O julgamento Alexandra Sellers

background image

O JULGAMENTO

(The Old Flame)

Alexandra Sellers



A pele, os cabelos e as roupas de Bem
Glass cheiram a sândalo. A boca voraz
tem o sabor de conhaque e desperta
todos os sentidos de Sandra. Ardendo de
desejo, ela levanta o rosto e o encara. E
o que vê a deixa confusa...
Bem a olha com paixão e lhe acaricia o
corpo como se quisesse recuperar de
repente os sete anos que haviam ficado
separados. “Isto que eu sinto por Bem é
atração física; é volúpia; é carência
afetiva...
Nenhum homem na face da terra sabe o
significado da palavra ‘amor’... Nenhum
homem na face da terra merece a
confiança de uma mulher...”


THE OLD FLAME

© 1986 Alexandra Sellers

Originalmente publicado pela Silhouette Books, Divisão da Harlequin Enterprises Limited.

O Julgamento

© 1987 para a língua portuguesa

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Esta edição é publicada através de contrato com a Harlequin Enterprises Limited, Toronto, Canadá.

Silhouette, Silhouette íntimate Moments e o colofão são marcas registradas da Harlequin Enterprises B.V.

Tradução: Maria Fernanda Bittencourt Nabuco

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3." andar

CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil

Caixa Postal 2372

Esta obra foi composta na Artestilo Ltda.

e impressa na Editora Parma Ltda

background image

CAPÍTULO I

— Ora, ela estava procurando por isto. Aliás, é o que todas fazem.

Os homens riram. Sandra, a única mulher à mesa, manteve-se séria,

revoltada com tal reação machista.

— Se ela tivesse sido baleada ou amordaçada, sua opinião seria a

mesma? — ela perguntou com calma, tentando aparentar indiferença.

A alusão a um outro caso fez com que alguns dos presentes mudassem de

atitude. Blake Roebotham, porém, famoso por suas defesas em casos de estupro,
não deixaria a provocação sem resposta. Ao levantar-se, amassou o guardanapo de
papel no prato e afirmou num tom tão pomposo quanto o que usava nos
tribunais:

— A diferença é que meu cliente não portava nenhuma arma perigosa.

Sendo a única mulher que participava daquele bate-papo, Sandra sentiu-se

profundamente insegura, endireitou-se na cadeira, preparando-se para dar-lhe uma
resposta. Detestava entrar neste tipo de discussão, mas não podia ficar calada: o silêncio
das mulheres diante de tais provocações servia apenas de incentivo para que o
machismo se perpetuasse.

— Todos os homens são providos de uma arma perigosa, caso decidam

utilizá-la desta forma.

De pé, Blake ajeitava o paletó sobre os ombros. Seus gestos eram estudados,

artificiais, e compunham uma imagem de falsa modéstia e distinção que não
convenciam. Olhando-a bem dentro dos olhos, teceu um outro comentário tão
sórdido e vulgar quanto o anterior, mais uma vez provocando espanto até mesmo
nos demais homens presentes. Como ninguém dissesse nada, Blake apenas
acenou sorridente e se afastou, ignorando-os.

Durante alguns minutos, pairou à mesa um silêncio pesado e constrangedor,

até que dois dos advogados presentes comentaram algo a respeito da hora. Sandra
recolheu os restos de seu lanche, depositou-os sobre a bandeja e os três levantaram-
se.

— Ben — Sandra falou devagar —, será que não poderia ter me

arranjado alguém menos arrogante? Este é o meu primeiro caso de acusação por
estupro e veja só quem terei de enfrentar no tribunal!

Embora estivesse sendo sincera, não esperava que Ben Glass a

compreendesse, mas foi o que aconteceu:

— Ora vamos, Sandra — disse-lhe com um brilho divertido nos olhos —

sei como você gosta de uma boa briga.

Nisso ele tinha razão. Sandra adorava o que fazia; durante alguns anos fora

uma excelente advogada de defesa e agora que havia sido nomeada promotora pelo

background image

Governo pretendia continuar a dar tudo de si pela carreira. Mas as táticas utilizadas por
Blake não se enquadravam na sua definição de "uma boa briga". Sabia que o
procedimento normal da defesa em casos de estupro era tentar denegrir a
reputação da vítima, mas Blake ia além disso. Ele tinha verdadeiro prazer em arrasar
moralmente as mulheres atacadas por seus clientes. Seu palavreado, baixo e
complexo, e o modo como formulava as perguntas possuíam o poder de aterrorizar
a vítima. Especialmente neste caso em que trabalhavam agora, em que uma garota
de dezessete anos havia sido confinada e violentada diversas vezes por um homem
que também a submeteu a uma verdadeira tortura mental. Sandra sabia que cada
riso estampado no rosto de Blake quando a interrogava no tribunal tinha o propósito
de reavivar na memória de Laney Meredith aqueles dias de cativeiro. Tudo nele era
intencional e Sandra daria tudo para não ter de enfrentá-lo todos os dias no
julgamento.

Mas não havia como fazer com que Ben a entendesse. Ele também achara

graça no comentário machista de há pouco e algo a fazia suspeitar de que sua
nomeação para este caso não havia sido meramente casual. Talvez os demais
advogados da Coroa, incluindo-se Ben, tivessem decidido que uma pequena dose
de arrogância de Blake lhe despertaria para o que teria de enfrentar dali em diante...

Roebotham era famoso por seu comportamento agressivo: fazia

questão de amedrontar a vítima e detestava enfrentar uma mulher como promotora.
Sandra tinha excelente reputação como advogada de defesa e talvez isso houvesse
suscitado algum desacordo por parte de seus atuais colegas, tão conservadores. Era
bem possível que a tivessem designado para o caso propositadamente, com o intuito
de desafiá-la.

Entretanto, caso suas suspeitas fossem fundamentadas, a atitude de Ben Glass

seria perfeitamente perdoável. Durante anos sempre houvera um certo antagonismo
entre eles que não se restringia apenas à rivalidade sempre existente entre a defesa e
os promotores da Coroa. Ele seria bem capaz de ter designado alguma outra
mulher para esta acusação, pelo simples prazer de ver a competência profissional de
uma colega sendo desafiada.

Porém, havia muito mais implicações envolvidas neste emaranhado de

possibilidades: se sua inexperiência neste tipo de caso e a falta de prática como
promotora a fizessem perder a causa, um psicopata perigoso permaneceria livre para
sair às ruas e cometer novos crimes, e a vítima dificilmente se recuperaria do trauma
psicológico que sofrerá.

Sandra acreditava que Ben deveria tê-la designado para algum outro caso

mais simples, de conseqüências menores, até que adquirisse firmeza na nova
função.

Havia, ainda, o fato de que, profissionalmente, seria péssimo perder uma causa

tão importante para um verme como Blake Roebotham.

Por todos estes motivos, Sandra estava encarando o caso de modo pessoal: à

noite, ao chegar em casa, não conseguia dormir direito e as agressões chauvinistas de
Blake, tanto fora quanto dentro do tribunal, começavam a deixá-la com os nervos à
flor da pele. Aparentemente, permanecia a mesma, mas, por dentro, o ódio por ele

background image

crescia. E Ben Glass era quem pagava por isso.

— Tudo bem com você, Sandra?

O outro colega havia se despedido deles e agora Sandra caminhava pelo hall do

Fórum ao lado de Ben, perdida em seus próprios pensamentos. A voz dele, calma,
pausada, tranqüilizou-a.

O mínimo que se poderia dizer sobre Ben Glass era que se tratava de um

homem muito inteligente e um advogado brilhante. Tinha por objetivo chegar à
Suprema Corte do Canadá e pela primeira vez ela o tinha como aliado no tribunal. Não
era fácil acostumar-se à idéia, mas decidiu que pedir-lhe ajuda talvez fosse um bom
começo.

— Francamente, Ben, estou meio perdida — disse descontraída. — Como

sabe é o meu primeiro caso deste tipo e a vítima portou-se de modo muito distante e
impessoal durante o depoimento. Não sei que impressão isto deverá causar ao júri e
receio que Laney não seja capaz de enfrentar um interrogatório muito minucioso sem
entrar em colapso.

Caminhando, chegaram à escada rolante que os levaria do subsolo aos

andares superiores onde ficavam os escritórios e os tribunais. Apoiando-se no corrimão,
Sandra lançou um olhar preocupado em direção a Ben, um degrau abaixo.

O rosto dele era bastante interessante: moreno, austero, profundo. A testa alta e

larga e os olhos muito brilhantes denotavam inteligência e perspicácia. Embora não fosse
alto, sua maneira de ser e o seu carisma o tornavam um homem bastante
interessante.

Por diversas vezes o enfrentara perante o tribunal e cada novo julgamento

representava uma nova experiência. Havia entre eles algo de especial que empolgava a
audiência. A causa mais recente que tiveram não fugia à regra: Ben Glass dilacerou-lhe a
cliente num interrogatório hábil e muito bem conduzido até tornar óbvio a todos que o
álibi usado tinha sido falso. Posteriormente, Sandra venceu a causa após apelar para a
Suprema Corte. Não era uma vitória da qual se orgulhasse de modo especial, mas
a disputa com Ben fora extremamente gratificante do ponto de vista profissional.

— Quer que eu dê um pulo até sua sala esta tarde para lhe esclarecer alguns

detalhes?

A oferta parecia gentil e sincera.

— Se não for incomodá-lo, gostaria muito — ela admitiu sorridente.

— Tenho uma entrevista com uma testemunha às duas e meia, mas não

leva mais do que trinta minutos.

Embora Ben não estivesse atuando numa causa naquela semana,

continuava muito ocupado com a preparação de um próximo julgamento por
assassinato. Sandra quase lhe disse para que não se incomodasse, mas sua
preocupação maior era Laney Meredith. Os conselhos dele seriam muito bons para
o seu desempenho como promotora e a condenação do réu um excelente passo na
recuperação de Laney.

background image

— Irei vê-la assim que puder.

Consultando o relógio enquanto trocava de escada rolante, Sandra tomou

consciência da tensão que a acompanhava desde a manhã. Eram duas e vinte da
tarde.

— Obrigada, Ben.

— Tem algum compromisso para jantar esta noite, Sandra?

Tomada de surpresa, ela agarrou-se com mais firmeza ao corrimão deslizante.

Recuperando-se, olhou para trás e o viu ao pé da escada esperando por uma resposta. A
sala dele ficava naquele andar.

Qual seria o verdadeiro motivo do convite? Estaria tentando relembrar os

velhos tempos ou agia na qualidade de chefe que quer proporcionar as boas-vindas a
uma nova colega? Sandra vinha se dedicando integralmente a este caso desde seu
primeiro dia como promotora e ainda não tivera tempo para se confraternizar com o
pessoal.

Enquanto pensava, a escada subia e um estranho seguia logo atrás dela.

— Não tenho certeza... — disse, curvando-se um pouco para encará-lo. —

Que tal um drinque?

Ben concordou e afastou-se com um aceno.

Sandra aceitou a possibilidade de ele ainda estar interessado nela. Em seguida,

descartou esta hipótese pois o romance entre eles acabara há anos. Além disso, ficara
sabendo que Ben havia se casado e portanto não a convidaria abertamente para um
encontro.

Isto era algo com que as mulheres que se aventuravam pelo mundo dos

homens ainda teriam que aprender: como distinguir o motivo real de um convite
como este. Ou, talvez, apenas ela ainda não houvesse aprendido. Ben continuava tão
atraente e brilhante quanto antes e Sandra não resistia a um homem inteligente.

No topo da escada, virou à esquerda do corredor e abriu uma porta de vidro

onde se lia: "Sala de Testemunhas".

Laney Meredith, imóvel, com o rosto absolutamente inexpressivo estava

sentada ao lado da mãe num pequeno sofá. Ao vê-la aproximar-se, apenas olhou-a de
modo indiferente.

— Olá — disse Sandra com muita cautela, num misto de otimismo e calma.

— Como vai?

— Bem... — respondeu a jovem de rosto delicado, num tom frio e remoto.

— Sei que está tendo uma experiência difícil, Laney.

Na realidade, Sandra não estava bem certa se havia dito as palavras corretas.

Uma de suas maiores dificuldades como promotora era não prever como o júri reagiria
aos depoimentos da jovem. Talvez fossem incapazes de entender os motivos que a

background image

levaram a tornar-se tão apática e distante.

Embora soubesse de antemão todas as dificuldades que encontraria no

novo cargo, jamais tivera consciência do que representaria para ela estar sempre
nesta posição de ataque. Era como se estivesse do outro lado da cerca e só agora
compreendia o ponto de vista dos atuais colegas. A posição do advogado de defesa
na maior parte das vezes era muito cômoda, pois cabia a ele apenas ouvir e analisar os
depoimentos e atacá-los, sem precisar convencer os presentes de que aquilo que lhes
parecia tão evidente era, na realidade, falso.

Todos os detalhes do seu novo cargo se mostravam novos para Sandra,

principalmente o fato de ter a polícia como aliada.

— Ele ainda vai interrogá-la a tarde toda, Laney — Sandra falou com calma.

"Ele", a quem Sandra se referia, tratava-se de Blake Roebotham. Da mesma

forma, procurava também nunca mencionar o nome do réu ao conversarem,
utilizando apenas o termo "agressor".

— Farei o possível para conseguir que o recesso seja adiantado. Acha que

pode agüentar mais umas duas horas?

Sandra achou melhor não contar à garota, por enquanto, que Blake com toda

certeza a interrogaria de novo na segunda-feira.

— Sim — afirmou com o mesmo murmúrio com que respondia ao

interrogatório. — Posso agüentar.

— Hoje à tarde ele fará o possível para irritá-la — disse-lhe num tom profissional.

Aliás, esta era a única atitude capaz de despertar o interesse de Laney que, a

qualquer demonstração de pena ou benevolência, fechava-se em si mesma,
recusando-se a responder qualquer pergunta. Sandra continuou:

— Não sei que artifícios usará mas, após irritá-la, vai encaminhar o interrogatório

de modo a fazê-la admitir certos fatos que posteriormente usará contra você.

Sandra tentou poupá-la de um acúmulo de instruções que normalmente

provoca certa retração na pessoa por ocasião do interrogatório. Por isso não chegou a
aconselhá-la a não aparentar sinais de raiva ou irritação. Em geral, estas reações
provocavam antipatia nos jurados que, historicamente, reprovavam qualquer
demonstração de rancor por parte das vítimas de estupro. Embora Sandra
considerasse um excelente recurso o fato de Laney conseguir manter a calma, achou
melhor não arriscar a deixá-la mais insegura.

— Contar mentalmente até cinco antes de responder a qualquer pergunta

talvez a ajude, Laney.

A garota já ouvira o mesmo conselho antes e o seguira à risca. Contudo, Blake

tinha quinze anos de prática e sabia exatamente. como suscitar o ódio das vítimas até
arrancar-lhes um depoimento furioso que sempre causava ótima impressão sobre o
júri, ganhando pontos a favor do réu. Era um confronto injusto.

background image

— Não se preocupe comigo, doutora.

A esperança maior de Sandra era que os jurados compreendessem a apatia

de Laney.

— E obrigada — acrescentou a garota quando Sandra já saía da sala.

Percorrendo o corredor, Sandra entrou na enorme sala reservada às

advogadas do Fórum; restavam-lhe cinco minutos antes de começar a sessão. Como
sempre, a reação dos jurados era imprevisível e preocupante, muito diferente do júri
com o qual inúmeras vezes se defrontara como advogada de defesa; neste
julgamento, o júri se dividia em sete mulheres e cinco homens. Sandra conseguira fazer
com que a maioria fosse mulheres mas, também historicamente, a possibilidade de
que elas votassem a favor do estuprador não diferia da dos homens e o fato a fez duvidar
das vantagens da conquista. Fora por este motivo que Blake se demonstrara tão solícito
a ponto de ajudá-la na escolha — sob tais condições, sua vitória seria ainda mais doce.
Contudo, Sandra tinha fé que com todo o movimento em prol da libertação feminina,
os preconceitos das próprias mulheres contra as vítimas de estupro houvessem
desaparecido, levando-as a colocarem-se no lugar da vítima e votar contra o réu.

No toalete, olhando-se no espelho, lavou as mãos e penteou os cabelos,

tentando recuperar a calma. Naquela manhã, fornecera uma informação importante
a Blake, tentando fazer com que ele caísse numa armadilha.

Ao fazê-lo, correra um risco enorme pois deixara em suspenso um dado crucial

para a defesa. Mas, caso Blake não voltasse ao assunto, ela o faria, trazendo-o para um
reexame.

O caso precisava de ação para suscitar o interesse dos jurados. As denúncias e

provas apresentadas por Laney haviam perdido grande parte do impacto que
provocariam por causa do comportamento apático que a garota demonstrava.

A tarde prometia ser exaustiva: se suas suspeitas se confirmassem Blake faria

um ataque implacável à vítima e era preciso protegê-la contra qualquer pergunta
ardilosa, deixando evidente ao júri a hostilidade de Blake com relação à
vulnerabilidade de Laney. Com muita habilidade, deveria obter a palavra final do
recesso das quatro e trinta. Por ser sexta-feira, os jurados teriam quarenta e oito horas
pela frente para pensarem sobre o que ouviram e, nestes casos, o último orador
sempre levava vantagem.

Entretanto, Blake talvez já estivesse prevendo sua intenção e resolvesse precipitar

o clímax de sua argüição. Segundo a lei, o recesso só poderia ser antecipado caso a
vítima se tornasse histérica, o que lhe parecia totalmente improvável. Após ter feito as
maiores brutalidades, o agressor agora fazia questão de encarar a vítima com toda
tranqüilidade. Laney reagia com uma distância doentia, e na certa se tornaria bem
mais distante ao ser atacada por Blake.

No entanto, a experiência certamente já o levara à mesma conclusão. Laney

era apenas mais uma mulher submetida à sua crueldade.

Sandra concluiu que a melhor política seria agir de acordo com seus princípios

éticos e morais. Caso Blake antecipasse o clímax, deixaria que ficasse com a palavra até

background image

quase o momento do recesso, dando-lhe tempo para expor sua tática e preparar o
desfecho. Desta forma, o júri também teria tempo para digerir os argumentos que ela
usasse. Quem sabe, então, os jurados reconhecessem a sordidez de um advogado
como Blake Roebotham, incapaz de preocupar-se com a dor de um ser humano.

Sandra sentiu um ímpeto incontrolável de proteger aquela garota e, apesar da

falta de prática em promotoria, agradeceu a chance que tinha de, ao menos, fazer algo
pelas mulheres.

Amaldiçoando os homens, colocou os papéis na pasta de couro e dirigiu-se ao

tribunal.

background image

CAPÍTULO II

Noite de sexta-feira. Laney Meredith se encontrava no ponto de ônibus

quando surgiu Hughie Macomber num automóvel esporte vermelho. O clima
estava frio e muito úmido. Ela havia perdido a condução anterior e teria de esperar
aproximadamente vinte minutos até que a próxima viesse. Foi então que, diante da
terceira oferta de Hughie, Laney decidira acreditar na honestidade do rapaz, aceitando
uma carona direto para casa.

Uma vez dentro do carro, notou que o comportamento dele mudara.

Macomber disse-lhe que trazia uma arma no cinto, que era chefe de uma gangue
poderosa e que, caso não obedecesse, ela e toda a família seriam mortos antes do
amanhecer. Então, dirigiu até um afastado bairro industrial, onde parou o carro num
estacionamento deserto, violentou-a e a abandonou.

Quinze minutos mais tarde, no exato instante em que algumas pessoas saíam

de um bar cujas luzes ofuscavam as vistas turvas de Laney, o carro vermelho retornou
em alta velocidade, e o rapaz a obrigou a entrar novamente no veículo.

Em seguida, Hughie Macomber levou-a à casa vazia de uma família que ele

sabia estar em férias e trancou-a no porão.

O rapaz a manteve lá durante três dias sob um clima de absoluto terror, indo e

vindo a intervalos irregulares, deixando-a longos períodos sem acesso sequer a um
banheiro. No terceiro dia Laney Meredith encontrou uma chave de fenda esquecida
embaixo do aparelho central de calefação, com a qual conseguiu forçar as
fechaduras de duas portas que a separavam do resto da casa. Apavorada, enrolou-se
numa toalha de mesa e correu à casa mais próxima em busca de ajuda.

Esta era a garota que Blake Roebotham afirmou ter "procurado por isso" e de

cuja culpa tentava convencer os jurados.

A primeira atitude de Blake naquela manhã, ao iniciar o interrogatório de

Laney, foi aproximar-se da garota num gesto cênico e agressivo. Sandra já conhecia
esta tática, cujo objetivo era trazer de volta, à memória da vítima, a lembrança do
agressor, deixando-a ainda mais nervosa e incapaz de prestar um depoimento
convincente.

Durante todo o interrogatório, gesticulara e falara de modo retórico, ora pedindo

a Laney que falasse mais alto e que repetisse o que dissera, ora duvidando de suas
palavras. Tudo indicava que a tática continuaria a mesma na parte da tarde e Sandra
sentou-se calmamente no tribunal, à espera do ataque.

— Bem, Laney — disse Blake reiniciando o interrogatório em voz alta —,

vamos voltar ao porão.

Sandra sabia que o tom exageradamente alto e impessoal deveria causar

pavor na pobre garota que, mais uma vez, era forçada a relembrar os momentos
terríveis que vivera.

background image

— Você afirmou que queria fugir de meu cliente. Não foi isso o que disse?

— Sim.

— Neste caso — prosseguiu ele, com uma breve pausa —, por que

demorou três dias até que escapasse do porão da casa dos Miller?

Laney piscou os olhos como se tentasse focalizar algo e Sandra notou que

contava mentalmente até cinco.

— Porque foi quando achei a chave de fenda.

— Ah... E você a procurou durante três dias?

Pausa.

— Não.

— Ah, não... — repetiu ele com falsa surpresa. — Isto significa que não

procurou algo que a ajudasse ou que não tentou escapar durante três dias?

— A princípio tentei escapar, mas então ele voltou e levou minhas roupas

embora e... depois disso não tentei mais.

— Ora... e por que não? Seria porque, na verdade, estava até feliz por estar ali e

esperar pelas visitas de meu cliente?

— Não.

— Por que, então, desistiu de tentar fugir? Pelo que eu sei, num porão, a gente

normalmente encontra muitas ferramentas... Poderia haver muitos objetos que a
ajudassem a arrombar a porta. Você por acaso procurou algo durante estes três
dias?

— Não.

— Por que não?

— Eu não podia procurar no porão; ele me trancou no quarto do

aquecimento — a voz de Laney era monocórdica.

— E o que a senhorita fez no quarto?

— Procurei algo para vestir.

— E encontrou alguma coisa? — Roebotham não escondia o tom de

escárnio.

— Encontrei um pedaço de toalha velha, que ele levou embora depois.

— E então, voltou a ser humilde e desistiu de escapar?

— Não era humildade; eu tinha frio. Eu estava congelando.

— Frio... Bem, isto me intriga pois você acabou de afirmar que estava presa no

quarto do aquecimento, não foi?

background image

— Sim.

— O fato ocorreu em fevereiro, não? Se posso crer no que me disse,

tratava-se de um frio e úmido mês de fevereiro. Você estava junto ao aquecimento. Por
acaso, ele não aquecia o local?

— Não. fazia muito frio lá.

— Pelo que pude entender, os Miller haviam saído de férias. A casa não

estava abandonada, mas apenas vazia por duas semanas, certo? É de se presumir
que eles não quisessem que os canos congelassem neste período e, ainda assim,
você afirma que o aquecimento estava desligado?

— Eu não disse que estava desligado; ele não aquecia o lugar.

— Então, ele estava funcionando.

A voz de Blake adquiria um tom de triunfo.

— As vezes.

— Entendo. Com que freqüência funcionava?

"Cuidado para não escorregar, Blake", Sandra pensava com seus botões. Com a

alta do custo de vida provavelmente todos os jurados também desligariam o
aquecimento ao saírem de férias. Além disso, todos sabem que um mínimo de calor
seria suficiente para evitar o congelamento dos canos, mas não para aquecer uma
pessoa despida.

E, caso o júri não soubesse, ela dispunha de duas testemunhas que

esclareceriam melhor a questão: o sargento que mediu a temperatura do local no dia
em que Laney escapou e o médico que a atendeu, atestando que ela sofrerá males
causados pela longa exposição ao frio.

— Não me lembro, mas raramente...

— Quer dizer que você passou muito frio lá embaixo — afirmou, como se o

fato não tivesse muita importância.

Não houve resposta por parte de Laney, que havia sido instruída a não falar

nada, a menos que uma pergunta direta lhe fosse dirigida.

Ela nunca concordava ou discordava de nenhuma afirmação pois, entre

uma pergunta e outra, parecia recolher-se em si mesma, num mundo inatingível.

— Não passou?

Laney apenas olhou-o, levando-o a repetir a pergunta com mais agressividade.

— Não entendi a pergunta.

— Você sentia frio naquele quarto? — esclareceu, ocultando qualquer traço

de irritação.

— Sim, eu estava gelada.

background image

— E meu cliente estava ciente disto?

— Sim — Laney respondeu depois de algum tempo.

— Alguma vez você disse isso a ele?

— Não me lembro. — A garota mais uma vez demorou a responder.

— Não se lembra... Existe a possibilidade de que não tenha dito?

— Talvez — respondeu, dando de ombros. — Acho que falei a ele. De

qualquer forma, ele sabia; não era preciso que eu lhe dissesse.

Blake sorriu para o júri.

— Se os homens pudessem ler o pensamento das mulheres como elas

acreditam que possam, haveria muito menos divórcios no mundo!

Alguns homens do júri acharam graça. Sandra não se abalou pois o gracejo

surtira efeito contrário nas juradas.

— Portanto — prosseguiu a defesa —, seria razoável afirmar que durante os

três dias em que esteve naquele quarto, você se preocupou muito mais com a falta
de calor do que em fugir?

— Preocupei-me com ambos.

— Mas não é verdade que você só encontrou a chave de fenda enquanto

apalpava o aquecedor, tentando extrair-lhe mais calor.

Ao dar por si, Sandra mordia o lábio inferior. Ali estava a armadilha pronta, e

Blake estava prestes a cair. Sua excitação era tanta, que mal podia permanecer sentada
à espera do que viria. Como havia previsto, Blake agora ia alegar que, se Hughie
houvesse lhe fornecido calor, a vítima não teria se preocupado em escapar. Que, na
verdade, se não fosse pelo frio, até ficaria bastante satisfeita em se submeter àquele
tormento e ao estupro.

— Não.

A porta rangeu baixinho e, ao voltar-se, Sandra viu Ben Glass sentando-se

junto à audiência. Ela gostaria que todos os machistas estivessem ali naquele instante
em que o temível Blake Roebotham estava prestes a ser desbancado.

— Não? — redargüiu ele, verdadeiramente surpreso. — Não foi isso que

você afirmou esta manhã?

— Foi.

Blake estava visivelmente confuso, mas ainda não havia notado a armadilha.

— Esclareça melhor, Laney.

Diga-lhe, implorava Sandra mentalmente. Repita exatamente o que me

contou.

background image

— Eu apalpava o aquecedor quando encontrei a ferramenta, mas não queria

extrair mais calor, eu tentava fazê-lo explodir.

Ouviu-se uma exclamação uníssona.por todo o tribunal. Mas Blake não era do

tipo que se deixava impressionar por tal declaração em que Laney revelava desespero,
e prosseguiu:

— Entendo. Pretendia explodir a casa para poder escapar?

Ele não esperava que a vítima respondesse, mas, após um instante de silêncio,

Laney afirmou:

— Não. Eu estava presa no quarto do aquecedor e pensei que se ele

explodisse eu morreria.

Nova exclamação ecoou pelo tribunal. Agora, certamente os jurados

entenderiam melhor o comportamento atual da garota.

Agindo com rapidez, a defesa partiu para uma outra pergunta com o intuito

de desfazer o impacto causado no júri.

— Não é verdade, Laney, que quando meu cliente chegava para vê-la,

você corria até ele e o abraçava?

— Sim, é verdade.

— Você mal podia esperar para ouvir a chave na fechadura, não é?

— Sim, eu precisava do calor do corpo dele.

Sua voz começava a transparecer alguma emoção. Era evidente o quanto

odiava ter sido submetida a tamanha humilhação pelo agressor.

— Presumo, então, que àquela altura você estivesse completamente nua,

certo?

Blake fazia a coisa soar maliciosa.

— Sim.

— Portanto, diante de sua acolhida, não seria justo que meu cliente presumisse

que você apreciava a companhia dele?

— Não.

— Mais alto, por favor. O júri está tendo dificuldade em ouvi-la — disse o

advogado em mais um de seus gestos estudados.

— Não — Laney repetiu.

— Não? Mas você corria para a porta toda vez que ele chegava, não é?

Como acabou de afirmar, estava completamente nua e se abraçava a ele com força,
certo?

— Certo.

background image

— E ainda assim afirma que ele não poderia tê-la interpretado mal,

senhorita Meredith?

— Não, ele sabia que eu tinha frio. Toda vez que vinha me ver, trazia consigo

um cobertor, o qual levava embora quando partia.

Mais uma vez o júri espantou-se e Blake finalmente percebeu que caíra numa

armadilha. Aproximou-se mais da vítima e continuou com o interrogatório.

— Esta manhã, você identificou algumas das roupas que usava na noite em

que aceitou carona de meu cliente. Todas estas roupas são suas?

Blake dirigiu-se à mesa lateral onde estavam expostas as peças.

— Sim.

— Um macacão azul, um casaco, um lenço, um par de meias e um par de

botas. Isto era tudo o que usava?

— Não, não tudo.

— O que mais você vestia?

— Um gorro de lã e luvas.

— Ah! E onde estão?

— Acho que caíram no estacionamento.

— Entendo — disse ele bem-humorado. — A que estacionamento se

refere?

A pergunta foi feita como se houvessem muitos outros estacionamentos

envolvidos no caso.

— Aquele onde fui violentada.

— E antes que começasse a caminhar sob o frio e a garoa, chegou a procurar

pelo gorro e as luvas?

— Não.

— Mas a noite não estava fria? Você não afirmou que o motivo que a levou a

entrar no carro de meu cliente foi o frio?

— Sim.

— E por que não procurou pelo gorro e pelas luvas?

— Não sei.

— Não sabe. Numa noite tão fria e úmida a ponto de fazê-la aceitar carona de

um estranho, você não se lembrou do gorro e das luvas. Laney, como sabe, a polícia
nunca os encontrou nem no estacionamento nem no carro de meu cliente. Isto não
prova que está mentindo, Laney? Não está claro a você que não foi o clima que a
levou a entrar no carro de...

background image

— Contesto, Excelência! — disse Sandra com firmeza. — Os dados sobre o

clima daquela noite estão à disposição de todos. A vítima não está habilitada a afirmar
nada que vá além de sua opinião.

— Contestação recusada, doutora Holt. Prossiga, doutor Roebotham.

— Obrigado — disse, num tom de satisfação. — Não fica claro, Laney,

que você e meu cliente tinham marcado um encontro para que ele a apanhasse
no ponto do ônibus?

— Não, eu apenas esperava condução.

— Diga-me, isto é mesmo tudo o que vestia aquela noite? Vejo aqui um

macacão, as meias, um lenço, um casaco e a bolsa.

— Sim, faltam apenas o gorro e as luvas.

Sandra agitou-se na cadeira. Havia prevenido Laney de que a defesa lhe faria

esta pergunta, mas, como a maioria das vítimas, formara-se um bloqueio em sua
mente que a fazia esquecer-se dos dados mais traumatizantes. Não ia ser fácil tirá-la
desta enrascada.

— Laney, por que não usava peças íntimas aquela noite? — perguntou

Blake num tom acusatório.

— Eu usava roupas de baixo — respondeu ela, aparentemente calma. —

Pensei que o senhor só se referia às roupas de cima.

Blake era famoso nos círculos legais por sua tática de exibir nos tribunais as peças

íntimas das vítimas de estupro. Era um artifício sórdido e cruel que transformava o
julgamento numa espécie de noticiário do mundo-cão. O modo como pronunciava
o termo "calcinha" perante a audiência tinha o poder de envergonhar a vítima, que
passava a ser vista como mero objeto sexual pelos homens do júri. Em seguida,
proferia uma verdadeira tese a respeito dos trajes íntimos expostos, de modo a deixar
evidente que a vítima "planejara" encontrar um homem qualquer que fizesse com
ela o mesmo que Hughie Macomber fizera com Laney.

— Repita mais alto, por favor.

— Eu usava roupas de baixo — Laney afirmou.

— Mas você .acabou de dizer sob juramento que isto era tudo o que vestia.

— Protesto, Meritíssimo! Minha cliente já explicou que compreendeu mal a

pergunta — Sandra interferiu.

O juiz concordou, repreendeu Blake e pediu-lhe que prosseguisse.

— Por acaso esqueceu-se de mencionar mais alguma coisa?

O cinismo dele era irritante.

— Acho que não.

— Mais alto, por favor, senhorita Meredith!

background image

— N... não — Laney falou.

— Ah... então foi só das roupas de baixo que você se esqueceu?

— Meritíssimo, eu protesto! — Sandra levantou-se.

— A pergunta já foi feita e respondida. Minha cliente interpretou mal meu

nobre colega, mas este é um erro comum.

— Penso que seria melhor o senhor adotar uma outra linha de interrogatório,

doutor Blake — proferiu o juiz.

— Enquanto esteve no porão dos Miller, Laney, você estava usando roupas

íntimas?

— A princípio, sim. Depois, ele também as levou embora.

— Portanto, quando conseguiu finalmente escapar de modo tão heróico,

estava nua?

— Sim.

— Não encontrou suas roupas na casa dos Miller?

— Não, não encontrei.

— E quando foi que as viu novamente? — Blake sorriu com cinismo ao

perguntar.

— A polícia que encontrou...

— Entendo. Confesso estar um tanto intrigado, Laney. Se eu fosse o policial

que a ouviu na delegacia, e que mais tarde encontrou suas roupas, creio que ficaria
curioso. Quando o policial lhe mostrou as roupas ele perguntou se você usava peças
íntimas na ocasião em que meu cliente lhe ofereceu carona?

— Sim.

— E o que disse a ele?

— Disse-lhe que usava. — O olhar de Laney parecia distante.

— E ele ficou surpreso? — perguntou, apontando para as peças expostas

sobre a mesa.

— Acho que não.

— Acha que não?

Blake estava perdendo terreno e não sabia se prosseguia ou não com o

interrogatório. Sandra rezava para que ele ousasse continuar.

— Por acaso a polícia mostrou-lhe as roupas encontradas e pediu-lhe que as

identificasse, Laney?

— Sim.

background image

— E por que as roupas íntimas não foram juntadas a estas como prova

contra meu cliente?

— Não sei.

— Meritíssimo, exijo que minha nobre colega explique os motivos.

— As roupas íntimas da vítima — afirmou Sandra — não foram incluídas

aqui pois, devido à pressão psicológica à que minha cliente foi submetida, ela se mostrou
incapaz de identificá-las com absoluta certeza.

O juiz já havia presenciado a atuação de Sandra em outros julgamentos e

percebeu tratar-se de um trunfo.

— Bem, aguardemos que as provas sejam trazidas perante o júri e creio

que a testemunha já esgotou este assunto — o juiz falou.

— Excelência, já que essas roupas serão utilizadas como provas contra meu

cliente, gostaria que fossem mostradas aqui e que a testemunha as identificasse,
perante o tribunal. — Blake não desistia.

Sandra baixou os olhos para que Blake não percebesse sua exultação; ele

caíra como um principiante.

Ao erguer a cabeça, deparou com o olhar inquiridor do juiz.

— Bem estou certa de que o nobre colega sabe que poderá solicitar a

testemunha para novo depoimento a qualquer instante, portanto peço à senhorita
Laney que deixe a tribuna. Gostaria de chamar o sargento...

— Ora — interrompeu Blake, tomando consciência da situação delicada

em que se achava —, não vejo necessidade de chamarmos outra testemunha.
Mostre as peças apenas à vítima para que possa identificá-las.

Ele estava sendo ridículo: uma prova não podia ser apresentada fora de

contexto e Sandra já dissera que Laney seria incapaz de reconhecê-las. A única
ligação das roupas com o caso era o fato de a polícia tê-las encontrado no guarda-
roupas de Hughie Macomber e, portanto, seria preciso que o sargento viesse depor.

Isso ia contra os planos de Blake, que se esforçava para convencer o júri de que

a acusação obstruía seu desempenho.

Sandra mal conseguia conter o riso. Chegava a hora de Blake provar de seu

próprio veneno.

— Tenho certeza — afirmou — de que meu colega conhece as normas

de procedimento. Ou será que, após tantas exigências e acusações, já não faz mais
questão de esclarecer este ponto?

Blake faria papel de tolo perante o júri caso voltasse atrás! A única saída era

enfrentar o desafio.

— Absolutamente, vejamos as provas.

background image

— Sua testemunha; o policial, está presente, doutora Holt? indagou o juiz.

Sandra voltou-se para a audiência onde havia poucas pessoas, a mãe de Laney.

a família de Hughie Macomber, um ou dois repórteres e Ben Glass?

Ao vê-lo. seus olhares se cruzaram por um breve mas significativo

momento. Ben encarou-a firmemente, transmitindo-lhe otimismo e aprovação, o que
veio aumentar-lhe ainda mais a autoconfiança. Era muito reconfortante saber que
contava com o apoio dele. Afinal, Ben tinha grande experiência como promotor.

— Meritíssimo, ele não está presente aqui no tribunal, mas encontra-se no

edifício. Posso mandar localizá-lo e trazê-lo em minutos.

Chamem o homem! — interveio Blake, já impaciente.

"Com muito prazer", disse Sandra para si. " E quando o júri tiver ouvido o

depoimento do sargento, você se arrependerá de ter usado esta tática absurda de
humilhar as mulheres pelo modo como escolhem suas calcinhas."

As palavras do policial seriam de grande ajuda para Laney pois viriam apenas

confirmar tudo o que dissera até ali. conquistando a simpatia dos jurados.

"Da próxima vez, veja se tenta, algo um pouco mais original, doutor

Roebotham. pois seu próprio procedimento odioso incriminará seu cliente".

background image

CAPÍTULO III

Ben Glass ergueu o copo e fez um brinde.

— Aos velhos tempos! — anunciou, observando-a.

Sandra imaginava o que ele estaria querendo dizer com aquilo, sem saber ao

certo a que tempos se referia. Pelo modo como a olhava, só poderia estar relembrando
os dias já distantes em que haviam vivido um grande romance. Mas agora que
trabalhavam juntos, ela preferia esquecer o passado.

Tentando não parecer rude. levantou o copo e falou secamente.

— Aos velhos tempos. Está triste por ter perdido uma adversária?

— Sim, sempre gostei de tempestades...

Incapaz de sustentar o olhar que Ben lhe dirigia, Sandra baixou os olhos, e

recriminou-se pela própria fraqueza. "Tempestades..." A palavra a fez lembrar-se do dia
em que ele lhe dissera: "Estar com você é como enfrentar uma tempestade: quando
se consegue resistir à sua fúria, encontra-se a bonança". Haviam acabado de fazer
amor e, ao dizê-lo, Ben estava deitado sobre ela, acariciando-lhe o rosto.

O romance entre eles fora breve, porém intenso, e muitas vezes depois

haviam se confrontado profissionalmente nos tribunais.

Confusa, tentou se convencer de que Ben não se referira ao caso amoroso mas,

sim, à vida profissional.

— Não sei se gosto de tempestades, mas sentirei falta de nossos confrontos nos

tribunais.

— É mesmo? — indagou ele, arqueando a sobrancelha com ar divertido.

— Perder para você não era vergonhoso — ela prosseguiu, ignorando as

insinuações —, mas uma vitória tinha um sabor todo especial.

Sandra estava sendo sincera pois Ben sempre fora um excelente promotor e

enfrentá-lo na corte era motivo de júbilo para qualquer advogado.

— Existem outros lugares onde se pode perder ou ganhar um confronto.

A insinuação pegou-a de surpresa e a fez perder o fôlego. Assustada, voltou os

olhos para ele, que a encarava bastante sério. Ben parecia estar relembrando o dia em
que a perdera.

— Sem dúvida — afirmou, já mais controlada —, mas sentirei sua falta.

Acho muito pior enfrentar homens do tipo de Blake Roebotham.

Sutilmente conseguira desviar o assunto.

— Ora. Blake não é tão mau, mas acho que se meteu numa enrascada

esta tarde. Diga-me, como conseguiu planejar tudo? Colocar o depoimento do policial

background image

durante o interrogatório de Laney foi sensacional.

O interesse imediato de Ben surpreendeu-a. Teria interpretado mal suas

insinuações?

— Roebotham pensa que é muito esperto, mas afobou-se ao perceber

que tinha caído numa armadilha. Caso não tivesse apelado para a velha tática, as roupas
íntimas não teriam obtido tanta importância. Sua imprudência beneficiou a vítima, pois
trouxe ao conhecimento do júri que foram encontradas no guarda-roupa do réu.
Além disso, o sargento apenas confirmou tudo o que Laney dissera antes e agora
todos sabem que ela não mente.

— Tem certeza de que ele sabia onde estavam as roupas?

— Claro que sim, mas eu não ia dizer-lhe que ela não fora capaz de identificá-

las pois sabia que Blake ia levantar a questão. Graças a Deus, Blake agiu como de
costume e tudo ocorreu como eu havia previsto.

— Sem dúvida — concordou Ben, demonstrando satisfação. — Estou

certo de que ele jamais imaginara sofrer um golpe deste, quem sabe isto lhe sirva de
lição.

— O problema de Blake é que tudo nele é ensaiado e, portanto, previsível.

Espere só até eu esgotar a questão das roupas íntimas da vítima... Vou fazê-lo
arrepender-se amargamente de seu comportamento odiável.

— Quer dizer que você planejou tudo? Inclusive fazer com que a garota se

recusasse a fazer a identificação como parte de uma tática?

A suspeita surpreendeu-a mas, de certa forma, a reação de Ben era explicável.

As coisas funcionam assim no mundo das leis, em que muitas vezes as vítimas são
instruídas a não revelarem certos detalhes, e coisas do gênero. Mas nada disso
ocorrera com Laney.

— Ela se recusou a identificá-las, Ben. Mal conseguimos fazê-la olhar para as

peças encontradas pela polícia. O médico disse que este tipo de reação é normal pois
inconscientemente a pessoa acredita que ao se negar a reconhecê-las, nega
também que o fato tenha ocorrido consigo. Há, ainda, o agravante de que as peças
íntimas são as únicas rasgadas e ensangüentadas.

Num tom mais sério, Sandra acrescentou:

— Ele as arrancou com uma faca. Você pode calcular o que esta garota deve

sentir ao vê-las.

Inconformada, imaginava o pesadelo horrível que Laney vivera e chegava a

crer que houvessem muitos outros detalhes que o trauma a levara a omitir.

Ben juntou as mãos, apoiando-as sob o queixo, e perguntou:

— Há algo que não entendo: se a garota já testemunhou que ele as arrancou

com uma faca, por que, então, Blake lhe perguntou se estava usando roupas de
baixo?

background image

— Mas Laney ainda não testemunhou — confessou sorrindo —, e foi aí que

corri o maior risco. Veja: eu tinha certeza de que, quando as roupas fossem apresentadas
pelo policial, Blake perguntaria se a vítima já as identificara e, então, tentaria mostrar ao
júri que ela não tinha condições para isto. Nessa hora, eu traria a público a forma como
Laney fora despida.

— Humm... Uma manobra arriscada, mas muito interessante. Por que

planejou o interrogatório desta forma?

— Porque eu queria que os jurados ficassem impressionados com o

sofrimento dela, com o modo como fora tratada pelo réu. O fato de Hughie ter lhe
arrancado a calcinha com uma faca demonstra bem seu caráter maníaco e violento.

Interrompendo-se, tomou um longo gole do drinque e acrescentou:

— Sei que me arrisquei demais, mas não teria agido assim num outro caso

qualquer. Felizmente tudo saiu bem melhor do que eu esperava.

A atitude de Blake em querer que o policial depusesse antes do recesso havia

sido uma verdadeira bênção dos céus. Todas as roupas de Laney haviam sido
encontradas no armário de Hughie e, portanto, Blake fora bastante breve em seu
interrogatório.

— Aposto que ele vai passar todo o fim de semana arquitetando um plano

para me derrubar na segunda-feira pela manhã. Blake não vai sossegar enquanto
não vir a vítima sendo humilhada.

O desgosto dela era tanto, que Ben chegou a comentar:

— Roebotham não é tão perverso assim. Não acha que está exagerando?

O comentário machista indignou-a.

— Quando será que as pessoas vão despertar para o verdadeiro significado

do comportamento dele? Blake faz parte de todo um sistema machista que tenta nos
impor a idéia de que o agressor nunca pode ser totalmente culpado pelo estupro.
Tentar diminuir a importância de um crime é, também, uma forma de participar
dele.

Ben a olhava, espantado com estas declarações.

— É esta a sua interpretação. Sandra?

— Claro!

— Mas trata-se apenas de uma tática legal, todos agem assim.

— Apenas nos casos de estupro.

— O quê?

— Por acaso alguém pergunta para o dono de uma joalheria assaltada

como as jóias estavam expostas na vitrine? Será que o acusam de ter provocado o
roubo por exibi-las de modo tentador? Advogado nenhum ousaria sugerir em tal

background image

caso que a vítima havia "procurado por isso".

— Ora, Sandra, não acha que está sendo incoerente?

— Pense nisso, Ben — ela pediu, embora soubesse que ele não o faria.

— Sandra, há milhares de anos os homens pensam assim e...

— Acho que já está ficando tarde — disse, interrompendo-o de modo

impaciente. — Preciso ir.

Sem se mover, ele a observou com seus olhos escuros muito brilhantes.

— Quando poderemos jantar juntos?

— Sinto muito, Ben — ela respondeu, pondo-se de pé — mas tenho

andado muito ocupada.

— Você está namorando alguém? — Ben perguntou.

— Estou — ela mentiu após uma breve pausa.

Durante os dois últimos anos, Sandra mergulhara de cabeça nos negócios,

procurando preencher todo o tempo livre mas, por orgulho, resolveu não revelar a
verdade.

— Isso faz diferença? — perguntou curiosa.

Um riso indolente desenhou-se nos lábios de Ben.

— Não muita — respondeu. — E quanto tempo acha que ele vai durar?

— Quem?

Percebendo a que ele se referia, Sandra tentou controlar a raiva que crescia

dentro de si.

— Seu namoradinho. Pelo que sei, você não é de se dedicar durante muito

tempo a uma pessoa.

Furiosa, lançou-lhe um olhar fulminante. As insinuações de Ben tinham o poder

de fazê-la perder o controle. Entretanto, não entendia o porquê da provocação.

— E o que o levou a tal conclusão?

— Estive conversando com um dos que você despachou assim, sem mais

nem menos...

— Assim como fiz com você? — ela sorriu, irônica.

Somente ao perguntar foi que Sandra caiu em si. Afinal Ben conseguiu fazê-la

referir-se ao passado. Irritada por ter sido tão ingênua, mordeu o lábio inferior com toda
força. A lembrança daqueles dias era algo que tentava apagar de sua mente. Onde
ele estaria querendo chegar?

— De alguma forma, sim — ele concordou calmamente. — Mas, de

background image

outras, não.

— Quais? — Sandra o encarou.

— Conheço alguém que ficou indignado com o tratamento que recebeu.

— Ah, é?

"Quanta ousadia", disse ela intimamente, mal podendo disfarçar a raiva.

— Mas não se preocupe, Sandra, ele conseguiu se recuperar. Afinal não

estava perdendo grande coisa...

Sandra balançou a cabeça sem acreditar no que ouvia.

— Você deve estar ficando louco — explodiu, colocando a bolsa sobre a

mesa com violência enquanto sentava.

— Não estou, não — respondeu ele sorrindo como fazia nos tribunais ao

ver que o réu ficava confuso.

— Pois, então, eu estou. Está querendo me dizer que ficou sete anos

magoado com nosso rompimento?

— Não. E você? Está tentando negar que houve algo entre nós durante sete

anos?

— Pelo amor de Deus, Ben! — Era inacreditável. — Você é um homem

casado.

— Estive casado dois anos; separei-me há três anos e obtive o divórcio há

poucos meses. Tem certeza que não sabia disso?

Ao ouvi-lo. Sandra lembrou-se de que escutara rumores sobre a separação.

— E houve, por acaso, algo entre nós durante seu casamento? —

perguntou-lhe com docilidade.

— Devo admitir que não, mas minha mulher não pensava assim. Todo o

tempo em que estivemos casados ela me atormentou com o ciúme que sentia de

você.

— De mim?! Mas, Ben, nós quase não conversávamos fora do tribunal!

— Um mês depois de casados, ela foi assistir a um julgamento onde você fazia

a defesa e eu, a acusação. Era o seu primeiro caso de grande repercussão: "A União
versus Pinchin and Pinchin", lembra-se?

Ben fez uma pausa, tomou um gole de uísque e prosseguiu:

— Foi nosso primeiro confronto. Devemos ter transmitido algo especial à

audiência pois minha mulher nunca esqueceu aquele dia.

Sandra sorriu, relembrando a ocasião.

background image

— Foi uma vitória difícil para mim, eu me sentia tão insegura...

Minha esposa me acusava de tê-la deixado vencer.

Imediatamente, o riso desapareceu dos lábios dela.

— Mas... isto é mentira, Ben!

— Claro que é — ele admitiu num tom divertido. — Diversas vezes eu

comentara com ela que faria qualquer coisa para vencer aquele caso, mas não
esperava que Sarah me perguntasse por quê.

— Não me diga — comentou Sandra — que contou à sua esposa que

queria se desforrar por ter levado um fora meu.

— Não. Mas desde então ela começou a desconfiar de que havia algo entre

nós. Embora eu explicasse que se tratava apenas de rivalidade profissional.

— Exatamente — ela falou de maneira segura.

— Era mesmo, Sandra? — Ben encarou-a com um olhar penetrante que

despertou nela uma onda de excitação. — E agora, o que é?

— Ben...

Antes que continuasse, ele a interrompeu:

— Foi fácil disfarçar as coisas enquanto éramos adversários. Aqueles

confrontos ajudavam muito a descarregar a nossa tensão sexual.

Num movimento rápido, Ben fez sinal à garçonete para que trouxesse

mais dois drinques, sem dar a Sandra tempo de protestar.

— Como acha que vamos poder lidar com isso agora ?

— Tem alguma sugestão? — redargüiu, irritada.

— Pensei que este brinde em nome dos velhos tempos pudesse ser um

bom começo. — Ben permanecia imperturbável.

Tentando recuperar a calma, Sandra contou mentalmente até cinco

enquanto a garçonete servia os drinques. O silêncio tornou-se constrangedor e,
como Bem não se manifestasse, ela resolveu falar:

— Felizmente, estes tempos já vão longe. Na verdade, foram tão breves

que nem merecem um brinde.

— Seus olhos parecem discordar de seus lábios, Sandra...

Havia ao redor deles um magnetismo, uma eletricidade suspensa no ar.

Pouco a pouco Ben ia alcançando seu objetivo, deixando-a revoltada. Então,
apoiando um cotovelo sobre a mesa, Sandra resolveu ir direto ao assunto:

Certo, Ben. O que é que você quer?

— Muito simples — respondeu num tom calmo e pausado. — Quero ir

background image

para a cama com você outra vez.

O copo quase escapou-lhe das mãos.

— O quê? Isso é um absurdo!

— Talvez seja. Está interessada?

— Em quê? Em começar de onde paramos? — perguntou,

absolutamente atordoada.

Ben apenas encolheu os ombros.

— Poderíamos dar uma nova chance à sorte. Se não der certo, rompemos

outra vez. Você agora está mais madura e é óbvio que agiria com mais delicadeza
caso resolvesse se descartar de mim. — Após um curto silêncio, recomeçou: —
Eu também estou mais velho e desta vez quero fazer de tudo para agradá-la.

Seus olhos escuros, quase negros, olhavam-na de modo insinuante,

fazendo-a relembrar os momentos mágicos que passara nos braços dele. Ben era
um amante insuperável, capaz de excitá-la intelectual, emocional e fisicamente. Não fora
por causa do sexo que ela o deixara e Sandra tinha certeza de que Ben sabia disso.

Quando se conheceram, ela era apenas uma principiante recém-formada,

enquanto ele, com muitos anos de prática, já tinha uma carreira de sucesso. O que
primeiro a atraiu nele foi a inteligência e, logo depois, Sandra descobriu outros encantos,
mais perigosos.

A descoberta mexeu demais com suas emoções e, ao sentir-se ameaçada,

resolveu pôr fim ao romance antes que houvesse tempo para um envolvimento
maior. Porém. jamais explicara a ele os motivos da decisão tão repentina. Como
poderia dizer-lhe que não queria ver sua vida profissional destruída, antes mesmo
de começar?

Pouco tempo após a separação, Ben fora nomeado para o cargo de promotor

e dali em diante os confrontos entre eles nos tribunais eram sempre marcantes,
impregnados do que os juizes costumavam chamar de "choque de
personalidades".

Mesmo assim, ambos admiravam-se mutuamente. Recordando aqueles

dias, olhou-o bem dentro dos olhos e sentiu o coração disparar. O que aconteceria
entre eles agora que estariam sempre juntos?

A voz grave de Ben trouxe-a de volta à realidade.

— Seja sincera: não sente nada quando me encontra ou vai à minha sala?

— Só um ligeiro nervosismo — confessou. — Ainda não tive tempo de me

acostumar a este cargo e, para completar, vejo-me encarregada de um caso tão
difícil como o de Laney.

Estava sendo sincera quanto àquelas situações, mas esperava que ele não

lhe perguntasse o que sentia naquele instante.

background image

— Acho que tenta enganar a si própria, Sandra. Toda vez que vinha à

minha mesa perguntar algo...

De repente, num gesto abrupto, Ben pôs-se de pé, atirando uma nota sobre a

mesa.

— É inútil tentar convencê-la com palavras. Você tem argumento para

tudo.

Segurando-a com firmeza pelo braço, forçou-a a levantar-se, e abrindo

caminho entre as mesas alcançaram a porta. Sandra estava tão concentrada
tentando controlar o tremor das pernas que não se importou com a atitude insolente
de Ben.

Parados na calçada, sob o toldo da entrada, ele voltou-se e disse:

— Façamos apenas uma experiência e vejamos quem tem razão, antes de

pensarmos em algo mais sério.

Decidido, ele a tomou nos braços e, para o absoluto espanto de Sandra,

beijou-a apaixonadamente. Sentindo as pernas fraquejarem mais ainda, ela se
apoiou contra aquele peito forte, abandonando-se ao sabor do momento. Ben
apertava-a contra si, deixando evidente o quanto a desejava, satisfeito com as
reações que provocava nela. Num gesto involuntário, Sandra entreabriu os lábios
convidativos. Sem perda de tempo, ele explorou-lhe a boca com a língua quente e
sensual, fazendo-a gemer de prazer.

Neste instante, uma turma de jovens ruidosos aproximou-se, tirando-os do

devaneio. Para satisfação de Sandra, não havia ninguém conhecido entre eles.

— Quem tem razão? — desafiou Ben, ao ficarem novamente a sós.

Em seus olhos, o desejo e a paixão se refletiam como nos velhos tempos.

Embora hão quisesse admitir, Sandra não teria como negar que estava

enganada. Nada entre eles mudara e Ben ainda tinha o poder de despertar-lhe a
sexualidade adormecida. Mas será que sete anos mais velha, conseguiria encarar de
forma adulta este aspecto da sua personalidade que tanto a assustava? Sem dizer uma
palavra, observou o céu. Já era quase noite. Ambos caminharam pela calçada em
silêncio até se aproximarem do carro dele, que abriu a porta do lado do passageiro. Em
seu olhar havia tanta determinação que Sandra não ousou discordar.

Logo depois, ele já se encontrava a seu lado e, sem uma palavra, deu a partida

no motor, dobrando a primeira esquina à direita.

background image

CAPÍTULO IV

Seguiram pela via expressa que contornava o lado Norte do lago Ontário e,

então, tomaram o rumo Leste. As nuvens douradas pelos últimos raios de sol
completavam o cenário lindíssimo.

Ambos permaneciam calados.

Sandra experimentava uma quietude surpreendente. Perdida em

pensamentos, presumiu que Ben a levava à casa dele mas a idéia não a assustou.
Decidida a não se deixar perturbar por nada, disse a si mesma que, ao chegarem lá,
resolveria o que fazer. Por enquanto parecia inútil preocupar-se.

Baixou o vidro da janela e deliciou-se com o vento fresco que lhe tocava o

rosto, trazendo o aroma suave da noite. Ben dirigia com habilidade e firmeza, embora
um tanto rápido, e àquela hora o trânsito não oferecia problemas.

Nunca soubera onde ele morava, mas surpreendeu-se por ser tão longe da

cidade. Daquele ponto da estrada, já se podia avistar pequenas chácaras e até vilarejos
distantes. Sempre imaginara que. assim como ela, Bem morasse num apartamento
não muito afastado do Fórum.

Mas talvez, ela pensou, Ben conhecesse um bom restaurante por ali e a

estivesse levando para jantar. Sandra trabalhara demais durante toda a semana e um
passeio de carro era relaxante. Recostando-se no banco, aproveitou para observar
melhor a paisagem e descansar.

O barulho do motor despertou-a e ela assustou-se ao ver as horas no relógio

do painel. Viajavam há uma hora e meia! Não era possível que Ben morasse num
lugar tão afastado. Mas, então, para onde iriam?

— Acho que adormeci.

— Sim, tirou uma boa soneca.

Ben estacionava o carro num terreno bastante acidentado.

— Está com fome?

Certamente que estava. Intrigada, observou melhor o pequeno bar à sua direita.

— Que lugar é este? Será que a comida é tão boa que compense a

viagem?

— Apenas razoável, a maioria dos fregueses são choferes de caminhão.

Estranhou terem ido até lá por uma comida apenas razoável, mas a fome

era tanta que Sandra resolveu não reclamar. Acendeu a luz interna do carro e
examinou-se no espelhinho retrovisor: os cabelos loiros, compridos, haviam sido
despenteados pelo vento, mas a maquilagem não exigia retoques. .Apanhando uma

background image

escova na bolsa, ajeitou-os melhor e desceu do carro.

Ben desligou os faróis e foi ao seu encontro.

"Cozinha chinesa e canadense”, dizia o letreiro e Sandra teve que conter o riso

diante de tamanha pretensão. Pelas aparências, o melhor que poderiam oferecer ali
seria uma omelete sem queijo.

— Não consigo acreditar — comentou bem-humorada — que

tenhamos viajado quase duas horas para virmos comer num lugar deste!

Ben simplesmente sorriu e abriu-lhe a porta do bar.

— Se quiser um conselho, sugiro que-peça apenas um hambúrguer.

Uma vez dentro do estabelecimento, sua impressão mudou mas, ainda

assim, preferiu acatar a sugestão de Ben.

Durante a refeição a conversa ficou limitada a trivialidades, mas Sandra

desconfiava de que ele tivesse outras intenções. Só não compreendia o motivo de tê-la
levado a um lugar tão decadente. Mas, enfim, não poderia ser acusado de nada pois
não lhe prometera coisa alguma.

Aproveitando os raros momentos de sossego, expôs-lhe algumas dúvidas

quanto ao trabalho no Fórum e ouviu atentamente os conselhos experientes de Ben.

Após uma xícara de café bem quente, levantaram-se e voltaram para o

carro. Ben fez uma manobra e, para o espanto de Sandra, retomou o mesmo
sentido de antes.

— M... mas o que está fazendo? Para onde vai me levar agora?

— Para o mesmo lugar de antes — respondeu ele, imperturbável. — Por

acaso imaginava que eu a trouxe até aqui só para lhe oferecer um hambúrguer frio e
um café fraco?

Sandra não pôde deixar de rir.

— Confesso que achei muito estranho.

— Só estranho, Sandra?

— E para onde vamos indo agora?

— Para a minha casa, pensei que já tivesse percebido.

Lá fora, a escuridão só era cortada pelas luzes dos carros na estrada pouco

movimentada. Já não se avistava nenhum vilarejo por onde trafegavam.

— Por que escolheu um lugar tão longe da cidade

para morar?

— Na verdade, só venho aqui nos fins de semana. Mas não se preocupe,

já estamos quase chegando.

background image

Logo adiante, Ben deixou a rodovia principal e seguiu por uma pequena

estrada de terra. Ali, o escuro era total, o que tornava o farol do carro ainda mais

forte. O caminho, cheio de curvas e buracos, tinha de ambos os lados uma

densa vegetação. Sandra sabia que as árvores ostentavam a beleza das cores
outonais, e contemplá-las durante o dia seria um lindo espetáculo.

Só agora compreendia por que Ben trocara de roupa antes de deixar o

Fórum: seria ridículo vir de terno a uma região como esta. E, pensando melhor,
concluiu que ele planejara tudo de antemão.

— Não acha que foi muita presunção de sua parte ter me trazido até aqui

sem me consultar? Eu lhe avisei que tinha um compromisso para o jantar.

Apesar do tom irritado, a pergunta não o perturbou.

— Se tivesse me perguntado, eu teria respondido. Quando vi que não

reclamou depois de meia hora de viagem, presumi que o compromisso não fosse
assim tão importante. Você poderia ter me pedido para parar.

Sandra tentou disfarçar a irritação que sentia: Bem tinha toda razão.

— Ainda falta muito para chegarmos?

— Apenas alguns quilômetros, mas é a parte mais lenta da viagem; leva

uns vinte minutos de barco.

— De barco?! — exclamou indignada, voltando-se para ele. — Você ficou

louco? Quando planeja me levar de volta para casa?

Ben não respondeu, concentrando-se na manobra para estacionar o carro

no pátio da pequena marina chamada "Mike and Marg's". Devia conhecer muito
bem o local pois, mesmo no escuro, logo na primeira tentativa conseguiu acertar o
carro na faixa. Após desligar o motor, ele se curvou e apanhou uma lanterna no
porta-luvas.

Como não recebesse explicação. Sandra segurou-lhe o braço e insistiu:

— Ben, quando pretende me levar de volta para casa?

Por um longo instante, ele se limitou a olhá-la.

— Domingo à noite — respondeu casualmente. — Mas. se insistir muito,

posso levá-la amanhã.

Sem mais uma palavra, Ben abriu a porta e desceu, deixando-a para trás,

absolutamente perplexa. Domingo! Revoltada, contornou o automóvel e foi atrás dele,
pronta para dizer:lhe meia dúzia de verdades que trazia atravessada na garganta.

— Ora, seu arrogante! — gritou. — O que está planejando com isso? Como

ousa afirmar que me levará para casa amanhã? Exijo que me leve já!

Ben retirou do porta-malas uma caixa de mantimentos, uma maleta e em

seguida fechou o capo.

background image

— Não, não vou levá-la — disse com firmeza, mas de maneira tranqüila. —

O hambúrguer e o café refizeram minhas energias e não a levarei de volta enquanto
não seduzi-la.

— Você é mesmo louco! — Sandra apoiou-se contra o cano e começou a

rir de modo incontrolável.

Observando-a, Ben apanhou a maleta e estendeu-lhe, pedindo-lhe que a

carregasse. Com a caixa de mantimentos sob um braço, apanhou a lanterna, fechou
o carro e começou a caminhar pela pequena trilha de pedras.

—- Ei! Mais devagar! — ela pediu, firmando-se no braço de Ben. — Não

posso correr com este salto.

Pacientemente, ele atendeu ao pedido. Como nos velhos tempos. Sandra

achava tudo muito divertido e tinha freqüentes acessos de riso.

Não havia como negar a esperteza dele ao planejar a viagem. Ben a conhecia

o suficiente para saber que, àquela altura, a exaustão acabaria vencendo a sua teimosia
e ela só encontraria uma única solução para o que estava acontecendo: aceitar o
plano.

Os sapatos de Ben fizeram a madeira do atracadouro estalar. Ele parou,

entregando a lanterna a Sandra e, então, abaixando-se, pulou para dentro de um
pequeno barco a motor,

— Pule! — disse, segurando-a pelo braço.

Logo depois já se afastavam do cais em direção à margem oposta do lago.

— Não tem jeito de chegar à sua casa por terra?

Sandra começava a gostar do passeio. Afinal, não planejara nada melhor para

o fim de semana. Contudo, não entregaria os pontos.

— Ele fica numa pequena ilha no lago principal.

— Deve ser lindo. Quantas casas são no total?

— Só a minha, comprei a ilhota só para mim.

— Que maravilha! É aqui que você passa os fins de semana no verão?

— Não só no verão, mas o ano todo. A única diferença é que, quando o lago

congela, uso um outro tipo de barco para chegar lá.

— Puxa, este lugar deve ficar lindo coberto de neve. Não se sente muito solitário

aqui, Ben?

— Após uma semana inteira no burburinho da cidade, gosto desta quietude e...

Ben interrompeu o comentário e concentrou-se na complicada manobra

para entrar num canal bem estreito, todo sinalizado por bóias coloridas. Passado o
trecho mais difícil, ele lhe mostrou sob o foco da lanterna a localização da ilha no mapa.

background image

— Daqui a dez minutos estaremos lá — acrescentou, ao ultrapassarem uma

bóia de sinalização que fazia bater um sininho quando as águas se moviam.

Ao atingirem o lago principal, as águas agitadas chacoalhavam o barco.

— O vento está forte hoje — ele comentou.

— Isto é sinal de chuva?

— Não necessariamente. É comum uma ventania aqui em Georgian Bay.

Minutos depois, o barco ganhou velocidade outra vez, e Sandra entreviu uma

construção logo à frente.

— Aquela é a sua casa?

— Sim — respondeu ele, já desligando o motor ao atracar. — Acha que

pode saltar e amarrar a corda na pilastra?

Sandra tirou os sapatos, levantou-se e, quando o barco encostou, saltou. O vento

soprava-lhe os cabelos em todas as direções e insistia em levantar-lhe a saia de pregas.

— Não consigo encontrar a pilastra! - disse, perdida na escuridão.

Confusa, segurava a corda numa mão e, com a outra, ora tentava afastar o

cabelo dos olhos, ora puxava a saia.

Ben, de pé no barco, ria muito.

— Não solte a corda que eu já vou aí ajudá-la.

E, num movimento rápido, pulou para fora do barco e tomou-lhe a corda das

mãos. Com o outro braço, puxou-a pela cintura e a trouxe para junto de si.

— Você tem as pernas mais sexy de toda Ontário. Acho supererótico ver

uma saia sendo levantada pelo vento. Especialmente quando a garota está usando
ligas em lugar de meia-calça.

Sandra desvencilhou-se do abraço, trêmula com a voz suave de Ben. Porém,

ele a agarrou com facilidade mais uma vez. Em suas costas, sentia os músculos rijos
do braço dele segurando as amarras.

— Devo beijá-la para mostrar-lhe que também me deseja?

Naquele instante, uma forte rajada de vento atingiu-os, levantando a saia de

Sandra até a cintura. Bem aproveitou a ocasião e segurou-lhe uma das coxas com a
mão quente e máscula.

Imobilizada pelo frio e pela emoção, Sandra não conteve um gemido

involuntário ao senti-lo acariciar-lhe a pele, na parte exposta entre o final da meia e o
elástico da calcinha. Para manter o equilíbrio, se viu forçada a permanecer com as
pernas afastadas, o que facilitava os movimentos de Ben.

Ele a puxou de novo contra si. deixando evidente o quanto a desejava. A

simples visão que tivera há pouco ao observá-la com a ajuda da luz da lanterna, de pé

background image

contra o vento, já o excitara.

As ondas insistiam em arrastar o barco, obrigando-o a segurar a corda com

força, num ritmo ondulante muito provocante. Ben agora aproveitava essa ajuda da
natureza e tocava o corpo de Sandra num ponto bastante sensível, abandonando-se
ao ritmo sugerido pelas ondas.

Ela percebeu que não resistiria por muito mais tempo àquela situação pois já

sentia o sangue correndo mais intensamente pelas veias.

— Quero fazer amor com você, Sandra — ele sussurrou, aproximando os

lábios do ouvido dela.

Imediatamente, deslizou os dedos por baixo do elástico da calcinha e começou

a massagear-lhe o sexo úmido e macio. Sandra gemeu baixinho. Tudo acontecia rápido
demais sem dar-lhe chance de resistir ou pensar.

— Quero beijá-la, sentir estes lábios doces. Quero prová-la inteirinha...

Cada palavra murmurada por ele provocava um tremor involuntário em

Sandra. Era impossível resistir àquele homem. Sua voz trazia-lhe à mente
lembranças maravilhosas do passado, excitando-a ainda mais.

O vento uivava entre as árvores, despenteando-lhes os cabelos e agitando as

águas do lago.

Sandra apoiou-se em Ben que agora a.enlouquecia de prazer com carícias

provocantes. Atordoada, jogou a cabeça para trás, deliciando-se com o vento frio em
seu rosto. Jamais experimentara tanto prazer nos braços de outro homem.

Ben a fitava com desejo, sem deixar de acariciá-la e, ao senti-la pressionar os

quadris contra os seus, afagou-lhe o sexo com mais intimidade.

— Sete anos perdidos — disse-lhe com a voz rouca de paixão. — Deite-se.

Há sete anos que espero por este momento e não vou perdê-lo por nada...

background image

CAPÍTULO V

A magia do cenário era agora complementada pela lua que surgia dentre

as árvores. O vento soprava cada vez mais forte.

— Eu disse para você se deitar, Sandra...

Ao comando da voz rouca, ela estremeceu. Ben amarrou o barco à pilastra e

voltou para junto dela.

— Ben... — ela protestou.

Sandra precisava de tempo para pensar, queria compreender o que

acontecia. Mas o desejo que sentia e impediu de tentar.

Em meio à escuridão, sentiu as mãos dele novamente apertarem-lhe a cintura e

em seguida a saia escorregando até o chão. Um tanto amedrontada, deu um passo
para trás, mas a fúria do vento estava agora na força com que ele a segurava.

— Sandra, por favor, deite-se...

O vento gelado tocava-lhe as pernas e os quadris e o luar fazia suas meias

cintilarem no escuro. Impaciente com sua indecisão, Ben ajoelhou-se à frente dela.

Sandra via o luar produzir reflexos azulados nos cabelos escuros, mas a visão

excitante foi logo apagada pelo súbito calor da boca de Ben em seu sexo. Apoiou-se
nele para não cair, enterrando os dedos entre as ondas sedosas de seus cabelos.

— Oh, Ben... Ben!

Mas a única resposta aos seus protestos foi uma carícia enlouquecedora na

parte interna das coxas. O prazer torturante a impedia de ver, ouvir ou falar. Sentir era o
mais importante. Uma deliciosa sensação percorreu-lhe o corpo, fazendo-a fraquejar.

Ele a tomou nos braços e deitou-a com impaciência sobre o ancoradouro.

Pousando-lhe as mãos nos quadris, tirou-lhe a calcinha e as meias, despindo-a da cintura
para baixo.

Com insistência, a boca de Ben explorava-lhe com maior liberdade as partes

mais íntimas. Alucinada, Sandra gemia, se contorcendo de prazer.

A madeira do cais rangia com a violência das águas. As árvores balançavam ao

vento, produzindo um ruído doce como um murmúrio. A natureza era a única a
testemunhar aqueles momentos.

Durante todos os anos em que estiveram separados Ben não se esquecera

de nenhum detalhe daquele corpo escultural que clamava pelo seu e quando
Sandra puxou-lhe os cabelos, ele não interrompeu as carícias.

Agora, a boca quente e úmida tornava-se mais exigente, numa intimidade

audaciosa.

background image

— Ben!

Numa seqüência de espasmos, Sandra gemia. E aqueles sons o

enlouqueciam. E quando o último tremor sacudiu-a, ele levantou o rosto e fitou-a.

— Senti tanto sua falta...

Devagar, Sandra sentou-se de frente para ele. Estendendo o braço, apanhou a

saia e o resto das roupas e ficou de pé. Em silêncio, vestiu-se e arrumou os cabelos
como pôde sob o olhar constante de Ben, que também levantou-se.

Curvando-se, ele ajudou-a a calçar os sapatos e apanhou os mantimentos.

Acendendo a lanterna, certificou-se de que o barco estava amarrado e disse:

— Por aqui.

Com as pernas trêmulas, ela o seguiu pelo caminho de pedras que levava à

casa.

Com o gerador ligado, as luzes acenderam-se, e Sandra olhou à sua volta. O

chalé, embora pequeno, era extremamente aconchegante, acolhedor. Uma
enorme lareira dominava uma das paredes da sala e, de frente para ela, havia um
estofado. No chão de tábuas largas havia um tapete de lã de carneiro que dava ao
ambiente um ar ainda mais rústico. Do outro lado, a enorme janela oferecia uma visão
panorâmica do lago e suas cercanias.

Sob a janela, ficava uma mesa enorme repleta de papéis, livros e uma

máquina de escrever.

— A cozinha é aqui — disse ele.

Decorada com armários de pinho e peças de cobre, a cozinha também tinha a

janela voltada para o lago.

— Puxa! A casa é linda! Não se pode chamá-la de chalé — comentou,

sentindo-se bastante à vontade.

— Obrigado. Na verdade, começou como chalé, mas com as reformas

transformou-se numa casinha bem gostosa. Estou planejando tirar uma licença e vir
passar um ano aqui.

— Não acha que é tempo demais para ficar tão afastado?

Sandra apanhou a bolsa enquanto Ben continuava a desembrulhar os

mantimentos. Alguns iam para o freezer, outros para o armário e ela admirou-se com a
quantidade de comida estocada.

— Há muita gente morando perto da enseada. No verão, as casas de

campo ficam lotadas e durante o inverno vêm os pescadores. O isolamento só
acontece na época das nevascas.

— Mas... o que você vai ficar fazendo aqui sozinho?

background image

— Escrevendo.

— Não entendi.

— Estou escrevendo um livro e, caso obtenha sucesso, pretendo usar a

licença para escrever mais um.

Ben foi até o fogão, preparar um café.

— Que ótimo! E que tipo de livros escreve? Tratados de direito?

— Não, não — comentou, achando graça da pergunta. — Ê um

romance de aventuras com toques de policial.

— Quer saber de uma coisa? Não estou nem um pouco surpresa.

Na opinião de Sandra, um homem tão especial quanto Ben era capaz de

tudo e, caso decidisse tornar-se escritor, teria grandes chances de fazer sucesso.

— Não? — ele perguntou, estendendo-lhe uma xícara de café.

Em seus olhos ela notou uma expressão estranha, indecifrável, que a fez

estremecer. Após saborear a bebida, achou melhor ir ao toalete recompor-se pois não
queria alimentar quaisquer outras intenções da parte dele.

— Onde fica o banheiro?

Um pequeno corredor do lado oposto da sala conduzia aos dois dormitórios e

ao banheiro.

Ao examinar-se no espelho, concluiu que afinal agira bem, sua aparência

estava longe da imagem serena e impecável que cultivava. Os cabelos louros lisos
caíam despenteados pelos ombros; as faces estavam coradas pela excitação e os
olhos adquiriram um tom mais escuro.

Enquanto se penteava, concluiu contrariada que o plano de Ben a punha

numa situação muito delicada, que a fazia vulnerável. Que atitude deveria tomar?
Sua reação às carícias dele deixou-a perplexa pois já se julgava imune à presença de Ben.
Mas, dali em diante, sabia que não poderia mais contar com seu autocontrole e isto
destruía seus planos para um fim de semana pacato e repousante.

Ajeitando a saia viu o quanto seus pensamentos estavam sendo

contraditórios: a atração que sentiam um pelo outro era quase incontrolável e Ben
nunca se contentaria com alguns beijinhos inocentes. Só de pensar no que poderia
acontecer, sentiu a pulsação se acelerar e, resoluta, apagou a luz do banheiro.
Intimamente tentava convencer-se de que o excesso de trabalho era o responsável por
tanto descontrole. Aliás, há dois anos decidira dedicar-se de corpo e alma à profissão,
deixando pouco espaço para a vida pessoal e Ben punha em risco sua segurança.

Na sala, Ben aguardava com a lareira acesa e todas as luzes apagadas, com

exceção de um abajur. Sobre a mesinha de centro, dois copos de conhaque.

Sorrindo um riso descontraído, Sandra sentou-se numa das poltronas e

apanhou um dos copos, admirando a beleza dos reflexos dourados que as chamas

background image

produziam na bebida.

Ajoelhado perto da lareira, Ben atiçava o fogo.

— Adoro o fogo... — ele disse, levantando-se e apanhando o copo.

Erguendo-o num brinde, fitou-a com um riso malicioso nos lábios que a fez

lembrar-se daquela tarde, quando ele se referira "aos velhos tempos".

Ao sentir que enrubescera, Sandra baixou os olhos, incapaz de encará-lo. As

mãos tremiam e o coração batia disparado com as lembranças do ancoradouro.
Quando levantou o rosto novamente, seus olhares se cruzaram. Naquele instante,
Sandra teve a certeza de que viveriam um novo romance.

Após sustentar o olhar por alguns segundos, baixou o rosto. "Pobre Ben",

pensou, "se soubesse que pretendo terminar este relacionamento em três meses,
talvez não estivesse tão seguro de si..."

O gole do conhaque aqueceu-lhe a garganta, espalhando uma certa

excitação por seu corpo. Antecipando o que estava para acontecer, arrepiou-se e
encostou a cabeça no espaldar da poltrona, dirigindo um olhar lânguido em direção a
Ben. Era evidente que ele a desejava.

"Três meses", disse a si mesma. Talvez, os mais excitantes de toda sua vida.

background image

CAPÍTULO VI

A pele de Ben, o cabelo, as roupas cheiravam a sândalo, e a boca trazia o sabor

do conhaque, despertando todos os sentidos de Sandra.

Ela permanecia sentada, enquanto ele, curvado à sua frente, beijava-lhe

tentadoramente os lábios. Correspondendo à carícia, ela ergueu a mão e esfregou-lhe o
peito sob a camisa macia. Afastando-se, ele depositou os dois copos sobre a mesinha.
Então, estirando-se sobre o tapete, puxou-a da poltrona, deitando-a sobre si.

As chamas da lareira produziam reflexos tremulantes nos cabelos negros e as

do desejo faziam os olhos de Ben ainda mais brilhantes. Com um braço ele a apertava
contra o peito e com o outro acariciava-lhe a nuca enquanto beijava-lhe os lábios. A
mão quente e macia descrevia pequenos círculos no pescoço delicado, fazendo-a
relaxar-se aos poucos. Uma sensação deliciosa de paz a entorpecia. Ben sabia excitá-
la como nenhum outro homem.

Sentindo o membro rijo contra o ventre, Sandra moveu-se ligeiramente. A

imagem daquele corpo nu veio-lhe, então, à mente, despertando-lhe o desejo de
prová-lo mais uma vez.

Mordiscando-lhe a orelha, Ben ergueu-lhe a saia e afastou-lhe as pernas,

tentando encontrar um posição melhor. Agora, movendo-se com mais facilidade,
pressionava o membro ereto contra ela em movimentos insinuantes. Ao ouvi-la gemer
baixinho, sorriu satisfeito e, intensificando o ritmo, segurou-lhe os quadris com força.

Ardendo de desejo, Sandra levantou o rosto e o encarou sorrindo.

Involuntariamente começou a mover os quadris em resposta ao convite de Ben, cuja
língua agora explorava-lhe o pescoço.

— Oh.Ben...

— Vamos para a cama? — perguntou ele, guiando a mão dela para o seu

sexo.

Mas Sandra não queria ser interrompida naquele instante em que seu corpo

clamava pelo dele com urgência.

— Eu quero você agora, Ben.

O pedido surpreendeu-o pois não imaginava que Sandra o desejasse a tal

ponto. Então, com um único movimento, rolou-a consigo e inverteu as posições. Era ele
agora que a pressionava contra o tapete macio. Com agilidade, abriu o zíper da calça e,
em seguida, tirou-lhe a calcinha. Extremamente excitado, penetrou-a sem delicadeza
numa urgência incontrolável.

Ao senti-lo dentro de si, Sandra gritou de prazer, mas, por um momento, Ben

manteve-se imóvel, olhando-a bem dentro dos olhos, deliciando-se com a visão de
tê-la alucinada em seus braços. Então, devagar, recomeçou a mover-se num ritmo
sempre crescente.

background image

Amaram-se de modo quase selvagem, satisfazendo seus desejos mais íntimos

até que o orgasmo os atingisse.

Após um sono breve, um toque suave nos cabelos a despertou. Abrindo os

olhos, encontrou a sala exatamente como antes, tendo Ben a seu lado.

— Que loucura, não? — comentou sorrindo.

— Sempre foi assim com você — respondeu ele, também sorrindo.

Mas Sandra não se recordava de outra vez como aquela, quando não

tiveram tempo nem de se despir completamente. Jamais experimentara prazer tão
intenso, tão primitivo.

Ben tinha o estranho poder de despertar seu lado irracional, o que chegava a

assustá-la. Os outros homens que conhecera proporcionaram-lhe bons momentos,
mas nada comparável aos que vivera nos braços de Ben.

— O que acontece conosco? — perguntou-lhe confusa

Ele se curvou sobre ela e acariciou-lhe os cabelo

— Sei tanto quanto você — disse, bastante sério. — Mas agora somos sete

anos mais velhos. Não vamos fugir outra vez, está bem?

Algo em seu tom de voz incomodou-a e Sandra sentou-se imediatamente. A

saia, toda amassada, enrolara-se na sua cintura e a calcinha havia sido atirada longe.

— Espero que tenha algo que eu possa vestir amanhã — comentou

desolada.

De pé à sua frente, Ben despia-se sem constrangimento. Observando-o,

admirou-lhe o corpo esguio de quadris estreitos. Embora não tivesse um porte atlético,
o físico bem proporcionado era bastante atraente. Esperava que seus jeans lhe
servissem mas. caso contrário, poderia se contentar com uma camisa.

— Devo ter algo, com certeza — disse ele. — Ainda insiste em voltar amanhã

ou pretende ficar o fim de semana?

— Não posso ficar, tenho que me preparar para o julgamento na

segunda-feira.

— E por que não trabalha aqui? Trouxe seus papéis com você?

— Deixei minha pasta no seu carro, lembra-se?

Ben atirou as roupas sobre uma cadeira e as chamas da clareira dançavam

por seu corpo.

— Isto não é problema; amanhã de manhã iremos de barco até lá.

O local era mesmo muito agradável e na cidade Sandra dificilmente desfrutaria

de tanto silêncio. Além disso, Ben poderia lhe dar ótimos conselhos com relação ao
caso.

background image

— Promete me levar de volta domingo à tarde, Ben?

— Dou-lhe minha palavra — afirmou Ben, com um gesto de cabeça. —

Agora, o que me diz de um banho bem quente?

Sábado à tarde os dois conversavam com muita tranqüilidade:

— Pretendo interrogar a médica que examinou Laney — ela comentou.

— Em que ordem devo pô-la?

Sandra estava sentada no sofá tendo seus papéis espalhados sobre a

mesinha de centro. A lareira aquecia o ambiente e Ben trabalhava em sua
escrivaninha de frente para a janela. Lá fora, diversas ilhotas verdinhas pontilhavam o
lago.

O dia fora maravilhoso. Ambos haviam acordado bem cedo e, para

aproveitar o sol, tinham dado uma volta de barco pelo lago antes de irem buscar as
coisas deixadas no carro. O vento ainda soprava insistente, zunindo nos ouvidos,
ondulando as águas. Embora ainda fizesse calor, o tom amarelado das árvores
anunciava a entrada do outono. Revoadas de pássaros passavam sobre o lago
em busca de lugares mais quentes e muitas casas da região já estavam fechadas.

A beleza da paisagem era impressionante e Sandra chegou a imaginar

como seria bom poder passar um ano ali, afastada da cidade grande...

De volta ao chalé, prepararam um farto café da manhã para aplacar o apetite

aberto pelo passeio.

Mais tarde, trocaram de roupa e aproveitaram para nadar um pouco. E,

após o almoço, deram uma longa caminhada em torno da ilha.

À tardinha, recolhidos perto do fogo, Sandra estudava melhor o processo

enquanto Ben escrevia o romance.

— Sobre o que ela vai depor? — perguntou ele, virando-se na cadeira.

— Basicamente sobre as conseqüências que o trauma causou à

personalidade da garota. Mas o mais importante será a explicação da recusa de Laney
em identificar as roupas.

— Foi muito azar ter caído com uma médica. Qual o nome dela?

— Andréa Zimmerman.

— Não me lembro deste nome... Ela é nova em perícia?

— Não, é a psiquiatra particular de Laney. Será a primeira vez que comparece

ao tribunal.

— A garota já estava em tratamento antes do caso?

— Acho que não, mas a mãe a levou imediatamente após o ocorrido. Há

seis meses Laney passou pelo exame de corpo de delito. Qual era mesmo o nome do

background image

perito?... Michael Dady! Mas ele está viajando e, como a doutora pareceu-me bastante
segura, resolvi ficar com ela.

— Tente localizar Dady.

— Por quê?

Sandra não gostou da postura de Ben diante do caso.

— Em casos de estupro, um médico causa muito melhor impressão junto

aos jurados. Além disso, você já tem uma histérica depondo e o júri não costuma
acreditar em mulheres.

— Por Deus, Ben! — exclamou inconformada. — Estamos em 1987 e

Laney Meredith não é histérica!

— Mas também não é normal — afirmou Ben. — Entenda: eu não estou

no júri, apenas tento imaginar o que se passa na mente deles. Os jurados têm um
preconceito muito forte com relação a mulheres em qualquer caso, principalmente nos
deste tipo. Para eles, trata-se da palavra de uma mulher contra a de um homem.
Você sabe disso tanto quanto eu, Sandra. E sabe que vai precisar de alguém com
muita credibilidade para afirmar ao júri que esta garota está incapacitada de reconhecer
os próprios trajes íntimos. Escolha um homem.

Após ouvi-lo, uma fúria incontrolável dominou-a.

— Está sugerindo que eu troque a opinião de uma profissional altamente

gabaritada pela de um médico razoável, só porque ele é homem?

Percebendo a alteração de Sandra, Ben ergueu as mãos e explicou:

— É apenas um conselho. Você mesma disse que a médica nunca esteve

num tribunal. Será que ela agüentaria o interrogatório de Blake?

— Conversamos umas duas vezes e sei que se trata de uma pessoa

inteligente e capaz.

— Não foi isso que eu perguntei. Quero saber qual será a reação da psiquiatra

diante das besteiras que ele vai lhe dizer.

— Este é o meu primeiro caso como promotora, Ben. Que tipo de bobabens

Blake é capaz de alegar?

— Depende da mulher. Se a doutora Zimmerman for feminista ele a levará

a fazer declarações cada vez mais inflamadas, até fazê-la parecer uma fanática. Então
Blake sugerirá sutilmente aos jurados que ela diria qualquer coisa para incriminar um
homem por estupro. É preciso reconhecer que a técnica dele raramente falha.

— Chamo a isto de desrespeito — desabafou Sandra, suspirando

profundamente. — E Blake faz com que os jurados raciocinem da mesma forma.
Mas tenho sete mulheres no júri.

Ben levou as mãos ao queixo e simplesmente comentou:

background image

— É, eu notei...

Era evidente que considerava aquilo um erro.

—- Penso que elas não engolirão esta baboseira machista de Blake —

afirmou Sandra.

— Segundo a tradição, não é o que acontece.

— Mas as tradições estão mudando, Ben. As mulheres estão mais unidas e...

— Está certo, Sandra — interrompeu ele, gesticulando e balançando a cabeça

negativamente. — Faça como achar melhor. Qual é a dúvida quanto a ordem dos
depoimentos?

Tentando ocultar sua raiva, Sandra mordeu o lábio inferior. Na verdade,

estava profundamente desapontada com Ben.

— Poderia chamá-la assim que Laney terminar de depor e trazer à tona

novamente o assunto das roupas íntimas. Ou então, deixá-la para o final. Mas, nesse caso,
seu depoimento teria que ser convincente o bastante para impressionar o júri. Seria
uma boa oportunidade de mostrar-lhes outra vez os trajes manchados de sangue e
fazê-los lembrar que se trata de um crime odioso...

Após um breve silêncio, Ben perguntou-lhe:

— Quais são suas outras testemunhas?

— Tem uma vizinha, Aléria Franklin, em cuja casa ela chegou pedindo

socorro — disse, consultando os papéis —, que testemunhará sobre o estado físico
da garota na ocasião e também por ter visto o acusado rondando a casa dos Miller.
Há a senhora Miller afirmando que nada justificava a presença do réu pela redondeza.
Talvez a defesa chame o filho dos Miller que deu uma chave da casa para o rapaz
poder alimentar seu bichinho de estimação.

Folheando mais algumas anotações, prosseguiu:

— Tem também o policial que atendeu ao chamado e levou Laney ao

hospital e tomou seu depoimento. E um outro guarda encarregado das
investigações que anotou a versão da senhora Franklin, prendeu o acusado e revistou-
lhe a casa...

Ben ouvia-a com atenção, sem perder nenhum detalhe, e, quando ela

terminou, ele voltou-se para o lago e franziu as sobrancelhas, pensativo.

— Há um problema aqui, Sandra, devido à nossa diferença de opinião

quanto ao sexo da profissional. Se você chamasse Dady, eu a aconselharia a deixá-lo
para o final, ele certamente não se abalaria diante de Roebotham. No caso da doutora
Zimmerman, com sua inexperiência em tribunais, eu a poria logo no início pois, se
Blake derrubá-la, ainda haverá tempo para que o júri esqueça.

Então, mais sério, acrescentou:

— O melhor seria usar ambos. A doutora no início e Dady no final, para

background image

esclarecer melhor algum ponto em suspenso.

"E, também, para dar maior credibilidade à coisa", pensou Sandra. Ocultando a

irritação, agradeceu-lhe a ajuda e fez algumas anotações.

Era difícil para ela acreditar que este velho esquema ainda funcionasse, mas a

experiência de Ben era inegável. Contudo, recusava-se a seguir seus conselhos.

A intuição apontava-lhe o caminho oposto e ela tinha certeza de que uma

médica viria apenas reforçar a credibilidade da vítima. Seria uma mulher explicando
aos jurados o que uma outra, menos desenvolta, sentia.

Ben retornara ao trabalho e ela observava de longe o perfil forte delineado

pela luz do fogo. Ainda que brilhante, ele era, antes de tudo, um homem.

Que caminho seguir?

background image

CAPITULO VII

Aquela noite, por razões que ela mesma desconhecia, Sandra não queria

fazer amor com Ben. Contudo, só se deu conta disso ao sair do banheiro usando
apenas a camisa do pijama que lhe emprestara. Ao abraçá-lo, seus músculos se
enrijeceram.

Ben notou-lhe a reação e, afastando-se ligeiramente, perguntou-lhe o que

estava acontecendo. Sandra balançou a cabeça em silêncio, também surpresa diante
do modo como o rejeitara. E nada era capaz de despertar-lhe o desejo: nem seus
beijos, o cheiro másculo da pele ou a visão do dorso nu tão aconchegante.

— Não sei — mentiu.

Ele, então, abraçou-a de novo, mas desta vez Sandra empurrou-o de leve.

Erguendo uma sobrancelha, Ben soltou-a.

— Ben — ela inquiriu —, a cama do outro quarto está arrumada?

— Acho que sim. Por quê?

— Eu gostaria de dormir lá esta noite.

— Por quê? — ele perguntou sem raiva ou indignação, apenas querendo

saber o motivo.

— Eu não vou... Não quero fazer amor hoje.

— Ah...

Ben usava a calça do pijama cuja blusa emprestara a ela o que criava mais

intimidade entre os dois. Cruzando os braços nus sobre o peito, indagou:

— Algum motivo especial?

Em seu íntimo, ela sabia a causa.

— Nenhum — disse-lhe, dando de ombros. — Apenas não sinto

vontade...

— Olhe, não tenho preconceito nenhum caso você esteja...

— Não é isso Ben — interrompeu-o.

De repente, lembrando-se da conversa que tiveram à tarde, ele franziu o

cenho e perguntou:

— Ficou com raiva por causa do que falei sobre a médica?

— Confesso que não gostei do que ouvi, Ben, mas não estou tentando puni-

lo, se é o que está pensando.

Após um mútuo acordo, caminharam até a sala e sentaram-se nas poltronas

background image

em frente à lareira.

— O que eu lhe disse esta tarde, Sandra, não tem nada a ver com minha

atitude pessoal perante as mulheres. Trata-se apenas de um conselho profissional.

A ingenuidade do comentário a fez sorrir, porém, não estava disposta a

provocar uma discussão.

— Entendo.

Esticando o braço, ele lhe segurou a mão com firmeza e carinho.

— Vamos para a cama? — sugeriu, após um breve silêncio. — Nós não

temos que fazer amor, só quero abraçá-la.

Sandra estava insegura, pois ficar bem juntinhos na cama, abraçados, era tão

ou mais íntimo do que fazer amor.

— Se você não se incomodar, gostaria de dormir sozinha, Ben.

— E se eu me incomodar?

Ela ergueu o rosto e o encarou.

— Ainda assim eu gostaria.

— Então, não vou mais insistir — disse com um riso pálido nos lábios.

Sandra levantou-se e se despediu.

— Boa noite.

— Boa noite. Sandra. Durma bem.

Enquanto ela se retirava, o olhar de Ben voltou-se para as chamas da lareira.

Na manhã seguinte. Sandra acordou disposta. Depois de algum tempo foi até

a cozinha.

— Dormiu bem?

— Muito bem — ela respondeu contente. — E você?

— Pouco, mas bem. Fiquei escrevendo até as quatro.

— Costuma trabalhar até tão tarde, Ben?

— Quase sempre. À noite, o lago fica mais calmo e ouve-se apenas os ruídos

da mata. Consegui terminar mais um capítulo.

Sandra tomou um gole do café, admirada com os hábitos de Ben.

— Você deixa que as pessoas leiam seus trabalhos antes de terminá-los?

— Até hoje, nunca deixei.

background image

Ben estava de pé junto ao fogão usando uma camisa de flanela e calça jeans

bastante surrada. A temperatura baixara sensivelmente durante a noite e o ar da
manhã estava úmido.

— Gosta de omelete com presunto, Sandra?

— Claro. Você me deixaria ler o romance?

— Se estiver interessada — respondeu, dando de ombros —, não vejo por

que proibi-la. — Então, sorrindo maliciosamente, perguntou: — Gostaria de ler o
trecho que escrevi esta noite?

Embora estranhasse o riso, ela concordou. Espreguiçando-se, olhou pela janela e

notou a agitação do lago.

— A vista daqui é linda — disse ela mais para si mesma.

A cozinha era agradável e bem acolhedora, e nem o ruído do gerador a

distância chegava a perturbar.

— A que horas deseja ir embora?

Sandra hesitou, não gostaria de deixar o chalé. Quando concordara em

permanecer até domingo, imaginava partir logo após o café, o que lhe daria tempo
suficiente para se preparar para enfrentar Blake. Mas, agora, preferia passar mais
algumas horas ali.

— A que horas costuma sair?

— Depende. Não tem sinal de chuva e as estradas são vazias nesta época

do ano. Podemos sair bem mais tarde. Às vezes, volto para a cidade na segunda-feira
pela manhã, mas não quero atrapalhá-la. Se sairmos às quatro, você chegará à sua
casa lá pelas oito. Está bem?

Ela concordou com um gesto de cabeça enquanto Ben lhe servia uma

belíssima omelete à moda canadense.

— É muita sorte ter um chalé como este, o lugar é perfeito. Ben...

— Para mim. é o paraíso.

Depois do café, ambos dedicaram-se aos respectivos trabalhos durante boa

parte do dia.

Por volta das três horas, Sandra ainda não chegara a uma decisão final quanto à

melhor atitude frente ao caso, mas já se familiarizara mais com os dados. Os
depoimentos das testemunhas teriam importância vital no desenrolar do processo e,
antes deles, não havia mais nada a ser feito.

Ajeitando os papéis na pasta, observou Ben à escrivaninha, trabalhando no

romance. Levantando-se, caminhou até o quarto para recolher suas coisas.
Examinando as meias de seda desfiadas, imaginou que Bem não se importaria que
voltasse para casa com as roupas dele. Porém, reconsiderando, concluiu que seu
comportamento poderia ser interpretado como um convite e resolveu trocar de

background image

roupa. Afinal, não encontrariam

ninguém.

Já vestida, foi até a lavanderia e pôs as roupas que usara na máquina de lavar.

Ao voltar para a sala deparou com Ben de pé, perto da porta, com uma xícara de café
nas mãos.

— Já está pronta?

— Sim, e você?

— Preciso de mais meia hora — disse, olhando para a mesa cheia de

papéis. — Você se incomodaria?

— Não, não. Posso ler o capítulo da noite passada?

Na verdade, mal podia conter a curiosidade.

— Claro — respondeu ele com um brilho divertido no olhar enquanto ia

até a mesa.

Sandra recostou-se no sofá e começou a leitura.

Parecia impossível compreender o enredo ou saber quem seriam aquele

homem e aquela mulher de que o texto falava. A única coisa evidente era que ambos
refletiam intimamente se deveriam, ou não, resistir à forte atração física que
compartilhavam.

O estilo leve da linguagem tornava a leitura agradável e. antes que percebesse,

já estava quase na metade do capítulo.

Foi somente a esta altura que, pensando melhor, Sandra percebeu que o

casal de personagens havia sido inspirado nela e em Ben.

Ambos pareciam ter tido um desentendimento prévio e agora discutiam

como inimigos, um procurando atacar os pontos fracos do outro, num clima de raiva
e atração quase selvagens.

A clareza de estilo transmitia ao leitor com grande facilidade todas as

sensações, tornando-o também personagem da intriga.

A discussão prosseguia exaltada e Sandra ansiava pelo desfecho. Foi

quando a personagem atirou-se nos braços do amado, provocando um suspiro de
alívio e um sorriso nos lábios de Sandra.

Agora toda a energia do casal transformava-se numa sensualidade.primitiva,

animal, e a linguagem do autor, clara, direta, quase cruel, teve em Sandra um efeito
impressionante. O personagem satisfazia sua raiva proporcionando à mulher um
prazer alucinante, e esta vingava-se fazendo-o gemer com suas carícias experientes
até que a união se consumasse.

Como o estilo trouxesse em si muito da personalidade de Ben, ele a fez lembrar

background image

da noite de sexta-feira. Na opinião dela, os sentimentos do personagem
representavam os de Ben e era fácil para Sandra colocar-se na posição da mulher,
ouvindo-o murmurar-lhe ao ouvido palavras quase obscenas que expressavam a
intensidade de seu desejo.

Ao chegar à última página, tinha os nervos à flor da pele e sentia-se bastante

excitada. Respirando fundo, pôs as folhas sobre a mesa e deparou com Ben que a
examinava de modo perturbador.

A Sandra não restava mais a menor dúvida: ele escrevera o capítulo na noite

passada ao sentir-se rejeitado. A idéia de que a intensidade do personagem
representasse a urgência do desejo dele por ela era extremamente excitante.

Por um longo momento pairou entre os dois um silêncio significativo.

Então, após alguns segundos observando-a. ele disse:

— Pronta?

— Como?

— Já são quase quatro e meia, Sandra.

— Ah... sim, sim. Podemos ir.

Sorrindo, ele comentou:

— É melhor nos apressarmos pois vem vindo uma tempestade. — E,

imediatamente, apagou a lareira enquanto Sandra se levantava, sentindo as pernas
tremerem.

— Há uma caixa na cozinha. Será que poderia tirar da geladeira os alimentos

perecíveis e colocá-los dentro dela?

— Claro.

Ben agia como se entre eles nada pairasse no ar.

Sem perder tempo, dirigiu-se para o quarto a fim de trocar-se enquanto ela ia

para a cozinha.

Dois minutos mais tarde juntou-se a Sandra, verificando se tudo estava em

ordem.

— Pegou tudo?

Sandra foi até o quarto e apanhou a bolsa, a pasta e um casaco.

Quando já iam saindo de casa, ela lembrou-se das roupas.

— Só falta pôr as roupas na secadora — disse, já abrindo a tampa da

máquina.

Porém, não conseguiu ligar a secadora e teve que chamar por ele.

— Ben, a secadora não funciona.

background image

— Não — disse sorrindo —, acabei de desligar o gerador. Não precisava se

incomodar com as roupas.

— Ora...

Nervosa com a proximidade dele, Sandra olhava à sua volta tentando

disfarçar a inquietação.

— E o que faremos com elas agora? Não podemos deixá-las aqui

molhadas.

Ben não pôde conter um riso divertido ao vê-la tão perturbada.

— Temos duas opções: pendurá-las no varal ou levá-las conosco.

— E qual você prefere?

— Para ser sincero, tanto faz.

— Não existe problemas em deixá-las no varal?

"Deus, ele deve estar me achando uma perfeita idiota", pensou, irritada consigo

mesma. Era evidente que, na verdade, gostaria de lhe pedir para fazerem amor mais
uma vez antes de partirem. O nervosismo a fazia agir como uma tola.

— Acho que ninguém irá roubá-las.

— Pena que você não tenha um varal interno...

— Sandra — interrompeu ele, já impaciente —, é só colocá-las num saco

plástico e levá-las conosco.

Depois de tudo arrumado, pegaram as bagagens e atravessaram o lago, já

bastante agitado. Logo após haverem posto os volumes no porta-malas, grossos
pingos de chuva começaram a cair.

Sentada no banco de passageiros, Sandra correu os dedos pelos cabelos e

comentou:

— Ufa! Bem em tempo! Gosto de chuva, mas só quando estou sob um

abrigo. — Tempestades às vezes a deixavam nervosa na estrada, mas Ben lhe
transmitia muita segurança.

— Você gosta de fazer amor na chuva, não é? — ele perguntou quando

já se encontravam na estrada, sob tempestade.

— C... Como?

Jamais fizera amor sob a chuva, ele certamente devia estar confundindo-a com

outra garota qualquer. A idéia a deixou furiosa; se Ben não era capaz de separar as
lembranças das mulheres que conheceu, ao menos devia ser mais cuidadoso com
os comentários.

— Isto é algo que nunca esqueci a seu respeito. Se não fosse pelo julgamento

poderíamos estar juntinhos na cama, ouvindo o ruído da chuva batendo no telhado.

background image

Seria ótimo, concorda?

"Ah... dentro de casa", pensou aliviada. Sim, ela ainda se recordava daquela tarde

sete anos atrás...

— Sim, eu adoraria. Se você tivesse me pedido, eu teria ficado. Não foi por isso

que me deu aquele capítulo para ler?

Ben riu um riso divertido e desafiante.

— O que achou dele?

— Um bocado erótico — respondeu, sustentando o olhar. — Gostaria de ler

a estória desde o início. Você é um escritor de muito talento.

— É ... mas não existe bom escritor sem inspiração.

— Aquela cena foi inspirada em mim?

— Seria ótimo tê-la sempre por perto.

— Tem muitas cenas de sexo no livro?

Ele a olhou sugestivamente.

— Haverá se você não se afastar.

Sandra não reprimiu um riso alegre diante do olhar que recebeu.

— Mas você vai escrever com todos os detalhes?

— Talvez devêssemos fazer o seguinte: você me recusará todas as noites

de sábado, desta forma farei amor com a caneta e o papel.

A admissão franca de que a cena era fruto do desejo que Sandra despertara nele

excitou-a de novo. Quieta, imaginava até que ponto sua presença o perturbava.

— Seria um desperdício. Ben...

Ele deu uma gargalhada e, segurando-lhe o queixo com uma das mãos,

obrigou-a a encará-lo.

— Sinto-me lisonjeado com o elogio.

Em seus olhos escuros Sandra viu estampados o desejo e a paixão.

Intranqüila, Sandra ajeitou-se no banco e resolveu pôr fim ao assunto.

background image

CAPÍTULO VIII

Na segunda-feira o lento desenrolar do interrogatório já deixava marcas no rosto

abatido da garota, que não parecia nada bem. Ao contrário da semana anterior,
prestava depoimento sentada e não de pé, o que geralmente dava ao júri a
impressão de que a testemunha tinha algo a esconder. Sandra temia que a
debilidade a impedisse de raciocinar, pondo em risco o sucesso da acusação.

— Laney — disse Blake com certo desprezo —, creio que o júri gostaria

de saber o verdadeiro motivo que a levou a entrar no carro de meu cliente na noite de 8
de fevereiro. Explique-nos, por favor.

— Fazia frio e ele disse que me levaria para casa.

— E você tinha alguma razão especial para acreditar nele?

— Não entendi — Laney falou.

— Deixe-me explicar melhor: alguma vez já tinha aceitado carona de

Hughie Macomber?

— Não.

— Saiu com ele? — A voz e os gestos de Blake eram teatralmente

estudados.

— Não, eu nunca o tinha visto.

— E ainda assim entrou no carro dele? Sozinha, desprotegida, pela

simples promessa de que a levaria direto para casa?

— Sim.

— Por quê?

— Acreditei nele.

— E é seu costume acreditar em estranhos que passam de carro e lhe

oferecem coisas?

— Não sei... — respondeu ela, dando de ombros. — Poucas vezes isso me

aconteceu.

Blake parecia irritado.

— E nessas poucas vezes você acreditou nesses estranhos?

— Não, creio que não.

— Então, só acreditou em meu cliente?

— Sim.

— Mas vocês não se conheciam?

background image

— Não.

— Quantas vezes já havia feito o mesmo?

— Nunca.

— Quer dizer que meu cliente tirou a sorte grande, certo?

As perguntas de Blake eram revestidas de malícia e sarcasmo. Alguém do júri

reprimiu um risinho jocoso e ele se voltou para os jurados com ares de triunfo.

— Havia algo de especial em meu cliente que a levasse a agir contra seus

princípios? Talvez o fato de ser um rapaz bonito?

— Não.

— Bem, de fato sua beleza não chega a chamar atenção e o modo como se

veste não é modelo de elegância... a menos que... Você já namorou alguém de
condição social inferior à sua?

— Não.

— O que sua mãe diria se você resolvesse levá-lo à sua casa e apresentá-

lo como namorado?

— Não diria nada, ela não é preconceituosa, se é o que está tentando saber.

Foi a resposta mais longa que Laney dera até ali e alguns jurados até

endireitaram-se na cadeira, demonstrando maior interesse.

— Portanto, se quisesse, poderia tê-lo levado à sua casa.

Laney franziu as sobrancelhas.

— Mas eu não o conhecia.

Sandra não conteve um riso. "Bem respondido", pensou. Muitas

testemunhas teriam caído no laço jogado por Blake. A pergunta formulada no
condicional constituía armadilha infalível.

Pego de surpresa pela lucidez da resposta, o advogado de defesa partiu para um

ataque frontal:

— Não mesmo? Não é verdade que vocês dois já se conheciam há

muito tempo e mantinham um relacionamento amoroso, mas você temia levá-lo à
sua casa por ele ser de nível sócio-econômico inferior?

— Não, eu nunca o vira antes.

— Vamos rever a cena: você esperava pelo ônibus, parada no ponto, certo?

Surgiu um estranho dentro de um carro que parou e lhe ofereceu carona, a qual você
imediatamente aceitou. Espera que o júri acredite nisso?

— A princípio eu recusei a oferta.

— Não importa quantas vezes tenha recusado — ele afirmou agressivo.

background image

— O fato é que entrou no carro e foram embora, não foi assim?

— Mas...

— Responda. Foi ou não foi?

— Meritíss... — Sandra já começava a protestar quando ouviu Laney

responder à pergunta, sem contar até cinco.

— Não.

— Não? — repetiu ele com exagero cênico. — Está tentando nos dizer

agora que não entrou no carro?

— Não da forma como o senhor explicou — a garota disse com decisão.

A súbita mudança na atitude de Laney provocou espanto em todos,

particularmente em Sandra, que resolveu sentar-se e deixá-la prosseguir à sua
maneira.

— Então, conte-nos como foi — sugeriu Blake, perdendo terreno.

— A verdade é que ele passou pelo ponto duas vezes e eu recusei a carona.

Mas, logo depois, retornou e começou a falar que estava muito frio, que eu podia confiar
nele pois iríamos direto para a minha casa. Ele prometeu que não me faria nada.

Num gesto sarcástico, Blake curvou-se e agradeceu.

— Pelo visto, eu e os jurados teremos que rever nosso conceito de

"verdade"... Mas creio que todos já têm em mente uma opinião formada sobre o
ocorrido.

— Protesto, Meritíssimo! — interveio Sandra. — A testemunha em

nenhum momento alterou sua versão sobre o que aconteceu antes que entrasse no
carro do réu. Não há necessidade de que meu nobre colega ou o júri revejam seus
conceitos de "verdade" por causa do depoimento. Não é justo que a defesa faça
insinuações deste tipo.

— Não entraremos no mérito da questão do conceito de "verdade" —

afirmou o juiz. — Creio que os fatos em si já tenham sido bem esclarecidos, doutor
Roebotham.

Blake simplesmente acatou a decisão e prosseguiu:

— Bem, Laney — disse, aproximando-se da mesa onde as provas

estavam expostas. — Estas são as roupas que você identificou para o júri na sexta-feira,
como sendo as mesmas que usava na noite do ocorrido. — Com a ponta do
dedo, ergueu o macacão de brim azul.

— Ouvimos quando o sargento Dykstra contou-nos onde a polícia

encontrou-as e também quando disse que havia outras peças no mesmo local...

Blake dirigiu-se à ponta da mesa para onde as roupas íntimas haviam sido

trazidas na tarde de sexta-feira. Laney Meredith não estava presente ao tribunal

background image

naquela ocasião e agora, pela primeira vez desde que fora chamada à delegacia, seria
obrigada a revê-las.

A simples visão das roupas a fez retrair-se.

— Laney, vou lhe mostrar o que me parece ser os restos de um sutiã e de

uma calcinha. Você já viu estas peças antes? — Agindo como de costume, Blake
pegou os trajes ensangüentados e aproximou-se da testemunha com o propósito
deliberado de intimidá-la.

Constrangida, a garota baixou a cabeça.

— Sim, eles me mostraram.

— Eles quem?

— A polícia.

Blake erguia as peças no ar para que todos as vissem. Sandra gostaria de poder

esbofeteá-lo.

— E foi pedido a você que as identificasse?

— Sim, eles me perguntaram se eu as reconhecia.

As roupas haviam sido reduzidas a tiras de tecido manchadas de sangue e

por certo despertavam na memória de Laney lembranças que a acompanhariam
para sempre.

Embora profundamente revoltada, Sandra nada podia fazer judicialmente

para impedi-lo de humilhar a garota. No mundo machista das leis era perfeitamente
justo e legal submeter a vítima de um crime tão odioso a tal tratamento, em nome de
um julgamento imparcial para o acusado.

— E você reconheceu-as?

— N...não — respondeu em voz baixa.

— Mais alto, sim? Os jurados não podem ouvi-la.

— Não, não as reconheci — Laney repetiu.

— Contudo, identificou as demais como sendo suas, não foi?

— Sim.

— Mais alto, por favor.

— Sim.

— Bem, Laney, os jurados devem certamente estar confusos. Confesso que

também estou. Todos aqui ouviram quando o sargento afirmou sexta-feira que estas
roupas, que você diz serem suas, foram encontradas no fundo do armário de meu
cliente, enroladas junto com estas peças íntimas, que você admite não serem suas.
Pode nos explicar?

background image

— Não.

— Claro que não — retrucou Blake, cocando o lóbulo da orelha. — Seria difícil

encontrar explicação para tal disparate.

— Contesto, Meritíssimo! A testemunha não tem obrigação de "inventar

explicações" para os disparates propostos por meu colega. Devo lembrar aos jurados
de que não é ela quem está em julgamento, embora estejam sendo induzidos a
pensar desta forma. O acusado aqui é o cliente de meu colega, e só ele pode explicar a
presença das roupas em seu armário.

— A doutora Hoit tem toda a razão, doutor Roebotham. Esta testemunha

nada tem a ver com a presença de roupas femininas, que ela não identificou como
suas, no armário do réu.

— Pois bem, Laney — retomou o advogado sem perder tempo. — Na

noite em questão, você usava roupas de baixo?

— Claro que sim.

— Como? Pode repetir, por favor?

— Sim, usava.

— Pedi que repetisse o que havia dito antes. Por acaso disse "Claro que

sim"?

— Sim, disse.

— Mas em seu depoimento de sexta-feira não havia nada "claro". Quando

perguntei se aqui estavam todas as roupas você afirmou faltarem apenas as luvas e
o gorro, certo? Não mencionou as roupas íntimas.

— Não sabia que o senhor se referia também a elas. Todo mundo usa

roupas íntimas.

A garota começava a dar sinais de descontrole. Conforme Sandra havia

previsto, a visão das peças ainda agitadas por Blake perante o tribunal abalou-a. Era
preciso agir...

— Meritíssimo! — interrompeu, pondo-se de pé. — Esta questão já foi

esgotada. A testemunha já depôs diversas vezes ao nobre colega que usava roupas
de baixo na noite em questão. O júri está ciente de que ela esqueceu de mencioná-las
quando lhe foi perguntado pela primeira vez. Creio que o colega esteja tentando
ridicularizar a questão.

— Excelência, gostaria de lembrar aos jurados que há uma incongruência

nos depoimentos que precisa ser esclarecida, sob risco de prejuízo do acusado.

— Sim — decidiu o juiz —, há necessidade de maiores esclarecimentos para

que os jurados possam compreender o que de fato ocorreu, doutora Holt. Continue,
doutor Roebotham.

— Diga-nos, Laney: existe a possibilidade de você ter se enganado quanto à

background image

identificação das outras peças? Será que elas são realmente suas?

— Claro que são minhas.

— Entretanto, soubemos que foram encontradas junto com as peças

íntimas. Certo?

— Protesto. A testemunha não pode depor sobre algo que lhe escapa ao

conhecimento.

— Protesto concedido.

— Você mesma fez este macacão ou comprou-o numa loja?

— Eu o comprei.

— Havia outros idênticos a este?

— Não me lembro, provavelmente sim.

— Há alguma marca nele que lhe permitisse identificá-lo?

— Não, sei apenas de olhar para ele.

— Vou repetir a pergunta: há alguma marca nele que lhe permita

identificá-lo?

— Acho que não. Só a aparência em geral já...

— Restrinja-se à pergunta, sim?

— Não.

— E quanto ao casaco? Foi feito sob medida ou é produzido em série e

vendido nas lojas?

— Eu o comprei numa loja.

— Portanto, pode haver milhares de mulheres na cidade usando um casaco

idêntico.

— Penso que sim.

— O mesmo ocorre com as botas?

— Sim, mas...

— Certo. Portanto não há fundamento algum para sua afirmação de que

estas são as roupas que usava na noite em questão.

— Mas elas foram encontradas todas juntas — disse Laney confusa.

— Exatamente — apontou Blake triunfante. — Juntas. Portanto, você diria

que o fato de terem sido encontradas juntas foi um fator importante na sua identificação?

Sem perceber que caíra numa armadilha, Laney deu de ombros.

background image

— Não sei, só sei que são minhas.

— Se o macacão tivesse sido encontrado junto com um casaco que você

não reconhecesse, seria capaz de identificá-lo tão rapidamente?

Houve uma pausa enquanto ela o encarava com os olhos fixos.

— Acho que sim. Sim.

— Você acha... Laney, os jurados não vão condenar meu cliente baseados no

que você acha... Conforme nos disse, não existe marca nenhuma no macacão, não
é?

— Mas...

— Não foi o que disse.

— Sim, mas...

— Portanto o fato de as roupas terem sido mostradas todas juntas teve

grande importância na identificação, não é?

— Eu... Eu não...

Laney estava em apuros e Blake se satisfazia com aquilo.

— Não é fato, Laney — gritou, preparando o golpe fatal —, que as

identificou como sendo suas só porque lhe foram mostradas juntas? Não é justo afirmar
que a presença de um casaco parecido com o seu junto a um macacão parecido
com o seu levaram-na a acreditar que ambos lhe pertenciam, enquanto, caso
estivessem separados,talvez não lhe fosse possível identificá-los?

A garota estava visivelmente confusa e intimidada. Sandra podia jurar que ela

mal podia ouvir as perguntas de Blake, quanto menos entendê-las.

— Eu... talvez.

A voz desconsolada e calma parecia querer aplacar a raiva de Blake e Sandra

imaginava quantas vezes Laney Meredith não teria tentado o mesmo com Hughie
Macomber.

— Meritíssimo — interrompeu, furiosa —, a defesa

não tem o direito de submeter esta testemunha a tal

tratamento.

O juiz repreendeu Blake, que se desculpou.

— Como foi, então, que chegou à conclusão de que as peças íntimas

encontradas não são suas?

O tom pausado da pergunta despertou o interesse dos jurados.

— Não entendi a pergunta — Laney observou.

background image

— Veja: você afirmou que o fato de estarem juntas foi importante na

identificação. Entretanto, estas peças aqui... — Blake ergueu-as novamente ... que você diz
não serem suas também foram encontradas no mesmo lugar. Isto não põe em
dúvida a identificação? O macacão era suficientemente parecido com o seu para
reforçar a identidade do casaco, das botas etc. Mas presumo que as peças íntimas não
sejam tão parecidas com as que usava pois nem mesmo o fato de você ter
reconhecido as demais como suas não foi bastante para lhe permitir identificá-las. não é
mesmo?

— Não... — disse, a princípio insegura e, depois, com mais firmeza — Não.

— Meritíssimo, eu protesto — disse Sandra, tentando aparentar calma. — A

testemunha não afirmou que as peças de baixo não são suas. Disse, apenas, que não
há nada de especial nelas que lhe permita identificá-las, Meu colega deve abandonar o
costume que tem de distorcer o depoimento.

— Protesto concedido.

Furioso, Blake voltou-se para Laney mais sarcástico que nunca.

— Você se recusou a identificá-las, não foi?

— Sim, mas não porque não parecessem minhas. Elas são minhas.

— Diga-me, por acaso minha nobre colega, a promotora, comentou algo a

respeito destas roupas antes do julgamento?

— Sim.

— Ela lhe pediu que tentasse identificá-las?

— Sim.

— E isto lhe deu a impressão de que seria importante para você afirmar com

absoluta certeza perante o tribunal que as peças são as que usava na noite em
questão?

— A doutora Holt me disse que eu devia tentar olhar para elas e ver se podia

identificá-las.

— E ela lhe falou que sua ação contra meu cliente ficaria materialmente

enfraquecida de provas por sua recusa?

— Ora, Meritíssimo, eu contesto — Sandra interferiu. — Meu colega está

tentando convencer os jurados da importância do caso contra o acusado. Isto devia ser
assunto reservado ao sumário.

— Reformule a pergunta, doutor Roebotham.

— Pois não, Excelência. — De novo ele se dirigiu à garota: — A promotora lhe

disse que seria importante você identificá-las, Laney?

— Sim, disse

— E a polícia?

background image

— Também.

— E ainda assim, apesar de toda a pressão de ambas as partes, recusou-se a

identificá-las. Isto deve ter requerido muita firmeza de decisão pois sei que a nobre
promotora pode ser bastante convincente quando quer. Você deve ter mesmo
absoluta certeza de que as roupas íntimas não são suas. Confesso que não teria sua
coragem.

A conclusão veio acompanhada de um risinho irônico que fez com que

Sandra perdesse a calma.

— Meritíssimo... — disse, furiosa.

— Queira se controlar, doutor Roebotham — disse o juiz, antes que ela

pudesse prosseguir. — Seus comentários sobre a promotora são impróprios.

— Retiro qualquer afirmação que possa denegrir a competência de minha

colega — disse Blake com um riso falso consciente de que o estrago estava feito. —
Então, Laney, caso não tivesse sofrido pressão alguma, ainda teria certeza de que são
suas?

— Sim.

— Meritíssimo. nada mais tenho a perguntar a esta testemunha.

Mesmo sem consultar o.relógio, Sandra sabia que devia ser hora do recesso. E,

de fato, o juiz anunciou-o a seguir, absolutamente impassível.

Muito agitada, culpava-se por não ter podido lidar melhor com a questão das

roupas. Devia saber que Blake não conseguira a reputação que tinha a troco de nada.

E agora o júri teria todo o tempo do recesso para ponderar se as roupas

eram mesmo de Laney; não ia ser fácil refazer os estragos causados por Blake. Ainda
que a garota tivesse agora vontade de identificá-las, Sandra não lhe permitiria fazê-lo
pois deixaria o júri com a impressão de que a vítima não tinha certeza do que
afirmava.

Voltando-se para o estagiário encarregado de ajudá-la no caso, disse:

— Assim que os jurados saírem, traga Laney até mim. E pare de me olhar

com essa cara de criança que perdeu o doce!

Talvez a advertência também lhe servisse pois ia precisar de coragem para

enfrentar o interrogatório da tarde. Restavam-lhe apenas duas horas para elaborar
um plano que destruísse o impacto desastroso da manhã sobre os jurados.

Meditando com mais calma, percebeu que Ben tinha razão, embora não

pelos motivos que alegara: seria preciso conseguir que a psiquiatra viesse depor logo
após o término do depoimento de Laney.

— E descubra se a doutora Andréa Zimmerman pode vir depor esta

tarde em vez de amanhã. Caso não possa, intime-a — ordenou ao rapaz. —
Precisamos da ajuda dela.

background image

CAPÍTULO IX

Sandra acabara de conversar com a garota. Havia procurado acalmá-la,

dando-lhe algumas instruções, adiantando os pontos a serem levantados na parte da
tarde. O estado de Laney lhe parecia comovente: absolutamente distante e apática
diante de qualquer comentário; resultado da tática desumana de Blake que, após arrasá-
la, suspendera o interrogatório bem a tempo de evitar uma crise de choro da vítima.
Caso a garota se debulhasse em lágrimas, os jurados o tachariam de bruto ou
insensível e se compadeceriam de Laney.

Agora, ao elaborar um esquema para o período vespertino, precisava ter em

mente o abalo da testemunha ao voltar à tribuna.

— E prepare-se pois Blake não vai facilitar as coisas — comentou Ben. — Mas

tenho certeza de que você ainda não utilizou todas as suas armas, não é?

Sandra sorriu e concordou.

— Não. mas antes da tempestade sempre bate o desespero.

— É mesmo? E você sentia o mesmo quando tinha que me enfrentar?

— Sim, sempre que me trazia problemas.

— Puxa, pena que eu não soubesse — disse ele, jogando a cabeça para trás

e rindo de um jeito espontâneo. — Muitas vezes desejei vê-la perder o controle, mas
você sempre mantinha a calma, mesmo nos piores momentos.

— Uma das minhas virtudes é saber blefar. — Então, mais séria,

acrescentou: — Como vou poder tirar Laney desta enrascada? Não posso permitir
que volte atrás em sua negativa de identificar as provas. Suas reações daqui por
diante serão imprevisíveis — disse mais para si mesma.

Ambos conversavam no escritório de Ben e ela fazia anotações num bloco

enquanto engolia um sanduíche e um café.

— Sabe o que me deixa mais furiosa? — indagou de repente. — Confesso

que não gostei dos conselhos que me deu ontem sobre a doutora e na hora resolvi
seguir meus instintos. Mandei localizá-la ainda hoje pois queria lhe provar que eu tinha
razão. Mas agora já não tenho muita certeza de que agi certo.

— Não preciso que me prove sua competência, Sandra — disse num tom

compreensivo.

— Oh, não. Estou falando das mulheres e da credibilidade profissional delas

perante o júri.

— Caso consiga demonstrar que meu modo de pensar está ultrapassado,

ficarei muito satisfeito — afirmou com sinceridade. — Mas se quer um conselho, só
posso lhe sugerir o que tem dado melhores resultados. Não posso dizer-lhe para agir
baseada no que pode acontecer. Ê claro que os jurados deveriam dar o mesmo

background image

crédito tanto ao depoimento de uma médica quanto ao de um médico. Mas a
questão é: o que, de fato,

acontece?

Ben estava certo e Sandra percebeu que vinha se comportando de modo

irracional. Tomara os conselhos de Ben como ofensas pessoais e por pouco não
arriscava a vitória pelo puro prazer de provar-lhe que estava enganado. E, para piorar as
coisas, sua aversão por Blake chegava a ultrapassar os limites do admissível.

Era preciso manter o controle emocional antes que pusesse tudo a perder.

Agora, no tribunal, era a vez de Sandra interrogar Laney.

— Senhorita Meredith, a defesa perguntou-lhe esta manhã se havia alguma

marca, algum sinal nestas roupas que lhe permitisse identificá-las como suas. Poderia
nos dizer o que entendeu por "marca ou sinal"?

— Bem, penso que se referia a uma etiqueta com meu nome.

— Portanto não pensou que meu colega se referisse a quaisquer sinais ou

marcas?

— Não.

— E agora? — Sandra falava com calma. — Compreende que possam

ser de qualquer espécie?

— Sim.

— Vou mostrar-lhe este macacão que você afirma ser o mesmo que usava

na noite do rapto e quero que nos diga, Laney, se há algo nele que os distinga dos
demais.

— Sim, há — a garota falou. — Certa vez um botão caiu e eu o preguei com

linha branca.

— A qual botão está se referindo?

— Ao segundo, de cima para baixo — a garota apontou.

- E qual deles você pregou com linha branca?

— O segundo, de cima para baixo.

— Entendo — Sandra deu um leve sorriso. — E na ocasião em que meu

colega lhe fez a pergunta, você entendeu que isto podia ser um sinal ou uma
marca?

— Não, pensei apenas numa etiqueta com meu nome.

— Agora que compreende o que significa uma marca existe qualquer outra

neste macacão da qual se recorda e que a tenha ajudado na identificação?

background image

— Tem uma pequena mancha roxa na perna esquerda feita por uma

romã. Tentei removê-la com benzina, mas só consegui desbotar o tecido ao redor.

— Portanto, olhando para estas duas marcas você afirmou com certeza

que ele lhe pertence?

— Foi isso, doutora.

— Laney, nas outras peças você também consegue identificar alguma

marca?

— Sim.

— Aqui está o casaco apresentado como prova. Pode contar ao júri

como chegou à conclusão de que ele lhe pertence?

— Sim, o bolso está um pouco rasgado aqui.

Laney examinou o casaco.

— Está se referindo à costura que prende o bolso direito ao forro?

— Exato.

— Mais alguma coisa?

Laney examinou o casaco mais uma vez.

— A etiqueta da fábrica foi cortada. Eu a tirei porque ficava sempre para fora.

— Para que os jurados não tenham mais dúvidas, vou lhe mostrar as botas

encontradas. Alguma marca especial?

— Os saltos estão mais gastos do lado interno. Eu sempre gasto os saltos por

dentro por causa do meu modo de andar.

— Entendo. Creio que não haja dúvidas quanto à bolsa, há? — Sandra

perguntou.

A bolsa não fora encontrada no armário de Macomber e, sim, dentro do

porta-luvas do carro. Mas o júri ainda não sabia.

— Não, todas as minhas coisas estavam aí.

— A que coisas você se refere?

— Protesto, Excelência — interrompeu Blake. — A testemunha já passou

tempo suficiente identificando o conteúdo da bolsa para o júri. É desnecessário voltar à
mesma questão.

— Meritíssimo, o próprio representante da defesa pôs em dúvida a

identificação e omitiu maiores explicações no que se referia às marcas. Em virtude do
depoimento extraído da vítima em decorrência deste engano, o júri tem o direito de
ter as peças expostas mais uma vez.

— Prossiga, doutora Holt. — O juiz foi taxativo.

background image

Sandra gastou bastante tempo com os objetos encontrados dentro da bolsa,

dizendo a Laney que não se apressasse em identificá-los. Aos poucos, ia devolvendo
tranqüilidade à garota.

Novos fatos seriam trazidos a público agora e todo cuidado era pouco. A um

pequeno deslize de ordem jurídica, Blake interviria e poria tudo a perder.

Aproximando-se das peças expostas, disse:

— Agora, senhorita Meredith, gostaria de pedir-lhe algo que sei lhe será muito

difícil e que por este motivo tentou evitar até o momento. Quero que examine estas
roupas de baixo tidas como prova e me diga se há nelas alguma marca que as
distinga como sendo as mesmas que usava na noite de 8 de fevereiro.

O terror estampado no rosto de Laney certamente não passaria despercebido

aos jurados. Seus olhos arregalaram-se, fixos nas roupas. Respirando fundo, a garota
esticou o braço e pegou-as.

— Há algo nestes restos esfarrapados que lhe seja familiar?

— A... a marca. A etiqueta do fabricante é presa ao elástico.

— Qual o nome do fabricante?

— Dici — Laney respondeu.

— E qual a marca de lingerie que você costuma comprar com mais

freqüência?

— Eu sempre compro Dici.

— Há alguma indicação de tamanho?

As mãos pálidas tremiam ao secar o suor que lhe corria pela testa.

— A calcinha é tamanho pequeno.

— Como sabe?

— Há aqui uma pequena etiqueta com um " P" preto — Laney mostrou,

— Que tamanho de lingerie você usa? — Sandra perguntou com tato. —

Sinto muito ter de entrar em detalhes tão pessoais, mas o júri precisa saber.

— Tamanho pequeno.

— E no sutiã? Há indicação de tamanho, Laney?

— Há uma etiqueta perto do fecho, escrito quarenta e dois.

— E que tamanho você normalmente usa?

— Quarenta e dois.

— Algo mais lhe é familiar entre estas duas peças e as que você

normalmente compra?

background image

— Sim, são brancas e feitas de algodão. Exatamente como a maioria das

minhas.

Laney se portava maravilhosamente bem. Muito melhor do que Sandra

imaginara. Era mesmo uma garota de muita coragem.

— E na noite do rapto você usava lingerie parecida com esta?

— Sim, sim, usava — disse com firmeza, embora as mãos tremessem.

— Senhorita Meredith, existe por acaso alguma outra marca que lhe

permita afirmar com cem por cento de certeza que elas são as mesmas daquela
noite?

— Não, sinto muito — sussurrou. — Eram quase novas, não tinham mais

do que duas semanas...

Todos os jurados pareciam ouvir com atenção as palavras de Laney.

— Bem, sei que isto lhe custa muito, mas em seu depoimento você afirmou

que, enquanto esteve confinada, o acusado um dia veio vê-la e levou embora toda a
sua roupa. Poderia dizer aos jurados se então já estavam manchadas de sangue?

Laney lançou um olhar perdido em direção à porta.

— Sim — murmurou. — Havia manchas do meu sangue.

A afirmação deve ter provocado arrepios em todos os presentes. Incapaz de

controlar o tremor em sua voz, Sandra fez uma pausa e, em seguida, retornou ao
interrogatório.

— E como foi que ficaram manchadas de sangue?

— Quando... ele trouxe uma faca. E me arrancou...

Um nó na garganta a impedia de falar.

— Calma, senhorita Meredith. Os jurados compreendem sua dificuldade.

— Ele me despiu com a faca e me machucou em alguns lugares. Mais

tarde, limpei o sangue com as roupas. Mas ele veio e levou tudo embora.

— Obrigada, Laney. — Estava difícil para Sandra conter a emoção. — Só

mais uma coisa: a quem você se refere quando diz "ele"?

— A ele — pronunciou com súbita firmeza, enquanto apontava para o réu.

Os olhos, rasos d'água, denunciavam medo e rancor, o que deve ter

comovido os jurados.

Sandra concedeu uma breve pausa e tomou a palavra:

— Agora, gostaria que nos esclarecesse uns pontos levantados pela defesa.

Você já afirmou em depoimento que fazia muito frio no porão, certo?

— Sim, eu estava gelada.

background image

— E alguma vez disse isto ao réu?

— Penso que sim, mas não posso afirmar que tenha usado exatamente

estas palavras.

— Pediu a ele que lhe trouxesse um cobertor ou roupas para se agasalhar?

— Diversas vezes lhe implorei que trouxesse...

— E ele trouxe?

— Não.

— Conforme seu testemunho anterior, quando o réu chegava ao porão,

você se agarrava a ele, certo?

— Certo.

— Este seu gesto era uma demonstração de carinho, Laney?

— Não, eu o odiava.

— E por que, então, corria para ele?

— Eu sentia muito frio e ele estava quentinho. Às vezes, ele me protegia

com seu casaco e me abraçava. Eu precisava de calor.

— Poderia explicar aos jurados se havia alguma possibilidade de o acusado

confundir suas intenções e julgar que fosse uma demonstração de afeto?

— Não — disse com clareza. — Ele sabia que eu o odiava e que só queria

seu calor. E foi por essa razão que me conservou nua. Ele costumava rir de mim e

dizer que era uma ótima maneira de fazer as garotas... Bem...

Laney encarou o acusado e não conseguiu completar a frase.

— Está bem, senhorita Meredith. Espero que o júri compreenda sua posição.

Só mais uma pergunta para que não haja engano: você já conhecia o réu antes da
noite de 8 de fevereiro quando ele passou pelo ponto de ônibus onde estava?

— Não, nunca o vi antes.

— É só, senhorita Meredith. Obrigada.

Agora era a vez de Blake Roebotham. Levantando-se preguiçosamente,

lançou um olhar de desdém em direção à vítima, como se nada do que fora dito
tivesse importância.

— Laney, acaso supõe que o único casaco com um bolso rasgado em

toda Ontário seja o seu?

— Não sei — a garota respondeu.

— Em seu depoimento afirmou que costuma gastar os saltos dos sapatos

pelo lado interno. Você anda com as pontas dos pés voltadas para dentro?

background image

— Um pouco.

— Pessoas com este andar normalmente gastam os saltos de uma forma

especial, não?

— Não sei.

— Ou você se julga a única pessoa na cidade inteira a andar com os pés

tortos?

— Acho que não sou a única.

— Em sua opinião, é possível que uma outra mulher tenha comprado um

par de botas iguais às suas e tenha gasto os saltos pelo lado interno?

— Penso que sim.

— Laney, pode afirmar com absoluta certeza que as roupas íntimas

exibidas como prova são as que usava na noite em questão?

— Não.

— E concorda comigo quando digo que as pessoas normalmente não

demonstram ódio pelas outras, recebendo-as com um abraço?

— Não, normalmente não.

Laney recobrara o controle e a calma e respondia às perguntas de Blake

demonstrando sabedoria e prudência. Sandra percebeu a mudança de atitude e
concluiu que, finalmente, ela estava aprendendo a conviver com o trauma. Era um
amadurecimento repentino, a olhos vistos, que a tornava ainda mais admirável. Não
havia termos de comparação entre a beleza interior de Laney e a crueldade de Blake.

Infelizmente, a vida lhe dera uma lição difícil, mas que todas as mulheres, mais

cedo ou mais tarde, teriam que aprender. E esta fragilidade, esta cumplicidade, as
tornava diferentes dos homens.

A voz cristalina do juiz trouxe Sandra de volta à realidade.

— Mais alguma pergunta, doutor Roebotham?

— Não, Meritíssimo.

— A testemunha tem permissão para voltar ao seu lugar. Doutora Holt,

queira chamar o próximo — o juiz falou pausadamente.

Preocupada, Sandra não sabia se chamava ou não a médica. Talvez o

depoimento de Laney já tivesse recuperado sua credibilidade junto aos jurados. Valeria a
pena correr o risco de deixá-la para o final? Tentando ganhar tempo, folheou os papéis
que tinha à frente. Precisava decidir logo.

— Sua próxima testemunha está presente, doutora Holt? — O juiz tornou

a falar.

De repente, como se uma força superior a ajudasse. Sandra levantou-se e

background image

disse:

— Sim, Excelência. Por obséquio, gostaria que o sargento Dykstra fosse

trazido à tribuna para novo depoimento.

Ao virar-se para trás, a primeira figura que viu foi a de Ben Glass que, com os

cotovelos apoiados nos joelhos, assistia atentamente ao julgamento. Sandra dirigiu-lhe
um sorriso terno, grata por sua atenção e Bem retribuiu-lhe com um aceno. A presença
dele tranqüilizou-a. Era muito bom contar com um amigo naquela hora.

Então, girando para a direita, notou um outro par de olhos que a focalizavam.

Contudo, não havia nada de ameno naquele olhar. A doutora Zimmerman parecia
querer fuzilá-la. "Oh, Deus, e agora? Mandei que a intimassem e nem vou
precisar dela esta tarde!"

Enquanto aguardava a entrada do sargento, curvou-se e disse ao estagiário:

— Diga à doutora Zimmerman que aceite minhas desculpas, mas não

vamos precisar dela hoje. Mandarei avisá-la com antecedência o dia e a hora em que
deverá depor.

Sem esperar até que o rapaz transmitisse o recado, voltou-se para frente e

aguardou até que a testemunha se posicionasse na tribuna.

background image

CAPÍTULO X

Sandra espreguiçou-se demoradamente, deliciando-se com a sensação de

profundo bem-estar. A seu lado, a luz fraca do abajur projetava sombras disformes
sobre o corpo de Ben. Ele lhe acariciava vagarosamente os quadris, o ventre, até
segurar-lhe um seio com firmeza.

— Mmmm... — murmurou ela, esticando-se sob o toque da mão

máscula.

Curvando-se, Ben beijou-lhe a curva dos seios e friccionou com os lábios os

mamilos ainda rijos. Então, rolou para o lado trazendo-a consigo.

Com o rosto apoiado no peito dele, Sandra escutava as batidas fortes e

aceleradas do coração de Ben. Satisfeita, correu os dedos por entre os pêlos espessos do
peito dele, absolutamente entregue.

Não precisavam dizer nada, bastava estarem ali juntinhos. Para ela, o mais

importante era desfrutar do conforto e do aconchego que a presença dele lhe
transmitia. Era delicioso poder estar na companhia de um homem em quem
confiava.

Quem a visse ali tão tranqüila não podia imaginar que apenas minutos atrás ele

a deixara alucinada ao fazerem amor. Ben era o primeiro a fazê-la sentir-se menina e
mulher. Em seus braços, experimentava momentos de intenso prazer e intensa paz.

— Vai passar a noite comigo? — perguntou Bem, beijando-lhe a testa.

A voz rouca e sensual provocou-lhe arrepios.

— Não posso, Ben — explicou sorrindo. — Quero levantar cedo amanhã

e todas as minhas anotações estão em casa. Roebotham me assusta e preciso me
preparar muito bem para enfrentá-lo.

Embora quisesse ficar ali para sempre, Sandra lutou contra a preguiça e sentou-

se, recostando-se na cabeceira. Ben reclinou-se e encarou-a. Era um homem
extremamente atraente, na opinião dela, capaz de acelerar-lhe o coração todas as vezes
em que a fitava. A testa alta e o nariz afilado compunham um perfil másculo, de
linhas fortes.

— Sua atuação hoje foi brilhante — ele comentou com sinceridade. —

Finalmente você conseguiu com que Laney a ajudasse, em lugar de permanecer
calada. Impressionante.

Contente com o elogio, Sandra correu os olhos pelo quarto. Embora preferisse

a decoração moderna e sofisticada de seu próprio apartamento, admitiu intimamente
que este de Ben era de uma beleza clássica, sóbria e, até certo ponto, mais aconchegante.
A suíte principal fora decorada em tons de marrom e bege que refletiam o gosto
tradicional do dono. Nada de objetos arrojados ou chamativos; apenas peças refinadas
e de extremo bom gosto.

background image

— Confesso que também me surpreendi com a mudança. Creio que a

agressividade de Blake despertou nela vontade de reagir. Foi como se, de repente,
Laney tivesse de decidir: ou permanecia passiva e se submetia ao ataque ou reagia e
retomava o controle sobre sua própria vida. É uma menina de coragem pois não
permitiu que Blake fizesse o mesmo que Macomber fez.

— Você, de fato, o odeia, não? Acha mesmo que Roebotham seja tão

canalha?

Sandra abaixou os olhos e o observou.

— Você ainda tem dúvidas?

— Na minha opinião, é um advogado de defesa brilhante, que,

moralmente falando, prefere adotar uma tática de risco. Mas, no fundo, é o que todos
fazemos, portanto, não vejo razão para tanto ódio.

Como que por encanto o comentário de Ben fez desaparecer aquela sensação

gostosa que Sandra desfrutava. Suspirando, reconheceu que seria inútil argumentar e
criar uma polêmica. Os homens jamais chegariam a analisar a problemática feminina
sob outro ponto de vista. Se ao menos as mulheres fossem tão unidas quanto
eles... O mundo masculino lhe parecia um clube onde todos os membros se
defendiam mutuamente contra os ataques feitos pelas mulheres. Entretanto, não
estava disposta a combater velhos preconceitos machistas naquele momento, queria
apenas voltar para casa e dormir.

— É, talvez seja algo pessoal entre mim e ele.

— Reconheço que não gostaria de tê-lo como amigo mas sua competência

é inegável.

— Bem, está ficando tarde — disse ela, pondo fim ao assunto. — Acho

que...

Sem esperar que completasse a frase, Ben esticou o braço e puxou-a para

junto de si num abraço.

— Quero perguntar-lhe algo antes que vá embora. Você... — Ao senti-la

tensa, apoiou-se num cotovelo e olhou-a bem dentro dos olhos. — O que foi?

Só agora ele notava seu descontentamento e Sandra percebeu a

preocupação sincera.

— Nada — respondeu-lhe um tanto irritada. — Por quê?

— Seus olhos mudaram de cor, ficaram frios. O que houve?

A proximidade e a intensidade com que ele a olhava deixaram-na pouco à

vontade. Dando de ombros, retrucou:

— Quero ir para casa, amanhã preciso chegar no tribunal bem cedo. Por

que não diz logo o que tem a dizer e esquece a cor dos meus olhos?

Imediatamente ele a largou, balançando a cabeça como se não pudesse crer

background image

no que ouvira.

— Quer uma xícara de café?

O primeiro ímpeto de Sandra foi de recusar. Mas, depois, reconsiderando,

achou melhor aceitar pois estava sonolenta e ainda teria de dirigir de volta para casa. Ora,
mas quantas desculpas iria inventar para se iludir? Impaciente, correu os dedos pelos
cabelos e disse:

— Está bem, aceito.

A chuveirada foi suficiente para espantar o sono mas, ao retornar para o quarto,

já vestida, encontrou Ben sentado com uma bandeja e duas xícaras fumegantes. A
atmosfera era tão acolhedora que ela não conseguiu recusar.

Sentados um ao lado do outro, conversaram apenas sobre assuntos amenos.

"O que houve com o aconchego e a intimidade?", perguntou uma

vozinha dentro dela, mas Sandra venceu o ímpeto que teve de segurar as mãos de
Ben e disse a si mesma que o conforto era algo etéreo, frágil como um cristal, seria um
erro procurar segurança nos braços dele.

— Provavelmente eu só a verei depois da sessão de hoje — disse-lhe Ben,

ao acompanhá-la até a porta. — Preciso esclarecer uns pontos de meu próximo caso.
Boa sorte, Sandra. E tente não confundir as coisas: o fato de eu não odiar Blake não
quer dizer que esteja torcendo por ele. Tenho certeza que, se tudo continuar como está,
você sairá vencedora.

Era tranqüilizador ouvir aquilo num momento em que as dúvidas lhe

povoavam o pensamento. E, de repente, veio a vontade de perguntar a ele quem
decidira nomeá-la para o caso e se os demais promotores também torciam por ela.
Mas aquele era um outro assunto que ficaria para depois.

— Boa noite, Ben — disse, após trocarem um beijo de despedida.

— Boa noite, Sandra.

Ben fechou a porta assim que ela se afastou e o ruído provocou nela uma

sensação desagradável. Era como se algo vital como o ar ou a água lhe estivessem
sendo negados. Sentiu-se subitamente só, abandonada, frágil como uma criança.

A terça-feira parecia arrastar-se e no tribunal a maior parte do tempo foi gasta na

discussão de detalhes técnicos obtidos pelos laudos médicos e pela perícia. Blake
demonstrou profundos conhecimentos na área de Direitos Humanos e recusou
diversos exames laboratoriais apresentados, cujos resultados determinavam que o
sangue que manchava as roupas era do mesmo tipo do de Laney. Alegou que a
demora do processo de coleta e análise poderia ter influenciado os resultados e pediu
que um novo fosse providenciado.

Este era um detalhe importante para a acusação pois deixava claro que as

background image

peças encontradas com o réu pertenciam de fato a Laney Meredith.

Para a felicidade de Sandra, o juiz McVean rejeitou a alegação e afirmou serem

suficientes os depoimentos dos técnicos encarregados das análises.

Isto, contudo, não impediu que Blake exigisse a presença dos mesmos e os

interrogasse minuciosamente, querendo saber de detalhes mínimos sobre todas
as etapas dos exames.

— E caso um de vocês tenha fraudado os resultados, que valor teriam eles

como prova contra o réu? — perguntou à testemunha. — Diga-me, de que formas
se pode fraudar um exame?

— Bem — disse o técnico, sem se deixar intimidar —, pode-se derrubar

uma das lâminas e substituí-las por uma falsa. Ou trocar os números das etiquetas
para que não coincidam com os da ficha. Ou ainda desviar todo o material.

— Ou — completou Blake num tom triunfante que ecoou pelo ambiente

— talvez fabricar um resultado para um material falso.

— Certo — concordou o técnico. — Este tipo de coisa é muito freqüente nos

laboratórios particulares, mas raramente ocorrem nos laboratórios de criminalística.
Nunca ouvi contarem sobre um caso em que isto tenha acontecido.

— Certamente que não pois, se isto tivesse ocorrido, ninguém ficaria sabendo.

Este tipo de argumento surtia efeitos diversos nos jurados, mas em Sandra

provocava apenas irritação e tédio. Entretanto, toda atenção era pouca pois os aspectos
técnicos da questão não eram o seu forte. Precisava estar atenta para que nenhum
detalhe lhe escapasse.

De posse da palavra, Sandra perguntou:

— Senhor Billings, a mim parece claro que um erro deste tipo num laboratório

de criminalística teria conseqüências muito mais desastrosas do que num particular. Na
sua opinião, os técnicos que manipulam o material e as provas nos laboratórios da
polícia têm consciência da importância de um trabalho preciso?

— Sim, têm. Nenhum deles gostaria que um criminoso fosse deixado à

solta ou que um inocente fosse acusado como resultado de um exame impreciso.

— As amostras de sangue apresentadas como sendo de Laney Meredith

foram realmente colhidas da vítima?

— Dou minha palavra. Fui eu que colhi o material — a testemunha

afirmou.

— E quanto às amostras examinadas como sendo as das provas,

foram realmente colhidas das provas?

— Sim, foram.

— E ambas eram do mesmo tipo B rh negativo?

background image

— Sim. eram.

— Obrigada, senhor Billings. É só.

Sandra conseguiu que todas as provas fossem exibidas ao júri, o que lhe era

favorável mas, no final do dia, sentia-se absolutamente esgotada. A continuar naquele
ritmo, não agüentaria por muito tempo. Porém os trabalhos do julgamento sofreriam
uma interrupção, pois Blake estava a cargo de um outro caso a ser defendido.

Caminhando pelos corredores do Fórum em direção à sua sala,

acompanhada do estagiário, só pensava em duas coisas: tomar um banho quente e
desfrutar da companhia de Ben Glass durante o jantar. Nesta ordem.

Preocupada, disse a si mesma que era preciso mais calma naquele

relacionamento antes que se habituasse à presença constante de Ben.

Aléria Franklin, vizinha dos Miller, havia testemunhado conhecer Hughie

Macomber de vista e que este era amigo de Matthew Miller. Ela o vira rondando a
casa do vizinho diversas vezes e chegou até a avisá-lo de que a família havia saído de
férias. Hughie respondera que sabia e que Matthew Miller lhe pedira para vir cuidar do
coelho e da casa durante sua ausência.

— Conversaram mais alguma coisa a respeito do coelho? — Sandra

perguntara.

— Sim — falou a senhora Franklin, olhando para o acusado. — Disse-lhe

que o lugar estava muito frio para o animal e que Mônica Miller trouxera todas as
plantas para minha casa pois queria reduzir o aquecedor ao mínimo. Até comentei
com ele que o bichinho poderia morrer de frio.

— E qual a resposta do senhor Macomber?

— Ele sorriu e falou que estava tudo bem pois levara o coelho para o quartinho

do aquecedor, onde estava mais quente.

Sandra baixou a cabeça fingindo que lia algo até que a raiva que sentia por

Macomber diminuísse. Retomando, indagou:

— E a senhora, então, encerrou o assunto?

— Não. Fazia tanto frio aquela semana que nos pegou de surpresa... Aí eu lhe

perguntei se não queria trazer o coelho para nossa casa...

Sem interromper as longas respostas da testemunha, Sandra limitou-se a

aguardar pelo protesto de Blake. Cada palavra da senhora Franklin confirmava o
caráter desumano do acusado quanto às condições a que submetia a vítima.
Demonstrava, ainda, tratar-se de um mentiroso convincente e cínico. E o protesto de
Blake alegando que a testemunha não deveria expor sua opinião particular só serviu
para reforçar o que já se tornava evidente. O juiz pediu aos jurados que ignorassem
determinados comentários, mas Blake sabia que o estrago começara desde o
instante em que Aléria Franklin começou a falar.

— Senhora Franklin, voltemos à manhã de 11 de fevereiro deste ano. Algum

background image

fato inusitado ocorreu naquele dia?

— Sim, claro que sim.

— Poderia contá-lo aos jurados?

Seguindo literalmente as instruções, Aléria Franklin voltou-se para o juiz, respirou

fundo e começou a falar num tom baixo e intimista como se já fosse velha amiga dos
jurados.

— Eram mais ou menos dez horas da manhã e eu estava sentada à mesa

da cozinha, que dá vistas para o quintal. Meu plantão só começaria ao meio-dia e
aproveitei para tomar um café quando vi algo mover-se lá fora. Olhei para a direita e a
vi correndo cambaleante pela neve, enrolada numa toalha de mesa roxa, descalça e
sem meias. Fiquei tão surpresa que, por um instante, permaneci sentada, imóvel. Então,
ela caiu e percebi que estava nua. Dali a pouco ela batia à minha porta, gritando por
socorro. Corri até lá e, quando abri, a moça tombou novamente, chorando e dizendo:
"Ajude-me... Oh, por Deus, ajude-me..."

— Como a senhora descreveria a aparência de Laney?

Com os olhos cheios de lágrimas, Aléria descreveu com detalhes o estado

deplorável de Laney na ocasião. Contou que a enrolou num cobertor e pôs a bolsa de
água quente nos pés da garota, que nem assim parou de tremer. Quando a polícia
chegou com a senhora Meredith para buscá-la, Laney ainda não podia andar.

— A senhora sabia o nome dela quando a viu? — Sandra perguntou

com tranqüilidade.

— Não, eu não a conhecia. Nunca a vi antes.

— E, mais tarde, veio a saber como se chamava, senhora Franklin?

— Sim, doutora.

— A garota a quem ajudou e em cujo nome chamou a polícia no dia 11 de

fevereiro é Laney Meredith, aqui presente?

— Sim, é ela.

— Obrigada.

Satisfeita com o impacto do depoimento sobre os jurados, Sandra sentou-se

e encerrou o interrogatório. Caso ainda duvidassem do sofrimento a que a vítima
fora submetida ou se Blake tentasse argumentar que Laney permanecera lá por
vontade própria, a descrição arrepiante das condições físicas da garota ao chegar à casa
dos Franklin seria suficiente para derrotá-los.

Blake agora estava com a palavra.

— Que conhecimento tinha do réu quando conversaram a respeito do

coelho?

— Eu o conhecia de vista. Ele e Matthew estavam sempre juntos.

background image

— A senhora sabia o nome dele?

— Sim — respondeu Aléria após uma breve pausa. — Acho que sim.

— Portanto, quando a polícia lhe perguntou quem a senhora havia visto na

casa dos Miller, deu-lhes logo o nome de meu cliente?

— Ah! Agora me lembro. Perguntei a meus filhos qual o nome do amigo de

Matthew.

— E eles lhe deram o nome do réu, o qual foi repassado à polícia?

Não, os policiais estavam lá quando eles me contaram.

- E, em seguida, identificou-o para a polícia?

— O que quer dizer com "identificou"? — Aléria Franklin não se

intimidava com o advogado.

— Viu-o pessoalmente e disse: "É este".

— Sim, identifiquei.

— Meu cliente havia sido trazido à sua presença?

— Não, ele estava sentado na delegacia quando entrei, reconheci-o e contei

ao guarda.

- Hughie Macomber era o único suspeito presente? — Blake perguntou.

— Creio que sim. Havia outros homens por perto, mas acho que eram

policiais.

— E acaso lhe apresentaram outros suspeitos para que identificasse?

— Não, apenas esse moço aí -— ela apontou o acusado.

— Senhora Franklin, chegou a ver Hughie Macomber entrando na casa

dos Miller?

— Não, nunca.

— E saindo?

— Não, só o vi rondando...

— Atenha-se apenas à pergunta, por favor, senhora Franklin!

— Não, não vi.

— Obrigado. Nada mais tenho a perguntar.

O depoimento da senhora Miller não teve a mesma repercussão que o de

Aléria, mas ajudou bastante. Em seu testemunho afirmou não ter tido conhecimento
do acordo existente entre Macomber e seu filho, permitindo-lhe entrar na casa durante
sua ausência, e que o filho não tinha nenhum animal de estimação. Disse que quando

background image

voltaram de férias a polícia havia encontrado sinais na porta dos fundos que,
certamente, fora forçada. Confirmou perante todos que reduzira o aquecedor a um
mínimo necessário para evitar que os canos congelassem e que a bomba do
aparelho enviava o ar aquecido para os andares principais da casa, onde a
temperatura era sempre mais alta do que no porão.

— Senhora Miller — perguntou Blake —, de acordo com o que sabe, seu

filho deu a chave da casa para meu cliente?

— Meu filho jamais faria isso sem consultar a mim ou a meu marido.

— Vou repetir: seu filho deu a chave da casa para o réu?

— Tenho certeza que não, mas não posso afirmar pois nada vi.

— Obrigado.

— Blake me surpreendeu — Sandra confidenciava horas depois a Ben

Glass. — Pensei que já conhecesse seus métodos, mas hoje ele desafiou Aléria
Franklin perguntando-lhe se tinha certeza absoluta de que Hughie era a pessoa que vira
rondando a casa dos Miller. E agora está deixando aberta a possibilidade de que o réu
se encontrava com a chave da casa e, portanto, não precisaria forçar a porta. O que acha
que ele está planejando?

Ben passou os dedos pelos cabelos, pensativa.

— Acho que está se sentindo ameaçado e decidiu abandonar a velha tática

para adotar um novo esquema: atacar todas as suas provas.

Aquilo significava que. se Ben tivesse razão, Blake já começava a perceber que

seus métodos estavam ultrapassados e agora punha em dúvida os testemunhos da
acusação para que perdessem credibilidade junto ao júri.

— Eu também pensaria nisso se não estivesse lidando com Roebotham. Não

quero cantar vitória antes da hora, Ben.

— Você está certa. Talvez ele queira lhe dar a impressão de que o tem nas

mãos para, então, atacar. Nunca o subestime.

— Obrigada, Ben — disse, espreguiçando-se. — Estou exausta! Ainda bem

que não terei de comparecer ao tribunal nos próximos dias.

— Pelo menos uma coisa boa ele fez. Sandra, este caso vai deixá-la

esgotada.

— Tem razão. Acho que estou gastando muita energia nutrindo este ódio por

Blake.

— Gostaria de passar o fim de semana no chalé? Você pode ir hoje à noite e

descansar por dois dias. Eu só irei sexta-feira.

— Oh, Ben!

background image

A idéia lhe agradava.

— Era exatamente o que eu precisava! Mas como farei para chegar da

marina até a ilha?

— Tenho um mapa do lago mas só quem conhece bem a região

consegue entendê-lo. Se quiser, posso telefonar para Mike e Marg e pedir-lhes que a
levem até o chalé. Só que, neste caso, a canoa seria o único meio de transporte
disponível até que eu chegue. Mas tenho um rádio amador na cozinha. Mike e
Marg mantêm o canal sob escuta vinte e quatro horas por dia.

— Eu adoraria! Tem certeza de que não vou incomodá-lo? Talvez queira

trabalhar sozinho.

— Você não me impede de trabalhar, esqueceu? — perguntou-lhe com

um riso irônico.

— É verdade, não posso esquecer do nosso trato sobre as noites de

sábado.

— Que trato? Ah... Aquele trato? Não vamos precisar dele neste fim de

semana. — Ben sorriu. — Os dois personagens principais só vão se reencontrar daqui a
quatro capítulos e, enquanto isso, precisamos de ação.

Sandra riu um riso meigo e balançou a cabeça negativamente.

— Sinto muito, mas temos um trato, Ben...

— Onde está seu caráter tão maleável?

— Anda um tanto enferrujado ultimamente — ela respondeu, sorrindo.

— Deixe-o por minha conta e o porei novo em folha durante o fim de

semana, certo?

background image

CAPÍTULO XI

Só quando chegou ao chalé foi que Sandra se deu conta do quanto estava

cansada. O frio era intenso e Mike, após ensiná-la a lidar com o rádio e o gerador.
ofereceu-se para acender a lareira.

Mas Sandra mal podia esperar para ficar sozinha. Aguardou até que o fogo

pegasse, agradeceu-lhe e conduziu-o imediatamente até a porta. De lá, acenou-lhe
ligeiramente e fechou a porta atrás de si.

Agora estava só e sem compromissos de qualquer espécie por dois dias.

Ninguém para lhe telefonar ou pedir favores, ninguém para aparecer e fazer uma
visitinha surpresa...

A idéia de isolamento chegou a assustá-la e, cruzando a sala, decidiu distrair-se

pondo mais jornais velhos na lareira. Calmamente, foi entremeando-os entre as toras até
que as chamas ardessem com mais intensidade.

Então, sentou-se no chão em frente à mesinha de centro, pôs o rosto entre

as mãos e chorou um choro quase convulsivo, soluçante, que dava vazão a toda a
tensão acumulada desde que começara a cuidar do caso de Laney.

Tudo lhe parecia tão ridículo: a farsa teatral armada para burlar a justiça... As

coisas agora lhe pareciam mais óbvias do que antes de ser promotora. De repente,
vieram-lhe à mente imagens de Blake Roebotham humilhando a vítima daquele
crime tão odioso, tendo nos lábios um riso irônico e sádico.

Justiça? A quem era feita justiça afinal? A ninguém. Muito menos à vítima! Por

que a teriam encarregado daquele caso? De quem teria sido a idéia? Com certeza de
alguém que conhecesse a ela e ao famigerado Blake. Mas quem teria tido coragem de
fazê-la passar por uma experiência tão devastadora logo em sua primeira atuação
como promotora?

Para Sandra, a sensação de desamparo e impotência que a marcava,

fazendo com que inúmeras vezes ficasse deprimida, devia ser a mesma que uma
mulher experimenta diante de um homem determinado a violentá-la. A vida toda
odiara situações que a fizessem sentir-se assim e desde muito jovem resolvera
desenvolver a coragem e a determinação.

Sua atuação estava sendo considerada brilhante pelos colegas: conseguira

muito mais provas do que a maioria dos casos de estupro e usava argumentos
realmente convincentes. Sandra tinha a seu favor as circunstâncias em que o crime
ocorrera, as quais conquistavam a solidariedade dos jurados. Entretanto, dentro de si,
sabia que teria de vencer o pânico e a insegurança.

Isto para não mencionar o sentimento de culpa. Sentia-se inexplicavelmente

culpada ao olhar nos olhos de Laney e ver estampado o horror que um ser
humano lhe causara. Sandra tinha a impressão de que eles acusavam-na em
silêncio. O que poderia ter feito para evitar o crime? Por que não estava lá na hora em
que Laney precisou?

background image

Embora soubesse que seus sentimentos e medos eram ridículos, não

conseguia ignorá-los. A única coisa que lhe restava fazer seria derrotar Blake
Roebotham. Há muitos anos não sentia tanta vontade de vencer um caso. A última vez
em que se sentira assim, tinha apenas meses de formada. E agora, a pressão e a garra
de vencer voltavam a impulsioná-la, talvez como única maneira de diminuir o
sentimento de culpa que a perseguia.

Com as pernas encolhidas contra o peito, chorou copiosamente por alguns

minutos até que se acalmasse. Na lareira, os gravetos mais verdes estalavam sob o
calor das chamas.

Mais aliviada, enxugou o rosto com as mãos e estirou-se numa poltrona. Com os

olhos fixos no fogo, deixou que o pensamento vagasse livre e a levasse de volta à
década de sessenta, época do movimento hippie e dos protestos contra a guerra do
Vietnã. Agora que aqueles anos já iam longe, conseguia analisar com clareza algo que
antes lhe passara despercebido: todos os protestos e movimentos estudantis de então
despertaram-lhe uma nova consciência e a fizeram enxergar o mundo que a cercava
sob um outro prisma. Em 1965, quando tinha quinze anos, seus pais se divorciaram e,
de tudo o que vivera antes daquela data, restou-lhe durante muito tempo apenas
vagas lembranças. Na verdade, num esforço inconsciente, conseguira quase destruí-
la. Mas hoje compreendia que os fatos vividos até aquela época tinham tido
importância fundamental na formação de sua personalidade.

No mesmo ano, outro fato decisivo a marcou: Karen, sua irmã mais velha,

fora morar noutro Estado para poder cursar a universidade, deixando-a só com a mãe.

Mas o relacionamento entre as irmãs havia sido abalado três anos antes da

partida. A mudança veio apenas reforçar a separação já existente entre elas.

Era estranho ter todas aquelas lembranças desfilando novamente à sua frente.

Estranho e doloroso.

Sexta-feira à tardinha, sentada no topo mais alto da ilha, avistou o barco de

Ben vindo em sua direção.

Embora não o aguardasse tão cedo, alegrou-se com a chegada pois já

estava cansada de ficar só e a convivência com o amigo já lhe fazia falta. Sandra disse a
si mesma que qualquer amigo teria sido recebido com o mesmo entusiasmo, mas
enganava-se. Era Ben que ela desejava encontrar.

Desceu a encosta do morro, voltou pela mesma trilha pela que viera e chegou

ao ancoradouro no instante em que ele desligava o motor para atracar.

Sorridente, Ben entregou-lhe a corda. O sol poente avermelhado refletia em

seus cabelos, deixando-o mais atraente que nunca. Juntos, descarregaram os
mantimentos, a bagagem, e se dirigiram para o chalé.

— Que lindo dia — ele comentou. — O tempo tem estado assim desde

sua chegada?

— Mais ou menos. Faz um pouco de frio, mas o sol é forte e o céu sempre azul.

background image

É o ideal.

A época era mesmo de frio e o fim de semana anterior fora apenas uma

exceção. A tendência seria esfriar mais e mais a cada dia.

Como se lesse os pensamentos dela, Ben perguntou-lhe se já tinha dado

muitos mergulhos no lago.

— Mergulhos? Está frio demais para nadar; passo o dia todo de casaco.

Esqueceu que já estamos no outono?

Ben sorriu para ela e, ao entrarem em casa, correu um olhar satisfeito pelo

ambiente. O olhar de um homem que retornava ao lar.

— É a minha estação favorita — ele comentou, enquanto guardavam

os mantimentos.

Depois de tudo guardado, levaram o resto da bagagem para o quarto.

Ao constatar que Sandra usava o dormitório principal, ele sorriu satisfeito. Só

então Sandra percebeu que Ben havia pensado que estivesse dormindo no quarto
de hóspedes. E, de repente, começou a pensar que talvez devesse mesmo ter
escolhido o outro dormitório. Mas o brilho dos olhos dele ao fitá-la desfez toda e
qualquer dúvida.

— Sandra — comentou ele ao tirar o casaco —, adoro nadar com este

clima. Quer me acompanhar num mergulho? Garanto que é super revigorante.

Sandra deu uma gargalhada divertida.

— Não duvido que seja, mas agradeço o convite. Além disso, não trouxe

maiô.

— Não tem ninguém no lago, por que usar maiô? Ora, vamos, Sandra. —

Ben continuava a se despir enquanto falava. — Coragem, garota! Garanto que vai
adorar a experiência.

"Bem", Sandra considerou mentalmente, "e de que nos serve a vida senão

para adquirir experiências?" E, com um riso divertido, rendeu-se à tentação.

— Tudo bem. Mas não vou entrar nua no lago — anunciou vasculhando

a gaveta da cômoda. — Vou vestir uma camiseta.

— Acho uma ótima idéia... — Ben a encarou com um olhar cheio de

malícia. — Talvez esteja frio demais para nadarmos nus...

A água estava gelada e Sandra nunca experimentara algo tão revigorante.

Após um ou dois minutos de exercício, o organismo habituava-se à baixa temperatura
e o banho tornava-se até relaxante.

— Acho que vou adquirir mais este hábito — ela gritou ao nadarem lado a

lado em direção ao centro do lago, e vai ser ótimo para você. O frio não passa de
um fator psicológico, Sandra — ele respondeu também gritando.

background image

Contudo, embora estivessem se divertindo, não passaram muito tempo

dentro da água e, bem antes de atingirem a ilha mais próxima, decidiram voltar.

O clima frio e seco da região proporcionava uma sensação agradável, bem

diferente da umidade incômoda da cidade.

Porém, chegando à beira do lago, uma rajada de vento atingiu-a em cheio,

fazendo-a mudar de idéia.

— Ben! — disse, batendo incontrolavelmente o queixo. — Meu Deus,

estou congelada!

Ben deu uma gargalhada sonora.

— Não fique aí parada, sua boba — avisou, atirando-lhe uma das toalhas

que haviam trazido.

Embrulhando-se o melhor que pôde, Sandra pôs-se a caminho do chalé

acompanhada por Ben.

— Você é um mentiroso! — exclamou sorrindo. — Sinto-me como um

iceberg.

Ben apressou o passo e abriu-lhe a porta.

— Como eu podia adivinhar que você era tão friorenta?

— Imaginei que estivesse frio, mas não tão frio...

Agora ambos tremiam e, sem perda de tempo, dirigiam-se para o banheiro.

— Ora, não seja exagerada. Espere só: o melhor está para vir.

— O que é? — perguntou desconfiada.

— Um bom banho de imersão bem quente — disse-lhe Ben, já abrindo

as torneiras. — Venha.

Uma coisa era inegável: o mergulho a deixara mais desperta que nunca.

Talvez amanhecesse com a gripe mais forte dos últimos tempos.

— Não se preocupe — ele falou, livrando-a da toalha — estamos no outono e

o frio ainda não dá para matar.

Enquanto a banheira enchia, ele lhe tirou a camiseta molhada, a calcinha e

friccionou-lhe o corpo todo com a toalha, aquecendo-a. O contraste de temperaturas
era delicioso. As mãos dele, embora não muito grandes, eram firmes e musculosas e a
carícia tinha um efeito profundamente relaxante.

— Entre — Ben lhe ordenou quando a banheira encheu.

Então, despiu-se e entrou também na água, sentando-se atrás de Sandra.

Esticando as pernas ao longo das dela, fê-la recostar-se contra seu peito. A banheira era
um pouco maior do que o normal e permitia que a água lhes chegasse quase até os
ombros.

background image

— Como me arrependo de não ter comprado uma banheira maior... —

murmurou ele, mais para si mesmo. — Caso pretenda me visitar com freqüência
terei de adquirir uma de hidromassagem.

— Vamos com calma — disse Sandra, desfrutando ao máximo o

descanso.

A hora não era para discussão e, além disso, Sandra não gostaria de prometer-

lhe nada sem ter certeza.

Ben pegou o sabonete, fez bastante espuma e começou a esfregar-lhe o

braço direito com movimentos longos e firmes. Alcançando-lhe a mão, mudou de ritmo
e massageou-lhe os dedos com sensualidade.

Repetiu o mesmo com o braço esquerdo e, então, massageou-lhe os seios, o

ventre e os quadris com habilidade. Subindo, chegou aos ombros e ao pescoço
fazendo-a arrepiar-se. Consciente da reação que seus movimentos produziam, Ben foi
lentamente descendo as mãos carinhosas, descrevendo pequenos círculos nas
costas macias até que, deslizando-as pelos quadris redondos, atingisse o vão entre as
coxas e, finalmente, o sexo.

O toque delicado e experiente a fez gemer baixinho, fechando os olhos.

Instantes depois, ele voltava aos quadris e Sandra percebeu o motivo ao sentir o
membro rijo em suas costas.

Então, lentamente, Sandra se ajoelhou de frente para ele e ambos trocaram

um olhar cúmplice. Ben sentou-se na beirada da banheira.?

Curvando-se, Sandra beijou-lhe o peito musculoso descendo em direção ao

ventre. A pele dele estava quente e as pulsações, aceleradas. Ao mordiscar-lhe um
ponto sensível, Ben gemeu baixinho. Excitada, ela entreabriu os lábios e tocou-lhe o
membro intumescido.

Ben levantou as mãos e acariciou-lhe o rosto.

— Calma — disse num tom carinhoso —. não temos pressa.

Mas Sandra apenas murmurou algo incompreensível e, conhecendo-o

bem, continuou a provocá-lo da forma que ele mais gostava. Ora explorava-lhe o
membro com a ponta da língua, ora mordiscava-o de leve e ao perceber que Ben
arqueava o corpo em busca de mais prazer, impôs um ritmo mais intenso às carícias.

Excitado, Ben perdeu o controle e, gemendo, agarrou-lhe os cabelos.

— Pare, Sandra, não vou agüentar isto por muito tempo...

Sandra ignorou o pedido e ele puxou-lhe os cabelos com mais força, tentando

detê-la. Um instante depois Ben segurou-lhe o rosto entre as mãos e suspirou,
deliciando-se com os tremores incontroláveis.

— Você não devia ter feito isso — disso ele com a voz rouca.

— Por quê? Isso não estava nos seus planos?

background image

— Nos meus, não. Mas gostei do seu plano. O que vem em seguida?

— Não sei, gosto de improvisar. Mas acho melhor sairmos da água antes

que esfrie.

— Será que terei forças para me mover? — perguntou Ben, esticando-se

preguiçosamente.

Ainda ajoelhada, ela enxaguou o resto da espuma que tinha no corpo e

saiu da banheira.

— Quer que eu abra mais água quente até que reúna forças para sair daí?

— perguntou, já abrindo a torneira.

Observando-a curvar-se para alcançar a torneira, o olhar de Ben adquiriu um

brilho intenso, diferente do de há instantes.

— Volte para cá — ordenou-lhe secamente.

Mas ela sabia que a languidez o dominava e ignorou a ordem.

— Vou preparar um drinque para nós — anunciou, enrolando-se numa

toalha seca. — O que você prefere?

Ben lançou-lhe um olhar fixo e desafiante como a lhe dizer que a noite

ainda não terminara.

— Está bem — ele concordou —, já que prefere tomar algo antes... Trouxe

umas garrafas de vinho. Estão dentro da sacola.

Quando Sandra voltou para a sala com a garrafa e os copos, encontrou-o

atiçando o fogo da lareira vestido num robe marrom. Os cabelos molhados
encaracolavam-se, revoltos. Ao vê-la, ele virou-se e observou-a segurar a garrafa com
uma mão, os dois copos com a outra e, ao mesmo tempo, tentar manter a toalha
junto ao corpo.

— Ótimo — comentou com um riso malicioso, ao vê-la servir a bebida.

— Este vinho é excelente.

— Acha mesmo? — Ben sussurrou baixinho, escorregando as mãos para

debaixo da toalha.

E, num gesto decidido, beijou-lhe os lábios com paixão, puxando-a com força

contra si.

— Eu o escolhi — disse finalmente — porque combina com a cor dos seus

cabelos.

— Como? — perguntou, incrédula.

— É dourado, claro, suave...

background image

— E bem seco.

— Ora, você não é nada romântica — comentou, ao fazê-la sentar-se a seu

lado no sofá.

Então, Sandra ergueu o copo num brinde:

— Ao sexo!

Ben observou-a muito sério por sobre a borda do copo.

— Ao amor! — sugeriu.

Mas, embora levasse o copo à boca, Sandra não provou a bebida. Um nó

fechava-lhe a garganta e o coração pulsava violentamente.

Ben preparou um jantar bastante sofisticado que consistiu de salada de

cogumelos com aspargos, bife grelhado e batatas sauté.

Jantaram sob a janela, observando as estrelas no céu.

Depois de arrumarem a cozinha, voltaram para o sofá onde conversaram

por algum tempo, sempre abraçados. A certa hora, um bando de gansos passou
fazendo muito barulho e Ben comentou:

— Adoro a liberdade das aves.

— A liberdade é a coisa mais importante da vida, Ben...

A conversa continuou por mais alguns minutos até que Ben levantou-se e,

abraçado a Sandra, caminhou até o quarto. Sem uma palavra, tirou a toalha que a
envolvia e afastou os cobertores para que ela deitasse.

Então, na penumbra, sob a luz das estrelas, desfez-se do próprio robe e deitou-

se a seu lado.

Ben amou-a calmamente, sem a urgência da paixão, como se desejasse

provar a Sandra que havia outras maneiras mais significativas de se demonstrar
amor.

Surpresa com as próprias reações, ela correspondeu às carícias sem censuras

ou barreiras de qualquer espécie. Ora gemia baixinho, ora sussurrava o nome dele,
desesperada. Quando o êxtase atingiu-os, soltou um grito alucinado e cravou-lhe as
unhas nas costas.

Há sete anos fugia destas sensações que a assustavam e que somente Ben a

fizera experimentar.

Respirando com dificuldade, ele rolou para o lado, trazendo-a consigo.

— Eu te amo — disse ela, consciente da profundidade daquelas palavras.

— Eu também te amo. Sandra.

background image

CAPÍTULO XII

Durante a noite o clima mudou, e pela manhã uma chuva forte batia contra

a janela.

— Parece que a chuva não vai passar — disse Sandra espreguiçando-se.

Ben aproximou-se da janela e observou as densas nuvens escuras que

toldavam o céu.

— É, acho que vai ser o dia ideal para ficarmos em frente à lareira.

Para a satisfação de Sandra, que acordara sem muita vontade de conversar,

o café da manhã foi saboreado em silêncio e, depois de lavarem a louça, ambos
dedicaram-se aos respectivos trabalhos, desfrutando do calor aconchegante da lareira.

Sandra não estava com ânimo para trabalhar, mas, com muito esforço,

obrigou-se a reexaminar suas anotações.

Havia só mais uma testemunha a ser chamada antes de dar fim aos

depoimentos: a dra. Zimmerman. E nem a promessa de que seria a primeira a
depor na segunda-feira conseguiu melhorar o humor da médica que mais uma vez
teria de largar o consultório.

O esquema a ser seguido durante o interrogatório já estava montado e não

havia muito mais a ser feito. Sandra já havia aproveitado a maior parte dos dias que
passara sozinha para adiantar o trabalho e preparar várias perguntas para o réu.

Meia hora depois, desistiu de continuar trabalhando. Guardou os papéis na

pasta e foi examinar a coleção de livros dispostos na estante da sala. Ao contrário do
que supunha, a maioria eram romances de boa qualidade, coletâneas de poesias e
filosofia. Os títulos jurídicos eram muito poucos.

Como não se interessasse por nada, ocorreu-lhe uma idéia.

— Ben? — chamou baixinho, temendo interrompê-lo. — Posso lhe pedir

uma coisa?

— Claro, o quê?

— Você havia dito que me deixaria ler o começo do livro. Poderia me

emprestá-lo agora?

Ben estava concentrado no que escrevia e, sem levantar os olhos do papel,

concordou com um gesto de cabeça. Abrindo a gaveta, tirou um calhamaço de
laudas datilografadas e estendeu-as.

— Aqui está. Você se importa se eu não parar para conversar?

— Absolutamente, sei que está ocupado e não quero atrapalhar. Obrigada.

Curiosa, apanhou o pacote e afundou-se entre as almofadas do sofá.

background image

Lá fora, o vento uivava e soprava os grossos pingos da chuva contra o vidro. Lá

dentro, ambos desfrutavam da companhia silenciosa um do outro.

Passaram a tarde toda ali cercados de absoluta paz.

O enredo do livro era bastante intrincado e narrava com muito suspense e

ação a vida de um hippie viciado em drogas que acabava, a contragosto, se
envolvendo com a Máfia. Sua condição o impedia de denunciar a perseguição à
polícia e sua vida transformou-se num inferno. Apesar de conter umas duas cenas
violentas de assassinato, a leitura era bastante agradável.

O mistério maior da obra estava em que os assassinatos não haviam sido

cometidos pela Máfia, fato que Ray, o personagem principal, descobriu depois de
algum tempo. Isto significava que havia dois grupos diferentes perseguindo o rapaz,
mas este conhecia apenas um deles.

Embora vivesse em perigo constante e a principal suspeita dos assassinatos

fosse Jennie, uma mulher por quem sentia uma atração física incrível, o personagem
central tinha um excelente senso de humor. De tal forma que, ao ler o clímax da
intriga, Sandra viu-se ora com a respiração presa diante do suspense, ora rindo muito
das atitudes do herói.

Em seguida, vinha o capítulo da cena que lera anteriormente entre Ray e Jennie

e, então, acabaram-se os capítulos prontos.

Frustrada, aprumou-se no sofá e, pela primeira vez, tomou consciência do

significado de se ler um livro inacabado: teria de esperar o autor inventar um desfecho
para, então, poder ler.

Esticando os braços para o alto, teve o ímpeto de bocejar, mas reprimiu-se,

temendo incomodar Ben. Logo seria hora de jantar e enquanto comessem
perguntaria a ele sobre o final. Lembrando-se do jantar, arrumou as laudas de novo e
dirigiu-se silenciosamente para a cozinha.

Enquanto se ocupava em preparar a comida, imaginava diversos finais

diferentes para o romance e, após colocar o assado no forno, caminhou até a porta
da sala, onde, imóvel, observou Ben trabalhando.

— Ben?

Como não estivesse acostumada a conviver com um escritor, esperava

que ele apenas resmungasse qualquer coisa. Mas, tão logo acabou de escrever uma
palavra, Ben virou-se em sua direção.

— O jantar está pronto? O cheiro está delicioso.

— Daqui a dez minutos, tudo bem?

— Perfeito.

E, de fato, Ben cumpriu com a palavra vindo sentar-se à mesa no momento

em que Sandra servia o jantar.

background image

— Adorei a história - disse-lhe entre uma garfada e outra. — Falta muito

para terminar?

— Um terço, mais ou menos. Divertiu-se com a leitura?

Ben pareceu-lhe realmente interessado em sua opinião e ela lhe confessou o

quanto gostara do enredo e a expectativa criada em torno do desfecho. Omitiu, apenas,
um ponto de vista desfavorável: o livro era excessivamente voltado ao público
masculino e a principal personagem feminina era muito fútil para atrair a atenção das
leitoras.

— Vai publicá-lo sob pseudônimo ou pretende usar seu nome verdadeiro?

— Caso consiga publicá-lo, usarei meu próprio nome.

— Você não acha que as idéias do herói com relação às drogas são um tanto

liberais, considerando-se que o autor é promotor da Coroa Britânica?

Ben concordou com um sorriso.

— Talvez meu superego ache que preciso de uma válvula de escape.

Por meio de um personagem, posso expressar certos pensamentos meus sem
que me acusem.

E, mais sério, acrescentou:

— Meu objetivo principal é escrever uma boa aventura e proporcionar

momentos agradáveis ao leitor.

— Algum editor já demonstrou interesse em publicá-lo?

— Um editor americano encorajou-me bastante, mas, por se tratar de

meu primeiro romance, não quis adiantar nada antes de ler os originais.

— Mas você já escreveu dois textos jurídicos, Ben.

— Sim, que só me renderam uma promessa vaga. Duvido que um

principiante recebesse até isso.

— Tem razão — Sandra sorriu.

— Infelizmente, o fato de o livro ser bom não é garantia de que seja um

sucesso de venda.

Numa tentativa de reerguer-lhe o ânimo, Sandra propôs um brinde ao

servir o vinho.

— A um futuro brilhante como escritor! — exclamou, otimista.

— A um futuro promissor pára nós dois juntos.

As palavras de Ben cortaram-lhe o coração e a fizeram lembrar do motivo que

a levava a fugir de um envolvimento maior. Teria, realmente, desperdiçado os últimos
sete anos de sua vida? Não. Jamais pensara nesta fase como desperdício. Algumas
pessoas, incluindo Ben, poderiam avaliar o abandono do lado emocional em favor

background image

de uma maior segurança e independência como perda, mas ela não concordava.

Optara por dedicar-se exclusivamente à carreira e não se arrependia da decisão.

Aos trinta e seis anos, o futuro lhe sorria promissor e aos cinqüenta pretendia já ter
alcançado a Suprema Corte. Caso tivesse tido um envolvimento emocional, não teria
conseguido chegar ao posto que ocupava atualmente.

Aos poucos, seus olhos focalizaram outra vez o rosto de Ben e Sandra

despertou do devaneio. Ele lhe sorria um tanto intrigado.

— Seu pensamento estava distante, não? Por acaso recordava os fatídicos

acontecimentos de 1979?

— Confesso que sim.

A pergunta irritou-a, mas ela o compreendia. Ben era dos que nunca se

satisfazia em viver o presente e insistia em relembrar o passado, misturando-o à
realidade.

Mas ela não conseguiu viver daquela forma pois desde os doze anos

acostumara-se a ignorar o passado como única saída para sobreviver.

De repente teve vontade de preveni-lo para que não não a incluísse em seus

planos para o futuro. Sandra não era mais a mesma pessoa de sete anos atrás. "Sou
um ser em eterna mutação, Ben, e sei que em breve sofrerei novas mudanças. Talvez
até me esqueça destes momentos que estamos vivendo."

Ao perceber o choro iminente, lutou contra as lágrimas que lhe umedeciam o

olhar.

Seu desejo era explicar a Ben que, apesar do que lhe dissera na noite anterior, a

única coisa que tinha a lhe oferecer seria o presente. E, então, veio o arrependimento por
ter aceitado o convite para o fim de semana, pois parecia-lhe inútil continuar se
enganando. Ben continuava a ser o mesmo de sete anos atrás e ainda gostava de viver
do passado. Naquela época ela fora esperta e conseguira escapar antes que fosse
tarde. Mas quem garantia que desta vez também conseguiria?

O fim de semana transcorreu de maneira tranqüila. Na segunda-feira, no

tribunal, a primeira a ser interrogada foi a psiquiatra.

— Doutora Zimmerman, poderia dizer aos jurados qual sua

especialidade? — Sandra indagou-lhe.

— Sim, trabalho com casos de crianças e jovens vítimas de abuso sexual.

— Laney Meredith é sua cliente?

— Sim, ela é.

— Quando foi que Laney a procurou pela primeira vez?

— A primeira vez em que a vi foi no dia 14 de fevereiro deste ano. Sua mãe

background image

a trouxe ao meu consultório para uma entrevista inicial.

— E a senhora Meredith lhe contou qual o motivo da entrevista?

— Contou-me que Laney havia sido confinada e estuprada num período

de...

— Protesto! — interrompeu Blake. — O que a mãe da vítima contou a esta

testemunha não incrimina o réu.

— Protesto deferido.

— Após a primeira entrevista a senhora voltou a vê-la?

— Sim, Laney tornou-se minha cliente regular.

— E com que freqüência ela ia ao consultório, doutora?

— Uma vez por semana, durante uma hora — a psiquiatra respondeu.

— Quanto tempo durou o tratamento?

— Ainda se trata comigo. A experiência pela qual ela passou foi

extremamente traumatizante e Laney ainda precisa aprender a conviver com isso.

— Poderia nos explicar, em termos simples, qual a natureza dos traumas que

os acontecimentos dos três dias que Laney passou confinada lhe causaram?

Andréa Zimmerman embora não tivesse experiência de tribunais narrou de

modo claro seus pareceres e conseguiu apagar a imagem errada que Sandra criara a
seu respeito. A fala macia e segura inspirava confiança e credibilidade.

O esclarecimento da médica, breve, porém completo, feito em

linguagem,acessível, teve impacto decisivo sobre os jurados. Sandra ficou satisfeita e
desejou que Ben estivesse presente para ouvi-la. Mas o novo caso do qual ele estava
encarregado já começara a ser julgado.

— Doutora, a senhora examinou Laney a meu pedido, não? — Sandra

perguntou.

— Sim.

— Qual o motivo do exame?

— Pelo que entendi, Laney estava incapacitada de identificar as roupas íntimas

encontradas pela polícia junto com as demais. Conforme me fora solicitado pela
promotoria, examinei-a física e psicologicamente com o propósito de descobrir se a
causa da incapacidade estava ligada ao trauma.

A psiquiatra respirou fundo e apoiou as mãos na tribuna.

— Bem, a recusa de Laney em identificá-las é bem compreensível pois ela

demonstrou sinais de extremo desconforto e esgotamento ao ver-se diante das
roupas íntimas. Ela não conseguia tocá-las e mal as olhava. Na minha opinião, este tipo
de reação ocorre quando um indivíduo que inadvertidamente nega um fato é

background image

obrigado a encará-lo.

— Daria para explicar melhor, doutora Zimmerman? — Sandra pediu.

— Em termos leigos seria a atitude que uma pessoa adota quando tem de

encarar algo muito doloroso. Muitos de nós, por exemplo, tentamos negar ou fugir
quando perdemos um ente querido, principalmente quando se trata de morte
repentina ou inesperada. Em alguma parte de nosso cérebro sabemos que a morte é
inevitável. Entretanto, em alguma outra parte ficamos na expectativa de rever aquela
pessoa, ouvi-la etc. Tentamos até conversar com ela e, então, o sofrimento torna-se
ainda maior ao descobrirmos que esta pessoa desapareceu. É um modelo de defesa
psíquica do ser humano: negar um conhecimento que seja muito difícil de ser aceito
de imediato.

— Entendo. E é isso o que ocorre com Laney em relação aos fatos em

questão?

O depoimento da doutora foi claro e enfático: Laney não podia aceitar

imediatamente o fato de ter sido vítima de tais acontecimentos. Portanto seu lado
psíquico desenvolveu uma forma de protegê-la, negando internamente tudo o que
lhe ocorreu no porão.

Mas as roupas íntimas tornavam a negação impossível pois eram uma

lembrança vivida de todos os momentos de terror a que fora submetida. Então, a
psique de Laney optara pela escolha mais simples, levando-a a recusar-se a admitir
que as roupas lhe pertenciam.

Ao ouvir a explicação, Sandra admirou-se com o progresso que Laney fizera

nesse sentido desde o começo do julgamento. Todos puderam presenciar a
transformação e ao júri caberia apenas relacionar os fatos.

Voltando-se para Blake, viu-o comentar algo com seu assistente em voz baixa.

Então, olhou novamente para a doutora. Talvez ainda estivesse aborrecida por ter que
faltar ao consultório mas se mostrava, sem dúvida nenhuma, aliada de Laney. O.
carinho com que se referia à cliente era evidente.

O interrogatório prosseguiu.

— Doutora Zimmerman, a senhora examinou pessoalmente as roupas?

— perguntou-lhe num tom casual para não despertar a atenção de Blake.

— Sim, examinei.

— E ouviu a explicação de Laney sobre como o réu as tirou com uma faca?

— Diversas vezes — respondeu a médica num tom grave.

— Em sua opinião, quais as chances de que duas peças íntimas de

tamanho, cor e estado idênticos pudessem ser encontradas, rasgadas e manchadas de
sangue desta forma?

— Isto depende do número de mulheres que Hughie Macomber estuprou e

aterrorizou desta forma — afirmou com convicção.

background image

De repente, ao se dar conta do que acabara de ser dito. Blake Roebotham

levantou-se furioso.

— Protesto. Meritíssimo! Este comentário é totalmente gratuito e prejudicial a

meu cliente. Peço-lhe que seja retirado.

— Pedido concedido — proferiu o juiz. — Os jurados devem ignorar este

último comentário proferido pela testemunha. Doutora, limite-se a afirmar apenas o
que é de seu conhecimento.

— Sim, Meritíssimo.

— Doutora, qual seu parecer profissional a respeito destas roupas intimas?

Sandra torcia para que a médica, inteligente e astuta, retomasse do ponto em

que estavam, e não se decepcionou.

— Não tenho dúvida nenhuma que sejam mesmo as que Laney usava

no dia em que foi estuprada e, na medida em que ela for aceitando o que aconteceu,
também será capaz de aceitar esta prova evidente de sua impotência nas mãos do
agressor.

"Deus, ela é brilhante!", pensou Sandra. E, consultando o relógio, constatou que

era meio-dia e vinte e cinco.

— Muito obrigada, doutora Zimmerman. A testemunha está à disposição

da defesa.

Na esperança de que o juiz não percebesse as horas antes que tivesse chance

de fazer algumas perguntas, Blake levantou-se rapidamente.

— Doutora Zimmerman... — iniciou, mas aquele não era seu dia de sorte.

— Doutor Roebotham — disse o juiz —, já é quase hora do recesso para o

almoço. O julgamento está suspenso até as quatorze e trinta.

Enquanto os jurados deixavam o tribunal, Blake perguntou a Sandra:

— Esta é sua última testemunha?

— Sim. O caso deverá terminar logo.

Blake levou uma mão ao queixo e comentou pensativo:

— Interessante esta testemunha, muito segura de si. Será que na cama ela

também é assim?

E, voltando-se para o estagiário assistente de Sandra, sorriu de maneira irônica.

Sandra teve vontade de fechar a pasta com violência, mas conteve-se.

— Está pronto? — perguntou ao rapaz.

— Sim, podemos ir.

Sandra despediu-se de Blake com um ligeiro aceno de cabeça e saiu,

background image

consciente de que o caso estava praticamente ganho.

background image

CAPÍTULO XIII

— Oh, não... Justo agora! — murmurou Sandra, desanimada.

Ao ouvi-la, todos presentes à mesa, seu assistente, Ben e o estagiário dele

voltaram-se na direção em que ela olhava. Blake Roebotham, acompanhado de
dois outros homens, caminhava direto para onde se encontravam.

Ben franziu as sobrancelhas e olhou-a com um ar repreensivo. Furiosa por

ser tratada como criança, lançou-lhe um olhar gélido capaz de petrificá-lo.

Blake e os colegas juntaram-se a eles na mesa e conversaram

entusiasticamente com todos. Tensa, Sandra ficou aguardando o ataque, que não
tardaria a chegar. Na primeira oportunidade que teve, Blake começou:

— E, então, Ben? Sandra lhe contou sobre a doutorazinha psiquiatra?

— Não — respondeu ele, demonstrando interesse imediato. E, virando-se

para ela, indagou: — Como ela se saiu?

— Bem — interveio Blake, sem dar chance de Sandra falar. — Muito bem.

Mal posso esperar para colocar meu... minhas mãos nela esta tarde.

Todos à mesa perceberam a insinuação maldosa, mas Sandra manteve-se

calada. Afinal, ele não chegara a afirmar nada. Contudo, um dos colegas dele
resolveu incentivá-lo:

— Esta tarde, é? Puxa, você não perde tempo hein, Blake?

— Pergunte aqui à minha procuradora — disse num tom magnânimo,

apontando para ela. — Foi Sandra quem arranjou tudo para mim.

E, dando uma gargalhada sórdida, acrescentou:

— Foi um jogo sujo, querida. Afinal, você conhece bem o meu gosto. — E,

dirigindo-se aos demais, prosseguiu: — Agora terei que escolher entre "testá-la" na
tribuna ou...

Dando de ombros, deixou a frase incompleta para que cada um a

completasse mentalmente. De imediato, todos, incluindo Ben, riram da piadinha
imbecil e Sandra sentiu-se absolutamente só entre eles. Em seu peito, crescia uma fúria
incontrolável. Tendo perdido o apetite, juntou o resto do sanduíche na bandeja e, com a
voz impassível, disse:

— Blake, seus comentários sobre minha testemunha são indecentes. A

doutora Zimmerman é uma profissional séria, brilhante, no auge da carreira. Creio que
seja sua obrigação respeitá-la, da mesma forma que você espera ser respeitado, como
profissional, a despeito de qualquer opinião pessoal que alguém possa ter por sua
pessoa, seus métodos ou sua conduta moral. Pondo-se de pé, apanhou a bandeja e
acrescentou, olhando-o bem dentro dos olhos:

— Você, mais do que ninguém, deve ser mais cuidadoso e não deixar que

background image

sentimentos pessoais se misturem aos assuntos profissionais sob pena de que lhe
façam o mesmo!

Sandra apanhou suas coisas e saiu. Ao depositar a bandeja sobre o balcão

notou que tremia incontrolavelmente. Para ela, não havia ser humano mais
detestável que Blake.

Contudo, raciocinando com mais clareza, concluiu que o comportamento

de Blake Roebotham baseava-se num caráter fraco. Um homem consciente de
seu valor não precisava tentar impor a todo instante sua masculinidade.

Era muito cômodo e interessante aos demais homens presentes tê-lo como

porta-voz das besteiras que, talvez, não tivessem coragem de dizer em voz alta.

Já no tribunal, Blake Roebotham foi direto ao ataque:

— Doutora Zimmerman, a senhora é seguidora de Freud? — perguntou,

tão logo foi dado início à sessão.

— Bem, de certa forma todos os psicólogos e psiquiatras o são, uma vez

que Freud foi o pioneiro da psicanálise. Entretanto, novas descobertas foram realizadas
desde então e, embora o respeite, eu não sigo seus métodos. Discordo de algumas
teorias freudianas e principalmente das conclusões com relação à psicologia feminina.

— Obrigado pela resposta tão completa, embora eu preferisse um simples

"sim" ou "não".

O sarcasmo do comentário não passou despercebido à psiquiatra que

demonstrou sinais de irritação.

— Desculpe-me, mas eu não sabia que era obrigada a responder apenas

"sim" ou "não" — comentou de modo gentil. — Não, não sou seguidora de
Freud.

Intimamente, Sandra elogiou o comentário oportuno e astuto da médica

que mais uma vez dava provas de sua inteligência.

Blake folheava algumas anotações e ele podia jurar que a doutora o

desbancara.

— Quando cursava a faculdade, foi obrigada a estudar as teorias freudianas?

— Sim.

— Isto é exigido a qualquer psiquiatra?

— Na minha época, sim. Creio que seja até hoje.

— Portanto, está familiarizada com tais teorias?

— Razoavelmente. Terminei a faculdade há doze anos e confesso que

esqueci muita coisa.

— Por favor, explique-nos a teoria freudiana sobre a fantasia do estupro.

background image

Sandra levantou-se imediatamente.

— Sr. Juiz, creio que esta linha de interrogatório não se aplica ao caso em

questão. As perguntas de meu colega deveriam limitar-se à exploração do que já foi
dito.

Blake não se abalou.

— Meritíssimo — explicou —, esta testemunha depõe na qualidade de

psiquiatra e em seu depoimento fez alusão a alguns conceitos da psiquiatria. A defesa
tem autorização para investigar suas credenciais como profissional e trazer a público
outras teorias que possam explicar melhor o comportamento da paciente da
doutora Zimmerman.

— Permitirei que faça mais algumas perguntas nesta área, doutor Roebotham

— proferiu o juiz —, mas não vamos nos prender a detalhes, sim?

— Obrigado. Doutora Wasserman?

Um dos jurados riu e a testemunha limitou-se a encará-lo.

— Meu nome é Zimmerman — corrigiu-o como se corrige uma criança.

— Ora. queira perdoar-me, doutora Zimmerman.

A médica apenas sorriu sem nenhum comentário.

— Poderia, então, nos esclarecer a teoria do estupro?

— Conforme expliquei anteriormente — repetiu, impassível —, não adoto

os métodos freudianos e, além disso, há hoje em dia uma grande controvérsia a respeito
do assunto, uma vez que, no final da vida, Freud revia estas teorias.

— Bem, qual era a opinião dele no início da carreira?

— A princípio, Freud acreditava que os estupros que suas clientes lhe

contavam eram reais.

— O quê? — perguntou Blake, visivelmente surpreso.

— Freud acreditava no que as clientes lhe contavam sobre incestos e estupros

com crianças.

— Bem, eu não sou psiquiatra, mas não é pública e notória a afirmação de

Sigmund Freud de que quase todas as versões femininas de estupro eram pura
fantasia?

— Meritíssimo, meu colega está absolutamente certo quando diz não ser

psiquiatra. Portanto, não está habilitado a fazer declarações nesta especialidade. Aliás,
não está habilitado a declarar coisa alguma a menos que esteja sob juramento e na
qualidade de testemunha.

— Sugiro que reformule o que disse, doutor Roebotham — o juiz interferiu.

— Doutora Zimmerman, Freud chegou a mudar seu ponto de vista quanto

background image

a esta teoria?

— Sim. Há provas de que mudou de opinião duas vezes: a primeira para

discordar de sua crença inicial e, mais tarde, antes de falecer, começou a questionar
suas dúvidas até que voltasse aos conceitos iniciais.

— Durante a fase em que começou a discordar da primeira teoria, qual a

porcentagem de estupro que julgava serem frutos das fantasias femininas?

— Devido à alta incidência de tais casos, ele lançou a teoria de que parte desses

casos não eram reais. Entretanto, acredita-se hoje que...

— Obrigada, mas limite-se à questão. É possível que uma cliente minta para

seu próprio psiquiatra?

— Sim, claro que é.

— E com que freqüência isto ocorre, doutora Zimmerman?

— Com alguns clientes, no estágio inicial... Não, eu não diria que seja

freqüente.

— Mas acontece?

— Sim, certamente. E suponho que ocorra nos tribunais, também. Sempre

que se lida com uma pessoa, lida-se com os elementos humanos.

— Doutora, queira se restringir à questão, sim? Não temos o dia todo para

ficarmos neste interrogatório. Diga-nos, Laney Meredith poderia estar mentindo à
senhora?

A médica não se abalou.

— Sobre o quê?

— Sobre o fato de ter sido estuprada por meu cliente!

— Como profissional com vários anos de experiência no que diz respeito à

minha cliente estar mentindo para mim durante o tempo todo em que a estou
tratando?

— Não. Quero saber se existe a possibilidade de que esteja mentindo.

— Como profissional com vários anos de experiência, não creio que...

— Não estou perguntando o que a senhora acha no momento. Quero

saber das possibilidades.

— Considerando-se que nada é impossível, suponho que seja possível mas...

— Não é possível, doutora Zimmerman, que sua cliente tenha ficado

satisfeita em companhia de Hughie Macomber até o momento em que precisou
explicar à família onde havia estado e com quem? Será que, então, não teria inventado
esta história que sustenta ate hoje?

background image

A dra. Zimmerman dirigiu-lhe um olhar gélido.

— O senhor quer uma discussão sobre o lado humano da questão ou sobre

a probabilidade matemática?

— Quero saber o que é possível neste caso.

— Falando como profissional, o que o senhor sugere é impossível. Quanto à

probabilidade matemática, não estou habilitada a responder.

Sandra exultou com a resposta.

— Doutora, acaso é feminista? — perguntou Blake, tomando de surpresa

os jurados e a testemunha com a súbita mudança de assunto.

— Gostaria que o senhor me definisse o termo "feminista” para que eu possa

responder.

A senhora é casada?

— Não.

— Alguma vez já foi?

— Sim, já — a psiquiatra respondeu.

— E por que se separou?

- Ora, Meritíssimo, eu protesto! — Sandra exclamou. — Que relação pode

haver entre o estado civil da testemunha e o caso em julgamento?

— O que pretende esclarecer com este tipo de abordagem, doutor

Roebotham? — indagou o juiz.

— Excelência, a testemunha acaba de dar um depoimento e creio que suas

características humanas tenham influência sobre a questão. Meu cliente pode estar
sendo alvo de preconceito por parte da depoente.

— Preconceito? — repetiu Sandra, admirada. — E que tipo de preconceito

meu colega está tentando instigar contra esta testemunha?

— Para que esta discussão sobre os mais diversos tipos de preconceitos possa

continuar, terei de pedir aos jurados que se retirem — o juiz falou pausadamente.

Assim que os jurados deixaram a sala, Blake recomeçou.

— Excelência, a atitude das feministas quanto à questão do estupro é

pública e notória e nem todos concordam com ela. O depoimento da testemunha
foi muito desfavorável a meu cliente pois confirma a versão da vítima.

Sandra teve de controlar ao máximo suas emoções para que não viessem

à tona. Qualquer demonstração de raiva a colocaria numa situação delicada
perante o juiz.

— Meritíssimo, esta testemunha é uma profissional e depôs na qualidade de

background image

psiquiatra. — Sandra voltou ao ataque. — Sugerir que qualquer opinião pessoal a
tenha influenciado no depoimento com o intuito deliberado de frustrar a justiça é uma
acusação muito grave.

— Doutor Roebotham, sua alegação tem algum fundamento?

— Bem, a doutora Zimmerman como mulher pertence a um segmento

da população que tem se revoltado contra o sist...

Várias pessoas presentes começaram a rir.

— Silêncio! — determinou o magistrado com autoridade sem, contudo,

disfarçar um certo divertimento.

— Creio que esta abordagem não se justifica, doutor Roebotham. Trata-se de

uma profissional, como apontou a doutora Holt, e temos de acreditar em sua
imparcialidade perante o tribunal.

Os jurados foram trazidos de volta e, tão logo se acomodaram, Blake

levantou-se e disse:

— Nada mais a perguntar.

Sandra pôs-se de pé imediatamente. Precisava apagar a impressão causada

no júri de que a testemunha pudesse ter algum preconceito contra o réu.

— Doutora Zimmerman, é importante que esclareçamos algumas

dúvidas deixadas por meu colega perante o júri. Diga-nos: a senhora conhece
Hughie Macomber, o réu acusado deste crime?

— Não — Andréa Zimmerman respondeu.

— Já o tinha visto antes de entrar neste tribunal?

— Não que eu me lembre.

— Alguma vez falou com ele? — Sandra fazia de tudo para continuar

mantendo a calma.

— Nunca.

— Há alguma relação de qualquer espécie entre a senhora e o acusado?

— Não, nenhuma.

— A senhora já conhecia Laney Meredith antes de ela ter se tornado sua

paciente em fevereiro?

— Não.

— Além da relação médico-paciente, existe entre vocês qualquer outro

relacionamento?

— Não, não existe.

— Obrigada. Doutora, meu nobre colega havia lhe feito algumas perguntas

background image

sobre a teoria freudiana do estupro. A senhora mencionou que as descobertas recentes
têm levado a certas controvérsias sobre as mesmas, não?

— Sim, especialmente na área da psicologia feminina.

— A senhora diria que tem havido descobertas significativas quanto à questão do

estupro?

— Sim. Logo após a morte de Freud a teoria mais aceita era a de que a

maioria dos estupros não passavam de fantasias da vítima ou, então, que esta havia
consentido no fato. Acreditava-se que um estupro raramente acontecia. Mas sabemos
que isto é falso.

— Em sua opinião profissional existe alguma possibilidade de que tudo o que

Laney Meredith contou perante este tribunal venha a ser fruto de uma fantasia?

— Baseando-me em tudo o que sei, em minhas experiências anteriores e

na que tenho com esta paciente, estou absolutamente convencida de que não há
chance alguma. O estupro de fato ocorreu da forma como ela o descreveu a mim e
ao tribunal.

— E existe alguma possibilidade de que tenha consentido no estupro e no

tratamento odioso a que foi submetida pelo réu?

— Nenhuma.

— É só. Obrigada.

— Doutor Roebotham, tem mais alguma pergunta a fazer a esta

testemunha? — O juiz perguntou.

— Não, Meritíssimo.

— Doutora, a senhora está dispensada. — A voz do juiz ecoou no silêncio da

sala.

— Isto é tudo o que a promotoria tinha a apresentar quanto ao caso em

questão, Excelência — afirmou Sandra. E, consultando o relógio, acrescentou sorrindo:
— Exatamente no horário do recesso.

— O julgamento está suspenso até amanhã às dez horas — proferiu o juiz.

Final de mais um dia de trabalho.

Ou, pelo menos, quase. Em sua sala, ao guardar os papéis na gaveta,

Sandra viu Ben Glass caminhar em sua direção.

— Oi! — cumprimentou-o com um sorriso.

— E então? Como vão indo as coisas?

Ben sentou-se à escrivaninha em frente a Sandra.

background image

— Terminei de apresentar minha parte esta tarde e creio que temos grandes

chances de ganhar a causa.

Mesmo que Blake invente mais um de seus truques, não vai ser fácil convencer

o júri da inocência do réu.

Ben ficou contente com as notícias.

— Ótimo. Tenho tentado aliviar ao máximo sua carga de trabalho pois sei

que o caso de Laney tem sido exaustivo.

— Obrigada.

Mas agora a maior parte do trabalho havia acabado. Durante a atuação da

defesa a única coisa a fazer era manter-se alerta e procurai atacar os pontos fracos das
testemunhas de Blake.

— Qual o próximo caso que terei de enfrentar, Ben?

— Oh... a ingenuidade é um bálsamo!

— São dois casos?

— Na função de promotora oficial da Coroa, terá cuidar de vários casos ao

mesmo tempo. E, para começar, o mais urgente é "A União versus Tilley", roubo de
mais de duzentos mil dólares.

— Fala sério?

— Infelizmente, sim. Mas os dados já estão todos compilados e você só terá

que se familiarizar com eles antes de ir para o tribunal.

— De qualquer forma eu lhe agradeço, Ben, e acho que vou querer dar

uma olhada no caso de Tilley antes de voltar para casa. E o seu caso, como está indo?

A causa em que Ben atuava estava tendo grande repercussão na imprensa e

o julgamento deveria se estender por várias semanas.

— Estamos na fase de seleção dos jurados.

— Isto significa que o livro vai sofrer uma parada? — perguntou-lhe,

desapontada. — Nos fins de semana em que está envolvido num julgamento você
pára de escrever?

Ben riu um riso divertido.

— Está brincando? É nesta época que mais preciso relaxar. A única coisa

que me faz esquecer os problemas que tenho aqui são as enrascadas de Ray. — E,
fitando-a de modo significativo, acrescentou: — Bom, existem outras coisas. Que
acha de jantarmos juntos?

O olhar penetrante perturbou-a, trazendo-lhe à mente lembranças do último

fim de semana. Um tanto sem jeito, ela baixou os olhos e respirou fundo. Era melhor
pôr um fim àquele relacionamento antes que perdesse o controle de suas emoções.

background image

— Esta noite não posso, Ben — disse-lhe, sentindo o coração bater acelerado.

— Tenho de trabalhar. Obrigada.

background image

CAPÍTULO XIV

Na noite seguinte a resposta foi a mesma só que, desta vez, em lugar de se

despedir, recomendando-lhe que não trabalhasse demais, Ben permaneceu sentado
e encarou-a.

— Está tentando me evitar, Sandra? — perguntou, tranqüilo.

A verdade enfureceu-a.

— Ora, deixe-me em paz, sim? — explodiu, friccionando as mãos nas

têmporas. — Tive um péssimo dia hoje.

E estava sendo sincera. A primeira testemunha apresentada por Blake fora uma

psiquiatra freudiana de idade avançada que, após ter examinado Laney Meredith,
concluiu que a garota sofria de "problemas edipianos, fantasia de estupro, projeção
paterna e sedução inconsciente", entre outros, que a levaram a envolver-se numa
determinada situação com o réu, com cujas conseqüências ela não soube lidar.

Aquela mulher estava descaradamente traindo a verdade, o direito e o próprio

sexo feminino! Como podia afirmar tanta bobagem em sã consciência?

Entretanto, a fim de interrogá-la, foi obrigada a controlar-se perante o tribunal. O

truque era fazer com que os jurados se enfurecessem.

Mas nunca a tarefa lhe fora tão difícil. Sandra procurou acalmar-se durante o

interrogatório, conduzindo-o de tal forma que os jurados observassem por si sós as
contradições em que a testemunha caía.

— Doutora Radcliffe, o júri acaba de ouvi-la afirmar que "não existe isto que

chamam de estupro”. A senhora afirmaria o mesmo com relação a um
assassinato?

A médica sorriu, arrogante.

— Temo que não. Existe uma grande diferença entre os dois. A nível

consciente, o estupro certamente existe. Eu não disse o contrário. Mas o que
investigamos em nossa profissão são os impulsos inconscientes que possam
provocar...

Intimamente, Sandra, se perguntava se as contradições passariam

despercebidas aos jurados. Que interpretação dariam àquelas afirmações? Ou será
que estavam apenas à procura de uma desculpa para inocentar o réu. como ocorria
com os jurados nos casos desse tipo? Será que este depoimento absurdo e
inconsistente teria o poder de convencê-los? Talvez o júri o declarasse culpado apenas
por rapto e confinamento forçado, o que reduziria em muito a pena. Aí, dentro de
poucos meses Macomber estaria de volta às ruas pronto para fazer uma nova
vítima.

Os absurdos ditos pela testemunha a punham furiosa e, a certa altura, Sandra

percebeu que pressionava com toda a força os punhos cerrados contra a mesa.

background image

A pressão atingia um ponto insuportável pois ela tomava o caso de Laney

como algo pessoal. Se não mudasse logo de atitude, ao fim do julgamento, seu lado
emocional estaria em frangalhos. Intimamente, torcia para que nenhum dos próximos
casos a serem julgados fossem por estupro.

— Nada como uma pausa após um longo e árduo dia de trabalho. — A

voz grave de Ben trouxe-a de volta à realidade e Sandra, o viu sentar sua frente.

Respirando fundo, sentiu um desejo imenso de contar a ele todos os seus

problemas, suas dificuldades, mas Ben também era inimigo, não era? Lembrou-
se, então, do dia em que almoçaram na companhia de Blake quando Ben apenas
sentou-se e ouviu as insinuações indecentes do colega sem reagir. Não... ele não
entenderia...

Contudo, uma voz muito forte dentro de Sandra impeliu-a a aceitar o convite

para jantar. Afinal o dia fora péssimo e se sentia muito só.

— Está bem, você tem razão — capitulou. — Me dê mais uma hora e

acabarei de ler estes processos, está bem?

— Perfeito.

Mas duas horas se passaram até que estivessem livres para o jantar. Exaustos,

nenhum dos dois tinha ânimo para ir a um restaurante.

— Que tal irmos para casa e pedirmos algo pelo telefone? — ele sugeriu.

— Boa idéia, Ben.

Após fecharem o escritório, foram para o apartamento de Ben de onde

encomendaram comida chinesa a um restaurante das imediações.

— Estou morta de fome! — exclamou antes de provar a carne com

legumes. — Acho que me esqueci de almoçar.

- Não a vi na lanchonete hoje, Sandra...

Depois disso, nada mais foi dito durante o jantar. Famintos, ambos saborearam

a comida em silêncio até que a fome fosse aplacada. Em seguida, Ben preparou
duas xícaras de café e levou-as para a sala, onde sentaram-se em frente à lareira.

— Adoro lareiras — ela comentou, observando o crepitar das chamas.

— Mas raramente acendo a minha. É estranho, mas não consigo achar tempo... Ou
então, quando fico sozinha tenho preguiça de acendê-la só para mim. Com isso,
acabo usando-a apenas quando recebo alguém para jantar. Se for inverno!

— A mim não surpreende.

— Não? Por quê?

Ben desfez o abraço, apoiou os cotovelos sobre os joelhos e depositou a xícara

vazia sobre a mesa de centro.

— É difícil fazer uma casa parecer um lar quando não a dividimos com

background image

alguém. Um gato, que seja, já ajuda. Sentar sozinho em frente à lareira muitas vezes
acentua a solidão.

Embora não admitisse com palavras, interiormente ela concordou com Ben.

A auto-suficiência tem seu preço e muitas vezes ela se via só, mesmo sem vontade.
Mas, em compensação, os casados também deviam sofrer com a falta de
privacidade. Ambas as situações eram faces da mesma moeda.

Durante o fim de semana, ao dizer-lhe que o amava, correra um grande risco

pois era em momentos como aquele, e como este que compartilhavam, que
Sandra conjecturava sobre a possibilidade de trocar a solidão pela companhia de
alguém. Talvez um homem como Ben.

Ao vê-lo aproximar-se para beijá-la uma súbita excitação apoderou-se dela

que, de repente, sentiu um desejo incontrolável de ter seus lábios entre os dele.
Contudo, assustada diante da própria reação, curvou-se rapidamente para a frente e
terminou de beber o café.

— Ainda sobrou café na cozinha? — perguntou, pondo-se de pé com as

duas xícaras na mão. — Vou buscar mais um pouco para mim. Você também
quer?

— Não, obrigado — agradeceu sorrindo. — Mas fique à vontade. Há

bastante na cafeteira.

Seu estômago não pedia mais café, mas as mãos e a boca pediam. Além

do que, serviria para mantê-la mais desperta, impedindo que o cansaço a
dominasse. Enchendo a própria xícara, voltou para a sala já mais calma, sem o desejo
tão forte de atirar-se nos braços dele e desabafar as mágoas.

— Como vai indo seu caso? — perguntou, sentando novamente ao lado de

Ben.

Seria ridículo mudar de lugar agora.

— Hoje à tarde terminamos de selecionar os jurados. Eles me parecem

formar um bom grupo e, como o caso é interessante, acho que temos um ponto a
nosso favor. Mas. pelo jeito, o seu dia não foi dos melhores, foi?

Sandra esfregou os olhos com as mãos.

— A fumaça está fazendo meus olhos lacrimejarem — disse

distraidamente. — É... o dia não foi nada bom. Blake trouxe aquela doutora
freudiana para depor. Deus! Nunca ouvi tanto absurdo vindo de uma profissional.
Fiquei com tanta raiva dela que tive vontade de esganá-la ali mesmo, na frente de todos.

— Isso é típico de Blake.

— Imagine só: a médica afirmou que Laney tem um desejo sexual

inconsciente pelo pai, morto desde que ela tinha dez anos, e que o projetou em
Hughie Macomber por ele estar numa posição paternal aquela noite, oferecendo-lhe
proteção. E que quando tudo "deu errado" ela se sentiu traída! Você acredita? É um
absurdo! E isso é apenas metade das bobagens que disse.

background image

— Quem é ela?

— Doutora Radcliffe. E...

— Ah, sim, Radcliffe. É velha conhecida nossa. Blake adora utilizá-la neste tipo de

caso, Sandra.

— Você a conhece? — perguntou, indignada.

— Sim, não é a primeira vez que depõe. Aliás, sempre que surge um processo

por estupro que fuja um pouco do comum, ele a traz ao tribunal.

Sandra sentiu-se traída.

— Mas... mas você podia ter me prevenido! — acusou com a voz trêmula, já

a ponto de chorar.

— Ora vamos, Sandra. Você sabe como lidar com este tipo de coisa. É

apenas uma opinião profissional que vai contra a vítima e a favor do réu. Eu a teria
prevenido se soubesse que você não a conhecia. Afinal, ela é.uma médica
famosa. — Então, preocupado, perguntou-lhe muito sério: — Ela causou muito
estrago?

— Acho que não — respondeu Sandra, balançando a cabeça

negativamente. — Mas...

Refreando-se, ela observou as chamas da lareira. Não havia como lhe contar o

que a Dra. Radcliffe lhe fizera pessoalmente, o quanto a enfurecera ouvir seus
comentários maldosos, distorcidos, que davam a entender que Laney de alguma
forma consentira no ataque violento.

— Mas? — Ben a olhava de maneira inquisitiva.

— Oh, nada. Apenas fico revoltada quando deparo com um médico tão

desumano. Eu devia ter lhe perguntado quantas vezes já depôs em casos de estupro e
se em algum deles admitiu a culpa do réu. Seria uma forma de mostrar aos jurados
quem ela é e o que pensa!

— Existem diversas opiniões diferentes com relação ao estupro, Sandra —

ponderou Ben.

— Tem razão — concordou, abrandando a revolta. — Sempre houve e

sempre haverá os que afirmam que a vítima "procurou por isto". Só que a maioria
das mulheres não engolem esta versão, Ben. Todas nós sabemos que não é assim e é
repugnante ouvir uma mulher negar isto em público.

— É assim que você encara os fatos? — perguntou, surpreso.

— Claro que é.

Ele a observou em silêncio, meditando sobre a questão.

— Você sempre me parece, tão segura, tão auto-suficiente, Sandra...

— E sou. Mas isto não impede de um dia eu vir a cruzar com um lunático!

background image

— Ninguém cruzou com Laney Meredith — apontou ele. — Foi ela que

entrou no carro.

— E daí? O que isso prova, além do fato de que Laney agora sabe que não

deve confiar em estranhos? Aprendi esta lição aos doze anos.

— E em mim, você confia?

O inesperado tom pessoal que ele imprimiu à conversa deu-lhe chance de

respirar fundo e recuperar um pouco a calma.

— Sim, o suficiente.

— Entendo — respondeu ele com gravidade, como se ouvisse a própria

voz de Deus. — E por que? Há algo em mim em especial que a leve a esta
desconfiança ou trata-se de uma desconfiança dos homens de modo geral?

Sandra baixou o rosto e segurou-o entre as mãos. A última coisa que queria

naquele instante era discutir o relacionamento deles, mas Ben insistia em encaminhar o
assunto nessa direção.

— Não sei explicar, acho que há um pouco de ambos — admitiu. — Que

diferença faz?

— Para mim, muita. Quero que confie em mim. Eu não minto para você,

Sandra. Estive pensando no modo como se descartou de seus ex-amores e não quero
passar por isso mais uma vez. E, a menos que encaremos a verdade e tentemos
esclarecer os fatos, corremos o risco de cometer o mesmo erro. Como agora, por
exemplo.

— Ah... Ben — suspirou, já cansada da conversa. — Por que todos os

homens são assim? Querem que dependamos deles, que nos apoiemos e, então,
cansam-se e nos dão o fora.

— Não é nada disso, Sandra. Pensei que você tinha entendido.

— Então, me explique.

Ben segurou-lhe o rosto entre as mãos e disse-lhe com muita calma:

— Eu te amo, e não é de hoje. Quero me casar com você. Eu a trouxe aqui

esta noite para pedir-lhe que venha morar comigo.

Nada poderia tê-la surpreendido mais do que o pedido de Ben. Boquiaberta,

Sandra se afastou.

— Não. De jeito nenhum, Ben. Você me conhece e sabe como sou. Sabia

disso desde o início e não tente mudar as regras no meio do jogo. Não tente me
modificar.

Um profundo sentimento de culpa a dominou. Finalmente ele lhe propunha o

que ela mais queria, disse-lhe que a amava e por que não aceitava? Por que não foi
capaz de controlar o ímpeto de negar?

background image

— Me desculpe, Ben — disse em voz baixa. — Sinto muito, mas você sabia.

— Sandra, no fim de semana você falou que me amava.

— Sim, e não estava mentindo. Mas isso não muda a situação.

— Se o amor não faz diferença, então, o que faz? O que é mais importante

do que ele?

— Para mim, o mais importante é saber que sou a única responsável pela

minha vida e que não dependo de ninguém para ser feliz.

— Tudo bem — concordou ele ao curvar-se para frente e segurar-lhe as

mãos. — Mas por que não quer me deixar partilhar da sua vida?

— Não foi isso o que eu disse!

— Foi sim. Acabou de afirmar que não quer depender de ninguém para

ser feliz e quero saber o motivo.

— E por que você quer que eu ponha minha felicidade nas suas mãos? —

perguntou de modo hostil.

— Mas as coisas não têm que ser assim. Você não tem que abrir mão de

sua autonomia para amar alguém. Tem apenas que confiar. Sem confiança, não
existe amor.

— E também não existe amor quando a gente não se importa com o

bem-estar do companheiro. Há apenas sexo e posse. Só que os homens se irritam
quando a mulher toma consciência disso.

Ben olhou-a no fundo dos olhos.

— O que a faz pensar que não me importo com seu bem-estar?

— Eu não penso, tenho certeza. Você não me respeita como mulher, como

pessoa. Só vê em mim algo que quer possuir.

— Não é verdade.

Ora vamos, todos os homens são iguais, unem-se num clube fechado para

se defenderem. Vocês não respeitam as mulheres pelo que são. Sei que você me
respeita como advogada mas, antes de tudo, sou mulher. E quando você
menospreza as mulheres, está menosprezando a mim.

— Eu não menosprezo as mulheres — ele afirmou categoricamente.

Sandra não conteve um riso irônico.

— Talvez não o faça com suas próprias palavras, mas há sempre alguém

por perto para fazê-lo em seu lugar. Estou no mundo das leis há muitos anos e sei
como as coisas funcionam.

— De que você está falando?

background image

— Estou falando de estar sentada numa mesa com outros homens onde

um deles faz constantes ataques às mulheres, e, portanto, a mim, e os demais
permanecerem calados. Estou falando de estar sozinha contra o mundo, quer você
esteja lá ou não, Ben. E esta não é minha concepção de amor.

Calado, ele observava as chamas com o olhar fixo.

— Mas, eu reagi. Sandra. Todas as vezes em que Blake atacou-a ou

insultou-a eu não fiquei calado.

— Ben, eu sou mulher. E quando ele ataca o sexo feminino do modo como

faz, está atacando a mim, a um lado essencial do meu ser.

— Ele fala muita coisa que não sente — ponderou desconsolado. —- Se. ao

menos você o enxergasse com outros olhos, como nós homens o vemos. Blake é
inofensivo.

— Não, não é. O ódio que tem das mulheres é indisfarçável. E os outros

homens, inclusive você, vêem nele um porta-voz.

— Ora, em que você se baseia para afirmar isso?

— Para começar, ele usa toda sua inteligência e talento de advogado para livrar

estupradores da prisão. Se isso não demonstra bem o que afirmei, então, não sei o
que demonstraria. E durante o almoço, Blake ventilou o ódio que tem das
mulheres, falando em nome de todos vocês que não têm a mesma coragem.

— Não me venha com essa conversa, Sandra — disse Bem, já irritado. —

Concordo com você quando diz que Blake humilha as vítimas de estupro, mas não
aprovo a atitude dele. Nunca aprovei. Mas não o encaro como um elemento
prejudicial ou um perverso . Ele tem que partir do princípio que seus clientes são
inocentes senão não poderia representá-los.

— Blake sabe muitíssimo bem que são culpados e o único princípio que tem

por base é o de que o réu tem o direito de estuprar mulheres. É bem diferente.

— Todo homem é inocente até que se prove sua culpa — lembrou ele.

— Você só pode estar brincando! As estatísticas estão aí para provar o número

crescente de estupros em todo o mundo. E a maioria das mulheres, com medo de
serem humilhadas perante um tribunal, nem chegam a denunciar.

— Se a incidência é tão alta, como é que eu nunca encontrei uma destas

mulheres? Você, por acaso, conhece? Cite um nome. Alguém que conheça
pessoalmente.

Era inacreditável o que ouvia. Sandra levantou os braços e balançou a

cabeça, inconformada.

— Só pode ser brincadeira.

— Não, estou falando sério. Dê-me um nome, que seja.

— Karen Elizabeth Holt — disse. — Minha irmã. Você a conhece. E, se

background image

aquela noite eu tivesse chegado cinco minutos antes, também teria meu nome
incluído nesta lista.

background image

CAPITULO XV

Ambos entreolharam-se em silêncio. O único ruído à volta era o do crepitar da

lareira.

— Meu Deus... — murmurou ele, afinal. — Sinto muito. Muito mesmo. Eu

não podia imaginar.

O fato de ter finalmente desabafado ajudou-a a recuperar o domínio de si

mesma.

— Gostaria de lhe perguntar algo — disse, sem intenção de culpá-lo, os olhos

marejados de lágrimas. — Quem teve a idéia de me designar para o caso de Laney?

— -Bem, eu... A idéia foi basicamente minha, eu acho — respondeu um

tanto assustado. — John Loundes era o encarregado, antes de ser transferido, e, desde
então, o processo ficou parado. Íamos pedir renovação de prazo, mas aí você chegou
e achamos que seria melhor terminar de uma vez com ele. Você já tinha experiência
como advogada e, embora fosse de outra área, concordamos que seria melhor
designá-la.

— Você achava que eu teria chances de vencer?

— Ora, claro que sim. Você tem todas as chances do mundo! Se existe

alguém capaz de fazer Blake passar por uns maus bocados, esse alguém é você.

— E era isso que você queria? Vê-lo passar uns maus bocados?

— O que imaginou que fosse? — perguntou, franzindo as sobrancelhas,

perplexo.

— Não sei. Ocorreu-me que... que Blake é um adversário temível e,

portanto, nada melhor que um principiante para enfrentá-lo. Pensei que talvez alguém
quisesse que eu levasse uma lição de Blake. Algo assim como uma prova de fogo.

-— Meu Deus! Você não confia mesmo em ninguém, não é? Acha que

correríamos o risco de perder o caso por mero machismo? Acha que seríamos tão
cruéis com você?

— Não sei...

— Se eu lhe disser que nada do que imaginou sequer nos passou pela

mente, você acreditaria?

— Sim — respondeu. — Se você me diz, eu acredito.

— Pois pode ficar tranqüila; foi uma decisão tomada por mim e Rajiv, nosso

advogado-chefe. Reconheço que a idéia partiu de mim pois, como já conhecia seu
trabalho, sabia que Roebotham ia ter que lutar com mais garra para vencê-la. Desde
o começo venho torcendo por você. E sempre torcerei.

Sandra engoliu em seco, tentando desfazer o nó que se formara em sua

background image

garganta. Ela mesma não compreendia o motivo da suspeita que levantara e era
muito reconfortante saber que Ben estava apoiando-a.

— Obrigada...

— Conte-me sobre sua irmã — Ben pediu-lhe, baixinho.

Com os olhos fixos nas chamas, Sandra reviu mentalmente todas aquelas

cenas que a perseguiam há

tantos anos...

— Minha irmã costumava trabalhar como baby-sitter para uns conhecidos

nossos, os Willey, que moravam a poucos quarteirões de casa. Karen tinha quinze
anos e eu, doze. Aos sábados à noite, quando ela ia trabalhar, papai permitia que eu fosse
fazer-lhe companhia. Naquele sábado, eu ia encontrá-la como de costume, mas... eu
queria assistir a um programa especial na televisão às oito horas.

Respirando com certa dificuldade, prosseguiu:

— Então, resolvi assisti-lo em casa e ir para os Willey às nove horas. Meus pais

haviam saído e, ao desligar o televisor, apaguei as luzes, tranquei as portas e fui embora.

As lágrimas corriam-lhe pelas faces e, após uma pausa, Sandra retomou a

narrativa.

— Toquei a campainha e ninguém atendeu. Foi quando ouvi um barulho

esquisito vindo de lá de dentro e... fiquei apavorada ao notar que o carro do senhor
Willey estava na garagem. Foi algo assim como uma premonição... Mas, a primeira
idéia que me veio à mente foi a de que um dos garotos estivesse doente e, sem pensar
em mais nada, abri a porta e entrei.

Sandra reprimiu um soluço e secou o rosto com as mãos trêmulas.

— Ele estava deitado no chão da sala com Karen, tapando-lhe a boca com

uma das mãos para que não gritasse. Ao me ver parada na porta, ele se levantou
imediatamente e ajeitou as roupas. Eu estava absolutamente paralisada, boquiaberta,
encostada contra a porta. Não sabia o que dizer. Então o senhor Willey passou por
mim e disse qualquer coisa sobre ter sido uma pena eu ter perdido a festa. Não pude
ouvi-lo muito bem. Só sei que era uma ameaça e que daquele dia em diante, fiquei
apavorada.

As lágrimas continuavam a molhar-lhe o rosto e Sandra desistiu de lutar para

contê-las.

— Contando, as coisas parecem tão lentas... mas foi tudo muito rápido. Só

sei que, segundos mais tarde, ouvi o barulho do carro saindo e vi Karen chorando
baixinho encolhida no chão, chamando por mim... Não sabíamos o que fazer,
estávamos apavoradas. Meus pais não estavam em casa e não nos ocorreu
chamá-los. Quis que Karen voltasse comigo para casa mas, sabe o que ela disse?
Que não podia deixar as crianças sozinhas... Ele havia saído, deixando para trás a
garota que acabara de violentar, sabendo que ela não teria coragem de abandonar
as crianças. Eu o odiei pelo que fez com ela e por ter sido tão sórdido.

background image

Por um longo momento Sandra se manteve em silêncio, observando

os reflexos das chamas com um olhar perdido.

— Você chamou alguém? — A voz grave de Ben trouxe-a de volta à

realidade.

— Não, ficamos muito apavoradas. E Karen... Ela só queria tomar um banho

e eu a ajudei. Depois, fui o mais rápido possível até em casa e trouxe-lhe outras roupas
para vestir. As dela estavam rasgadas. Karen não queria nem tocá-las e nós não
sabíamos que estávamos destruindo as provas. Quando o casal voltou, o senhor Willey,
completamente bêbado, sorria sem parar. Ele quis pagá-la pelos serviços, mas eu
peguei o dinheiro. Sabia que Karen não queria nem tocar em nada que viesse daquele
monstro. Então, saímos correndo e voltamos para casa.

Os soluços haviam cedido e Sandra agora tinha o rosto tão petrificado quanto

no momento em que seus pais chegaram em casa e as duas lhe contaram o que
havia acontecido.

Ben tocou-lhe suavemente os cabelos e perguntou:

— E o que seus pais fizeram?

— Eles não chamaram a polícia. Disseram-nos que não havia mais provas

do crime e que eu seria considerada muito pequena para servir de testemunha. De
nada adiantaria denunciá-lo, só serviria para embaraçar Karen perante todos. Então, no
dia seguinte, papai nos chamou e fomos os três até a casa dos Willey. Eu estava
apavorada e não queria ir, mas não tive coragem de falar. O senhor Willey estava no
quintal, preparando um churrasco, acho. Lembro-me de que usava um desses
chapéus de cozinheiro. Meu pai aproximou-se e disse: "Minhas filhas querem que eu
lhe dê um recado, Jack", e então, rápido como um raio, cobriu-o de pontapés. O
senhor Willey urrava de dor até cair no chão, curvado, e aí papai completou a surra.

Retomando o fôlego, prosseguiu:

— Nunca tinha visto meu pai cometer qualquer ato de violência até então e

aterrorizei-me com a selvageria com que ele espancava o homem. Senti-me satisfeita
por Karen mas, ao mesmo tempo, assustada com papai. Jack não teve chance de
revidar, ficou imobilizado desde o começo da surra. Nunca vou poder esquecer a
cena: o chapéu de cozinheiro jogado na grama, e o rosto dele completamente
ensangüentado...

Perdida em pensamentos, ela fez uma pausa e voltou a falar:

— Ao terminar, papai estava exausto, respirava com muita dificuldade e disse

ao senhor Willey: "Se você se aproximar de minhas filhas outra vez, eu te mato".
Percebi que não blefava e nunca senti tanto medo em minha vida. Então, virou-se
para nós e perguntou se tínhamos algo mais que quiséssemos fazer ou falar. "Podem
chutá-lo, se quiserem", e ambas balançamos a cabeça sem uma palavra. E voltamos
os três para casa.

Desviando o olhar, concluiu:

— Nunca mais minha irmã foi a mesma. Nem eu. Karen costumava ser

background image

tão divertida, tão alegre, mas, depois desse dia, tornou-se quieta, tristonha. Eu também
mudei, mas não sabia exatamente em quê. Hoje vejo que ali perdi a confiança nas
pessoas.

— Como está ela hoje?

— Ah, muito bem. Trabalha como produtora para o Conselho Nacional

de Cinema e ganhou um prêmio o ano passado por um documentário.

— E ela chegou a se casar?

— Sim, está casada há muitos anos com um repórter.

Ben franziu as sobrancelhas, curioso.

— Mas você não se casou.

— Não, eu nunca quis.

— Como era o casamento de seus pais?

Sandra respirou fundo. A continuar daquela forma, antes da meia-noite já

teria lhe contado toda sua vida. Mas a pergunta fora espontânea e ela resolveu
responder.

- Eu pensava que eram felizes juntos, mas quando completei quinze anos,

eles se divorciaram. Papai nos deixou. Fiquei muito magoada pois sempre fui mais
apegada a ele. E ficamos só eu e mamãe em casa pois Karen foi cursar a faculdade
fora.

O fogo consumira toda a lenha que agora estava reduzida a brasas.

— Sandra, por acaso imaginou que eu já soubesse disso quando lhe

entreguei o caso de Laney?

A voz dele soou rouca e ela prendeu a respiração.

— Não exatamente — disse, sem encará-lo. — A princípio eu desconfiei,

mas agora que me explicou o motivo, sei que minha suspeita não tem fundamento.
Mas é muito penoso para mim ter de enfrentar tudo aquilo no tribunal todos os dias.

Ben recostou-se e, então, num gesto brusco, pôs-se de pé. Afastando a grade da

lareira, colocou mais lenha e atiçou o fogo.

— Sabe o que mais me surpreende? — disse, voltando-se de frente para

ela com um riso ameno nos lábios. — É que você me parece mais atormentada pelo
passado do que sua irmã. Pelo que entendi, Karen parece ter recuperado o equilíbrio.

Seria mesmo verdade? Observando as chamas consumirem a madeira,

Sandra pensava a respeito do assunto. E, em seu íntimo, sabia que o relacionamento
com Ben estaria arruinado caso não encontrasse os motivos que a transformaram na
pessoa desconfiada que era. O passado acabaria destruindo seu amor e o dele.

— Estes foram os três fatos mais marcantes de minha infância: o estupro, a

surra, o divórcio.

background image

— Qual foi a pior parte do estupro de Karen para você? — ele perguntou,

indo sentar-se ao lado dela.

Pela primeira vez, Sandra reconhecia algo que nunca se permitira admitir:

Ben era digno de sua confiança e ao lado dele estaria segura. Talvez aquele sentimento
desaparecesse com o raiar do sol, mas ali, naquela hora, podia enxergar a verdade sem
fugir.

— A culpa — disse repentinamente. — Oh, Deus, como me sinto

culpada! Se tivesse ido encontrá-la na hora de costume, nada teria acontecido. Mas fui
tão egoísta... E, ao sair de casa, em vez de correr para lá, fui caminhando bem devagar
pela calçada. Inúmeras vezes me recrimino pelo que fiz.

— Você não ia conseguir salvá-la. O mais provável é que fosse estuprada

também.

— Sim, sim, eu sei disso. E teria sido muito melhor assim, você não vê? Preferia

que tivesse sido comigo, e não com ela. Juro que sim. Karen era tão... Oh, Ben, se você
visse a fisionomia dela quando corri para abraçá-la. Nunca vi um olhar igual. Sonhei
com aquela expressão durante anos: os olhos, os murmúrios, o choro. Não pude fazer
nada para ajudá-la... só ouvi-la chorar e desejar que tivesse sido comigo.

Sem que percebesse, ela recomeçara a chorar. Então, virando-se para Ben,

apoiou o rosto contra o peito largo e ele a abraçou com braços fortes, protetores.

— Oh, Deus, se você soubesse... Tem sido tão difícil ver aquela mesma

expressão nos olhos de Laney, é como se parte dela tivesse sido mutilada. E o rosto de
Blake, então? Ele tem a mesma atitude arrogante de Jack Willey ao passar por mim
e sair pela porta. Você o julga inofensivo, Ben, mas ele não é. Talvez não tenha
coragem de estuprar uma mulher com atos, mas com palavras... Odeio todos os
homens que fazem isto com as mulheres!

Sandra não sabia se Ben estava conseguindo entendê-la. Mas o simples fato de

desabafar e mostrar-lhe seu lado frágil já era um alívio. Agora, não teria mais que
manter a aparência de mulher forte e insensível que criara para si. Abandonando-se
aos instintos mais primitivos, agarrou-se a ele e chorou copiosamente.

Aquela noite fatídica destruíra muita coisa dentro dela e de Karen. No minuto

em que vira o que o pai de uma criança pode fazer a outra criança, Karen perdera
todo o senso de segurança. Sabia que este tipo de coisas ocorria e sempre fora ensinada
a não falar com estranhos. Estranhos. Mas não o Sr. Willey, que brincava e se divertia
com os filhos no jardim e que sempre convidava a vizinhança para um churrasco.

— Perguntei a meu pai se ele faria o mesmo com meus amigos —

murmurou quando o choro cedeu. — Ele me disse que não, que nunca
machucaria alguém daquela forma e que o senhor Willey era doente. Ele falou:
"Nunca pense que a sociedade é perfeita. Sandra. Ela está cheia de problemas. Sinto
que tenha aprendido a lição tão cedo. mas não se iluda, é assim que tudo funciona".

— Seu pai me parece ser um homem muito bom.

— Sim, ele é. Hoje, revendo os fatos, creio que ao bater em Jack papai

encontrou um modo de se vingar. Acho que não gostou de ter que lhe dar a surra

background image

mas... Só não entendo por que ele nos levou para assistir à briga.

— Não? — ele perguntou, surpreso. — Nem hoje em dia?

— Bem... não penso nisso há muitos anos.

— Como homem, acho que entendo seu pai. Você não percebe que ele

estava tentando devolver a vocês duas o sentido de segurança pessoal? Tentou
exorcizar os seus sentimentos e os de Karen por terem sido vítimas, indefesas, de
desejarem ver aquele homem castigado. Karen, obviamente, não podia se vingar
pessoalmente, a menos que o matasse, e seu pai portou-se como um agente,
permitindo que, através dele, Karen descarregasse toda a angústia. Qual a reação dela
à surra?

— Nunca conversamos a respeito.

— Pois, então, deveriam. Ela era mais velha que você e foi a vítima. Procure

saber o que restou de tudo.

Entre o sucesso profissional das duas irmãs havia uma grande diferença. No

caso de Sandra, a carreira brilhante servia de compensação para a vida sentimental
desastrosa. Tinha muitos amigos, seu nome aparecia com freqüência nas colunas
jurídicas dos jornais. Mas ninguém notava que, intimamente, ela se isolava por medo de
confiar. Muito inteligente, conseguia enganar a si própria, alegando que um
envolvimento amoroso apenas ameaçaria sua carreira.

Os homens de que mais gostava eram os primeiros a levar o fora e, entre

eles, Ben batera o recorde de rapidez. Erguendo os olhos, observou-o com ternura e
gratidão. Sandra queria uma segunda chance.

background image

CAPITULO XVI

Na quarta-feira, Blake Roebotham colocou seu cliente na tribuna como última

testemunha da defesa. A tática dele agora era a seguinte: com todas as evidências e
provas apontando para o acusado, a única saída seria alegar que Laney Meredith
participara do rapto e do estupro por vontade própria.

Matthew Miller, o amigo em cujo porão Macomber a mantivera em

cativeiro, afirmou em seu testemunho que o réu contou-lhe que precisava de um
lugar para onde levar a namorada. Então, a pedido de Hughie, ele lhe emprestara as
próprias chaves da casa.

— Há quanto tempo conhece Hughie Macomber, Matthew? — indagou

Sandra ao interrogá-lo.

Ela sabia que o rapaz mentia e precisava descobrir uma forma de

desmascará-lo perante o júri.

— Um ano, mais ou menos.

— Ele é um bom amigo?

— Muito bom — Matthew respondeu.

Sandra sorriu para o rapaz. Sua intuição lhe dizia que fosse ganhando a

confiança dele com muita calma. Caso Blake o tivesse advertido sobre o
interrogatório

escabroso que ela lhe faria, uma atitude dócil o desarmaria.

— Você o consideraria seu melhor amigo?

Imediatamente os olhos de Matthew procuraram pelos de Macomber, com

um misto de medo e adoração.

— Acho que sim.

— Você o respeita por ser mais velho?

— Acho que sim — ele respondeu, confuso. Afinal, onde estava a fera contra

quem Blake o prevenira?

— Quantos anos você tem?

Sandra adotava um tom calmo, quase maternal.

— Dezoito. Acabei de completar.

— Entendo. Sabe a idade de Hughie?

— Ele me disse que tem vinte e três.

Era evidente que Matthew, cujo caráter ainda estava em formação, fora presa

background image

fácil para Macomber.

— Você estuda, Matthew?

Blake levantou-se calmamente e interferiu.

— Meritíssimo, creio que a biografia da testemunha, por mais interessante que

seja, não interessa ao caso.

— A testemunha afirmou ser amigo do réu e meu nobre colega sabe que

posso esclarecer melhor a natureza desta amizade.

— Protesto não concedido. — O juiz interferiu — A testemunha pode

responder à questão proposta.

Olhando para Blake em busca de um sinal de aprovação, o rapaz

respondeu:

— Estudo. Termino o segundo grau este ano e pretendo cursar uma

faculdade o ano que vem.

— Hughie Macomber vai à escola com você?

— Não, ele não estuda.

— Então, o que é que vocês dois têm em comum?

— Não sei — disse, mexendo-se inquieto — só sei que somos amigos.

— Você o admira?

— Sim, acho que admiro.

— Se ele lhe pedisse um favor, você o atenderia?

— Depende — disse Matthew, dando de ombros.

— Seria capaz de desobedecer seus pais por causa dele? — Sandra

continuava mantendo a docilidade.

— Não sei, ele nunca me pediu para fazer isso.

Sandra olhou deliberadamente para o júri.

-- Então você tem a permissão deles para dar a chave da casa para qualquer

amigo?

Matthew caiu em si e por um momentos demonstrou sinais de pânico.

— Não...

— Portanto, na verdade, desobedeceu seus pais a pedido de Macomber?

O rapaz baixou os olhos e disse em voz baixa:

— Acho que sim...

background image

— Isto é muito grave, não acha? Ele podia ter roubado alguma coisa, não

podia?

—- É... podia... — Matthew respondeu.

— E você podia ter sido processado como cúmplice do crime. Sabia disso

quando lhe deu as chaves?

Era óbvio que ele não sabia o que dizer porque, na verdade, estava mentindo:

nunca dera as chaves ao réu.

— Ele teria duas semanas para fazer o que bem entendesse na casa de seus

pais com a sua chave. Ele poderia ter limpado a casa. não é?

— Acho que sim.

— Isto significa que.você estava disposto a correr sérios riscos por

Macomber. Você faria tudo o que ele lhe pedisse, ainda que contra a vontade de seus
pais.

Não houve resposta.

— E o que me diz de perjúrio, Matthew? Seria capaz de desafiar a lei em

nome de seu amigo?

Blake levantou-se rapidamente, demonstrando indignação, mas foi-lhe negada

a palavra.

— Não sei o que é perjúrio — disse o garoto.

Sandra, então, dirigiu-lhe um olhar firme, mas carinhoso, assim como uma

irmã mais velha.

— Perjúrio significa mentir na tribuna. Você faria isso por Macomber?

O rapaz arregalou os olhos, atônito.

— Não. Eu não estou mentindo.

— Sabe qual a punição para quem comete perjúrio?

— Não.

— Prisão. Macomber não lhe contou isso quando pediu-lhe que viesse depor?

Não houve resposta. Mas o olhar espantado que a testemunha dirigiu ao

réu não passou despercebido aos jurados.

— Sabe que seu amigo queria fazê-lo perder os estudos e a liberdade?

Ela o olhou fixamente.

— Tem certeza de que Hughie é tão bom amigo quanto o julgava?

Matthew Miller engoliu em seco e não respondeu.

background image

— Nada mais a perguntar.

Blake levantou-se com mais ruído do que de costume na tentativa de distrair a

atenção do júri, voltada para o garoto.

— Matthew, você cometeu perjúrio aqui hoje? — perguntou esfuziante,

confiante na resposta que teria.

— N...não.

— Portanto, não houve motivo para que minha colega o prevenisse das

conseqüências de tal crime, não é?

— Não.

— Vou lhe perguntar mais uma vez de modo a não deixar dúvidas para os

jurados: você deu a chave da casa para Hughie Macomber?

— Sim — respondeu, lançando um olhar de desafio em direção a Sandra.

Matthew pensava que, sob a proteção forte de Blake, ninguém conseguiria

provar que estava mentindo, exceto ele mesmo e Macomber. Mas este jamais o faria.

— Sim, dei as chaves.

— E Hughie lhe disse que queria um lugar para levar a namorada?

— Sim, foi isso o que me disse.

Triste com a atitude do garoto, Sandra temia que ele seguisse os mesmos

passos do amigo. Ao vê-lo descer da tribuna, reparou no olhar infeliz que dirigiu ao réu
e pensou: "Você ainda é um rapaz honesto. E, caso eu consiga vencer, farei com que
seja punido para que aprenda a lição".

Seguiu-se, então, uma pausa durante a qual Blake tentou ganhar tempo para

decidir se chamava, ou não, o réu a depor. Todos ali perceberam que Matthew
Miller mentia e Macomber, agora, estava em apuros.

Neste instante, Blake ergueu-se e anunciou:

— Meritíssimo, gostaria de chamar à tribuna o réu, Hughie Macomber.

Macomber já demonstrara ser um rapaz charmoso na noite em que

convencera Laney a entrar em seu carro e, agora, tentava conquistar os jurados da
mesma forma.

Num tom de voz doce e pausado, afirmou que já conhecia Laney há

algum tempo e que já haviam ficado na mais completa intimidade diversas vezes
antes do dia 8 de fevereiro. Ela temia apresentá-lo à família por ser de condição social
diferente e, portanto, eles só se encontravam às escondidas.

Na noite em questão, conforme haviam combinado, ele a encontrou ao

voltar para casa. Laney voltava de uma visita a uma amiga, onde estivera fazendo a
lição.

background image

Haviam planejado passar algumas horas juntos antes que ele a levasse de

volta mas, durante aquela semana, um amigo lhe emprestara as chaves da casa,
enquanto saía de férias com a família. Portanto, os dois poderiam passar o fim de
semana lá, juntos, e Laney inventaria uma desculpa qualquer para dar em casa.

Segundo Macomber, ela, a princípio, concordara, mas, depois de fazerem

amor, ficou preocupada e pediu-lhe que a levasse de volta. Temia que a família a
descobrisse.

Foi, então, que Hughie Macomber cometeu o erro que o perseguiria para

sempre: por amá-la e querer ficar mais tempo a seu lado, levou-a para o porão e
prendeu-a, ignorando-lhe os pedidos de que a soltasse.

Ele a manteve aprisionada durante o fim de semana e a visitava sempre que

possível. Laney parecia muito feliz ao vê-lo e Hughie pensou que ela superara o medo e
a vontade de voltar para casa. Na segunda-feira, quando ia visitá-la e acompanhá-la de
volta, a polícia o prendeu em seu local de trabalho. Hughie ficou chocado ao saber que
estava sendo acusado de estupro.

Ao fim do interrogatório, Blake passou a palavra a Sandra.

— Senhor Macomber, que idade tem?

— Vinte e três, senhora — acrescentou rapidamente, dirigindo um olhar

nervoso em direção a Blake.

Sandra, curiosa, franziu as sobrancelhas e indagou:

— O doutor Roebotham o instruiu para que me chamasse de

senhora?

— Como? Senhora?

— O senhor Roebotham acaso lhe disse que passaria por rapaz educado e

gentil se se lembrasse de me chamar de senhora?

O rapaz ficou pasmo.

— Bem... eu... não — respondeu, confuso.

— Você também chamou Laney Meredith de senhora aquela noite,

quando tentou pegá-la à força?

— Não — disse, visivelmente desorientado, sem tirar os olhos de cima de

Blake.

— Por que está olhando para o advogado de defesa? Espera que ele o instrua

nas respostas?

Voltando o olhar para ela, Hughie afirmou, irritado:

— Não estou olhando para o advogado.

— Senhora! — ela completou.

background image

— Senhora.

O júri explodiu em gargalhadas.

— Foi assim que o senhor Roebotham o ensinou a ser educado''

— Ele nunca me disse para ser educado.

— Ótimo, senhor Macomber. Então, já que não vai contra as instruções

de seu advogado, façamos um trato: o senhor não perde seu tempo fingindo ser
educado e eu não perco o meu, acreditando na versão que contou aos jurados, certo?

— Ora, Meritíssimo, isto é uma provocação! — exclamou Blake. —

Aprecio a tática de minha colega mas assim já é demais!

O juiz a repreendeu, mas o estrago já estava feito.

— Com que idade chegou ao Canadá, senhor Macomber?

— Com onze anos.

— Estudou aqui?

— Sim, até o fim do segundo grau.

— Neste caso, vejo que não é tão ignorante, não é?

Ele não respondeu.

— Fazia frio no porão dos Miller?

— Admito que estava mais para frio do que para calor.

— Mais para frio... Ouvimos o depoimento da polícia afirmando que a

temperatura no porão era de seis graus. De que nacionalidade o senhor é?

— Jamaicano.

— Faz muito calor em seu país, não?

— Penso que sim.

— Os canadenses costumam passar o inverno lá para fugirem do frio, não?

— Acho que sim.

— No primeiro inverno que passou aqui, sentiu muito frio. senhor

Macomber?

— Puxa, e como. Eu tremia o tempo todo — disse sorrindo.

— E hoje, só doze anos depois, já considera uma temperatura de seis graus

como sendo "mais para frio do que para calor"? Sua adaptação foi fantástica!

Ele não respondeu.

— Mas, certamente, não fazia tanto frio no porão para o senhor quanto

background image

para Laney, não é? — Sandra continuou. — O senhor estava vestido o tempo todo.
E trazia consigo um cobertor para mantê-lo aquecido enquanto a estuprava, não é?

Aquela era uma dupla acusação e, conforme previra, Hughie caiu na

armadilha. Ele não sabia se negava o cobertor ou o estupro.

— Eu não a estuprei — afirmou após uma pausa. — É mentira dela.

— Mas o senhor tirou-lhe toda a roupa. E trazia consigo o cobertor, que

levava embora quando partia, não é?

— Ela nunca me disse que tinha frio.

— Ouvimos o depoimento do médico que a examinou após a fuga no qual

ele afirma que a vítima sofria de danos causados pela longa exposição ao frio e que, se
o senhor a mantivesse lá por mais dez ou doze horas, ela teria morrido. Em tais
condições, os lábios de Laney ficaram azulados e ela tremia incontrolavelmente. Nunca
notou estes sintomas em sua prisioneira?

— Não me lembro.

Sandra deixou que o bom senso dos jurados os guiassem.

— Onde encontrou Laney Meredith?

— No ponto do ônibus.

— E como foi que a convenceu a entrar em seu carro?

Hughie percebeu que caíra noutra armadilha.

— Bem, aí foi onde eu a encontrei aquela noite... — corrigiu.

— Entendo. E ela lhe contou sobre os pais, e sobre como reprovariam seu

namoro com um rapaz mais pobre?

— Sim, contou-me diversas coisas sobre a família dela.

— Qual o nome do pai de Laney, senhor Macomber?

—- Eu... Creio que ela não chegou a mencionar.

— Mas ela disse que ele seria contra o namoro de vocês, não disse?

— Disse-me que seria contra; ela nunca falou com ele a meu respeito. Ele é

muito bravo.

— Portanto, seria uma surpresa para o senhor se eu lhe dissesse que o pai de

Laney faleceu quando ela tinha dez anos?

Hughie correu os olhos pelo ambiente, tentando encontrar uma resposta.

— Talvez se referisse a um tio. ou qualquer coisa assim.

- Quantos irmãos e irmãs ela tem?

background image

Hughie focalizou um ponto qualquer no horizonte.

— Mmm... Ela nunca me contou.

— Então, sobre quem foi que conversaram?

— Ela falou-me a respeito da mãe.

— E as duas moram juntas?

Hughie estava confuso e Sandra percebeu que ele tentava se recordar do

depoimento de Laney na semana anterior, em busca de algo que o ajudasse.

— Sim, moram.

— Sozinhas?

— Ela não me disse.

— Ao que tudo indica, ela não lhe contou muita coisa. Qual o primeiro

nome da senhora Meredith?

— Se Laney me contou, eu esqueci.

— Há algo de que se lembre?

Hughie pensou bem e disse:

— Não, creio que não.

— Então, não se lembra de ela ter lhe dito sobre os preconceitos da mãe? O

senhor nos falou há poucos minutos que...

— Ah, sim, isso ela me contou. Foi por essa razão que eu não podia ir à casa

dela.

— E a sua mãe, senhor Macomber, também é preconceituosa?

— Minha mãe? Não.

— Portanto, ela não se importaria que namorasse Laney Meredith?

Ele percebeu que estava prestes a ser pego noutra armadilha, mas não

sabia como escapar.

— N...não.

— Neste caso, por que não a levou para sua casa e apresentou-a à sua

família? O senhor reclamava, ainda há pouco, de terem de se encontrar às escondidas.

Em desespero, ele lutava para encontrar uma resposta.

— Eu... nosso apartamento é muito pequeno. Tive vergonha de levá-la.

Um dos presentes sufocou um grito de espanto. Era a senhora Macomber,

que estava sentada ao lado de seus vários filhos, todos muito bem arrumadinhos.

background image

— Tem vergonha de sua família?

Hughie pendeu a cabeça, fingindo-se arrependido.

— Sim, senhora.

Aquela é sua família?

— Sim.

Pode, por favor, apontá-la para os jurados?

— Ora, Meritíssimo, protesto. A família do réu não está em julgamento —

Blake interferiu.

— Protesto concedido.

Mas todos os jurados já olhavam para a senhora distinta cujos olhos estavam

rasos d'água ao fitar o filho.

— Quantos quartos tem seu apartamento?

— Três.

— Quantas pessoas moram lá?

— Sete.

— E quer que o júri acredite que o senhor preferiu levar a garota que tanto

amava, segundo palavras suas, a um porão gelado em vez de levá-la à sua casa?

— Bem...

— Não é verdade que o senhor nunca conversara com ela antes daquela

noite em que a viu tão convenientemente parada no ponto? Não é verdade que,
então, decidiu tirar proveito do fato de ela estar só e vulnerável? Não é fato, senhor
Macomber, que ao estacionar em frente ao ponto já tinha o propósito de fazê-la entrar
em seu carro por meio de promessas falsas, até que conseguisse adquirir-lhe a
confiança e, então, levá-la a um local deserto? Será que isso não explica todas as
contradições em que caiu?

— Não, senhora.

— Já tinha estuprado alguém antes de Laney, senhor Macomber?

— Não, juro que não.

— Então, ela foi sua primeira vítima? Será que foi a última também?

— Eu...

Mais uma armadilha.

— Eu nunca estuprei ninguém.

Desta forma o julgamento transcorreu na quarta-feira e a maior parte da

background image

manhã de quinta. Sandra reviu todas as afirmações do réu, linha por linha, contradição
por contradição, mentira por mentira.

O interrogatório se tornou uma competição de inteligência e astúcia e Hughie

Macomber não era páreo para ela. Entretanto, seria possível que, embora o provasse
culpado, não conseguisse condená-lo? Não se podia contar com a imparcialidade
dos jurados em caso de estupro.

background image

CAPÍTULO XVII

— Os senhores do júri chegaram a um veredicto?

— Sim, Meritíssimo.

— Quanto à acusação por abuso sexual, a que conclusão chegaram?

Culpado ou inocente?

— Culpado, Meritíssimo.

Hughie Macomber soltou um grito agudo que ecoou por todo o tribunal e,

atrás dele, sua mãe escondeu o rosto entre as mãos e chorou.

O juiz Arthur McVean, impassível, pediu silêncio aos presentes.

— Quanto à acusação por rapto, a que conclusão chegou o júri?

— Culpado.

— Quanto à acusação por confinamento forçado?

Os jurados o consideraram culpado de todas as acusações.

Sandra deixou-se cair na cadeira e respirou aliviada. Alguns membros do júri

acenaram para ela em reconhecimento ao belo trabalho que fizera, contudo,
nenhum deles lhe pareceu exultante. Nada de sorrisos ou cumprimentos efusivos,
apenas o alívio de terem cumprido com o dever da melhor forma possível.

— A sentença será proferida hoje às três horas da tarde.

Então, todos se levantaram e, ao ser encerrada a sessão, o vozerio dos

presentes ecoou pelo tribunal.

Ao aproximar-se do próprio escritório ouviu a voz grave e familiar de Ben e

acelerou os passos. Dobrando o corredor, viu-o cercado dos demais colegas da
promotoria. Todos a cumprimentaram com uma salva de palmas. Depois vieram
os abraços, os apertos de mão e as palavras gentis, mas ela só tinha olhos para Ben.

— E então? O réu foi considerado culpado de todas as acusações? —

perguntou ele.

— Sim, todas.

Só agora ela começava a acreditar na vitória e abriu um sorriso alegre de

satisfação.

— Puxa! — exclamou uma das secretárias. — Aposto que Blake não vai

dormir esta noite.

— E então? Vamos almoçar? — perguntou alguém.

— Preciso dar uns telefonemas — Sandra explicou sorridente. — Vejo-os

background image

dentro de dez minutos, está bem?

Sandra queria dar as boas notícias a Laney o mais rápido possível e, entrando

em sua sala, fechou a porta atrás de si. Exausta, aproximou-se da mesa e largou o
peso do corpo sobre a cadeira giratória.

Em casa, Laney aguardava ansiosamente por notícias, sentada ao lado do

telefone.

— Alô?

— Laney? Aqui é Sandra.

— Olá. Já tem o veredicto?

— Sim. O júri considerou Hughie Macomber culpado de todas as

acusações pendentes contra ele. A sentença ...

Do outro lado da linha, ouviu uma exclamação de alívio e finalmente um

choro incontido.

— Oh, Deus... — a garota tentava dizer. — E ele agora vai ser preso?

— Não houve recomendação nenhuma por parte do júri para que a pena

fosse aliviada, portanto, creio que Macomber ficará detido por, no mínimo, dois anos.
Mas você pode vir assistir pessoalmente ao proferimento da sentença, Laney. A sessão.
começa às três horas.

— Meu Deus...

— Tem todo o direito de estar presente. Ele foi desumano e cruel, Laney, você

merece vê-lo ser condenado.

— Talvez eu vá — disse Laney. — Eu... eu ainda preciso pensar.

— Será às três horas na sala quatrocentos e dezessete.

— Está bem. Obrigada, doutora Holt.

Sandra desligou e recostou-se na cadeira. Tinha quase certeza de que Laney

viria. De cabeça erguida, ouviria a condenação daquele que quase a destruíra física e
moralmente mas que, graças à Justiça, receberia a devida punição.

Ben e Sandra almoçaram juntos em companhia de alguns amigos da

promotoria na lanchonete do próprio Fórum. Desde a noite em que lhe contara
sobre o caso de Karen ela se sentia mais próxima dele. E, pela primeira vez, encarava
o amor como algo real e poderoso. Queria estar junto de Ben sempre que possível e.
quando os compromissos os impediam de se encontrarem, a saudade logo batia.

Ao entrarem na lanchonete, depararam com Blake logo à frente.

Encarando-o ela imaginou o quanto ele deveria estar odiando a coincidência, porém, o
orgulho não lhe permitia ignorá-la.

background image

E, para cúmulo do azar, o destino os levou a ter que dividirem a última mesa

disponível.

O almoço foi saboreado no mais profundo silêncio, só quebrado por Blake

por ocasião do café.

— Então, agora meu cliente vai engrossar a lista dos pobres coitados que têm

de pagar o preço da indecisão das mulheres, hein. Harvey?

Harvey era o mais jovem estagiário do Fórum, candidato a uma vaga como

advogado. Um tanto sem jeito, ele apenas sorriu.

— Quantos anos acha que ele vai pegar? — perguntou Blake a Sandra de

modo agressivo. — Será que dez anos vão aplacar a sede de vingança da vítima?

Pela primeira vez, em lugar de se enfurecer diante das provocações dele,

Sandra se entristeceu. Ele a magoava com sua atitude e ela não ia fingir o contrário.

Encarando-o quase penalizada, balançou a cabeça e disse-lhe:

— Blake, o estupro é um crime tão horrível. Não fale assim.

Mas Sandra prometeu a si mesma que não falaria mais nada, mesmo que

ele continuasse a agredi-la.

— Deixe-a em paz, Blake.

Era a voz de Ben, sentado ao seu lado.

— Isso mesmo, Blake, foi uma vitória justa e limpa — disse um outro colega.

— Seu cliente é culpado e veja se não descarrega sua raiva em Sandra.

Ben apertou carinhosamente a mão dela sobre a mesa e ambos trocaram

um olhar cúmplice. Ele também percebera a mudança.

O juiz Arthur McVean era famoso por sua imparcialidade e pela benevolência

com que costumava olhar o réu, caso notasse sinais de arrependimento.

Entretanto, quando a ocasião exigia, sabia ser exigente e agir com a devida

severidade, proferindo a sentença máxima para muitos casos.

— Na sexta-feira, oito de fevereiro — começou, após os procedimentos de

praxe para a abertura da sessão — você persuadiu Laney Meredith a entrar no seu
carro. A vítima...

Sandra olhava para os jurados e imaginava como Laney deveria estar se

sentindo naquele instante, felizmente ela viera assistir à sessão.

— ... portanto Hughie Brian Macomber, sua sentença é a seguinte...

Comovida, Sandra viu a recompensa de todo seu esforço.

— ... e, finalmente, seis anos por agressão sexual grave. As sentenças deverão

ser cumpridas concomitantemente.

background image

O grito repentino de Hughie Macomber cortou o silêncio como um, trovão,

provocando um arrepio em Sandra.

— Você agora será levado a uma penitenciária.

Os policiais algemaram o réu imediatamente e o retiraram do tribunal.

Macomber não viveria outro momento de liberdade senão dali a alguns anos.

Todos os presentes levantaram-se e o juiz deixou o local.

A parte de Sandra estava cumprida e o que acontecesse dali por diante já não

lhe competia.

Na manhã seguinte Sandra ligou para a irmã.

— Você soube que venci meu primeiro caso de acusação?

— Sim, li esta manhã nos jornais — respondeu Karen, muito feliz. —

Parabéns.

— Obrigada, confesso que eu merecia vencer.

— Parece que o caso tinha uma importância especial para você.

Sandra sorriu, descontraída.

— Você o fez especial para mim.

— Eu?! Mas o que tenho a ver com isso?

— Foi a primeira vez que me encarreguei de um caso de estupro. E

durante todo o processo eu me perguntava se queria condenar Hughie Macomber
pelo que fez com Laney Meredith ou... ou...

— Jack Willey pelo que fez comigo?

— Sim.

— Compreendo o que sente, Sandra.

— Importa-se de conversarmos sobre isso?

Houve um breve silêncio e, então, Karen falou:

— Não sou eu que me importo, Sandra. É você.

— Eu? Como assim?

— Tentei discutir o assunto diversas vezes no passado, mas você não

suportava ter que falar sobre isso.

— M...mas, eu não me lembro de termos tocado no assunto...

— Lembra-se de quando rodei aquele documentário sobre os jovens, há

dois anos?

background image

— Claro que sim.

— Durante aquela época, quantas vezes conseguimos discutir sobre nossa

infância e juventude?

— Não muitas. Mas pensei que você estivesse atravessando um período difícil

e... Bem, por que não nos encontramos qualquer dia destes?

— O que acha de vir jantar comigo esta noite?

— Combinado, estarei aí.

background image

CAPÍTULO X VI I I

— E como foi a conversa com Karen? — perguntou Ben.

Naquele fim de semana ele não tinha ido para o chalé pois estava

sobrecarregado de trabalho e Sandra, sentindo-se emocionalmente exausta, havia
preferido ficar sozinha em casa até se recuperar.

Entretanto, no domingo, decidiram não trabalhar e aproveitaram para dar

uma volta de carro pelo campo.

— Difícil, mas valeu a pena. Quando penso em tudo o que sofri durante

esses anos todos em que fugi do assunto...

Ben estacionou no acostamento de uma pequena área reservada para

piqueniques. As mesas cercadas de enormes carvalhos estavam desertas. Ambos
desceram do carro e ele a abraçou com força.

— Venha.

A caminhada aliviou a tensão. Os campos cobertos pelas folhas secas que

caíam das árvores ofereciam um cenário belíssimo.

— Ben — disse-lhe.

— Sim, querida?

— Eu te amo de verdade e descobri que desta vez não quero fugir.

Ele parou de caminhar e virou-se de frente para ela. Seus olhos brilhavam

como nunca e, curvando-se, ele a beijou com ternura.

A comida do pequeno restaurante à beira do lago Simcoe não era má e,

depois do almoço, eles alugaram um pequeno barco a motor para um passeio.

Durante a tarde, um vento frio começou a soprar, trazendo nuvens de

chuva e provocando uma súbita queda de temperatura. Ao entrarem no carro, já
começavam a cair os primeiros pingos de chuva.

Horas mais tarde, diante da lareira, Sandra virou-se para ele e colocou os braços

em torno do pescoço de Ben.

— Estou feliz que você não tenha me deixado escapar desta vez — confessou,

analisando-lhe atentamente os traços.

Aproximando os lábios dos dela, Ben beijou-a apaixonadamente, num misto

de urgência e ternura.

Ao se afastarem, ele a olhou bem dentro dos olhos e comentou:

— Esta noite, estive dando uma olhada no manuscrito do romance desde o

background image

primeiro capítulo e descobri uma coisa: Jennie não é uma pessoa; ela é irreal. Aposto
como Blake iria adorá-la.

Sandra não conteve um riso espontâneo.

— Quer saber minha opinião? Gostei muito do enredo, mas achei que a

personagem feminina não agradaria às mulheres.

E você não ia me contar?

-— Talvez, mas pensei que você a tivesse criado assim propositalmente por

se tratar de um livro dirigido aos homens.

— Não, não — disse Ben. — Eu sentia que havia algo de errado com ela,

mas não conseguia identificar o problema. Então, relendo, percebi que Jennie havia
morrido dentro de mim. Talvez porque eu não desse ouvidos aos sentimentos
dela, da mesma forma que fiz com você.

— E o que pretende fazer?

— Reescrevê-la desde o início.

— Quer dizer que aquela cena de sexo vai ser eliminada? — perguntou,

horrorizada. — Oh, Ben, não pode fazer isso, é a minha favorita.

— Você gosta dela porque pensa que aquilo que Ray faz com Jennie é o

mesmo que eu queria fazer com você na noite em que me deixou dormir sozinho e
isso...

— E não estou certa, querido?

Ben lhe dirigiu um olhar malicioso.

— Bem, em alguns aspectos, sim — disse em tom de desafio.

— Quais?

Os olhos de Ben encheram-se de desejo.

— Quer que lhe diga ou prefere que eu mostre?

— Que tal ambos? — ela sugeriu.

Sem perda de tempo, Ben desabotoou-lhe a blusa, descobrindo-lhe os seios.

Admirando-os, apertou os mamilos eretos entre os dedos.

Sandra gemeu baixinho e Ben curvou-se para beijá-los. Alucinada, ela

arqueou o corpo em busca de mais prazer.

— Eu te amo, Sandra. Não sei como consegui viver sete anos sem tocá-la.

— Eu também te amo, Ben.

Estreitando-a contra si, ele a fez estirar-se sobre o sofá e deitou-se sobre ela.

— Desta vez você não me escapa...


Wyszukiwarka

Podobne podstrony:
Alexandra Sellers Zawód milioner
Alexandra Sellers Taka miła dziewczyna
Alexandra Sellers Gwiazda pustyni
Um casamento relampago Alexandra Sellers
400 Sellers Alexandra Zawód milioner
Sellers Alexandra Egzotyczni kochankowie 02 Zaginiona dolina szczęścia (Harlequin Special)
400 Sellers Alexandra Zawód milioner
400 Sellers Alexandra Zawód milioner
400 Sellers Alexandra Zawód milioner
400 Sellers Alexandra Zawod milioner
GRD0736 Sellers Alexandra Sen ksiezniczki
SELLERS ALEXANDRA
404 Sellers Alexandra Taka miła dziewczyna
404 Sellers Alexandra Taka miła dziewczyna
0437 Sellers Alexandra Tylko razem z żoną
Alexande1
Arenas F Alexandrov Spaces
alexanderlengerke

więcej podobnych podstron