Globo 183 Diario Inexistente XIIa (m)


Fragmentos de um diário inexistente
XIIa


1994, num pier em San Diego, Califórnia

Eu estava conversando com uma mulher da Tradiçćo da Lua - um tipo de
aprendizado feminino que trabalha em harmonia com as forças da natureza.
"Quer tocar em uma gaivota?", perguntou ela, olhando as aves na amurada do
pier.
Claro que sim. Tentei algumas vezes, mas sempre que me aproximava, elas
voavam.
"Procure sentir amor por ela. Depois, faça este amor jorrar do seu peito como
um feixe de luz, atingindo o peito da gaivota. E se aproxime com calma".
Fiz o que ela mandou. Por duas vezes nćo consegui nada, mas na terceira - como
se eu tivesse entrado em "transe", consegui tocar a gaivota. Repeti o "transe",
com o mesmo resultado positivo.
"O amor cria pontes em lugares que parecem impossíveis", diz a minha amiga
feiticeira.
Conto aqui a experięncia, para quem quiser tentar.


1992,Copacabana


O cineasta Rui Guerra me conta que - certa noite - conversava com amigos numa
casa no interior de Moçambique. O país estava uma guerra, de modo que faltava
tudo - desde gasolina até iluminaçćo.
Para passar o tempo, começaram a falar sobre o que gostariam de comer. Cada um
foi dizendo seu prato preferido, até que chegou a vez de Rui.
"Eu gostaria comer uma maçć", disse, sabendo que era impossível encontrar
frutas, por causa do racionamento.
Neste exato momento, escutaram um barulho. E uma reluzente, bela, suculenta
maçć entrou rolando na sala -e parou na sua frente!
Mais tarde, Rui descobriu que uma das moças que viviam ali tinha saído para
buscar frutas no mercado negro. Ao subir a escada na volta, levou um tropeçćo e
caiu; a sacola de maçćs que havia comprado abriu-se, e uma delas rolou sala
adentro.
Coincidęncia? Bem, isto seria uma palavra muito pobre para explicar esta
história.


1994, Saäsbruck, na Alemanha


"Veja que monumento interessante",diz Robert.
O sol do final de outono começa a descer. Estamos em Saäsbruck, na Alemanha.
"Nćo vejo nada", respondo. "Apenas uma praça vazia".
"O monumento está debaixo de seus pés", insiste Robert.
Olho para o chćo: o calçamento é feito de lajes iguais, sem nenhuma decoraçćo
especial. Nćo quero decepcionar meu amigo, mas nćo consigo ver nada demais
naquela praça.
Robert explica:
"Chama-se O Monumento Invisível. Gravado na parte de baixo de cada uma destas
pedras, existe o nome de um lugar onde judeus foram mortos. Artistas anônimos
criaram esta praça durante a II Guerra, e iam acrescentando as lajes a medida
em que novos locais de extermínio eram denunciados.
“Mesmo que ninguém visse, aqui ficava o testemunho, e o futuro iria terminar
descobrindo a verdade sobre o passado".








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