Um País Chamado Favela: Livro essencial para compreender o Brasil
Dizer que Um país chamado favela é um livro para compreender as favelas brasileiras seria reduzi-lo. Ele é mais do que isso: ajuda-nos a entender o Brasil, a emergência da nova classe média e as profundas transformações sociais que ocorreram nos últimos anos. Escrito por Celso Athayde, fundador da Central Única de Favelas (Cufa), e por Renato Meirelles, presidente do Instituto Data Popular, a obra é resultado de uma ampla pesquisa feita em 63 favelas de dez regiões metropolitanas do país, onde foram ouvidas 2.000 pessoas ao longo de 2013. O resultado surpreende e derruba vários conceitos pré-estabelecidos em relação aos moradores dessas comunidades. Ao longo dos sete capítulos, os autores situam a pesquisa no contexto brasileiro e fazem uma recapitulação da história do surgimento das favelas, que é totalmente permeada pelo descaso do governo, além de discorrerem sobre diversos aspectos das comunidades, apresentarem o perfil empreendedor dos moradores, criticarem a cobertura da imprensa em relação à violência e saudarem a peculiaridade arquitetônica das comunidades.
Alguns dados, porém, merecem destaque. Ainda nas primeiras páginas, já se apresenta um resultado desestabilizador: apenas 1% dos entrevistados atribui a melhora de vida da última década ao governo. 42% creditam a ascensão ao resultado do esforço próprio, 40% a Deus e 14% à família. Essa descrença se explica porque os jovens, principalmente, são filhos e netos daquelas pessoas que foram esquecidas pelos políticos. Logo, ainda não conseguem enxergar o governo como provedor de bem-estar. Quebra-se, assim, o primeiro senso comum apregoado incessantemente, de que moradores de favela votam no PT devido às políticas sociais instituídas no governo Lula.
Se as favelas brasileiras constituíssem um único Estado do Brasil, ele teria 11,9 milhões de habitantes, seria o quinto mais populoso e movimentaria um valor de R$ 63 bilhões por ano. Quem imaginaria isso há uma década? Seguindo adiante, há a desmistificação da ideia de que o Bolsa Família é dinheiro posto fora: cada R$ 1,00 investido no programa agrega R$ 1,78 ao PIB. Além disso, a média salarial de pessoas que vivem nessas comunidades cresce em ritmo mais acelerado do que a do resto da população, frisando as mudanças sociais ocorridas desde 2003. Os autores utilizam, por vezes, o termo “refavela”, que significa uma favela em transformação, em busca de inclusão social e de novos olhares. É o que o país vivencia neste momento.
A cada página somos impelidos a rever nossos preconceitos. Por exemplo, 94% dos habitantes das favelas se consideram felizes, apenas um ponto percentual acima da média brasileira. Boa parte das pessoas acredita que eles não têm motivo para considerarem a vida boa – mas, com as alterações positivas que vivenciam, têm cada vem mais.
Um indicador que não chega a causar surpresa, mas é importante enfatizar, é que 67% dos habitantes das favelas são negros, fruto do tratamento que o grupo recebeu ao longo dos séculos no Brasil. Os autores ainda lembram que até hoje a maior parte da elite rejeita programas de afirmação social, sendo que, historicamente, há lacunas a serem corrigidas – o que o dado acima só confirma.
As famílias que moram em favelas também refazem o paradigma de consumo no país. Ao contrário do imaginado, não compram o que é mais barato. Sempre pesquisam muito antes de adquirir um eletrodoméstico, por exemplo, porque sabem que o aparelho deve durar bastante. Ademais, é falácia acreditar que os habitantes compram para mudar seu jeito de ser ou para integrar determinado estrato da população. Pelo contrário, querem reforçar sua identidade. Também acreditam que não são representados nas propagandas comerciais. E aí entra o papel do comunicador social: a maior parte da população das favelas não entende nem o linguajar utilizado em peças publicitárias, porque ele se distancia de sua realidade.
Fechar as páginas de Um país chamado favela é abrir os olhos para uma realidade ainda desconhecida da maioria dos brasileiros. Nas últimas décadas, as transformações sociais foram muito significativas no país. Entendê-las é o primeiro passo para não sair disparando inverdades. Moradores de favelas não querem mais ser vistos como “pobres coitados”, passíveis de olhares comiserados e julgamentos.
Teria muito mais a destacar sobre as 168 páginas da obra – ela por inteiro, para ser exata. Se uma pessoa quiser entender o Brasil de hoje e a emergência da nova classe média, precisa ler esse livro. A pesquisa refuta muitos preconceitos, fazendo com que voltemos um olhar mais realista e humano às favelas e aos seus habitantes, que têm anseios, desejos e sonhos como qualquer brasileiro – e cada vez mais oportunidades para realizá-los. Um dos melhores lançamentos deste ano na área de sociologia, sem dúvida.