novo, avistou uma escada de cimento no topo
da qual havia uma porta.
Oh, por favor. Senhor, rezou em pensamento, permita que esta seja a saída desse
labirinto. Segurando-se no corrimão de metal, começou a subir a escada. Na metade do
caminho tropeçou, caiu e rolou pelos degraus abaixo. Bateu a cabeça com força no chão
e gritou de dor. Levou uma das mãos à testa e notou que gotas de sangue escorriam de
um pequeno corte.
Permaneceu imóvel por alguns minutos, esperando que a dor diminuísse, e tornou
a subir a escada. Desespero e esperança deram-lhe forças para chegar ao topo dos
degraus. Ela abriu a porta e... ouviu música.
Confusa, olhou ao redor. Encontrava-se dentro de uma abertura quadrada feita de
tijolos. Céus, será que estava onde imaginava que estava? No interior da grande lareira
que Betty mostrara ao grupo de turistas? Abaixando a cabeça, dirigiu o olhar para a sala
à sua frente. A música vinha de uma festa. Uma festa que mais parecia uma cena tirada
do filme O Grande Gatsby.
Os homens trajavam ternos com camisas de colarinho alto, engomado, e as
mulheres usavam vestidos de cetim com bordados de contas. Uma pequena orquestra
tocava um jazz animado, e uma nuvem azulada de fumaça de charuto e cigarro pairava
no ar.
— Deborah!
Anne virou-se na direção da mulher que pronunciara o nome da segunda esposa
de J.B. Usando um vestido verde sem mangas e um longo colar de pérolas, a mulher
devolveu o seu copo vazio ao garçom que passava e aproximou-se de Anne.
— Deborah, querida, por onde andou? Já estávamos preocupados com a sua
ausência e... Oh, a sua testa está sangrando! — A mulher segurou Anne pelo braço e
puxou-a para fora da lareira, indagando: — O que aconteceu com você? Como se
machucou?
Sem esperar pela resposta, a mulher dirigiu-se a um segundo garçom que passava,
ordenando:
— Vá chamar o Sr. Munro, depressa!
Outras mulheres se aproximaram, fitando com curiosidade as roupas de Anne. A
mulher do vestido verde voltou a falar:
— Não quer sentar-se um pouco, Deborah? Você está tão pálida.
Anne sentiu a cabeça girar. Com voz fraca, balbuciou:
— Eu... Eu não sou... Não sou quem você pensa que... Ela não teve tempo de
terminar a frase, pois nesse momento um homem abriu caminho por entre o grupo de
mulheres.
— Ah, J.B, o garçom lhe deu meu recado? Venha cá, dê só uma olhada em
Deborah! Eu estava procurando por ela quando a vi dentro dessa monstruosidade que
você chama de lareira, usando essas... essas roupas de trabalhador do campo! Além
disso, ela está ferida e...
— Afaste-se, Leila.
Diante do tom autoritário de J.B, a mulher de vestido verde calou-se e obedeceu.
Anne pestanejou. Céus, era ele mesmo! Era o próprio J.B. Munro, só que décadas
mais jovem! Em lugar das rugas e dos ralos cabelos brancos, ele apresentava pele lisa e
fartos cabelos loiros. Os olhos azuis, antes apagados pela velhice, mostravam-se agora
brilhantes e vivazes. E lá estava a peculiar cicatriz em forma de "C" perto do olho, para
confirmar-lhe a identidade de uma vez por todas.
Mas como era possível uma coisa dessas? Anne chegou a pensar que estava tendo
uma alucinação, provocada pela batida que dera com a cabeça. Mas não, ela batera a
cabeça depois de ter visto Deborah ser assassinada, e isso significava que... Oh, Deus, o
que significava tudo isso, afinal?
J.B. segurou-lhe o braço sem a menor gentileza e puxou-a para junto de si.
— Onde esteve até agora? — perguntou, irritado. — Quer fazer o favor de me dar
uma explicação para o fato de estar vestida desse jeito?
Uma explicação? A incredulidade de Anne transformou-se em raiva. Quem
precisava de uma explicação era ela, droga! Num gesto brusco, soltou o braço e deu um
passo para trás.
J.B. fitou-a com ar surpreso por um segundo, antes de fazer menção de segurar-
lhe o braço outra vez.
— Deborah está machucada, J.B. — interveio uma voz masculina. — Será que
ainda não percebeu que a testa dela está sangrando?
Anne olhou na direção da voz e arregalou os olhos.
— Oh! É você! — exclamou, sentindo o coração disparar.
Finalmente o encontrei, pensou. Você está aqui! Perturbada, examinou o rosto
másculo e atraente que havia aparecido na visão que tivera antes de entrar na mansão
Munro pela primeira vez. Um rosto bronzeado, de testa larga e queixo forte. Sobrancelhas
escuras encimavam os olhos negros como uma noite sem luar. Olhos que a fitavam com
uma expressão que parecia indagar "Você perdeu o juízo, sua doida?"
Sim, acho que perdi, pensou Anne. Ou melhor, tenho certeza que perdi! Não havia
outra explicação: ou endoidecera de vez ou estava tendo um dos sonhos mais estranhos
de toda a sua vida! Ela notou um rápido brilho de advertência nos olhos do homem
moreno, e voltou a experimentar a mesma excitação que sentira antes, nos degraus de
entrada da mansão. Existia algo de especial entre o desconhecido e ela, não restava a
menor dúvida.
— Não se intrometa, Patrick — resmungou J.B, arrancando Anne de seus
devaneios. — Deborah é minha esposa.
Patrick? O sócio de J.B. na Ferrovia Munro-MacKinnon? O suposto amante de
Deborah? Sem saber por que, Anne sentiu uma pontada de ciúme.
— Não precisa usar esse tom comigo, J.B. Nunca lhe dei motivos para desconfiar
de mim — retrucou Patrick MacKinnon.
Os dois homens se encararam por um instante, como dois leões disputando a
mesma presa, e o ar ficou carregado de tensão. De repente, J.B. pareceu lembrar-se da
presença de Anne. Olhou-a de modo possessivo, declarando:
— Você está proibida de entrar nos túneis outra vez. Ouvirei as suas explicações
mais tarde, depois de cuidar do corte na sua testa. Vamos, venha comigo.
Ele a empurrou de leve pelas costas, mas Anne recusou-se a sair do lugar. Não
sabia o que lhe acontecera nem como havia ido parar ali — onde quer que fosse ali —
sabia apenas que era a contra a sua natureza obedecer cegamente a uma ordem.
— Não vou a lugar nenhum com você — protestou, em tom firme.
— Não? Por Deus, o que há de errado com você? — impacientou-se J.B,
examinando-lhe a calça jeans e a camisa de algodão antes de lançar um rápido olhar na
direção dos convidados da festa. — Venha comigo, agora!
— Não! Eu...
— Você se machucou, Deborah — intrometeu-se Patrick, em tom apaziguador.
Ele tocou-lhe a testa e depois mostrou-lhe as pontas dos dedos manchadas de sangue. —
Está vendo? Por favor, vá com J.B. e deixe que ele lhe faça um curativo.
Anne estava consciente do ferimento, mas estava ainda mais consciente do
homem que a fitava com uma expressão que a instava a obedecer J.B. Não posso ficar
com você?, sentiu vontade de perguntar. Mas sabia que isso só iria piorar a situação,
portanto permaneceu calada.
Desviando o olhar do rosto moreno, tomou uma decisão. Sim, a melhor coisa que
tinha a fazer era obedecer J.B, mas não por causa do pedido de Patrick. Obedeceria
porque precisava pensar, refletir sobre o que lhe acontecera e descobrir um jeito de
voltar para casa.
Depois de pigarrear para limpar a garganta, encarou J.B. Era estranho ter de agir
como se fosse outra mulher, mas não havia outra saída; mais estranho ainda seria ter de
explicar quem era ela, de onde viera e a cena trágica que vira no túnel.
— Está bem — disse Anne, por fim. — Leve-me... leve-me para os meus
aposentos, J.B.
J.B. não pareceu muito satisfeito com o fato de ter sido Patrick a convencer sua
esposa a fazer o que ele mandava, mas não falou nada. Ele simplesmente a segurou pelo
braço e a conduziu para fora do salão apinhado de gente.
O grande hall não mudara muito, refletiu Anne. O lugar continuava quase igual
ao que vira durante a visita turística que fizera antes. Havia lindas tapeçarias e quadros
de artistas renomados pendurados nas paredes.
Foi então que ela viu o retrato, e suas pernas amoleceram. Pestanejou ao olhar
para a figura de Deborah, mais uma vez surpreendendo-se com a incrível semelhança
entre as duas. Deborah, cujo destino fora selado por um homem barbado.
Mais surpreendente ainda foi o zumbido peculiar que começou a ouvir e que
tornava-se cada vez mais alto conforme J.B. e ela aproximavam-se do retrato. Anne
chegou a pensar que o ruído era uma conseqüência da batida que dera com a cabeça e
que a deixara zonza.
Demorou alguns segundos para se dar conta de que estava enganada e que o
zumbido era idêntico ao que ouvira pouco antes de tocar o retrato e viajar
misteriosamente para o passado. Seria o retrato de Deborah o seu passaporte para voltar
ao futuro? Se a pintura fora a porta de entrada para os anos 20, a lógica lhe dizia que a
pintura também serviria como porta de saída...
A cada passo dado por Anne, o zumbido aumentava de intensidade. Quando J.B.
começou a conduzi-la na direção do corredor ao lado do retrato, ela se soltou e correu.
— Só faltava essa! — resmungou J.B, zangado, seguindo-a. — Deborah, por
acaso está querendo que eu perca a paciência de vez?
— Preciso fazer uma coisa. Por favor, espere só um pouquinho — pediu Anne.
Vendo que J.B. fazia menção de segurar-lhe o braço de novo, acrescentou: — Se não
atender o meu pedido, terá de me arrastar daqui pelos cabelos. Os seus convidados iriam
adorar o espetáculo, não acha?
— Tudo bem — concordou J.B, contra a vontade. — Mas não se demore.
Anne não perdeu tempo. Ergueu uma das mãos, tocou o retrato e fechou os olhos,
esperando que a escuridão a envolvesse como acontecera anteriormente. O que
aconteceu, porém, que foi o estranho zumbido cessou de repente. Ela abriu os olhos e
viu que estava no mesmo lugar de antes.
Confusa, deu um passo para trás. E o zumbido recomeçou!
— Já chega, Deborah. Pare de se comportar como louca e venha comigo —
exigiu J.B.
Anne ignorou-o, concentrando toda a sua atenção no retrato. De súbito, lembrou-
se. O medalhão! Como podia ter se esquecido dele? Enfiou a mão sob a gola da camisa
à procura da jóia. Da primeira vez, tocara o retrato ao mesmo tempo em que segurava o
medalhão. A jóia devia ser a chave que abria a porta de comunicação entre o passado e
o futuro e...
Oh, não! O medalhão sumira! Mas como? Lembrava-se de estar usando a jóia no
túnel, pois sentira o objeto de ouro batendo contra o seu peito enquanto engatinhava
para junto do corpo de Deborah. Quando será que o perdera?
— Já esperei mais que o suficiente, Deborah — disse J.B, impaciente. — Pelo
amor de Deus, você está ferida! Precisa de um curativo.
Anne encarou-o e levou as mãos à testa.
— É isso — sussurrou. — Eu o perdi quando caí...
Girando sobre os calcanhares, tomou o rumo da sala onde estava a imensa lareira.
— Deborah!
Ela escutou o chamado de J.B, mas não parou de andar. Ao avistar a lareira a
poucos metros de distância, sorriu, satisfeita, e começou a abrir caminho por entre os
grupos de convidados. Foi então que Patrick MacKinnon bloqueou-lhe a passagem.
— Deixe-me passar — pediu Anne. — Tenho de voltar.
Patrick a segurou pelos braços e chacoalhou-a de leve, indagando:
— O que está acontecendo, afinal? Você está bêbada, Deborah?
— Não! Eu não sou Deborah — disse ela, sem pensar. — E não estou bêbada. Só
preciso voltar para o túnel!
— Você não vai a lugar algum, Deborah, muito menos para o túnel — interveio
J.B, que se aproximara. — Você finalmente conseguiu me fazer perder de vez a
paciência, mulher! Está satisfeita, agora? — murmurou por entre os dentes, furioso,
enquanto a puxava para fora da sala.
4
A luz do sol acordou Anne. Enquanto ela se espreguiçava, sonolenta, ouviu vozes
sussurrantes, femininas, que vinham do rádio-relógio. De olhos fechados, aconchegada
ao calor da cama, ela bocejou. Tivera um sonho esquisitíssimo, e agora a sua cabeça
doía.
As vozes das locutoras de rádio aumentaram de volume. Anne cobriu a cabeça
com o travesseiro. Percebendo que também estava com os braços e as pernas doloridos,
achou estranho. Não fizera nenhum exercício físico no dia anterior. Na verdade, durante
as últimas semanas, não fizera nada mais cansativo que cuidar do pai.
Seu pai! Tinha de dar a ele o comprimido das nove da manhã! Anne sentou-se
depressa na cama, abriu os olhos e viu algo que a espantou.
Rosas. Pequenas rosas brancas e vermelhas enfeitavam as paredes do seu quarto.
Ela pestanejou e olhou para o lençol que a cobria, que também era estampado
com rosas brancas e vermelhas, como o papel de parede. E como a colcha dobrada aos
pés da cama. Confusa, alisou o tecido com as mãos. Não reconheceu o lençol nem a
colcha, muito menos o papel de parede. E o que dizer dos móveis de época espalhados
pelo quarto? Poltronas combinando com os criados-mudos que ladeavam a cama de
casal, abajures de cúpula branca, um biombo em estilo art déco. Tudo o que havia no
aposento parecia ter saído de uma das lojas de antigüidades favoritas da sua mãe.
Anne franziu a testa. Seu olhar pousou sobre uma parede perto da cama que
formava uma espécie de alcova, bloqueando o resto do quarto. Ela levou uma das mãos
à cabeça e notou que alguém lhe pusera uma bandagem na testa.
Trechos do sonho maluco que tivera durante a noite voltaram-lhe à mente. Um
labirinto... Correra por um labirinto de túneis. Começara a subir uma escada, caíra e
batera a cabeça. Em seguida, saíra de dentro de uma lareira e vira uma porção de gente
usando roupas no estilo dos anos 20. Ela se lembrava também de ter visto um
adolescente olhando um carro antigo. Que bizarro!
Ao escutar de novo as vozes femininas Anne olhou ao redor à procura de um
rádio ou de um rádio-relógio, mas não havia nenhum tipo de aparelho no quarto.
Curiosa, levantou-se e contornou em silêncio a parede perto da cama. Levou o maior
susto quando viu duas mulheres ao lado de um guarda-roupa com as portas abertas. As
mulheres deviam ser empregadas, pois trajavam uniformes pretos com avental e touca
branca. Elas estavam dobrando a calça jeans e a camisa que Anne usara no dia anterior.
Anne olhou para a camisola que lhe cobria o corpo. Não se lembrava de tê-la
vestido antes de ir dormir, nem de tê-la comprado algum dia — na verdade, não se
lembrava de nada. Afinal, onde estava, e o que teria lhe acontecido? Fechando os olhos,
tentou pôr a cabeça para funcionar em busca de uma pista. Foi então que ouviu uma das
criadas ralhar com a outra, com um forte sotaque irlandês.
— Fale mais baixo! Quer que a patroa escute o que estamos dizendo? Ela pode
estar acordada, sabia?
— Deborah Munro, acordada antes da hora do almoço? — A segunda empregada
deu uma risadinha cínica. — Está aí uma coisa que eu gostaria de ver, Katy O'Brien!
Deborah Munro.
Oh, céus... Deborah Munro. A névoa de confusão que tomava conta da mente de
Anne dissipou-se como que por encanto. De um segundo para outro ela se recordou de
tudo, nos mínimos detalhes: a visita à mansão Munro, o retrato de Deborah, o homem
barbado que a estrangulara, a festa, J.B. e Patrick, o medalhão perdido. Pelo visto, o que
imaginara ser um sonho era pura realidade. Mas como...?
Uma das criadas virou-se, e Anne escondeu-se atrás da parede.
— A Sra. Munro tem um bom motivo para dormir até tarde, hoje — argumentou
a empregada de sotaque irlandês. — Já esqueceu que ela sofreu um ferimento na
cabeça?
— E você, Katy, já esqueceu onde ela machucou a cabeça? Nos túneis! E sabe
por que ela estava nos túneis? Porque tinha um encontro secreto com...
— Já chega, Edith! Não quero ouvir mais nenhum dos seus mexericos maldosos
sobre a patroa. Não sei por que você a odeia tanto, se todos os outros empregados da
casa gostam dela. Além disso, ela é uma mulher casada e jamais teria coragem de...
Dessa vez foi Edith, a criada que pouco antes dera uma risadinha cínica, que
interrompeu Katy:
— Ah, como você é ingênua! Os outros empregados só gostam de Deborah
Munro porque não sabem nem metade do que eu sei sobre ela. E caso lhe interesse
saber, o fato de ser casada pode significar algo para gente como nós, mas não significa
nada para as pessoas que vivem nesta casa e que não têm o menor senso de moral. Eu já
não lhe contei que o patrão era tutor de Deborah antes de se casar com ela? Pois então,
isso confirma o que estou dizendo.
— Acontece que eu só acredito no que vejo com os meus próprios olhos, Edith, e
o que vi até hoje nesta casa basta para me convencer que a Sra. Munro é uma boa
pessoa. Ela sempre foi gentil comigo. Não descontou um único dia do meu salário
quando fiquei doente, e eu estava trabalhando aqui há apenas seis meses. Nenhuma
outra patroa teria feito isso.
— Não perca o seu tempo defendendo Deborah Munro, a menos que queira
bancar a tola. Vamos, me diga, se ela não tinha um encontro com algum amante, o que
foi fazer nos túneis no meio da festa? E ainda por cima usando roupas de homem, para
se disfarçar!
— Concordo que as roupas são estranhas, mas talvez a patroa as tenha vestido
para cavalgar. Ela adora cavalos, você sabe. Por falar nisso, talvez esses sapatos
estranhos também sejam próprios para cavalgar. Eu nunca tinha visto nada parecido,
antes. Céus, e eu que achava que aquelas botas pontudas de caubói é que eram
estranhas!
— Por Deus, Katy, você é mesmo ingênua! Deborah Munro foi se encontrar com
um homem, e não andar a cavalo. Quanto a estes sapatos, eu também nunca tinha visto
nada parecido. Mas dê uma olhada aqui. Não é um nome de homem bordado aqui do
lado? Leia, está escrito Mike.
Anne franziu a testa. O nome Mike? Bordado nos seus tênis?
Depois de um momento de silêncio, ela escutou Katy rir baixinho e comentar:
— Posso ser ingênua, Edith, mas sei ler melhor que você. Esta primeira letra é
um "N", não um "M". Repare, aqui está escrito Nike, em vez de Mike. Não sei o que a
palavra significa, mas com certeza não é nome de gente.
Anne sorriu, divertida. As duas empregadas estavam falando da marca dos tênis!
— Não importa o que está escrito nos sapatos — resmungou Edith, na defensiva.
— O que importa é o que Deborah Munro foi fazer nos túneis. Talvez, por causa disso,
ela seja mandada embora de novo.
— Você acha? — indagou Katy, em tom preocupado.
— Acho, sim. Foi por causa desse mesmo tipo de comportamento que o Sr.
Munro afastou a esposa da mansão quatro anos atrás. Tentaram abafar a história,
dizendo que ela tinha ido visitar parentes em outro Estado, mas eu fiquei sabendo que o
patrão brigou com Deborah uma dia antes de ela ir embora. O motivo da briga, é óbvio,
foi um dos casos escandalosos da patroa. Ele não queria que a cidade inteira soubesse
que...
— Edith! Por acaso você ficou ouvindo a discussão dos dois atrás de alguma
porta?
— Bem, para ser sincera, eu não pude deixar de ouvir, Katy. Os dois estavam
discutindo aos berros. Pensei até que o patrão fosse bater na mulher! Ele estava gritando
e jogando coisas no chão e nas paredes, enquanto a esposa chorava e implorava pelo
divórcio.
— Por favor, Edith, prefiro não ouvir mais nada.
— Tem certeza? Não quer nem ouvir por que o patrão estava mandando a mulher
embora de casa, e por que ela queria o divórcio? Pois fique sabendo, sua tonta, que a
mulher que você teima em defender tem um passado vergonhoso. Ela...
A porta do quarto se abriu de repente e Edith parou de falar.
— Sr. Munro! — exclamou a empregada mexeriqueira, assustada. — Nós... Nós
estávamos arrumando as roupas da sua esposa, mas já acabamos o serviço. Com licença,
senhor... Venha, Katy.
Ao perceber que as mulheres saíam do quarto, Anne voltou correndo para a cama
e fingiu que estava dormindo. Por Deus, o sonho estava se transformando num
pesadelo!
Sua cabeça doía muito, e a última coisa de que ela precisava agora era de uma
conversa com J.B. Munro. Ainda mais se ele ainda estivesse tão zangado quanto na
noite anterior!
Anne sentiu o colchão afundar quando J.B. sentou-se na beirada da cama. Ele a
segurou pelos ombros e chacoalhou-a sem a menor gentileza.
Acorde, Deborah. Vamos, acorde. Ela conservou os olhos fechados, o rosto
impassível. Pare de fingir, Deborah. Sei que já acordou — disse.
Anne continuou a respirar em ritmo lento, como alguém que estivesse num sono
profundo. Precisou controlar-se ao máximo para manter-se imóvel quando J.B.
aproximou seu rosto do dela e lhe acariciou de leve o pescoço.
— Devo tentar acordá-la como um marido amoroso o faria? — sussurrou ele,
sarcástico.
Uma briga com J.B. não era a última coisa de que Anne precisava. Pensando
nisso, ela abriu depressa os olhos.
— Ah, eu sabia que isso a faria acordar — riu J.B, pondo-se de pé.
Anne encarou-o, procurando esconder o espanto que a dominou. Ele era o mesmo
homem que vira num dos retratos durante a visita turística à mansão. Mas como isso era
possível?
— Precisamos conversar, mulher. — J.B. falou em tom educado, mas seus olhos
mais pareciam duas pedras de gelo. — Precisamos ter uma conversinha a respeito do
seu ódio por mim, do seu desejo de destruir o meu nome nessa cidade. Um assunto
fascinante, não acha?
Anne permaneceu calada e ele prosseguiu:
— E então, não vai dizer nada? Pensei que o assunto iria interessá-la. Afinal,
escândalos e mexericos são o seu forte, não é mesmo? Imaginei que você estaria ansiosa
para falar sobre as suas últimas tentativas de me desgraçar. Vamos lá, não vai fazer
nenhum comentário sobre como conseguiu reavivar rumores que há quatro anos
estavam esquecidos?
Anne continuou muda.
— O seu silêncio me surpreende, Deborah. — J.B. tornou a rir com cinismo. —
Não quer mesmo se vangloriar do sucesso do seu plano para me humilhar? Por favor,
não se finja de modesta só por minha causa. Você planejou tudo direitinho. Primeiro
ofereceu uma festa em minha homenagem, depois fez questão de ser vista saindo do
salão com um outro homem. E é claro que todo mundo comentou o fato, exatamente
como você queria!
Estremecendo diante da crueldade de tal acusação, Anne baixou a cabeça. J.B.
continuou, implacável:
— Ignorei todos os rumores que ouvi nos últimos meses, decidido a lhe conceder
o benefício da dúvida. Mas, pelo visto, banquei o tolo. Você andou sendo leviana outra
vez, como todo mundo já sabia. Todo mundo menos eu! E o espetáculo da noite passada
foi planejado para mostrar aos habitantes da minha cidade o quanto tenho sido idiota,
certo?
J.B. correu os dedos pelos cabelos e torceu a boca num gesto de asco. Ele virou o
rosto, como se não suportasse olhar para a mulher na cama por mais um único segundo.
Anne suspirou, pesarosa. Se não estivesse tendo um pesadelo, se o que estivesse
acontecendo fosse mesmo real, isso significava que Deborah era uma pilantra de marca
maior.
— Vai continuar calada? Pois o que tenho para lhe dizer agora talvez estimule a
sua vontade de falar — declarou J.B, ameaçador. — Acho que você está precisando de
um período de descanso, minha querida. De um longo período de descanso, para ser
mais exato. Por isso, hoje de manhã, dei um telefonema para um hospital em Missouri.
— Você... telefonou para um hospital? — murmurou Anne, por fim.
O pesadelo estava assumindo um ar mais real e assustador a cada minuto que
passava.
— Oh, vejo que o assunto despertou o seu interesse. Sim, telefonei para um
hospital. Geralmente o processo de internação demora algum tempo, mas parece que
ainda me resta um pouco de influência para apressar as coisas. E depois do que você fez
na noite passada, será ainda mais fácil convencer os médicos de que você não anda no
seu estado normal.
Anne aprumou-se na cama, imaginando-se internada num hospício dos anos 20.
Ah, não, de jeito nenhum! É claro que já pensara na possibilidade de ter ficado louca; no
fundo, porém, sabia que estava mais lúcida que nunca. A situação em que se encontrava
é que era maluca, isso sim! Mas ela sabia como sair dessa situação, usando o medalhão
e o retrato de Deborah.
Chegara a hora da verdade. Hora de contar a J.B. que ela não era a mulher que ele
queria mandar para um hospício. Hora de revelar que não era a adúltera e escandalosa
Deborah, pois Deborah estava morta num dos túneis sob a mansão. Hora de revelar que
ela era Anne, uma para-médica que cuidara dele nos anos 90 e...
Céus, agora sim Anne devia ter enlouquecido! Era óbvio que J.B. jamais
acreditaria nessa história. Ao contrário, ele iria repetir para os médicos tudo o que
ouvira e ela passaria o resto da vida internada como doida incurável.
Não, Anne não podia contar nada para J.B, a menos que mostrasse o corpo de
Deborah como prova do que dizia. Mas quanto tempo seria necessário para encontrar o
corpo de Deborah? Dias, talvez semanas. Sendo assim, o melhor a fazer era evitar a
verdade a qualquer custo e recuperar o medalhão!
Pense, ordenou Anne a si mesma. Pense num jeito de enganar de J.B. e ganhar
tempo para poder sair dessa enrascada.
— Vai ficar muda, Deborah? — J.B. cruzou os braços Um sorriso de satisfação
curvou-lhe os lábios. — Fico feliz em ver que você concorda com os meus planos. Para
mim tanto faz se você acha que precisa mesmo de um descanso ou se está apenas
aborrecida com os amantes que arranja por aí. Já fico contente só de vê-la com essa
expressão confusa, sem saber o que dizer.
Anne arregalou os olhos e cerrou os punhos, dominada por uma raiva intensa.
Deborah podia ter sido a maior pilantra do Estado de Oklahoma, mas o marido dela
também não era nenhum santo. O homem que estava à sua frente não era o velhinho
doente que conhecera; ele não era fraco nem indefeso, era perigoso!
Na atual circunstância, o melhor seria fazê-lo experimentar um pouco do próprio
remédio. Anne pigarreou, recostou-se na cabeceira da cama e, forçando-se a assumir
uma expressão entediada, declarou:
— Você está me subestimando, J.B, e isso me surpreende. Você não chegou à
posição que ocupa hoje subestimando as pessoas.
— Tem razão. Eu não costumo subestimar ninguém. Admito, contudo, que já
cometi alguns erros no passado, principalmente no que diz respeito a você. Mas não se
preocupe, sou do tipo que não comete o mesmo erro duas vezes.
— Será? — provocou Anne, fingindo uma coragem que nem de longe sentia. Em
seguida, ameaçou: — Se você quiser que o "episódio" de quatro anos atrás continue
sendo um segredo de família, trate de não assinar nenhuma guia de internação
hospitalar, entendeu?
J.B. riu, abalando a confiança de Anne. Droga! Edith não dissera a Katy que J.B.
fizera questão de abafar o caso? Será que não era esse o ponto fraco dele?
— Está querendo me chantagear, Deborah? Pensei que seu forte fosse o adultério
— retrucou J.B, antes de acrescentar: — Se você tentar me prejudicar ainda mais, darei
um jeito de deixá-la trancafiada no hospital até que todos os habitantes da cidade
esqueçam que um dia você existiu.
Ele fez a ameaça soar de modo convincente, mas Anne percebeu algo: J.B.
Munro tinha um tique. Um tique nervoso na cicatriz sob o olho esquerdo. Então ele não
está tão seguro quanto quer parecer, pensou Anne, enquanto argumentava:
— Antes de ser trancafiada, meu caro, posso muito bem arrastar o sobrenome
Munro na lama.
— Munro também é o seu sobrenome, Deborah.
O tique nervoso tomou-se ainda mais perceptível. J.B. passou a ponta dos dedos
sobre a cicatriz. Ao notar que Anne observava-lhe o gesto, apressou-se a enfiar as mãos
nos bolsos da calça.
— Acho que dá para adivinhar, pelo meu comportamento, que eu não ligo a
mínima para o sobrenome Munro — afirmou Anne, dando de ombros.
Com medo de que a ameaça de revelar um segredo de família não fosse suficiente
para deter os planos de J.B, ela resolveu blefar mais uma vez:
— A propósito, meu caro, também não costumo subestimar as pessoas. Eu sabia
que você iria tentar me punir pelo que fiz ontem na festa. Por isso, tomei providências
para que você pagasse bem caro caso conseguisse arranjar um modo de me castigar. O
homem com quem me encontrei na noite passada está a par de tudo o que aconteceu
quatro anos atrás. Pedi a ele que revelasse todos os detalhes caso ficasse sabendo que,
de repente, eu tinha ido "visitar parentes em outro Estado".
J.B. estreitou de leve os olhos, e Anne jogou sua última cartada:
— Ele... ele tem um parente que é repórter.
— Um parente?
— Um primo, para ser mais exata.
— Esse primo trabalha para algum jornal local?
— Não, o rapaz trabalha para um jornal de circulação nacional.
— Não acredito em você.
— Problema seu, meu caro.
A cicatriz sob o olho de J.B. começou a pulsar mais depressa.
— Você não é tola, Deborah. Deveria saber que está provocando o homem
errado.
— A meu ver, J.B, é você que está provocando a mulher errada.
— Acontece que essa mulher é minha esposa! — esbravejou ele.
— Pois saiba que a sua esposa não passará um único dia num hospital. A menos,
é claro, que você queira ver o seu precioso sobrenome jogado na lama.
Os dois se encararam com fúria, e a discussão transformou-se num jogo para ver
quem desviava primeiro o olhar.
Apesar de toda a sua determinação, J.B. foi o primeiro a romper o contato visual.
Ele balançou a cabeça e, por um breve instante, Anne imaginou ter detectado uma
sombra de tristeza no rosto dele.
— Você se saiu bem, Deborah. mas a vitória não terá um sabor tão doce quanto
você imagina — afirmou J.B, tenso. — A partir de agora você está proibida de se
afastar da mansão, de se aventurar pelos túneis ou de fazer qualquer coisa que me deixe
embaraçado na frente de Harrison Wyndham enquanto ele estiver hospedado aqui. A
cidade investiu muito para conquistar a cooperação de Wyndham, e eu não quero que
você arruíne os meus projetos. Trate de assumir o papel de esposa apaixonada e
atenciosa, entendeu?
Ao terminar de falar, J.B. saiu do quarto pisando duro e fechou a porta com força.
Anne jogou-se de bruços na cama, gemendo baixinho. A tensão que
experimentara momentos atrás se dissipara com a partida de J.B, mas o medo continuava
presente — medo de ter pressionado demais um homem tão poderoso.
Mas não adiantava nada ficar pensando na discussão que acabara de acontecer.
Tinha de agir, e depressa. Afastando o lençol florido, Anne pôs-se de pé e foi até a
alcova onde estava o guarda-roupa. Ignorando a dor de cabeça que sentia, procurou e
encontrou a sua calça jeans. Havia acabado de vesti-la quando seu olhar pousou sobre a
janela ao lado do guarda-roupa.
Não acredito no que estou vendo, pensou, assustada. Não posso acreditar!
A janela dava para os jardins da frente da mansão, oferecendo uma ampla visão
da entrada para carros. Havia dez ou mais automóveis estacionados lá embaixo. Quando
Anne fizera a visita turística à mansão, no dia anterior — ou melhor, setenta anos no
futuro —, carros semelhantes àqueles eram considerados como antigüidades. Mas ali,
agora, os mesmos automóveis tinham apenas alguns anos de uso.
Um grupo de pessoas saiu da mansão e se aproximou dos carros. Obviamente,
muitos dos convidados da festa haviam passado a noite nos vários quartos de hóspedes
da imponente residência.
Anne observou de olhos arregalados as roupas das pessoas. As mulheres usavam
chapéus coloridos e casacos com gola de pele. Os homens trajavam sobretudos
elegantes por cima dos ternos bem-talhados e usavam chapéus coco.
Afastando-se da janela, Anne suspirou e tirou a calça jeans. Não podia usá-la,
pois chamaria demais a atenção se vestisse algo diferente das outras mulheres.
Tornando a suspirar, examinou as roupas penduradas no interior do imenso guarda-
roupa.
Betty, a guia turística, não havia exagerado. Deborah Munro fora mesmo uma
escrava da moda da época. Os cabides estavam cheios de vestidos com etiquetas
famosas: Chanel, Lanvin, Patou, Worth, Vionnet. O vestido que mais impressionou
Anne foi um de cetim prateado que lembrava um pouco o estilo egípcio. Deborah podia
ter sido uma grande desmiolada, mas ninguém podia negar que tivera bom gosto e
soubera viver cercada de luxo.
Anne pegou um dos vestidos mais simples, apropriado para ser usado durante o
dia, e vestiu-o. Quando ia guardar a calça jeans ouviu o tilintar das moedas que estavam
no bolso e que, por sorte, as empregadas não tinham tirado dali. Ela pegou as moedas,
junto com a sua carteira de motorista. Olhou para a data de nascimento escrita na
carteira, 1966, e estremeceu ao pensar na impossibilidade do que estava lhe
acontecendo. Como podia estar na década de 20 se só iria nascer dali a uns quarenta
anos?
5
Anne parou no meio da escada e olhou para baixo. O vestíbulo da magnífica
mansão Munro estendia-se a seus pés, iluminado pelos raios de sol que atravessavam o
vitral acima da porta da frente. Esculturas de alabastro sobre pedestais de madeira
polida flanqueavam a entrada, e o espetacular piso de mármore brilhava como as águas
de um lago ao luar.
Soltando um suspiro de frustração, Anne desejou ter prestado mais atenção na
disposição dos aposentos da mansão durante a visita que fizera. O grande salão de festas
ficava na parte dos fundos da mansão, disso ela se lembrava. E o local onde estava
agora era, óbvio, a parte da frente da luxuosa moradia. Anne passara os últimos vinte
minutos percorrendo o labirinto de cômodos nos andares superiores, passando por
quartos, banheiros e saletas. Sem querer acabara entrando no escritório de J.B, que a
fitara com expressão zangada por estar sendo perturbado em seu local de trabalho. Anne
pedira desculpas por incomodá-lo e saíra apressada.
Acabara encontrando uma escada e começara a descê-la, esperando ter finalmente
encontrado o caminho para o salão de festas. Imaginara-se correndo na direção da
lareira e da porta oculta que a levaria até o medalhão; o medalhão, por sua vez, a levaria
de volta para o futuro. Em vez disso, contudo, ali estava ela, parada na escada do
vestíbulo, olhando para a porta que dava para a sala de jantar.
— Droga! — resmungou em voz baixa, enquanto terminava de descer a escada.
Passou diante da sala de jantar e seguiu em frente, apressando o passo. Se não
estivesse enganada, teria de atravessar apenas duas salas antes de alcançar o seu alvo
final.
Passou correndo pela primeira sala, onde não havia ninguém. Ao entrar na sala
seguinte, avistou uma empregada tirando o pó de uma estante cheia de bibelôs de cristal.
A criada parou o que estava fazendo e abriu a boca para dizer algo, mas Anne lançou-
lhe um olhar do tipo "não se atreva a me dirigir a palavra". Baixando a cabeça, a mulher
retomou o seu serviço.
Ao chegar ao salão de festas, Anne olhou ao redor para ter certeza de que estava
sozinha. Por sorte, não havia ninguém ali. Satisfeita, atravessou o salão. Quando chegou
perto da enorme lareira em estilo medieval, pensou em J.B. e em Patrick.
Patrick. Imaginou estar sentindo a presença dele no salão e virou-se depressa,
esperando encontrá-lo parado às suas costas. Ele não estava ali. Mas deveria ter estado,
pois Anne voltara a experimentar a mesma emoção que experimentara na noite passada
ao vê-lo.
O mais louco de tudo é que não havia como explicar a forte e estranha emoção
que Patrick lhe provocava, havia? Anne riu de si mesma ao pensar nisso. A verdade é
que não existia explicação para nada do que lhe acontecera até agora. A única e
incompreensível conexão entre o passado e o futuro era o medalhão e o retrato de
Deborah. Patrick não tinha nada a ver com o assunto.
Anne entrou na lareira, segurou a maçaneta da porta secreta e girou-a. Foi inútil.
Ao olhar para cima, ela viu por quê: um cadeado preso a um gancho na parede impedia
que a porta fosse aberta.
— Maldito seja você, J.B! — praguejou Anne, dando socos na porta. — Maldito,
maldito, maldito!
— Está com algum problema?
Assustada, Anne virou-se para trás. Patrick estava parado com as mãos na cintura
diante da abertura da lareira.
— Eu... Sim, estou com problemas. Talvez você pudesse me ajudar — respondeu
ela com voz trêmula, procurando ignorar a emoção que a simples presença do sócio de
J.B. lhe causava.
Patrick a atraía fisicamente, sem dúvida. Alto, moreno, com misteriosos olhos
negros e uma boca tentadora, ele mais parecia o objeto de um sonho sensual
transformado em realidade. Anne jamais se sentira tão atraída por um homem antes,
mas e daí? Não era uma virgenzinha inocente. Sabia reconhecer sinais de excitação
sexual era seu corpo. Não havia nada de místico ou estranho nisso.
— Acha mesmo que posso ajudá-la? — indagou Patrick com um certo sarcasmo,
após um instante de silêncio.
— Acho que sim. Como eu lhe disse ontem à noite, preciso descer até os túneis
de novo.
Patrick entrou na lareira e examinou o cadeado, pensativo. Ao vê-lo tão perto de
si, Anne estremeceu e sentiu um arrepio de excitação. Está vendo só? Isso é pura atração
sexual, mais nada, ralhou consigo mesma. Fitou as mãos de Patrick, que mexiam no
cadeado, e por alguma razão não se surpreendeu ao perceber que elas eram calejadas,
habituadas a trabalhos físicos. Mesmo assim, tal fato era esquisito. Patrick era um
magnata, e magnatas não tinham mãos calejadas.
— Perdi um objeto lá embaixo. Uma jóia de estimação — disse Anne de repente,
procurando justificar-se. — E por essa razão que tenho de ir até os túneis.
— E você quer que eu a ajude a abrir este cadeado?
— Sim, por favor. Você se importaria de fazer isso por mim?
Nesse momento, ela cometeu o erro de olhar para o rosto de Patrick. Passou-lhe
pela cabeça a idéia de que Deborah precisaria ter sido louca para não se sentir tentada a
ter um caso amoroso com o sócio de seu marido. Anne não aprovava o fato de Deborah
ter sido infiel a J.B, é claro, mas que mulher podia resistir à beleza máscula de Patrick?
No presente instante, por exemplo, Anne não conseguia pensar em mais nada
além de tocar o corpo forte que exalava um perfume almiscarado.
— Eu não me importaria, mas creio que J.B. não gostaria nem um pouco da idéia
— respondeu Patrick, por fim. — Parece que ele não quer que você entre nos túneis.
— Mas J.B. não precisa ficar sabendo, precisa?
— "J.B. não precisa saber"? Foi isso que você disse ao homem que levou para os
túneis ontem à noite, Deborah?
O jeito brusco de Patrick falar espantou Anne. Pelo visto, ele se importava mais
do que seria normal com o comportamento da esposa do seu sócio. Será que os boatos
eram verdadeiros, então? Será que Patrick era algo mais que um simples amigo de
Deborah? Anne lembrou-se de Patrick dizendo a J.B. que não tinha motivos para
desconfiar dele. Mas talvez Patrick houvesse mentido...
— Não quero falar sobre a noite passada — retrucou Anne, pois não sabia o
suficiente sobre o que acontecera na festa para discutir o assunto.
Sabia apenas que Deborah fora estrangulada por um homem barbado que podia
muito bem tê-la atraído para os túneis com uma desculpa qualquer. O problema era que
Anne não tinha nem tempo nem inclinação para defender Deborah, por isso limitou-se a
explicar:
— Eu só quero ir até os túneis para recuperar o meu medalhão. E então, você vai
me ajudar ou não?
— Recuperar o seu medalhão? — espantou-se Patrick. — Por acaso mudou de
idéia?
— Não sei do que você está falando.
— Ora, é claro que sabe.
Vendo que não o convenceria do contrário, Anne decidiu mudar de tática e
argumentou:
— Não estou conseguindo pensar direito, hoje. Acho que a batida que levei na
cabeça deve ter...
— Você deu o medalhão para uma das empregadas, lembra? — interrompeu-a
Patrick. — Você disse que odiava o medalhão, e que também me odiava.
Ao terminar de falar, ele ficou surpreso com a expressão chocada que surgiu no
rosto de Deborah. Ela abriu a boca, mas não emitiu nenhum som. A tagarela Deborah
Munro, sem saber o que dizer? Que novidade!
— Então... Foi você que deu o medalhão para ela? — murmurou Anne, quando
finalmente recuperou a voz.
— Para ela? — estranhou Patrick.
— Sim... Isto é, para mim, claro.
— Deborah, você está bem? Não se lembra de que fui eu que lhe dei o medalhão?
— É lógico que me lembro. Eu apenas...
— Apenas o quê?
— Minha cabeça está doendo... Acho melhor eu ir me deitar e descansar um
pouco. — Anne levou uma das mãos à testa. — Sim, é isso que eu vou fazer. A gente se
cruza depois. Quero dizer, a gente se vê uma outra hora, combinado?
Patrick saiu da lareira e observou Deborah afastar-se às pressas. Pensativo,
cruzou os braços. Havia jurado a si mesmo, muito tempo atrás, que tiraria a esposa de
J.B. da cabeça. Durante anos, conseguira cumprir o juramento. Sendo assim, o que teria
acontecido nas últimas vinte e quatro horas para mudar a situação?
Na noite passada, quando segurara Deborah pelos braços, experimentara uma
estranha emoção. E agora há pouco, ao imaginá-la nos túneis em companhia de outro
homem, sentira um ciúme inexplicável, um ciúme que não sentira na noite anterior
quando a vira sair da festa com um sujeito.
Cerrando os punhos, Patrick recriminou-se por ser tão estúpido. Depois de já ter
limpado a mente e a alma da influência de Deborah, não cometeria o erro de envolver-se
com ela outra vez. A esposa do seu sócio não merecia um segundo de consideração.
De súbito, ele lembrou-se de uma das frases de despedida de Deborah. A gente se
cruza depois, Que jeito mais esquisito de falar... A frase não fazia o menor sentido!
A princípio Patrick mostrara-se cético quando Deborah culpara o ferimento na
cabeça pelo seu comportamento estranho. Mas recordando a breve conversa que haviam
tido durante a festa e refletindo sobre as ações de Deborah há poucos instantes, ele
desconfiou de que ela podia estar sendo sincera.
Eu não sou Deborah.
Na noite da festa, Patrick imaginara que Deborah havia bebido demais. Que outra
explicação poderia existir para ela ter feito uma afirmação tão absurda e estar vestida
feito um homem?
O olhar de Patrick foi atraído para o retrato que J.B. mandara pintar de Deborah
quando ela ainda não era sua esposa. Ele passou um longo momento a fitar a imagem da
jovem que havia possuído o seu amor e todos os seus planos para o futuro. De repente, o
passado voltou-lhe à mente com uma clareza assustadora.
Patrick ouviu o riso cristalino de Deborah. Sentiu os lábios dela colados aos seus
e foi tomado pela excitação típica de um adolescente às voltas com o primeiro amor.
Sentiu as mãos delicadas deslizando em suas costas, o calor do corpo sensual unido ao
seu até o instante do êxtase...
— A esposa de J.B. é muito bonita, não acha? Arrancado de seus devaneios,
Patrick virou-se. Harrison Wyndham, o banqueiro de Boston que era hóspede na
mansão, estava parado atrás dele, observando o retrato com curiosidade.
Patrick não percebera a aproximação do banqueiro. Constrangido, pigarreou e
afastou as imagens voluptuosas que lhe haviam invadido a mente. Por Deus, aqueles
dias — dias de paixão ao lado de Deborah — faziam parte de um passado já remoto.
— Sim — respondeu ele, depois de alguns segundos. — A esposa de J.B. é muito
bonita.
— Mas é também um pouco... selvagem, não é mesmo? Ela deu um espetáculo e
tanto ontem à noite, na festa.
Tenso, Patrick sentiu uma certa irritação em relação ao banqueiro. Não gostou do
brilho malicioso no olhar de Wyndham, nem de sua atitude condenatória. Fora o próprio
Patrick que arranjara o encontro entre J.B. e o banqueiro de Boston, mas isso não
significava que era obrigado a gostar a opinião de Wyndham sobre Deborah.
Deborah... A mulher de seu sócio. Patrick tentou se convencer de que era esse o
motivo pelo qual tinha vontade de defendê-la, protegê-la. Mas ao vasculhar a mente
para dar uma resposta adequada ao banqueiro, notou que era difícil encontrar uma
justificativa para o comportamento de Deborah. Ele mesmo chegara a pensar que ela se
embebedara durante a festa.
— Eu diria que a Sra. Munro é um tanto... fogosa — declarou Patrick, por fim.
— Selvagem, fogosa... Suponho que em Oklahoma ninguém faça distinção entre
os dois termos, seja em relação a cavalos ou mulheres — argumentou Wyndham.
A irritação de Patrick foi substituída por um certo desconforto. Deborah não era
mais sua mulher. Para que continuar tentando defendê-la, então? O papel de defensor
cabia a J.B. Apesar disso, contudo, foi incapaz de ficar calado.
— Mesmo aqui, longe da "civilização", sabemos distinguir a sutil diferença que
existe entre os dois termos, Wyndham.
— Sutil? — O banqueiro riu e fez um gesto que abrangia o grande hall, símbolo
da riqueza de J.B. — Não considere minhas palavras como um insulto, MacKinnon,
pois sou um homem de negócios, e todo esse luxo que me cerca indica sucesso nos
negócios. Confesso, porém, que acho divertido ouvir a palavra "sutil" proferida por um
habitante do Estado de Oklahoma. Na costa leste do país, de onde venho, o
comportamento da Sra. Munro não seria classificado de "fogoso", do mesmo modo
como a mansão de J.B. não seria chamada de "residência confortável".
Patrick obrigou-se a controlar um novo acesso de irritação. J.B. e ele haviam
levado um ano para convencer Harrison Wyndham a visitar Oklahoma. O homem era
presidente de um banco que se vangloriava de ter entre seus clientes as famílias mais
ricas e tradicionais da costa leste do país. J.B. queria que parte do dinheiro do banco
fosse investido em Oklahoma, mais especificamente na cidade de Munro.
Embora tivesse cumprido bem a tarefa de conquistar o interesse de Wyndham,
Patrick não concordava de todo com a idéia de que Munro precisava do dinheiro do
banco de Boston. Afinal, "próspera" era a palavra-chave para descrever a situação da
cidade e da sua sociedade com J.B. Quando outras ferrovias particulares como a Munro-
MacKinnon tinham entrado em falência com o início da era do petróleo, Patrick sugerira
uma diversificação nos negócios, e fora apoiado por J.B. Agora, além da ferrovia,
ambos eram proprietários de ações de companhias de petróleo, de empresas de ônibus
para transporte público e de fábricas de aparelhos de rádio. Tudo isso sem mencionar os
fundos privados investidos em benefícios sociais como a construção de um hospital, de
um campo de golfe e de uma piscina pública. Os cidadãos de Munro viviam numa
economia saudável. J.B. afirmava que isso não era suficiente; sua cidade precisava de
mais.
Patrick às vezes se perguntava quando é que J.B. ficaria finalmente satisfeito.
Consigo e com a cidade.
— Em nome de Oklahoma, aceitarei as suas palavras como um elogio, e não
como uma ofensa — disse Patrick, por fim, evitando mencionar o nome de Deborah. —
Eu mesmo nasci na costa leste, Wyndham, mas logo me acostumei à escala grandiosa
das coisas aqui nessa parte do país. O nosso modo de pensar é muito simples, na
verdade: se você não pretende fazer algo grande e chegar ao topo, então é melhor nem
começar.
— O fato de você ter se acostumado depressa com esse tipo de pensamento deve
ser uma exceção, MacKinnon. Eu, por exemplo, jamais me habituaria a viver num lugar
desses.
Patrick deu de ombros, aborrecido com a atitude do banqueiro, mas ao mesmo
tempo aliviado por ver que a conversa tomara um rumo mais seguro. Mais seguro para
os negócios de J.B. e para a sua própria paz de espírito. Paz de espírito... Ele não
permitiria que recordações envolvendo Deborah Munro voltassem a perturbá-lo. Com
um sorriso tenso, deu continuidade ao assunto:
— Vim para Oklahoma quando ainda era garoto, Wyndham. Foram as histórias
de aventura e romance que ouvi que me atraíram para cá.
O banqueiro estufou o peito e segurou as lapelas de seu paletó antes de responder:
— Meus clientes, geralmente homens sérios, sentem-se fascinados pelo glamour
do oeste. Creio que isso prejudica a opinião deles sobre certos negócios. Eu, por minha
vez, não me deixo impressionar com tanta facilidade.
— Você não traz nem uma pontinha de interesse por aventura e romance no
fundo da alma, Wyndham?
— É claro que não. Não alcancei a posição que ocupo hoje permitindo que a
emoção interferisse nas transações comerciais conduzidas por mim. Na minha opinião,
Oklahoma é apenas mais um Estado no qual meu banco e meus clientes podem ou não
decidir investir algum dinheiro. Essa história de glamour é pura tolice.
— Nesse caso, suponho que J.B. deva esquecer a idéia de levar você para
conhecer a Fazenda 101, onde é realizado o famoso show Oeste Selvagem.
— Show Oeste Selvagem, hein? — Tentando disfarçar sua curiosidade, Harrison
Wyndham afirmou em tom entediado: — Já vi uma porção de shows como esse no
Madison Square Garden.
— Sei, sei... É uma pena, porque o show realizado na Fazenda 101 é
mundialmente reconhecido como um dos melhores que existem. Mas se você não está
interessado...
— Oh, eu não gostaria que J.B. mudasse de planos, só por minha causa —
apressou-se a dizer o banqueiro. — Na verdade, pode até ser interessante conhecer o
dono da fazenda. Afinal, ele é mais um homem de negócios, como nós.
— Um homem de negócios muito bem-sucedido, diga-se de passagem.
— Sendo assim, eu irei ao show. Você não precisa pedir a J.B. que cancele a
visita. E agora, MacKinnon, se me der licença, vou tomar o café da manhã.
— Fique à vontade, Wyndham. Bom apetite!
Assim que o banqueiro se afastou, Patrick deu uma risadinha. Harrison Wyndham
era um péssimo mentiroso. Por mais que insistisse em afirmar que era pragmático e que
o glamour do oeste não o afetava, era óbvio que o assunto o interessava bastante.
Embora tentasse disfarçar, o banqueiro não deixara de maravilhar-se desde que
desembarcara do trem e vira o primeiro caubói legítimo de toda sua vida.
Isso significava que existia uma boa chance de Wyndham decidir investir
dinheiro em Munro, Oklahoma. E o investimento traria ainda mais prosperidade para a
cidade, mais dinheiro para os bolsos de J.B. e do próprio Patrick.
Tal perspectiva, no entanto, não entusiasmou Patrick. De repente, para ele, outras
coisas tinham assumido uma importância maior, como por exemplo os pensamentos
perturbadores que a esposa de seu sócio voltara a lhe despertar.
Estranho... No fundo, deveria estar feliz com o sucesso das negociações com o
banqueiro, pois logo iria precisar de um dinheiro extra para mobiliar a casa nova que
mandara construir e que já estava quase pronta. A casa que prometera a si mesmo que
teria na primeira vez em que vira a mansão de J.B. Um dia também vou ter um palacete
desses, pensara. Esse dia finalmente chegara, mas não trouxera a alegria e o orgulho que
Patrick antecipara.
No dia anterior, ao visitar a construção, ele sentira apenas aborrecimento e
cansaço. A casa era grande demais. Onde estava com a cabeça quando pedira ao
arquiteto que projetasse aposentos tão ridiculamente imensos? Para que um número tão
exagerado de salas, quartos e banheiros? Não costumava hospedar visitantes de outras
cidades ou Estados, nem planejava casar-se e ter filhos.
Ora, e por que não?, perguntou-lhe a voz da consciência. Você ainda pode formar
uma família, se quiser. Basta não deixar que desilusões passadas atrapalhem o seu
futuro.
Como que atraído por um ímã, o olhar de Patrick voltou a pousar sobre o retrato
de Deborah. Era ela a responsável pela desilusão que ele sofrera oito anos atrás. Sendo
assim, por que olhara de imediato para o retrato ao pensar em formar uma família para
preencher o vazio da sua casa nova? Deborah pertencia a J.B. Patrick já se conformara
com o fato, ainda mais depois de perceber que o sócio até lhe fizera um favor ao casar-
se com ela. Conformara-se, sim, até agora.
Até agora?
Cerrando os punhos, Patrick MacKinnon forçou-se a lembrar de tudo. Nada
melhor para dar um fim a esta situação absurda que recordar as atitudes passadas de
Deborah.
Os dois haviam se conhecido poucos dias antes de Deborah completar dezoito
anos. Patrick, com vinte e dois anos, recém-saído da faculdade e trabalhando há uma
semana na Ferrovia Munro, apaixonara-se por ela à primeira vista. Por insistência de
Deborah, os dois começaram a encontrar-se às escondidas. Pouco tempo depois,
acreditando que ela também o amava, Patrick a pedira em casamento. Recebera como
resposta um sorriso cínico. Semanas mais tarde, J.B. dissera a Patrick que ele não
poderia se casar com Deborah por um motivo muito simples: o próprio J.B. iria
desposar a moça da qual era tutor.
Cego de dor e fúria, Patrick não conseguira entender a razão de tamanha traição.
Aos poucos, porém, as peças do quebra-cabeça haviam se encaixado. Deborah nunca o
amara, apenas o usara. O tempo todo ela estivera de olho em J.B. Só tivera um caso com
Patrick para chamar a atenção do tutor. E o melhor jeito de chamar a atenção dele fora
envolver-se com o seu auxiliar favorito.
Aos poucos, o coração e o orgulho feridos de Patrick haviam cicatrizado. Ele
fizera as pazes com J.B e, ao longo dos anos, o desagradável episódio fora esquecido.
Até agora, disse-lhe a voz da consciência, e Patrick foi obrigado a concordar.
Tornou a olhar para o retrato, sentindo que a indiferença que nutrira por Deborah
nos últimos anos transformava-se em suspeita. Você está planejando aprontar algo, não
está?, indagou em pensamentos à imagem da jovem. Em seguida, ralhou consigo
mesmo. Por Deus, como pudera esquecer que Deborah não fazia nada sem segundas
intenções? Que outro motivo ela teria para pedir-lhe que a ajudasse a recuperar o
medalhão?
Dando as costas ao retrato, Patrick decidiu que não tomaria parte nos planos de
Deborah, quaisquer que fossem eles. O problema era que já havia aceito o convite de
J.B. para morar na casa de hóspedes da propriedade Munro até que a sua própria casa
ficasse pronta. Ou seja, ele ainda passaria um bom tempo perto de Deborah.
6
Anne subiu correndo a escada, como se todos os demônios do inferno estivessem
atrás dela. Mas não era de nenhum demônio que fugia, e sim de um homem. Patrick
MacKinnon.
Ela continuou em disparada pelo corredor do primeiro andar, virando aqui à
esquerda e ali à direita, procurando encontrar o caminho de volta para o quarto de
Deborah. No fundo, sabia que deveria estar à procura de um machado para arrebentar a
porta que levava aos túneis. Nesse momento, porém, só o que queria era colocar a maior
distância possível entre Patrick e ela.
Então fora Patrick quem dera o medalhão, Deborah! Isso significava que Patrick,
o atraente magnata, e Deborah, a esposa de J.B, tinham mesmo uma ligação íntima.
Anne enrubesceu ao pensar nisso. Ela era Deborah, agora. Para todos os propósitos, pelo
tempo que levasse para conseguir voltar para o futuro, seria obrigada a viver a vida de
Deborah. Patrick parecera zangado com ela há poucos instantes, na lareira; na verdade,
todo mundo que encontrara até o momento parecia zangado com Deborah. Mas e
quando a zanga de Patrick passasse, o que aconteceria? E o que dizer a respeito de J.B?
E se ele decidisse exigir seus "direitos" de marido? Não, era melhor nem pensar nisso.
Por outro lado, não era a idéia de ter que fazer sexo com J.B. que a perturbava. O
que a deixava trêmula de expectativa era a lembrança de Patrick. Podia imaginar com
nitidez as mãos másculas percorrendo o seu corpo com carícias enlouquecedoras, os
lábios tentadores colados aos seus num beijo profundo, suas pernas enroscadas nas dele
enquanto se amavam com paixão e...
— Sra. Munro, cuidado!
O aviso de Katy chegou tarde demais. Perdida em fantasias, Anne colidiu de
frente com a criada, que saía de um quarto carregando uma pilha de caixas. Katy caiu de
lado, derrubando as caixas. Incapaz de equilibrar-se por causa dos sapatos de salto alto
que estava usando, Anne também caiu:
— Oh, sinto muito, Sra. Munro! — desculpou-se Katy, aproximando-se para
ajudá-la a levantar-se. — A senhora se machucou?
— Estou bem, não se preocupe. Acidentes acontecem, e a culpa foi toda minha.
— Mas se eu tivesse avisado a senhora antes, o acidente não teria acontecido.
Mas eu estava com a cabeça nas nuvens, como sempre.
Anne ficou de pé e sorriu, murmurando;
— Você não era a única que estava distraída.
Ao lembrar-se dos pensamentos que a haviam distraído, ela voltou a enrubescer.
Katy começou a recolher as caixas, e Anne se ofereceu para ajudá-la.
— Não, por favor! Deixe que eu cuide disso, senhora — protestou a empregada,
pegando todas as caixas sozinha.
Anne notou que a criada era magra, baixinha, e que seria difícil para ela carregar
tudo sem auxílio. Em tom gentil, declarou:
— Faço questão de ajudá-la, Katy.
— Não é necessário, senhora. Isso faz parte do meu trabalho.
— Mesmo assim, eu insisto em...
— Por favor, não insista. Aliás, perdoe-me pelo atrevimento mas, na minha
opinião, a senhora não deveria estar correndo por aí. Afinal, faz tão pouco tempo que
machucou a cabeça!
— Eu já estou bem, Katy, o ferimento não foi grave — afirmou Anne, pegando
duas das caixas. — Para onde vamos levá-las?
— Para aquele outro quarto ali adiante — respondeu a criada, a contragosto.
— Não precisa fazer essa cara de contrariedade, Katy. Eu estou me sentindo bem,
pode acreditar.
— Humpf! Sei que o assunto não é da minha conta, Sra. Munro, mas ainda acho
que a senhora deveria passar pelo menos dois dias na cama, descansando. Como a
minha falecida mãe costumava dizer, a saúde é a coisa mais importante que uma pessoa
tem na vida.
— Pelo jeito a sua mãe era uma mulher muito sábia.
— Era, sim — confirmou Katy, entrando no quarto que havia indicado e pondo as
caixas em cima de uma cômoda. — Se ela ainda fosse viva e estivesse aqui, com certeza
aconselharia a senhora a não participar do jantar de hoje à noite.
Katy abriu as portas do armário ao lado da cômoda. Pegou uma das caixas e teve
de ficar na ponta dos pés para conseguir colocá-la numa prateleira. Anne, bem mais alta
que a criada, empurrou-a com gentileza para o lado e ordenou;
— Vá me passando as caixas e eu as colocarei na prateleira.
— Por favor, a senhora não precisa...
— Não me contrarie, Katy. Vá me passando as caixas, e continue a falar da sua
mãe.
Resignada, a empregada obedeceu. Entregou uma caixa a Anne, dizendo:
— A minha mãe também aconselharia a senhora a não ir à 101 amanhã.
— O que vem a ser "101"?
— A senhora não sabe? — indagou Katy, com ar de suspeita.
Anne ficou toda atrapalhada por causa do fora que dera.
— Não. Quero dizer, sim. Isto é...
— Ah, eu tinha certeza! A senhora não está tão bem quanto quer parecer. Sei
como são essas coisas. Uma vez o meu irmão Rory também bateu a cabeça e ficou com
as idéias todas atrapalhadas. Ele esqueceu o próprio nome e pensou que tinha voltado
para a Irlanda. O pobrezinho demorou meses para sarar. E eu acho que a senhora, no seu
estado, não devia ficar ao ar livre respirando aquele poeirão que os caubóis vão levantar.
Poeirão? Caubóis? Será que a tal 101 era uma fazenda de rodeios?
Anne tocou a bandagem em sua testa e pensou no irmão de Katy. Será que a
batida que dera com a cabeça também a deixara "com as idéias atrapalhadas"? Talvez
não houvesse viajado setenta anos na direção do passado. Talvez ainda estivesse nos
anos 90, imaginando que estava nos anos 20. Quando voltasse ao normal, veria que tudo
não passara de um estranho delírio.
— Não se preocupe, Katy, eu estou bem — afirmou, mesmo sem ter muita
certeza do que dizia. — Apenas me esqueci do rodeio, mais nada. Eu estava pensando
em outra coisa.
Pensando em Patrick MacKinnon, por exemplo. Irritada consigo mesma, afastou
a imagem dele da mente.
Muito mais importante que o atraente sócio de J.B. era voltar para casa. Isso
significava que tinha de conseguir a chave para abrir o cadeado da porta oculta no
interior da lareira, ou então encontrar uma outra entrada para os túneis. Betty, a guia
turística, havia dito que existiam várias outras entradas espalhadas pela propriedade: na
casa do porteiro, na casa de barcos, no estúdio dos artistas, na casa de hóspedes... Anne
vira algumas portas enquanto percorria os túneis. Todas estavam trancadas, mas talvez
fosse mais fácil arrombar uma delas que arrombar a porta no interior da lareira.
De repente, Anne teve uma inspiração. Pensativa, olhou para Katy. Talvez a
criada soubesse com mais exatidão onde ficavam as outras entradas para os túneis.
— Acho que você tem razão, Katy — disse, suspirando. — Eu deveria mesmo
estar descansando.
— Que bom que a senhora concorda comigo — respondeu a empregada,
sorrindo.
— O problema é que não vou conseguir descansar sossegada enquanto não
resolver um certo assunto. Eu perdi uma jóia na noite passada, enquanto estava nos
túneis. Será que você poderia me ajudar a recuperá-la?
Katy parou de sorrir e olhou ao redor, tensa. Em seguida, murmurou:
— Sinto muito, mas o seu marido não permite que ninguém entre nos túneis sem
a permissão dele.
— Oh, não estou pedindo que você vá até os túneis. Só o que preciso saber é onde
J.B. guarda a chave do cadeado daquela porta que fica dentro da lareira, e depois eu
mesma irei procurar a minha jóia.
— Talvez seja melhor a senhora não fazer isso — respondeu Katy, constrangida.
— O seu marido pode ficar zangado e... Bem... Edith me falou que o Sr. Munro pode
mandar a senhora embora da mansão se pegá-la andando pelo túneis outra vez.
— Confie em mim, Katy, J.B. não vai me pegar em flagrante nos túneis. Só
preciso saber onde ele guarda a chave do cadeado, ou então descobrir onde ficam as
outras portas de entrada.
— As outras portas? Eu não sabia que havia outras portas de entrada, senhora.
— E a chave do cadeado, você sabe onde o meu marido a guarda?
A criada balançou a cabeça num gesto de negação.
— O que está fazendo aqui, Deborah? — indagou J.B, entrando de repente no
quarto.
Era só o que faltava! Será que ele ouvira a conversa?
— Nada de especial. Eu estava apenas ajudando Katy a guardar umas caixas no
armário — respondeu Anne, fingindo-se de inocente.
J.B. encarou-a com desconfiança, mas não insistiu no assunto.
— Vou sair para resolver uns negócios, voltarei dentro de algumas poucas horas
— avisou ele. — Quero que você fique longe das estrebarias, hoje. Andar a cavalo pode
não lhe fazer bem — acrescentou, indicando a bandagem que cobria a testa de Deborah.
— Trate de descansar e arranjar ânimo para o jantar de hoje à noite. O seu
comportamento terá de ser exemplar, para compensar o espetáculo de ontem.
Anne assentiu com um gesto de cabeça. Assim que J.B. se afastou, ela arranjou
uma desculpa qualquer para que Katy a acompanhasse até os aposentos de Deborah,
pois não queria perder-se pelos corredores da mansão outra vez. Ao chegar lá,
dispensou a criada e trancou a porta. A seguir, entrou no banheiro conjugado ao quarto,
tirou a bandagem da testa e examinou seu ferimento. O corte, cercado por uma mancha
roxa, era pequeno. Não havia sinais de infecção, mas mesmo assim Anne desejou ter um
tubo de anti-séptico Neosporin para passar no corte, só por precaução.
Tudo bem, desinfetarei melhor o ferimento quando voltar para casa, refletiu ela.
Um sorriso curvou-lhe os lábios. Ah, que delícia seria voltar para casa! Não precisaria
mais se preocupar com a possibilidade de ser internada num hospício por J.B, nem teria
de viver fingindo que era a esposa desmiolada de um magnata da Era do Jazz.
Seu sorriso alargou-se ao pensar que poderia começar a armar o seu retorno para
os anos 90 agora mesmo, pois J.B. passaria horas longe da mansão. E o melhor era que,
sem querer, o próprio J.B. lhe dera uma ótima idéia. Ele a proibira de sair para cavalgar
e lhe ordenara que se preparasse para o jantar que aconteceria à noite. Se ele não
houvesse mencionado as estrebarias, Anne nem teria pensado em ir até lá.
Mas que outro jeito podia existir para se conhecer melhor uma propriedade tão
grande, a não ser andando a cavalo? Anne economizaria tempo e teria a vantagem extra
de não chamar a atenção de ninguém, já que cavalgar parecia fazer parte da rotina de
Deborah. O problema é que Anne não estava habituada a andar a cavalo. Só cavalgara
duas vezes na vida, durante uma excursão que fizera quando garota. Ora, mas e daí?
Cavalos deviam ser todos iguais, e os que ela conhecera antes eram calmos e
obedientes.
Decidida, Anne foi até o quarto e tirou o vestido e os sapatos de salto alto. A
seguir, dirigiu-se à pequena alcova formada pela meia-parede e abriu as portas do
guarda-roupa. Pegou uma das camisas de seda de Deborah — a mais simples que
encontrou — e a sua calça jeans. Vestiu-as, e por último, calçou um par de botas. Agora
sim, estava pronta para dar um passeio a cavalo.
O cavalariço parou de escovar a crina do grande garanhão preto e olhou
espantado para Anne.
— Bom dia, Sra. Munro — cumprimentou o homem, levando uma das mãos à
aba do seu chapéu de caubói.
— A senhora nunca apareceu por aqui a essa hora, antes. Algum problema?
— Não, está tudo bem. Apenas acordei com vontade de cavalgar mais cedo, hoje
— respondeu Anne, procurando disfarçar a tensão que sentia.
Fitando com curiosidade as roupas de Anne, o cavalariço pendurou a escova num
gancho preso à parede, dizendo:
— Nesse caso, vou selar Sophie para a senhora.
Anne sorriu, acalmando-se um pouco. Com certeza não teria dificuldades para
controlar uma égua chamada Sophie.
O cavalariço saiu da baia do garanhão preto e fechou a porta. Seguiu pelo
corredor da estrebaria e entrou na baia vizinha.
O garanhão preto pareceu não gostar de ser abandonado antes que a sua crina
terminasse de ser escovada. Irritado, o animal olhou para Anne, bateu as patas no chão e
balançou a cabeça. Na porta da baia havia uma plaquinha de latão polido com um nome
escrito: "Trovão". Anne leu o nome na plaquinha, fitou o garanhão e deu graças a Deus
por Deborah não ter o hábito de montá-lo.
O cavalariço reapareceu minutos depois, puxando Sophie pelas rédeas.
— Ela está ansiosa para dar um passeio — comentou o homem, dando um
tapinha amigável no pescoço da égua.
Sophie era um belo exemplar do gênero eqüino, sem dúvida alguma. Seu pêlo era
castanho, brilhante; a cabeça delicada, o corpo esguio e as pernas musculosas e longas
formavam um conjunto impressionante. A égua parecia dócil e tranqüila, ao contrário de
Trovão, que tinha um ar selvagem.
Anne sorriu e aproximou-se de Sophie. Acariciou-lhe a crina, murmurando:
— Você é uma beleza, sabia?
— Sim, ela é mesmo uma beleza — concordou o cavalariço. — Além de fogosa,
como sempre.
O homem entregou as rédeas a Anne e fez uma escadinha com as mãos para
ajudá-la a montar.
Anne notou que a sela de Sophie era diferente da sela do cavalo no qual montara
quando garota. Em primeiro lugar, a sela era pequena e estreita; para piorar, não havia
nenhum cabeçote onde um cavaleiro menos experiente pudesse se segurar.
— Algum problema, Sra. Munro? — indagou o cavalariço, notando a expressão
preocupada de Anne.
— Não, nenhum. — Ouvindo o homem resmungar qualquer coisa, ela perguntou:
— O que foi que disse?
O homem coçou o queixo antes de responder:
— Bem... Eu disse que não consigo entender por que a senhora insiste em usar
essa sela inglesa tão pequena. Mas já que gosta tanto dela...
O cavalariço interrompeu a frase no meio e deu de ombros.
Anne pensou em pedir a ele que trocasse a sela inglesa por outra convencional,
mas achou melhor ficar calada para não chamar a atenção e levantar suspeitas.
Deixando o medo de lado, permitiu que o cavalariço a ajudasse montar. Apoiou um dos
pés nas mãos entrelaçadas do homem, agarrou-se à crina da égua e passou uma das
pernas sobre a sela. Em seguida, enfiou os pés nos estribos.
Minutos mais tarde Anne já se sentia à vontade cavalgando. Até que era fácil
equilibrar-se sobre a sela inglesa, e Sophie estava se mostrando bastante dócil.
O mais difícil, pelo visto, seria não se perder enquanto cavalgava, pois a
propriedade era imensa. Nos anos 90, não havia tanto espaço aberto cercando a mansão
Munro. Era óbvio que J.B. fora dividindo e vendendo partes da propriedade ao longo
dos anos. Igualmente óbvio era o fato de Sophie estar acostumada a passear pelos
campos, pois foi para lá que se dirigiu assim que deixou a estrebaria.
Anne decidiu permitir que a égua escolhesse o caminho até se ver longe do
campo de visão do cavalariço. Só então daria a volta e sairia à procura dos locais onde
existiam outras entradas para os túneis.
7
Patrick desmontou, soltou as rédeas de Cherokee e observou o cavalo mergulhar
o focinho nas águas frias do riacho. A seguir sentou-se numa pedra lisa e achatada,
puxou a aba do chapéu sobre os olhos e apoiou os braços cruzados sobre os joelhos. Um
pássaro cantou em meio aos galhos de uma árvore próxima e depois alçou vôo. Patrick
acompanhou a ave com o olhar, e depois fitou as árvores às margens do riacho. Elas já
haviam perdido a folhagem dourada do outono e agora estavam nuas, permitindo uma
visão clara e ampla da área ocidental da nova propriedade adquirida por Patrick.
Patrick MacKinnon gostava de Oklahoma no inverno. A maioria das outras
pessoas reclamava da paisagem monótona: campos abertos e planos, com poucas
árvores, açoitados por um vento que parecia não parar nunca de soprar. Para Patrick,
contudo, não havia nada mais belo que as campinas que se estendiam a perder de vista
sob o céu cor de chumbo do inverno.
Ele vira os campos de Oklahoma pela primeira vez quando tinha catorze anos de
idade. Havia acabado de chegar do Estado da Virgínia, na costa leste do país. Trazia
pouquíssimo dinheiro nos bolsos, mas estava determinado a transformar-se num
fazendeiro milionário. Afinal, na sua inocência de jovem, estava convencido de que
todos os que moravam em Oklahoma eram fazendeiros milionários ou magnatas do
petróleo. E já que ele viveria naquele Estado dali por diante, era óbvio que também iria
enriquecer. Jurou a si mesmo que conquistaria uma grande fortuna, ou pelo menos
morreria tentando conquistá-la.
E ele quase morrera, mesmo...
Patrick olhou para Cherokee e lembrou-se de outro cavalo: um cavalo ainda não
domesticado que servira de instrumento para o seu primeiro teste de virilidade. Todos os
outros vaqueiros da Fazenda 101, onde Patrick conseguira arranjar um emprego, haviam
olhado para o animal e percebido que ele era fogoso demais para ser amansado. Mas
Patrick teimara em subjugá-lo. Ansioso para provar a sua coragem, entrara no cercado
onde se encontrava o perigoso cavalo.
Ao ser retirado de lá de dentro, estava todo ferido; quebrara um braço, trincara
várias costelas e machucara o rosto e as pernas. Quando George Miller, o dono da
Fazendo 101, fora ver o que acontecera com Patrick, J.B. Munro o acompanhara.
Patrick tentara assumir uma expressão de respeito diante dos dois homens , mas
só conseguira fazer uma careta de dor.
— Garoto, você é o maior idiota que já apareceu aqui na fazenda! — afirmara
Miller, balançando a cabeça. — Que diabos deu em você para querer domar aquele
cavalo dos infernos?
J.B, porém, sorrira para Patrick com um brilho de orgulho nos olhos.
— Mas você conseguiu ficar alguns segundos no lombo do cavalo, não é mesmo,
garoto? Se sobreviver aos ferimentos que sofreu, vá me procurar e eu lhe arranjarei um
emprego na Ferrovia Munro — dissera J.B., antes de dirigir-se a Miller; — Gosto que
as pessoas que trabalham para mim sejam corajosas, intrépidas. Pensei que você
também gostasse disso, George.
Patrick sobrevivera, claro, mas não fora procurar J.B. Havia preferido passar mais
algum tempo na Fazenda 101, adquirindo experiência. Viajara com os caubóis que
participavam do show Oeste Selvagem e aprendera dois ou três truques para domar
cavalos. Os outros empregados disseram que ele era um grande tolo por trocar o
emprego que J.B. Munro lhe oferecera pela difícil vida de caubói, mas Patrick não lhes
dera ouvidos. Ele havia economizado algum dinheiro, pensando na fazenda que um dia
iria comprar; gastara apenas o suficiente para pagar primeiro um curso secundário, e
depois um curso universitário. Só então, com um diploma em ciências econômicas nas
mãos, voltara para Munro e aceitara o emprego que J.B. lhe oferecera. Ao mesmo
tempo, recomeçara a economizar dinheiro.
Quando se apaixonara por Deborah, que na época era tutelada por J.B, mudara de
idéia a respeito de uma porção de coisas. Finalmente entendera por que os caubóis da
Fazenda 101 costumavam reclamar da vida errante que levavam. Deborah fizera com
que Patrick desejasse estabilizar-se o mais rápido possível, trocando os planos de
comprar uma fazenda pelo projeto de casar-se e formar família.
Família... Patrick fitou as águas calmas do riacho e recordou-se dos pais e da
irmã, que haviam morrido no incêndio da fazenda onde trabalhavam. Lembrou-se
também do dia em que eles haviam sido enterrados. O sol brilhante de primavera sobre
os campos verdejantes da Virgínia não tivera forças para dissipar a névoa de tristeza que
lhe envolvia o coração. Naquela hora, decidira que iria para longe dali. Até hoje, no
primeiro dia de primavera, Patrick não conseguia evitar uma certa nostalgia incômoda.
Talvez por causa disso ele gostasse mais da paisagem sombria do inverno.
De repente, o som de patas de cavalo batendo contra o chão intrometeu-se nos
pensamentos de Patrick. Cherokee parou de pastar e levantou a cabeça. Patrick pôs-se
de pé e olhou ao redor, para ver de que lado surgiria o cavaleiro.
Ficou intrigado quando viu um dos puros-sangues de J.B. aparecer, rumando na
direção do riacho a toda velocidade. Uma mulher montava o animal; ela usava calças de
homem e...
— Òôa! Oôôaa! — gritou a mulher. — Maldição, eu já mandei você parar!
— Essa não — resmungou Patrick, reconhecendo a amazona.
Mas que diabo Deborah estava fazendo? Ela pulava sobre a sela como se nunca
tivesse cavalgado em toda sua vida. E por que estava gritando feito uma doida? Ela
sabia muito bem que não devia gritar com um cavalo, especialmente com uma égua
puro-sangue tão sensível quanto Sophie.
Assustado, Patrick notou que Deborah e a égua iam chocar-se contra uma árvore.
Mais que depressa, montou em Cherokee. Percebeu, surpreso, que Deborah de algum
modo conseguira fazer a égua mudar de direção. Sophie corria agora rumo ao leste.
Balançando a cabeça, incrédulo, Patrick partiu atrás de Deborah. Cherokee era
um garanhão veloz, e em poucos minutos alcançou Sophie. Deborah continuava a gritar
e a chacoalhar sobre a sela como uma boneca de pano.
Patrick fez o seu cavalo emparelhar com a égua, chamando:
— Deborah! Deborah, pelo amor de Deus, o que deu em você para...
Assustada, ela virou-se para olhar para Patrick e deixou que as rédeas lhe
escapassem da mão.
— Com mil demônios, você ficou louca, Deborah?
Patrick mal podia acreditar no que acabara de ver. A mulher que lhe ensinara a
diferenciar cavalos bons para pastorear gado de cavalos de corrida, que lhe ensinara a
arte de cavalgar um puro-sangue, havia soltado as rédeas de um animal desembestado!
Ele estendeu um braço para agarrá-la antes que ela caísse, mas já era tarde demais. Os
pés dela escaparam dos tribos e ela deslizou para trás sobre o lombo de Sophie, caindo
de costas no chão.
Patrick puxou as rédeas para que Cherokee parasse, enquanto Sophie se
distanciava num galope desenfreado. Ele desmontou e aproximou-se de Deborah, que
estava deitada de costas no chão, mais uma vez usando calças de homem. Por Deus, o
comportamento de Deborah nos últimos dias estava sendo realmente muito estranho,
refletiu Patrick. Ele se ajoelhou ao lado dela e viu que lágrimas escorriam-lhe pelo
rosto.
— Você se machucou? — perguntou, preocupado. — Responda, Deborah, está
sentindo alguma dor?
Ela balançou a cabeça, mantendo os olhos fechados, e permaneceu calada, o rosto
banhado de lágrimas.
— Deborah, por favor, fale comigo! Consegue mexer as pernas? Os braços?
Vamos lá, tente se mover, se puder!
Ela continuou muda, mas mexeu de leve as pernas, os braços, a cabeça.
— Graças a Deus! — exclamou Patrick, aliviado. — Você me deu um susto
danado, sabia?
Ele pensou na cena que acabara de testemunhar e tornou a balançar a cabeça, num
gesto de incredulidade. Sabia que Deborah gostava de cometer loucuras para
impressionar J.B. e os cidadãos de Munro, mas nunca a vira fazer nada tão estúpido,
antes. Se não houvesse reconhecido Deborah, teria sido capaz de jurar que outra mulher
estivera cavalgando Sophie.
Álcool. Esta era a única explicação.
Patrick aproximou seu rosto do dela, tentando sentir-lhe o hálito.
Anne abriu os olhos e parou de chorar de repente.
— O que pensa que está fazendo? — indagou com voz trêmula, empurrando-o
para longe de si.
— Eu só queria verificar se você andou bebendo.
Ela de pôs de pé, levou as mãos às costas e fez uma careta de dor, protestando:
— Eu não bebi nada! A culpa foi daquela maldita égua, que se recusou a me
obedecer!
— Mas é óbvio que Sophie não ia obedecê-la, com você gritando daquele jeito.
— Por quê? Sophie é surda, por acaso? — perguntou Anne, enxugando as
lágrimas com a manga da camisa.
— Céus, você andou bebendo mesmo, não foi? É claro que Sophie não é surda!
Por que me fez uma pergunta tola dessas, quando sabe muito bem que o melhor jeito de
incentivar um cavalo a correr é gritar com ele?
— Oh... Oh, sim, eu sei. Apenas me esqueci disso, mais nada.
Por que Patrick tinha a impressão de que ela estava mentindo? Seria por causa do
espetáculo que acabara de ver? Por ter testemunhado um erro que uma amazona
experiente como Deborah jamais cometeria? Ou seria por causado modo como ela
desviara o olhar, como se sentisse vergonha? Deborah estava agindo do mesmo jeito
estranho como agira de manhã, dentro da lareira. Parecia que ela estava escondendo
alguma coisa... Segurando-a pelos braços, Patrick forçou-a a encará-lo e argumentou:
— Ninguém que conhece cavalos tão bem quanto você esquece uma coisa dessas.
Vamos lá, Deborah, pode começar a explicar por que armou essa cena ridícula. Aliás,
você tem outras explicações a dar, também. Ontem à noite, por exemplo...
— Escute, eu apenas caí do cavalo — interrompeu-o Anne. — Isso pode
acontecer com qualquer um, não pode?
— Não me venha com conversa fiada, você é uma amazona experiente! — Só
então Patrick notou que um fio de sangue escorria da testa dela. — Ei, você está
sangrando de novo.
Anne tocou o ferimento e viu que as pontas dos seus dedos ficaram sujas de
sangue.
— Ah, já entendi — disse Patrick. — Você não estava em condições de cavalgar
por causa da batida que deu com a cabeça, mas mesmo assim insistiu em sair para dar
um passeio com Sophie, certo?
— Bem... Sim, foi isso. Mas você me conhece, quando quero fazer algo, nada me
impede de fazê-lo.
— Venha comigo — ordenou Patrick, puxando-a pela mão na direção de
Cherokee.
— Você vai me levar de volta para casa?
— Não.
Patrick a colocou sobre a sela, sentou-se atrás dela e a conduziu até as árvores
perto do riacho.
A proximidade do corpo másculo fez com que Anne se esquecesse das dores que
sentia pelo corpo. Por mais que se esforçasse para conservar as costas eretas, não podia
evitar que elas roçassem contra o peito largo, musculoso. Por um momento desejou ser
mesmo Deborah, e não apenas uma sósia vinda do futuro. Os braços fortes que
encostavam nos seus conforme Patrick manobrava as rédeas do cavalo a fizeram pensar
nos abraços apaixonados que os dois já deviam ter trocado. E quando ela oscilou na sela
e Patrick a segurou pela cintura para evitar que caísse outra vez... Nesse instante
Deborah saiu de cena por completo. Agora era a própria Anne que voltava a
experimentar a excitação que sempre a assaltava quando se via junto de Patrick. Uma
excitação mesclada a um delicioso sentimento de segurança e bem-estar.
Patrick parou o cavalo perto do riacho. Anne pulou da sela e tratou de afastar-se
logo do homem que tanto a perturbava. Com as pernas moles feito gelatina, caminhou
até o riacho e abaixou-se para lavar o ferimento em sua testa com um pouco de água
fria.
— Tome, use isto — Patrick aproximou-se e lhe ofereceu um lenço.
— Obrigada.
Anne molhou o lenço e pressionou-o contra o ferimento, ao mesmo tempo em
que se perguntava se Patrick não tinha a capacidade de sorrir. Só o encontrara duas
vezes desde que chegara à década de 20, e nas duas vezes ele se mostrara sério, tenso.
Isso a constrangia, intimidava...
Mas não era conveniente que ela se sentisse constrangida ou intimidada. Na
verdade, nada era conveniente na situação em que se encontrava. Ela estava morta de
vontade de voltar para casa e reencontrar o pai, a mãe. Sentia-se culpada por ter saído
para dar um passeio, mesmo que por insistência de seus pais. Agora ali estava ela,
setenta anos no passado. Tinha de arranjar um jeito de sair dali!
Quaisquer que fossem os seus sentimentos em relação a Patrick, talvez valesse a
pena insistir para que ele a ajudasse a entrar nos túneis. Patrick não parecera disposto a
ajudá-la de manhã, e Anne fugira amedrontada pelo fato de ter descoberto que ele e
Deborah tinham sido amantes. Agora, porém, não havia outra saída a não ser fazer uma
nova tentativa.
Ela tornou a molhar o lenço no riacho. Em seguida, enquanto o torcia, obrigou-se
a encarar Patrick e disse:
— Preciso da sua ajuda. E se você se preocupa comigo, nem que seja só um
pouquinho, por favor me escute.
— Está bem. De que se trata?
— Tenho de encontrar um jeito de entrar nos túneis. Com certeza alguma das
outras entradas deve estar destrancada. — Ao ver que ele franzia a testa, Anne pediu: —
Por favor, deixe-me acabar de falar. O medalhão que você me deu estava comigo ontem
à noite. É verdade, pode acreditar!
— Não quero discutir esse assunto, Deborah. Se você não queria o medalhão,
tudo bem. Mas o mínimo que você devia ter feito era devolvê-lo para mim.
— Eu... sinto muito — murmurou Anne, praguejando contra Deborah em
pensamentos.
Era óbvio que o medalhão tinha um grande valor sentimental para Patrick. Sendo
assim, talvez existisse uma chance de convencê-lo a ajudá-la a recuperar a jóia. Mas ele
parecera tão magoado ao mencionar o medalhão... Anne sentiu uma pontada de culpa, e
quase decidiu desistir de pedir auxílio a Patrick. Por outro lado, se ele não cooperasse,
talvez ela nunca mais conseguisse retornar para os anos 90.
— Patrick, por favor, eu quero recuperar o medalhão. A jóia está em algum lugar
dentro dos túneis, mas J.B. trancou a única porta de acesso que eu conheço. Se você me
ajudar a recobrar o medalhão, juro que nunca mais lhe pedirei nenhum outro favor, juro
que...
— Cale-se! — ordenou Patrick, ríspido, segurando-a pelos ombros. — Você sabe
muito bem onde ficam as outras entradas para os túneis, portanto não precisa da minha
ajuda. E que história é essa de estar tão ansiosa para recuperar o medalhão? Aquela jóia
não significava nada para você! Você mesma fez questão de me dizer isso tempos atrás!
— Eu... eu devo ter mentido para você. Acredite, o medalhão ainda estava
comigo até a noite passada.
Patrick a soltou e deu-lhe as costas. Anne segurou-lhe o braço e o fez ficar de
frente outra vez.
Ele fitou a mão delicada que o segurava, dizendo:
— Não sei o que você está querendo aprontar dessa vez, Deborah, mas trate de
me deixar fora dos seus planos. Não irei ajudá-la de maneira alguma, entendeu? E o que
significa essa história de "eu devo ter mentido para você"? Você não tem certeza se
mentiu ou não?
— Eu não tenho plano algum, juro. Sei que isso vai parecer estranho, mas...
Esqueci uma porção de coisas sobre mim mesma. Desde que bati a cabeça, a minha
memória não está funcionando direito.
Ela tocou o corte em sua testa e encarou Patrick, tentando convencê-lo de que
falava a verdade.
— Está me dizendo que bateu a cabeça e ficou amnésica? — Ele riu, sarcástico.
— Essa é boa! Só mesmo você para inventar uma mentira tão absurda.
— Eu não estou mentindo! — reagiu Anne.
Ela sabia que estava mentindo, claro; mas se Patrick já estava achando absurda a
história da amnésia, o que não diria se soubesse a verdade?
— Uma pancada na cabeça pode causar problemas de memória. Esse tipo de
coisa não é tão raro quanto as pessoas pensam — insistiu Anne.
— Por acaso uma pancada na cabeça também pode fazer com que alguém se
transforme numa pessoa que tem um coração, uma consciência? Ora, faça-me o favor,
Deborah! Você sabia muito bem que o medalhão era importante para mim, que ele era a
única lembrança que eu tinha da minha mãe, e mesmo assim você rejeitou com frieza o
presente. Se o medalhão significava tão pouco para você, por que faz questão de
recuperá-lo, agora?
— Eu gostaria de poder lhe dar uma explicação, mas não posso. Só o que eu sei é
que preciso ter o medalhão de volta. A minha vida depende dele, Patrick. Não posso lhe
dizer por que, mas que importância tem isso? Você não quer simplesmente me ajudar,
sem fazer tantas perguntas?
Patrick encarou-a com desconfiança, aumentando o nervosismo de Anne. Ela
odiava ter de agir assim, usando de subterfúgios. Especialmente em se tratando de
Patrick. E isso era outra coisa que ela não conseguia explicar: a sensação de que devia
lealdade a ele.
O medalhão pertencera à mãe de Patrick. Ele dera a jóia a Deborah, que a
rejeitara. Anne também ficou com raiva ao saber disso. Céus, que loucura! Nem ao
menos conhecia Patrick direito, e no entanto sentia-se derreter por dentro quando olhava
para ele, sentia vontade de chorar quando o via demonstrar mágoa. O problema é que
não podia dar importância aos seus sentimentos.
A única coisa que importava era recuperar o medalhão o mais rápido possível e
voltar para o futuro.
— Não vou ajudá-la, Deborah — declarou Patrick, por fim. — Sei que você está
planejando algo, e não quero fazer parte do seu joguinho sujo.
— Mas... Pensei que significássemos algo um para o outro. Afinal, se você me
deu o medalhão que era da sua mãe... Quero dizer, imaginei que nós...
— Você imaginou o quê? Com mil diabos, o que podemos significar um para o
outro a essa altura das nossas vidas? Talvez você esteja sendo sincera, talvez tenha
mesmo perdido parte da memória. Caso contrário, iria lembrar-se de que o que
aconteceu entre nós já acabou.
— Então... Nós dois... — balbuciou Anne, confusa.
— "Nós dois" o quê?
— Não somos mais... amantes?
Patrick deu uma risada cínica antes de responder:
— Não, não somos mais amantes. Na verdade, amor nunca teve nada a ver com o
relacionamento que tivemos no passado. Não foram essas as suas palavras? Não foi isso
que você me disse no dia em que anunciou ao mundo inteiro que havia ficado noiva de
J.B?
Anne percebeu um tom de mágoa na voz de Patrick e adivinhou que ele estivera
sinceramente apaixonado por Deborah, por mais que tentasse negá-lo. E era óbvio que
Deborah não correspondera a tal paixão. Anne pensou em Deborah e concluiu que a
mulher deveria ter sido mais desmiolada do que ela imaginara a princípio. Afinal, só
uma doida trocaria Patrick por J.B.
— Sei que não vai acreditar em mim, mas sinto muito por ter magoado você —
murmurou Anne. A idéia de embrulhar a verdade numa teia de mentiras não a agradava,
mas essa era a única maneira de demonstrar o que sentia sem ter de revelar a sua
verdadeira identidade. — Talvez uma pancada na cabeça seja mesmo capaz de fazer
com que uma pessoa sem coração se dê conta dos erros que cometeu, pois eu realmente
sinto muito pelo sofrimento que lhe causei — finalizou, pesarosa.
— Suponho que agora que você viu a luz e se arrependeu do que fez, eu deva
ajudá-la a recuperar o medalhão, certo? Deixe-me tentar adivinhar por que... Você vai
vender a jóia e doar o dinheiro para o orfanato que J.B. auxilia no Estado de Missouri.
Ou talvez você prefira doar o dinheiro para algum convento católico e... Ah, já sei!
Você levou uma pancada tão forte na cabeça que agora está pensando em entrar para o
convento. Não se preocupe, você vai ficar ótima num hábito longo com véu preto, irmã
Deborah.
Anne reconheceu que seria tolice irritar-se com o sarcasmo de Patrick. Afinal, ele
estava ofendendo Deborah, e ela não era Deborah. Mesmo assim, não conseguiu conter
uma onda de indignação.
— Tudo bem, se prefere não acreditar em mim o problema é seu. Mas não fique
se achando melhor do que eu, "Sr. Certinho"! Se você fosse tão caridoso e superior
quanto quer parecer, já teria esquecido e perdoado o que houve entre nós, não é mesmo?
Fez-se um momento de silêncio. De repente, Patrick sorriu, e o coração de Anne
parou de bater por um segundo. Ela nunca o vira sorrir antes, e tudo o que conseguia
pensar agora era: finalmente posso retornar satisfeita para o futuro, pois já vi como é o
sorriso de Patrick. E que sorriso! Os lábios curvos deixavam à mostra os dentes brancos,
perfeitos; as linhas finas nos cantos dos olhos aprofundavam-se, e duas covinhas
surgiam nas faces morenas. A única coisa que não a agradou foi que o sorriso era
zombeteiro, e não carinhoso ou alegre.
— A pancada na cabeça por ter afetado a sua memória, mas não a deixou menos
inteligente — disse Patrick, rompendo o silêncio. — Estou impressionado, Deborah.
Quaisquer que sejam os seus motivos para querer recuperar o medalhão, devo admitir
que você continua esperta como sempre. Mas a sua esperteza não é suficiente para me
convencer a ajudá-la. J.B. não quer que você torne a entrar nos túneis, certo? Eu
gostaria muito de ser "caridoso" e "superior", como você sugeriu, mas J.B. é meu amigo
e meu sócio, por isso não irei contra a vontade dele.
Anne foi assaltada por uma fúria repentina. Por que será que Patrick continuava
amigo de J.B? Por Deus, J.B. casara-se com Deborah enquanto Patrick ainda estava
apaixonado por ela! Patrick precisava escolher melhor os seus amigos, sem dúvida
alguma.
— J.B, J.B! Estou cansada de ouvir esse nome! — explodiu Anne. — Você não é
nem amigo e nem sócio dele, Patrick. Você não passa de... de um lacaio dele! Isso
mesmo, um lacaio! Se tudo aconteceu como você diz que aconteceu, então J.B. se
apoderou de alguém que você amava! Como conseguiu continuar sendo amigo dele
depois disso? Como foi capaz de esquecer o que J.B. lhe fez, de continuar trabalhando
com ele e...
Patrick agarrou-a pelos ombros num gesto tão rápido que Anne até esqueceu de
terminar a frase. Aproximando o seu rosto do dela, ele retrucou por entre os dentes
cerrados:
— Não sou lacaio de ninguém, entendeu?
— Verdade? Nesse caso, então você pode atender o meu pedido e me ajudar a
entrar nos túneis. Por favor, Patrick, você precisa me ajudar! Ela... Quero dizer... Eu já
signifiquei algo de importante para você, um dia. Desse modo, em nome do
relacionamento que tivemos no passado, e levando em consideração o fato de eu ter
mudado...
— Você nunca irá mudar Deborah, nunca. Quer uma prova?
Anne bem que gostaria de ter uma prova sua para esfregar no rosto de Patrick e
fazer desaparecer aquela expressão arrogante. Mas não tinha prova nenhuma, claro, a
menos que estivesse disposta a revelar que o corpo de Deborah se encontrava num dos
túneis. E tal revelação serviria apenas para mandá-la para o hospício; os médicos a
trancariam numa sala com paredes acolchoadas e jogariam a chave fora. Frustrada e
zangada até o limite, Anne tentou soltar-se enquanto esbravejava:
— Não quero prova nenhuma! Não quero nada de você! E trate de me largar,
seu... seu...
— "Seu" o que, Deborah? — perguntou Patrick, puxando-a para junto de si. —
Estou interessado em saber que termo você irá usar para me ofender, agora.
Ela não conseguiu pensar em termo nenhum. Ou melhor, não conseguiu pensar
em nada, pois os seus seios estavam esmagados contra o peito largo e forte,
provocando-lhe arrepios de excitação. O brilho feroz nos olhos de Patrick contrastava
com a maneira gentil com que ele começou a lhe acariciar o rosto.
Paralisada, Anne sentiu o seu corpo perder a capacidade de reagir. Mas isso não
era bem verdade, era? Seu coração reagiu de imediato, passando a bater mais forte e
bombeando sangue para o seu rosto. Tomando fôlego, ela balbuciou:
— Você... Você não vai... Isto é, você não se atreveria a...
— A beijá-la? Ora, mas é claro que sim.
Antes que Anne tivesse tempo de livrar-se da paralisia que a dominava, os lábios
de Patrick uniram-se aos seus.
Oh, não! Mil vezes não! Patrick a estava beijando. Ela havia fantasiado um beijo
entre os dois desde que o vira pela primeira vez, e mesmo que quisesse não seria capaz
de afastá-lo. Sabia que era errado ceder só para satisfazer a própria curiosidade, mas
mesmo assim correspondeu ao beijo. Ordenou ao seu bom-senso que fosse dar uma
voltinha e a deixasse em paz para aproveitar o momento.
E que momento!
Os lábios de Patrick eram ao mesmo tempo gentis e exigentes, possessivos. Com
delicada e sensual insistência ele fez com que os lábios de Anne se separassem,
invadindo-lhe a boca com a língua quente e macia.
O beijo não foi nem um pouco tímido, como costumam ser os primeiros beijos de
um casal. Ao contrário, foi um beijo sensual, profundo, como se Patrick quisesse
ensinar uma lição a Anne. Ou melhor, a Deborah...
Tal pensamento deveria ter feito com que Anne se afastasse de Patrick, mas o
desejo que a dominava foi mais forte que a razão. Ela passou os braços ao redor do
pescoço de Patrick e acariciou-lhe a nuca, enquanto correspondia com ardor ao beijo.
Patrick pareceu surpreender-se com a reação da mulher que tinha nos braços.
Ficou imóvel por um instante, e em seguida afastou-se um pouco para fitá-la de frente.
— Patrick... — sussurrou Anne, com voz trêmula.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou-lhe o queixo.
Gemendo alto, ele tornou a puxá-la para junto de si.
8
Patrick beijou-a no pescoço e depois beijou-a nos lábios outra vez. Suas mãos
deslizaram da curva da cintura fina até os ombros roliços, e em seguida insinuaram-se
pelo decote da camisa. Ao mesmo tempo, sua língua voltava a explorar a boca macia
que um dia já fora sua.
Sua. Deborah deveria ter continuado sendo sua pelo resto da vida. Voltar a beijá-
la depois de tantos anos trouxera-lhe lembranças dos planos que havia feito para os dois.
Uma família. Ele queria ser parte de uma família outra vez. Deborah acariciou-lhe os
cabelos enquanto ele mudava de posição para aprofundar ainda mais o beijo, Os quadris
femininos moldaram-se aos dele; Patrick perdeu a noção do presente e retornou ao
passado, lembrando-se dos bons momentos que passara em companhia de Deborah: as
conversas que haviam tido, o riso compartilhado, os carinhos trocados, as horas que
haviam gasto fazendo amor.
Horas em que experimentara a mesma deliciosa sensação que experimentava
agora.
Mas não, estava enganado. O que acontecia agora era mil vezes melhor do que
tudo o que já acontecera antes. A mulher em seus braços parecia diferente, de algum
modo que ele não era capaz de definir. Patrick sabia apenas que os beijos de Deborah
tinham sido menos apaixonados e urgentes no passado. Ele a amara de verdade mas,
levando em consideração o que Deborah lhe dissera antes de casar-se com J.B,
concluíra que ela apenas sentira uma forte atração sexual por ele. Agora, porém,
Deborah estava agindo do modo com que Patrick sempre sonhara, entregando-se
totalmente, sem reservas.
Ela deslizou as mãos para debaixo da camisa de Patrick, acariciando-lhe o peito, e
ele voltou a gemer. Louco de excitação, Patrick começou a desabotoar a camisa de seda
que cobria os seios fartos e firmes de Deborah. Desejava tocá-la, sentir a maciez e o
calor daquela pele contra a sua própria pele. Desejava experimentar mais uma vez a
sensação paradisíaca de ter aqueles seios roçando contra o seu peito nu, a sensação
maravilhosa de beijá-los e mordê-los bem de leve para depois sugar os mamilos
rosados.
Sim, Patrick se lembrava. Deborah fora sua antes de tomar-se esposa de J.B! Tal
pensamento teve o poder de trazê-lo de volta à realidade. Arrasado por um intenso
sentimento de culpa, ele interrompeu o beijo e as carícias. Por Deus, o que estava
fazendo? Deborah não mais lhe pertencia! Agora ela era a mulher de J.B!
Patrick empurrou-a para longe de si.
Cobrindo os olhos com as mãos, ele balançou a cabeça. Pretendera ensinar uma
lição a Deborah, provar que ela jamais mudaria. Como pudera permitir que situação
escapasse do seu controle? Pior que isso, o que o levara a cometer um ato tão insano?
Baixando as mãos, Patrick abriu os olhos e encarou Deborah. Ela estava
abotoando a camisa de seda com dedos trêmulos. Lágrimas escorriam pelo rosto corado
e deslizavam sobre os lábios inchados pelos beijos de poucos segundos atrás.
— Maldição! — exclamou Patrick, tenso.
Ele se virou de costas e arrumou a própria camisa, que escapara para fora do cós
da calça, Pensando ter ouvido a voz de Deborah, olhou para trás.
— O que disse?
— N-nada — respondeu ela, enxugando as lágrimas com as costas das mãos
antes de fitá-lo.
Por um instante Patrick teve a impressão de que os olhos verdes de Deborah
pareciam um tom mais escuro que o normal. E a expressão com que ela o fitava tinha
uma força e uma profundidade da qual Deborah não era capaz. Será que estava tendo
uma alucinação? De repente, ela pigarreou e deu um passo à frente,
— Fique longe de mim — ordenou Patrick. — Por favor, fique longe de mim,
Deborah!
Ela assentiu e recuou, afirmando:
— Fique tranqüilo, nunca mais irei me aproximar de você. Mas quero lhe pedir
um favor, também. Não me chame de Deborah.
Patrick lembrou-se no mesmo segundo da estranha frase que ela dissera na noite
anterior. Eu não sou Deborah. Franziu a testa, curioso, pensando no quanto ela parecia
mudada. Agora há pouco Deborah agira como uma mulher completamente diferente do
que sempre fora, uma mulher que ele nunca conhecera antes, que correspondera às suas
carícias com um ardor inusitado. E os olhos dela...
Ora, que tolice! Ele até podia estar disposto a imaginar que a mulher que se
derretera de paixão em seus braços não era Deborah Munro, mas existia uma grande
distância entre "imaginar" e "acreditar". E por mais que deixasse a imaginação correr à
solta, nada alterava o fato de que Deborah era a esposa de J.B. Munro. Seria loucura
esquecer-se disso, mesmo que por um breve momento.
— Você tem razão — murmurou Patrick, por fim. — O seu nome não é Deborah,
é Sra. J.B. Munro. E eu já aceitei esse fato há muito, muito tempo.
Anne estava tão zangada quanto Patrick, ou mais. Assim que *montado em
Cherokee para procurar Sophie, ela se recriminou por ter permitido que o beijo
acontecesse. Irritada, pegou um pedregulho do chão e atirou-o com força no riacho.
Como pudera ser tão estúpida e tão irresponsável a ponto de não ter pensado no quanto
o beijo abalaria Patrick MacKinnon? Desde quando tornara-se tão egoísta?
A expressão de vergonha e de arrependimento que vira no rosto de Patrick
quando ele a afastara voltou-lhe à mente. Droga! Era ela que devia estar envergonhada,
e não Patrick. Afinal, sabia muito bem que ele amara Deborah, antes de perdê-la para o
melhor amigo. Além disso, havia a questão da sua própria identidade.
Patrick não sabia que havia beijado e acariciado outra mulher. Ele acreditara estar
beijando Deborah, acreditara que fora Deborah que correspondera às suas carícias.
Droga, mil vezes droga!
Anne não estava absolvendo Patrick de toda responsabilidade pelo que
acontecera, claro. Fora ele quem havia começado tudo, portanto merecia sentir um
pouco de culpa também. Por outro lado, Anne sabia que não deveria ter permitido que a
situação chegasse ao ponto em que chegara. Tinha de ter interrompido o beijo antes que
ele se tornasse tão... tão incrível!
Teria sido fácil recuar se o beijo tivesse sido normal ou sem graça. Mas nunca,
em toda a sua vida, Anne fora beijada com tanta paixão e sensualidade, a ponto de
sentir-se prestes a desmaiar de emoção. Mulher nenhuma no mundo teria tido força de
vontade para resistir a um beijo tão avassalador.
Ah, mas como ela gostaria de ter a chance de testar a sua força de vontade outra
vez...
Sentando-se numa pedra e enterrando o rosto entre as mãos, Anne suspirou.
Quero voltar para casa. Por favor, meu Deus, deixe-me voltar para casa.
Alegar que sentia uma forte dor de cabeça não havia adiantado nada. J.B. fizera
questão de que sua esposa participasse do jantar que ele estava oferecendo naquela noite
aos líderes da comunidade. E mais, J.B. insistira para que ela se comportasse direito,
caso contrário...
— Nunca vi ninguém tão preocupado com a própria auto-imagem quanto J.B. —
resmungou Anne em voz inaudível, enquanto levava à boca uma garfada de bolo de
chocolate com cobertura de chantilly.
Ela não sabia quem a mataria primeiro, o homem que assassinara Deborah ou os
alimentos cheios de calorias e colesterol que consumira esta noite. Como não havia
comido nada desde que chegara, a princípio Anne não pensara em mais nada além de
saciar a fome. Mas agora, depois de uma refeição à base de carne vermelha e molhos
gordurosos, sem mencionar os doces servidos à sobremesa, ela estava descobrindo mais
uma razão para voltar o quanto antes para os anos 90: preservar a sua saúde.
Nesse momento, a mulher sentada ao lado de Anne à mesa abriu a bolsa que tinha
no colo e pegou uma piteira de jade. Em seguida, a mulher enfiou um cigarro — sem
filtro, claro — na ponta da piteira e acendeu-o, lançando uma pequena nuvem de
fumaça azulada na direção do rosto de Anne.
— Quer fumar também, querida? — perguntou a mulher, oferecendo-lhe um
cigarro.
Anne pestanejou, reprimindo a vontade de soprar para longe a nuvenzinha tóxica.
Será que Deborah fumava? Era provável que sim, pois todo mundo por ali fumava. Mas
havia um limite para o que Anne estava disposta a fazer enquanto era obrigada a
assumir a identidade de sua sósia.
— Não, obrigada — respondeu ela, com delicadeza. — Talvez eu fume mais
tarde.
A mulher sorriu e soltou mais algumas baforadas de fumaça antes de tornar a
abrir a bolsa e pegar um frasco de bebida. Olhando para as outras convidadas, Anne
notou que várias delas também haviam tirado frascos de bebida da bolsa. Que doidice!
Anne teve a sensação de estar assistindo a um filme antigo, ou de ter sido convidada
para participar de uma peça de época onde todo mundo conhecia o script, menos ela.
Para as outras pessoas devia ser fácil agir com naturalidade, refletiu Anne,
pesarosa. Afinal, ninguém mais precisava fingir que era Deborah Munro. Mas por que
logo ela fora escolhida para desempenhar o papel de uma mulher fútil e desajuizada,
detestada pelo marido, desprezada pelo ex-amante, e que ainda por cima fora
estrangulada por um homem barbado?
Anne estremeceu. Ainda não havia parado para pensar com calma no assassinato
porque estivera ocupada demais tentando encontrar um jeito de entrar nos túneis, Mas
agora que já não tinha tanta certeza de conseguir retornar logo para o futuro, a
possibilidade de o assassino de Deborah vir atrás dela começava a preocupá-la. E se o
tal homem fosse algum aliado de J.B. nos negócios? E se o sujeito houvesse
comparecido ao jantar desta noite? Na certa ele teria ficado chocado ao entrar na
mansão e ver Deborah circulando por entre os convidados, sem nenhuma marca roxa no
pescoço.
Por sorte, isso não acontecera. Não havia nenhum homem barbado entre os
convidados de J.B. Mas até quando essa sorte iria durar?
Olhando para J.B, sentado na outra pontada da mesa, Anne levou uma das mãos à
testa e fez uma rápida careta de dor enquanto movia os lábios para formar em silêncio a
frase "Estou com dor de cabeça, posso me retirar?" J.B. balançou de leve a cabeça e
lançou-lhe um olhar cujo significado era óbvio: "não".
Anne pousou as mãos sobre o colo e suspirou. Olhou ao redor até avistar a figura
de Patrick MacKinnon.
Patrick... Ela já o achara bonito usando roupas apropriadas para cavalgar. Mas
agora, usando um elegante traje social, ele estava simplesmente devastador! O terno
risca-de-giz de corte impecável realçava-lhe os ombros largos. O colarinho engomado
da camisa branquíssima contrastava com o bronzeado do rosto e com os cabelos pretos.
A gravata de seda combinava com o lenço no bolso do paletó, um detalhe sem dúvida
destinado a atrair a atenção feminina. E o truque funcionava, concluiu Anne, notando
com uma pontinha de ciúme que muitas das mulheres à mesa não tiravam os olhos de
Patrick. A moça sentada ao lado dele, por exemplo, não cessava de dirigir-lhe sorrisos
sedutores. Uma outra mulher o fitava como se estivesse prestes a pular a mesa para ir
aninhar-se no colo dele.
Ao estender uma das mãos para pegar a taça de vinho à sua frente, Patrick
percebeu que Anne o encarava e franziu a testa. Ela enrubesceu e virou o rosto,
depressa. Lembrava-se com clareza do que Patrick lhe dissera à tarde. Fique longe de
mim.
Suspirando novamente, Anne disse a si mesma que trataria de obedecer a ordem,
Podia ter bancado a tola ao brincar com fogo horas antes, mas aprendera a lição. Patrick
MacKinnon era uma fogueira sexual, e o melhor que tinha a fazer era se manter afastada
dele.
O som de vozes no hall vizinho à sala de jantar chamou a atenção de Anne. Ela
olhou para trás e viu o mordomo conversando com uma mulher. Vestida de modo muito
simples, se comparada à elegância e ao luxo das convidadas, a mulher dizia com voz
chorosa que precisava falar com J.B. Quando o mordomo explicou que o pedido era
impossível de ser atendido no momento, a voz da mulher tomou-se mais insistente, mais
alta. E então, ao perceber que Anne a observava, a mulher calou-se e lançou-lhe um
olhar carregado de ódio.
Era só o que faltava!, pensou Anne, aflita. O que será que aconteceu dessa vez?
Quanto mais o mordomo tentava acalmar a mulher, mais ela se mostrava
determinada. Finalmente o mordomo se afastou da mulher e entrou na sala de jantar
para cochichar algo ao ouvido de J.B. Segundos depois, pedindo licença aos
convidados, J.B. seguiu o mordomo até o hall.
Alguma coisa de grave devia ter acontecido, refletiu Anne. Era óbvio que J.B.
pretendia se livrar da mulher, mas depois que os dois trocaram algumas palavras ele
olhou furioso na direção de Anne.
Anne encolheu-se na cadeira ao ouvir trechos das frases ditas pela mulher.
Meu marido... Sua esposa...
As pessoas presentes na sala de jantar haviam parado de conversar e prestavam
atenção na conversa de J.B. com a mulher. Harrison Wyndham, o banqueiro de Boston,
parecia ligeiramente mais interessado que os outros no que acontecia. Anne rezou para o
desejo de J.B. de não provocar escândalos na frente dos convidados o impedisse de ter
uma explosão de raiva. Mas suas preces não foram atendidas.
J.B. voltou para a sala de jantar e aproximou-se dela, sem fazer o menor esforço
para esconder a irritação que o dominava.
— Venha comigo, Deborah. Precisamos ter uma conversa com uma visitante
inesperada — disse ele, antes de dirigir-se aos convidados: — Se vocês nos derem
licença por alguns minutos...
Ao terminar de falar, J.B. segurou Anne pelo braço e praticamente a arrastou até
o seu escritório. A "visitante inesperada" já fora conduzida até lá pelo mordomo.
Depois de fechar a porta do escritório, J.B. convidou a mulher a sentar-se e
entregou-lhe um lenço para enxugar as lágrimas. A dor de cabeça que Anne fingira estar
sentindo há pouco transformou-se numa dor real.
— Explique-se, Deborah — ordenou J.B, enquanto se sentava à sua mesa de
trabalho e tirava um molho de chaves do bolso para destrancar uma gaveta. — Vamos
lá, a Sra. Tompkins e eu merecemos uma explicação — disse ele, enquanto tirava um
caderninho com capa de couro de dentro da gaveta.
— Eu... Eu não conheço esta senhora — declarou Anne, cabisbaixa.
A visitante parou de chorar e encarou Anne com um olhar que mesclava
hostilidade e esperança. Ela usava um chapéu marrom meio amassado que nem de longe
combinava com o casaco preto de tecido puído, e calçava sapatos velhos de salto baixo.
Uma inexplicável onda de culpa assaltou Anne, que usava um caríssimo vestido
francês, dois longos colares de pérolas e elegantes sapatos de salto alto. Mas nada disso
é meu, é tudo de Deborah, pensou ela num gesto de autodefesa. Assim como era de
Deborah o crime do qual estava sendo acusada.
— A senhora não me conhece, mas conhece o meu marido, não é mesmo? O
nome dele é Roy Tompkins — disse a mulher de repente, tirando uma fotografia do
bolso do casaco e entregando-a a Anne. — Por favor, não tente negar. A senhora teve
um caso com o meu marido, eu sei. Ele mesmo me contou. Roy disse que amava a
senhora, mas que não conseguia aceitar o fato de não ser correspondido, não conseguia
aceitar a idéia de que a senhora só queria uma aventura. Por isso... Por isso Roy foi
embora da cidade. Ele me abandonou, e abandonou os filhos, por sua causa. Foi isso
que Roy me disse, e eu... eu quero saber se é verdade.
Maldita seja você, Deborah, pensou Anne, sentindo uma imensa pena da pobre
mulher. Se você já não estivesse morta, eu mesma a estrangularia com as minhas
próprias mãos!
Mas... Espere um pouco. Deborah estava morta. E talvez esse tal de Roy
Tompkins fosse o assassino! Uma briga entre amantes era um bom motivo para um
assassinato, não era? A mulher havia dito que seu marido fora embora da cidade...
Talvez ele estivesse fugindo, com medo de ser preso e condenado à morte quando o
crime fosse descoberto. Esperançosa, Anne examinou a foto que a Sra. Tompkins lhe
entregara à procura de uma pista para o mistério.
Suas esperanças foram em vão. O homem da foto não tinha barba nem qualquer
outro ponto em comum com o assassino. Roy era loiro, em vez de moreno; magro, em
vez de forte, encorpado. Anne ficou desapontada, mas o seu desapontamento
desapareceu assim que ela olhou para a mulher abandonada pelo marido. Coitada! Ser
casada com um homem infiel já era ruim; se ainda por cima o sujeito fosse um
assassino, a situação seria mil vezes pior.
— E então, Deborah, você conhece esse tal de Roy Tompkins?
Anne assustou-se quando a voz de J.B. rompeu o silêncio que reinava no
escritório. Ela o fitou que viu que havia algo além de raiva no olhar dele: havia
esperança, também. Assim como a Sra. Tompkins viera procurá-la esperando que ela
negasse ter sido amante do tal de Roy, J.B. também esperava que ela desmentisse a
história.
J.B. pegou uma caneta-tinteiro e abriu o caderninho com capa de couro, que na
realidade era um talão de cheques, e afirmou:
— Quero ajudar esta pobre senhora, mas primeiro preciso saber se o que ela disse
é verdade. E só você pode confirmar a história, Deborah.
— Oh, não! Eu não quero o seu dinheiro, Sr. Munro! — protestou a Sra.
Tompkins, pondo-se de pé. — Só quero saber se Roy estava falando a verdade.
Anne engoliu em seco, sem saber o que fazer. Será que Deborah tinha mesmo
sido amante de Roy? A resposta mais óbvia era "sim". Deborah devia ter se divertido
um pouco com o tal sujeito antes de chutá-lo para escanteio. Afinal, não fora isso que
ela fizera com Patrick?
Além disso, mesmo que a história fosse falsa, Anne não podia deixar de ver que a
Sra. Tompkins iria precisar de dinheiro para sustentar os filhos, agora que o marido a
abandonara. E já que J.B. estava pronto para assinar um cheque, por que não aproveitar
a chance para ajudar a coitada?
— Responda logo, Deborah, você conhece ou não o marido desta senhora?
Anne abriu a boca, disposta a confessar a traição em lugar de Deborah. Mas
quando viu a expressão esperançosa no rosto de J.B, mudou de idéia. Céus, não
importava o que dissesse, alguém sairia magoado dessa história toda! Mais uma vez
Anne desejou que Deborah não tivesse morrido, para que ela pudesse enfrentar
pessoalmente a terrível situação. Era a própria Deborah quem deveria estar pagando
pelos erros que cometera, e não duas pessoas inocentes, pensou Anne, notando que o
tique nervoso de J.B. voltava a se manifestar.
Isso a fez lembrar da ameaça de ser mandada para um hospício, e um arrepio
percorreu-lhe a espinha. Se desse um passo em falso, acabaria trancafiada num quarto
com paredes acolchoadas e grades nas janelas. Sentiu vontade de sair correndo, mas não
tinha para onde fugir.
— Responda, Deborah! — ordenou J.B, perdendo a paciência.
— Por favor... Eu... Eu não sei o que dizer...
— É simples. Por que não experimenta dizer a verdade?
— Mas eu não sei qual é a verdade! — gritou Anne, perdendo o autocontrole.
A Sra. Tompkins arregalou os olhos, espantada.
— Deborah... — murmurou J.B, por entre os dentes.
— Dê um cheque à Sra. Tompkins — retrucou Anne, tentando acalmar-se. — É
óbvio que ela precisa de dinheiro, não é? Eu confirmarei a história toda se você...
— Não! — exclamou a mulher. — Pode guardar o seu talão de cheques, Sr.
Munro. Eu jamais pensaria em...
Anne segurou a Sra. Tompkins pelo braço, argumentando:
— Por favor, aceite o cheque, pelo bem dos seus filhos. Orgulho não irá pagar as
suas contas e nem comprar comida para alimentar a sua família. A senhora precisa...
— Eu não preciso da sua caridade, Sra. Munro! — protestou a mulher, soltando o
braço e dando um passo para trás. — Não aceitarei um único centavo!
— Por favor, eu insisto. Esqueça o que o seu marido fez e...
— Não, eu queria apenas saber...
— ... aceite o cheque...
— ... se o meu Roy...
— ... pelo bem dos seus filhos...
— Calem-se, as duas! — esbravejou J.B, vendo que elas falavam ao mesmo
tempo. — Discutir desse jeito não nos ajudará a resolver o assunto.
— J.B., eu já confessei. Agora trate de preencher o cheque — exigiu Anne.
— Não! — teimou a Sra. Tompkins.
— Calem-se! — repetiu J.B. — Sra. Tompkins, minha esposa e eu precisamos ter
uma conversa em particular. A senhora poderia nos fazer a gentileza de sair do
escritório por alguns minutos?
A mulher assentiu com um gesto de cabeça e saiu do aposento, fechando a porta.
Aproximando-se de Anne, J.B. segurou-lhe as mãos e perguntou:
— Você não teve um caso com esse tal de Roy Tompkins, teve?
Anne lembrou-se de ter segurado as mãos de J.B. pouco tempo antes de ele
morrer. Lembrou-se também de que ele a chamara de Deborah e lhe pedira perdão. Em
seguida, refletiu que J.B. logo ficaria sabendo que sua esposa fora assassinada. Por mais
que Deborah tivesse sido uma desmiolada de marca maior, ainda assim ela fora casada
com J.B. E o fato de tê-la pedido em casamento significava que algum dia, de algum
modo, J.B. a amara. Deborah podia ter sido amante de Roy Tompkins, sim, mas na
posição em que se encontrava no momento Anne tinha o poder de aliviar pelo menos
em parte o sofrimento de J.B.
— Não. Nunca tive nada a ver com Roy Tompkins. Eu nem mesmo o conhecia —
murmurou Anne, por fim.
E assim que terminou a última frase, experimentou a estranha sensação de ter
falado a mais pura verdade.
J.B. aquiesceu, indicando que acreditava nela, e Anne prosseguiu:
— Mas isso não muda o fato de Roy Tompkins ter abandonado a família. E
agora, como aquela mulher vai sustentar os filhos? Você vai ajudá-la, não vai?
— Sim, vou — respondeu ele sem pestanejar, apertando de leve as mãos de
Anne.
Ela tentou interpretar o gesto. Teria sido reconciliatório? Paternal? Amoroso? De
um modo ou de outro, o leve aperto em suas mãos fora gentil, carinhoso. Isso
significava que talvez o relacionamento entre Deborah e J.B. não fosse tão frio e
distante quanto ela imaginara a princípio. Só porque os dois dormiam em quartos
separados, quem podia garantir que não partilhavam a mesma cama de vez em quando?
Tal pensamento deixou-a apreensiva.
— Suponho que esta sua repentina preocupação com o bem-estar alheio seja
sincera, Deborah. Admito, porém, que a sua atitude me surpreende — disse J.B., após
um momento de silêncio.
Anne enrubesceu, preocupada com as conseqüências do seu gesto de bondade. A
Sra. Tompkins e seus filhos mereciam receber ajuda, claro, mas isso não queria dizer
que Anne estava disposta a transformar o relacionamento entre J.B. e sua esposa numa
segunda lua-de-mel. Afinal, já que ela estava ocupando o lugar de Deborah, uma
reconciliação poderia trazer-lhe problemas embaraçosos.
— Não cometa a tolice de pensar que fiquei boazinha de repente, J.B. — Anne
forçou uma risada sarcástica.
— Apenas considere o que acabei de fazer como mais uma das minhas...
excentricidades.
J.B. suspirou e soltou-lhe as mãos, afirmando:
— Acho que tem razão, o seu gesto não deve mesmo ter passado de uma
excentricidade. Mesmo assim, para retribuir a bondade que você demonstrou esta noite,
faço questão de confirmar uma promessa que lhe fiz alguns anos atrás.
— Que promessa?
— Eu prometi que nunca mais falaria a respeito daquilo que aconteceu, lembra?
Pois fique tranqüila, cumprirei a minha palavra.
Anne não tinha a menor idéia do que ele estava falando, mas achou melhor deixar
o assunto de lado. Já estava mais que satisfeita em ver que o episódio relacionado com a
Sra. Tompkins terminara bem.
9
Anne acordou ouvindo uma música transmitida por um rádio ligado num quarto
próximo ao seu. Dessa vez, reconheceu de imediato o lugar e a época onde se
encontrava. Teria sido impossível confundir a antiga melodia orquestrada com uma
gravação de algum concerto de rock dos anos 90.
Dia dois, e ainda estou aqui, pensou ela enquanto saía da cama espreguiçando-se.
Depois da cena com a Sra. Tompkins no escritório, na noite anterior, Anne e J.B.
haviam entrado numa fase de trégua. Ele não permitira que ela fosse mais cedo para o
quarto; em compensação, o final do jantar não fora tão carregado de tensão quanto o
início. J.B. continuara vigiando o comportamento de Anne, mas de um jeito mais
natural. A certa altura, ele se mostrara relaxado o bastante para contar piadas para os
homens e elogiar os vestidos e as jóias das mulheres. Os convidados, sentindo um clima
menos pesado entre o casal anfitrião, mostraram-se mais animados e alegres, parecendo
ter esquecido o incidente desagradável provocado pela chegada da Sra. Tompkins.
Deixando de lado as lembranças da noite passada, Anne espreguiçou-se. Ao olhar
para o relógio sobre um dos criados-mudos, levou um susto. Onze horas! Nunca
dormira até tão tarde em toda a sua vida! Dirigiu-se apressada para o banheiro anexo ao
quarto, recordando o que a guia turística dissera a respeito da mansão Munro, que
contava com comodidades raras para a época e região em que fora construída. Nos anos
20, a maioria das grandes áreas urbanas dos Estados Unidos era beneficiada por casas
com encanamento interno, rádio e carros. Mas no Estado de Oklahoma, que não podia
ser considerado um dos mais avançados do país, as pessoas que não pertenciam à
mesma classe social de J.B. não sabiam distinguir um Ford de um Packard, nem tinham
dinheiro para comprar algo tão caro e supérfluo quanto um rádio.
Enquanto tomava banho, Anne voltou a se preocupar com a situação provocada
pelo incidente com a Sra. Tompkins. J.B. prometera que não deixaria a mulher enfrentar
problemas financeiros, mas recusara-se a permitir que sua esposa "mentisse" afirmando
que tivera uma aventura com Roy Tompkins. Mas e se Deborah tivesse mesmo sido
amante de Roy? E se a Sra. Tompkins encontrasse uma prova disso e a mostrasse a J.B?
Existiria um quarto num hospício à espera de Anne, no futuro? Haveria mais sofrimento
reservado para J.B. e para a Sra. Tompkins?
Bem, não adiantava nada esquentar a cabeça antes da hora. Além disso, se os
planos de Anne para recuperar o medalhão pudessem ser realizados logo, nem existiria
motivo para preocupação.
Anne tentaria encontrar uma outra entrada para os túneis nessa noite, depois que
todos estivessem dormindo. Pretendia escapulir da mansão sem ser notada e vasculhar
todas as edificações mencionadas pela guia turística como tendo acesso aos túneis.
Dessa vez, já sabia onde ficavam as edificações. Prestara atenção nelas quando Patrick a
trouxera de volta para a mansão no dia anterior.
Patrick... Anne ficara sabendo na noite passada que Patrick iria acompanhar J.B,
Wyndham e ela na visita à Fazenda 101.
Depois do episódio envolvendo a Sra. Tompkins, Anne esforçara-se ao máximo
na noite anterior para manter o olhar afastado de Patrick. Contudo, não conseguira
deixar de observá-lo, ansiosa por verificar se ela a fitaria com desaprovação por causa
do que acontecera. Apesar de o erro ter sido cometido por Deborah, Anne não pudera
deixar de se sentir responsável pelo que havia ocorrido. E a opinião de Patrick a seu
respeito era muito importante para ela.
Curiosamente, porém, Patrick não a encarara com ar de censura. Limitara-se a
olhá-la com uma expressão que só podia ser classificada como auto-recriminação.
Suportar a culpa por algo que Deborah fizera era difícil para Anne, mas a culpa
por ter beijado Patrick era dela mesma, de mais ninguém. E isso era mil vezes pior. A
vergonha deixara um gosto amargo na boca de Anne, e ela havia passado o resto do
jantar evitando o olhar de Patrick. Não conseguira evitar de pensar nele, porém.
Pensamentos perturbadores demais para a sua paz de espírito...
A certa altura, os convidados haviam deixado a sala de jantar e ido para uma
outra sala mais aconchegante. Anne juntara-se ao grupo das mulheres, e precisara
esforçar-se para prestar atenção no que elas diziam. Não que a conversa das convidadas
fosse aborrecida. Ao contrário, tinha sido intrigante ouvi-las falar de uma nova técnica
cirúrgica chamada lifting facial e escutá-las discutir o enredo das peças de teatro às
quais tinham assistido em Nova York em suas últimas viagens.
De repente, a conversa das mulheres começara a girar em torno do Dr. Freud e de
sua nova teoria, que afirmava que o sexo era a força motriz da humanidade. No mesmo
instante Anne tornara-se refém de pensamentos libidinosos que envolviam um homem
moreno que ela havia jurado esquecer. Uma das convidadas comentara que havia
consultado um analista europeu; o analista lhe dissera que, para ser uma pessoa feliz e
satisfeita, ela devia obedecer a sua libido. Uma outra convidada logo concordara com tal
afirmação, declarando que uma vida sexual desinibida era um fator fundamental para
quem quisesse ter boa saúde mental.
Lançando a Anne olhares que insinuavam que ela devia ser especialista em levar
uma vida sexual desinibida, as mulheres haviam passado a discutir uma série de teorias
sexuais ligadas aos estudos do Dr. Freud. Em determinado momento da conversa Anne
sentira vontade de sair gritando da sala — mas só depois de agarrar Patrick pelo braço e
arrastá-lo consigo para qualquer lugar onde pudessem fazer amor. Ela não conseguia
parar de pensar no beijo e nas carícias que haviam trocado, assim como não conseguia
entender como pudera esquecer quem era, de onde tinha vindo, e o fato de que precisava
voltar para o futuro. Acima de tudo, sentia-se incapaz de compreender a força da atração
que Patrick exercia sobre ela.
E agora, nessa manhã, Anne acordara com a certeza de que Freud tinha razão: era
impossível ser mentalmente saudável sem obedecer os comandos da libido! Ela passara
a noite toda sonhando com Patrick, sonhos durante os quais realizara todos os seus
desejos. Havia deixado o bom senso de lado e feito amor com Patrick sem pensar por
um único segundo em J.B, em Deborah, em voltar para casa. Entregara-se sem
pestanejar ao prazer de tocar e ser tocada por Patrick, até o êxtase final...
Balançando a cabeça sob a água morna do chuveiro, Anne tratou de retornar à
realidade. A satisfação de seus desejos mais íntimos não passara disso, de um mero
sonho. O melhor que tinha a fazer agora era deixar essas tolices de lado e aprontar-se
para a visita à Fazenda 101.
Maldição, ela estava agindo de modo estranho de novo! Até parecia que nunca
tinha visto o Packard de J.B, quando na verdade ajudara a escolhê-lo! Patrick,
acomodado a um canto do banco traseiro do automóvel, ficou a observar Deborah com
os olhos semicerrados. Ela examinou o pequeno tapete que cobria o assoalho do carro, e
depois levantou-o com a ponta do sapato, como se estivesse fazendo uma inspeção
geral.
Deborah transmitia a impressão de que estava andando pela primeira vez de
automóvel desde que J.B. lhe abrira a porta e lhe fizera um sinal para sentar no banco de
trás, ao lado de Patrick, enquanto Wyndham e ele acomodavam-se nos bancos
dianteiros. Ela havia alisado o estofamento de couro como se nunca tivesse visto nada
igual na vida. Quando J.B. pisara no botão que dava partida no motor, ela rira baixinho
feito uma criança. Só ao lançar um olhar meio de esguelha para Patrick é que Deborah
perdera a expressão de encantamento que lhe iluminava o rosto.
Patrick não deveria ter ficado irritado com isso, mas ficou. O fato de ver Deborah
seguindo as regras e agindo como uma moça bem-comportada o incomodava, e muito,
dando-lhe a sensação de que estava perto de uma pessoa completamente desconhecida.
Na noite passada, por exemplo, depois do episódio envolvendo a inesperada visitante,
Patrick esperara ver Deborah sair do escritório com um brilho de rebeldia e desafio no
olhar, com um sorriso zombeteiro nos lábios. Em vez disso, porém, ela voltara para a
sala de jantar com uma expressão séria, quase que de remorso.
Enquanto observava a paisagem conforme se aproximavam da Fazenda 101,
Patrick adivinhou de repente o motivo da sua irritação. Gostaria que tudo permanecesse
igual ao que sempre fora antes de Deborah sair dos túneis na noite da festa. Não queria
que Deborah se tornasse uma mulher sensível, responsável e doce, assim como
preferiria não ter experimentado o tumulto de emoções que sentira quando a beijara.
Desejava que tudo continuasse como antes, sim, e por uma razão muito simples: era
fácil manter-se afastado da antiga Deborah, desmiolada e calculista, mas era difícil não
sucumbir à atração que a nova Deborah lhe despertava.
Deborah estava agindo agora exatamente do jeito que Patrick gostaria que ela
tivesse agido quando eram namorados.
E Patrick não estava gostando nem um pouco disso. Ver sinais da mulher que ele
gostaria que Deborah tivesse sido o deixava confuso e zangado.
Causava-lhe ressentimento saber que uma simples pancada na cabeça fora
responsável pela transformação de Deborah na mulher que ele considerava ideal.
Perturbava-o sentir-se atraído por ela outra vez, depois de tudo o que acontecera entre
ambos. Mas a atração voltara com força total, não havia como negar. Desde que beijara
Deborah no dia anterior, Patrick não conseguia tirá-la dos pensamentos.
Por sorte, o Packard aproximou-se da casa-sede da Fazenda 101 bem a tempo de
interromper os devaneios de Patrick. Pensar em Deborah como algo além da esposa de
J.B. era alarmante... e perigoso.
J.B. desligou o motor do carro e virou-se para trás, sorrindo para Patrick.
Indicando com um gesto a bela casa de dois andares, pintada de branco, perguntou:
— Este lugar lhe traz boas lembranças, amigo?
— Sim, muitas — respondeu Patrick antes de acenar para o seu antigo patrão, que
aparecera na frente da casa.
George Miller estava vestido a caráter para o rodeio; parecia mais um vaqueiro, e
não o dono da famosa fazenda.
J.B. deu um tapinha amigável no ombro de Wyndham, comentando:
— Você não irá se arrepender de ter vindo, Harrison. Os seus camaradas lá de
Boston irão morrer de inveja quando você lhes contar que viu o show Oeste Selvagem.
— Existem várias companhias que apresentam esse tipo de show viajando pelo
país, J.B. — retrucou o banqueiro, em tom entediado. — Eu mesmo já vi uma
apresentação dessas na primavera passada.
Patrick conteve a vontade de rir. Harrison Wyndham não o enganava nem por um
segundo com o seu falso ar de tédio. J.B. também não se deixara enganar, pois fitou o
banqueiro com uma expressão malandra, argumentando:
— Primeiro assista ao show, e depois venha me dizer se já tinha visto igual,
antes.
Wyndham pigarreou, abriu a porta e desceu do carro. J.B. também desceu do
veículo e ajudou a esposa a sair. Patrick saiu por último, reparando que Deborah olhava
ao redor como se nunca tivesse posto os pés na fazenda. O que estaria acontecendo,
afinal? Será que ela estava mesmo com amnésia? Deborah parecia mais assombrada
com o que via do que o próprio Wyndham, que observava tudo com os olhos
arregalados. Ela quase ficou de queixo caído diante dos grupos de caubóis e de índios
usando cocares de penas coloridas, e pareceu não reconhecer as vaqueiras com as quais
conversara nas últimas visitas que fizera à fazenda. Enquanto seguia J.B. até o terraço
da casa-sede, ela virava a cabeça de um lado para outro como se não quisesse perder
nenhum detalhe do que acontecia à sua volta.
— J.B., eu já estava achando que você não viria! O que o fez sair daquele
mausoléu que você chama de mansão? — brincou Miller, enquanto trocava um aperto
de mão com o magnata. — A notícia de que Will e Tom estão aqui?
— Quem são Will e Tom? — perguntou Wyndham em voz baixa a Patrick.
— Will Rogers e Tom Mix — respondeu ele, rindo ao ver a cara de espanto do
banqueiro. Em seguida, adiantou-se para cumprimentar o dono da Fazenda 101. — Olá,
Sr. Miller. É um prazer revê-lo.
— Não precisa mais me chamar de "senhor", MacKinnon. Agora você já tem
dinheiro bastante para comprar uma dúzia de fazendas maiores que a minha — retrucou
Miller, bem-humorado. Em seguida, voltando-se para Wyndham, comentou: —
MacKinnon trabalhou para mim quando era garoto. Talvez eu consiga convencê-lo a
participar do rodeio, hoje.
Harrison Wyndham pareceu ficar impressionado com o que ouvira, exatamente
como J.B. e Patrick haviam esperado. George Miller era um bom amigo dos dois, e
aceitara com prazer o pedido prévio de ajudá-los a conquistar o interesse do banqueiro
de Boston. Por mais que ele parecesse ser um simples vaqueiro, a sua bela e imponente
residência indicava que ele era bem-sucedido nos negócios. Miller construíra um
verdadeiro império econômico levando a aura de romance e aventura do Oeste para o
resto do mundo. E, tanto quanto J.B., ele se preocupava em atrair novos investimentos
para o Estado de Oklahoma.
O dono da fazenda 101 cumprimentou Anne com um galante beijo na mão,
enquanto dizia:
— É um grande prazer revê-la, Sra. Munro. Acho que vou precisar colocar
vendas nos olhos dos meus caubóis outra vez, pois a senhora continua linda como
sempre.
Anne sorriu, encabulada, e Patrick estranhou-lhe o gesto. Deborah nunca ficava
encabulada! E mesmo que J.B. tivesse lhe pedido para bancar a atriz e fingir, ela jamais
teria concordado com a idéia. Ao contrário, a simples sugestão de que deveria
comportar-se bem a teria levado a fazer justamente o contrário.
Ao notar que Patrick a fitava com ar de censura, Anne parou de sorrir e virou-lhe
as costas. Ele cerrou os punhos, zangado, mas logo ralhou consigo mesmo. Ridículo! A
troco de que ficar zangado, só porque Deborah parara de sorrir? O que ela fazia ou
deixava de fazer não era da sua conta, e ponto final.
George Miller apresentou Harrison Wyndham a alguns dos vaqueiros que se
apresentariam durante o show, e depois o grupo todo dirigiu-se para as arquibancadas
que cercavam a arena. Um bom número de habitantes da cidade de Munro viera assistir
ao espetáculo. Depois que todos se acomodaram nas arquibancadas baixas, o show
começou com um desfile de caubóis e vaqueiras, índios, uma tropa de cossacos e até
mesmo um trio de palhaços. Patrick procurou relaxar e aproveitar o espetáculo.
No entanto, as danças de guerra dos índios, os exercícios de tiro dos cossacos, as
brincadeiras dos palhaços com laços de corda e as outras atividades que se
desenrolavam na arena não conseguiram fazê-lo parar de pensar em Deborah. Não eram
apenas as atitudes dela que pareciam diferentes do normal. Havia algo mais, também.
Os olhos verdes de Deborah, por exemplo, estavam um tom mais escuro. Ontem
ele havia se convencido de que apenas imaginara tal fato, mas agora não havia como
negar as evidências. Os olhos de Deborah estavam mais escuros, sim. Mas como? Por
quê?
Apesar dos olhares coléricos que Patrick lhe dirigia de vez em quando, Anne
estava se divertindo à beça.
Quando Katy mencionara a visita à Fazenda 101, ela imaginara que iria assistir a
um ou dois vaqueiros domando alguns poucos cavalos ou laçando novilhos, numa
espécie de rodeio de pequenas proporções, como os que já vira na TV.
Mas o que estava vendo agora era mil vezes mais emocionante. Junto com o resto
do público, ela rira das brincadeiras dos palhaços, maravilhara-se com a boa pontaria
dos cossacos e ficara encantada com as breves apresentações teatrais contando a história
da vida dos pioneiros nas planícies de Oklahoma. Isso sem mencionar os atos circenses
com elefantes, camelos e búfalos.
Anne gostou especialmente das vaqueiras. Uma delas ficou de pé sobre a sela e
disparou tiros de rifle contra um alvo enquanto seu cavalo corria em círculos. De
repente, a vaqueira caiu. Anne soltou uma exclamação de susto e ficou de pé, quase
pulando dentro da arena para socorrer a mulher. Demorou alguns poucos segundos para
perceber que a vaqueira não havia caído de verdade; a mulher escorregara de propósito
na sela até ficar grudada à barriga do cavalo, enquanto continuava atirando contra o
alvo!
Ao final do número Anne aplaudiu a vaqueira e riu, feliz. Ah, se os seus pais e tia
Shirley pudessem vê-la agora... Ela estava testemunhando um show histórico, o que
apenas contribuía para aumentar a sua excitação. Além disso, depois de dois exaustivos
dias fingindo ser Deborah Munro, estava adorando a chance de poder relaxar e ser ela
mesma por algumas horas.
Quando a apresentação seguinte começou, porém, Anne voltou a ser dominada
pela tensão. Enquanto observava os caubóis pulando na sela de cavalos bravios e
laçando novilhos com chifres pontiagudos, tudo em que conseguia pensar era nos
horríveis ferimentos que os animais podiam causar nos homens. E que condições tinham
os médicos da década de 20 para socorrer os feridos?
Refletindo bem, os homens na arena não eram vaqueiros, eram suicidas em
potencial. Enquanto exibiam a sua força e agilidade para o público, corriam o risco de
que algo muito grave lhe acontecesse.
E então, de repente, algo muito grave aconteceu.
Muitas das pessoas nas arquibancadas gritaram quando o último caubói a se
apresentar foi derrubado da sela pelo novilho que tentava laçar. Anne também gritou e,
horrorizada, viu o animal enfurecido dar uma cabeçada no peito do vaqueiro, que
tombou de costas no chão. Finalmente o novilho foi retirado da arena por um grupo de
participantes do show, enquanto o vaqueiro era levado embora numa maca. Anne não
sabia se o homem simplesmente perdera a respiração e desmaiara ou algo pior, mas
tratou de não perder tempo.
Pedindo licença às pessoas que estavam sentadas, começou a descer às pressas os
degraus da arquibancada. Se o vaqueiro não tivesse apenas perdido o ar, se houvesse
sofrido uma parada cardíaca — como Anne suspeitava, a julgar pela força do impacto
recebido pelo homem — nenhum médico dos anos 20 saberia o que fazer para salvá-lo.
— Deborah! — chamou J.B, em tom preocupado. — Onde vai? Está se sentindo
mal?
— Sim — respondeu Anne, sem parar de descer os degraus. — A violência da
cena que acabo de ver me deixou com o estômago embrulhado.
Deixando a arquibancada para trás, ela olhou ao redor tentando localizar alguma
tenda que servisse de posto médico ou algo do gênero.
Em menos de um minuto avistou o que procurava. Dois homens estavam levando
o vaqueiro para dentro de uma grande tenda encimada por uma bandeirinha vermelha.
Enquanto corria atrás deles, depois de arrancar dos pés os sapatos de salto de Deborah,
Anne notou que o show recomeçara; a banda começara a tocar uma música diferente e o
som de patas de cavalo batendo no chão ecoou pelo ar. Ao alcançar a entrada da tenda,
ela foi abrindo caminho por entre a multidão de caubóis e índios até ver o vaqueiro,
colocado em cima de uma mesa, sendo examinado por um médico.
Usando um estetoscópio de aparência pré-histórica, o médico auscultou o coração
do vaqueiro. Em seguida, voltando-se para George Miller, que também se encontrava na
tenda, anunciou:
— O coração dele parou de bater, George. Sinto muito, não há mais nada que eu
possa fazer agora, e...
— Não! Afaste-se! — gritou Anne, aproximando-se. Ela jogou os sapatos no
chão e empurrou o médico para o lado. Depois de fazer um exame rápido para verificar
se o vaqueiro não quebrara nenhuma costela, começou a fazer-lhe uma massagem
cardíaca junto com respiração boca a boca.
— Ei, espere um pouco! — protestou o médico quando viu Anne pressionar o
peito do vaqueiro com as palmas das mãos. — O que pensa que está fazendo, minha
jovem?
Ignorando o médico, ela puxou o maxilar inferior do vaqueiro para a frente, em
vez de inclinar-lhe a cabeça para trás, pois temia que ele tivesse sofrido uma fratura no
pescoço. Em seguida, apertou o nariz do homem e soprou-lhe ar para dentro dos
pulmões através da boca.
Todos os que estavam dentro da tenda soltaram exclamações de espanto.
— O que pensa que está fazendo, moça? — repetiu o médico, segurando um dos
braços de Anne.
— Solte-me! — ordenou ela, em tom feroz. — Fique longe de mim e não me
atrapalhe!
Chocado, o médico obedeceu. Um pesado silêncio tomou conta da tenda.
Anne continuou a pressionar regularmente o peito do vaqueiro e a lhe fazer
respiração boca a boca, checando-lhe o pulso de minuto em minuto. Vamos lá, cara,
respire. Você tem de respirar, pensou ela, aflita, preocupada com a possibilidade de o
homem sofrer algum dano cerebral por falta de oxigenação.
Então, de repente, o vaqueiro respirou fundo. Anne afastou-se um pouco e,
emocionada, observou o milagre que já vira acontecer tantas vezes em sua carreira de
para-médica: a pele azulada do homem foi recuperando aos poucos a cor normal, e
depois de alguns segundos ele abriu os olhos.
O médico lançou um olhar espantado a Anne e correu para junto da mesa.
— Clinton? Você está bem?
O vaqueiro tossiu e gemeu.
— Sim, ele está bem! — exclamou Anne, feliz.
— Caramba, eu nunca tinha visto uma coisa dessas, antes! — murmurou um dos
caubóis presentes.
Após certificar-se de o pulso do vaqueiro batia em ritmo normal, Anne deu-lhe
um leve tapinha no ombro, brincando:
— Faça o favor de não me desmentir, amigo. Você está bem, não está?
— Estou... Estou sim, moça — respondeu o homem, parecendo confuso.
— Meu Deus, que milagre — murmurou o médico, encarando Anne. — Como
foi que você conseguiu ressuscitá-lo?
George Miller aproximou-se de Anne e fitou-a com assombro.
— Sra. Munro? Como foi que...?
Incapaz de terminar a pergunta que tinha em mente, o dono da Fazenda 101
limitou-se a indicar Clinton com um gesto.
O homem estava tentando sentar-se. Bom sinal, refletiu Anne; isso significa que
ele não sofreu nenhum traumatismo na espinha.
Só então ela se preocupou em responder às perguntas do médico e de George
Miller. Ansiosa por salvar a vida do vaqueiro, utilizara um procedimento médico que as
pessoas da década de 20 não conheciam. Sendo assim, como explicar o que fizera?
Agira por instinto, sem pensar nas conseqüências do seu ato, e agora tinha de arranjar
um jeito de sair da enrascada em que se metera.
Procurando ganhar tempo, recolheu os sapatos que largara no chão e tornou a
calçá-los. Em seguida, declarou, constrangida:
— Eu apenas... apenas fiz algo que vi um médico fazer na... na Europa.
O fazendeiro e o médico trocaram um olhar de incredulidade.
— É verdade — insistiu Anne. — Uma vez vi um médico europeu socorrer um
homem no meio da rua e... Bem, eu só imitei o que ele fez.
De repente, ela se lembrou de J.B. Se ele ficasse sabendo do que acontecera na
tenda... Pensando em evitar maiores complicações, Anne dirigiu-se ao dono da Fazenda
101.
— Posso conversar com o senhor em particular, Sr. Miller?
O fazendeiro assentiu e seguiu-a para fora da tenda, dizendo:
— A senhora conseguiu realizar um verdadeiro milagre, Sra. Munro. Eu nunca
tinha visto ninguém ressuscitar um homem, antes!
— Eu sei, mas... Como já expliquei, fiz apenas o que vi um médico fazer para
socorrer uma pessoa que se acidentou na rua, lá na Europa. Deve ser algum
procedimento médico novo, ainda pouco conhecido aqui nos Estados Unidos.
— Procedimento médico? Para mim continua parecendo um milagre, isso sim!
Clinton estava morto, e a senhora...
— Por favor, Sr. Miller, vamos deixar esse assunto de lado. A propósito, eu
gostaria de lhe pedir algo.
— Pode pedir, Sra. Munro. Eu lhe devo gratidão eterna por ter salvo a vida de
Clinton. O que a senhora quer?
— Quero que o senhor me ajude a manter em segredo o que aconteceu lá na
tenda.
— Manter em segredo? Por quê?
— Tenho os meus motivos para não desejar que essa história se espalhe, Sr.
Miller. Por favor, não comente com ninguém, nem mesmo com J.B, o que aconteceu. Se
o senhor fizer isso, pode considerar paga a sua dívida de gratidão para comigo.
— Bem, já que a senhora insiste, farei o que me pede. Mas, mesmo assim...
Anne não permitiu que o fazendeiro terminasse a frase. Soltando um suspiro de
alívio, agradeceu a George Miller por ele ter concordado em atender o seu pedido e
afastou-se depressa na direção das arquibancadas.
Patrick saiu da tenda e foi para junto de Miller. Assim que Anne sumiu de vista, o
dono da Fazenda 101 virou-se para o seu ex-empregado e comentou:
— Por Deus, MacKinnon, creio que testemunhei um milagre, hoje. Você também
estava lá dentro da tenda? Viu o que aconteceu?
— Vi.
— E então, o que achou?
Patrick não achava nada, mas tinha certeza de uma coisa: Deborah mentira. De
novo.
Ele havia escutado sem querer a conversa entre Deborah e o fazendeiro, e sabia
que ela nunca vira nenhum médico socorrer um homem acidentado em alguma rua da
Europa. Na verdade, Deborah nunca estivera na Europa. Ela já havia feito vários planos
para conhecer o Velho Mundo, mas na última hora J.B. sempre cancelava as viagens
para puni-la por "mau comportamento".
— Não sei, George. Eu nunca tinha visto nada parecido, antes — respondeu
Patrick, por fim.
O fazendeiro coçou o queixo, murmurando:
— Quem diria, a Sra. Munro salvou a vida de Clinton...
Em seguida, ele deixou Patrick sozinho e voltou para o interior da tenda.
O vaqueiro morrera, e Deborah, num gesto de compaixão, o ressuscitara. Ela
havia soprado ar na boca do homem e feito massagem no peito dele. Incrível! Como é
que alguém podia resgatar uma pessoa das garras da morte desse jeito? E como é que
Deborah tivera coragem de fazer o que fizera?
Patrick jamais esqueceria a cena, nem que vivesse mil anos...
10
— Nós vamos demorar muito para ir embora, J.B? — perguntou Anne ao retornar
para o seu lugar nas arquibancadas.
— Ir embora? Já? Não vá me dizer que você ainda está se sentindo mal por causa
do acidente com o vaqueiro!
— Não, eu já estou me sentindo bem melhor. Mas o dia foi cansativo, e eu
gostaria de voltar logo para casa.
— Você nunca foi de se cansar à toa, Deborah, portanto não me venha com
histórias. — Baixando o tom de voz, J.B. prosseguiu: — Estamos aqui para agradar a
um possível parceiro nos negócios, e não para nos divertir. Dê só uma olhada em
Wyndham. Ele está adorando o show! Não podemos ir embora antes do último número.
Will Rogers e Tom Mix irão se apresentar, e eu quero que...
— Espere um pouco. Onde está Patrick? — perguntou Anne de repente, ao notar
que o lugar do sócio de J.B. esta vazio.
— Patrick deixou a arquibancada logo depois de você, portanto suponho que deva
ter ido pedir informações sobre o estado do vaqueiro que se acidentou. Provavelmente
ele conhece o homem dos tempos em que trabalhou aqui na fazenda.
Sim, Patrick já havia trabalhado na fazenda. George Miller mencionara tal fato
poucas horas antes. Isso significava que Patrick devia mesmo ter ido até a tenda depois
do acidente. E se ele fora até lá, com certeza testemunhara o que Anne fizera para salvar
a vida do vaqueiro!
Era estranho como tudo o que acontecia com Anne acabava envolvendo Patrick
de um modo ou de outro. Ela também se preocupava com J.B, claro; seria ótimo, por
exemplo, se ele não ficasse sabendo do que "Deborah" fizera na tenda até que Anne
voltasse para o futuro. No entanto, quem mais a deixava abalada emocionalmente era o
ex-amante, e não o marido de Deborah. Será que Anne teria sentido tanta vergonha do
episódio relacionado à Sra. Tompkins se Patrick não tivesse presenciado a cena? E por
que ela se esforçava tanto para evitar o olhar dele? Por que tinha sonhos eróticos nos
quais o sócio de J.B. era a figura principal?
O lado racional de Anne procurou convencê-la de que a atração que sentia por
Patrick era uma questão de pura química sexual. O lado emocional, contudo, dizia que o
interesse que ele lhe despertava estava ligado a algo mais profundo que o sexo.
Patrick MacKinnon era um homem bom, honrado. Ele beijara Anne, ou melhor,
Deborah, no dia anterior, perto do riacho. Mas logo admitira que havia cometido um
erro ao aproximar-se da esposa de seu amigo e sócio, e desde então tratara de ficar
longe dela. Isso era uma demonstração clara de lealdade e decência, o que o tomava
ainda mais interessante aos olhos de Anne.
Interessante até demais!
— Com licença... Posso passar?
Abandonando seus devaneios de lado, Anne olhou para o lado e deu de cara com
Patrick, que a fitava com uma expressão mista de curiosidade e impaciência.
— Posso passar? — repetiu ele. — Eu gostaria de voltar ao meu lugar.
Anne não queria deixá-lo passar, muito menos deixá-lo chegar perto de J.B, mas
não teve outra opção além de encolher as pernas para dar-lhe passagem.
Disfarçadamente, observou Patrick sentar-se ao lado de J.B. e pôs-se a imagina o que
ele iria dizer ao sócio. Seu olhar encontrou o de Patrick por um momento, e ela
adivinhou de imediato que ele vira o que acontecera na tenda. Droga, agora só faltava
Patrick contar tudo a J.B!
Fingindo prestar atenção no que ocorria na arena, onde George Miller
apresentava Will Rogers ao público, Anne ficou ligada na conversa dos dois.
— O vaqueiro está bem? — indagou J.B.
— Milagrosamente, sim — respondeu Patrick.
— O que houve, ele perdeu a respiração?
— Não, o caso foi um pouco mais sério.
— É mesmo? Então foi uma grande sorte o Dr. Kenner ter sido chamado para vir
trabalhar aqui, hoje. Ele é conhecido por fazer "milagres" para salvar seus pacientes.
— Sim, é verdade. Mas o Dr. Kenner teve ajuda extra, dessa vez.
— Ajuda extra? De quem?
Antes que Patrick tivesse tempo de responder, Anne apressou-se a segurar um dos
braços de J.B. e apontou para a arena.
— Will Rogers é mesmo incrível. Veja só o que ele consegue fazer com o laço!
— comentou ela, antes de dirigir-se ao banqueiro: — O que está achando do show, Sr.
Wyndham? É fantástico, não é?
— Sim, é fantástico — concordou o banqueiro, sorrindo.
— Will Rogers nasceu em Oklahoma, o senhor sabia? — disse Anne. Em
seguida, perguntou a J.B: — Você já falou para o Sr. Wyndham que há outras pessoas
famosas que também nasceram em Oklahoma? Aposto que ele adoraria discutir esse
assunto. Isso sem mencionar os fora-da-lei que tinham esconderijos aqui no Estado, em
tempos passados — acrescentou ela, dando graças a Deus por seu pai ser um historiador
amador e gostar de contar fatos curiosos sobre o Estado onde nascera. Tomando fôlego,
tomou a dirigir a palavra ao banqueiro: — Sr. Wyndham, não se esqueça de pedir que
J.B. lhe fale, mais tarde, sobre os fora-da-lei.
— Tulsa World, Sr. Munro! — anunciou o rapaz que se aproximou correndo,
trazendo consigo uma máquina fotográfica. — Posso tirar uma foto sua e do Sr. Rogers
para o jornal?
Anne reprimiu um suspiro de impaciência. Céus, será que nunca mais
conseguiremos voltar para mansão?, pensou. Ela havia adorado o show, e quase matara
J.B. de embaraço ao ficar boquiaberta quando Will Rogers e Tom Mix foram procurá-
los ao final do espetáculo para bater papo. O dia fora divertidíssimo, sem dúvida, mas
ao mesmo tempo fora tenso e cansativo, deixando os nervos de Anne em frangalhos.
Além de ter sido alvo constante dos olhares vi-o-que-você-fez-lá-na-tenda-e-quero-
saber-como que Patrick lhe dirigira, ela se lembrara de repente de que não estava em
segurança ali no meio da multidão. Talvez o assassino de Deborah gostasse do show
Oeste Selvagem e tivesse vindo até a fazenda... Céus, como ela pudera esquecer-se
dessa possibilidade? Não tinha resposta para isso. Sabia apenas que não gostava da
perspectiva de estar na mira de um criminoso, assim como não gostava da idéia de que
Patrick pudesse contar a J.B. o que vira na tenda.
— Claro que pode, meu jovem — respondeu J.B. ao fotógrafo do jornal. —
Deborah, venha cá, quero que você fique perto de nós — disse ele a seguir, puxando-a
pela mão.
— Não, J.B, por favor, devo estar com uma aparência horrível. Prefiro ficar
esperando lá no carro. Além disso, não gosto de ser fotografada.
J.B. e Patrick a encararam com espanto.
Tarde demais Anne lembrou-se do que a guia turística dos anos 90 dissera: A Sra.
Munro adorava ser fotografada...
— Acho que a pancada na cabeça afetou o cérebro da sua esposa, J.B. — riu
Patrick, antes de acrescentar num disfarçado tom de desafio: — Ou será que alguém
colocou uma impostora no lugar de Deborah?
Anne encarou-o com raiva. Ora, mas que atrevimento! Patrick a estava
provocando! Ele devia ter escutado às escondidas a sua conversa com George Miller e
descoberto que ela não queria que J.B. soubesse que ela salvara o vaqueiro da morte.
Droga, por que Patrick MacKinnon não cuidava da própria vida e a deixava em paz?
O próprio Patrick fizera questão de deixar claro que não queria ter nada a ver com
a mulher do seu sócio, e pedira que ela se mantivesse afastada dele. Pois bem, Anne
obedecera. E agora ali estava ele, parecendo se divertir com a idéia de provocá-la!
Ajeitando os cabelos com as mãos, Anne dirigiu um sorriso de falsa inocência a
Patrick e colocou-se entre J.B. e Will Rogers, dizendo:
— Você realmente me conhece bem, não é mesmo, Patrick? Eu só estava
bancando a moça mimada, como sempre. Afinal, vocês, homens, quase não me deram
atenção hoje, por causa do show. E quem pode culpar uma garota por desejar atenção?
— Em seguida, semicerrando os olhos e sorrindo para o fotógrafo, ela perguntou: — E
então, a minha pose está boa?
O rapaz assentiu e tirou a foto. Anne fitou Patrick com ar de triunfo, mas ele nem
se abalou.
Nesse momento, Harrison Wyndham aproximou-se de Will Rogers e estendeu-
lhe uma caneta e um luxuoso bloquinho de anotações com capa de couro.
— Pode me conceder a honra de me dar um autógrafo, Sr. Rogers?
Imediatamente Anne voltou a sua atenção para o banqueiro de Boston e para o
filho mais famoso do Estado de Oklahoma. Para que perder tempo preocupando-se com
Patrick MacKinnon quando tinha a chance de estar perto do lendário Will Rogers?
— O seu pedido é que me deixa honrado, senhor — respondeu Rogers. — Diga-
me, o senhor é de Boston?
— Sim, sou. Como adivinhou?
— Pelo sotaque, que é inconfundível.
J.B. deu uma piscadela para Rogers e comentou:
— Harrison Wyndham é banqueiro, Will.
— Verdade? Meu pai também era banqueiro, Sr. Wyndham, e vivia me
convidando para trabalhar com ele.
— Oh, eu não sabia! Isso significa que o senhor quase seguiu uma carreira ligada
às finanças?
— Não, eu logo vi que não tinha muito jeito para a coisa. Os únicos clientes que
eu conseguiria para o banco teriam de ser pegos a laço.
Todos riram da piada. Em seguida, após uma troca de aperto de mãos com Will
Rogers e George Miller — que apareceu para se despedir dos convidados — Patrick,
Wyndham, J.B. e Anne entraram no carro para ir embora.
Anne recostou-se no banco traseiro do Packard e, exausta, fechou os olhos. Sentiu
que Patrick, sentado a seu lado, a observava. Procurou ignorá-lo, mas depois de alguns
minutos não conseguiu mais suportar a situação. Abriu os olhos e encarou-o.
— Você me pediu para ficar longe de você, não foi? — indagou num murmúrio,
para que J.B. e Wyndham não escutassem. — Pois agora sou eu que lhe peço, Patrick,
fique longe mim!
Ele a fitou em silêncio por um instante antes de retrucar também em voz baixa,
como se estivesse falando consigo mesmo:
— Será que vou conseguir?
Franklin Thomas lavou o rosto recém-barbeado com água fria. Em seguida,
fechou a torneira e pegou a toalha que a camareira do hotel deixara pendurada perto da
pia. Ao olhar-se ao espelho, quase começou a chorar.
Sem a barba, ficara parecidíssimo com o seu irmão. Ah, Henry, nunca mais serei
capaz de ver a minha própria imagem sem lembrar de você, pensou, angustiado.
Gotas de água pingaram-lhe do queixo feito lágrimas. Franklin enxugou-as e
depois jogou a toalha dentro da pia. Lágrimas demais já haviam sido derramadas por
sua mãe e sua irmã, e por todos os que tinham amado Henry.
Só Franklin não havia chorado e nem pedido a Deus que o consolasse, pois
deixara de acreditar em Deus no dia em que Henry morrera.
Deus, em sua infinita bondade... Deus, em sua infinita bondade...
Franklin recordou-se das palavras ditas pelo padre durante o funeral de Henry.
Palavras mentirosas, que o haviam enchido de fúria. Meu irmão só queria servir a Deus,
mas mesmo assim acabou morrendo! Como esse padre ainda tem coragem de falar da
"bondade infinita" do Senhor?, ele sentira vontade de gritar.
Mas não gritara. Apenas dera um beijo de despedida na mãe e na irmã e partira
atrás da mulher responsável pela morte de Henry, disposto a vingar o irmão.
Olho por olho, dente por dente...
Dando uma risada cínica, Franklin vestiu seu casaco. Procurando não pensar mais
em Henry, saiu do quarto e desceu até a recepção. Pagou a conta e foi para a rua, sem
pressa. Seu plano era ir embora de Oklahoma o quanto antes, mas não tão rápido a
ponto de dar a impressão de que estava fugindo. Embora não se importasse com a
possibilidade de ser punido pelo crime que cometera, preferia não ser preso para evitar
que a sua família sofresse ainda mais.
Ele comprou a última edição do Tulsa World de um jornaleiro que passava pela
calçada, e depois fez sinal para um táxi.
— Para onde quer ir, senhor? — perguntou o motorista.
— Para a estação ferroviária — respondeu Franklin, entrando no veículo.
O táxi havia acabado de parar diante da estação de trens da cidade de Tulsa
quando Franklin Thomas viu a foto de Deborah no jornal.
— Chegamos, senhor — disse o motorista.
Um engano. Tinha de ser um engano! Mas a legenda da foto era bem clara. A
foto fora tirada na véspera, na Fazenda 101.
O ódio que abandonara Franklin depois de ele ter vingado a morte do irmão
retornou com força total, trazendo consigo desespero e dor. Mas como era possível? Ele
a estrangulara com as próprias mãos! Fizera questão de verificar se não havia nenhuma
centelha de vida no corpo da mulher antes de abandoná-la no interior da caverna!
— Já chegamos, senhor — insistiu o motorista.
— Sim... — murmurou Franklin, sentindo-se zonzo. — Quanto... Quanto lhe
devo?
— Ei, o senhor ficou pálido de repente. Está passando mal?
— Não, não, estou ótimo.
Franklin pegou a carteira, deu uma nota de cinco dólares ao motorista e, sem
esperar pelo troco, saiu do táxi levando o jornal consigo.
Morta, pensou, enquanto entrava na estação ferroviária e comprava um bilhete de
ida para Munro. Eu podia jurar que a vagabunda estava morta.
Patrick recusou o drinque que o garçom lhe ofereceu e soltou um suspiro de
cansaço. Embora já fosse bem tarde, a festa que J.B. decidira oferecer em homenagem a
Harrison Wyndham continuava animada. Entre os convidados havia barões do petróleo,
fazendeiros milionários e políticos influentes, todos acompanhados pelas esposas. Isso
sem mencionar os membros mais proeminentes da sociedade de Munro, pessoas
elegantes e ricas que pareciam dispostas a beber e se divertir até o raiar do dia. O clima
festivo devia-se ao sucesso dos planos de J.B. e Patrick para convencer o banqueiro de
Boston a investir dinheiro em Munro e em outras cidades de Oklahoma. Wyndham
ficara impressionado com tudo o que vira e ouvira no Estado nos últimos dias, e não
estava fazendo segredo disso.
Irritado pelo volume alto da música tocada por um pequeno conjunto de jazz,
Patrick aproximou-se da parede de vidro que dava vista para o extenso gramado nos
fundos da mansão. Precisou controlar-se ao máximo para não checar as horas pela
décima vez em seu relógio de bolso. Maldição! Era sócio de J.B. nos negócios, não era?
Sendo assim, por que não estava se sentindo feliz com a perspectiva de ver Munro
prosperar ainda mais? Por que, nos últimos tempos, suas conquistas profissionais
pareciam ter perdido a importância?
Houvera uma época em que o orgulho de ter alcançado o sucesso significava tudo
para ele. Uma época em que ele fazia questão de mostrar ao mundo que era um homem
importante, um "alguém" com "A" maiúsculo.
Mas será que era mesmo para o mundo que havia desejado provar o quanto era
bem-sucedido? Ou apenas para uma mulher em especial? Uma mulher e seu marido:
Deborah e J.B.
Patrick não se lembrava de jamais ter tomado uma decisão consciente de desistir
da idéia de possuir uma fazenda. No entanto, recordava-se com precisão da ambição que
o fizera galgar todos os degraus para chegar ao topo do poder na Ferrovia Munro depois
que J.B. desposara Deborah. Mais tarde, prometera a si mesmo; depois de alcançar o
topo eu me preocuparei em realizar o sonho de ter uma fazenda.
Ao longo dos anos, J.B. dissera várias vezes a Patrick que lhe fizera um favor ao
casar-se com Deborah. Afinal, ela era uma mulher fria, calculista, traiçoeira. E Patrick
jamais teria conseguido se transformar num bem-sucedido homem de negócios casado
com uma mulher assim. Patrick nunca fora ingênuo a ponto de acreditar que J.B.
desposara Deborah só para lhe fazer um favor, mas acabara reconhecendo que a
argumentação do seu sócio tinha um certo fundo de verdade.
Por outro lado, nunca fora criterioso o bastante para tentar entender por que fizera
tanta questão de ocupar uma posição de poder na Ferrovia Munro... E agora, refletindo
melhor sobre a sua vida, pela primeira vez Patrick se deu conta de algo muito
importante: nunca quisera provar nada para o mundo, quisera apenas impressionar o
casal Munro. Deborah o rejeitara, ferindo-lhe o orgulho; J.B. não o julgara homem
suficiente para suportar um "fardo" como Deborah. Mas ele havia mostrado a ambos o
quanto era forte. Chegara ao topo. Era um homem de sucesso.
Nesse momento, J.B. aproximou-se de Patrick e deu-lhe um tapinha no ombro,
dizendo:
— Parece que Wyndham está disposto a falar de negócios ainda hoje.
— Meus parabéns. Correu tudo conforme você havia planejado, não é?
— Sim, como sempre. Mas você também merece os parabéns, meu caro. Afinal,
foi você que deu início às negociações com Wyndham.
Patrick olhou através do vidro para o céu preto pontilhado de estrelas. Não
"brilhantes tremeluzentes", como J.B. gostava de descrevê-las para os visitantes de
outros estados. Apenas estrelas.
— Dessa vez não faço questão de ganhar os parabéns, J.B. — retrucou Patrick,
por fim.
— Ora, e por que não? Repito, você merece tanto crédito quanto eu por ter
convencido Wyndham a investir o dinheiro do banco e de seus clientes em Munro e
outras cidades do Estado. E então, vamos para o meu escritório? Está na hora de termos
uma conversa mais séria com Wyndham.
— Obrigado, mas dessa vez prefiro não participar de conversa alguma —
declarou Patrick, irritado com o tom condescendente de seu sócio. — Estou cansado, e
não pretendo ficar aqui até o final da festa.
Harrison Wyndham aproximou-se dos dois, com um charuto nos lábios, uma taça
de champanhe na mão e um chapéu Stetson na cabeça. Os olhos do banqueiro brilhavam
de um jeito especial, mas Patrick sabia que não era por causa da grande quantidade de
bebida que ele já havia ingerido. Não era o champanhe que o deixara intoxicado, e sim a
perspectiva de realizar negócios importantes, lucrativos. Patrick sabia disso porque,
olhando-se ao espelho, já vira esse mesmo brilho em seus próprios olhos.
— Vamos lá, J.B. — disse Wyndham, que ficava ridículo usando o chapéu que
George Miller lhe dera de presente. — Estou ansioso para começar a fazer planos para o
futuro.
— Eu também estou, amigo — respondeu J.B conduzindo o banqueiro na direção
do seu escritório, mas não sem antes dirigir um olhar de preocupação a Patrick.
J.B. iria pedir uma explicação para o seu comportamento inusitado na manhã
seguinte, mas Patrick não estava ligando nem um pouco para isso. Na verdade, chegava
a ser assustadora a pouca importância que ele estava dando para a opinião de J.B. a
respeito da sua atitude.
Virando-se de cosas para a janela, Patrick avistou Deborah do outro lado da sala e
começou a observá-la. Ela trocou algumas rápidas palavras com J.B. e Wyndham antes
que eles entrassem no escritório. Em seguida, pediu licença para a idosa senhora com
quem conversava e seguiu na direção de uma porta que dava para os jardins da mansão.
Se havia uma mulher no mundo que Patrick deveria desprezar, essa mulher era
Deborah. Mas já que ele estava numa noite propícia para reconhecer as verdades mais
dolorosas, ali estava mais uma: não sentia desprezo por Deborah. Ao contrário, sentia-se
cada vez mais atraído por ela. Nos últimos oito anos, julgara-se imune à esposa do seu
sócio. Mas desde que ela saíra dos túneis sob a mansão, poucas noites atrás, passara a
desejá-la de novo.
Por quê?
Anne foi até a casa de hóspedes sentindo-se como uma espiã cumprindo uma
missão secreta. Havia escolhido de propósito um vestido preto para usar nessa noite,
pois assim seria mais difícil alguém localizá-la ali fora. Se existisse uma entrada para os
túneis na casa de hóspedes — e estava certa de que a guia turística afirmara que existia
— ela a descobriria. Pena que não pudera sair para explorar a casa na noite passada,
pois J.B. não lhe dera um minuto de sossego.
Colocando-se atrás de uma fileira de arbustos, Anne apressou o passo. A
conversa de J.B. com Wyndham poderia demorar horas... ou apenas alguns minutos. Por
precaução, era melhor não perder tempo.
A fileira de arbustos terminava a alguns metros de distância da casa de hóspedes.
Anne olhou ao redor para certificar-se de que não havia ninguém por perto. Em seguida
olhou para a janela do escritório de J.B, que dava para os jardins. As cortinas estavam
fechadas. Ótimo!
Segura de que ninguém a observava, correu até o terraço da casa de hóspedes e
aproximou-se da porta de entrada. Usando o fino abridor de cartas que trouxera enfiado
no decote do vestido, tanto insistiu que acabou conseguindo soltar a trava da fechadura.
Soltando um suspiro de alívio, entrou na casa. Fechou as cortinas das janelas da sala e
só então se atreveu a acender um pequeno abajur. Sabia que fora nesta mesma sala que
vira J.B. pela primeira vez, em 1994. A lembrança provocou-lhe um arrepio, mas ela
não se deixou intimidar. Só o que importava agora era descobrir a entrada para os
túneis.
No corredor entre a sala e o quarto, Anne avistou porta de metal cinza, idêntica à
que existia dentro da lareira do salão de festas. Pronto, ali estava o que tanto ansiara por
encontrar! Não havia nenhum cadeado, mas a porta estava trancada do mesmo jeito. E
dessa vez o abridor de cartas não conseguiu soltar a tranca da fechadura.
Frustrada, Anne voltou para a sala e olhou em volta, pensativa. Se eu quisesse
esconder a chave daquela porta, onde a colocaria?
11
Patrick viu Deborah entrar sorrateiramente na casa de hóspedes e não se orgulhou
nem um pouco dos pensamentos libertinos que lhe invadiram a mente.
Afaste-se! Volte para a festa e fique longe de Deborah, antes que seja tarde
demais. Você não quer descobrir por que voltou a desejá-la. Você simplesmente a deseja
e isso é perigoso, interferiu a voz da consciência.
Mas já era tarde demais. Sem querer, Patrick recordou-se dos encontros
clandestinos que tivera com Deborah quando ela ainda estava sob a tutela de J.B.
Os dois eram tão jovens na época... Naquele tempo Deborah tinha cabelos
compridos e Patrick gostava de acariciá-los, de senti-los deslizando feito seda sobre o
seu peito nu enquanto faziam amor.
Amor... Patrick cometera um grande engano ao julgar que Deborah o amava. Na
verdade ela apenas o usara, pois sempre estivera interessada em J.B. Desde então ele
aprendera a diferenciar atração carnal de amor.
Sim, Deborah era fria... calculista... Mas a mulher que acabara de entrar na casa
de hóspedes não era nenhuma dessas duas coisas. Ela estava diferente, agora. Mas como
era possível? Patrick a vira salvar a vida de um desconhecido, num gesto de pura
generosidade. E um dia antes, quando a beijara para provar que ela continuava sendo a
leviana de sempre, ela lhe pedira desculpas por tê-lo magoado. Como Deborah podia ter
sofrido uma transformação tão profunda e radical? Ela havia dito que a pancada na
cabeça a fizera ver o quanto tinha agido errado até então, mas dera a impressão de estar
mentindo.
Patrick lembrou-se dos olhos verdes de Deborah, que pareciam mais escuros que
antes, e refletiu sobre as coisas que ela afirmara ter "esquecido". Recordou-se da
sensação inebriante que experimentara quando a beijara perto do riacho, e por um breve
segundo chegou a alimentar a teoria de que ela não era Deborah. Em seguida, balançou
a cabeça e quase deu uma gargalhada. Só um louco acreditaria numa teoria absurda
dessas!
Ele se aproximou sem fazer barulho da casa de hóspedes. Abriu a porta, mas não
entrou de imediato na sala. Permaneceu parado na penumbra do terraço, observando
Deborah. Ela havia feito uma pilha com as malas de Patrick perto da estante de livros
que ocupava uma parede inteira. Empoleirada em cima das malas, Deborah tateou a
borda da prateleira mais alta da estante. Depois, tirou alguns livros do lugar e tateou o
fundo da prateleira.
Patrick a viu repetir três vezes o mesmo procedimento, até que não agüentou mais
conter a curiosidade.
— Posso saber o que você está procurando? — perguntou, entrando na sala e
fechando a porta.
Anne soltou um grito de susto e perdeu o equilíbrio. Antes que Patrick tivesse
tempo de segurá-la, ela caiu no chão. Alguns livros caíram-lhe em cima.
— Pelo amor de Deus, Deborah! — Patrick aproximou-se dela e tirou o livro que
lhe cobria o rosto, vendo que o corte na testa voltara a sangrar. — Desse jeito o seu
ferimento não vai sarar nunca! — ele ralhou, tirando um lenço do bolso da calça e
pressionando-o contra o corte.
Anne arrancou-lhe o lenço da mão e sentou-se, reclamando:
— Quer parar com essa mania de se aproximar de mim feito um fantasma, sem
fazer barulho? É a segunda vez que você faz isso! E não é com o corte na minha testa
que estou preocupada. Acho... acho que torci o tornozelo.
Quando Anne fez menção de massagear o tornozelo dolorido, Patrick a impediu.
— Continue sentada, para que eu possa examiná-la.
Ele tirou-lhe o sapato de salto alto do pé e depois apalpou-lhe o tornozelo,
sentindo um arrepio quando seus dedos tocaram a seda fina da meia que cobria a perna
escultural.
— Ai! Não aperte com tanta força — protestou Anne.
— O tornozelo já está inchando — observou Patrick. — Creio que você não vai
conseguir andar direito por alguns dias.
— Droga, era só o que me faltava! E agora, o que vou fazer?
— Bem, é óbvio que você não pode passar a noite toda sentada aqui no chão.
Segure-se em mim, vou ajudá-la a...
— Patrick, cuidado! — gritou Anne de repente, olhando na direção da estante.
Patrick seguiu-lhe o olhar e viu que um grande e pesado livro estava prestes a cair
da estante, ameaçando acertá-lo na cabeça. Estendeu uma das mãos para apanhar o
livro, mas Anne o empurrou para o lado, avisando:
— O livro vai cair em cima de você!
Ela tornou a gritar, agora de dor, quando o pesado volume atingiu-lhe o tornozelo
já machucado.
— Maldição! Eu ia pegar o livro! — resmungou Patrick. — Por que me
empurrou?
— Agi por instinto — respondeu Anne, gemendo.
— Instinto de auto-mutilação? — zombou ele, pegando-a no colo e ficando de pé.
Anne fez uma careta de dor, mas não falou nada.
Procurando ignorar a excitação que sentiu por tê-la junto de si, Patrick a levou
para o quarto e a pôs na cama, tomando o cuidado de colocar um travesseiro sob o
tornozelo ferido. Em seguida, acendeu a luz do abajur que se encontrava sobre um
criado-mudo e sentou-se na beirada da cama.
Anne havia levantado o vestido até a altura das coxas e se inclinado para a frente,
na tentativa de examinar o tornozelo.
— Daqui não consigo ver se ele está muito inchado, por causa dessas meias
pretas — comentou, evitando olhar para Patrick.
Disfarçando o constrangimento, enfiou as mãos sob o vestido para abrir os
colchetes da cinta-liga e soltar as meias dos prendedores. Em seguida, tirou as meias e
jogou-as no chão.
Ao ver o que ela fazia, Patrick sentiu um arrepio de desejo. Procurando controlar
o tremor nas mãos, voltou a apalpar o tornozelo de Deborah. Mas foi incapaz de
concentrar-se no exame por causa das emoções conflitantes que o haviam invadido.
Zangara-se por Deborah tê-lo empurrado quando o livro caíra da estante, mas não
deixara de notar que ela agira com a mesma generosidade que demonstrara em relação
ao vaqueiro da Fazenda 101. E esse tipo de comportamento, vindo de Deborah, o
confundia. Patrick tentou pensar no dia em que Deborah lhe dissera que o havia usado
para atrair a atenção de J.B, tentou lembrar-se da frieza com que ela o rejeitara, mas não
conseguiu. Pôde apenas recordar o modo como ela correspondera aos seus beijos e
carícias lá perto do riacho, o modo como pedira para não ser chamada de Deborah. E
voltou a sentir a mesma excitação que o dominara naquele dia.
— Patrick...
Deborah o chamou com voz baixa e rouca. De repente, ele se deu conta de que
não estava mais "examinando" o tornozelo machucado, e sim acariciando-o com a ponta
dos dedos. Ao erguer a cabeça e encarar Deborah, percebeu que ela sabia o que ele
estava sentindo. Percebeu também que Deborah sentia o mesmo que ele: ansiedade...
desejo...
Mudando de posição na cama, ela tocou-lhe o rosto e murmurou:
— Eu também quero você. Tenho a impressão de que o quis durante toda a minha
vida. Sei que parece loucura mas...
— Mas isso não está certo — retrucou Patrick. tenso. — Você não me pertence.
— Mesmo assim, tenho a sensação de que não estamos cometendo nenhum erro.
Ou melhor, tenho certeza!
— Deborah, por favor... — murmurou ele com voz rouca.
— Não. Não me chame de Deborah — protestou Anne, abraçando-o. — Não
suporto esse nome.
Patrick fitou-a com desconfiança, e Anne teve vontade de morder a língua por
causa do que havia dito. Abraçou-o com mais força e beijou-o de leve nos lábios,
tentando impedi-lo de raciocinar, procurando convencê-lo a amá-la.
Patrick tocou-lhe os seios e ela gemeu baixinho, o coração disparado dentro do
peito. Deslizou as mãos para debaixo do paletó de Patrick, soltou os botões da camisa e
tocou-lhe a pele quente do peito coberto de pêlos macios.
Após um segundo de hesitação Patrick tirou o paletó, a gravata e a camisa,
jogando-os no chão.
Ansiosa por sentir o peito largo e musculoso contra o seu corpo nu, Anne
começou a soltar os botões nas costas de seu vestido.
— Não. Pode deixar que faço isso — disse Patrick.
Ele desabotoou rapidamente o vestido, que escorregou dos ombros até a cintura
de Anne.
O sutiã que ela estava usando seria considerado antiquado por um homem dos
anos 90, pois embora fosse preto não era nem rendado e nem transparente. Para Patrick,
porém, a lingerie devia representar o máximo da sensualidade. Com os olhos brilhantes
de desejo, ele beijou e lambeu a parte superior dos seios, que o sutiã não cobria. Ao
mesmo tempo, começou a acariciar os mamilos protegidos pelo tecido de algodão,
fazendo com Anne suspirasse de prazer.
— Patrick... Espere um pouquinho...
Atendendo ao pedido, ele se afastou. Assim que Anne tirou o sutiã, porém,
abraçou-a com paixão, esmagando os seios macios contra o seu peito nu, e beijou-a na
boca. Anne correspondeu com ardor ao beijo, envolta numa deliciosa nuvem de luxúria.
Patrick devia estar se sentindo culpado pelo que estava fazendo mas,
estranhamente, não sentia nada além do fogo da excitação a correr-lhe nas veias.
Minha. Isso foi tudo que ele conseguiu pensar antes de interromper o beijo e
deslizar a língua pelo pescoço da mulher que tinha nos braços, enquanto acariciava-lhe
os seios.
— Você é minha, esta noite... — murmurou ele, por fim, querendo partilhar seus
pensamentos com Deborah.
— Isso também o torna meu. Mas não apenas por esta noite. Sei que existe uma
ligação muito forte entre nós, porque eu vi você... antes de vir para cá...
— O quê?
— Por favor, não me pergunte nada... Agora não... — respondeu ela, começando
a abrir os botões da calça de Patrick.
Ele afastou-lhe as mãos e terminou de desabotoar a calça sozinho, temendo que o
roçar dos dedos delicados contra o seu membro rijo o fizesse perder o autocontrole antes
da hora. Depois de livrar-se das calças, dos sapatos e das meias, tirou de vez o vestido
de Anne e acariciou-lhe as pernas, sussurrando:
— Você faz idéia do quanto me deixa louco, mulher?
— Faço, sim, porque você também está me deixando louca. Oh, Patrick...
Ela gemeu alto quando ele lhe tirou a cinta-liga e começou a beijá-la nas coxas,
até alcançar o centro da sua feminilidade. Ao sentir a língua quente afagar o ponto mais
sensível do seu corpo, Anne estremeceu de excitação. Ao chegar ao orgasmo, gritou o
nome de Patrick e apertou-lhe os ombros com força.
— Ah, que delícia ouvir você gritar o meu nome desse jeito de novo... — disse
ele com voz rouca, deitando-se em cima dela.
— De novo, não. Esta é a nossa primeira vez — sussurrou Anne.
Patrick ficou imóvel, mas ela não lhe deu tempo de fazer nenhuma pergunta.
Segurando o membro másculo e rijo com as mãos, murmurou:
— Quero sentir você dentro de mim... pela primeira vez...
Delirante de desejo, Patrick ignorou as enigmáticas palavras de Anne e penetrou-
a. Para prolongar ao máximo o momento de prazer, começou a mover-se bem devagar,
sentindo-se verdadeiramente vivo pela primeira vez em oito anos.
Quando percebeu que Anne ia alcançar o êxtase de novo, controlou-se ao máximo
para não acompanhá-la na viagem rumo ao prazer total, a fim de não correr o risco de
engravidá-la. Só depois que Anne relaxou em seus braços foi que Patrick saiu de dentro
dela e, pressionando o sexo contra as coxas roliças e firmes, permitiu-se chegar ao
orgasmo.
Minutos depois, Patrick refletiu sobre o que acontecera. Já fizera amor com
Deborah antes, mas nunca desse jeito, com tanta urgência e paixão... Virando-se na
cama, fitou-a com emoção. Vasculhou a alma à procura da culpa que deveria estar
sentindo, mas deparou-se com outro sentimento: amor.
Céus, estou apaixonado por ela outra vez, pensou, assustado consigo mesmo.
Anne viu que Patrick a fitava e sentiu-se culpada. Se não houvesse insistido,
forçado a situação, ele não teria feito amor com ela. Por Deus, como tivera coragem de
agir com tanto atrevimento? Envergonhada, virou o rosto.
— Por favor, Deborah, não se arrependa do que fizemos — pediu Patrick,
acariciando-lhe a nuca. — Por alguma estranha razão, eu não estou arrependido do que
aconteceu. Talvez eu me sinta culpado quando amanhecer, mas...
— Não! — protestou Anne, tornando a encará-lo. — Você não tem motivo algum
para se arrepender ou sentir-se culpado, pode acreditar.
— Por que diz isso? Você não pode assumir sozinha a responsabilidade pelo que
aconteceu. Afinal, se eu não a desejasse tanto, não teríamos feito amor.
Desejo... Amor... Amor! Esta última palavra ficou ecoando na mente de Anne.
Sim, ela amava Patrick; sempre o amaria. O problema é que ambos pertenciam,
literalmente, a mundos diferentes. E quando o inevitável momento da separação
chegasse, será que ela teria forças para suportar o sofrimento de saber que nunca mais o
veria? E quanto a Patrick? Como ele se sentiria quando ela desaparecesse sem deixar
vestígios?
— Eu não deveria ter seguido você até aqui — declarou Patrick de repente, em
tom preocupado.
Anne adivinhou que ele estava pensando em J.B, seu sócio e amigo, e apressou-se
a dizer:
— Pare de se torturar. Você não traiu J.B.
— Não? — retrucou ele, cora um sorriso ao mesmo tempo sarcástico e pesaroso.
— Não. Você não o traiu, porque eu não sou a esposa de J.B. Eu não sou
Deborah!
12
— Ora, deixe de tolices, Deborah! — exclamou Patrick, levantando-se para
recolher a roupas jogadas no chão. — Tome, vista-se.
Anne recusou-se a pegar o vestido que lhe estendeu, argumentando:
— Eu disse a verdade. Não sou a esposa de J.B. E não venha me dizer que nunca
desconfiou de nada, pois peguei você várias vezes olhando de um jeito esquisito para
mim e...
— Eu mandei você se vestir, Deborah. Por favor, obedeça.
— Não! — protestou Anne aproximando-se dele, fazendo uma careta de dor por
causa do tornozelo machucado. — Não fuja da verdade, Patrick! Eu sei que você
percebeu algumas diferenças. Sei também que viu o que eu fiz para salvar a vida
daquele vaqueiro na Fazenda 101. Agora responda, como Deborah poderia ter feito
aquilo?
— Você disse ao Dr. Kenner que tinha visto um médico europeu socorrer um
homem que se acidentou na rua.
— Pois bem, eu estava mentindo.
Patrick fitou-a em silêncio por um instante. Em seguida, ao terminar de vestir a
camisa, declarou:
— Eu sei que você mentiu. Você nunca viajou para a Europa com J.B.
— Não? Oh... Então, está vendo? Eu não sou Deborah, e você sabe disso!
Anne estava sentindo um alívio maior do que imaginara. Ah, como era bom poder
abrir-se com Patrick... Ainda mais agora, após os momentos de intimidade que haviam
compartilhado. Teria sido impossível continuar mentindo para ele depois de terem feito
amor. Além disso, conhecendo a verdade, Patrick não precisaria mais sentir-se culpado
acreditando que traíra J.B.
— Aí é que você se engana — retrucou Patrick, enquanto vestia e abotoava as
calças. — Sei apenas que eu queria acreditar que você não era você mesma, só para
poder justificar o meu desejo de fazer amor com você outra vez. Por um momento, ao
ver você entrando aqui na casa de hóspedes, confesso que cheguei mesmo a acreditar
nessa história maluca. Mas agora... Ambos sabemos que isso é pura fantasia, Deborah.
— Tem certeza? Então explique onde eu aprendi a fazer respiração
cardiopulmonar.
— Respiração o quê?
— Respiração cardiopulmonar, ou seja, massagem cardíaca combinada com
respiração boca a boca. Foi isso o que eu fiz naquele vaqueiro da Fazenda 101. E nem
Deborah nem qualquer outra pessoa da época atual saberia como aplicar esse
procedimento, porque ele só foi criado depois de mil novecentos e sessenta.
Patrick encarou-a com uma expressão fácil de decifrar: Ela enlouqueceu de vez.
— Mil novecentos e sessenta? — repetiu, confuso.
— Sim. Sei que parece loucura, mas é verdade. O pior de tudo é que Deborah está
morta. Eu a vi ser assassinada num dos túneis por um homem barbado.
— Assassinada?
— Estrangulada, para ser mais exata — explicou Anne, prosseguindo: — Foi o
medalhão que você deu a Deborah que me trouxe para o passado. Não sei como isso
pôde acontecer, sei apenas que de algum modo o retrato de Deborah também teve um
papel importante nessa viagem através do tempo. Eu segurei o medalhão e toquei no
retrato ao mesmo tempo, e de repente... Abracadabra, vim parar aqui, na década de
vinte. É por isso que preciso recuperar o medalhão. Só depois de encontrá-lo poderei
voltar para casa.
— E a sua casa está no futuro? No ano de mil novecentos e sessenta? — indagou
Patrick, perplexo, sentando-se na beirada da cama.
— Não, no ano de mil novecentos e noventa e quatro. — Anne suspirou. — Você
não está acreditando em mim, está?
— Para ser sincero, não. A meu ver, as possibilidades são duas. Ou você está
mentindo de novo, embora eu não entenda por que resolveu inventar uma história tão
absurda, ou então a batida que você deu com a cabeça teve conseqüências mais graves
que um simples caso de amnésia.
— Eu... admito que menti a respeito disso, Patrick.
— A respeito do tombo que levou nos túneis?
— Não, a respeito de estar com amnésia. Só inventei que havia perdido em parte
a memória para justificar o fato de não saber responder muitas das perguntas relativas
ao passado de Deborah. Até recuperar o medalhão, eu não podia correr o risco de que
alguém descobrisse que eu não sou Deborah.
— Por quê?
— Porque J.B. ameaçou me mandar para um hospício. Ele fez essa ameaça
porque eu, ou melhor, Deborah, entrou nos túneis acompanhada por um homem.
Suponho que foi esse homem que assassinou a verdadeira Deborah. — Anne fez uma
pausa para tomar fôlego e continuou:
— Parece que Deborah andou irritando J.B. ao longo dos anos, até que finalmente
ele perdeu a paciência com ela e decidiu interná-la num hospício. Sendo assim, o que
você acha que J.B. faria se eu tentasse convencê-lo de que não sou a esposa dele? E
evidente que J.B. mandaria me internar o mais depressa possível, e daí eu jamais
conseguiria recuperar o medalhão e retornar para o futuro.
— Por Deus, Deborah, creio que você perdeu de vez a razão... — murmurou
Patrick, atônito.
— Meu nome não é Deborah, é Anne Sawyer. Nunca fui casada com J.B.
Também não fui sua namorada oito anos atrás, Patrick. Você não traiu o seu sócio e
amigo ao fazer amor comigo, hoje. Sendo assim, não permitirei que você se sinta
culpado por causa disso.
Patrick permaneceu calado, imóvel.
Vendo que não seria capaz de convencê-lo da verdade apenas com palavras, Anne
decidiu usar uma tática mais radical. Ignorando a dor em seu tornozelo, sentou-se no
colo de Patrick e beijou-o na boca, colocando todo o amor que sentia por ele nesse
beijo. Em seguida, abraçando-o, murmurou:
— Eu não podia deixar que você continuasse acreditando que eu era Deborah.
Não sei por que viajei no tempo e vim parar aqui. Também não sei por que sou tão
parecida com uma mulher da qual nunca tinha ouvido falar antes, e não sei por que
testemunhei o assassinato dela. Sei apenas uma coisa, uma coisa muito importante...
— O que é que você sabe?
— Que desde que vi você pela primeira vez, quando saí dos túneis, me senti
atraída de imediato. Ou, melhor dizendo, eu me apaixonei por você à primeira vista,
Patrick. — Ela acariciou-lhe o rosto e sorriu, antes de acrescentar: — Existe algo de
muito especial entre nós dois, algo de bom que nos une. Se você não quiser acreditar em
mais nada do que eu falei, acredite pelo menos nisso: não existe nada de errado ou de
vergonhoso no nosso relacionamento.
Soltando um gemido rouco, Patrick abraçou Anne assim que ela terminou de falar
e beijou-a com paixão.
Anne entregou-se por completo ao intenso prazer que o beijo lhe provocou,
procurando não pensar no momento inevitável da separação. Pedira a Patrick que
acreditasse na força do sentimento que os unia, mas o relacionamento de ambos seria
tão breve, tão passageiro... Apenas um instante perdido no tempo...
Patrick tomou a despir-se e, deitando-se por cima de Anne, tornou a unir o seu
corpo ao dela. Dessa vez, porém, em vez de paixão o rosto másculo espelhava
sofrimento, agonia. Ao perceber isso, Anne ficou com os olhos cheios de lágrimas de
tristeza.
— Sinto muito — murmurou Patrick, quando terminaram de fazer amor. — Juro
que eu queria acreditar que você não é Deborah, mas...
— Por favor, não diga mais nada. Ouvir isso de você já é o bastante para mim,
por enquanto.
Eles haviam pegado no sono enquanto estavam abraçados. Anne não saberia dizer
o que a acordou, mas sabia que não podia passar a noite toda ao lado de Patrick, por
mais que quisesse fazer isso.
Tomando cuidado para não despertá-lo, soltou-se dos braços dele e saiu da cama.
Recolheu suas roupas, vestiu-se e, antes de sair do quarto, dirigiu um último olhar ao
homem adormecido.
Nesse momento, seu coração se encheu de emoção. Além de atraente e sensual
Patrick também era sensível e compreensivo, refletiu Anne, lembrando-se da conversa
que haviam tido antes de adormecerem.
Ela fizera questão de saber tudo sobre a vida de Patrick antes de ele conhecer J.B.
e tornar-se um magnata. Quando começara a falar Patrick mostrara-se meio
constrangido, mas depois fora ficando mais descontraído e contara episódios da sua
infância, da época em que perdera os pais, dos anos que passara trabalhando na Fazenda
101. Havia concluído o relato mencionando o curso que fizera na faculdade e o emprego
que J.B. lhe dera na Ferrovia Munro.
Patrick não perguntara nada sobre o passado de Anne, mas mesmo assim ela
havia contado tudo o que lhe acontecera de mais importante na vida. Em seguida, Anne
falara das mudanças que aconteceriam no mundo. Patrick a ouvira com atenção,
demonstrando curiosidade em relação a coisas como televisores, computadores, viagens
à Lua, shows de rock, telefones celulares e outras maravilhas tecnológicas.
Anne suspirou e decidiu que já era hora de voltar para a mansão, antes que J.B.
desse pela sua falta, saísse à sua procura e a encontrasse ali.
Ela soprou um beijo na direção de Patrick e foi até a sala da casa de hóspedes.
Afastando de leve uma ponta da cortina, olhou para fora pela janela. Ainda estava
escuro, mas logo amanheceria. Movendo-se tão depressa quanto o tornozelo torcido lhe
permitia, seguiu na direção da porta. No meio do caminho, tropeçou num livro
encadernado em couro tingido de vermelho, com um coração dourado desenhado na
capa. Curiosa, abaixou-se. Pegou o livro, abriu-o na primeira página e logo viu que se
tratava de um diário. As primeiras linhas, escritas numa caprichada letra infantil,
diziam: Este diário pertence a Deborah Richards, e foi um presente de Jonathan
Bartholomew Munro — 1909.
Logo abaixo havia um parágrafo:
Querido Diário, hoje é meu aniversário. Estou fazendo dez anos, e ganhei você
de presente do meu novo pai e da minha nova mãe.
Edith, a criada que costumava arrumar os quartos em companhia de Katy,
atravessou a sala na direção da cozinha procurando não fazer nenhum ruído. Estava com
fome e pretendia fazer um pequeno lanche. Isso não era crime, era? Claro que não! Mas
graças às novas regras impostas à criadagem por Simmons, o pomposo mordomo que
começara a trabalhar na mansão há dois meses, Edith estava sendo obrigada a se
esgueirar feito uma criminosa durante a madrugada.
Antes da chegada de Simmons, quando sentia fome durante a noite, Edith ia
tranqüilamente até a cozinha e comia à vontade. Não havia problema algum nisso, pois
sempre sobrava muita comida depois dos fartos jantares do casal Munro. O novo
mordomo, porém, fora taxativo: nenhum empregado tinha permissão para sair da ala
reservada à criadagem depois de uma certa hora, muito menos para ir até a cozinha fazer
um lanche.
Revoltada, Edith jurara a si mesma que não obedeceria as estúpidas regras
impostas por Simmons. Era só o que faltava! Além de trabalhar numa casa onde os
patrões não tinham a menor noção de moral, ainda seria obrigada a passar fome durante
a noite? De jeito nenhum!
Ao passar diante de uma janela, Edith escutou um barulho. Parou de andar e
prestou atenção. Nada. Deve ter sido imaginação minha, pensou. Já ia afastar-se da
janela quando avistou uma pessoa atravessando o gramado, vinda da casa de hóspedes.
— Ora, ora... — murmurou Edith quando reconheceu a figura que se aproximava
da mansão. — O que será que a Sra. Munro estava fazendo na casa de hóspedes? — A
criada sorriu, maliciosa, quando viu que a patroa estava toda despenteada e trazia os
sapatos nas mãos. — Humm... O que diria o Sr. Munro se visse a esposa nesse estado?
Edith pensou em Simmons e nas novas regras impostas por ele. Em seguida,
pensou no patrão. Será que o Sr. Munro deixaria o mordomo despedi-la se ela lhe
contasse que a esposa o andava traindo?
A empregada concluiu que valia a pena correr o risco, sem dúvida alguma. Ah,
seria fantástico ver a sua desavergonhada patroa ganhar o castigo merecido! Edith havia
pensado que Deborah Munro jamais poria os pés na mansão outra vez, depois do que
acontecera quatro anos atrás. Imagine só, ter ficado grávida de um outro homem que
não o próprio marido! O Sr. Munro, porém, limitara-se a manter a esposa afastada por
tempo suficiente para que ninguém soubesse de nada... Mas Edith soubera de tudo,
graças à sua mania de escutar a conversa dos patrões escondida atrás das portas.
Um sorriso maldoso curvou os lábios da criada. Há quatro anos, Deborah Munro
fora perdoada pelo marido. Mas será que ele a perdoaria agora, se descobrisse que ela
era amante do Sr. Patrick MacKinnon?
13
Ao ouvir uma batida à porta da sua suíte, Anne fechou o diário que tinha nas
mãos.
— Quem é? — indagou.
— Sou eu, Katy. O Sr. Munro me mandou vir chamar a senhora para tomar o café
da manhã lá em baixo.
Anne reparou pela primeira vez que um raio de sol entrava no quarto por uma
fresta da cortina, o que significava que já havia amanhecido há algum tempo. Só então
se deu conta de não havia parado de ler o diário desde que voltara da casa de hóspedes.
Ah, e como a leitura a enfurecera! Só de pensar em encarar J.B, depois de ter lido
algumas das anotações feitas no diário de Deborah, sentia o sangue ferver.
— Katy, diga a meu marido que prefiro tomar o café da manhã no meu quarto,
hoje.
— Sinto muito, senhora, mas o Sr. Munro disse que faz questão absoluta de que a
senhora desça. O Sr. Wyndham vai embora hoje, e o Sr. Munro quer que a senhora se
despeça dele.
Anne resmungou uma praga em voz alta.
— Desculpe-me, Sra. Munro, mas foi o seu marido que me mandou insistir para
que a senhora descesse.
— Tudo bem, Katy, não é com você que estou zangada. Pode dizer ao meu
marido que irei encontrá-lo daqui a pouco, assim que terminar de me arrumar.
— Sim, senhora.
Anne escondeu o diário debaixo do colchão da cama e foi até o banheiro. A
imagem que viu refletida no espelho não a surpreendeu. As olheiras escuras
denunciavam que ela havia passado a maior parte da noite acordada.
E não era para menos! Quem teria sido capaz de dormir depois de ler as coisas
que Deborah escrevera? Anne ainda não chegara ao fim do diário, mas o que lera até
agora já era suficiente para explicar por que Deborah se transformara numa mulher
rebelde, revoltada. A história da vida da pobrezinha daria uma excelente tese de
doutorado no campo da psicologia!
Enquanto lavava o rosto, Anne refletiu que promiscuidade era o mínimo que J.B.
deveria ter esperado depois do modo como ele e sua primeira esposa haviam tratado
Deborah. Na opinião de Anne, era um milagre que Deborah não tivesse assassinado J.B.
por vingança anos atrás.
Ao terminar de pentear os cabelos, Anne recordou-se das passagens do diário que
mencionavam Patrick — as únicas passagens que a haviam feito sentir raiva de
Deborah. Mesmo tendo tido uma educação deficiente, Deborah não deveria ter tratado
Patrick com tanta crueldade; afinal, a infância dele também não fora lá muito agradável
e saudável.
De qualquer modo, era J.B. o responsável direto pelo que Deborah fizera com
Patrick. E por isso ele merecia todo o sofrimento que Deborah lhe causara nos últimos
anos.
— Ah, aqui está ela, cavalheiros — anunciou J.B, sentado à cabeceira da mesa.
— Bom dia, Deborah. Você está linda como sempre, se é que me permite um elogio —
disse ele, ao saudá-la com um gesto de cabeça.
Isso significa que passei na inspeção?, pensou Anne, irritada, acomodando-se na
cadeira que o mordomo puxou para ela. Onde estavam os elogios quando Deborah mais
precisara deles? Por que J.B. nunca elogiara Deborah quando ela ainda era uma menina
traumatizada pela recente morte dos pais, disposta a tudo para agradar a sua nova
família?
Será que eu sempre vou ter a aparência que tenho hoje, Diário? Espero que não!
Virgínia vive me dizendo que J.B. sempre reclama das minhas sardas e da cor dos meus
cabelos. Ah, eu queria tanto que ele me achasse bonita e gostasse de mim! No começo
até pensei que ele fosse me deixar chamá-lo de "papai". Mas que homem gostaria de ter
uma filha feiosa como eu?
— Não precisa mentir, J.B, sei que estou com uma aparência péssima — retrucou
Anne, por fim, enquanto se servia de suco laranja. — Oh, mas onde estão as minhas
boas maneiras? Obrigada pelo falso elogio, querido. E, se permite dizer, você está muito
atraente, como sempre — acrescentou, sarcástica.
J.B. arregalou os olhos, chocado. Harrison Wyndham pigarreou, constrangido, e
Patrick fitou Anne com curiosidade.
— Não seja modesta, Sra. Munro. O seu marido tem razão, a senhora está muito
bonita — afirmou Wyndham, tentando desanuviar a tensão ambiente. — A propósito,
ainda há pouco eu dizia a J.B. que a senhora será uma excelente representante de
Oklahoma junto às esposas dos homens de negócios que virão fazer investimentos aqui
no Estado.
— O senhor acha, mesmo?
— Sim, Deborah. Harrison decidiu aconselhar os clientes do banco a investir
dinheiro em Oklahoma. A cidade de Munro, em especial, seria o ponto de partida ideal
para a expansão dos negócios de muitos homens importantes — explicou J.B, dirigindo-
lhe um olhar do tipo "comporte-se bem, caso contrário eu te esgano!" Em seguida, ele
comentou com o banqueiro: — Pensei em promover apresentações de música e jogos de
bridge para divertir as esposas dos seus clientes, Harrison. Deborah é uma excelente
jogadora de bridge... Não é mesmo, querida?
Querido Diário, você é meu único confidente! Sou uma menina horrível, um
fracasso completo aos olhos do meu tutor. Todo mundo na cidade de Munro o adora,
claro, e eu também o adoro. O problema é que não sei me comportar em sociedade! Por
mais que eu me esforce, só o que consigo é deixar J.B. e Virgínia embaraçados! Outro
dia ouvi J.B. dizer a Virgínia que nunca serei uma boa anfitriã... a menos que a festa seja
na estrebaria e que os convidados sejam cavalos. Ah, que tristeza... Já estou morando há
dois anos com J.B. e Virgínia, e a única coisa que aprendi foi cavalgar direito.
— Errado, J.B. Você sabe muito bem que odeio jogar bridge — alfinetou Anne,
nem um pouco disposta a deixar passar em branco a oportunidade de vingar Deborah.
— Será que as esposas dos seus clientes sabem andar a cavalo, Sr. Wyndham? —
indagou a seguir, em tom doce. — Cavalgar é a única coisa que eu sei fazer direito.
Patrick quase engasgou de susto diante das palavras de Anne, e J.B. ficou roxo de
raiva e vergonha. Fingindo não notar os esforços dela para irritar J.B, Wyndham
limitou-se a responder:
— Algumas das esposas devem saber cavalgar, sim. E as que não souberem
certamente gostarão de aprender. A senhora deve ser uma excelente professora de
equitação, eu suponho.
J.B. pareceu relaxar um pouco ao ouvir a resposta do banqueiro, mas nem por
isso deixou de fitar Anne com ar de censura.
Ela o encarou de volta, sem se deixar intimidar. Pretendia fazê-lo pagar por todas
as vezes que magoara Deborah, abalando a autoconfiança da jovem com observações
ferinas, irônicas, maldosas. Vá em frente, J.B, pensou Anne. Continue a me provocar e
irritar, se quiser. Estou tão furiosa que sou até capaz de estragar o bom relacionamento de
negócios que você estabeleceu a duras penas com Wyndham. E não sentirei o menor
remorso!
J.B. tossiu de leve e tornou a voltar a sua atenção para o banqueiro de Boston.
— Oh, sim, Deborah é uma excelente amazona, Harrison. Foi ela que ensinou
Patrick a cavalgar puros-sangues... Não é verdade, querida?
— Sim, é verdade, J.B.
Nesse momento, o olhar de Anne encontrou o de Patrick. Ele não deixou
transparecer nenhuma emoção, mas Anne sabia que Patrick estava se lembrando das
aulas de equitação que Deborah lhe dera. Fora J.B. quem havia sugerido que Deborah o
ensinasse a montar puros-sangues e, no decorrer das aulas, Patrick se apaixonara por
ela.
Deborah tinha dezessete anos, na época. Virgínia, a primeira esposa de J.B, havia
morrido há pouco mais de um ano. Pelo que Anne lera no diário, a essa altura Deborah
já tinha tanto desprezo por si mesma que tornara-se incapaz de amar alguém. Certas
pessoas guardavam o ódio que sentiam dentro de si, mas com Deborah acontecia o
oposto. Ela era do tipo que externava suas emoções negativas, e ai de quem estivesse
por perto! No entanto, bem lá no fundo, apesar de todo o sofrimento que Virgínia e J.B.
lhe haviam causado, Deborah continuara ansiando pela atenção e pela aprovação do
tutor.
Mesmo quando ficou óbvio que J.B. jamais aprovaria o jeito de ser de Deborah, a
jovem continuou insistindo em chamar-lhe a atenção, usando Patrick como arma.
Deborah sabia que J.B. ficaria furioso quando descobrisse que ela estava tendo um caso
com o rapaz do qual ele tanto gostava.
Aconteceu o que eu previa, Diário. J.B. descobriu tudo. Você nunca acreditou que
ele descobriria, não é mesmo?
Imagino até que você pensou que J.B. iria ignorar o caso, como ignorou todas as
minhas outras "escapadelas". Mas dessa vez foi diferente! Ah, o meu plano funcionou
direitinho... Amo J.B. há muito tempo, Diário, e queria que ele me amasse também.
Virgínia já morreu, J.B. precisa de uma nova esposa. E eu serei essa esposa, espere só
para ver! Jurei a mim mesma que mudarei o meu comportamento. Serei o tipo de mulher
da qual J.B. precisa, Patrick MacKinnon é o "filho" que ele nunca teve — eu o ouvi dizer
isso várias vezes. Eu sabia que se ameaçasse fugir com Patrick, J.B. faria qualquer coisa
para me impedir. E foi o que aconteceu.
— Bem, preciso ir — disse Wyndham, depois de checar as horas no relógio de
ouro, que tirou do bolso do colete. — Pode fazer a gentileza de pedir ao seu motorista
que me leve até a estação ferroviária. J.B?
— Esqueça o motorista, Harrison, eu mesmo faço questão de levar você até a
estação. No caminho, aproveitaremos a chance para marcar a data da minha primeira
viagem a Boston.
— Combinado. — O banqueiro sorriu e dirigiu-se a Anne. — Foi um prazer
conhecê-la, Sra. Munro. Eu gostaria de lhe agradecer por ter me hospedado em sua casa
e ter transformado a minha estada aqui num interlúdio tão encantador.
— Não precisa agradecer, Sr. Wyndham. O prazer foi todo meu — respondeu ela,
retribuindo o sorriso.
Harrison Wyndham assentiu e saiu da sala. Antes de ir atrás dele, J.B. encarou
Anne com ar feroz e murmurou, por entre os dentes:
— Quero ter uma conversinha com você quando voltar da estação, Deborah.
Oh, ótimo! Talvez ela houvesse exagerado na grosseria com que tratara J.B. à
mesa. Mas e daí? Ela estava pouco se lixando!
Anne observou Patrick limpar a boca o guardanapo e lhe fazer um discreto sinal
para permanecer calada.
Poucos minutos depois ambos ouviram o barulho da porta da frente sendo
fechada, e começaram a falar ao mesmo tempo.
— Precisamos conversar...
— Tenho de lhe contar o que...
Anne calou-se e sorriu para Patrick, sentindo um prazer inexplicável pelo simples
fato de estar sozinha com ele na sala. Toda a sua raiva desapareceu como que por
encanto. Ah, como gostaria de poder realizar o sonho impossível de ter um longo futuro
ao lado de Patrick! Dias, meses, anos na companhia dele...
— Sim, precisamos conversar — disse ela, por fim. — Mas não aqui. Vá até a
casa de hóspedes. Irei encontrá-lo daqui a pouco, depois de pegar uma coisa que quero
lhe mostrar.
Franklin Thomas viu o Packard atravessar os portões da mansão. J.B. Munro,
pensou ele, reconhecendo o homem que dirigia o automóvel. Uma nuvem de ódio
invadiu-lhe a mente.
Dizia-se que Munro podia comprar a colaboração e o silêncio de qualquer homem
no Estado de Oklahoma, e Franklin descobrira há pouco tempo, através do seu pai, que
isso era verdade. Afinal, sua própria família fora uma vítima do poder do famoso
magnata. Franklin imaginara que a decisão de mudar para o Estado do Kansas partira do
seu pai, mas descobrira que estava enganado. Na verdade, J.B. Munro havia exigido que
a família Thomas fosse embora de Oklahoma.
Se Franklin tivesse agido apenas pelo desejo de vingança, teria assassinado J.B.
também, e não apenas Deborah. Mas parecia que a vagabunda continuava viva, e
Franklin queria justiça. Não vingança, só justiça. Ele olhou na direção da mansão,
frustrado consigo mesmo por não ter feito o trabalho direito. Agora teria de partir do
ponto zero, outra vez. Na noite da festa Franklin entrara na mansão misturado a um
grupo de convidados, e não encontrara a menor dificuldade para aproximar-se de
Deborah e convencê-la a acompanhá-lo. Tudo o que precisara fazer fora mencionar os
nomes de Henry e da criança.
Mas agora a vagabunda já sabia quem ele era, e não cairia na armadilha outra vez.
A única opção de Franklin, no momento, era ficar à espreita, observando. Mais
cedo ou mais tarde Deborah Munro acabaria saindo da mansão. Então ele atacaria. E,
dessa vez, não cometeria nenhum erro.
— Pode me explicar por que ficou provocando J.B. à mesa do café da manhã?
Anne fechou a porta da sala da casa de hóspedes, desviou-se dos livros que
continuavam caídos no chão e aproximou-se do sofá onde Patrick estava sentado.
— Bom dia para você também, meu querido — disse ela com um sorriso,
deixando o diário de Deborah em cima da mesinha de centro.
Sentando-se ao lado de Patrick, beijou-o na boca, acariciando-lhe os lábios com a
língua. Ele correspondeu ao beijo com paixão, mas logo em seguida perguntou, tenso:
— Como você consegue ficar tão calma? Depois do que fizemos ontem à noite...
— Eu já disse, nós não fizemos nada de errado — interrompeu-o Anne. — Além
disso, aprendi a ser boa atriz nos últimos dias. Eu não estou calma, apenas pareço estar
calma.
— Do meu ponto de vista você não bancou a boa atriz agora há pouco, quando
fez de tudo para irritar J.B.
— Oh, naquele momento eu não estava a fim de parecer calma. Eu estava mesmo
furiosa com J.B, depois de ter dado uma olhada nisto aqui. — Anne entregou a Patrick o
livro com o coração dourado desenhado na capa, explicando: — Eu o encontrei no chão
ontem à noite, antes de ir embora. Deborah deve tê-lo escondido no fundo da prateleira
mais alta da estante, e quando eu derrubei os outros livros ele caiu junto. Vamos, leia a
primeira página... Patrick fez o que ela pediu e depois fitou-a, surpreso.
— Este é o seu diário?
Anne suspirou.
— Não, é o diário de Deborah. Tudo o que ela viveu desde que veio morar na
mansão sob a tutela de J.B. e Virgínia está relatado aí.
— E...?
— E foi por isso que fiquei tão furiosa. O diário revela em detalhes o modo
traumático como Deborah sempre foi tratada na mansão, especialmente por J.B. Não era
à toa que Deborah tinha um comportamento tão promíscuo e rebelde. Depois dos abusos
emocionais que sofreu, era óbvio que a coitada tinha de ficar traumatizada e... Ei, o que
foi? Por que está me olhando desse jeito, Patrick?
— Porque não entendi o que você disse. O que significa "traumático" e "abuso
emocional"? Conheço as palavras, claro, mas não nos contexto em que você as utilizou.
— Oh, esses são termos comumente usados pelos psiquiatras e psicólogos dos
anos noventa. "Traumático" é tudo o que causa um trauma, ou seja, um choque violento
capaz de desencadear perturbações psíquicas. E "abuso emocional" é o que você
chamaria de "maus-tratos". Foram feitas muitas descobertas importantes sobre o
comportamento humano desde os primeiros estudos realizados por Sigmund Freud,
Patrick. Uma dessas descobertas diz que ninguém pode abusar emocionalmente de uma
criança, tratando-a como se não valesse nada, e depois esperar que ela se transforme
numa pessoa adulta feliz e bem ajustada.
— Não concordo quando você fala em "abuso". J.B. e Virgínia receberam
Deborah...
Anne encarou-o, surpresa, e Patrick apressou-se a corrigir o que dissera.
— Eu me refiro a você, claro. J.B. e Virgínia receberam você na mansão depois
que os seus pais morreram. Você sempre teve tudo o que quis. Um lar, roupas bonitas
para vestir, cavalos puros-sangues para montar...
— E quanto a amor, Patrick? J.B. e Virgínia nunca deram amor a Deborah, e era
disso que ela mais precisava. A pobrezinha não teve culpa de ter ficado órfã, mas os
dois a trataram como se ela não passasse de um presente de grego. Eles tentaram
transformá-la em algo que ela não era, e depois a culparam por ser revoltada.
— Parece que os homens e mulheres do seu tempo nunca são responsáveis pelas
próprias ações, se tudo o que eles fazem ou são é por culpa das pessoas que os
maltrataram na infância.
— Não é bem assim. Na verdade a questão é um pouco mais complicada que isso
e... — Anne calou-se de repente ao se dar conta do que Patrick acabara de falar.
Eufórica, exclamou: — Ei, você disse "os homens e mulheres do seu tempo"! Por acaso
isso significa que você está acreditando em tudo o que lhe contei ontem?
— Prefiro dizer apenas que a sua história começa a me parecer possível. Quanto
mais ouço você falar, mais fica fácil para eu acreditar que você veio de algum lugar
muito diferente daqui. Por outro lado, quando olho para você vejo uma mulher que
conheço há anos, e daí fica difícil para eu pensar que...
Anne o interrompeu com um rápido beijo, satisfeita com o que acabara de
escutar. Era um bom começo, refletiu ela. Mesmo que no fim Patrick não fosse capaz de
acreditar totalmente na sua estranha história, já era um grande consolo saber que ele não
pensaria nela apenas como Deborah.
— Tudo bem, eu compreendo — murmurou Anne, por fim. — Afinal, às vezes
até eu acho difícil acreditar no que aconteceu comigo.
Patrick assentiu com um gesto de cabeça e indicou o diário, indagando:
— Por que você achou que seria importante me mostrar isto?
— Bem, eu ainda não li tudo o que está escrito, mas espero encontrar uma pista
que me ajude a descobrir quem matou Deborah. Tenho a sensação de foi por este
motivo que viajei no tempo e vim parar aqui. Quero dizer, deve existir uma razão lógica
para o que aconteceu comigo, não é mesmo? Eu me lembro de algo que J.B. falou.. Que
um dia eu saberia por que ele sentia tão grato em relação a mim... Até encontrar o diário
de Deborah eu não tinha parado para pensar no assunto, estava preocupada apenas em
voltar para o futuro.
—Agora você me confundiu de vez. Do que está falando?
— Oh, desculpe. Ontem à noite eu não lhe contei exatamente como vim parar
aqui, contei?
— Você mencionou algo a respeito do medalhão e do retrato, mais nada.
— Nesse caso, deixe-me contar-lhe o resto. Eu encontrei J.B. pela primeira vez
na minha época.
— O quê?!
— Sei que parece absurdo, Patrick, mas J.B. Munro irá viver até os cento e sete
anos de idade. De qualquer modo, a minha unidade... Você se lembra que eu lhe contei
que sou para-médica, não lembra? Pois então, a minha unidade foi chamada para
socorrer J.B, que havia sofrido um ataque cardíaco. Eu nunca o tinha visto antes, mas
ele me reconheceu. A princípio J.B. me confundiu com Deborah e me pediu perdão.
Pensei que ele estivesse desorientado por causa da dor e da idade avançada. Mas depois
J.B. disse que não, que eu não era Deborah, que eu era a "outra". E daí ele me chamou
de Anne.
Patrick permaneceu em silêncio, e Anne prosseguiu:
— J.B. foi levado para o hospital, mas não conseguiu sobreviver até o dia
seguinte... Antes de morrer, porém, ele pediu a uma enfermeira que me dissesse, que um
dia eu saberia por que ele se sentia tão grato em relação a mim.
— A meu ver, se você o socorreu quando ele estava passando mal, era óbvio que
ele lhe seria grato. O que há de estranho nisso? — observou Patrick.
— O estranho é que ele já sabia o meu nome, sem que eu nunca o tivesse visto
antes! No fim, acabei considerando o fato uma mera coincidência. Quem sabe, talvez
J.B. houvesse conhecido alguma Anne no passado... E então, meses mais tarde, a
mansão foi aberta à visitação pública.
— A visitação pública?
— Sim. J.B. deixou a mansão de herança para a cidade, pois não tinha herdeiros
diretos. A guia turística que acompanhou o meu grupo durante a visita nos contou a
história do assassinato de Deborah. E adivinhe quem foi considerado o principal
suspeito do crime?
— Não faço a menor idéia.
— Foi você.
— Eu?! — Patrick ficou de pé num pulo. — Por Deus, eu não assassinei
Deborah! Por que alguém pensaria que... Oh, céus, o que estou dizendo?
— Eu sei, eu sei... Você não pode acreditar que isso aconteceu porque, se eu sou
Deborah, então não houve assassinato nenhum. Mas o crime realmente aconteceu, eu
juro! E você foi considerado suspeito porque diziam que na época você e Deborah eram
amantes.
— Imagine! Deborah e eu, amantes? Nunca!
— O fato é que você desapareceu logo depois que o corpo de Deborah foi
encontrado numa caverna dentro dos limites da propriedade. E nunca mais ninguém viu
você outra vez.
Enfiando as mãos nos bolsos da calça, Patrick andou de um lado para outro na
sala e depois parou perto da janela.
Embora ele estivesse de costas, Anne percebeu pela postura do corpo másculo
que ele estava tenso, nervoso.
Depois de alguns minutos, Patrick virou-se para encará-la. Ao ver a dor
estampada nos olhos dele, Anne desejou nunca ter lhe falado sobre o futuro. Mas fora
obrigada a falar, pois precisava da ajuda de Patrick para cumprir a missão que parecia
ser a razão da sua viagem no tempo.
Anne recordou-se da conversa que tivera com os pais naquele fatídico dia dos
anos 90, antes de sair para visitar a mansão Munro. Seus pais haviam dito que ela
precisava ter vida própria... Que ironia! Ali estava ela, agora, sendo obrigada a viver a
vida de outra mulher!
Anne levantou-se do sofá e aproximou-se do homem pelo qual se apaixonara
perdidamente. A idéia de que não teria uma vida inteira para passar ao lado dele partia-
lhe o coração em milhares de pedaços.
— Patrick, eu não lhe contei tudo isso só para magoá-lo — murmurou ela,
acariciando-lhe o rosto. — Oh, eu sei o que você está pensando. Deve ser algo do tipo
"como posso ficar magoado se tudo o que ouvi não passa de um produto da imaginação
de Deborah?" Mas a história que lhe contei é a mais pura verdade, Patrick, e no fundo
você sabe disso, não sabe?
— Eu... eu quero acreditar em você, mas...
— Por favor, me escute. Encontrar o diário me ajudou a entender o que aconteceu
comigo. Não foi só por causa de Deborah. Foi por sua causa que viajei no tempo e vim
parar aqui, Patrick.
14
Patrick não conseguiu decidir se continuava ouvindo, se ia embora enquanto a sua
sanidade mental ainda estava intacta, ou se mandava Deborah — ou Anne? — sumir da
sua frente. No fim, limitou-se a fitá-la sem dizer nada, observando os olhos de um tom
de verde mais escuro que o normal e que eram a única evidência física de que ela podia
estar falando a verdade.
Por Deus, como queria acreditar na história maluca que acabara de escutar... Mas
como poderia? E agora, para piorar a situação, ela estava afirmando que a "viagem no
tempo" acontecera por causa dele!
— Por que você acha que é por minha causa que veio parar aqui? — indagou
Patrick, por fim, vencido pela curiosidade.
— Porque isso é a única coisa que faz sentido, se pensarmos com um pouco de
lógica — argumentou Anne.
— Sentido? Lógica?
— Oh, está bem, talvez eu não tenha escolhido as palavras mais adequadas para
explicar o caso. Mas já que você ouviu o que eu tinha a dizer até agora, por que não tem
mais um pouco de paciência e termina de escutar as minhas loucuras?
Patrick franziu a testa. Talvez a mulher à sua frente não fosse mesmo Deborah,
quem sabe?. Afinal, Deborah Munro nunca tivera muito senso de humor. Ela não
costumava brincar, e às vezes até se irritava quando ele tentava fazê-la rir. Patrick
gostou do sorriso que viu nos lábios da mulher ruiva, um sorriso que fazia os olhos dela
brilharem. Olhos mais escuros do que deveriam ser, repetiu para si mesmo.
— Tudo bem, pode falar. Prometo escutar com atenção — concordou ele,
sorrindo também.
— Oh! — murmurou Anne, encantada, acariciando-lhe os lábios com a ponta dos
dedos. — Gosto tanto quando você sorri... Mas você não faz isso com muita freqüência,
não é mesmo?
Acho que não, pensou Patrick. Afinal, que motivos tivera para sorrir nos últimos
anos? Ganhar cada vez mais dinheiro? Aumentar cada vez mais o império econômico de
J.B. Munro?
— Tem razão, não costumo sorrir muito — respondeu em voz alta.
— Sendo assim, vou considerar uma façanha histórica o fato de tê-lo feito sorrir.
Patrick beijou-lhe as mãos, declarando com voz rouca:
— Realmente, foi uma façanha.
Não importava se essa mulher que dizia se chamar Anne era ou não uma Deborah
diferente, mudada. Só o que importava era que ele a amava. Talvez estivesse
enlouquecendo ao admitir isso, mas nesse caso a loucura não era algo tão ruim quanto
sempre imaginara que fosse.
De repente, Anne soltou uma exclamação abafada.
— O que foi? — indagou Patrick. — Algum problema?
— Não, eu apenas... Isto é... Corrija-me se eu estiver errada, mas se o modo como
você estava olhando para mim há poucos segundos significa o que eu penso que
significa... Então...
— Então o quê? — perguntou ele, tornando a sorrir. Sorrir por causa do jeito que
ela estava falando, sem terminar nenhuma frase; por causa do jeito como ela havia
enrubescido. E também porque era bom sorrir outra vez.
— Então eu... eu também te amo.
Patrick abraçou-a com força e murmurou, emocionado:
— Você entendeu certo o meu olhar. Eu te amo, sim, e... Ei, por que está
chorando?
— Oh, é horrível... Quero dizer, é maravilhoso, mas é horrível também —
soluçou Anne. — Eu... eu sempre quis encontrar um homem como você, e estava
mesmo precisando de uma vida nova. Agora aqui está você, e eu tenho uma vida nova.
O problema é que essa é a vida de outra mulher! Não posso continuar fingindo que sou
Deborah e nem posso ficar com você para sempre. Terei de voltar para o futuro assim
que terminar de cumprir a missão que vim realizar aqui, embora ainda não saiba que
missão é essa e... Droga, isso não é justo!
Patrick enxugou-lhe as lágrimas, sem saber o que dizer para confortá-la. Toda
essa história de viver a vida de outra mulher, viajar no tempo e cumprir uma missão
misteriosa... Tudo isso era loucura, não era? De repente, ele entrou em pânico. E se
fosse tudo verdade? Não iria querer perder a mulher amada para sempre!
— Acalme-se, querida, por favor. Eu também não quero perder você — declarou
Patrick. — E para ficarmos juntos para sempre, só há uma solução: contar a J.B. sobre
nós dois.
— Não! Perdeu o juízo, por acaso? Você não pode contar nada a J.B! —
protestou Anne, alarmada.
— É claro que posso. Ou melhor, devo. Eu já o traí, e não quero piorar a situação
escondendo a verdade dele. J.B. não merece isso.
— Mas...
— Não precisa se preocupar, querida. Acho que J.B. concordará com a idéia de
lhe conceder o divórcio. Desse modo a sua versão da história irá se transformar em
realidade, pois pretendo ir embora de Oklahoma com você e ninguém aqui me verá
outra vez. Então, nós poderemos ficar juntos para sempre.
— Patrick, eu já lhe disse mais de uma vez, não sou casada com J.B, portanto não
posso me divorciar dele. E você não o traiu, entendeu? Além disso, essa não é a minha
versão da história, é o que realmente aconteceu! — retrucou Anne, a tristeza substituída
pela raiva. Tomando fôlego, prosseguiu: — O diário de Deborah pode me fornecer as
peças que faltam para terminar de montar o quebra-cabeça. Ela não escreveu apenas
sobre você, J.B. e Virgínia, escreveu também sobre outras pessoas, amigas e inimigas.
Não tive tempo de ler o diário até o fim porque J.B. mandou me chamar para o café da
manhã. Mas acredito que, quando acabar a leitura, terei encontrado uma pista do homem
que assassinou Deborah. Livrarei você de qualquer suspeita relacionada ao crime, e
você não precisará se mudar para outra parte qualquer do país, fugido da polícia —
finalizou ela.
— Você acha que é essa a sua missão, aqui? Descobrir a identidade de um
assassino?
— Creio que sim. Senão, a troco de que eu teria vindo para o passado? A minha
viagem no tempo não foi um mero acidente. As coincidências são muitas.
— Que coincidências?
— A primeira delas é o fato de eu ser parecidíssima com Deborah, embora não
sejamos parentas. E quanto ao medalhão de ouro? Você deu a Deborah uma jóia que era
da sua mãe, certo?
— Sim.
— Pois no ano de mil novecentos e noventa e quatro, o medalhão foi parar nas
minhas mãos. Eu nasci quarenta e um anos depois de Deborah ter morrido, e acabei
ganhando da minha mãe uma jóia relacionada a você. Além disso, conheci J.B. horas
antes de ele morrer. E J.B. pediu a uma enfermeira que me dissesse que um dia eu
saberia por que ele se sentia grato em relação a mim.
— Essa coincidência é fácil de explicar — observou Patrick. — Como eu já falei
antes, se foi você que socorreu J.B. quando ele passou mal, é óbvio que...
Anne o interrompeu, categórica:
— Aí é que você se engana! Lendo o diário de Deborah, descobri que você
sempre foi importante para J.B, como o filho que ele nunca teve. Por essa razão,
acredito que J.B. era grato a mim por eu ter descoberto quem matou Deborah. Eu vi o
assassino, Patrick, sou a única pessoa que pode identificá-lo! Se eu entregá-lo à polícia,
você ficará livre de qualquer suspeita.
— Deborah...
— Anne. O meu nome é Anne!
— Está bem... Anne.
Ela sorriu, murmurando:
— Ah, se você soubesse quantas vezes sonhei com o momento em que você me
chamaria pelo meu nome... Obrigada. Você acaba de me fazer muito feliz.
Patrick beijou-a de leve no rosto, afirmando:
— Alegro-me por tê-la feito feliz, mas isso não muda nada, Anne. Mesmo que
você descubra quem é o tal assassino, irei embora de Oklahoma. Há tempos venho
pensando no assunto, e agora tenho certeza de que essa é a melhor decisão a tomar.
Vamos, venha comigo.
Edith não conseguiu decifrar a expressão no rosto de J.B. Munro. Ele não ficara
furioso com a notícia de que a esposa o traía com seu sócio e amigo, como a criada
havia imaginado, mas também não entrara em desespero. Além da cicatriz em forma de
"C" que começara a pulsar sem parar, J.B. Munro não esboçara a menor reação.
Edith tentou adivinhar o que significava a aparente apatia do patrão. Talvez ele
não houvesse acreditado no que ouvira e estivesse prestes a mandá-la para o olho da
rua... A criada torceu as mãos, nervosa. Embora vivesse reclamando de trabalhar na
mansão, sabia que não encontraria outro emprego onde o salário fosse tão bom.
J.B. esfregou a cicatriz com a ponta dos dedos e abriu uma das gavetas de sua
mesa de trabalho.
Edith engoliu em seco e balbuciou:
— Sr. Munro... Espero que... que o senhor não me despeça por causa do... do que
lhe contei. Eu...
J.B. interrompeu a fala da criada com um olhar gélido. Em seguida, tirou da
gaveta um bloquinho com capa de couro. Abriu-o e começou a escrever algo numa das
folhas internas. Será que ele está preenchendo um cheque?, perguntou-se Edith, em
pensamento. Pelo que os outros empregados da mansão lhe haviam contado, J.B. Munro
estava sempre pagando alguém para ficar de boca fechada em relação a um escândalo
ou outro.
É uma sorte que o patrão seja rico, refletiu Edith; afinal, com a mulher que ele
tem... Satisfeita consigo mesma e com a perspectiva de ganhar um dinheiro extra, a
criada comentou;
— Fique tranqüilo, Sr. Munro, sei guardar um segredo quando necessário.
— Sabe mesmo?
— Sim, senhor. Quando é preciso, sei ficar de boca fechada.
Ao terminar de falar Edith esticou o pescoço, tentando ver quanto valia o seu
silêncio. Ao ler o valor do cheque, arregalou os olhos. Uma fortuna! O patrão iria lhe
dar uma fortuna! Ah, como era sortuda!
— Aqui está — disse J.B, entregando o cheque à criada. — Muito bem, agora
você tem uma hora para fazer as malas e pegar um trem para bem longe de Munro.
Edith ficou perplexa.
— O senhor quer que eu vá embora da cidade? Mas... Eu não tenho parentes nem
amigos em outro lugar. Vivo em Munro desde que nasci e...
— Com o dinheiro que estou lhe dando você poderá comprar amigos em qualquer
lugar do mundo.
— Mas... Por favor...
— Uma hora, Edith. A menos, é claro, que você queira devolver o cheque.
— Não! Não, eu... Humm... Já estou indo, senhor.
— Ótimo. Estamos combinados, então. Em troca do cheque, você guardará
segredo da história que me contou. No entanto, para o caso de você decidir que não
consegue ficar de boca fechada, quero que desapareça da minha cidade.
— O Sr. Munro irá recebê-lo agora, Sr. MacKinnon — disse o mordomo,
Simmons, abrindo a porta.
Patrick respirou fundo e entrou no escritório. Houvera um tempo em que
defrontar J.B. o enchia de apreensão. Agora, porém, era apenas a sensação de culpa pelo
que acontecera na noite passada que o perturbava. Tinha de contar a J.B, e agora,
mesmo que Deborah — ou Anne? — fosse outra.
Ao olhar para J.B, que estava sentado à mesa de trabalho, Patrick assustou-se
com a expressão de raiva que viu no rosto do sócio e amigo. Havia se preparado para
enfrentar a fúria de J.B, claro, mas depois de contar o que acontecera, e não antes..
Maldição! Quem teria contado a J.B?
— Você já sabe, não é? — perguntou Patrick.
— Sim. Foi uma das criadas que me contou. Ela viu Deborah saindo da casa de
hóspedes durante a madrugada — respondeu J.B. De repente, sua raiva pareceu
transformar-se em pesar. — Eu esperava que você desmentisse tudo. Quando o
mordomo disse que você desejava falar comigo, rezei para que você tivesse vindo me
dizer que nada de mais havia acontecido e...
— Por favor, J.B, não fale assim — murmurou Patrick, odiando-se por
desapontar o homem a quem considerava quase como um pai. — Não quero mentir para
você. Deborah e eu passamos parte da noite juntos, sim. E você nem pode imaginar o
quanto lamento a dor que estou lhe causando.
— Lamenta? Você lamenta? Ha! Não acha essa palavra um pouco fraca, diante
das circunstâncias?
Patrick permaneceu calado, sabendo que merecia ser tratado com sarcasmo e
desprezo.
Dando um soco na mesa, J.B. explodiu:
— Você foi o primeiro da turma na faculdade, Patrick. Vamos, diga alguma
coisa! Um homem com a sua inteligência não deveria ter problemas para se comunicar.
Céus, depois de tudo o que fiz por você!
— Continuo sendo grato por tudo o que você fez por mim — disse Patrick, por
fi m, mesmo sabendo que além do seu primeiro emprego na Ferrovia Munro J.B. não
lhe dera nada de graça; ele tivera de dar duro para chegar onde chegara.
— Grato? E é desse jeito que você mostra a sua gratidão? Depois de tudo o que
investi em você, de tudo o que lhe ensinei, você demonstra gratidão sendo desleal? É
este o pagamento que recebo por ter sido seu amigo por tê-lo acolhido no seio da minha
família? Por Deus. Patrick, como pôde fazer uma coisa dessas? Como? Por acaso você
me odeia por ter casado com Deborah? É este o seu jeito de vingar-se por eu ter...
— Não — interrompeu-o Patrick. — Não fiz nada por vingança. Há muitos anos
já perdoei o fato de você ter desposado Deborah.
— Não acredito!
— Você tem todos os motivos do mundo para não acreditar, mas é verdade.
— Se é mesmo verdade, então como pôde cometer tamanha estupidez? Imaginei
que você fosse mais sensato, Patrick. Você nunca foi homem de deixar a integridade e a
moral de lado por causa de gente inferior a você. Ainda mais uma vagabunda como
Deborah!
Três dias atrás as palavras de J.B. não teriam insultado Patrick. Nesse momento,
porém, elas o encheram de revolta.
— Deborah é sua esposa, homem! E antes disso ela esteve sob a sua tutela, fez
parte da sua família! Como tem coragem de chamá-la de vagabunda?
— Porque é verdade, claro — retrucou J.B, surpreso com a reação do sócio. —
Você, em especial, já devia saber disso. Deborah poderia ter arruinado a sua vida,
Patrick, mas eu impedi que isso acontecesse. Não percebe o sacrifício que fiz para evitar
que o seu brilhante futuro fosse destruído por aquela maldita sem-vergonha?
Maldita. Sem-vergonha.
— Cale a boca, J.B! Não diga mais uma palavra! — esbravejou Patrick,
contendo-se para não dar um soco no sócio.
As palavras de Anne — ou Deborah? — voltaram-lhe à mente, fazendo-o refletir
melhor sobre o passado e o presente. Sempre acreditara que o modo como J.B. tratava
Deborah não era prejudicial, que ele era rígido apenas para discipliná-la. Só agora
percebia que J.B. odiava Deborah.
— Você a despreza, não é mesmo? — perguntou Patrick.
— Sim. Ela me deu razões de sobra para desprezá-la.
— Por Deus, homem, durante algum tempo Deborah foi praticamente sua filha!
— Ela esteve sob a minha tutela, sim, mas e daí? Desde que chegou aqui,
Deborah só trouxe problemas para Virgínia e para mim. — J.B. suspirou antes de
declarar: — Eu precisava de uma nova esposa, Patrick, e precisava salvar você da
destruição. Cometi um grande erro ao não conservar Deborah longe daqui quando tive a
chance de fazê-lo. Por sorte, ainda há tempo para corrigir o meu erro.
Patrick lembrou-se de Deborah — ou Anne? — ter dito que temia que J.B. a
mandasse para um hospício. Céus, ela não havia exagerado nem um pouco!
— Não, J.B, você não vai afastar Deborah da mansão. Ela irá embora por vontade
própria, e eu irei junto. Como pode ver, você não é único que pode corrigir os erros que
cometeu no passado.
J.B. ficou pálido de espanto.
— Você enlouqueceu, Patrick?
— Não seja tolo. É claro que não enlouqueci.
— Mas então...
— Ouça, por que não concede o divórcio a Deborah? Pense nela, pelo menos uma
vez na vida. Deus é testemunha de que se você tivesse tratado Deborah com um mínimo
de gentileza ao longo dos anos, a situação poderia ser diferente hoje.
— Ouça você, Patrick! Para mim, é evidente que você perdeu o juízo. Mas tudo
bem, estou disposto a perdoar este seu momento de loucura. Sim, eu o perdoarei, e
mandarei Deborah para um lugar tão longe daqui que ela nunca mais criará problemas
para nós. O que me diz, aceita a minha sugestão? Vamos lá, Patrick, não desperdice esta
oportunidade. Use a sua inteligência, rapaz, caso contrário acabará por arruiná-lo!
Patrick ficou chocado com a falta de compaixão de J.B. em relação a Deborah.
Sabia que o casamento dos dois não passava de uma farsa, e já se acostumara a ver o
sócio tendo ataques de raiva quando Deborah se comportava "mal". Nunca imaginara,
porém, que J.B. a desprezasse tanto, a ponto de não ter o menor remorso diante da idéia
de expulsá-la da sua vida.
— Vamos, aceite a minha sugestão — insistiu J.B. — Esqueça Deborah, caso
contrário juro que perderá tudo o que conquistou nos últimos oito anos.
Em lugar da admiração, do respeito e da amizade que já havia sentido pelo sócio,
agora Patrick só conseguia sentir piedade. Com a voz carregada de pesar, retrucou:
— Pensei que a nossa conversa fosse ser diferente, J.B. Você disse que me
perdoaria... Mas será que o seu orgulho permitiria que você me desse o perdão?
— É tolice ser orgulhoso, Patrick. Não me interprete mal; é óbvio que estou
zangado e desapontado com você. Mas tenho certeza de que dentro de pouco tempo o
nosso relacionamento voltará ao normal.
— Você está desapontado... Levei a sua esposa para a cama, e tudo o que você
consegue sentir é... desapontamento. Mas não porque a sua esposa rompeu os votos
sagrados do casamento e o traiu. Você apenas não gostou do que aconteceu porque eu,
como um garoto desobediente, atrapalhei os planos que você tinha feito para mim,
certo?
— Ora, e que outra reação você esperava de mim? Existem só dez anos de
diferença entre as nossas idades, Patrick, mas eu sempre considerei você como um filho,
e não como um simples sócio nos negócios. Quando vejo você querendo seguir o
caminho errado, é evidente que me sinto desapontado. — J.B. ficou de pé e aproximou-
se de Patrick. Colocando as mãos sobre os ombros dele, argumentou: — E assim que os
pais costumam agir. Eles sempre pensam no bem dos filhos.
Revoltado, enojado, Patrick repeliu as mãos de J.B.
— Por acaso os pais não pensam no bem das filhas também, seu miserável?
Deborah não é uma "maldita sem-vergonha", muito menos uma "vagabunda"! Ela
apenas acreditou que era tudo isso por causa do modo como você a tratou durante esses
anos todos. Você pode dar ou não o divórcio a Deborah, tanto faz. De um jeito ou de
outro, ela irá embora daqui comigo.
— Não faça uma loucura dessas, Patrick — implorou J.B.. — Deborah irá
arruiná-lo, e você sabe muito bem disso!
— Ao contrário, J.B, Deborah é a única pessoa que pode me salvar — respondeu
ele, antes de sair do escritório batendo a porta.
Eu o amo, Diário. Talvez essa afirmação deixe você chocado. Ou talvez não. Talvez, no
fundo, você já soubesse o tempo todo que existia escondida no meu coração a capacidade de
amar. Sim, com certeza existe, caso contrário eu não estaria amando agora!
A princípio pensei que ele fosse apenas um garoto bobo, embora atraente. Eu o
conheci no campo de golfe, onde ele arranjou um emprego temporário de verão para
ganhar um dinheirinho extra.
O mais incrível é que ele não sabia quem eu era! Descobri depois que a família
dele mudou-se para Munro há pouco tempo. Achei engraçado quando ele começou a
flertar comigo. Imagine só, um garoto ingênuo na idade de entrar para a faculdade
flertando comigo! Não há nada no mundo mais irritante que um rapaz que pensa que
trocar alguns beijos com uma garota no banco traseiro de um automóvel é o supra-
sumo do prazer! O problema é que naquele dia eu havia brigado com J.B. por um
motivo que nem lembro agora, portanto é fácil adivinhar o que eu fiz, não é mesmo,
Diário?
Sim, você acertou. Marquei um encontro com ele no bosque que fica perto da
mansão. Dá para acreditar nisso? E ele ainda queria vir me apanhar em casa! Tive de
dizer que o meu "pai" era muito severo e não permitia que eu saísse com rapazes,
portanto o encontro precisava ser secreto.
Ah, Diário, ele me tratou como nenhum outro homem havia me tratado antes! E
você sabe que eu já tive muitos homens... Nós ficamos conversando. Parece loucura, eu
sei, mas é verdade; ele não queria fazer nada além de conversar. No começo eu nem
sabia o que dizer. Veja só, eu, encabulada, sem saber o que falar! Por falta de outro
assunto, fiz perguntas sobre a vida dele. Descobri que ele é mais velho do que parece,
tem apenas dois anos menos que eu. Descobri também que ele é muito religioso. Isso
me deixou constrangida, e você sabe muito bem por que, não é, Diário? Fiquei
esperando que um raio divino caísse sobre a cabeça do pobrezinho só porque ele
estava conversando comigo. Fiquei me sentindo culpada depois desse primeiro
encontro, por não ter contado a ele quem eu era, na realidade.
Agora, já faz três semanas que o conheço. Sei que ele merece um pouco mais de
honestidade da minha parte. Por outro lado, sei também que se contar a verdade irei
perdê-lo... Por isso, continuo encontrando-o às escondidas, e o fiz jurar que não
contaria a ninguém que estamos "namorando".
Ontem à noite ele disse que me amava e que queria ficar comigo para sempre.
Ele me contou também que quer ser pastor da igreja que freqüenta. Perfeito, não é?
Deborah e um pastor religioso... Seria cômico, se não fosse trágico.
Na noite passada, ele me beijou pela primeira vez. E me disse que eu era linda.
Anne enxugou uma lágrima que lhe escorreu pelo rosto e fechou o diário. Era
comovente descobrir que pelo menos uma vez na vida a pobrezinha conhecera o
verdadeiro amor. Depois de ter sofrido tanto, ela bem que merecia um pouco de
felicidade.
Olhando ao redor, Anne perguntou-se se Deborah não teria escrito essas linhas no
mesmo quarto em que ela se encontrava agora. Quantas horas Deborah não teria ficado
ali, deitada na cama, fantasiando a respeito de uma vida ao lado do homem que a achava
linda? Será que havia se olhado no espelho de moldura dourada sobre a cômoda e
tentado ver a imagem de beleza que ele via? Talvez não, pois ela deixara o diário
escondido na casa de hóspedes. Ou será que escondera o diário lá mais tarde?
Anne queria saber mais sobre a vida de Deborah. Estava curiosa, claro. Além
disso, ainda não descobrira nenhuma pista relacionada ao homem que assassinara
Deborah. Portanto, era imperativo que continuasse a ler o diário. Ao mesmo tempo,
porém, como teria sido bom se o diário houvesse terminado com aquelas palavras tão
comoventes: E ele me disse que eu era linda...
Com um suspiro, Anne reabriu o diário e prosseguiu com a leitura. Durante cinco
páginas Deborah descreveu mais detalhes do seu relacionamento com o rapaz. Os dois
continuaram se encontrando em segredo, embora o jovem insistisse em conhecer a
família da amada e mostrar que as suas intenções eram sérias. Apesar de sentir-se
culpada por enganar o rapaz, Deborah hesitava em contar-lhe a verdade porque temia
perder o único amor verdadeiro que conhecera na vida.
A apreensão de Anne foi crescendo a cada nova linha que lia, pois Deborah tinha
escrito que estava apavorada com a idéia de que J.B. pudesse desconfiar de alguma
coisa.
E, no parágrafo seguinte, Deborah revelara ao diário que estava grávida.
15
Grávida!
Sentindo o coração disparado, Anne verificou a data no topo do parágrafo que
acabara de ler. Será que...
Sim! Deborah engravidara quatro anos atrás. Então fora por isso que J.B.
mantivera Deborah afastada da mansão! Era isso que Edith havia começado contar a
Katy naquele primeiro dia, antes de ser interrompida pela chegada de J.B!
Ansiosa, Anne continuou lendo o diário.
Deborah tinha ficado feliz ao descobrir que esperava um filho. Ao mesmo tempo,
ficara amedrontada. Se contasse ao amante que estava grávida, destruiria o futuro dele
como pastor religioso. Se J.B. descobrisse sobre a gravidez, era o futuro dela mesma
que passaria a correr perigo. O casamento com J.B. não dera certo, como Deborah havia
imaginado que daria. Os dois brigavam o tempo todo, por qualquer motivo.
Para resolver a situação, Deborah tentou convencer o amante de que não podiam
mais se ver, mas ele se recusou a aceitar o fim do relacionamento. Quando Deborah,
num gesto de desespero, declarou que não o amava mais, o rapaz não acreditou e
ameaçou ir conversar com J.B, supondo que ele era o pai dela, decidido a pedir a mão
de Deborah em casamento. Finalmente percebendo que o único jeito de afastar o amante
seria contar-lhe a verdade, Deborah falou sobre o bebê.
O rapaz não reagiu como ela esperava. Em vez de ficar com raiva ou medo, ele se
mostrou feliz. Chorando de emoção, abraçou Deborah e declarou que agora a amava
mais do que nunca.
Ao ler esse trecho do diário, Anne sorriu. Que sujeito incrível! Para um homem
dos anos 20 que pretendia ser pastor religioso, até que ele reagira de um jeito bem
"moderno" ao saber que engravidara a mulher com quem tinha um relacionamento
considerado pecaminoso na época. Suspirando, Anne, retomou a leitura.
O amante de Deborah não reagiu tão bem quando ela lhe contou o resto: que era
casada, que já havia tido outros amantes e tudo o mais. O rapaz ficou ao mesmo tempo
magoado e furioso, e foi com alívio que Deborah o viu ir embora do bosque onde
costumavam se encontrar. Ela lamentaria para sempre a perda do único amor verdadeiro
que conhecera, mas pelo menos teria o consolo de saber que havia feito tudo o que era
necessário para evitar a ruína do homem amado.
Os olhos de Anne se encheram de lágrimas de emoção. Pobre Deborah... O que
acontecera com ela e com bebê? Anne sabia que J.B. afastara Deborah da mansão,
graças ao mexerico de Edith, mas não sabia o que havia acontecido depois. Será que
Deborah tivera o bebê? Em caso afirmativo, onde estaria a criança, agora?
Anne continuou lendo o diário.
Para surpresa de Deborah, o seu amante foi procurar J.B. a fim de exigir que ele
concedesse o divórcio à esposa, para que os dois pudessem se casar. J.B. ficou
enfurecido e ameaçou o rapaz, dizendo que preferia arruinar financeiramente a família
dele a permitir que um escândalo manchasse a boa reputação do sobrenome Munro. O
rapaz, por sua vez, não se deixou intimidar e retrucou que J.B. podia fazer o que bem
entendesse; só o que ele queria era casar-se com Deborah, que estava esperando um
filho seu.
Mas Deborah sabia do que J.B. era capaz. Sabia que ninguém no mundo seria
capaz de vencer J.B. numa guerra de vontades. Por essa razão, quando J.B. mentiu para
o rapaz dizendo que ele e Deborah também tinham dormido juntos nos últimos meses,
ela confirmou a mentira. Fingindo um pouco caso que estava longe de sentir, Deborah
afirmara que qualquer um dos dois podia ser o pai do bebê que estava esperando. Ao ver
o desespero de seu amante ela sentiu que morria por dentro, mas fez questão de desferir
o golpe final dizendo ao rapaz:
— Para mim tanto faz quem é o pai do bebê, desde que eu possa continuar a viver
cercada pelo luxo ao qual estou acostumada. E você não é rico o bastante para me cercar
de luxo, certo?
Nunca mais Deborah viu o rapaz outra vez. Ele desapareceu, e a família dele
aceitou a generosa "oferta" que J.B. lhe fez para ir embora da cidade. Antes de ser
mandada para um abrigo para mães solteiras, Deborah implorou a J.B. que a deixasse
ficar com o bebê para criá-lo como se fosse filho dos dois, mas ele não quis nem saber
da idéia. Em vez disso, J.B. fez planos para entregar a criança ao orfanato vizinho ao
abrigo.
O parágrafo seguinte do diário dizia:
O meu bebê é um menino. Ele é lindo, embora tenha cabelos ruivos como os meus,
e não cabelos escuros como os do pai. Mas eu insisti para que meu filho tivesse o mesmo
nome do pai: Henry.
Havia mais parágrafos depois. Alguns falavam do sofrimento de Deborah ao
deixar o bebê no orfanato, outros mencionavam o seu retorno à mansão Munro.
Deborah quase morrera de tristeza ao dar um beijo de despedida no filho; primeiro fora
obrigada a separar-se do homem amado, agora era obrigada a abandonar o bebê...
Deborah voltara para a mansão com o coração cheio de ódio e amargura. J.B. a
afastara das duas pessoas que ela mais amava no mundo, e ela jamais o perdoaria por ter
feito isso.
Sem que J.B. soubesse, Deborah havia continuado a visitar o filho no orfanato.
Entregava todo o dinheiro que conseguia juntar à instituição, impondo apenas uma
condição: o bebê não devia ser entregue para adoção.
Anne fechou o diário com as mãos trêmulas e a mente em turbilhão. A última
entrada do diário era datada de seis meses atrás, o que significava que o filho de
Deborah ainda devia estar no orfanato mencionado.
E o nome da criança era Henry.
Henry.
O pai de Anne também se chamava Henry. E nascera no mesmo dia que o filho
de Deborah.
Anne saiu correndo do quarto, ansiosa para ir ao encontro de Patrick. Encontrou
Katy no corredor, e a criada avisou que J.B. mandara chamá-la. Ignorando o recado,
Anne continuou correndo até chegar à casa de hóspedes. Abriu a porta da sala e quase
deu um encontrão em Patrick, que estava saindo com uma mala nas mãos.
— Patrick, você precisa me levar para o Estado de Missouri! — disse ela, sem
fôlego.
— Mudou de idéia? — perguntou ele, largando a mala no chão. — Quer ir
embora daqui comigo?
— Não... Isto é, eu quero ir até o Estado de Missouri, mas só por um dia. E você,
para onde estava indo com essa mala? Pensei que ainda fosse demorar alguns dias para
ir embora daqui.
— Isso foi o que eu lhe disse antes, mas agora...
— Oh, não! Você contou a J.B. sobre nós?
— Contei.
— Céus! Será que você tem noção do que fez?
— Claro que tenho. Eu fiz apenas algo já deveria ter feito há muito tempo. Além
disso, uma das criadas viu você saindo da casa de hóspedes hoje de madrugada e foi
falar com J.B. Ele já sabia de tudo, antes mesmo de eu abrir a boca.
— E qual foi a reação de J.B? — indagou Anne, aflita. — Ele ficou muito
furioso?
— Ficou, mas só porque eu me recusei a seguir os planos que ele havia feito para
o meu futuro. Você tinha razão, sabe? J.B. nunca se importou com você. A única coisa
que o preocupava era a possibilidade de você arruinar a minha vida. — Patrick sorriu e
acariciou o rosto de Anne, acrescentando: — Mas eu disse a ele que você me salvou.
— Você é um bom homem, Patrick MacKinnon. Ninguém mais teria tido
coragem de defender Deborah. Talvez você esteja certo... Talvez ir para longe de J.B.
seja o melhor para você.
— Você é o que pode existir de melhor para mim, querida. E mesmo que você
não concordasse em partir comigo, eu arranjaria um jeito de afastá-la de J.B.
Anne estremeceu e aninhou-se nos braços de Patrick. Abraçou-o com força,
emocionada. Não tinha mais a sensação de estar levando a existência de outra mulher,
pois agora sabia que, assim como Deborah havia encontrado o grande amor da sua vida,
ela também encontrara o seu grande amor. O problema era que mais cedo ou mais tarde
também seria obrigada a abandonar o homem amado, como acontecera com Deborah.
— Patrick, eu terminei de ler o diário de Deborah — disse Anne, de repente. —
Ela... teve um filho.
— O quê?! Um filho?
— Sim. Lembra-se de quando Deborah passou quase um ano longe da mansão,
quatro anos atrás? Pois então, J.B. a mandou para um abrigo de mães solteiras no Estado
de Missouri. Ela permaneceu lá até o nascimento do bebê, um menino.
— Um filho... — murmurou Patrick, incrédulo. — Mas por que J.B. mandaria a
esposa para um abrigo de mães solteiras? Ele sempre quis ter um filho, e...
— J.B. não era o pai do menino — explicou Anne. Antes que Patrick pudesse
dizer qualquer coisa, ela prosseguiu: — Não tenho tempo agora para tentar convencê-lo
mais uma vez de que não sou Deborah. Só o que posso lhe dizer por enquanto é que o
filho de Deborah é mais uma das coincidências que já mencionei antes. O menino deve
estar com uns três anos de idade, e ainda se encontra no orfanato em que J.B. mandou
colocá-lo, no Estado de Missouri. E eu preciso vê-lo para ter certeza de uma coisa.
— Você quer que eu a leve até lá?
— Quero.
— E depois?
— Não sei. Mas se o menino for quem eu estou pensando que ele é, serei
obrigada, mais que nunca, a voltar para o futuro.
Franklin Thomas sentiu o sangue gelar nas veias ao ver a mulher no interior do
luxuoso automóvel que atravessou os portões da mansão. A mesma mulher que julgara
morta e cujo corpo abandonara dentro uma caverna. Mas ali estava ela, viva, acomodada
no banco do passageiro, conversando com o homem moreno que dirigia o automóvel.
Dando partida no motor do automóvel que comprara assim que chegara a Munro,
Franklin começou a seguir o outro veículo. Em algum momento, de algum modo, teria
de separar Deborah Munro do homem que a acompanhava e matá-la.
— Sra. Munro, como vai?
A mulher sentada atrás da escrivaninha de mogno levantou-se da cadeira com um
sorriso nos lábios. Ela usava os cabelos presos num coque e usava roupas simples mas
elegantes. A pequena placa de bronze sobre a escrivaninha identificava a mulher como
"Sra. Phillips".
A Sra. Phillips aproximou-se. Cumprimentou Anne com um aperto de mão, fez
um aceno com a cabeça na direção de Patrick e em seguida comentou:
— Que bom vê-la novamente, Sra. Munro. Fazia tempo que a senhora não vinha
até aqui. Precisamos conversar sobre um assunto muito importante relacionado ao...
— Quero ver Henry — disse Anne, interrompendo-a. — Ele ainda está aqui, não
está?
— Sim, é claro, mas...
— Discutiremos o tal assunto importante mais tarde, se não importa.
As palavras de Anne soaram bruscas, mas ela estava tão ansiosa para ver o
menino que nem se deu conta disso. Seu pai... O filho de Deborah podia ser o seu pai!
Durante a viagem de três horas entre Munro e a pequena cidade na divisa dos Estados
de Oklahoma e Missouri, ela não conseguira pensar em outra coisa.
— Como preferir, Sra. Munro. Com licença, vou buscar Henry.
A Sra. Phillips saiu da sala.
Anne fitou Patrick, tentando decifrar a expressão que dominava o rosto másculo.
Ele permanecera calado durante toda a viagem. E agora, o que estaria pensando? Será
que passara a acreditar que Deborah e Anne realmente eram duas mulheres diferentes?
Ou teria concluído que "Deborah" enlouquecera de vez?
Bem, pelo menos ele estava ali, a seu lado, e isso já era um bom sinal.
— A Sra. Phillips me reconheceu, Patrick. E ela foi buscar o menino. Isso
significa que tudo o que Deborah escreveu no diário é verdade — disse Anne, de
repente.
— Eu sei que é. Por acaso pensou que eu não havia acreditado em você?
— Confesso que não sei mais o que pensar. Você ficou calado durante toda a
viagem...
— Fiquei calado para refletir melhor sobre tudo o que está acontecendo. E sabe o
que foi que eu concluí? Que estou com medo de que tudo o que você me contou seja
mentira, pois quero muito ter certeza de que você é mesmo Anne, e não Deborah. Por
mais absurda que a sua história pareça, quero que ela seja verdadeira. — Baixando o
tom de voz, Patrick acrescentou: — E sabe por quê? Porque estou apaixonado por Anne,
e quero passar o resto da minha vida ao lado dela.
— Eu também te amo, querido, mas nós nunca...
Anne interrompeu a frase no meio e virou-se para trás ao ouvir o barulho da porta
da sala sendo aberta. A Sra. Phillips entrou, acompanhada por um garotinho ruivo de
três anos de idade.
Oh, céus, pensou ela quando o menino sorriu de alegria ao vê-la. Já havia
considerado a possibilidade de o filho de Deborah ser o seu pai, e agora ali estava a
confirmação que procurava. Mas como? Como era possível?
— Mamãe! — exclamou o garotinho, correndo para abraçá-la. — A senhora
voltou!
Anne abaixou-se e o recebeu de braços abertos, procurando esconder as lágrimas
que lhe subiram aos olhos.
— Sim, eu voltei — murmurou com voz rouca de emoção. — Vamos, deixe-me
olhar para você.
Ela notou que os olhos do menino eram verdes como os seus — e como os de
Deborah... Então era essa a conexão! Finalmente Anne entendeu por que era tão
parecida com Deborah. Sua avó... Deborah era sua avó! — Quem é ele, mamãe? —
perguntou Henry, baixinho, apontando para Patrick.
Tentando ocultar o choque que a sua descoberta lhe provocara, Anne respondeu:
— Este é Patrick, um amigo meu. ... Patrick, este é Henry.
— Prazer em conhecê-lo, Henry — disse Patrick, trocando um aperto de mão
com o menino.
Anne sentiu um aperto no coração ao ver o modo como o garotinho sorria e
apertava a mão de Patrick. Maldito seja você, J.B. Munro, pensou, revoltada; maldito
seja por ter afastado o menino da mãe!
— Puxa, Henry, como você é forte! — brincou Patrick. — Quase esmagou a
minha mão!
— Sou o menino mais forte daqui, senhor — afirmou Henry, com orgulho, antes
de virar-se para Anne. — Vamos brincar nos balanços, mamãe, como a gente sempre
faz?
— Sim, querido, vamos.
— Que bom! Adoro balançar!
Anne teria sido capaz de ficar empurrando o balanço no qual Henry estava
sentado durante horas, mas o sol já se punha no horizonte e o estômago do garotinho
começara a roncar de fome. Ela pensou em sugerir a Patrick que se hospedassem em
algum hotel e fizessem uma segunda visita ao orfanato no dia seguinte, mas de que
adiantaria isso? Ficar mais um dia na cidade serviria apenas para adiar o inevitável.
De braço dado com Patrick, Anne voltou para o escritório da Sra. Phillips
enquanto uma funcionária do orfanato levava Henry para o refeitório.
Vendo que Patrick a olhava com ar preocupado, Anne o tranqüilizou:
— Não se preocupe comigo, eu estou bem.
E era verdade, pois tivera a chance de participar de um milagre: conhecer o
próprio pai quando ele ainda era criança. E Henry também ficara feliz em rever sua
"mãe" outra vez. Sim, um milagre... Uma experiência alegre, e não uma ocasião para
lágrimas.
No escritório, a Sra. Phillips os convidou a sentar e abordou o tal assunto
importante que mencionara antes.
— Sra. Munro, a senhora não faz idéia do quanto as suas visitas são boas para
Henry. Ele é uma das crianças mais bem-ajustadas que temos aqui no orfanato, com
certeza por causa das visitas que a senhora lhe faz. Nenhuma das outras mães vêm ver
os filhos, a senhora sabe.
Desde que suspeitara de que o filho de Deborah era seu pai, Anne não deixara de
pensar sobre o fato de ele ter ido parar num orfanato. Se houvesse sabido antes que seu
pai fora adotado, teria feito mais cedo a conexão entre ela mesma e Deborah. No
entanto, ou seu pai não se lembrava de ter sido adotado ou então preferira manter o fato
em segredo.
— Sim, Henry parece ser um menino feliz — disse ela, por fim.
— Ele é feliz, sem dúvida — concordou a Sra. Phillips. — No entanto, devo
pedir-lhe que reconsidere a decisão de não permitir que ninguém o adote. Sei que a
senhora ama o seu filho, mas ele se encontra numa situação peculiar demais. As doações
que a senhora tem feito ao orfanato são bastante generosas, e todos aqui lhe são gratos
por isso. Mantivemos a nossa promessa e nunca contamos ao seu marido que a senhora
costuma vir visitar Henry. No entanto, existem dois casais que estão muito interessados
em adotar o menino. As duas famílias são ótimas, tenho certeza de que a senhora as
aprovaria. Seria bom para Henry se a senhora reconsiderasse a sua decisão e o deixasse
ser adotado. Ele precisa de uma família de verdade, embora todos aqui no orfanato
gostem muito dele e lhe dêem atenção e carinho.
Anne encarou a mulher, incapaz de pronunciar uma única palavra. Henry era o
filho de Deborah, mas Deborah estava morta. Ele também era o pai de Anne. Com
certeza não estava nas mãos dela a decisão de permitir que Henry fosse adotado ou não,
Tudo aconteceria naturalmente, claro. Seu pai seria adotado por Charles e Esther
Sawyer e seria irmão de Shirley. Mas e se Charles e Esther não estivessem entre os
casais que queriam adotá-lo? O que poderia fazer nesse caso?
— Sra. Phillips, pode nos dar licença por um minuto? — pediu Patrick, de
repente. — Preciso conversar a sós com a Sra. Munro.
— Por favor, fiquem à vontade. — A mulher levantou-se e indicou duas pastas
que estavam em cima da escrivaninha. — Se quiser, pode dar uma olhada nisto, Sra.
Munro. Aqui estão as fichas preenchidas pelos dois casais que querem adotar Henry.
Assim que a Sra. Phillips saiu da sala, Anne abriu a primeira pasta, contendo
fichas referentes a Emma e Seth Johnson. Ela franziu a testa.
— Deborah, você não precisa entregar o seu filho para adoção — declarou
Patrick, tirando-lhe a pasta das mãos.
— Eu sou Anne, não Deborah. E é óbvio que preciso...
— O menino já tem uma mãe: você. Você o ama e quer ficar com ele, certo? Pois
é simples resolver a situação. Não volte para junto de J.B. Tire Henry do orfanato e
mude-se comigo para outra parte do país.
— Ah, Patrick, será que você nunca vai acreditar em mim? — suspirou Anne,
pesarosa. Ela pegou a segunda pasta, dizendo: — Quero mostrar-lhe algo. Algo que
talvez finalmente o convença de que eu não inventei essa história toda. Você ainda não
adivinhou quem é Henry?
— Ele é seu filho, qualquer um pode ver isso.
— Aí é que você se engana. Henry não é meu filho, é meu pai.
Anne abriu a segunda pasta, rezando para que as fichas contidas ali dentro
confirmassem o que ela dissera. E confirmavam: os nomes dos seus avós estavam
escritos nas fichas.
— Charles e Esther Sawyer... — Patrick leu em voz alta, assombrado.
— Antes que você me pergunte qualquer coisa, quero lhe dizer que não vim até
aqui antes para olhar o nome do casal a fim de usá-lo na minha história — afirmou
Anne. — Você ouviu o que a Sra. Phillips falou. Ela mencionou os dois casais como se
eles fossem uma novidade, e não como algo que eu já sabia. Isso significa que tudo o
que eu lhe contei é verdade, Patrick. Você queria acreditar em mim? Pois agora pode
acreditar.
Ele balançou a cabeça, incrédulo. Só então Anne se lembrou de que tinha mais
provas para confirmar o que dizia. Enfiou a mão no bolso do casaco que estava vestindo
e tirou a sua carteira de motorista e as moedas que pegara na calça jeans antes de pedir a
Patrick que a trouxesse até o orfanato. Na hora, pensara apenas que poderia usar o
dinheiro para comprar uma passagem de trem caso Patrick se recusasse a trazê-la.
Depois, ficara tão concentrada pensando no passado trágico de Deborah e no seu pai
que até se esquecera da carteira de motorista em seu bolso.
— Dê uma olhada nisto. — Ela entregou o documento a Patrick. — A foto está
horrível, claro, mas dá para ver que sou eu. Leia o nome escrito aí: Anne Sawyer. Agora
veja a data de nascimento: mil novecentos e sessenta e seis. E a foto é colorida, reparou?
Se nada mais for capaz de convencê-lo depois disso...
Patrick examinou o documento com atenção e em seguida sorriu, murmurando:
— Por Deus, é verdade... É tudo verdade!
— Oh, até que enfim! — exclamou Anne, rindo, beijando-o na boca.
Ele correspondeu com paixão ao beijo, finalmente sentindo-se livre de qualquer
sentimento de culpa em relação a J.B, sentindo-se livre para amar a mulher que nunca
fora Deborah, que nunca o magoara.
— Eu te amo, Anne Sawyer — declarou ele, emocionado, depois do beijo.
Anne sorriu, sabendo que jamais se esqueceria desse momento. O que quer que
acontecesse dali para a frente, ela guardaria para sempre na lembrança as cinco palavras
que Patrick acabara de pronunciar.
— Eu também te amo, Patrick MacKinnon — disse ela, com voz rouca de
emoção. — Lembre-se sempre disso, não importa o que aconteça.
Eles estavam voltando para Oklahoma. Com certeza iam retornar à mansão
Munro, refletiu Franklin Thomas, seguindo-os de longe.
Ficara furioso quando vira o casal entrar no orfanato. Seu irmão Henry lhe havia
falado sobre o filho que gerara, mas nunca soubera que a criança tinha sido deixada num
orfanato. O próprio Franklin só soubera disso através de Deborah, antes de atacá-la nos
túneis.
Mas ele nunca imaginara que Deborah Munro fosse visitar o menino. Afinal, a
troco de que uma mulher tão egoísta e irresponsável iria preocupar-se com o garoto? O
coração de Franklin se encheu de ódio ao pensar que Deborah ainda estava viva para
poder visitar o filho, ao passo que Henry jazia morto num túmulo frio.
Ele havia sentido vontade de assassinar Deborah lá mesmo, no orfanato, mas
preferira não correr nenhum risco desnecessário. Seria mais seguro matá-la na mansão.
Patrick parou o automóvel sob o pórtico e desceu para abrir a porta do passageiro
para Anne.
Anne... Ele apertou-lhe de leve a mão num gesto de carinho e conforto. Durante a
viagem, procurando esquecer a tristeza causada pelo fato de ter deixado Henry no
orfanato, Anne começara a contar histórias da vida do seu pai. O garotinho ruivo iria
crescer e transformar-se num homem bom, honesto, responsável e amoroso.
Conforme se aproximaram da mansão, porém, Patrick havia notado que Anne
voltara a ficar triste, parecendo a ponto de chorar a qualquer instante. Como agora, por
exemplo.
— Você está preocupada com a idéia de contar a J.B. o que aconteceu com
Deborah? — indagou ele.
— Não. Estou mais preocupada com o soco que darei em J.B. se ele reagir à
notícia com desdém. Depois de ter lido o diário de Deborah, imagino que ele não vá
ficar muito abalado ao saber que a esposa está morta.
— Tem razão. E bem provável que isso aconteça pois, na verdade, J.B. odiava
Deborah.
— E você, Patrick, ainda sente raiva dela?
— Depois de tudo o que você me contou a respeito de Deborah, como eu poderia
continuar sentindo raiva? Pena que eu não sabia de tudo na época. Talvez as coisas
tivessem sido diferentes, então.
— Sim, talvez... Mas nesse caso eu não teria tido a chance de conhecer você, não
é mesmo? Posso parecer egoísta falando isso, mas de certo modo fico até contente por
as coisas não terem sido diferentes. É horrível eu me sentir feliz às custas da tragédia
que se abateu sobre a minha avó, mas... Deborah teve Henry para amar, e eu tive você.
— Por que usou o verbo no tempo passado, Anne? Por acaso está me dizendo
adeus?
— Sim. Eu tenho de voltar para a minha própria época — respondeu ela, a voz
embargada de lágrimas.
— Por causa do seu pai, que está doente e precisa de você?
— Não só por causa disso. Na verdade, creio que não tenho outra opção. Não sou
uma expert em viagens no tempo, mas acho que a natureza não permitiria que eu ficasse
aqui. Até ver o meu pai, eu não tinha nem parado para pensar que existe outro motivo
pelo qual não posso continuar vivendo nos anos vinte.
— Que motivo é esse?
— Sou filha de Henry. Não posso existir aqui, na época dele, se nasci quarenta e
um anos no futuro. Você entende isso, não entende?
— Não. Só o que eu sei é que quero que você fique aqui comigo.
— Ah, meu amor, eu também gostaria muito de ficar, mas...
— Vou vestir as roupas que estava usando quando vim parar aqui — disse Anne,
enquanto se dirigia para o quarto de Deborah na companhia de Patrick. — Depois, você
pode me ajudar a entrar nos túneis para procurarmos o medalhão. Talvez até lá J.B. já
tenha voltado, e então explicarei tudo a ele.
— Talvez J.B. não volte tão cedo, e você tenha de passar mais algum tempo aqui
— observou Patrick, esperançoso.
Anne fitou-o, sorrindo, e deu-lhe um beijo. Em seguida, quando já ia entrar no
quarto, Katy apareceu correndo.
— Oh, Sra. Munro, que bom que a senhora chegou! O Sr. Munro ficou furioso
quando descobriu que a senhora tinha saído. Mal pude acreditar no que estava vendo, o
Sr. Munro parecia ter enlouquecido! Ele pegou uma faca e rasgou a tela inteira, e
depois...
— Acalme-se, Katy, por favor. Desse jeito não estou entendo nada. Conte direito
o que aconteceu.
— Bem... O Sr. Munro... — a criada lançou um olhar na direção de Patrick.
— Pode falar na frente do Sr. MacKinnon, não tem problema — tranqüilizou-a
Anne.
— Se a senhora acha... Bem, como eu ia dizendo, o Sr. Munro parecia ter
enlouquecido. Ele xingou a senhora de tudo quanto foi nome e jogou uma porção de
coisas contra a parede. O Sr. Munro insistiu comigo para eu dizer para onde a senhora
tinha ido, e quando eu respondi que não sabia ele ficou mais furioso ainda. Imagine só,
o seu marido pegou uma faca e rasgou a tela inteirinha!
— Que tela, Katy?
— Aquela que estava no salão de festas.
— No salão de festas...?
— Sim, aquele retrato bonito onde a senhora aparecia usando um medalhão de
ouro. — respondeu a criada, apontando para dentro do quarto de Deborah. — O Sr.
Munro me mandou trazer o retrato e todas as coisas que são da senhora aqui para o
quarto. Ele me mandou também trancar a porta e jogar a chave fora. Depois, o Sr.
Munro saiu da mansão como se todos os demônios do inferno estivessem atrás dele!
Perdoe-me o atrevimento, Sra. Munro, mas talvez seja bom a senhora ir embora agora e
passar algum tempo longe daqui. Se o seu marido encontrá-la aqui quando voltar, não
sei o que será capaz de fazer.
Empalidecendo, Anne entrou às pressas no quarto.
— Oh, não! — gritou ao ver o retrato colocado em cima da cama junto com
outros quadros e objetos pessoais de Deborah. — Dê só uma olhada nisso, Patrick! Meu
Deus, o que vou fazer agora?
Patrick dispensou Katy e correu para junto de Anne. O retrato fora retalhado com
uma faca, como a criada dissera.
— Não dá nem para ver o medalhão... Como poderei voltar para o futuro? —
indagou Anne, horrorizada.
— Sinto muito, querida — disse Patrick, com sinceridade.
Se o retrato fora destruído, então Anne seria obrigada a continuar nos anos 20,
com ele. Mas isso não o deixava feliz, pois sabia que para Anne o mais importante era
voltar para o futuro, para o próprio bem dela. E como ele poderia ser feliz vendo a
infelicidade da mulher amada?
— Talvez Deborah esteja usando o medalhão em algum outro quadro ou
fotografia — sugeriu Patrick, mas logo em seguida balançou a cabeça, aflito. — Não,
não adiantaria nada... A mágica, ou seja lá o que fez você viajar no tempo devia estar
toda concentrada no retrato que foi destruído. E agora que Deborah está morta, nem é
possível copiar o retrato e...
— Ei, espere! — Anne arregalou os olhos, — Deborah morreu, mas eu estou
viva! E sou praticamente idêntica a ela! Diga-me, Patrick, o pintor que fez o retrato vive
em Munro?
— Não, mas... No momento ele está morando aqui na propriedade, no ateliê dos
artistas. J.B. o contratou para pintar alguns quadros para a casa que mandei construir
para mim.
Anne correu a abrir a porta do guarda-roupa de Deborah e começou a arrancar os
vestidos dos cabidos até encontrar o que procurava.
— Achei! — exclamou, aliviada. — Foi esse o vestido que Deborah usou quando
posou para o retrato. Talvez a gente consiga refazer a mágica da viagem no tempo,
Patrick!
16
Não fazia nem quinze minutos que Patrick havia saído do quarto quando Anne
ouviu o barulho da porta se abrindo. Ela saiu do banheiro enfiando a barra da camisa
para dentro da calça e levou um susto; J.B. estava parado no meio do quarto.
Ao vê-la, ele empalideceu violentamente e estremeceu.
— Você está bem? — perguntou Anne, preocupada. J.B. recuou um passo,
balbuciando com voz fraca:
— Você... você está morta... Encontrei o seu corpo... lá na caverna...
Oh, não! Ele havia encontrado Deborah!
— J.B., escute, eu não sou Deborah. Tentei lhe dizer isso na noite em que saí dos
túneis, lembra-se?
Anne tentou se aproximar, mas ele continuou recuando até que suas costas
encontraram a parede.
— Você... você não é ela? Mas então... quem...? Apesar de ter ficado com muita
raiva de J.B. depois de ler o diário de Deborah, nesse momento Anne sentiu pena. Os
olhos dele estavam vermelhos e inchados, indicando que havia chorado. E agora ele a
encarava como se estivesse diante de um fantasma.
Anne o segurou pelo braço e o conduziu até uma poltrona, usando um tom de voz
suave para acalmá-lo.
— Venha, J.B, sente-se um pouco. Nas linhas do seu destino não está escrito que
você vai morrer de ataque cardíaco aos quarenta e poucos anos de idade, pode acreditar
no que lhe digo.
Depois que ele praticamente desabou sobre a poltrona, Anne tomou fôlego e
começou a explicar o que acontecera.
— Acalme-se, J.B. Você não está vendo o fantasma de Deborah. O meu nome é
Anne Sawyer. Sei que você vai achar a minha história absurda, mas...
Franklin Thomas viu o homem moreno sair da mansão, depois esperou durante
quarenta e cinco minutos, até ter certeza de que o sujeito não retornaria tão cedo.
Nervoso, enxugou as palmas suadas das mãos nas pernas das calças. Não podia perder a
calma, agora. Tinha de pensar em seu irmão Henry deitado no caixão e lembrar que,
dessa vez, não podia falhar. A sua missão de justiceiro devia ser cumprida.
Ele se esgueirou pelo jardim até entrar na mansão. Atravessou o hall vazio e
correu até a primeira sala do andar térreo. Ao ouvir as vozes de Deborah e de um
homem, assustou-se. Escondeu-se atrás de um sofá de encosto alto e esperou que os dois
passassem. Arriscando-se a dar uma espiada, viu que eles caminhavam na direção do
salão de festas.
— É difícil de acreditar — dizia o homem.
— Mas é verdade, J.B. Você viu a minha carteira de motorista, viu o corpo dela.
E quando Patrick voltar, ele poderá confirmar o que aconteceu em Missouri. Patrick leu
o nome que estava nas fichas referentes ao casal. — Uma pausa, e então: — Você
precisa ler o diário dela, e então entenderá por que...
As vozes foram se distanciando. Franklin seguiu atrás, tomando cuidado para não
ser visto nem pelo casal nem por algum empregado que porventura aparecesse. Com
muita sorte, conseguiu chegar até o salão de festas sem que a sua presença fosse
detectada. Tornando a esconder-se, dessa vez atrás de uma poltrona, ele viu Deborah e
J.B. entrando na enorme lareira. Escutou barulho de chaves, de uma porta se abrindo.
Olhando ao redor para certificar-se de não havia mais ninguém no salão, correu
até a lareira. Se não estivesse enganado, o casal descera até os túneis por uma entrada
diferente daquela que ele conhecia — a entrada que Deborah lhe mostrara quando
estava ansiosa para receber notícias de Henry, pensando que o seu antigo amante ainda
estava vivo.
Deborah e J.B. eram os responsáveis pela morte de Henry. Os dois! Franklin não
se importava mais de deixar um ou dois corpos sem vida nos túneis. Afinal, J.B. Munro
era tão culpado pelo que acontecera quanto a sua esposa vagabunda. Tirando um
revólver do bolso do paletó, Franklin Thomas entrou na lareira e começou a descer a
escada que levava aos túneis.
O medalhão estava perto do primeiro degrau da escada, onde Anne sabia que
estaria. Ela se abaixou, pegou a jóia e mostrou-a a J.B.
— Viu só? O medalhão estava onde eu disse que estaria. A correntinha deve ter
arrebentado quando eu caí e bati a cabeça.
— Humm, estou me lembrando desse medalhão. Patrick o deu de presente a ela.
Mas como uma jóia e um retrato puderam...
— Não sei — respondeu Anne, sem esperar pelo final da pergunta.
Era incrível, mas ela não estava se sentindo nem um pouco feliz por ter
encontrado o medalhão. Ali estava a jóia, na palma da sua mão. A jóia que era a sua
passagem de retorno para os anos 90. Ou, pelo menos, parte da passagem. O retrato teria
de ser copiado, e ainda assim Anne não tinha certeza de que a mágica, como dissera
Patrick, voltaria a funcionar.
Se funcionasse, ela retomaria para o futuro, para junto da sua família, para o seu
emprego como para-médica, — em resumo, voltaria para o que considerava ser o
"mundo real". Há pouquíssimos dias, teria dado cambalhotas de alegria ao recuperar o
medalhão. Agora, porém, ela o trocaria de bom grado por uma certidão de nascimento
com uma data bem anterior a 1966 — uma data mais próxima dos anos 20, por
exemplo. Desse modo, não precisaria abandonar Patrick MacKinnon.
Ao pensar nisso, Anne sentiu-se culpada. Desde quando a saúde de seu pai
deixara de ser a coisa mais importante do mundo para ela?
— Você disse que viu o homem, não é? — disse J.B., interrompendo-lhe os
pensamentos. — Antes de partir, é melhor você descrever a aparência do sujeito, para
que eu possa mandar a polícia atrás dele.
— Sim, claro. Eu já havia mesmo decidido que...
— Ela não irá descrever a aparência de ninguém — intrometeu-se uma voz
masculina vinda do alto da escada.
Anne soltou um gritinho de susto e deu um encontrão em J.B. quando ambos se
viraram ao mesmo tempo na direção da voz.
— Quem está aí? — perguntou J.B.
— Pergunte à sua esposa — respondeu Franklin Thomas, descendo a escada com
um revólver na mão direita. — Ela e eu nos encontramos aqui nos túneis poucas noites
atrás. Foi um encontro memorável, diga-se de passagem.
— Você o conhece? — indagou J.B. a Anne.
— Eu não sou Deborah, lembra? — ela sussurrou em resposta.
Não conseguia ver direito o rosto do homem por causa de uma lâmpada acesa que
lhe ofuscava a visão. Mas o revólver na mão dele deu-lhe uma boa indicação de quem
podia ser o sujeito.
— É ele? É o assassino? — indagou J.B. em voz baixa.
— Acho que sim. Mas parece que ele tirou a barba...
Nesse momento, Franklin desceu mais um degrau e a lâmpada iluminou-lhe de
frente o rosto.
Anne soltou uma exclamação de surpresa. O sujeito era parecido com o pai dela,
embora tivesse feições mais duras.
— Afastem-se da escada — ordenou Franklin, aproximando-se.
Anne não saiu do lugar.
— Quem é você? — questionou ela.
Se ia morrer, queria pelo menos saber o nome do seu carrasco e o motivo que o
levara a matá-la.
— Não banque a engraçadinha, Deborah. Você ouviu a minha ordem, agora
mexa-se!
— Não vou arredar o pé daqui enquanto você não me disser quem é — insistiu
Anne, com voz trêmula de medo. — Se quiser me matar, terá de me matar aqui mesmo.
Mas acredito que você não queira atirar tão perto da porta, pois algum empregado pode
ouvir o disparo, certo? Muito bem, diga quem é e eu me afastarei da porta.
— Você me parece familiar — disse J.B. ao homem, ao mesmo tempo em que
abraçava Anne num gesto protetor. — Quem...
— É claro que eu lhe pareço familiar, uma vez que meu irmão era tão parecido
comigo que muita gente pensava que éramos gêmeos — retrucou Franklin, apontando o
revólver para a cabeça de J.B. — Mas você já destruiu tantas pessoas na sua vida que
nem distingue mais uma vítima da outra, não é mesmo, seu filho da mãe? Agora andem,
vamos! Os dois!
— Seu irmão? — instigou Anne, sem mover-se um só milímetro.
Ela já sabia agora quem era o irmão do homem, claro. Se o irmão era parecido
com o sujeito que segurava o revólver, ele só podia ser o pai do filho de Deborah, ou
seja, o avô de Anne. E o homem ameaçador à sua frente era o tio de seu pai, ou seja, seu
tio-avô.
— O que aconteceu com Henry? Por acaso você quer nos matar por causa dele?_
ela perguntou em seguida, mas uma vez tentando ganhar tempo.
— Não se atreva a pronunciar o nome do meu irmão, sua vagabunda! Você foi a
responsável pela morte dele!
— Henry... Agora me lembro... — murmurou J.B, antes de indagar ao homem: —
O seu irmão morreu, então?
— Ele se matou! — vociferou Franklin.
— Oh, Deus... Não...
Anne fechou os olhos, recordando-se do modo como Deborah descrevera o
amante em seu diário: um homem bom e generoso, honrado e religioso. Ele amara
Deborah, apesar de tudo, e fora o único a dizer que ela era linda.
— Sim! — esbravejou Franklin. — Ele se suicidou por sua causa, mulher! Henry
se matou porque não conseguia viver sem você, sua cadela!
Uma revolta profunda tomou conta de Anne. Deborah não tinha sido nenhuma
"cadela"! Disposta a defender sua antepassada, que tanto havia sofrido na vida, Anne
protestou:
— Não ofenda a memória Deborah desse jeito! Ela amava o seu irmão, e o seu
irmão a amava!
No mesmo instante Franklin deu-lhe um tapa que a jogou longe de J.B. Ela bateu
contra a parede do túnel e ouviu o ruído do revólver sendo jogado no chão. Segundos
depois, duas mãos fortes a agarraram pelo pescoço, começando a sufocá-la.
Anne escutou os gritos de J.B. e viu que ele tentava arrancar o assassino de perto
dela. Mas J.B, desacostumado a exercícios físicos, não era páreo para um homem
enfurecido como Franklin Thomas. A visão de Arme escureceu, e ela percebeu que
estava prestes a perder a consciência. Ia morrer como Deborah morrera: estrangulada.
Foi então que as mãos assassinas soltaram-lhe o pescoço. Anne caiu no chão,
tossindo, os olhos cheios de lágrimas. Ao olhar para cima, esperou ver J.B. Mas era
Patrick quem estava ali na frente, com o revólver nas mãos. Pelo jeito, ele havia batido a
coronha da arma contra a cabeça do assassino, fazendo o homem desmaiar.
Entregando o revólver a J.B, Patrick ajoelhou-se e abraçou Anne.
— Ah, meu amor... Graças a Deus cheguei a tempo! Você não estava no quarto
quando voltei. Procurei-a pela casa toda, aposento por aposento. Quando vi o cadeado
no chão do salão de festas, perto da lareira, pensei que você tivesse descido até aqui
sozinha e vim procurá-la. Quando vi aquele homem com as mãos no seu pescoço...
Céus, eu não suportaria perdê-la, querida!
Anne correspondeu ao abraço, enxugando na camisa de Patrick as lágrimas que
lhe escorriam pelas faces. Lágrimas de amargura e pena por todo o sofrimento pelo qual
Deborah e Henry haviam passado. Chorava também por Patrick e por si mesma, pois
seriam obrigados a se separarem apesar do amor que sentiam um pelo outro.
Ela avistou o medalhão no chão, onde havia caído quando Franklin a atacara.
Pegou-o, com mãos trêmulas, e mostrou-o a Patrick.
— Eu o encontrei — soluçou. — Encontrei o maldito medalhão...
— Como posso pintar o retrato se ela não pára de se mexer, Sr. Munro? —
reclamou o pintor, dirigindo um olhar fulminante a Anne. — A sua esposa era capaz de
ficar imóvel durante horas, mas a sua cunhada parece que tem bicho-carpinteiro no
corpo!
— Falvo, meu caro, como artista sensível que é , você deveria ser o primeiro a
saber que as pessoas têm temperamentos diferentes. Anne pode ter uma incrível
semelhança física com a... irmã, mas sempre teve um gênio oposto ao dela.
— É verdade — concordou Anne, mais uma vez disposta a defender Deborah,
embora numa situação bem mais agradável. — Deborah sabia posar, eu não paro de me
mexer. Ela sabia cavalgar e vestir-se com elegância, ao passo que eu sou um desastre
em cima de uma sela e não consigo nem diferenciar um modelo de Chanel de um
modelo de Lanvin. Isso sem mencionar...
— Já chega, Anne, não precisa dar mais exemplos — riu J.B, saindo de perto do
pintor e aproximando-se dela.
Falvo gemeu e revirou os olhos.
— A luz, Sr. Munro! O senhor está bloqueando a passagem da luz! Oh, assim é
impossível trabalhar... O senhor exigiu que eu fizesse uma réplica exata do primeiro
retrato, com as mesmas cores, a mesma luz e a mesma composição, certo? Pois então,
por favor, não dificulte ainda mais o meu trabalho, eu lhe imploro!
— Tudo bem, Falvo, não precisa ficar nervoso — disse J.B, saindo da frente da
luz. Em seguida, cochichou para Anne, repetindo uma frase que a ouvira falar na
véspera; — Acho que ele precisa de um Valium, coitado.
— Pare com isso, J.B, assim você vai me fazer rir — protestou ela.
Assumindo um tom mais sério, ele mudou de assunto:
— Terminei de ler o diário de Deborah e... Confesso que estou com remorso.
Olho à minha volta, vejo todas as coisas que sempre considerei importantes, e sinto-me
envergonhado, arrependido. Eu devia ter dado mais valor às pessoas que me cercavam,
principalmente no que diz respeito a Deborah. Quando penso no quanto ela deve ter me
odiado...
— Sim, Deborah deve tê-lo odiado, às vezes. Eu mesma cheguei a odiar você
depois de ler o diário — admitiu Anne. — Por outro lado, se eu achasse que você era
um "caso perdido", jamais teria lhe mostrado o diário. Seria como jogar pérolas aos
porcos.
Arriscando-se a levar mais uma bronca do pintor, ela virou o rosto para fitar J.B.
Sorrindo, argumentou:
— Sei que você pode ser generoso, quando quer. Lembro-me muito bem da noite
em que aquela mulher interrompeu o nosso jantar. Você me prometeu que não a
deixaria passar por dificuldades financeiras e...
— Srta. Anne, por favor... — resmungou Falvo.
Ela ignorou o pintor e continuou falando:
— Também pude perceber o quanto você era generoso ao observar o seu
relacionamento com Patrick e ver o modo como você se preocupa em dinamizar a
economia da cidade que fundou. Não é só com o seu império particular que você se
preocupa, J.B, mas também com as pessoas que vivem na cidade.
— Se sou tão generoso quanto você diz, por que não me preocupei mais com
Deborah? Céus, quando penso no modo como a tratei... Eu nunca me dei conta do que
estava fazendo com ela. Pensei que seguir uma disciplina rígida fosse o melhor jeito de
educar uma criança. Meu pai era um homem severo, e no entanto eu me tornei um
adulto equilibrado.
— Tem certeza, J.B?
Ele sorriu, sem graça.
— Bem, pelo menos eu achava que era equilibrado. Agora, no entanto...
— J.B, ouça com atenção. O maior erro que você poderia cometer agora seria sair
dessa história toda sem ter aprendido nada. Você errou ao tratar Deborah como tratou,
ao dar prioridade a coisas que deveriam ter ocupado um segundo plano. Mas agora você
está arrependido, e o melhor que tem a fazer daqui para a frente é viver segundo novos
padrões de comportamento. O que passou, passou, portanto pare de se atormentar e
tente ser feliz.
— Como poderei ser feliz, Anne? Perdi todo mundo. Deborah... Patrick... Até
você vai embora, amanhã.
A simples menção de sua partida e do nome de Patrick, Anne sentiu um aperto no
coração. Não via o amado há dois dias, desde que ele viera despedir-se. Ao contrário de
J.B, Patrick não ligara a mínima para as broncas do pintor; pusera-se ao lado de Anne
enquanto ela posava, sem se importar com o fato de estar "bloqueando a luz", sem se
importar com quem pudesse ouvir o que tinha a dizer.
— Eu te amo, Anne Sawyer — ela havia declarado com a voz rouca de emoção e
um brilho de angústia no olhar. — Eu gostaria de passar o resto da minha vida com
você, repetindo todos os dias que te amo, mas sei que não é possível. Sabia que vir até
aqui para me despedir seria doloroso, e no entanto eu tinha de vir, nem que fosse para
vê-la pela última vez...
Anne balançou a cabeça e procurou afastar a lembrança que lhe partia a alma em
mil pedaços.
— Sinto muito — desculpou-se J.B, enxugando com a ponta dos dedos a lágrima
que escorreu pelo rosto de Anne. — Você também vai perder alguém muito importante,
não é mesmo?
— Sim, é verdade... Mas não se esqueça do que eu lhe disse, J.B. Você ainda tem
muitos anos de vida pela frente. A decisão é sua. Ou você passa o resto dos seus dias
lamentando o passado ou utiliza tudo o que aprendeu para mudar o seu jeito de ser. —
Ela forçou um sorriso. — Acho que você vai escolher a segunda opção, certo? De
algum modo, não consigo imaginá-lo como sendo o tipo de homem que perde tempo
com lamentações.
— Obrigado — murmurou J.B. — Por tudo.
— Não há o que agradecer — respondeu Anne, levantando-se da cadeira onde
estava sentada há mais de três horas. Em seguida, aproximando-se do pintor,
argumentou: — Sei que você vai ralhar comigo, Falvo, mas não agüento mais ficar
imóvel e... Oh! — exclamou ela, quando o seu olhar pousou sobre o retrato.
— "Oh"? Depois de todo o trabalho que tive, isso é tudo o que a senhorita tem a
dizer?
— É... é incrível! Ficou igualzinho ao outro!
Anne estendeu a mão para tocar o retrato. O pintor deu-lhe um tapinha no braço,
protestando:
— Não toque nele! Quer borrar a tinta?
Ela recolheu a mão, mas não porque Falvo lhe dera uma bronca. O zumbido...
Acabara de ouvi-lo de novo ao aproximar os dedos da tela... Isso significava que a
mágica funcionaria outra vez.
— O que foi, Anne? — indagou J.B, preocupado. — Você empalideceu. Está se
sentindo mal?
— Não, eu estou bem — mentiu ela antes de sair da sala de pintura do estúdio
dos artistas.
Será que teria forças para seguir o mesmo conselho que dera a J.B? Teria forças
para não ficar lamentando o passado e tentar ser feliz novamente?
— O retrato está pronto, então? — perguntou J.B, olhando a tela pela milésima
vez.
— Sim — respondeu o pintor.
— É impressionante! Ficou idêntico ao primeiro! Meus parabéns, Falvo. Você é
um gênio!
— Obrigado, Sr. Munro. A propósito, eu ainda não lhe agradeci por ter me
pedido para pintar este retrato pela segunda vez, a fim de substituir o que foi danificado.
É uma honra saber que o meu trabalho é considerado em tão alta estima. Ao mesmo
tempo, suponho que tenha sido a memória da sua adorável esposa que motivou o
pedido, também.
— É verdade — concordou J.B.
O retrato serviria para a viagem de retorno de Anne, mas serviria também como
uma homenagem póstuma a Deborah.
De repente, J.B. reparou em algo que não havia notado antes.
— Falvo... Essa sombra... — murmurou ele, apontando para a tênue mancha
cinza perto do ombro da mulher retratada.
— Sim?
— Oh, não importa. Creio que havia uma sombra igual no outro retrato.
— É claro que havia.
— Está bem. E, mais uma vez, obrigado. Você fez um excelente trabalho.
Falvo esperou que J.B. saísse da sala para começar a limpar os seus pincéis,
lembrando-se das exigências do magnata há três dias: O retrato precisa ser idêntico,
Falvo! As mesmas cores, a mesma luz, a mesma composição! Ele cumprira as ordens,
claro, mas na medida do possível. Afinal, não era uma máquina, era um artista! Jamais
poderia ter deixado de incluir no retrato, por exemplo, a sombra da tristeza do Sr.
MacKinnon quando ele viera se despedir da srta. Anne.
Anne percorreu a mansão de ponta a ponta pela última vez, numa espécie de
despedida, deixando por último o salão de festas. Sabia que poderia voltar a visitar a
luxuosa residência no futuro, se quisesse, mas preferia guardar na lembrança os detalhes
da aparência do lugar como ele era agora, nos anos 20. As salas, os quartos e banheiros,
a cozinha... Até mesmo o Packard, na garagem, merecera uma última visita.
— Jeans, camisa e tênis... Vejo que já está vestida para viajar.
O olhar de Anne dirigiu-se para J.B, que estava parado à porta do salão de festas.
— Sim, já estou pronta para partir — disse.
— Patrick também vai embora hoje.
— Você conversou com ele, J.B? — indagou, sentindo-se estranhamente calma;
não tinha mais lágrimas para chorar.
— Conversei. Patrick ainda não sabe para onde vai. Acho que ele irá andar meio
sem rumo por aí, mas acabará voltando para cá um dia. O que não falta em Oklahoma
são fazendas e, imagine só, Patrick comentou que gostaria de ser fazendeiro!
— Isso não seria tão ruim, seria? — perguntou Anne, enquanto o magnata se
aproximava dela. — Lembre-se do que aprendeu, J.B. Os seus negócios são tão
importantes quanto os seus relacionamentos pessoais. Antes de mais nada Patrick é seu
amigo, e que diferença faz se ele vai deixar de ser seu sócio? Se ele se tornar fazendeiro,
pelo menos você o terá sempre por perto.
— Tem razão. Ah, irei sentir muitas saudades suas, Anne... Mas você disse que
vamos nos reencontrar no futuro, não disse?
— Sim, iremos nos ver de novo.
Ela ouviu um zumbido alto e virou-se para olhar o retrato pendurado na parede às
suas costas.
— Está escutando, J.B?
— Escutando o quê?
— Um zumbido... Foi esse mesmo barulho que ouvi antes de viajar no tempo pela
primeira vez.
— Não, não estou escutando nada.
— Bem... Acho que chegou a hora da minha viagem... — Fitando J.B, Anne
acariciou-lhe de leve a pequena cicatriz em forma e "C" e comentou: — Quando
cheguei aqui, reconheci você por causa da cicatriz.
— Foi Deborah que me "deu" essa cicatriz de "presente". Ela jogou um prato em
mim quando cancelei pela terceira vez os seus planos de ir conhecer a Europa.
Anne sorriu, depois ficou séria.
— Adeus, J.B. Procure ser feliz, e diga a Patrick que...
— Anne!
Ela interrompeu a frase no meio e arregalou os olhos, atônita. Patrick acabara de
entrar no salão, usando a mesma roupa que usara no dia em que haviam trocado o
primeiro beijo, perto do riacho. O coração de Anne começou a bater mais forte, ao
mesmo tempo em que o zumbido em seus ouvidos ficou mais forte.
— Vou deixá-la agora, Anne — disse J.B, sua voz quase inaudível por causa da
intensidade do zumbido. — Adeus, minha querida, e obrigado por tudo.
Assim que J.B. se afastou Patrick aproximou-se de Anne, com um brilho de
desespero nos olhos negros como uma noite sem luar.
— Não vá ainda, Anne. Por favor, fique mais um pouco — ele implorou.
Oh, Deus, dê-me forças para abandonar esse homem que eu amo tanto, pensou ela,
sabendo que a separação era inevitável. Em voz alta, porém, limitou-se a declarar:
— Eu preciso ir, Patrick. Você sabe disso.
— Sim, eu sei. Mas eu tinha de vê-la uma última vez, pelo menos. Fui cavalgar
agora de manhã, tentando descobrir um jeito de podermos continuar juntos. Pensei em
levá-la para longe daqui, mas...
— Mas eu não posso ficar, Patrick. Adeus... E lembre-se, eu te amo... Sempre vou
te amar...
— O quê? Não ouvi o que você disse, Anne. Fale mais alto!
Ela estremeceu de espanto, uma semente de esperança brotando de seu coração.
— Patrick, por acaso você está escutando um zumbido forte? J.B. não ouviu o
zumbido, mas você está ouvindo...
— É claro que estou! Parece até que tem um trem vindo na nossa direção.
Anne o abraçou e beijou, sentindo-se a ponto de explodir de felicidade.
— Acho que isso significa que você pode ir comigo para o futuro, Patrick!
Lembra-se da história que lhe contei? Depois que Deborah foi assassinada, você nunca
mais foi visto de novo. Talvez seja possível! Eu não posso ficar, mas talvez você
possa...
Patrick ficou boquiaberto e olhou primeiro para Anne, depois para o retrato.
— A menos que... Patrick, é isso o que você quer? Abandonar a sua época, os
seus amigos e tudo o que possui? Se você não quiser...
— É claro que eu quero, meu amor. Afinal, só poderei ser feliz ao seu lado, seja
lá onde for!
Excitada, Anne segurou a mão dele. Juntos, aproximaram-se ainda mais do
retrato.
— Toque no meu medalhão e no retrato ao mesmo tempo — ela explicou. — E se
por acaso não der certo... Se você ficar para trás... Saiba que eu te...
Patrick a calou com um beijo apaixonado e depois murmurou:
— Vai dar certo, tenho certeza.
Anne dirigiu um último olhar ao salão de festas e recordou-se do dia em que
chegara aos anos 20. Tomou a ouvir o conjunto de Jazz e a ver as pessoas rindo e
dançando, como se estivesse assistindo a um filme antigo. Tivera a extraordinária
chance de conhecer um mundo diferente do seu, um mundo saído dos livros de história,
mas agora era hora de voltar para casa.
Ela olhou para Patrick e sorriu. Juntos, seguraram o medalhão de ouro e, ao
mesmo tempo, tocaram o medalhão pintado no retrato.
Antes de ser envolvida pela escuridão, Anne teve a impressão de ouvir ao longe a
voz de J.B. lhe dizendo adeus.
EPÍLOGO
Anne duvidava que existisse no mundo visão mais bela que a de Patrick
MacKinnon vestindo jeans e camisa de flanela xadrez, cavalgando pelos campos de
Oklahoma num garanhão baio. Ela adorava seu marido, e todos os dias dirigia uma
prece de agradecimento aos céus por ter tido a chance de trazê-lo consigo do passado.
Ela sorriu ao pensar no quanto essas cavalgadas matinais faziam bem a Patrick,
ajudando-o a relaxar. Embora ele nunca reclamasse de nada, era óbvio que a pressão de
ajustar-se a um mundo novo e desconhecido o deixava estressado. Patrick estava indo
bem no curso de economia no qual se matriculara, numa faculdade próxima. Mas só
Anne e os poucos membros de sua família que conheciam a verdadeira data de
nascimento de Patrick sabiam o quanto ele precisava se esforçar para ter sucesso nos
estudos. Patrick passava horas mergulhado nos livros, tentando apreender as mudanças
que haviam ocorrido no mundo dos negócios desde a sua época. Ele também lia muitos
livros de história, tecnologia e ciência para ficar por dentro das transformações
ocorridas depois dos anos 20.
Patrick dizia achar tudo fascinante, e Anne sabia que ele estava sendo sincero.
Por outro lado, sabia também que ele não estava fazendo tudo o que fazia pensando
apenas em si mesmo. Patrick queria proporcionar um bom nível de vida para a esposa e
para os filhos que ambos pretendiam ter, mas logo descobrira que, em 1994, ser
fazendeiro exigia um investimento altíssimo de capital. E como ele não tinha esse
capital, decidira voltar a ser um homem de negócios. Embora não fosse isso o que mais
gostava de fazer, era nisso que ele era bom.
Ah, nunca conheci ninguém tão teimoso quanto o meu marido, refletiu Anne,
tornando a sorrir enquanto observava Patrick. Pela centésima vez ele estava tentando
ensinar ao cavalo, batizado de Cherokee II, alguns truques e passos que Anne vira no
show Oeste Selvagem, na Fazenda 101.
Sim, sem dúvida alguma, Patrick MacKinnon dava à palavra "teimosia" um novo
significado!
Ao avistar Anne sentada na cerca do curral, Patrick conduziu Cherokee para perto
dela. Desmontou, fazendo um floreio, e cochichou para o cavalo:
— Incline-se! Vamos, incline e cabeça e dobre as pernas dianteiras!
Cherokee ignorou a ordem e Anne começou a rir. Patrick largou as rédeas do
cavalo e abraçou-a com força antes de dar-lhe um beijo carregado de paixão.
— Humm, você fica tão sexy usando essa camisa — murmurou Anne segundos
depois, abrindo os dois primeiros botões para acariciar-lhe o peito.
— Por acaso está querendo me despir em público, mulher? — brincou ele. — No
meu tempo, homens sem camisa eram considerados uma indecência. Mas o mundo está
tão mudado agora, não é mesmo? Gosto de rock'n roll, por exemplo, só que ainda não
consigo entender por que os cantores das bandas gostam de se apresentar seminus,
dançando feito índios selvagens. Esse tipo de coisa é um grande choque cultural para...
— ...para alguém que veio da Era do Jazz, como você — completou Anne,
divertida. — Ah, meu querido, você não imagina como é engraçado ouvir você, às
vezes, falar igualzinho ao meu pai!
— Tolice, garota, sou um cara ligado em novidades. O jazz é legal, mas prefiro
um som mais heavy metal — disse ele, usando algumas das novas expressões que
aprendera nas últimas semanas. — E então, gostou do meu discurso? — indagou a
seguir, com uma piscadela marota.
— Achei demais! — riu Anne, brincalhona.
Os dois voltaram a se beijar, envoltos numa nuvem de desejo e sensualidade, mas
o som de um carro que se aproximava os fez despertar para realidade.
— Parece que temos visita — comentou Patrick, indicando o BMW branco que
subia a estradinha do pequeno sítio que tia Shirley lhes dera de presente de casamento.
O homem que saiu do carro minutos depois trajava um elegante terno Armani e
trazia nas mãos um buquê de flores e uma pasta executiva de couro.
— Você é Anne MacKinnon? — perguntou o homem de longe, enquanto fechava
a porta do BMW, com o pé.
— Eu mesma! — respondeu ela, olhando para o buquê de flores e depois para
Patrick, murmurando: — Preparou alguma surpresa para mim, querido?
— Não. Talvez o seu pai tenha decidido lhe mandar flores. Mas é estranho, o cara
não parece ser um simples entregador. Ele parece mais um executivo yuppie.
— É verdade. Além disso, meu pai não mandaria ninguém me entregar flores, ele
viria trazê-las pessoalmente.
Henry Sawyer havia se recuperado muitíssimo bem do segundo ataque cardíaco
enquanto Anne estivera "viajando", e agora os seus hobbies preferidos eram a
jardinagem e a genealogia. Henry havia demorado para acreditar na história que Anne e
Patrick lhe contaram. Mas depois que os dois o convenceram de que tudo era verdade
ele se transformara num ávido pesquisador da árvore genealógica da família Munro — à
qual nunca soubera que pertencia, pois não se lembrava de ter sido adotado e seus pais
nunca tinham lhe dito nada a respeito.
O homem desconhecido se aproximou do casal e entregou o buquê de flores a
Anne. Vendo que ela procurava pelo cartão do remetente, foi logo dizendo:
— Não adianta procurar, não há cartão nenhum. Permita que eu me apresente...
Meu nome é Brandford Tompkins. Sou advogado, sócio do escritório Tompkins &
O'Brien. — Virando-se para Patrick, Brandford cumprimentou-o com um aperto de
mão. — Você deve ser o marido de Anne, certo?
— Sim, sou eu — respondeu ele, desconfiado.
Tia Shirley resolvera o problema da identidade de Patrick arranjando-lhe novos
documentos, mas não através de canais reconhecidos pela lei. Os documentos haviam
custado caro e eram perfeitos, ninguém jamais descobriria que eram falsos. Mesmo
assim, Patrick achava melhor ser prudente.
— Ótimo! — Brandford abriu a pasta de couro e pegou um envelope que trazia o
nome de Anne escrito na frente. — Há tempos eu estava esperando por esse dia, pois
não sou do tipo que gosta de surpresas ou mistérios. Quando era pequeno, eu nunca
resistia à tentação de xeretar os presentes de Natal que meus pais deixavam escondidos
no armário.
— Surpresas? Mistérios? Do que está falando? — indagou Anne, curiosa.
— Quem lhe mandou essas flores foi J.B. Munro — respondeu o advogado,
sorrindo.
— J.B. Munro?! Mas... como...?
— Compreendo o seu espanto. Afinal, o Sr. Munro morreu há um ano. Acontece
que o meu escritório é o responsável pela administração dos bens que ele legou à cidade
de Munro. Na verdade, o escritório já cuidava de parte dos negócios do Sr. Munro bem
antes de ele falecer. Foi o Sr. Munro que incentivou o meu avô a abrir o escritório,
depois de pagar os estudos dele, mas essa é uma outra história. De qualquer modo,
todos os bens que o Sr. Munro deixou já foram distribuídos entre os herdeiros
designados, com exceção de um. — Brandford deu o envelope a Anne, acrescentando:
— O Sr. Munro deixou instruções para que isto lhe fosse entregue depois do seu
casamento.
— Oh, céus... — murmurou Anne, trocando um olhar com Patrick.
Ela abriu o envelope e, junto com Patrick, leu a carta que havia lá dentro.
Querida Anne, querido Patrick:
Depois que vocês se foram, não passei um único dia da minha vida sem me
lembrar de vocês com muito carinho. Pensei num jeito de ajudá-los a serem tão felizes
quanto eu fui graças à lição que me ensinaram, e espero ter encontrado a solução mais
adequada. Pedi aos meus advogados que só lhe entregassem a parte da herança que lhe
deixei depois do seu casamento com Patrick, Anne. Eu já sabia o que ia acontecer
assim que vocês partiram para o futuro. Por favor, não sejam orgulhosos e aceitem o
meu presente. Conheço você como se fosse meu filho, Patrick, e finalmente consegui
entender e aceitar o fato de que você nunca tinha sido feliz trabalhando com finanças.
Sendo assim, use o dinheiro para comprar aquela fazenda com a qual sempre sonhou.
Quanto a você, minha querida Anne, trate de ser tão feliz quanto desejou que eu fosse.
E eu consegui mesmo ser feliz, pode acreditar. Com amor,
Jonathan Bartholomew Munro, Munro, Oklahoma, 1980.
Anne e Patrick fitaram-se com os olhos cheios de lágrimas de emoção, e depois
encararam o advogado.
Brandford entregou um cheque a Anne. Ao ler o valor escruto no cheque, ela
soltou uma exclamação de espanto. Era dinheiro mais que suficiente para comprar cinco
fazendas enormes!
— Eu tinha muita curiosidade em conhecê-la, Anne — disse o advogado,
sorrindo. — Eu conhecia a maioria dos amigos do Sr. Munro, mas nunca tinha ouvido
falar em você. O que despertou a minha curiosidade, de fato, foi o valor elevado do
cheque.
— A avó de minha esposa foi uma grande amiga de J.B. — explicou Patrick.
— Oh, compreendo... Bem, o Sr. Munro sempre foi um homem muito generoso.
Vejam o caso do meu avô, por exemplo. O Sr. Munro nem o conhecia direto, e mesmo
assim pagou os estudos dele. — Depois de checar as horas em seu caro relógio de pulso,
o advogado despediu-se. — Com licença, mas preciso ir embora para tratar de outros
compromissos. Adeus, e parabéns pelo presente que acabaram de ganhar!
Assim que Brandford Tompkins partiu, Patrick abraçou Anne.
— É bom saber que J.B. conseguiu ser feliz — disse ela, comovida. — Eu meu
preocupava tanto por causa dele!
— Eu também me preocupava, querida.
— Tompkins... Tompkins... Esse sobrenome me parece familiar, por que será?
— Você não lembra? Esse era o sobrenome da mulher que foi procurar J.B.
depois de ter sido abandonada pelo marido.
— Oh, é verdade! J.B. havia prometido cuidar da mulher e dos filhos dela. Pelo
visto, ele cumpriu a promessa.
— Pois então, esse advogado que veio nos ver deve ser neto de um dos filhos da
Sra. Tompkins.
— Tem razão. — concordou Anne. — J.B. era tão generoso... E você também é,
meu amor. Aposto que já está pensando em ajudar alguém com parte do dinheiro que
J.B. nos deixou, não é mesmo?
— Sim. Mas estou pensando em outra coisa, também.
— No quê?
— Em agradecer. — Patrick olhou para o céu e gritou:
— Obrigado, J.B, você deve ter adivinhado que eu ia achar difícil aprender a
trabalhar com microcomputadores! — Em seguida, puxando Anne pela mão, brincou:
— Vamos lá, agora que você vai ser mulher de um fazendeiro, é melhor aprender
a andar a cavalo!
BRENNA TODD
adora desafios. Cada livro que ela escreve tem uma temática nova,
envolvente. Seus heróis e heroínas são pessoas que poderíamos encontrar na rua — ou
numa aventura capaz de nos fazer voltar no tempo. O Enigma do Medalhão é uma
dessas histórias, trazendo um toque mágico de "e se fosse possível...?" para um
acontecimento da vida cotidiana, além de incluir uma boa dose de romance para deixar
as leitoras com água na boca. Brenna vive em Oklahoma com o marido e dois filhos.