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A PRINCESINHA
Frances Burnett
SARA
Num desses tristes dias de inverno, em que o nevoeiro,
amarelado e espesso, invade a tal ponto as ruas de Londres,
que é preciso conservar acesos os focos elétricos e as
lâmpadas dos estabelecimentos como durante a noite, uma
carruagem avançava lentamente através das espaçosas ruas da
grande cidade, transportando uma pequenina, muito aconchegada
ao pai.
Sentada à turca, com os pés sob o corpo, os seus olhos,
profundos e sonhadores, iam contemplando quem passava.
Causava impressão aquele olhar numa criança, como ela
era ainda, visto que Sara Crewe tinha apenas sete anos. Mas,
apesar de tão pouca idade, a vivacidade do seu pensamento era
invulgar; sonhava, imaginava coisas extraordinárias, e a sua
cabecinha estava cheia de interrogações que fazia a si
própria, acerca das pessoas crescidas e do vasto mundo que
era seu domínio.
No momento em que começa a presente história, recordava
ela a viagem que acabava de fazer, desde Bombaim até Londres,
com o pai, o capitão Crewe. Revia o grande navio, os hindus
que iam e vinham silenciosamente, as crianças que brincavam
na ponte e algumas senhoras, ainda novas, mulheres de
oficiais, que haviam procurado fazê-la falar e que se tinham
divertido muito com as suas respostas inesperadas.
Mas, o que Lhe parecia ainda bem mais extraordinário,
era pensar que, depois de ter vivido sob o sol escaldante das
Índias e, em seguida, num grande navio, em pleno oceano, se
encontrava, agora, naquela carruagem desconhecida, que a
levava através de ruas onde o dia era tão escuro como a
noite. Isto parecia-lhe um prodígio e, instintivamente,
chegava-se ainda mais ao pai.
- Papá - disse ela, com a sua vozita misteriosa. - Papá!
- Que é, filhinha? - respondeu o capitão Crewe, olhando
carinhosamente para a pequenina, ao mesmo tempo que a
aconchegava mais a si. - Em que pensa a minha Sarinha?
- É aqui o "lugar"? Já chegamos - murmurou Sara,
aproximando-se cada vez mais dele.
- Já, minha filha. Chegamos finalmente.
Pequenina como era, Sara sentiu perfeitamente toda a
tristeza que palpitava na voz do pai.
Parecia-lhe que havia já muitos, muitos anos, que ele
começara a falar-lhe no "lugar” ,como ela dizia sempre. Não
conhecera a mãe, que morrera quando ela tinha nascido, de
forma que nunca sentira a sua falta. O pai, só por si,
parecia-lhe ser toda a sua família - aquele papá tão novo,
tão belo, que a animava quanto podia. Gostavam muito um do
outro e brincavam constantemente os dois. Sara sabia que era
rico, porque
algumas pessoas, julgando que ela não
compreendia, tinham-no dito na sua presença, acrescentando
que, quando fosse crescida, seria, também, rica.
Vivera sempre num magnífico bangalô (1), onde numerosos
criados a saudavam respeitosamente, chamando-lhe "senhora" e
deixando-lhe fazer tudo o que ela queria.
Tivera todos os brinquedos possíveis, animais de toda a
espécie, uma aia (2) que a adorava, e compreendera, pouco a
pouco, que ser rica era possuir tudo aquilo. A palavra
riqueza não evocava nada mais para ela.
Durante a sua curta existência apenas uma ligeira nuvem
toldara o seu belo céu; era a idéia do "lugar" para onde o
pai a levaria um dia.
O clima da Índia é mau para as crianças e, em geral,
mandam-nas, o mais cedo possível, para a Inglaterra, quase
sempre para um colégio.
Sara tinha visto partir outras crianças e ouvira falar
nas cartas que elas escreviam aos pais, lá de muito longe.
Sabia que também havia de partir um dia e, embora algumas
vezes se sentisse entusiasmada com as descrições que o pai
costumava fazer-lhe da longa viagem no vapor e do país para
onde a levaria, o seu coração sofria com a idéia de que tinha
de separar-se dele.
- E o papá não pode vir para o colégio comigo?
- perguntara, quando tinha cinco anos. - Eu ajudava-o a
estudar as suas lições.
- Mas tu não vais ficar muito tempo separada de mim,
Sarinha - respondia ele sempre. - Irás para uma casa muito
bonita, onde encontrarás outras meninas e brincarás com elas.
Mandar-te-ei livros bonitos e tu crescerás tão depressa, que
te parecerá que passou apenas um ano quando te vires tão
crescida e tão sábia, que já possas voltar, para tomar conta
do teu papá:
(1) Casa do campo.(2) Ama.
Esta idéia agradava-Lhe imenso. Governar a casa do pai,
montar a cavalo com ele, presidir à mesa quando desses
grandes jantares, conversarem os dois, ler os seus livros,
era, para ela, a vida que sonhava. E se, para o merecer,
fosse preciso ir-se embora, para esse "lugar", lá longe, na
Inglaterra, muito bem: partiria. A promessa de encontrar
outras meninas deixava-a indiferente. Os livros consolá-la-
iam bem mais que as tais meninas. Preferia os livros a tudo o
mais e passava o tempo a inventar belas histórias que contava
a si própria. Às vezes, contava-as também ao pai, que as
achava muito bonitas.
- Então papá, disse com doçura, se já chegamos, temos de
nos resignar.
Esta frase, tão estranha na boca de uma criança, fez rir
o capitão Crewe, que beijou a filha. No fundo, embora
procurasse cuidadosamente dissimular o seu desgosto, o
capitão não se conformava com a separação. A sua Sarinha, tão
original, tinha sido para ele uma verdadeira companheira e
sentia,
de
antemão,
a
sensação
de
isolamento
que
experimentaria quando, de regresso à Índia, entrasse em casa
e não encontrasse a sua figurinha gentil, vestida de branco,
para o receber, como dantes. Ao pensar isto, apertou-a mais e
mais contra si, enquanto a carruagem chegava à praça
silenciosa, onde se erguia o edifício que marcava o fim da
viagem.
Era uma grande casa cinzenta, exatamente semelhante a
todas as outras casas construídas do mesmo lado, tendo
apenas, como nota particular, sobre a porta de entrada, uma
reluzente placa de cobre, onde, em letras pretas, estava
gravada a seguinte inscrição: MISS MINCHIN, COLÉGIO DE
MENINAS.
- Eis-nos chegados, Sara - disse o capitão, o mais
alegremente que pôde.
Ajudou-a a descer do carro; em seguida, subiram os
degraus de pedra e ele tocou a campainha.
Muitas vezes, durante os tempos que se seguiram, Sara
devia ter dito, de si para si, que a casa era parecida com a
sua proprietária. Tinha um ar respeitável e estava
convenientemente arranjada, mas a habitação era feia e o
mobiliário de um aspecto agressivo; as próprias poltronas
pareciam estofadas com pedras. No vestíbulo tudo era austero,
tudo parecia frio à força de reluzir, mesmo as faces
rubicundas da lua- cheia , que servia de mostrador ao grande
relógio. O salão, onde introduziram o capitão e a filha,
tinha um tapete com desenho geométrico e severo; as cadeiras
eram todas em ângulos, e um maciço relógio de mármore
esmagava com o seu peso o tampo do fogão, que era de mármore
também.
Sentada numa cadeira de acaju, de costas rígidas, Sara
observava, com olhar penetrante, tudo que a cercava.
- Nada disto me agrada muito, papá - suspirou ela. - Mas
estou convencida de que os soldados, mesmo os mais valentes,
não gostam de ir para a guerra...
O capitão Crewe pôs-se a rir. Era novo, alegre, e nunca
se cansava das reflexões espontâneas da filha.
- Minha querida Sara - disse ele. - Que vai ser de mim,
quando não tiver mais ninguém para me falar com tanto juízo?
Porque ninguém é tão ajuizado como tu.
- Mas porque é que as coisas ajuizadas que eu digo o
fazem rir? - perguntou Sara.
-Porque tu és muito engraçada quando as dizes -
respondeu ele, continuando a rir.
E, de repente, pegou-Lhe ao colo e beijou-a muito, ao
mesmo tempo que deixava de rir e os seus olhos brilhavam como
se estivessem cheios de lágrimas.
Nesse mesmo instante, Miss Minchin entrou. E logo Sara
achou que ela era parecida com a casa: grande, fria,
respeitável e feia. Tinha uns grandes olhos, tão expressivos
como os de uma carpa e, nos lábios um sorriso de comando.
Este sorriso acentuou-se mais quando Miss Minchin viu o
capitão e Sara. A senhora que a tinha posto em comunicação
com o capitão Crewe contara-lhe várias coisas interessantes
acerca dele e, entre elas, que era muito rico e estava
disposto a gastar imenso dinheiro com a filha.
- É uma honra para mim ser encarregada da educação de
uma tão linda criança, que logo se vê ser muito inteligente -
disse ela, pegando na mão de Sara e acariciando-a entre as
suas. - Lady Meredith falou-me da sua notável precocidade.
Uma criança inteligente é um verdadeiro tesouro numa casa
como a minha.
Sara ficou imóvel, com os olhos fixos em Miss Minchin.
Como sempre, atravessavam-lhe o cérebro mil pensamentos
diferentes.
"Porque diz ela que eu sou bonita? - pensava a
pequenina. - Eu não sou bonita. A neta do coronel Grange, a
Isabel, é que é bonita: tem as faces cor-de-rosa, com duas
covinhas, e cabelos loiros, compridos. Eu tenho cabelos
pretos, curtos, olhos verdes, e, para mais, sou magra e a
minha pele não é branca. Sou uma das crianças mais feias que
tenho visto. Miss Minchin começa por mentir.”
Sara enganava-se, quando imaginava ser feia. Não se
parecia, certamente, com Isabel Grange, mas tinha um encanto
estranho muito pessoal. Delgadinha e leve, alta para a sua
idade, possuía uma fisionomia profundamente expressiva e
cheia de vivacidade. Os seus cabelos eram negros, espessos e
encaracolados nas pontas; os olhos, de um cinzento-
esverdeado, eram admiráveis, com longas pestanas negras, cuja
cor desagradava talvez a Sara, mas que muita gente apreciava.
Apesar de tudo isto, estava convencidíssima da sua fealdade,
e os elogios de Miss Minchin não produziram o efeito
desejado...
Se eu dissesse que ela é bonita, mentiria, e eu teria a
certeza disso - pensava a pequenina. - Creio mesmo que sou
tão feia no meu gênero como ela o é no seu. Porque mentiu?"
Sara devia ter, mais tarde, a resposta a esta
interrogação,
ao
descobrir
que
Miss
Minchin
repetia
exatamente a mesma frase a todos os pais que lhe confiavam as
filhas.
De pé, ao lado do pai, Sara ouvia-o conversar com Miss
Minchin. As duas filhas de Lady Meredith haviam sido educadas
naquele colégio, e o capitão Crewe decidira-se em virtude das
boas informações recebidas. Internaria ali a filha, mas em
condições especiais: queria que tivesse um quarto, e uma sala
só para ela, uma carruagem, um poney e uma criada para
substituir a aia que cuidava dela na Índia.
- Quanto à sua instrução, estou tranqüilo - disse o
capitão Crewe, sorrindo. -A grande dificuldade estará em
impedir que aprenda demasiado depressa e tudo ao mesmo tempo.
Passa a vida curvada sobre os livros. Não os lê, devora-os: é
uma lobazinha! A sua fome de leitura reclama, sem cessar,
novos livros e são livros para pessoas adultas que ela
prefere, livros franceses ou alemães, tanto como ingleses,
história, biografias, poesias, que sei eu! Tire-lhe esses
livros, Miss Minchin, quando ela ler de mais! É preciso que
passeie no parque, montada no poney ou, então, que vá comprar
uma boneca nova. Gostava de a ver brincar mais vezes com
bonecas.
- Papá - observou Sara - se eu for comprar uma boneca de
dois em dois ou de três em três dias, acabo por ter tantas,
que não posso gostar de todas quanto devo. As bonecas devem
ser como verdadeiras amiguinhas.Emily será a minha amiga.
O capitão olhou para miss Minchin e miss Minchin olhou
para o capitão.
- Quem é Emily - perguntou ela.
- Explica tu quem é, Sara - disse o pai.
Os seus olhos cinzento-esverdeados tinham uma expressão
doce e grave, quando respondeu:
- É uma boneca que eu ainda não tenho, uma boneca que o
papá me vai comprar. Iremos escolhê-la os dois. Chamar-se-á
Emily. Será a minha amiga, quando o papá se for embora; e é
para lhe falar dele que eu a quero.
O sorriso parado de Miss Minchin teve, novamente, uma
expressão admirativa.
- Que espírito tão original - disse ela. - Oh que
deliciosa criança.
- Sim -- disse o capitão, apertando a filha contra o
peito. - É o meu tesouro. Terá muito cuidado com ela, não é
verdade Miss Minchin?
Sara não se separou do pai enquanto ele esteve em
Londres. Saíram juntos, correram as lojas, compraram inúmeras
coisas, muitas mais, certamente, do que precisavam; mas o
capitão, novo e inexperiente, queria que a filha tivesse tudo
quanto achava bonito e, também, tudo o que lhe agradava a
ele, de maneira que, entre os dois, compraram um enxoval
muitíssimo mais luxuoso do que era próprio para uma menina de
sete anos. Tinha vestidos de veludo, guarnecidos a pele,
vestidos de rendas e outros todos bordados; chapéus com
soberbas penas de avestruz, casacos e golas de arminho,
caixas cheias de luvas, de lenços, de meias de seda, e tudo
isto em tal quantidade que, nos estabelecimentos, as
empregadas diziam umas às outras, em voz baixa, indicando a
pequenita de grandes olhos profundos:
-Deve ser uma princesa estrangeira, talvez a filha de
algum rajá da Índia.
E, finalmente, compraram Emily; mas foi preciso ir a
muitas lojas de brinquedos e verem muitas bonecas, antes de a
descobrirem.
-Eu queria que ela não se parecesse com uma boneca -
explicou Sara. - Que ela tivesse o ar de me escutar, quando
eu lhe falasse. O que é mais aborrecido, com as bonecas, é
que elas nunca dão a idéia de ouvirem o que lhes dizemos.
Mostraram-lhe bonecas grandes e pequenas; bonecas com os
olhos pretos e olhos azuis, caracóis escuros e longos cabelos
doirados; bonecas vestidas e outras por vestir.
- O papá compreende - dizia Sara - se a compro sem
vestidos, levá-la-emos à casa de uma costureira que lhe fará
tudo por medida. Os vestidos ficam sempre melhor quando são
provados.
Depois de muito procurar, decidiram os dois ir a pé para
verem melhor as montras(vitrines}, enquanto a carruagem os
seguia
lentamente.
Haviam
já
passado
dois
ou
três
estabelecimentos, sem entrar, quando, ao aproximar- se de uma
loja de aparência modesta, Sara estremeceu e apertou o braço
do pai.
- Ó papá - exclamou ela - aqui está Emily!
A sua carinha tornára-se muito rosada e seus olhos
acinzentados tiveram a mesma expressão de felicidade que
teriam se houvesse reconhecido uma amiga muito querida.
- Ela está à nossa espera - continuou a pequenina. -
Entremos depressa.
- Ó meu Deus - disse o capitão, alegremente
- Quem nos apresentará a Sua Alteza?
- O papá apresenta-me a mim, e eu apresento o papá -
disse Sara. - Mas eu reconheci-a logo à primeira vista, e
talvez ela me tivesse reconhecido também.
A boneca tinha, realmente, um lindo olhar. Era de bom
tamanho, transportava-se com facilidade. Possuía uma soberba
cabeleira castanha-dourada, toda encaracolada, grandes olhos
azuis e pestanas espessas, mas pestanas verdadeiras e não
apenas um simples traço de pincel sobre as pálpebras de
porcelana.
- Não há dúvida, papá - disse Sara, que olhava para a
boneca, face a face. - Não há dúvida de que é a Emily!
Emily foi, pois, comprada e, em seguida, levada a uma
casa de modas para crianças, onde encomendaram para ela um
guarda-roupa tão suntuoso como o de Sara: vestidos de veludo
e de musselina bordada, roupa guarnecida de rendas, luvas,
peles e meias de seda.
- Quero que ela seja amimada - dizia Sara - porque eu
sou sua mãe, ao mesmo tempo em que ela é a minha amiguinha.
Todas estas compras teriam divertido muito o capitão se
não fosse o triste pensamento que o preocupava cada dia mais:
não
tardaria
a
ter
de
separar-se
da
sua
querida
companheirazinha, a quem tão carinhosamente amava.
Uma vez, levantou-se a meio da noite e foi, docemente,
contemplar Sara, que dormia com a boneca nos braços. Os seus
cabelos negros e os cabelos doirados de Emily misturavam-se
sobre a almofada; ambas possuíam lindas camisas de dormir,
enfeitadas com renda, e admiráveis pestanas que Lhes
ensombravam as faces mimosas. Emily tinha de tal forma o ar
de uma verdadeira criança, que o capitão se sentia feliz de a
ver ali, e suspirou profundamente.
"Ó, minha Sarinha - pensava ele - nem tu imaginas, com
certeza, a que ponto o teu papá vai sentir a tua falta!"
No dia seguinte, Sara foi, definitivamente, confiada a
Miss Minchin.
O paquete para a Índia partia no outro dia de manhã. O
capitão Crewe explicou a miss Minchin que os Srs. Barrow e
Skipworth, que o representavam em Inglaterra, estavam à sua
disposição no caso de ela precisar de qualquer esclarecimento
ou conselho, e pagariam todas as despesas de Sara. Ele
próprio escreveria duas vezes por semana à filha, a quem
desejava que fossem proporcionados todos os prazeres que lhe
apetecesse.
-Sara é muito razoável e nunca pedirá nada que possa
ser-lhe prejudicial - explicou ele.
Depois, conduziu a filha aos seus aposentos e
despediram-se. Sentada sobre os joelhos do pai, Sara
segurava-lhe, com as duas mãos, a gola do casaco e olhava
intensamente.
- Parece que queres aprender de cor como eu sou - disse
ele, acariciando-lhe os cabelos.
Ela lançou-se-lhe nos braços e, ao vê-los assim
abraçados, dir-se-ia que não podiam separar-se um do outro.
Quando a carruagem, que levava o capitão, se pôs em
andamento, Sara, sentada no chão, junto da varanda da sua
sala particular, com o queixo apoiado nas mãos, seguiu-a com
o olhar até que ela dobrou a esquina da praça. Emily estava
também sentada ao lado da pequenina, que, de vez em quando,
olhava para ela. E, quando Miss Amélia, irmã de Miss Minchin,
recebeu ordem de ir ver o que fazia a nova educanda,
encontrou a porta fechada.
- Fechei a porta - explicou lá de dentro uma oz
delicada, mas um pouco nervosa. -Peço o favor de me deixarem
ficar completamente só.
Miss Amélia era uma criatura gorducha e baixa, que
admirava imenso a irmã mais velha, de quem sentia certo medo.
Tinha melhor coração do que Miss Minchin, mas por coisa
alguma do mundo seria capaz de lhe desobedecer. Retirou-se
agitadíssima e foi dizer à irmã:
- Nunca vi uma criança tão singular! Imagina que se
fechou à chave, por dentro, e que nem se ouve mexer.
- É preferível isso a gritar e a bater o pé no chão,
como fazem tantas outras - replicou Miss Minchin. -Amimada,
como é, esperava eu que ela pusesse a casa em alvoroço.
Porque, se há alguma criança que tenha sido escandalosamente
estragada com mimo, é esta!
- Já lhe abri as malas e arrumei todas as suas coisas -
disse Miss Amélia. - Nunca vi nada semelhante: casacos com
arminho e zibelina, toda a roupa guarnecida a rendas... Já
viste os vestidos dela? Que te parece?
- Parece-me perfeitamente ridículo - respondeu secamente
Miss Minchin. - Mas tudo isso fará vista, quando Sara marchar
à frente das outras alunas, ao domingo, para ir à missa. Na
realidade, fizeram-lhe um enxoval de princesa!
Lá em cima, fechada no quarto, Sara, sentada no chão,
com Emily ao lado, não desfitava o olhar da esquina da praça
onde o capitão havia desaparecido, sempre a enviar- lhe
beijos, como se não tivesse coragem de terminar.
___UMA LIÇÃO DE FRANCÊS
Quando, na manhã seguinte, Sara entrou na aula,
firmaram-se nela muitos olhos curiosos. Todas as outras
alunas, desde Lavínia Herbert, que com quase treze anos se
considerava já uma senhora, até Lottie Legh, a benjamina, que
contava apenas quatro, tinham conhecimento da sua chegada.
Também sabiam que, a partir daquele dia, Sara era o ornamento
e a glória do Colégio Minchin.
Uma ou duas pequenas haviam, mesmo, tido a sorte de
avistar a criada particular de Sara, chegada na véspera à
noite. Era francesa e chamava-se Mariette.
Lavínia, que tivera artes de passar em frente do quarto
de Sara, quando a porta estava entreaberta, vira a criada
abrir uma caixa que certa loja de modas enviara.
- Que linda roupa - dizia ela, em voz baixa, à sua amiga
Jessie, fingindo que estava a estudar geografia. -Nunca vi
tanta renda! Ouvi a miss Minchin dizer à irmã que tudo aquilo
era disparatado para uma criança. A minha mãe também me
costuma dizer que as crianças devem vestir-se com
simplicidade. Olha para Sara: as rendas aparecem-lhe por
baixo do vestido!
- E tem meias de seda - segredou Jessie, que parecia não
levantar o nariz do atlas. - Que pés tão pequenos! Nunca vi
pés assim!
- Oh - respondeu desdenhosamente Lavínia- é por causa do
feitio especial das pantufas que ela usa.
A minha mãe diz que um sapateiro habilidoso pode fazer
parecer pequenos mesmo os pés que sejam grandes. Eu cá não a
acho nada bonita. Tem os olhos de uma cor esquisita.
- Sim, não é bonita como se costuma ser - respondeu
Jessie, percorrendo ràpidamente toda a classe com o
olhar.Mas, quando se olha uma vez para ela, apetece olhar
mais... Tem umas pestanas tão compridas E os olhos são quase
verdes!
Sara conservava-se, muito ajuizadamente, no seu lugar, e
esperava que lhe indicassem o que devia fazer. Tinham-na
colocado mesmo ao lado de Miss Minchin. Os olhares que se
fitavam nela não a embaraçavam absolutamente nada. Pelo
contrário, divertiam-na e, por sua vez, olhava também para
todas aquelas meninas com interesse.
"Em que pensarão elas - perguntava Sara a si própria.
Gostava de saber se elas gostam de miss Minchin, se as lições
lhe agradam e se alguma tem um papá parecido com o meu... "
Tinha falado muito do pai a Emily, naquela manhã.
- Agora vai ele no mar - dissera ela. - Temos de ser
muito boas amigas e dizer tudo uma à outra. Olha para mim,
Emily; nunca vi olhos tão bonitos como os teus. Mas gostava
muito que pudesses falar!
Sara tinha na cabecinha sonhos e idéias, de que seria já
uma consolação convencer-se de que Emily era viva, ouvindo e
compreendendo tudo quanto ela lhe pudesse dizer.
Quando Mariette lhe vestiu o vestido azul-escuro,
reservado para as horas de aula, e lhe pôs nos cabelos uma
fita da mesma cor, a pequenina aproximou-se de Emily, sentou-
a numa cadeira de palha e colocou-Lhe, diante, um livro
aberto, dizendo:
- Podes ler durante a minha ausência. E vendo a criada
olhar para ela, surpreendida, Sara explicou-lhe, como se
estivesse perfeitamente convencida do que dizia:
- Eu creio que as bonecas são capazes de fazer muitas
coisas, mas não querem que nós saibamos... É muito possível
que Emily leia, fale e ande, mas só o fará quando estiver
sozinha. Tu compreendes, se nós soubéssemos que as bonecas
podem fazer o mesmo que nós, obrigávamo-las a trabalhar. Foi
por isso que elas tomaram, umas com as outras, o compromisso
de guardar segredo... Se tu ficares no meu quarto, Emily não
se mexerá donde está; se te fores embora, ela começará a ler
ou irá à janela ver quem passa. Mas, logo que ouça passos na
escada, voltará para a cadeira, para que a encontremos como a
deixamos.
"Que extraordinária criança!" - pensou Mariette. E,
quando foi almoçar, contou às outras criadas tudo o que se
passara com Sara. Sentia que se dedicaria a valer àquela
pequenina tão original e inteligente, que a tratava com tão
bonitas maneiras.
Mariette já se encontrara ao serviço de outras crianças
que estavam longe de ser assim delicadas. Sara tinha um modo
encantador e meigo de dizer: "Fazes favor, Mariette.
Obrigada, Mariette".
- Agradece-me , explicava a criada às colegas ,como se
eu fosse uma senhora.
E acrescentava:
- Tem o ar de uma princesinha.
Em resumo: Mariette estava encantada com a sua patroa
pequena e contentíssima com o seu novo lugar.
Entretanto, na aula, depois de Sara e as outras alunas
se terem observado à vontade, Miss Minchin bateu na
secretária, com ar solene, e disse:
-Meninas: vou apresentar- lhes a sua nova companheira.
Todas as pequenas se levantaram e Sara fez o mesmo.
- Espero - continuou Miss Minchin - que serão amáveis
para Sara Crewe; esta menina vem de muito longe, da Índia.
Logo que terminem as aulas, travarão conhecimento com ela.
As alunas cumprimentaram Sara, cerimoniosamente. Ela fez
uma pequena reverência e em seguida todas retomaram os seus
lugares, recomeçando a observação com o olhar.
- Sara - disse Miss Minchin, em tom doutoral, aproxime-
se.
A directora tinha pegado num livro, que ia folheando. A
pequenina, delicadamente, foi até junto dela.
- Como o seu pai escolheu uma criada francesa para o seu
serviço particular - começou Miss Minchin, concluo que ele
deseja que a menina estude o francês, a fundo.
Sara parecia um pouco embaraçada.
-Eu penso que o papá escolheu esta criada porque...
julgou que me dava prazer com isso...
- Receio - interrompeu Miss Minchin, com um sorriso
irônico,que a menina seja amimada de mais e que, por isso,
esteja convencida de que tudo e todos pretendem apenas
agradar-lhe. Mas neste caso, a minha convicção é que seu pai
quer que a menina aprenda bem francês.
Se Sara fosse mais velha, e se não estivesse tão
habituada a ser, sempre, escrupulosamente bem educada,teria
podido,em poucas palavras,desiludir Miss Minchin.
Mas a pequenina sentia-se corar: Miss Minchin parecia
tão severa e autoritária, tão convencidda de que Sara não
sabia uma palavra de francês, que ela não ousou contrariá-la:
isso parecia-lhe uma grande indelicadeza... E a verdade,
afinal, era que o capitão Crewe, tendo casado com uma
francesa, começara a falar francês com a filha desde muito
pequenina, de forma que esta falava aquela língua com a maior
facilidade.
Timidamente, Sara tentou ainda explicar:
- Eu... eu não aprendi, pròpriamente, mas...
Um dos maiores desgostos de Miss Minchin era,
exatamente, não saber falar francês e esforçava-se por
dissimular cuidadosamente esta humilhante lacuna. Por essa
razão, não desejava discutir sobre tal assunto, que podia
expô-la a perguntas embaraçosas, feitas pela nova aluna.
- Basta - disse ela, secamente , se não aprendeu, é
preciso aprender imediatamente. O professor, Sr. Dufarge, não
tarda aí. Vá folheando este livro enquanto ele não chega.
Sara sentia as faces escaldarem. Voltou para o seu
lugar, abriu o livro, fitou gravemente a primeira página,
muito decidida a não rir, como teria feito qualquer menina
mal educada, mas, em todo o caso, era engraçado ver-se
condenada a soletrar, como qualquer principiante "le père"...
"la mère"... "le fils"... palavras que ela conhecia
perfeitamente, havia já tanto tempo.
Miss Minchin não deixava de a observar.
- Parece descontente, Sara - disse ela -, e eu estou
aborrecida por ver que a menina não tem vontade de estudar
francês.
- Pelo contrário, minha senhora, tenho vontade, mas... -
respondeu Sara, tentando novamente explicar-se.
-Não diga sempre "mas" quando falam consigo ,exclamou
Miss Minchin,não a deixando concluir. E ordenou:-Pegue no
livro.
Sara, com a maior obediência, recomeçou a ler, com
aplicação "la fille", "le frère", "la soeur"...
Ao mesmo tempo ia pensando: "Talvez eu possa explicar-
me, quando o Sr. Dufarge vier...”.
Efetivamente, o professor de francês chegou pouco
depois. Já não era novo; tinha um ar distinto e, mal fixou
Sara, compreendeu logo que se tratava de uma criança invulgar
e sentiu, por ela, um vivo interesse.
-Tenho, então, uma nova aluna, não é verdade? -
perguntou ele.
-O pai desta menina, o capitão Crewe, tem um grande
empenho em que ela comece a aprender francês - explicou Miss
Minchin. Mas eu receio, que, por um capricho de criança, não
esteja disposta a isso.
- É pena - disse o professor, dirigindo-se, gentilmente,
à pequenita. E continuou:-Talvez que eu consiga convencê-la
quando principiarmos as lições, porque o francês é uma bela
língua.
Sara foi até junto do Sr. Dufarge. Começava a faltar-lhe
a coragem, e ergueu para ele os seus grandes olhos
suplicantes. Tinha a certeza de que o professor ia
compreender
imediatamente,
e
começou,
com
a
maior
simplicidade, a explicar tudo num francês correto e límpido:
Miss Minchin não tinha compreendido; o que ela queria dizer
era que não tinha aprendido o francês nos livros, mas sim com
o pai e os amigos do pai, que lhe falavam sempre nessa
língua. Por isso, aprendera a ler e a escrever francês ao
mesmo tempo que aprendera inglês. O pai gostava muito daquela
língua porque a sua querida mamã, que ela não chegara a
conhecer, era francesa. Tinha o maior prazer em aprender tudo
o que o Sr. Dufarge entendesse por bem ensinar-lhe, e o que
ela pretendera explicar a Miss Minchin era apenas, que já
conhecia todas as palavras que vinham naquele livro.
Ao dizer isto, Sara mostrou ao professor o livrinho que
a diretora lhe havia dado.
Ao ouvir falar tão corretamente, Miss Minchin estremeceu
e pôs-se a olhar para ela por cima das lunetas, com ar de
pessoa quase escandalizada.
Quanto ao Sr. Dufarge, sorria com um sorriso de
verdadeira satisfação: ao escutar aquela voz fresquinha de
criança falar nitidamente a sua língua natal, pareceu-lhe ter
sido transportado, de repente, para a sua terra que, por
vezes, nos dias sombrios e brumosos do inverno inglês, lhe
parecia tão distante... Mal a pequenina acabou, tomou-Lhe o
livro das mãos e envolveu-a num olhar de bondade e simpatia.
Depois, dirigindo-se a Miss Minchin, disse:
- Pouco terei a ensinar-lhe. Fala francês como uma
francesa. Tem uma pronúncia perfeita!
- Porque foi que a menina não me disse isso?
-exclamou Miss Minchin, envergonhada.
- Eu quis dizer... - respondeu Sara, mas não fui
capaz...
Miss Minchin sabia, perfeitamente, que a pequenina
tentara explicar tudo e que, se o não fizera, a culpa fora
apenas sua.
Mas vendo que as outras alunas tinham compreendido o que
se passara, sem perder nada daquela cena, e que Lavínia e
Jessie sorriam por detrás dos livros, a diretora sentiu-se
irritada ao máximo.
- Silêncio -- gritou, dando uma pancada na secretária.
Não quero ouvir ninguém a rir!
Desde esse dia, nasceu na sua alma um rancor surdo
contra a aluna de quem se mostrara, a principio, tão
orgulhosa.
HERMENGARDA
No decorrer daquela manhã tão agitada, Sara reparara
numa condiscípula da sua idade, cujos olhos, de um azul muito
pálido, não se desfitavam dela. Era uma pequena gorda, com
aparência de pouco inteligente, mas que possuía uma boquita
redonda, sempre com um jeito de mimo. Usava os cabelos
louros, muito claros, apertados em grossa trança, atada por
uma fita; tinha enrolado a trança em volta do pescoço e com
os cotovelos apoiados sobre a estante, ia mordiscando as
pontas da fita, ao mesmo tempo que olhava para Sara, com
espanto e admiração.
Quando o Sr. Dufarge se dirigira a Sara, a pequenina
estremecera e parecia um pouco ansiosa; mas, ao ouvi-la
responder-lhe em francês, tornava-se vermelha de surpresa.
Ela, que chorava tantas lágrimas amargas, ao verificar a
inutilidade dos seus esforços para se lembrar da tradução
francesa das palavras mãe ou pai, como não havia de
considerar um verdadeiro prodígio a nova companheira, a quem
não somente aquelas palavras como muitas outras pareciam
familiares, e que sabia conjugar os verbos e misturá-los com
os adjetivos, como se se tratasse de um simples passatempo?
Absorvida pela contemplação de Sara, continuava a morder
a fita com tal ardor, que chamou a atenção de Miss Minchin, a
qual, satisfeita por ter encontrado um pretexto para
desabafar a sua irritação, lhe ralhou severamente:
-Que significam esses modos, Miss Saint-John? Tire os
cotovelos de cima da estante, a fita da boca, e ponha-se
direita!
A pobre Miss Saint-John estremeceu de novo; Lavínia e
Jessie riam baixinho, olhando para ela, o que a fez corar
ainda mais. As lágrimas quase saltavam dos seus pobres olhos
de criança sem defesa. Sara percebeu tudo imediatamente, pois
não podia ver sofrer ninguém sem desejar imediatamente ir em
seu auxílio.
O pai costumava dizer:
"Se Sara fosse um rapaz e houvesse nascido uns anos mais
cedo, teria percorrido o mundo, de espada na mão, para
libertar os oprimidos e castigar os maus.”
Não admira, portanto, que durante toda a manhã ela
tivesse seguido com o olhar aquela sua nova companheira
gorducha e triste. Viu logo que a outra tinha grande
dificuldade em aprender as lições e que havia poucas
probabilidades de vir a ser a glória do colégio... A lição de
francês, em especial, foi quase uma tragédia... A pronúncia
de miss Saint-John fazia sorrir o Sr. Dufarge, mesmo sem ele
querer, e Lavínia, Jessie e as outras alunas troçavam ou
olhavam-na com desdém. Sara era a única que se mantinha
séria. Fazia de conta que não ouvia a sua desventurada
condiscípula que disse: "lé bon pang" em vez de "le bon paim"
e outras coisas neste gênero. Tinha muito amor-próprio e uma
noção muito viva da dignidade pessoal; por isso revoltava-se
ao ouvir as risadas das outras, e ao ver a cara envergonhada
e aflita de miss Saint-John.
"Isto não tem graça nenhuma - pensava ela, debruçando-se
sobre o livro. - Não percebo por que motivo se riem assim".
Depois da aula, quando as alunas se reuniram, em grupos,
Sara foi procurar miss Saint-John. Ao vê-la sozinha e triste,
metida no vão de uma janela, dirigiu-se a ela e procurou um
pretexto para conversarem. Disse-lhe apenas as palavras
vulgares que qualquer menina da sua idade diz a outra
naquelas circunstâncias, mas a sua voz possuía um som doce e
afetuoso, ao qual ninguém podia ficar insensível.
- Como se chama? - perguntou.
Para compreender o espanto de miss Saint-John, é preciso
não esquecer que, nos colégios de meninas, uma "nova" é
sempre, ao princípio, um ser um tanto misterioso; que todo o
colégio, na véspera, à noite, falara da "nova" e repetira, a
seu respeito, histórias mais ou menos contraditórias, até ao
momento em que o sono fizera calar a curiosidade geral. A
chegada de uma aluna que tem carruagem, um "poney", uma
criada particular, e que vem da Índia, não é um acontecimento
banal.
- Chamo-me Hermengarda Saint-John - respondeu a outra.
-E eu Sara Crewe. O seu nome é bonito e parece-se com os
que encontramos nos livros.
- Gosta dele ,balbuciou Hermengarda. Eu... também gosto
do seu.
A infelicidade de Miss Saint-John era ter um pai
notàvelmente instruído e inteligente. Às vezes, esse fato
parecia ser uma verdadeira calamidade. Um pai que aprendeu
tudo quanto quis, fala sete ou oito línguas e tem uma vasta
biblioteca, a qual se pode dizer que sabe de cor, espera,
naturalmente, que a filha saiba, pelo menos, as suas lições
quotidianas,e se lembre,quando mais não seja,de alguns fatos
históricos,ou faça,sem erros,um ponto escrito de francês.
Hermengarda era, pois, uma grave preocupação para o Sr.
Saint-John, que não podia explicar a si próprio como uma
filha sua era tão completamente desprovida de vivacidade
intelectual e incapaz de triunfar fosse em que fosse.
A pobre pequena era, sem contradição possível, a pior
aluna do colégio.
- No entanto, é preciso que ela chegue a aprender
qualquer coisa! - dizia o pai a Miss Minchin.
Em conseqüência desta recomendação, Hermengarda passava
a maior parte do tempo a chorar ou a ser castigada. O pior
era que, se conseguia aprender qualquer coisa, esquecia-a
cinco minutos depois ou,a maioria dos casos, ficava sem
compreender uma única palavra. Não admira, pois, que ela
contemplasse Sara quase com respeito.
- Fala francês, não é verdade? - perguntou timidamente
miss Saint-John.
Sara sentou-se num dos bancos do vão da janela, cruzou
as pernas e, unindo as mãos sobre os joelhos, respondeu:
-Sei alguma coisa de francês porque ouvi sempre falar
esta língua à minha volta. Se a menina estivesse no meu
lugar, ter-lhe-ia acontecido a mesma coisa.
- Oh isso não! Eu não era capaz - exclamou Hermengarda.
Nunca consegui aprender.
- Porquê ? perguntou Sara, com curiosidade.
Hermengarda abanou a cabeça, fazendo saltitar a trança
sobre os ombros, e continuou:
- Não ouviu, há pouco, a minha lição? É sempre assim.
Não sou capaz de pronunciar bem as palavras. São muito
difíceis...
Calou-se um momento: depois acrescentou, com um tom de
respeito na voz:
- A menina é muito inteligente, não é?
Sara olhou, através do vidro, a praça umida, onde os
pardais esvoaçavam sobre as grades enferrujadas e os ramos
das árvores enegrecidas pela fuligem. Refletia. Ouvira dizer
muitas vezes que era inteligente; perguntava agora a si
própria se era verdade e como tinha isso acontecido... Por
fim, respondeu:
- Não sei. não sou capaz de lhe explicar...
Vendo a expressão desapontada da bondosa carita de faces
rechonchudas, Sara teve vontade de rir e mudou de conversa.
- Gostavas de ver Emily? - perguntou ela à outra,
tratando-a familiarmente.
- Quem é Emily? - interrogou Hermengarda por sua vez.
- Vem ao meu quarto e verás - disse Sara, estendendo-lhe
a mão.
Dirigiram-se as duas para a escada e, enquanto
atravessavam o vestíbulo, Hermengarda foi perguntando, já com
mais familiaridade:
- É verdade que tu tens uma sala de recreio só para ti?
- É - respondeu Sara. - Meu pai recomendou isso a Miss
Minchin porque eu, para me distrair, invento histórias e
conto-as a mim própria; não gosto que me ouçam. Quando penso
que está alguém a escutar, já não sinto prazer nenhum.
Tinham chegado ao corredor que conduzia ao quarto de
Sara. Ao ouvir o que ela dissera, Hermengarda parou, como que
sufocada, e exclamou:
- Tu inventas histórias?! Falas francês e inventas
histórias? Isso é verdade?
Sara olhava para ela, admirada, e apenas disse:
- Mas, inventar uma história é uma coisa muito fácil,
que qualquer pessoa pode fazer. Tu nunca experimentaste?
De súbito, apertou mais a mão da companheira e disse,
baixando a voz:
- Aproximemo-nos da porta sem fazer barulho; eu vou
abrir de repente... Talvez a possamos surpreender.
Ao dizer isto, ria, mas lá bem no seu íntimo tinha uma
secreta esperança que lhe fazia brilhar mais os olhos. Embora
não fizesse a mais leve idéia do que se tratava, Hermengarda
notou a transformação da sua nova amiguinha e sentiu-se
impressionada. Que seria? Fosse o que fosse, devia ser uma
coisa importantíssima...
Por isso, seguira Sara; andando nos bicos dos pés e toda
tremula de comoção.
Atingiram a porta sem fazer o menor ruído. Sara abriu
bruscamente e, aos olhos das duas pequenas, surgiu o quarto,
muito tranqüilo e bem arrumado, com um bom lume no fogão, a
arder serenamente, e uma admirável boneca sentada a um canto
da chaminé, na atitude de quem lia um livro atentamente.
- Oh! ela voltou para a cadeira antes que nós a
pudéssemos ver! - disse Sara, desapontada. É sempre assim!
São mais rápidas do que um relâmpago...
Os olhos de Hermengarda iam, pasmados, de Sara para a
boneca e da boneca para Sara.
- Ela anda? - perguntou a pequenina, cada vez mais
espantada.
- Está claro que sim - respondeu Sara. Pelo menos, estou
convencida disso, ou procuro convencer-me e, nesse caso, para
mim é como se fosse verdade. Tu nunca fizeste assim para
acreditares em qualquer coisa?
- Não - declarou Hermengarda. - Explica-me como é.
Miss Saint-John estava de tal forma encantada com Sara,
que olhava para ela sem prestar a menor atenção a Emily, e,
no entanto, Emily era a mais linda boneca que ela até então
tinha visto.
- Sentemo-nos - disse Sara - Vou tentar ensinar-te. É
tão fácil que, depois de começar, já não somos capazes de
parar e continuamos todos os dias... É delicioso. Escuta,
Emily apresento-te Hermengarda Saint-John. Hermengarda,
apresento-te Emily. Gostarias de lhe pegar um bocadinho ao
colo?
- Oh! Gostava muito - disse Hermengarda. Ela é tão
bonita!
Sara pôs-lhe a boneca nos braços. Hermengarda nunca
julgara poder viver uma hora tão agradável como a que passou
ali, até ao momento em que a sineta as chamou de novo ao rés-
do-chão.
Sara, sentada sobre o tapete, em frente do fogão, com os
olhos brilhantes e as faces coradas, contou-lhe mil coisas
maravilhosas. Falou-lhe da viagem que fizera e da Índia! Mas
o que fascinava Hermengarda era tudo quanto a sua nova
amiguinha inventava acerca das bonecas que, afirmava ela,
andavam, falavam, e faziam tudo quanto queriam, quando
ficavam sozinhas, escondendo ciosamente o seu poder e
tornando-se imóveis, num abrir e fechar de olhos, logo que
alguém entrava no quarto onde elas se encontravam.
- Compreendes - dizia Sara, com o ar mais sério deste
mundo. É uma espécie de magia.
E de repente, ao contar-lhe como descobrira Emily, Sara
mudou de expressão. Dir-se-ia que uma nuvem viera ensombrar a
claridade dos seus grandes olhos. Soltou um suspiro tão
profundo, que mais parecia um gemido; depois cerrou muito os
lábios, como num grande esforço de vontade. Hermengarda
sentiu confusamente que, neste momento, se Sara fosse uma
criança vulgar, teria chorado. Mas tal não sucedeu.
- Estás triste - perguntou timidamente miss Saint-John.
- Estou - respondeu Sara, após um minuto de silêncio.
-E explicou:
- Mas não é no corpo...
Depois, numa voz muito baixa, que ela queria manter
firme,perguntou :
- Gostas muito do teu pai?
Os cantos da boca de Hermengarda contrairam-se. Ela
compreendia perfeitamente que a sua dignidade de aluna de um
colégio de primeira categoria não lhe permitia responder a
verdade: nunca fizera a si própria semelhante pergunta e
preferia tudo a passar dez minutos junto do pai. A pobre
pequena estava seriamente embaraçada.
- Quase nunca o vejo - murmurou. – Ele assa a vida na
biblioteca, a ler.
-Pois eu gosto do meu acima de tudo no undo - disse
Sara. - Aqui tens a razão por que stou triste: é por ele
haver partido.
Ao dizer isto, escondeu o rosto entre as mãos e icou
imóvel.
"Desta vez, vai chorar...” , pensou Hermengarda,
assustada.
Mas não; Sara não verteu uma lágrima.Os Cabelos negros
tombavam-lhe sobre a cara,e ela mantinha-se na mesma
imobilidade.Depois ,sem levantar a cabeça , foi dizendo:
- Prometi-lhe ser corajosa. E hei-de sê-lo! Precisamos
sempre de sofrer qualquer coisa na vida...
Pensa no que sofrem os soldados!O papá é um oldado. Se
houver guerra, tem de suportar a fadiga, a sede e talvez
ferimentos graves. Pois bem, tenho a certeza de que não
diria uma única palavra para se lamentar. Nem uma!
Hermengarda contemplava-a e experimentava or ela um vago
sentimento de adoração. Sara
era
ão
maravilhosamente
diferente de todas as pessoas ue a rodeavam!
Não tardou que erguesse a cabeça e sacudisse os cabelos
sorrindo de forma estranha.Por fim disse:
-Se eu puder falar muito e contar-te tudo quanto passa
pela cabeça fazendo de conta que acredito no que digo,
sentir-me-ei
mais corajosa.Isto não faz esquecer, mas dá
força.
Sem saber por que, Hermengarda sentiu a garganta
apertada e os olhos úmidos.
- Lavínia e Jessie são amigas íntimas - disse
ela com voz alterada. - Seria tão bom se nós também o
fôssemos... Queres que eu seja tua amiga?
Tu és inteligente e eu sei, perfeitamente, que sou a
aluna mais estúpida do colégio,
mas... eu gosto
tanto de ti!
- Ainda bem! Não imaginas como estou contente - exclamou
Sara. - Sim, vamos ser muito amigas. E, queres saber? -
Ao dizer isto a expressão iluminou-se-Lhe. -Vou ajudar-
te a estudar as lições de francês!
LOTTIE
Se Sara fosse uma criança semelhante à maioria, a vida
no Colégio de Miss Minchin, tal como estava organizada, teria
sido perigosa para ela.
Era tratada não como uma criança, mas como uma hóspeda
de cerimônia, cuja presença honrava a casa. Se ela fosse
caprichosa e altiva, tanta lisonja e mimo torná-la-iam
insuportável. Se tivesse disposição para a preguiça, não
teria feito nem aprendido absolutamente nada. No seu íntimo,
Miss Minchin não gostava dela, mas era suficientemente
prudente para fazer ou dizer qualquer coisa que pudesse
desgostar tão preciosa aluna. Porque ela bem sabia que, se
alguma vez Sara mandasse dizer ao pai que o colégio Lhe
desagradava ou que se sentia ali infeliz, o capitão Crewe a
viria buscar imediatamente.
Miss Minchin chegara à conclusão de que a melhor maneira
de conquistar a simpatia de uma criança é satisfazer-lhe
todas as vontades, era elogiá-la e deixá-la fazer tudo quanto
ela quiser. Em conseqüência disto, Sara era constantemente
felicitada pela sua aplicação ao estudo, pelas suas boas
maneiras, pela amabilidade com que tratava as condiscípulas e
pela generosidade com que socorria os mendigos que Lhe pediam
esmola; o mais simples dos seus atos era posto na lua, como
se costuma dizer, e se ela não fosse, de seu natural,
ajuizada e prudente, tornar-se-ia bem depressa uma pequena
vaidosa e antipática.
Mas no seu cérebrozinho havia os mais sensatos
pensamentos, sobre ela própria e sobre o destino
que lhe coubera neste mundo. De vez em quando
chegava mesmo a falar nisto a Hermengarda.
- É o Destino que prepara tudo na vida - costumava
dizer. - Eu, por exemplo, recebi todas as
boas qualidades: gosto de estudar e aprendo fàcilmente o
que me interessa; tenho um papá bom, belo e inteligente, que
me dá tudo quanto eu quero. É possível, mesmo que, no fundo,
eu não seja boa; mas quando se receberam todos os dons que eu
recebi e toda a gente nos anima, como não havemos também de
ser amáveis? Pergunto a mim própria se sou realmente uma
menina gentil ou se, pelo contrário sou uma criança
insuportável. - e, ao dizer isto, a sua fisionomia
tomavaumaexpressão de grande perplexidade.Talvez que eu seja
terrível e nunca ninguém o chegue a saber, simplesmente
porque nunca tive uma contrariedade na vida!
- Lavínia também não tem contrariedades replicou
Hermengarda, em tom insistente - e Deus sabe como ela é
desagradável!
Sara coçou a ponta do narizinho com ar de quem reflete,
e ficou a meditar sobre aquele problema.
Por fim, disse:
- Talvez seja por ter crescido...
Ela tinha ouvido dizer a Miss Amélia que o rápido
crescimento de Lavínia afetara a sua saúde , seu gênio e,
caridosamente, aproveitara esta benévola explicação.
A verdade, porém, é que Lavínia tinha imensos ciúmes de
Sara. Até à vinda desta, fora ela a pessoa mais importante do
colégio. As condiscípulas obedeciam-lhe sempre, porque
Lavínia era capaz de se mostrar odiosa, se lhe resistissem.
Tiranizava as mais pequeninas e tomava grandes ares para com
as outras da sua idade. Era bonita e as suas "toaletes" eram
mais luxuosas do que as das outras, chamando a atenção quando
saíam a passear, até ao momento em que apareceram os casacos
de veludo, os regalos de peles, as plumas de avestruz de
Sara, e em que esta foi colocada, por Miss Minchin, à frente
das outras alunas. Lavinia sofrera com isso uma decepção
enorme.
Depois, à medida que o tempo ia passando, tornava-se
evidente que Sara era, na realidade, superior, não porque se
mostrasse desagradável mas, ao contrário, porque nunca o era.
Jessie, sem querer, tinha excitado o furor da sua amiga
intima, dizendo:
- É preciso fazer justiça a Sara Crewe. Não é vaidosa, e
tem razão para o ser, como nenhuma de nós. Eu, por mim, penso
que não resistiria à vaidade, se tivesse tantas coisas
bonitas e fosse tão admirada como ela é. Chega a ser vergonha
a maneira como Miss Minchin a põe em evidência quando vêm
visitas ao colégio.
"-Sara, tem de vir à sala contar coisas da Índia a M. me
Musgrane...” - disse Lavinia, que imitava maravilhosamente
Miss Minchin. E continuou:-"A nossa Sarinha vai falar francês
com Lady Pitcin... Tem boa pronúncia...” A verdade é que não
foi no colégio que ela aprendeu francês. Nem precisou, para
isso, de grande inteligência; ela própria diz que nunca
estudou e aprendeu simplesmente ouvindo conversar o pai.
Quanto a este, não acho que o facto de ser oficial da Índia
baste para o tornar notável.
- Mas - disse lentamente Jessie - ele matou tigres. Até
matou aquele de que tiraram a pele que está no quarto de
Sara. É por isso que ela a estima tanto; deita-se-lhe em
cima, acariciando a cabeça e fala-lhe, como se falasse a um
gato.
- Sara passa o tempo a fazer maluquices - disse Lavínia,
com aspereza. - A mamã diz que esta mania que ela tem de
inventar histórias é ridícula e, quando for crescida, não
passará de uma excêntrica.
Efetivamente, Sara ignorava a vaidade. Tinha uma
almazinha afetuosa e partilhava generosamente com os outros
os seus dons e os seus privilégios. As alunas menores,
habituadas a ser censuradas e empurradas pelas mais velhas,
sabiam que a única das suas condiscípulas que as não fazia
chorar, era exatamente a mais invejada de todas. Sara tinha
um coração maternal, e quando alguma caía ou esfolava os
joelhos, encontrava sempre, junto dela, ajuda, consolações e
algum bombom ou caramelo que tirava da algibeira do
bibe(espécie de avental para crianças destinado a evitar que
os vestidos se sujem). Nunca as repelia nem fazia alusões
trocistas ao fato de serem ainda pequeninas.
-Quando se tem quatro anos, têm-se quatro anos ,dissera
ela, serenamente a Lavínia, num dia em que esta dera uma
bofetada a Lottie (que feia ação!), chamando-lhe empecilho. E
continuara, com um olhar cheio de convicção - Mas no ano
seguinte terá cinco, depois seis e só faltarão catorze anos
para ter vinte!
- Meu Deus - exclamou Lavínia, trocista -, como tu sabes
fazer bem cálculos!
Mas ninguém podia negar que dezasseis e quatro fazem
vinte, e vinte anos era a idade com que as alunas mais
audaciosas do Colégio Minchin sonhavam.
Assim, as pequeninas adoravam Sara. Muitas vezes haviam
já sido convidadas - elas que eram sempre desdenhadas! - a
tomar chá no seu quarto, a brincar com Emily, a lanchar,
utilizando o serviço de chá de Emily, um de flores azuis e
cujas
chávenas continham uma respeitável quantidade de chá
muito doce. Nunca nenhuma das petizas vira um serviço de chá
de boneca tão bonito.
E, a partir desse dia, Sara foi considerada como uma
rainha ou uma deusa, por todas as alunas da classe infantil.
Lottie Legh adorava-a a tal ponto que, se Sara não
tivesse um coração maternal, ter-se-ia irritado com tantas
manifestações de carinho.
Lottie fora internada ali por um pai ainda muito novo e
frívolo, que achara ser aquela a melhor solução para a
pequenina. A mãe morrera e, como desde a primeira hora da sua
vida, fora considerada apenas como um bonito brinquedo, como
um macaquinho ou um cãozinho de luxo, tornara-se uma criatura
intolerável. Quando ela queria ou não queria qualquer coisa,
punha-se a berrar, e como apetecia sempre o que não podia
ter, e não queria, nunca, o que lhe convinha, era raro que a
sua voz estrídula não se ouvisse em qualquer canto da casa.
Esta pobre criança descobrira, não se sabe como
- ou ouvira, sem dúvida, dizê-lo a seu pai - que uma
menina que não tem mãe, deve ser lamentada e amimada. Fizera
desta descoberta uma arma de que se servia a propósito de
tudo.
A primeira vez que Sara se ocupou dela, foi certa manhã
em que, passando em frente de um quarto, ouvira Miss Minchin
e Miss Amélia esforçando-se por fazer cessar a gritaria da
criança, que, percebia-se perfeitamente, se recusava a ceder.
E recusava-se tão enérgicamente, que Miss Minchin era
obrigada a gritar também, num tom severo e autoritário, para
se fazer ouvir.
- Porque chora ela? - perguntava Miss Minchin.
- Oh Oh Oh - foi a resposta. - Não tenho mãezinha!
- Vamos, Lottie - dizia, já impaciente, Miss Amélia. -
Cala-te. Não chores mais, não chores mais!
- Oh! Oh! Oh - recomeçava Lottie, com toda a força dos
seus pulmões. -Eu já não tenho mãezinha!
- O que ela precisava era de chicote - exclamou Miss
Minchin. -Vais apanhar, demônio!
Ao ouvir isto, Lottie gritou com mais força do que
nunca. Miss Amélia sentiu lágrimas nos olhos. A voz de Miss
Minchin tornou-se terrível.
De repente, a diretora, impotente e indignada, saiu do
quarto, deixando Miss Amélia a contas com a indisciplinada
pequena.
Sara parou no vestíbulo e perguntava a si própria se
devia entrar; conhecia Lottie havia pouco tempo mas, apesar
disso, pensava que talvez conseguisse consolá-la.
Ao sair do quarto, Miss Minchin viu Sara e ficou um
pouco contrariada com a idéia de que gritara talvez
demasiadamente e fora bastante áspera, com prejuízo da sua
própria autoridade.
- Ah! A menina Sara está aqui - exclamou com um sorriso
que pretendia ser amável.
- Parei - explicou Sara ~- porque reconheci a voz de
Lottie e pensei que, talvez, não tenho a certeza, eu pudesse
acalmá-la. Dá licença que experimente, Miss Minchin?
- Se for capaz disso, será quase um milagre... Mas
duvido respondeu secamente Miss Minchin, repuxando os lábios.
Depois, vendo que Sara ficara um pouco admirada com
aquele acolhimento tão frio, mudou imediatamente de atitude e
disse, num tom amável:
- É verdade que a menina tem habilidade para tudo! Tenho
a certeza de que será bem sucedida. Entre!
E afastou-se para deixá-la passar.
Quando Sara entrou no quarto, Lottie, deitada no chão,
gritava e batia com os pés no sobrado, com quanta força
tinha. Junto dela, estava ajoelhada Miss Amélia, vermelha, a
transpirar, como se fosse a própria estátua da consternação.
Procurava por todos os meios fazer com que a pequena
sossegasse e passava, sem transição, da doçura à severidade.
- Pobre criança!- dizia ela. - Eu bem sei que não tens
mãe...
Logo a seguir, em tom diferente, ordenava:
-Se não te calas, Lottie, és castigada! Pobre anjinho...
Vamos, vamos... És feia, e má! Vais apanhar... Tu verás!
Sara aproximou-se tranquilamente. Não sabia ainda o que
faria, mas estava convencida de que era preferível não dizer
assim, ao acaso, tantas coisas contraditórias.
- Miss Amélia - disse ela, em voz baixa. Miss Minchin
deu-me licença para eu ver se sou capaz de acalmá-la... Posso
experimentar?
Miss Amélia lançou-lhe um olhar desesperado e balbuciou:
-Julga que será capaz?
- Eu não sei - murmurou Sara. - Mas vou tentar, mesmo
assim...
Miss Amélia levantou-se, ofegante; as perninhas de
Lottie continuavam a agitar-se violentamente.
- Vá-se embora, devagarzinho - pediu Sara. Ficarei ao pé
dela.
- Oh Sara - choramingava Miss Amélia - Nunca tivemos uma
aluna tão difícil de aturar. Não podemos continuar a tê-la
aqui.
Mas, ao mesmo tempo em que falava, ia-se esquivando,
satisfeita por ter encontrado uma boa desculpa para o fazer.
Sara, de pé, junto da pequena fúria, olhou para ela
durante alguns momentos, sem falar. Depois, sentou-se no
chão, ao lado da outra, e esperou. Além dos gritos raivosos
de Lottie, não se ouvia mais nada no quarto. E a pequenina,
habituada a ouvir as pessoas crescidas suplicarem-lhe que se
calasse, ou ralharem-Lhe severamente durante os seus ataques
de mau gênio, ameaçando-a e acarinhando-a, assustadas com os
seus caprichos, não compreendia... Gritar com todas as suas
forças, bater com os pés no chão e verificar que a única
pessoa presente parecia não lhe ligar a menor importância,
era um fenômeno digno da sua atenção!
Entreabriu os olhos, até então muito fechados, e viu
quem estava junto dela: era apenas outra criança, exatamente
aquela pequena que era dona de Emily e de tantas outras
coisas lindas. Essa outra criança olhava para Lottie e
parecia refletir profundamente.
Lottie quis recomeçar a sua gritaria, mas a calma que
reinava na sala e a serenidade da fisionomia de Sara
impressionaram-na, e o seu primeiro grito não teve força nem
convicção.
- Eu-não-te-nho-mãe-zinha - recomeçou ela, numa voz
bastante mais baixa.
Sara continuou a olhar fixamente para Lottie, mas nos
seus olhos havia uma expressão de simpatia.
- Eu também não tenho mãe - disse ela.
Esta resposta espantou a outra. Cessou de agitar as
pernas e ficou imóvel, a olhar para Sara. Uma idéia nova
basta, algumas vezes, para fazer calar uma criança que chora
e que coisa alguma pudera até então acalmar.
Deve dizer-se também que se Lottie detestava a
autoritária Miss Minchin e a indulgente Miss Amélia, tinha,
em compensação, um "fraco" por Sara, apesar de conhecê-la
pouco.
Não queria, ainda, ceder, mas os seus pensamentos
tomavam um novo rumo e, depois de um soluço amuado,
perguntou:
- Onde está a tua mãe?
Sara não respondeu logo. Haviam-lhe dito que a mãe
estava no Céu; meditara bastante sobre esse assunto e acabara
por formar uma opinião muito sua.
- Está no Céu - disse, por fim. - Mas tenho a certeza
que ela desce algumas vezes à Terra para me vir ver; eu é que
não a vejo. Deve suceder o mesmo com a tua. Quem sabe se a
tua mãe e a minha nos estão a ver neste momento? Talvez se
encontrem aqui as duas, neste quarto...
Lottie ergueu-se bruscamente e olhou em volta de si. Era
uma bonita criança de cabelos encaracolados e olhos redondos,
que lembravam miosótis orvalhados.
Mas, se a sua mamã ali estivera durante a meia hora que
acabava de decorrer, não a tinha comparado a um anjo do Céu,
com certeza...
Sara continuava a falar, e fazia-o com tal convicção,
que Lottie escutava-a atentamente, mesmo sem querer.
Haviam-lhe explicado que a mãe tinha umas grandes asas,
e mostrado estampas onde se viam umas senhoras vestidas de
branco, a quem chamavam anjos. Mas o que Sara contava parecia
ser uma coisa verdadeira, como se falasse de um belo país
onde viviam pessoas a valer.
- Lá em cima há muitos campos, todos em flor
- dizia ela, abandonando-se à sua imaginação e falando
como se sonhasse. - São campos de lírios, e, quando passa
sobre eles a brisa, esta fica toda perfumada. E, como a brisa
sopra constantemente, respira-se sempre aquele delicioso
perfume. As crianças brincam nos campos e colhem ramos de
lírios para fazer coroas. Todos os caminhos deste país
brilham. E depois, ninguém se fatiga, mesmo que tenha andado
muito, Quem quiser, pode voar. Há muros de pérolas e ouro em
toda a volta da cidade, mas são baixinhos, que é para nos
podermos debruçar, olhar para a Terra, cá em baixo, e enviar
sorrisos e mensagens carinhosas às pessoas que estimamos.
Fosse qual fosse a história que Sara tivesse começado,
Lottie, certamente, não gritaria mais, e ter-se-ia deixado
prender pelo encanto da narrativa, mas não se pode negar que
esta história era mais bonita do que as outras. Entretanto,
Lottie aproximara-se mais de Sara,ouviu-a até ao fim, sem
perder uma só palavra. Quando acabou, pareceu-lhe que tinha
sido muito pequena, e fez uma cara pouco tranqüilizadora.
- Eu quero ir para esse país - gritou ela. Eu... não
tenho mamã neste colégio !...
Sara sentiu o perigo e saiu do seu sonho. Pegou na mão
gorducha de Lottie e puxou a pequenina para si, sorrindo-lhe
carinhosamente.
- Serei eu a tua mamã - disse ela. - Vamos divertir- nos
a dizer que tu és minha filha. E Emily será tua irmã.
Reapareceram nas faces de Lottie as suas engraçadas
covinhas.
- É verdade ? - perguntou.
- Com certeza - respondeu Sara, pondo-se de pé, num
salto. -Vamos prevenir Emily. Em seguida vou lavar-te a cara
e pentear-te.
Lottie concordou, alegremente, e pôs-se a pular ao lado
de Sara, sem se lembrar já de que o "drama" que acabava de
passar, começara, exatamente, porque ela recusara deixar-se
lavar e pentear para o almoço, tornando-se forçoso recorrer à
autoridade da majestosa Miss Minchin.
A partir daquele dia, Sara passou a ser mãe adotiva.
BECKY
O maior prestigio de Sara estava no dom que possuía de
contar histórias e dar a tudo quanto dizia uma aparência de
descrição maravilhosa.
Era isto, mais ainda do que o seu luxo e a sua riqueza,
que atraía para ela as condiscípulas; e era isto mesmo que
mais inveja causava a Lavínia e a algumas outras pequenas,
que não conseguiam, apesar de tudo, deixar de sentir o
encanto do extraordinário talento de Sara.
As pessoas que na infância tiveram alguém que lhes
contasse, assim, histórias fantásticas, recordam durante toda
a vida essas horas de deslumbramento, em que escutavam a voz
que lhes ia falando de fadas, encantos e aventuras
espantosas, que transportavam a sua imaginação infantil a um
mundo maravilhoso.
E evocava, muitas vezes, os grupos que formavam com
outras crianças, conservando-se, durante horas, quietas e
caladas, de olhos fitos na pessoa que contava.
Sara, não somente sabia contar histórias, como
gostava muito de o fazer.
Quando,
sentada
no
meio
das
condiscípulas,
começava
a
inventar
coisas
maravilhosas, os seus olhos verdes pareciam maiores e
mais brilhantes; as faces tornavam-se-lhe coradas e
insensivelmente, começava a acompanhar com gestos
as suas palavras. A voz, ora doce, ora forte, o corpo
flexível, os movimentos expressivos das suas mãos tudo
contribuía para dar relevo
às
passagens
dramáticas
ou
românticas do seu conto.
Por vezes,esquecia- se de que falava com outras
crianças; via realmente fadas, vivia com os reis, as
rainhas e as formosas castelãs de quem ia contando
as aventuras. Acontecia chegar ao fim da narrativa
ofegante, exausta. Então, colocava a mãozinha no
peito, sobre o coração, e sorria, como se estivesse
troçando de si própria.
- Quando vos conto tudo isso - dizia ela parece-me que é
verdade, que aconteceu assim, e
esqueço-me do colégio, da aula e até de que me
estão ouvindo.
Chego a convencer-me de que sou eu
própria, cada uma das personagens da história.
É extraordinário!
Havia cerca de dois anos que Sara estava no
colégio de Miss Minchin.
Num dia de Inverno, enevoado e triste, quando
descia da carruagem, toda embrulhada no seu casaco
de veludo guarnecido de peles, viu, debaixo da
escada da cave, o vulto de uma pequenina, mal
arranjada, que espreitava para fora,
através
das
grades, com o pescoço estendido e os olhos dilatados.
A
sua
carinha suja possuía uma expressão ao mesmo tempo
ardente e tímida, que chamou a atenção de Sara.
E ela sorriu à criança, como sorria sempre a toda
a gente.
Mas a outra julgava,
com certeza, que não
lhe era permitido olhar para a aluna mais rica do
colégio. A sua cabeça desgrenhada desapareceu, como a de um
diabinho que recolhe à sua caixa, e fugiu para a cozinha com
tal precipitação, que, se não tivesse um ar tão miserável,
Sara teria rido com vontade.
Nesse mesmo dia, à noite, enquanto Sara contava uma das
suas histórias, rodeada por um auditório atento, o mesmo
vulto, pequeno e triste, entrou na aula, transportando um
balde de carvão demasiadamente pesado para as suas forças, e
ajoelhou junto do fogão, para encher a fornalha e varrer as
cinzas. Estava mais asseada do que à tarde, mas mostrava o
mesmo ar assustado. Via-se que tinha medo de escutar ou olhar
em volta de si. Colocou o carvão, bocado a bocado, com as
mãos, para não fazer barulho, e sacudiu cuidadosamente as
tenazes. Mas Sara compreendeu logo que aquilo que se estava
passando na sala interessava vivamente a criadinha e que ela
cumpria a sua obrigação devagar, na esperança de apanhar
algumas palavras, aqui e acolá, da história que estava
contando. Por isso, Sara levantou a voz e esforçou-se por
falar bem distintamente:
"- As sereias nadavam docemente naquela água verde e
clara como o cristal, levando atrás de si uma rede de pesca
tecida com pérolas.” A princesa estava sentada sobre um
rochedo todo branco e olhava para elas.
Era a história maravilhosa de uma princesa amada por um
tritão(nome de divindades marinhas) e que fora viver com ele
nas deslumbrantes cavernas submarinas.
A criadinha, de joelhos diante do fogão, varrera o chão
uma vez, outra vez, e recomeçava a varrê-lo de novo, mas
estava de tal forma absorvida a ouvir, que perdeu a noção da
realidade. E, sem saber como, encontrou-se sentada sobre os
calcanhares com a vassoura imóvel nas mãos. A voz de Sara
transportava-se
às grutas todas iluminadas de um azul muito pálido, com
o chão coberto de areia dourada. Parecia-Lhe que, à sua
volta, se balouçavam exóticas flores e ressoavam longínquos e
estranhos concertos.
A vassoura escapou-se-Lhe dos dedos calejados pelo
trabalho e Lavínia Herbert voltou a cabeça.
- Esta rapariga está a ouvir a história... disse ela.
A pequena apanhou a vassoura e pôs-se em pé. Depois,
pegando no balde do chão, fugiu, como uma lebre assustada.
Sara sentiu dentro de si uma surda irritação e
respondeu:
- Eu bem sabia que ela estava a ouvir. Mas que mal havia
nisso?
Lavínia levantou a cabeça com uma impertinência
elegante, e replicou:
- Não sei se a tua mãe gostaria de te ver contar
histórias às criadas. A minha, sei eu, com certeza, que não
gostava.
- À minha mãe - exclamou Sara, com um olhar estranho. -
Estou certa de que isso lhe seria indiferente. Ela sabe, tão
bem como eu, que as histórias são para ser contadas a toda a
gente.
- Eu julgava - continuou Lavínia, num tom severo - que a
tua mãe tinha morrido.
- Então tu pensas que, pelo fato de ter morrido, ela já
não se preocupa comigo? - respondeu secamente Sara, que sabia
dar à sua voz um tom grave, quando queria.
- A mamã de Sara sabe tudo - murmurou Lottie - e a minha
também. Não falo de Sara, que é a minha mamã no colégio de
Miss Minchin, mas da outra... Lá, onde ela está, há caminhos
reluzentes e campos de lírios, que toda a gente pode colher.
- Sim, senhora! É muito bonito - exclamou
Lavinia,
escandalizada.
-
Então
também
inventas
histórias acerca do Paraíso?
-Como sabes tu que as minhas histórias não são
verdadeiras? - perguntou Sara. - O que eu te posso afirmar -
continuou ela, com uma veemência que não tinha nada de
angelical - é que tu nunca o conseguirás saber, se não te
tornares mais caridosa do que és agora. Vem comigo, Lottie.
Ao dizer isto, saiu da sala, na esperança de encontrar
ainda a criadinha, mas ela desaparecera sem deixar traço.
-Quem é a pequenina que trata do fogão ?
-perguntou ela, nessa mesma noite, a Mariette. Mariette
deu-lhe muitas explicações. Quem era aquela pequena? Ah! bem
podia Miss Sara fazer essa pergunta a quem quisesse. Era uma
pobre abandonada que haviam admitido como ajudante de
cozinheira, mas, na verdade, ela trabalhava em toda a parte,
menos na cozinha. Era ela quem engraxava o calçado, limpava
os fogões, subia e descia as escadas com grandes baldes de
carvão, lavava o sobrado e os vidros, enfim, era o "pau
mandado" de toda a gente.
Tinha catorze anos, mas estava tão raquítica, que
parecia ter apenas doze. Na verdade, a própria Mariette
confessava ter pena dela. A pobre criança era de tal forma
tímida que, se por acaso alguém se lhe dirigia, os olhos
pareciam querer saltar-lhe das órbitas, tão grande era o medo
que sentia.
- Como se chama? - perguntou Sara que, sentada junto da
mesa, com o queixo apoiado nas mãos, não perdia uma única
palavra de Mariette.
Devia chamar-se Becky. Mariette ouvia todo o Pessoal
dizer, "Vai fazer isto, vem cá, Becky, mais de cem vezes ao
dia.
Sara ficou muito tempo a olhar para o lume e a pensar em
Becky, mesmo depois de a criada se ter retirado, e inventou
logo uma história, cuja heroína desgraçada era ela. Parecia-
lhe que a pobrezinha nunca
conseguira matar inteiramente a fome. Desejava
ardentemente tornar a encontrá-la. Depois disso avistou-
a várias vezes, mas Becky mostrava-se sempre tão assustada e
desejosa de não ser vista, que era verdadeiramente impossível
falar-lhe.
Mas, algumas semanas mais tarde, numa outra
tarde igualmente brumosa, Sara, ao entrar na sua
sala particular, encontrou-se em frente de um quadro
comovedor. Na sua poltrona favorita, junto do lume
que brilhava, Becky, com o nariz mascarrado, o
avental sujo, a touca ao lado, caída sobre uma orelha, e
um grande balde vazio a seu lado, dormia profundamente,
vencida pela fadiga, que ultrapassara
os limites de resistência das suas forças infantis.
Tinham-na mandado preparar os quartos para
a noite. Eram muitos, e ela andara o dia todo de um
lado para outro, sem parar. Deixara para o fim os
aposentos de Sara, tão diferentes dos outros quartos
simples e nus, onde havia apenas o estritamente
necessário, considerado suficiente para as alunas
vulgares.
Aos olhos da pobre criada, a sala de Sara era
um salão luxuoso, quando, na realidade, não era
mais do que uma divisão clara e alegre.
Mas havia ali gravuras, livros, objetos curiosos
trazidos da Índia e, além disso, um sofá e uma cadeira
estofada. Havia também um bom lume, os
cobres da chaminé a reluzir e, no meio de tudo isto,
sentada numa cadeira proporcionada ao seu tamanho, Emily,
como se fosse a deusa daquele lugar.
Becky costumava guardar o quarto de Sara para
o fim do seu dia de trabalho, porque a vista de todas
aquelas coisas tão bonitas repousava-a, e também
porque esperava sempre poder sentar-se, durante
alguns minutos, na bela poltrona, olhar para tudo o
que a rodeava e pensar no maravilhoso destino daquela
menina a quem tudo aquilo pertencia e que
pelos dias de geada, passava embrulhada em soberbos
casacos, que as pobres deserdadas da sorte, como ela,
procuravam, ao menos, ver de longe, através
das grades da cave.
No referido dia, as suas pobres pernas fatigadas haviam
experimentado um alívio tão grande, quando se sentara, que
uma
sensação
de
bem-estar
a
invadira
inteiramente;
entorpecida pelo reconfortante calor do fogão, com os olhos
fixos nas brasas avermelhadas, e um vago sorriso nos lábios,
a cabeça inclinara-se-lhe pouco a pouco, sem ela própria dar
por isso, as pálpebras foram-se- lhe cerrando e, no fim,
adormecera.
Não havia ainda dez minutos que tinha adormecido, quando
Sara entrou. O seu sono era tão profundo como o da "Bela
Adormecida no Bosque! simplesmente, a pobre Becky estava
longe de se parecer com a princesa do conto, pobre, feia,
cansada como estava!
Ao lado dela, Sara parecia uma criatura vinda de um
mundo diferente.
Regressava de uma lição de dança e, embora houvesse essa
lição todas as semanas, o dia em que vinha o professor de
baile era, para todas as alunas, um dia de contentamento.
Exibiam-se, nessa ocasião, os vestidos mais bonitos, e
como Sara dançava invulgarmente bem, dispensavam-lhe especial
atenção, e Mariette recebera ordem de a vestir com a máxima
elegância possível.
Naquele dia trazia um vestido cor-de-rosa; Mariette
comprara botões de rosas naturais e fizera uma coroa que
entrelaçara nos seus cabelos negros e encaracolados.
Sara acabava de aprender uma dança encantadora, no
decorrer da qual parecia uma grande borboleta a esvoaçar pela
sala e, por isso, trazia o rosto
afogueado de animação e prazer.
Entrava no aposento, esboçando ainda alguns
passos de dança, quando avistou Becky a dormir como um
justo, com a touca tombada sobre a orelha...
- Oh! - exclamou Sara. - Pobre pequena !
Não teve um minuto, sequer, de irritação, ao ver a sua
cómoda poltrona ocupada por aquela pessoa enfarruscada. Pelo
contrário, estava encantada por encontrar a heroína da
história que inventara e por ter, finalmente, ocasião de Lhe
falar.
Aproximou-se docemente e contemplou-a. Becky ressonava
levemente.
"Gostava que ela acordasse sòzinha - pensava Sara. -
Contraria-me ter de a acordar; mas, se por acaso Miss Minchin
a surpreende aqui, fica furiosa. Vou esperar um momentinho. "
Sentou-se na borda da mesa, balouçando as pernas, tão
esbeltas nas suas meias de seda cor-de-rosa, e perguntou a si
própria o que devia fazer. Miss Amélia podia, muito bem,
entrar de um momento para o outro, e Becky seria severamente
repreendida.
"Mas ela está tão fatigada! - -pensava Sara.
- Tão terrivelmente fatigada!"Um bocado de carvão que
caiu da fornalha, veio pôr fim à perplexidade de Sara. Becky
estremeceu e abriu os olhos com um suspiro de pavor. Não dera
por ter adormecido; havia apenas alguns instantes que estava
ali - pensava... e eis que, de repente, se encontrava,
confundida, na presença daquela maravilhosa menina, que
parecia uma fada cor-de-rosa, e olhava para ela com
interesse, lá do alto da mesa onde se empoleirara.
Pôs-se de pé, num pulo, e esforçou-se por colocar a
touca direita, na cabeça. As mãos tremiam- lhe. O que ela
fizera! Deixar-se adormecer descaradamente na poltrona de uma
das meninas do colégio! Iam pô-la na rua, sem Lhe pagar a
soldada! E a pobre rapariga começou a soluçar.
- Oh miss, miss, Peço-lhe perdão - balbuciava ela -
Perdoe, miss!
Sara saltou para o chão e veio até ao pé dela, dizendo-
lhe, tão gentilmente como se falasse a uma das suas
condiscípulas:
- Não tenhas medo. Isto não tem importância.
- Eu não fazia tenção, juro, miss - protestava Becky. -
A culpa foi do calor do fogão e, também, porque eu estava
muito cansada... Não foi por atrevimento!
Sara sorriu, amigàvelmente, e pôs a mão sobre o ombro da
criadita.
-Como não querias tu dormir se estavas tão fatigada? -
disse ela. - Tu ainda não estás bem acordada!
A pobre Becky devorava Sara com os olhos. Nunca ninguém
lhe falara com tanta doçura. Estava habituada a ouvir ralhar,
a ser mandada e até, muitas vezes, a receber pontapés. E,
afinal, aquela menina, linda como os anjos, vestida de cor-
de-rosa, dizia-Lhe que ela também tinha o direito de estar
fatigada e, mesmo, de se deixar adormecer! A mão, tão
delicada de Sara, pousava sobre o ombro de Becky, o que Lhe
parecia verdadeiramente incrível.
-A menina não está zangada? Não vai contar à senhora?
-Não direi nada, podes estar tranqüila! O coração de
Sara sofria, ao verificar o terror que se estampara na cara
mascarrada da criadita.
Teve, mesmo, uma sensação de desgosto intolerável.
Então, uma idéia, como só ela era capaz de ter, atravessou-
lhe o espírito. E acariciou as faces de Becky.
- Na realidade; nós somos semelhantes! - exclamou Sara.
-Foi só por um puro acidente que tu não nasceste no meu lugar
e eu no teu!
Becky
não
compreendia.
Estas
considerações
eram
demasiado elevadas para o seu espírito; e depois
para ela, a palavra "acidente" significava, apenas, uma
terrível calamidade, tal como: ser atropelada por uma
carruagem, cair de uma escada e ser levada ao hospital.
- Um acidente, miss - murmurou ela, respeitosamente. -
Acha?
- Acho, sim - respondeu Sara, que a fitava com olhos
sonhadores.
Depois, vendo que Becky não a compreendia, disse-Lhe
noutro tom:
- Já acabaste o teu trabalho? Podes ficar aqui mais um
bocadinho?
Becky sentiu-se, mais uma vez, sufocada, e perguntou:
- Eu Aqui?
Sara foi abrir a porta e espreitou para o corredor,
deixando passar uns momentos para certificar-se se via ou
ouvia qualquer coisa.
- Não anda por aqui ninguém - explicou ela. -Tu já
arranjaste todos os quartos, talvez possas
demorar-te um pouco. Tenho a certeza de que havias de
gostar de comer um bolo...
Os minutos que se seguiram foram, para Becky, como um
sonho. Sara abriu um baú e deu-lhe uma grossa fatia de bolo,
regalando-se de ver a pobre criada devorá-lo com avidez.
Falou com ela, fez-lhe perguntas, e tudo isto com um ar tão
alegre, que o pavor de Becky começou a acalmar-se a ponto
de a pequenina se atrever - ela, a miserável Becky - a
fazer perguntas a Sara.
- Esse vestido... - começou ela, olhando o vestido cor-
de-rosa com uma espécie de inveja - é o mais bonito que a
menina tem?
- É um dos vestidos que eu costumo vestir para dançar -
respondeu Sara. - Gosto muito dele. E tu?
Becky conservou-se, durante alguns instantes, muda de
admiração. Depois, respondeu em voz
baixa, com respeito:
- Uma vez, vi uma princesa. Eu estava na rua tal,
com muita gente que tinha ido ver as pessoas ricas
entrarem na Ópera. Havia uma senhora para quem
todos olhavam mais do que para os outros. E diziam: “É a
princesa”. Era uma menina crescida toda de cor-de-rosa:
casaco, vestido, flores, tudo!
Quando vi a miss sentada na mesa, julguei que era
a princesa, porque é muito parecida com ela.
- Tenho pensado muitas vezes - disse Sara com a sua voz
musical - que gostava imenso de ser
princesa. Queria saber o que elas pensam, o que elas
sentem. Agora, vou imaginar que sou uma princesa.
Becky continuava a não compreender as palavras de Sara,
mas olhava para ela com os olhos fixos numa espécie de
adoração.
Sara saiu do seu sonho e fez uma nova pergunta a Becky:
-Estiveste a ouvir-me, naquela noite, lá em
baixo, na aula?
- Estive - confessou a pequena, novamente
dominada por um vago terror. - Eu bem sei que não
devia, mas era tão bonito! Não fui capaz de me
dominar...
- Até gostei que ouvisses - declarou Sara. -
Quando contamos histórias ficamos sempre contentes se
percebemos que gostam de nos ouvir. Querias
saber a continuação?
Becky sentiu, outra vez, que Lhe faltava a respiração, e
exclamou:
- Eu? Tal qual como se fosse uma aluna do
colégio? A linda história do príncipe e das sereias
pequeninas que nadavam, a rir, com estrelas nos
cabelos!...
Sara fez um sinal afirmativo, com a cabeça.
Depois disse:
- Hoje, receio bem que já não tenhas tempo.
Mas diz-me a que horas vens arrumar o meu quarto que eu
procurarei estar aqui e contar-te-ei um bocadinho
todos os dias, até que a história acabe. É uma história
muito comprida e muito bonita. E eu acrescento-lhe sempre
qualquer coisa.
Ai - suspirou Becky, com convicção. - Bem me importa, a
mim, que o balde de carvão seja pesado ou que a cozinheira me
atormente, quando eu puder pensar na história durante todo o
dia!
- Podes muito bem fazer isso. Contar-te-ei a história do
princípio ao fim - disse Sara.
Quando Becky voltou para a cozinha, não era a mesma que
havia subido a escada, ajoujada sob o peso do carvão. Tinha
uma fatia de bolo, na algibeira, vinha quentinha e refeita
das canseiras do dia; mas não foram apenas o calor do lume e
o bolo que lhe haviam dado forças: fora, também, a presença
de Sara.
Depois de ela ter saído, Sara voltou para o seu lugar
favorito, no canto da mesa. Pousou os pés numa cadeira, pôs
os cotovelos nos joelhos e o queixo
encostado às mãos.
"Se eu fosse princesa...” uma verdadeira princesa -
pensava ela - poderia ser muito generosa
para os pobres; mas, mesmo sendo princesa apenas na
minha imaginação, posso inventar pequenas coisas que lhes
dêem prazer, como fiz há bocado com
Becky. Ela sentia-se tão feliz como se eu lhe tivesse
dado uma grande esmola. Vou passar a imaginar também que,
fazer coisas pequenas, com intenção de tornar os pobres
felizes, é ser generosa. Hoje fui muito generosa. “
AS MINAS DE DIAMANTES
Pouco tempo depois do que acabamos de contar, Sara
recebeu notícias que excitaram não somente a sua curiosidade
como a de todo o colégio, tornando-se o assunto de todas as
conversas durante muitas semanas.
O capitão Crewe contava, numa das suas cartas, uma
história interessante:
Acabava de receber a visita inesperada de um dos seus
antigos condiscípulos, que possuíam na Índia grandes
terrenos, nos quais haviam sido descobertos diamantes. O
proprietário desses terrenos fizera a viagem para organizar a
exploração das preciosas minas.
Se tudo corresse bem, como era natural, estavam na posse
de uma riqueza tão considerável, que só pensar nela lhe
causava vertigens. E como tinha uma grande estima pelo
capitão Crewe, seu amigo de infância, queria proporcionar-lhe
maneira de aumentar também a sua fortuna, tornando-o seu
associado.
Foi isto, pelo menos, o que Sara compreendeu, ao ler a
carta do pai.
Evidentemente, tanto ela como as condiscípulas teriam
mostrado muito menos interesse se se tratasse de qualquer
outro objeto de negócios, por mais vantajoso que fosse. Mas,
isto de "minas de diamantes" parecia-se tanto com as "Mil e
Uma Noites" que ninguém podia ficar indiferente.
Sara, encantada, fez logo a descrição dos túneis em
labirinto, que desciam ao centro da terra, e de cavernas com
as paredes, o teto e o solo coberto de gemas refulgentes,
onde trabalhavam indígenas de pele bronzeada, munidos de
pesadas
picaretas.
Hermengarda
e
Lottie
escutavam-na,
deslumbradas, e exigiam que a descrição recomeçasse toda a
noite.
Tudo isto irritava prodigiosamente Lavínia, que logo
começou a dizer a Jessie, em segredo, que não acreditava nas
tais minas de diamantes.
- A minha mãe tem um anel com um diamante, que custou
muito caro. E, no entanto, esse diamante não é muito grande.
Já vês que, se essas minas existissem, os donos seriam tão
ricos, que se tornariam ridículos!
- É talvez a sorte que espera Sara... respondeu a outra,
com um riso trocista.
-Ela
não
precisa
de
ser
mais
rica
para
ser
ridícula!observou Lavínia em tom de desprezo.
- Tu não a podes ver. - disse Jessie.
- Não é isso - replicou Lavínia com azedume - mas não
creio em minas cheias de diamantes.
-A verdade é que a alguma parte os hão-de ir buscar -
respondeu Jessie e perguntou - Sabes o que Gertrudes me
contou?
- Não, nem me interessa, se, por acaso, é qualquer coisa
a propósito dessa celebérrima Sara!
-Pois é, justamente, acerca dela! Uma das suas novas
manias é imaginar que é princesa: Não pensa noutra coisa,
mesmo durante as aulas; diz que aquela idéia a ajuda a
estudar melhor as lições. E quis persuadir Hermengarda a
fazer o mesmo; mas a Hermengarda acha que é gorda de mais
para ser princesa...
- Hermengarda é muito gorda, e Sara é muito magra... -
disse Lavínia.
Jessie riu novamente, com malícia, e continuou:
- Sara diz que, para ser princesa, não tem importância
ser bonita ou feia, rica ou pobre. O que importa são os
nossos pensamentos e as nossas ações.
-Naturalmente, ela imagina que poderia ser princesa
mesmo que andasse a pedir esmola pelas
ruas - respondeu Lavínia. - Nesse caso vamos tratá-la
por Vossa Alteza.
As aulas tinham terminado, naquele dia, e as duas amigas
estavam sentadas na sala de estudo, em frente do fogão,
gozando a hora mais agradável para todas as alunas - aquela
em que dão por findos os seus trabalhos.
Miss Minchin e Miss Amélia preparavam-se para tomar chá
na sua salinha particular. Era o momento em que as alunas
podiam
conversar
à
vontade
e
fazer
confidências,
principalmente quando as mais pequenas se conservavam
tranqüilas, em vez de questionarem e correrem ruidosamente de
um lado para o outro, como costumavam fazer. Quando o barulho
era maior as mais velhas intervinham, ralhavam, e davam- lhes
o seu sopapo; porque estavam incumbidas de mantê-las na ordem
e, se não o fizessem, miss Minchin e miss Amélia não
tardariam a aparecer encurtando assim aquela deliciosa hora
de liberdade.
Lavinia falava ainda quando a porta se abriu e Sara
entrou com Lottie, que se habituara a segui-la
por toda a parte, como um cãozinho.
- Aí está èla, com essa insuportável garota - murmurou
Lavínia. - Visto que gosta tanto dela, porque a não guarda no
seu quarto? Não tarda cinco minutos que a petiza não comece a
gritar por qualquer coisa...
Lottie tivera, de repente, o desejo de ir brincar para a
sala de estudo, e pedira a sua "mãe adotiva" que a
acompanhasse. Correu a juntar-se a um grupo de petizas da sua
idade, que brincava a um canto, e Sara acomodou-se num banco
que estava no vão da janela, disposta a ler um livro que
trouxera. Era uma história da Revolução Francesa, e não
tardou que a descrição horrível dos prisioneiros da Bastilha
- esses homens tanto tempo metidos em masmorras que, ao serem
libertados, pareciam fantasmas, com a barba e o cabelo a
esconder-lhes
inteiramente
o
rosto
-
a
absorvesse
inteiramente.
A imaginação de Sara levou- a tão ràpidamente para longe
do Colégio Minchin, que Lhe foi deveras desagradável ser
chamada à realidade por um grito agudo de Lottie.
Nada era mais difícil para ela do que dominar a sua
irritação, quando alguém a interrompia durante as horas da
leitura. Todos aqueles que gostam de ler, decerto compreendem
isto.
-É tal qual como se recebesse uma bofetada e sentisse um
desejo invencível de dar outra em paga... - tinha Sara dito,
um dia, a Hermengarda.
-É preciso que eu me domine ràpidamente, para não dizer
palavras desagradáveis.
Teve, na realidade, que fazer um grande e rápido esforço
sobre si própria, quando, naquele dia, fechou o livro e
saltou para o chão.
Lottie divertia-se a escorregar sobre o pavimento
encerado da sala e, depois de ter enervado Lavínia e Jessie
com o barulho que fazia, acabara por cair, magoando-se num
joelho. Agora, gritava e esperneava no meio de um grupo de
amigas e adversárias acarinhadas por umas e repreendida por
outras.
- Cala-te, chorona! Cala-te imediatamente!- ordenou,
Lavinia.
- Eu não sou chorona - soluçava Lottie. Sara! Sara!
- Se ela não se cala, Miss Minchin ouve-a, com certeza!
- exclamou Jessie. - Vamos, Cala-te, Lottiezinha, se queres
um "penny"(moeda inglesa) novinho em folha.
- Não quero o teu "penny", - replicou Lottie. E como, ao
olhar para o joelho, visse uma gota de sangue, recomeçou a
chorar com toda a força.
Sara precipitou-se na sala e ajoelhou ao pé da
pequenina, passando-lhe os braços em volta do pescoço.
- Vamos, Lottie, vamos - disse ela. - Que prometeste à
tua Sara?
- Chamaram-me chorona - gritava Lottie, lavada em
lágrimas.
Sara acariciava-a, mas falava-lhe num tom sério, que
Lottie conhecia muito bem:
- E é verdade, minha querida Lottie, se continuares. Que
me prometeste tu? Que foi?
Lottie sabia perfeitamente o que tinha prometido. Por
isso, preferia mudar de assunto.
- Eu não tenho mãezinha - começou ela. Não tenho
mãezinha nenhuma!
- Tens, sim. Tens uma mãezinha - disse Sara,
alegremente. - Esqueces-te de que Sara é tua mamã? Já não
queres que a Sara seja tua mamã?
Lottie chegou-se muito para ela, a murmurar baixinho,
palavras que ninguém entendia, com ar de consolação.
-Vem sentar-te no banco da janela, ao pé de mim -
continuou Sara - e contar-te-ei uma história.
- Contas - disse Lottie, com voz de mimo. Contas-me a
história das minas de diamantes?
- As minas de diamantes - interrompeu Lavínia. -
Insuportável piegas! A minha vontade era dar-lhe uma
bofetada!
Sara ergueu-se, de um salto. É preciso não
esquecer que ela fora bruscamente arrancada à leitura da
história impressionante da Bastilha, e que lhe
fora necessária uma forte dose de força de vontade
para vir tomar o seu lugar junto da sua "filha adotiva".
Sara não era um anjo e não tinha a menor
simpatia por Lavínia.
- Pois bem - exclamou ela com veemência.
O
meu
desejo era dar-te uma bofetada, a ti. Mas
não o farei - continuou dominando-se. - Ou antes,
gostaria de te bater, mas não o quero fazer.
Nós
não somos duas garotas da rua e já temos idade para
nos sabermos conduzir.
A ocasião era ótima, e Lavínia não a quis perder. Por
isso, respondeu:
- Ora essa, Alteza! Nós somos princesas, creio eu. Pelo
menos, uma de nós duas. Que glória para Miss Minchin contar
uma princesa entre as suas alunas!
Sara deu um passo para Lavínia, como se quisesse
esbofeteá-la, e talvez esse pensamento lhe atravessasse o
cérebro. A sua inocente mania de imaginar os mais
extraordinários sonhos, era a sua felicidade. Nunca falara
nisso às companheiras de quem
não gostava.
Aquela recente idéia de se imaginar princesa era um
ponto delicado, no qual ela não queria que
ninguém tocasse. Guardava ciosamente o seu segredo, e
eis que Lavínia troçava dele diante de todo o colégio... Sara
sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.
Mas conseguiu vencer-se. Quando se é princesa, não
é próprio deixar-se dominar pela cólera. A sua mão
tombou e ela ficou imóvel durante alguns segundos.
Depois, começou a falar numa voz novamente
firme e segura; levantou um pouco a cabeça e todas as
outras pequenas escutaram:
- É verdade: às vezes, imagino que sou uma princesa, a
fim de chegar a conduzir-me como se o fosse realmente.
Lavínia não sabia que dizer. Muitas vezes já verificara
que Lhe faltavam os argumentos quando discutia com Sara. A
verdadeira razão disto era as alunas tomarem sempre uma
atitude de aprovação, quando a outra falava.
Naquela tarde, Lavínia viu todas olharem para Sara com
um interesse enorme. Gostavam de histórias de princesas e
esperavam que ela lhes contasse uma; como se obedecessem
todas ao mesmo desejo, aproximaram-se dela. Por isso, o
último comentário ne Lavinia não teve o melhor êxito...
- Espero - disse ela - que não te esqueças de nós quando
subires ao trono...
- Com certeza que não - respondeu Sara. E sem
acrescentar mais nada, ficou imóvel, olhando fixamente para
Lavínia, até que a outra resolveu retirar-se, pelo braço de
Jessie.
A partir desse dia, as alunas que invejavam Sara,
começaram a chamar-lhe "Princesa", quando queriam metê-la a
ridículo; ao passo que as outras, que a estimavam, lhe davam
esse tratamento como prova de afeição.
As admiradoras de Sara estavam encantadas com o
esplendor daquele título e com a originalidade que lhe dera
causa; até Miss Minchin, que fora posta ao corrente do que se
passava, contava aquela anedota às visitas que recebia, como
se estivesse persuadida de que tal fato dava um certo brilho
aristocrático ao seu colégio.
Quanto a Becky, achava este título de princesa o mais
natural possível. As suas relações com Sara, iniciadas
naquele dia de chuva e frio, em que Becky se deixara
adormecer na poltrona do seu quarto, tinham progredido muito.
Diga-se, desde já, que Miss Minchin e Miss Amélia não estavam
perfeitamente
informadas disso... Tinham notado que Sara se mostrava
extremamente bondosa para com a criadita mas ignoravam
totalmente os minutos encantadores
e, ao mesmo tempo, arriscados, em que Becky, depois
de ter preparado os quartos com surpreendente rapidez,
chegava à salinha de Sara e punha no chão com um suspiro de
alivio, o balde de carvão. Então
Sara contava-Lhe um capítulo de alguma história
maravilhosa; certos produtos alimentares, dos mais
apetitosos, saíam do seu baú, e Becky fazia-lhes
honra... ou metia-os na algibeira, para se regalar
com eles, mais tarde, na solidão das águas-furtadas
onde dormia.
- Mas tenho que ter cautela, quando como...
dissera ela, um dia-, porque, se deixo cair migalhas, as
ratazanas vêm apanhá-las...
- As ratazanas!- exclamou Sara, horrorizada.
- No teu quarto há ratazanas?
- Um regimento delas... - respondeu Becky,
com a maior
calma. - Há sempre ratazanas e ratos
nos sótãos. A gente acostuma-se depressa ao barulho que
eles fazem, a correr de um lado para o
outro. Eu já estou de tal forma habituada, que só
dou por isso quando passam por cima do meu travesseiro.
- Ui!- exclamou Sara.
- Nós habituamo-nos a tudo... - replicou Becky.
- Se a menina tivesse nascido como eu, sucedia-lhe
o mesmo. Gosto mais dos ratos que das pessoas
fingidas...
-Também eu - concordou Sara - por que
julgo que os ratos sempre se podem apanhar, enquanto que
uma pessoa hipócrita não me parece
fácil...
Havia dias em que Becky não se atrevia a ficar
mais do que uns breves minutos naquele lindo quarto
tão quentinho; nesses dias as duas amigas trocavam
apenas algumas palavras e metiam ràpidamente um pacotinho na
algibeira, à moda antiga, que Becky usava debaixo do vestido,
presa à cintura por um nastro(fita estreita de algodão ou de
linho) vermelho.
Sara descobrira, assim, mais um interesse na sua
existência: procurar e descobrir coisas boas, alimentares e
saborosas, que pudessem meter-se num pequeno pacote. Sempre
que saía a pé ou de carruagem, inspecionava, com o olhar,
todas as montras de restaurantes e pastelarias. No dia em que
teve a idéia de trazer dois ou três pastéis de carne, sentiu
que fizera uma verdadeira descoberta. Os olhos de Becky
brilharam, à vista dos pastéis.
- Oh, miss - murmurou ela. - Isto é bom e alimenta. O
que alimenta é melhor. Os bolos são deliciosos, isso é
verdade, mas derretem-se na boca, não se sentem passar... A
menina compreende? Ao passo que isto, enche o estômago.
- Meu Deus - disse Sara, lentamente. - Eu penso que ter
o estômago cheio de mais não é lá muito bom, mas acredito que
te dê satisfação.
Becky ficou, efetivamente, contentíssima com os pastéis
de carne e bem assim com os sanduíches de fiambre e os
pãezinhos com mortadela que Sara lhe passara a comprar,
regularmente. Pouco a pouco, a criadita começou a sentir-se
menos fatigada e a não ter fome, e o balde do carvão parecia-
lhe menos pesado.
De resto, o balde podia pesar muito ou pouco; a
cozinheira podia estar de péssimo humor; o trabalho podia ser
penoso e excessivo; a idéia dos momentos que passaria junto
de Sara, na sua confortável salinha, dava coragem a Becky
para suportar tudo.
Na realidade, a presença de Sara, mesmo sem as gulodices
que costumava dar-lhe, bastava para reconfortar a pobre
pequena. Quando tinham apenas o tempo indispensável para
trocar algumas palavras eram sempre palavras carinhosas, que
aqueciam o coração; e quando era possível Becky demorar- se
mais, havia sempre uma história, ou uma conversa divertida,
que ela recordava depois, ao serão, e revivia na memória,
quando estava deitada, lá em cima, nas águas-furtadas. Sara,
que obedecia
apenas às suas tendências, porque era
naturalmente boa e generosa, estava longe de supor o que
representava para Becky o papel de fada benéfica que
desempenhava junto da pobrezita. Quando se é dotada de uma
alma terna e compadecida, as mãos abrem-se, por si, e o
coração também. E se algumas vezes as mãos estão vazias, o
coração, se é inesgotável e pode dar sempre coisas belas,
boas e doces: consolações, conforto, alegria - e a alegria é,
muitas vezes, o mais eficaz
de todos os dons.
Becky nunca, na sua breve e miserável existência,
soubera o que era rir. Foi Sara quem a ensinou, e ria também
com ela. E, sem que o suspeitasse, uma gargalhada espontânea
fazia tão bem a Becky como um bolo ou um pastel de carne.
Algum tempo antes de Sara completar onze
anos,
recebeu ela uma carta do pai, que não parecia
escrita com a boa disposição habitual. Dizia que estava
fatigado e que se sentia esmagado pelo trabalho e pelas
preocupações que lhe causavam as
famosas e grandes minas de diamantes.
"Vê tu, minha Sarinha - dizia ele -, o teu papá não é,
positivamente, um homem de negócios; os planos, os relatórios
e o resto dão-lhe cabo da cabeça.” O teu papá não percebe
nada disto e tudo Lhe parece fantástico. Tenho febre e passo
uma parte da noite às voltas, e a outra parte a debater-me
com pesadelos.
"Se a "minha senhorazinha" aqui estivesse, tenho a
certeza de que ela me daria, com o seu ar grave, um bom
conselho. Não é verdade, minha senhora?"
Uma das brincadeiras favoritas do capitão Crewe era
chamar "senhorazinha" à filha, por causa do seu ar sério, que
lhe dava o aspecto de uma criança de outro tempo.
Nessa carta contava-lhe também o pai tudo o que
preparava para festejar o aniversário do nascimento da sua
querida menina. Entre outras coisas encomendara, em Paris,
uma nova boneca, cujo enxoval seria uma verdadeira maravilha.
A resposta de Sara a esta carta, em que o pai lhe
perguntava se a boneca seria bem recebida, era uma obra-prima
de diplomacia.
"Começo a estar muito crescida “- escreveu ela
- e não terei, nunca mais, outra boneca. Esta será a
última, e esta idéia é muito grave. Se eu soubesse fazer
versos, estou certa de que um poema, sobre "a última boneca",
seria lindo. Mas não sou capaz de compor poesia! experimentei
e ri com vontade! O que escrevi não se parecia absolutamente
nada com Coleridge ou Shakespeare... Ninguém tomará, nunca, o
lugar de Emily, mas serei muito amiga da "nova boneca" e
tenho a certeza de que todo o colégio rejubilará com ela. As
alunas gostam todas de bonecas, embora as "grandes" (as que
vão quase nos quinze anos) afirmem que já não têm idade para
isso. “
O capitão Crewe tinha uma terrível dor de cabeça quando
leu esta carta, lá longe, na sua casa de campo. Diante dele,
sobre a mesa, amontoavam-se cartas e papéis, que o enchiam de
receio e ansiedade; apesar disso, riu como há muito tempo não
ria.
"Oh - pensava ele - à medida que vai crescendo, a minha
Sara vai-se tornando ainda mais espirituosa. Permita Deus que
este negócio se faça e me deixe livre, para ir beijá-la!
Quanto daria eu, meu Deus, para ter os seus bracinhos em
volta do meu pescoço, neste momento!"
O aniversário de Sara devia ser celebrado com
uma grande festa no colégio. A sala de estudo seria
suntuosamente decorada. Ali se abririam, com
grande solenidade, as caixas que continham os presentes.
No salão de miss Minchin, servir-se-ia
um lanche magnífico.
Quando o grande dia chegou, todas as alunas
estavam numa agitação indescritível. A manhã passou-se
sem elas próprias saberem como, tantos eram
os preparativos.
Ornamentaram a sala de estudo com festões de
azevinho, tiraram as estantes e os bancos vermelhos
foram dispostos em volta da sala, encostados
à parede, e dissimulados com cobertas vermelhas.
Quando Sara entrou na sua sala particular
encontrou em cima da mesa um estranho pacote;
mal
feito, embrulhado num papel cinzento, grosseiro. Compreendeu
que se tratava de um presente
e adivinhou imediatamente donde vinha. Abriu o
embrulho com ternura: continha uma pregadeira
para alfinetes, feita de flanela vermelha, já um pouco
desbotada, e sobre a almofada, desenhada por alfinnetes
de cabeça preta, havia estas palavras: "Um
aniversário feliz"
- Oh!- exclamou Sara, comovida. - Que trabalho que ela
teve! Estou tão contente... que tenho quase, vontade de
chorar.
De repente, a sua fisionomia teve uma expressão de
profunda surpresa. Debaixo da pregadeira
havia um cartão de visita com um nome impresso
em caracteres bem legíveis: "Miss Amélia Minchin".
Sara voltava e tornava a voltar o cartão, entre
os dedos nervosos.
"Miss Amélia - pensava ela. - Que quer isto
dizer?"
Mas, naquele instante, ouviu a porta abrir-se
docemente e viu a cabeça de Becky a espreitar: No
seu rosto havia um sorriso bom, feliz, e ela entrou
arrastando os pés e torcendo nervosamente as mãos.
- Gostou, Miss Sara - perguntou ela.
- Gostei muito - respondeu Sára. - Querida Becky, que
fez sozinha esta linda pregadeira!
Becky fungou, alegremente; os seus olhos estavam
brilhantes de felicidade.
- Só tem a flanela, e a flanela já não é nova; mas eu
queria oferecer-lhe qualquer coisa e lá consegui fazer isto,
às escondidas, de noite. Eu bem sabia que seria difícil a
menina imaginar que era uma pregadeira de cetim cor-de-rosa,
com alfinetes de diamantes... Eu própria quis acreditar que
era assim, enquanto a ia fazendo. O cartão de visita...
- acrescentou ela, com hesitação - creio que não fiz mal
em tirá-lo do cesto dos papéis. Acha... Miss Amélia tinha-o
deitado fora. Eu não tenho cartões com o meu nome e não é
próprio oferecer um presente sem lhe juntar um cartão. Foi
por isso que pus o de Miss Amélia.
Sara saltou-Lhe ao pescoço e beijou-a nas duas faces.
Sem saber bem por que, sentia a garganta apertada.
- Oh Becky - exclamou, com um riso tremulo. - Gosto
muito de ti, sabes? Gosto muito de ti!
- Oh Miss Sara - murmurou Becky. - Mil vezes obrigada,
mas isto não tem importância: a flanela... a flanela até já
está um pouco usada...
AINDA A MINA DE DIAMANTES
Foi com toda a solenidade que Sara entrou na aula
ornamentada com azevinho.
Miss Minchin, ostentando o seu melhor vestido de seda,
conduziu-a pela mão. Seguiu-se um criado com uma caixa que
continha a última boneca ; uma criada de quarto vinha logo
após, carregada com uma segunda caixa, e Becky, com um
avental lavado e uma touca nova, fechava a marcha com um
terceiro pacote.
Sara teria preferido mil vezes entrar com simplicidade,
mas Miss Minchin chamara-a a sua sala particular e
comunicara-lhe o seu desejo.
- É um grande dia - declarou ela - e deve ser celebrado
como convém.
De maneira que Sara fez a sua aparição à frente de uma
espécie de cortejo, sentindo-se confusa ao ver as alunas mais
crescidas tocarem nos braços umas das outras, e as menores
agitarem-se alegremente nas cadeiras.
- Silêncio, meninas - disse Miss Minchin, porque se
levantara um murmúrio geral. - James, ponha a outra caixa
numa cadeira. Becky!
Este último nome foi pronunciado de uma forma breve e
severa, porque Becky, contagiada pela agitação geral,
esquecera-se completamente do que fazia, e sorria para
Lottie, que saltitava de alegria, impaciente.
A dura voz de Miss Minchin surpreendeu-a a tal ponto
que, por pouco, não deixou cair o embrulho. Para pedir
desculpa, fez uma pequena reverência, tão desajeitada, que
Lavínia e Jessie começaram a rir baixinho.
- Tu não estás aqui para olhar para estas meninas -
continuou Miss Minchin. - Que esperas? Vamos, põe aí a caixa!
Becky obedeceu com uma precipitação angustiosa, e
dirigiu-se apressadamente para a porta.
- Podem retirar-se - ordenou Miss Minchin aos criados,
com um gesto breve.
Becky desviou-se respeitosamente, para que os outros
passassem. Mas não pôde deixar de lançar um olhar de pena
para a caixa que estava em cima da mesa. Via-se um bocado de
cetim entre as dobras do papel de seda.
- Miss Minchin - disse, sùbitamente, Sara. Becky não
pode ficar?
Era preciso ter audácia para fazer semelhante pergunta
a Miss Minchin.
A diretora estremeceu. Depois, pôs a luneta e olhou
para a sua "brilhante aluna" com ar de reprovação.
- Becky - exclamou ela. - Oh! Minha querida Sara
A pequena deu um passo na direção de Miss Minchin, e
disse:
-Desejo que fique, porque também há de gostar de ver os
meus presentes. Ela também é criança.
Miss Minchin estava sufocada. Os seus olhos iam de Sara
para a criadita e desta para Sara.
- Minha querida menina - continuou ela.
Becky é ajudante de cozinheira. As ajudantes de
cozinheira... claro... não são Crianças.
Evidentemente que nunca lhe tinha ocorrido semelhante
idéia.
As ajudantes de cozinheira eram, para ela, máquinas de
lavar louça e de deitar carvão na fornalha, nada mais.
-
Mas
Becky
é
uma
criança
-
afirmou
Sara,
tranquilamente. - Eu sei que isto a divertirá. Tenha a
bondade de permitir que ela fique, em honra do meu
aniversário.
Miss Minchin logo respondeu, com ar muito digno:
- Visto que me faz esse pedido como um favor pessoal,
pode ficar. Rebeca, agradece a miss Sara a sua bondade.
Becky tinha-se concentrado, no limiar da porta torcendo
a ponta do avental, ao mesmo tempo ansiosa e encantada.
Avançou fazendo uma reverência; e, enquanto agradecia,
em frases curtas e hesitantes, os seus olhos trocaram com os
de Sara um longo olhar carinhoso.
- Oh! Mil vezes obrigada, miss! Estou-lhe muito
reconhecida, miss! Eu tinha um grande desejo de ver a boneca,
miss, isso é verdade! Muito obrigada, miss! E também muito
obrigada à senhora - disse, com uma reverência assustada; e,
dirigindo-se a miss Minchin, acrescentou - Muito obrigada por
me ter permitido aqui ficar.
Miss Minchin fez, de novo, com a mão, um gesto breve,
desta vez na direção do canto mais próximo da porta.
- Fica ali - ordenou ela. - Não te ponhas muito perto
das meninas.
Becky obedeceu, com o coração a pulsar de alegria. Pouco
lhe importava o lugar que lhe destinavam, desde o momento que
lhe permitiam ficar ali, durante a festa que ia realizar-
se.Nem sequer ficou perturbada quando Miss Minchin, depois de
tossir ruidosamente, retomou a palavra:
- Meninas - anunciou ela. - Tenho uma coisa
para lhes dizer.
- Vai fazer um discurso - murmurou uma das
mais crescidas. -Quem me dera já que ela chegue
ao fim.
Sara sentiu-se pouco à vontade.
Visto que era
a sua festa, Miss Mínchin ia, com certeza, falar dela.
E era agora muito desagradável estar ali, de pé numa
aula, a ouvir um discurso em sua honra.
- Todas sabem que a nossa querida Sara faz
hoje onze anos - começou ela.
- Oh, querida Sara - murmurou Lavinia ironicamente.
- Muitas das meninas também já fizeram onze
anos; mas os dias do aniversário de Sara são um
pouco diferentes dos das outras meninas.
Quando
ela for crescida herdará uma grande fortuna, que
será seu dever gastar útil e generosamente.
- As minas de diamantes - troçou Jessie em
voz baixa.
Sara não a ouviu; mas, enquanto os seus olhos
verdes não se desfitavam de Miss Minchin,
sentia
as
faces tornarem-se-lhe vermelhas. Todas as vezes
que Miss Minchin falava de dinheiro,
Sara
experimentava por ela um verdadeiro sentimento de aversão; e
toda a gente sabe que detestar as pessoas crescidas é uma
falta de respeito.
- Quando o seu excelente pai, o capitão Crewe,
ma confiou - prosseguiu Miss Minchin - disse-me, em ar
de brincadeira: "Receio que a minha filha
venha a ser, um dia, terrivelmente rica...”.
E eu
respondi-Lhe: "Ela receberá, na minha casa, uma
educação, digna da menina mais rica do mundo!”.
Ora, Sara tornou-se a nossa aluna mais brilhante;
a maneira como ela fala francês e dança honra o
colégio. Tem maneiras tão delicadas, que vós mesmas lhe
chamais "Princesa Sara". Oferecendo-vos esta recepção, Sara
dá-vos uma prova de grande amabilidade. Espero que saibais
apreciar a sua generosidade, dizendo alto, todas ao mesmo
tempo: "Obrigada, Sara".
As alunas levantaram-se imediatamente, e, como no dia
longínquo da chegada de miss Crewe ao colégio, disseram todas
a uma:
- Obrigada, Sara!
Lottie saltava e mexia-se sem parar, no seu banquinho.
Sara parecia intimidada: Fez uma reverência graciosa às
condiscípulas e disse:
-Eu é que lhes agradeço o terem vindo à minha festa.
- Muito bem! Muito bem, Sara - aprovou miss Minchin. - É
o que fazem as verdadeiras princesas, quando o seu povo as
aclama. Lavinia (e isto foi dito num tom glacial), parece-me
que a menina fez troça. Se tem ciúmes da sua condiscípula,
podia, ao menos, exprimir os seus sentimentos de uma forma
mais elegante... Agora, minhas filhas, vou deixá-las, para
que se divirtam à sua vontade.
Apenas Miss Minchin saiu da aula, toda a disciplina e
boa compostura, mantidas até então, desapareceram. Os bancos
foram abandonados em tumulto, e todas as alunas, grandes e
pequenas, se precipitaram para os presentes. Sara inclinou-se
sobre uma das caixas, com ar de quem está maravilhada.
- São livros, tenho a certeza! - disse ela. E, levantou-
se um murmúrio de desapontamento, e Hermengarda parecia
consternada.
- Então o teu papá manda-te livros como presente de
aniversário? Nesse caso é tão terrível como o meu. Não os
abras, Sara.
- Eu adoro os livros - respondeu Sara, rindo. Mas a sua
atenção voltou-se para a caixa maior.
Quando de lá tirou a "Última Boneca", foi uma
aparição tão bela, que todas as outras alunas soltaram
gritos de alegria e recuaram, contendo a respiração, para
melhor admirarem aquela maravilha.
- É quase do tamanho da Lottie - murmurou
uma.
Lottie batia as palmas, saltava e ria.
-Tem um vestido de baile e um abafo(agasalho) de
noite forrado de arminho - observou Lavinia.
- Aqui está a mala da roupa - declarou Sara.
- Vamos abri-la para ver o enxoval.
Sentou-se no chão e deu volta à chave. As
outras pequenas comprimiam-se à sua roda, soltando
exclamações, enquanto ela examinava, um a um,
os
vários compartimentos da mala, e retirava o seu
conteúdo. Nunca houvera, no colégio, uma excitação
assim.
Sara ia mostrando: golas de renda e meias de
seda; um cofre com um colar e um diadema que
pareciam feitos de brilhantes verdadeiros; um casaco
de lontra e um regalo igual; vestidos de baile, de
passeio, de visitas; chapéus, roupões e leques.
Lavínia e Jessie esqueceram-se de que já eram
muito crescidas para se interessarem por bonecas e
soltavam, como as outras, gritos de entusiasmo, pegando
nos objetos para melhor os examinarem.
- Imaginemos - disse Sara, enquanto punha
um grande chapéu de veludo , sorridente e impassível
proprietária de todas aquelas riquezas , imaginemos que ela
compreende o que nós dizemos e
que está toda contente por se sentir admirada.
- Tu estás sempre disposta a imaginar qualquer
coisa - exclamou Lavínia, com ar superior.
- Bem sei - replicou Sara, serenamente. - Mas
isso distrai-me. Não há nada mais agradável do que
fazer suposições. Tem-se, quase, a impressão de se
ser uma fada. Quando se acredita em qualquer
coisa com todas as nossas forças, é como se fosse
verdade.
-É muito bom sonhar assim, quando se tem tudo o que tu
tens - disse ainda Lavinia. - Mas poderias, por acaso, fazer
o mesmo, se fosses uma pobre mendiga e vivesses num sótão?
Sara deixou de arranjar as plumas do chapéu e tomou uma
atitude pensativa.
- Creio que podia - respondeu ela, por fim.
- É, sobretudo, quando se é pobre, que se tem
necessidade de inventar e imaginar constantemente qualquer
coisa... Mas, na realidade, talvez seja menos fácil...
Mais tarde, Sara devia pensar muitas vezes que
- coisa estranha! - foi justamente no momento em que ela
acabava de pronunciar aquela frase, que Miss Amélia entrou na
sala.
- Sara!- disse a irmã da diretora. - O procurador de seu
pai, Sr. Barrow, pede para falar com Miss Minchin, e como
deseja que a conversa seja particular e o lanche está
preparado na nossa sala, era preferível as meninas irem
lanchar já, a fim de que a minha irmã possa receber aqui a
visita.
Um lanche é uma coisa que nunca se recusa, e muitos
olhos brilharam mais intensamente ao ouvir estas palavras.
Miss Amélia mandou que se colocassem em forma e tomou a
dianteira do cortejo, levando Sara pela mão. A soberba boneca
ficou sozinha, em cima da poltrona, com os seus esplendores
dispersos em volta: vestidos, casacos e roupa espalhados
sobre os móveis.
Becky, que não era admitida ao lanche, cometeu a grande
indiscrição de se demorar ainda meio minuto, para lançar um
derradeiro olhar a todas aquelas maravilhas.
Miss Amélia ordenara-lhe que voltasse ao seu trabalho,
mas ela ficou para levantar do chão, primeiro, um regalo,
depois um casaquinho, e enquanto contemplava aqueles objetos
com verdadeiro respeito,
ouviu a voz de miss Minchin, no vestíbulo.
Cheia de terror, com a idéia de ser apanhada em
flagrante delito de desobediência, precipitou-se para
debaixo da mesa, que estava coberta por um grande
pano, que chegava quase ao chão.
Miss Minchin entrou, seguida por um senhor
baixinho, seco, e nariz pontiagudo, que se mostrava
um tanto perturbado. A própria Miss Minchin parecia
ansiosa e olhava para o senhor baixinho com
ar intrigado.
Sentou-se, digna e hirta, indicando-lhe, com a
mão, uma cadeira.
- Sente-se, Sr. Barrow - disse ela.
O Sr. Barrow não obedeceu imediatamente a
esta intimação. A sua atenção estava presa à
uma Boneca e às magnificências espalhadas à sua volta.
Pôs a luneta e contemplou tudo com evidente reprovação.
A boneca, muito direita na sua cadeira, parecia fitá-lo com
desdenhosa indiferença.
- Quando se pensa no que tudo isto deve ter
custado - observou brevemente o Sr. Barrow. Tecidos
esplêndidos, um enxoval encomendado a uma
modista de Paris! Este homem esbanja o dinheiro...
Miss Minchin sentiu-se ofendida com aquela
crítica severa, feita ao seu melhor cliente. Na verdade,
ninguém, nem mesmo o procurador do capitão tinha o direito de
se permitir semelhante atrevimento.
- Desculpe-me - disse ela, secamente -, mas
não compreendo o que quer dizer.
- Semelhantes presentes - prosseguiu Barrow no mesmo tom
- para uma criança de onze anos
é pura extravagância!
A atitude de Miss Minchin tornou-se ainda mais
rígida.
- O capitão Crewe é imensamente rico - tornou ela. - Só
as minas de diamantes...
Barrow voltou-se bruscamente para ela e exclamou:
- As minas de diamantes não existem! Nunca existiram!
- Como? Que significam essas palavras.
- Pelo menos - respondeu ele, secamente - era melhor que
nunca as tivesse tido!
- Não tem minas de diamantes - proferiu Miss Minchin,
encostando- se ao espaldar da cadeira, com a sensação de que
um sonho maravilhoso acabava de se desfazer...
-Ah! As minas de diamantes são, na maioria dos casos,
uma origen de ruína e não de riqueza
- declarou Barrow. - Quando um homem não sabe nada de
negócios devia defender-se, como do fogo, das minas de
diamantes, de ouro, ou de qualquer outra coisa, a que os
amigos, que se dizem íntimos pretendem associá-lo. O defunto
capitão Crewe...
Miss Minchin soltou um grito.
- O defunto capitão Crewe - articulou, com dificuldade.
- O defunto! O senhor não veio anunciar-me que o capitão...
O capitão Crewe morreu, minha senhora - respondeu
Barrow, com a voz brusca ,e eu estou aqui para lhe
participar. Foi vitimado pelas febres e pelos tormentos que
passava por causa dos negócios. As febres não o teriam,
talvez, aniquilado, se não estivesse tão esgotado de
energias, e os cuidados não o teriam, talvez, morto, sem as
febres... Mas, enfim, morreu e eu fui encarregado de lhe
participar a sua morte.
Miss Minchin recaiu sobre a cadeira, esmagada por um
surdo pavor.
- Donde lhe vinham os cuidados - perguntou ela.
- Da famosa mina de diamantes - replicou Barrow -, do
"excelente" amigo que o arrastou para esse negócio e para a
ruína que se lhe seguiu.
Miss Minchin estava lívida.
- A ruína! - pronunciou ela, com esforço.
- Perdeu tudo. O capitão Crewe era muito rico.
O tal amigo, que tinha comprometido na mina toda
a sua fortuna pessoal, persuadiu-o a fazer o mesmo.
Depois, naturalmente, este "excelente amigo", um
dia, desapareceu. O capitão Crewe já estava doente
quando recebeu a notícia desse desaparecimento.
O golpe foi demasiado forte para ele. Morreu em
pleno delírio, chamando pela filha, a quem não deixa
um centavo.
Miss Minchin compreendia, finalmente. nunca
experimentara tão terrível decepção. A sua mais
brilhante aluna, o seu cliente mais rico - tudo perdido!
Parecia-lhe ser vítima de um roubo, como se
a explorassem, e que o capitão, Sara e Barrow eram
todos igualmente culpados.
- Quer, então, convencer-me - exclamou ela
- de que Sara não herdará nada e que, em vez de
uma herdeira rica, eu tenho, agora, no meu colégio,
uma menina pobre?
Barrow, cheio de sagacidade, compreendeu que
era prudente salvar, ali mesmo, a sua responsabilidade.
- assim mesmo - afirmou ele. - Sara fica
sem recursos. Já nos informamos: não lhe conhecemos
um parente nem um único amigo íntimo. É a
senhora, quem terá de ocupar-se dela.
Miss Minchin correu para a porta. Dir-se-ia que
o seu primeiro movimento foi ir suspender a festa cujos
ecos alegres e bastante ruidosos chegavam até ali.
- É monstruoso! - exclamou. - Neste mesmo
instante, está ela na minha sala, vestida de sedas e
rendas, dando uma recepção à minha custa!
- À sua custa, sem dúvida, minha senhora
repetiu
tranquilamente Barrow. - O Banco Baron e Skipworth não tem
nada mais que ver com este assunto. Nunca houve ruína mais
rápida e completa. O capitão Crewe morreu sem liquidar a
nossa última conta, que era das mais importantes.
Miss Minchin voltou para trás. A sua indignação era cada
vez maior. A situação tornava-se ainda pior do que ela
imaginava.
- E dizer - gritou - que eu tinha tanta confiança nele,
a ponto de fazer toda a espécie de despesas, verdadeiramente
loucas, com esta garota! Fui eu quem pagou esta ridícula
boneca e o seu extravagante enxoval. O capitão queria que
todos os desejos da filha fossem satisfeitos. Tem uma
carruagem alugada ao mês, uma criada de quarto, e fui eu quem
pagou tudo isso, depois que recebi o último cheque.
Barrow não tinha nenhum motivo que o levasse a prolongar
a sua visita para ouvir as recriminações de Miss Minchin.
Fizera a comunicação de que estava encarregado, salvaguardara
a responsabilidade da sua casa e, além disso, não sentia a
menor simpatia por aquela diretora de colégio transformada em
fúria.
- Que hei de fazer agora? - continuava Miss Minchin, que
parecia esperar que Barrow a livrasse de dificuldades. - Que
hei de fazer agora?
- Não há nada a fazer - disse ele, guardando a luneta na
algibeira. - O capitão Crewe morreu, a filha ficou sem
família e sem fortuna. A senhora é a única pessoa que tem
responsabilidade desta criança.
- Ela não me é nada, e eu recuso-me, absolutamente, a
assumir essa responsabilidade.
Miss Minchin estava lívida de furor.
Barrow dirigiu-se para a porta.
- Não posso remediar coisa alguma - disse ele, ainda,
com indiferença. - E repetiu - A nossa casa fica
absolutamente alheia a este triste caso, que nós
lamentamos mais do que é possível dizer.
- Se o senhor imagina que vai lançar-me, assim sem mais
nem menos, esta criança nos braços, engana-se - declarou miss
Minchin, com a voz abafada pela raiva. - Fui roubada,
explorada! pô-la-ei na rua!
Se ela não tivesse perdido completamente o domínio sobre
si própria, a sua hipocrisia habitual tê-la-ia impedido de
pronunciar semelhante frase. Mas vendo-se com o encargo de
tomar conta de uma pequena amimada, por quem sentira, sempre,
certa antipatia, não se pudera conter.
Barrow, sem se perturbar, continuava a aproximar-se da
porta.
- No seu lugar, eu não faria nada disso, minha
senhora - disse ele, com grande fleuma. - Isso não
causará bom efeito. Não faltarão logo as más línguas a
censurar o seu colégio. Toda a gente dirá que
a senhora abandonou uma das suas alunas por ela ter
ficado sem família e sem dinheiro.
Ele bem sabia o que dizia... E também sabia
que miss Minchin era muito interesseira e bastante
esperta para compreender que o bom senso lhe não
permitia cometer uma ação que lançaria publicamente
sobre ela, uma acusação de desumanidade.
- Fará muito melhor se a conservar consigo e
lhe arranjar uma ocupação - acrescentou. - Parece
que ela é muito inteligente. Poderá, quando crescer,
prestar-lhe serviços preciosos.
- Não é preciso crescer. Poderá prestar-mos
imediatamente - exclamou miss Minchin.
- Estou certo de que a senhora saberá tirar da
situação todo o partido possível - disse Barrow, com
um sorriso irônico. - Não tenho dúvida alguma
sobre isso! Até à vista, minha senhora!
Cumprimentou e saiu. Miss Minchin ficou,
durante
alguns segundos, a olhar furiosamente para
a porta. .
O que ele dissera era a pura verdade, ela bem o sabia.
Não lhe restava outro recurso. A aluna que fora a glória do
colégio, passara a não ser mais do que uma indigente. E todo
o dinheiro que Miss Minchin adiantara estava perdido para
sempre.
Enquanto ela estava ali, acabrunhada com a idéia da
injustiça que a viera ferir, um ruído de vozes chegava até
aos seus ouvidos. A isso, pelo menos, podia ela pôr termo
imediatamente.
Mas naquele mesmo instante, a porta abriu-se e apareceu
Miss Amélia, que recuou, ao ver a fisionomia alterada da
irmã.
- Que aconteceu - perguntou ela.
Com uma voz cheia de furor concentrado, Miss Minchin
respondeu com outra pergunta:
- Onde está Sara Crewe?
- Sara - balbuciou Miss Amélia, desconcertada. - Mas...
naturalmente... está na tua sala, com as outras alunas.
- Tem ela, por acaso, um vestido preto no seu suntuoso
guarda-roupa - perguntou Miss Minchin, com ironia.
- Um vestido preto - balbuciou, de novo, miss Amélia. -
Um vestido preto?
-Ela tem vestidos de todas as cores. Pergunto-te se não
tem um preto.
Miss Amélia começou a fazer-se pálida e disse:
- Não... quero dizer, sim mas está muito curto. É um
vestido velho, de veludo, e ela cresceu tanto, que já o não
pode vestir.
-Vai dizer-lhe que tire esse absurdo vestido de seda
cor-de-rosa, e que vista o preto, esteja ele como estiver. O
veludo e os enfeites acabaram para ela.
Era de mais. Miss Amélia levantou as mãos ao céu e
Começou a choramingar:
- Oh minha irmã! Oh minha irmã! Mas que sucedeu
Miss Minchin não esteve com rodeios. Disse
secamente:
-O capitão Crewe morreu, sem deixar um
centavo. E nós temos de ficar com esta pequena
caprichosa e adulada a nosso cargo.
Miss Amélia deixou-se cair pesadamente sobre
a cadeira mais próxima.
-Gastamos, para lhe satisfazer todas as fantasias, somas
enormes, de que nunca mais seremos
reembolsadas. Manda parar, imediatamente, esta ridícula
festa, e diz a Sara que mude de vestido, sem
demora.
- Eu - exclamou Miss Amélia, sufocada. É
indispensável... que eu... vá...
- Neste mesmo instante! Ou queres ficar aqui a olhar
para mim, como uma parva? Vai...
A pobre Miss Amélia estava habituada a ser tratada
assim. Reconhecia que a sua inteligência era
das mais medíocres, e que as pessoas da sua espécie são,
em geral, encarregadas de todas as missões
desagradáveis, tal como entrar numa sala repleta de
raparigas que se divertem, a dizer à rainha da festa
que, de repente, passou a ser uma pobre pequena
sem família e sem dinheiro, e que deve, sem tardar, ir
vestir um vestido preto, usado e curto.
Mas era forçoso executar a ordem que recebera, visto o
momento não ser, evidentemente, propício a objeções.
Enxugou os olhos, esfregando-os a ponto de
ficarem vermelhos, depois saiu da sala sem dizer
mais uma palavra. Quando a irmã estava naquele
estado de irritação, o mais prudente era obedecer sem
abrir a boca.
Miss Minchin ia e vinha através do quarto falando
sozinha sem mesmo dar por isso. Durante o
ano que acabava de decorrer, fizera, a propósito
daquelas minas de diamantes, os mais extraordinários
projetos. Não é proibido às diretoras de colégio fazerem
fortuna, comprando ações, com a ajuda e conselho de um
proprietário de minas... E agora, em vez de lucros, ela tinha
de suportar uma importante perda, sem compensação possível.
- A princesa Sara - dizia ela. - Sim, não há dúvida, a
princesa! Como uma rainha é que ela foi adulada...
Passava, nesse momento, junto da mesa e, de repente,
estremeceu: dir-se-ia que debaixo da cobertura vinha um
prolongado soluço.
- Quem está aí? - perguntou ela, numa voz irritada.
Ouvindo um segundo soluço, miss Minchin baixou-se e
levantou a ponta do pano.
- Que audácia - gritou ela. - Como te atreveste tu? Sai
daqui imediatamente!
A pobre Becky apareceu e pôs-se a andar de gatas, com a
touca à banda e a cara vermelha, congestionada à força de
deter os soluços.
-Desculpe, minha senhora! Não é ninguém, sou eu... -
explicou ela. - Bem sei que não devia ter ficado aqui, mas
estava a olhar para a boneca e, quando a minha senhora
entrou, eu tive tanto medo, que me escondi debaixo da mesa.
- E deixaste-te ficar lá, a escutar! - disse severamente
Miss Minchin.
- Oh não, minha senhora - protestou Becky, multiplicando
as reverências. - Eu não queria escutar, minha senhora, mas
não podia deixar de ouvir...
Parecia que, naquele momento, Becky chegara a esquecer a
presença de tão terrível patroa. E desatou a chorar.
- Oh minha senhora - soluçava ela -, eu bem sei que vou
ser despedida, mas tenho tanta pena da menina Sara... tenho
tanta pena!
- Sai daqui - ordenou miss Minchin. Becky, com o rosto
lavado em lágrimas, fez mais uma reverência.
-Sim, minha senhora, saio imediatamente - disse ela a
tremer -, mas... eu queria só perguntar à minha senhora: que
vai agora fazer a menina Sara, sem criada? Ela sempre foi
rica, está habituada a ter quem a sirva... Se... oh! minha
senhora... se me desse licença, eu fazia o serviço dela,
depois de arrumar a cozinha... Trabalharei com todas as
minhas forças, se a minha senhora me deixar ajudá-la, agora
que ela é pobre. Oh! (e as lágrimas eram cada vez mais
abundantes) pobre menina Sara, a quem chamavam princesa!
Miss Minchin sentiu-se novamente dominada pela cólera.
Só lhe faltava que aquela reles ajudante de cozinheira se
pusesse ao lado da outra, daquela Sara que, no seu íntimo,
ela sempre detestara - sentia-o agora mais do que nunca. Era
de mais! E bateu com o pé no chão.
- Não! Mil vezes não - respondeu ela. Sara há-de servir-
se a si própria e às outras. Sai daqui, e cala-te, senão
ponho-te na rua.
Becky pôs o avental na cabeça e fugiu. Desceu a quatro e
quatro as escadas de serviço, para a cozinha, e lá, sentada
entre cadeiras e panelas, chorou como se lhe arrancassem o
coração.
- É como nas histórias - soluçava ela - a pobre princesa
foi abandonada, sozinha, na rua.
Miss Minchin nunca fora tão fria e tão cruel, como
quando Sara, que mandara chamar, entrou no seu escritório,
algumas horas mais tarde.
A pobre pequena tinha a impressão de que a festa do seu
aniversário não passara de um sonho, em que ela tomara parte,
no lugar de outra criança, havia já muito tempo.
Todos os traços da festa tinham desaparecido; os festões
de azevinho haviam sido tirados; os bancos e as estantes
estavam de novo no seu lugar habitual. Todos os vestígios do
belo lanche haviam sido cuidadosamente retirados da sala de
Miss Minchin,
e a própria Miss Minchin vestira o seu vestido de todos
os dias. As alunas receberam ordem de fazer o mesmo, e
estavam agora reunidas na sala de
estudo, formando grupos excitados e falando todas ao
mesmo tempo.
- Diz a Sara que venha falar-me - ordenou Miss Minchin à
irmã. - E faz-lhe compreender que não quero lágrimas nem
cenas desagradáveis.
- Tu não fazes idéia!- respondeu Miss Amélia. - É a
criança mais singular que eu tenho conhecido. Não soltou um
grito! Lembras-te que sucedeu o mesmo, quando o pai se foi
embora? Pois bem: quando, há pouco, eu Lhe disse o que tinha
acontecido, ficou imóvel, a olhar para mim, sem dizer uma
única palavra. Apenas os olhos pareciam maiores e a carinha
se lhe tornou muito pálida. Quando acabei, ficou com o olhar
fixo, durante alguns segundos, depois o queixo começou a
tremer-lhe e fugiu para a escada. A maior parte das outras
alunas principiou a chorar, mas ela parecia não as ouvir e
mostrava-se indiferente a tudo, menos ao que eu dizia. Não
posso explicar-te a impressão que este silêncio me fez!
Quando se anunciam estas coisas, esperamos sempre que nos
digam, ao menos, uma palavra, seja ela qual for.
Mas ninguém, além de Sara, soube, nunca, o que se passou
no seu quarto, depois que ela ali entrou e se fechou à chave,
por dentro. Na realidade, a própria Sara nunca conseguia
recordar-se bem do que se passara. Lembrava-se apenas de ter
andado para trás e para diante, repetindo, sem parar, com uma
voz que não parecia a sua:
- O meu papá morreu! O meu papá morreu!
Uma das vezes, parou diante da cadeira onde estava Emily
e gritou, desesperadamente:
- Ouves bem, Emily! Ouves? O meu papá morreu! Morreu lá
longe, muito longe, na Índia!
Quando Sara entrou no escritório de miss Minchin,
estava desfigurada, com grandes olheiras rochas,
pisadas, e os lábios muito cerrados, como se não
quisesse deixar adivinhar a ninguém a sua dor.
Não
era, já, a linda borboleta cor-de-rosa, que ia de um
presente para o outro, na sala de estudo, toda decorada
com verdura. Era uma pequena aparição estranha
e dolorosa.
Enfiara o vestido preto, velho, que já tinha
posto de parte, sem o auxílio de Mariette. Esse
vestido era muito curto e muito estreito.
As pernas de
Sara pareciam,
assim, mais altas e extremamente
magras. Como não tinha fita preta, os cabelos espessos e
curtos caíam-lhe sobre o rosto, fazendo ressaltar ainda mais
a sua palidez.
Trazia debaixo do
braço a sua querida Emily a quem envolvera num
bocado de tule preto.
- Ponha a boneca em qualquer parte - disse
Miss Minchin. - Que necessidade tinha de a trazer para
aqui?
- Não - respondeu Sara. - Conservá-la-ei
comigo. É tudo o que me resta.
E foi o papá quem
ma deu.
Miss Minchin experimentava sempre uma espécie de timidez
quando falava com Sara; e, sem saber
explicar porquê,
sentiu-se pouco à vontade. Sara
falara-lhe com uma dignidade glacial e Miss Minchin não
encontrou palavras para lhe responder.
Talvez a consciência a acusasse de estar procedendo
com uma crueldade revoltante.
- Não terá tempo para brincar com bonecas!
observou ela. - Tem de trabalhar e aprender a
tornar-se útil.
Sara, com os seus grandes olhos fixos na diretora, não
respondeu uma só palavra.
- Tudo mudou - continuou Miss Minchin. Creio que Miss
Amélia Lhe explicou...
- Sim- respondeu Sara. - Sei que o meu pai
morreu, que não deixou dinheiro, e que sou muito
pobre.
- Pior do que isso! A menina não tem nada, absolutamente
nada, nem parentes, nem casa, nem ninguém que se preocupe
consigo! - disse Miss Minchin, que se encolerizava cada vez
mais, à medida que ia falando.
Um estremecimento percorreu a carinha magra e pálida de
Sara, mas nem uma única palavra saiu dos seus lábios.
-Então?! Porque está a menina a olhar para mim dessa
maneira? - exclamou àsperamente Miss Minchin. É tão estúpida,
que não me compreende? Digo-lhe que está absolutamente só no
mundo e que ninguém está disposto a fazer qualquer coisa por
si a não ser que eu consinta em conservá-la aqui por
caridade.
- Compreendi muito bem - respondeu Sara, baixinho. -
Compreendi tudo.
Adivinhava-se que a pobre rapariga procurava,
com
toda a sua energia, sufocar os soluços.
- Esta boneca - gritou Miss Minchin, fitando o magnífico
brinquedo que estava junto dela -, Esta ridícula boneca, com
o seu extravagante enxoval, fui eu que a paguei com o meu
dinheiro.
Sara voltou a cabeça naquela direção. A "Última Boneca"
- murmurou ela. - A "última Boneca"... "
Sentia-se na sua vozita uma profunda e inexprimível
tristeza.
- A "Última" bem o pode dizer - afirmou Miss Minchin. -
já não é sua, não lhe pertence, como, de resto, tudo quanto
era seu:
- Está muito bem. Pode guardá-la - respondeu Sara. - Não
tenho nenhum empenho nela.
Se a pequenina chorasse e soluçasse, se ela se
tivesse mostrado aterrorizada, Miss Minchin ter-se-ia
mostrado, talvez, mais conciliadora. Mas, gostando
acima de tudo, de dominar, sentia-se desafiada por
aquele rostozinho pálido e por aquela voz fina, mas altiva.
- Não tome os seus grandes ares - replicou ela. - Os
tempos mudaram. O papel de princesa acabou. Não se trata mais
de carruagem, nem de criada particular. Vou suprimir tudo
isso. A menina usará os vestidos velhos, porque os outros são
luxuosos de mais para a atual situação. Presentemente, não é
mais do que Becky. Precisa de trabalhar para ganhar a vida.
Com grande surpresa sua, Miss Minchin viu brilhar um
rápido clarão nos olhos da pequenina, um clarão de alívio.
- Poderei trabalhar? - perguntou ela. - Nesse caso, se
posso trabalhar, será menos doloroso. Que devo eu fazer?
- Tudo o que lhe mandem - respondeu a diretora. - A
menina é inteligente e compreende ràpidamente o que lhe
explicam. Se conseguir tornar-se útil, consentirei que fique
no colégio. Como fala bem francês, pode dar lição às alunas
mais novas.
- Que bom! - exclamou Sara. - Não desejo outra coisa!
Deixe-me ensinar as pequeninas! Gosto tanto delas e elas
gostam tanto de mim...
- Não diga disparates! Pouco importa que elas gostem de
si ou não - interrompeu Miss Minchin. E continuou - Terá,
além disso, outras ocupações. fará as compras, trabalhará
tanto na cozinha como na classe infantil. E se eu não estiver
satisfeita, mandá-la-ei embora. Não se esqueça! Agora pode
retirar-se.
Sara não se mexeu. No seu cérebro agitavam-se graves e
singulares pensamentos. Por fim, dirigiu-se para a porta.
- Então? - exclamou Miss Minchin. - É assim que me
agradece?
Sara parou. Os pensamentos afluíam-lhe, cada vez mais
tumultuosos.
- Que tenho eu que agradecer-lhe? - perguntou ela,
lentamente.
- A bondade com que a trato - respondeu miss Minchin. -
O lar que lhe ofereço!
Sara deu uns passos para a diretora. O seu peito
magrinho ergueu-se, e a sua voz deixou de ser a voz de uma
criança, quando disse, com profunda amargura:
-A senhora não é bondosa! Nem a sua casa é um lar!
E saiu da sala, enquanto Miss Minchin, muda de raiva, a
seguia com o olhar.
Sara subiu as escadas lentamente; estava ofegante, e
apertava Emily de encontro ao coração, com quanta força
tinha.
"Quem me dera que Emily pudesse falar! - dizia ela
consigo própria. - Oh! se ela falasse!"
Pensava em refugiar-se no seu quarto e deitar-se sobre a
pele do tigre, encostar a carinha à grande cabeça da fera e
contemplar o lume, entregando-se aos seus pensamentos
dolorosos. Mas, no momento em que chegava ao patamar, Miss
Amélia saiu do quarto, puxou a porta e parou, com ar
embaraçado. No fundo estava envergonhada com as ordens que a
irmã tinha dado.
- Não pode entrar mais aqui - disse ela.
- Não posso
entrar? - repetiu Sara, recuando,
ligeiramente.
- Já não é o seu quarto - explicou Miss Amélia,
tornando-se corada.
Sùbitamente, fez-se luz no espírito de Sara: era o
inicio da mudança anunciada por Miss Minchin.
- Onde é o meu quarto - perguntou ela, pedindo a Deus,
interiormente, que a sua voz não tremesse.
- Dormirá nas águas-furtadas, ao lado de Becky.
Sara compreendeu. Becky tinha-Lhe explicado onde dormia.
Voltou-se e subiu mais dois andares. O último era
estreito, íngreme, e estava coberto por um tapete ordinário,
todo esburacado.
Sara teve a impressão de deixar, para sempre, o mundo
onde vivera aquela outra pequena adulada e amimada que ela
fora, e na qual se não reconhecia. A criança vestida de
veludo preto, já coçado, que subia a escada do sótão, não
tinha nada de comum com a outra, bafejada pela sorte.
Quando abriu a porta, teve uma rápida e dolorosa
sensação de pavor. Depois entrou, fechou a porta, encostou-se
à parede e olhou em volta de si.
Sim, na verdade era outro mundo!
O sótão, caiado de branco, tinha o teto em desvão. As
paredes, sujas e úmidas, estavam esburacadas. Havia uma grade
ferrugenta no fogão, um velho leito de ferro, com um colchão
duro e um cobertor desbotado. Como mobiliário, todos os
móveis partidos ou fora de uso que havia em casa. Sob a
trapeira, que deixava apenas ver um pequeno retângulo de céu
cinzento e triste, via-se um banco estofado, muito velho.
Sara sentou-se ali. Não chorava. Pôs Emily nos joelhos,
encostou a cara à da boneca, passou-lhe os braços em volta do
corpo e ficou assim, com a cabeça confundida com o véu negro
da sua insensível companheira sem dizer uma palavra nem fazer
um movimento.
E eis que, no meio daquele silêncio mortal, alguém bateu
à porta, umas pancadas tão humildes e tímidas, que Sara não
as ouviu. A sua atenção só despertou quando, espreitando pela
porta que entreabrira, apareceu uma cara, toda suja de
lágrimas e pó de carvão. Era Becky, que, à força de chorar e
de limpar o rosto com o avental de linhagem, se tornara
irreconhecível.
- Oh! Miss - murmurou ela. - Dá licença...
quer que eu entre e fique um bocadinho ao pé de si?. .
Sara ergueu a cabeça e olhou para Becky. Queria sorrir-
lhe, mas não podia. E de repente, graças à carinhosa piedade
de que os olhos de Becky estavam cheios, o seu coração
desoprimiu-se, a sua carinha de criança prematuramente
envelhecida desanuviou-se. Sara levou as mãos aos olhos e
deixou escapar um soluço.
- Oh Becky - disse ela. - Eu disse-te um dia que nós
éramos semelhantes, que éramos duas crianças, nada mais que
duas crianças. Vês agora que é verdade? Não há nenhuma
diferença. A princesa já não existe.
Becky correu para ela, pegou-lhe na mão e, apertando-a
de encontro ao peito, ajoelhou junto de Sara, a chorar de
ternura e compaixão.
- Sim, existe sempre uma diferença - exclamou ela, com
voz entrecortada de soluços. -Aconteça o que acontecer, seja
o que for, a menina será sempre uma princesa. Nada, ninguém
neste mundo poderá fazê-la diferente.
NO Sótão
Sara nunca mais poderia esquecer a primeira noite que
passou no sótão. Viveu ali horas de dor e desespero grandes
de mais para a sua idade, e das quais nunca falou a ninguém.
Nenhuma das pessoas que, então, a cercavam, a compreendeu.
Felizmente para ela, durante essa noite horrível, enquanto os
seus grandes olhos se conservavam muito abertos na escuridão,
o seu espírito distraía-se, de quando em quando, apesar de
tudo, impressionado pelo que havia de estranho naquele lugar,
ao mesmo tempo que uma espécie de angústia física Lhe
recordava o mundo exterior.
Sem isso, a sua alminha não teria suportado tão horrível
sofrimento.
Enquanto as horas passavam lentamente, ela esquecia que
tinha fome, que tinha frio, esquecia pelo menos a implacável
realidade:
- O meu papá morreu - repetiu ela, baixinho. - O meu
papá morreu!
Só muito mais tarde é que ela deu conta de se ter
voltado e tornado a voltar, em vão, no péssimo colchão, para
ver se encontrava um sitio um pouco menos duro; a escuridão
parecia-Lhe medonha, o vento uivava no telhado, dando-lhe a
impressão de uma voz que se lamentava alto.
Mas havia ainda uma coisa pior: certos ruídos, corridas,
gritinhos que sentia, no teto e no rodapé. Graças à
explicação de Becky, sabia o que era: os ratos e ratazanas
que lutavam e se perseguiam. Uma ou duas vezes mesmo, ouviu
patas pequenas, arranhadas de unhas, correrem no sobrado e,
muito tempo depois, ao recordar esta noite pavorosa,
lembrava-se de se ter sentado no leito, ao ouvir o primeiro
ruído, e de, em seguida, esconder a cabeça debaixo do
cobertor, a tremer de medo.
De um momento para o outro, sem transição, a sua vida
transformara-se completamente.
- De que servem meias palavras! - dissera Miss Minchin à
irmã. -É preciso que ela saiba imediatamente o que a espera.
Mariette partira no dia seguinte. Quando Sara ao passar
em frente da sua antiga sala, lançou, pela porta, um rápido
olhar, viu que não estava ali nada do que lhe pertencera, e
que um leito, colocado ao fundo, transformara a sala num
quarto para outra aluna.
Ao descer para o primeiro almoço, verificou que o seu
lugar, ao lado de Miss Minchin, estava ocupado por Lavínia.
Miss Minchin disse-lhe, friamente:
- Para começar, Sara, vigie o almoço das menores. Faça
com que elas se portem convenientemente e não estraguem a
comida. Devia ter chegado mais cedo. Olhe a Lottie já
entornou a chávena...
Era apenas o principio... Depois, cada dia trazia a Sara
um pouco mais de trabalho. Ensinava francês às mais novinhas,
fazia-lhes repetir as lições, e era esta a parte mais fácil
da sua tarefa. Bem depressa
perceberam que podiam utilizá-la para tudo, obrigá-la a
fazer recados a qualquer hora e por qualquer tempo,
encarregá-la de todo o trabalho que as outras não faziam. A
cozinheira e as criadas de quartos regularam a sua atitude
pela de Miss Minchin, experimentando, no fundo, certa
satisfação em se fazerem servir pela "pequena" diante da
qual, durante tanto tempo, toda a gente se inclinara. Eram
criaturas vulgares, que não possuíam bom caráter e achavam
cômodo ter alguém a quem mandar, e sobre quem pudessem lançar
a culpa de todas as faltas e negligências.
Durante os dois primeiros meses, Sara esperou que a boa
vontade e aplicação que mostrava, o silêncio com que ouvia
todas as reprimendas, ainda as mais injustas, acabariam por
tornar menos ásperos àqueles que tão duramente a tratavam. No
íntimo da sua alminha altiva e nobre, queria provar-lhes que
procurava ganhar a vida e que não aceitava esmolas. Mas o
tempo passava e ninguém se humanizava; quanto mais ela
trabalhava,
mais
as
criadas
de
quarto
se
tornavam
autoritárias e exigentes, e mais a cozinheira, sempre
rabugenta, lhe ralhava.
Se ela não fosse tão novinha, Miss Minchin confiar-Lhe-
ia uma das aulas, o que lhe teria permitido suprimir um dos
professores e realizar, assim, uma apreciável economia. Mas,
enquanto Sara fosse e parecesse uma criança, era preferível
empregá-la como uma espécie de rapariga de recados ou criada
para todo o serviço. Um "groom" vulgar não seria tão
inteligente nem tão merecedor de confiança. Ao passo que Sara
podia encarregar-se de recados difíceis e, mesmo, delicados.
Era ela quem ia pagar as contas e, ao mesmo tempo,
varria e limpava o pó na perfeição, e sabia arrumar tudo
cuidadosamente.
Ninguém se preocupou mais com os seus estudos. Ninguém
Lhe ensinou mais nada. Apenas, ao serão, depois de longos e
fatigantes dias cheios de trabalho, de idas e vindas, a
autorizavam - quase com pena! - a entrar numa das aulas
desertas, escolher alguns livros e estudar sozinha, conforme
podia, antes de se deitar.
"Se não recordo tudo o que aprendi - pensava ela -,
acabarei por não saber nada. Sou quase uma criada e, se me
torno uma criada ignorante, serei como a pobre Becky. Quem
sabe
se
eu
não
acabarei
por
esquecer
tudo,
falar
incorretamente e não me lembrar, sequer, do nome das seis
mulheres de Henrique VIII!"
Um dos aspectos mais curiosos da sua nova existência era
a mudança de situação, em relação às suas antigas
condiscipulas. Fora quase uma soberana e, agora, era como se
não existisse...
Absorvida pelo trabalho, Sara mal tinha ocasião de lhes
falar, mas compreendera que miss Minchin preferia que ela
vivesse inteiramente à parte das pensionistas.
- É inútil que se misture com as alunas - dissera miss
Minchin. - As raparigas deixam-se sempre impressionar pelas
situações patéticas, e se Sara começa a imaginar um romance,
de que seria heroína, podiam tomá-la como vítima e isso
causaria má impressão entre a nossa clientela. É melhor que
viva, à parte, uma vida mais em conformidade com a sua
situação atual. Ofereci-lhe um abrigo, e já fiz muito, porque
não tenho obrigação alguma para com ela.
Sara era bastante orgulhosa para tentar manter relações
com as companheiras que, muito abertamente, se mostravam
embaraçadas, quando lhe falavam. A maior parte das alunas de
Miss Minchin não sabia o que era generosidade. Estavam
habituadas à riqueza, à vida despreocupada, ao conforto. E
como os vestidos de Sara se iam estragando e ficavam fora de
moda; como os seus sapatos iam ficando rotos e ela ia fazer
recados, a correr, à
mercearia e onde calhava, com uma cesta no braço, quando
a cozinheira tinha pressa, parecia àquelas
meninas que, ao falar à sua antiga condiscípula, se
dirigiam a uma criada de primeira categoria.
- Quando me lembro de que ela era a princesa da mina de
diamantes - dizia Lavínia. - Agora tem o ar de um espantalho
de pardais! Cada vez está mais esquisita! Nunca gostei dela,
mas acho inadmissível a maneira como olha para nós, como se
quisesse adivinhar os nossos pensamentos.
- É assim mesmo - observou Sara, sem hesitar, quando lhe
foram contar isto. - A minha intenção, quando olho para
certas pessoas, é justamente adivinhar o que elas pensam e
refletir, em seguida, sobre aquilo que descobri...
Para dizer a verdade, vigiando Lavínia, evitara, mais de
uma vez, ter grandes aborrecimentos, porque aquela procurava,
por todas as formas, fazer partidas a toda a gente e ficaria
radiante se pudesse fazer passar um mau bocado à ex-glória do
colégio.
Sara, pelo contrário, não fazia partidas a ninguém nem
se metia na vida dos outros. Trabalhava como uma escrava,
indo aonde a mandavam, mesmo debaixo de chuva, carregada de
embrulhos e cestos; lutava contra a preguiça e a distração
das pequeninas, durante a lição de francês. O aspecto do seu
vestuário era cada vez mais miserável, a ponto de, um dia,
Miss Minchin lhe dizer que, dali em diante, comeria na
cozinha.
Ninguém se preocupava com ela; o seu coração sofria
mais, mas a sua altivez não cedia e ninguém lhe ouvia, nunca,
uma lamentação, por mais pequena que fosse.
"Os soldados não se lamentam - dizia ela, de si para si,
com os dentes muito cerrados. - Eu também nunca me
lamentarei. Imaginarei que estou na guerra.”
Apesar de todo o seu heroísmo, esta criança teria
sucumbido sob o peso do abandono atroz em que vivia, se não
tivesse três amigas a ampará-la moralmente.
A primeira - diga-se desde já - era Becky. Durante a
primeira noite passada no sótão, Sara sentira um grande
conforto ao pensar que, do outro lado da parede, estava uma
criança, pequena e desprezada como ela, a quem os ratos
também assustavam. Este sentimento aumentou ainda mais nas
noites seguintes.
Becky e ela não tinham ocasião de falar uma com a outra
durante o dia. Cada uma tinha o seu trabalho e seriam
acusadas de empregar mal o tempo se fossem surpreendidas em
flagrante delito de conversa...
- Não faça caso - dissera- Lhe Becky, na primeira manhã.
-Não faça caso, se eu não for bastante delicada para com a
menina. É que, se o fosse, ralhariam comigo. “Mas a menina
bem sabe que eu estou sempre pronta a dizer-lhe “muito
obrigada”, “se faz favor” e desculpe-me”. O que não posso é
perder tempo...
De manhã cedo, Becky entrava no quarto de Sara;
abotoava-lhe o vestido e ajudava-a em tudo o que podia, antes
de ir acender o lume. E à noite, Sara ouvia sempre, na sua
porta, as pancadinhas tímidas com que a sua "criada de
quarto" anunciava que estava pronta a prestar-lhe todos os
serviços possíveis.
Durante as primeiras semanas do seu grande desgosto,
Sara sentia-se demasiadamente abatida para poder conversar, e
as duas pequenas viram-se poucas vezes. O coração delicado de
Becky compreendia que, quando se é infeliz, é agradável estar
só.
O número dois do trio era Hermengarda. Mas passou algum
tempo antes que ela cumprisse a sua missão.
Quando Sara retomou, a pouco e pouco, o gosto pela vida,
percebeu que se esquecera completamente de Hermengarda.
Haviam sido boas amigas, nas Sara tivera sempre a impressão
de ser muito mais velha do que a sua companheira.
Hermengarda era, sem dúvida, uma boa pequena, mas de
inteligência acanhada. Dedicara-se a Sara como uma pobre
criatura que tem necessidade de ser amparada; pedia-lhe que
lhe explicasse as lições e bebia as suas palavras, não se
cansando de a ouvir contar histórias. Mas, ela, coitadinha,
era incapaz de contar fosse o que fosse; ignorava tudo, tinha
horror aos livros. Era uma daquelas pessoas insignificantes,
que se esquecem nas horas de grande sofrimento e Sara tinha-
se esquecido dela mais fàcilmente ainda pelo fato de
Hermengarda, no momento da catástrofe, se encontrar em casa,
onde permaneceu durante algumas semanas.
Foi apenas pouco depois do seu regresso ao colégio que
Hermengarda encontrou Sara, quando esta se dirigia à rouparia
com os braços carregados de roupa pois já a tinham ensinado a
coser e a remendar. Sara estava pálida - não parecia a mesma
e trazia um vestido velho que mal lhe cobria as pernas muito
magras.
Hermengarda não foi capaz de lhe dizer uma só palavra.
Não ignorava nada do que sucedera, mas nunca imaginava ver
Sara assim tão pobre, tão diferente, transformada quase em
criada. Ficou impressionadíssima , apesar disso não soube
fazer mais nada senão dar uma gargalhada nervosa e dizer,
maquinalmente:
- Oh Sara, és tu?
- Certamente, sou eu - respondeu Sara. De súbito,
atravessou-lhe o cérebro um pensamento que a fez corar.
Trazia uma grande rima de roupa nos braços e apoiava o queixo
sobre ela, para segurá-la melhor. Nos seus grandes olhos, tão
tristes,
passou uma sombra, que fez perder a cabeça à pobre
Hermengarda. Pareceu-lhe que Sara era uma outra criança, que
ela nunca tinha conhecido. Estava comovidíssima com uma tão
grande desgraça e pelo fato de Sara ser obrigada a trabalhar,
tal como Becky.
- Oh - balbuciou ela. - Como estás tu?
- Vou vivendo - respondeu Sara. - E tu?
- Mas... eu estou boa... - respondeu Hermengarda, muito
embaraçada. E, nervosamente, procurou uma frase um pouco
afetuosa. - Tu... tu és muito infeliz ? - perguntou ela,
ofegante.
Naquele instante Sara foi injusta. Seu coração ferido
revoltou-se, e ela pensou que era preferível deixarem-na em
paz a dizerem-lhe semelhantes disparates.
-Julgas então que eu não posso ser muito feliz -
replicou ela.
E,
sem
acrescentar
uma
palavra,
afastou-se
de
Hermengarda.
Mais tarde, Sara devia pensar que a sua desgraça lhe
fizera perder a memória, pois só assim ela se esquecera de
que a gorducha Hermengarda não era responsável pelas tolices
que dizia. A pobre pequena sempre fora desastrada e, quando o
não queria ser, ainda era pior...
Sara, entretanto, com o coração a sangrar, pensava:
" Hermengarda não é melhor do que as outras... Não tinha
nenhum desejo de me falar. Ela sabe que ninguém me fala. "
Assim se ergueu entre elas uma barreira invisível.
Quando, por acaso, se encontravam, Sara voltava a cabeça e
Hermengarda sentia-se tão comprometida, que não era capaz de
falar.
Às vezes trocavam um rápido sinal de cabeça e nada mais.
Mas, quase sempre, faziam de conta que não se conheciam.
"Se ela prefere não me falar - pensava Sara ,eu por mim,
nada lhe direi; é isto mesmo que Miss
Minchin deseja."
Efetivamente, esta atitude correspondia em
absoluto ao que Miss Minchin desejava, e as duas
crianças acabaram por não se ver mais. Durante
esse período, todos verificaram que Hermengarda
estava mais parvinha do que nunca, e tinha um ar
triste e desgraçado.
Passava horas no vão de uma janela,
a olhar
vagamente para a rua, sem proferir palavra.
Jessie, um dia, parou junto dela, a olhar, surpreendida.
- Porque choras tu, Hermengarda? - perguntou ela.
- Eu não estou a chorar - respondeu a outra
em voz sumida.
-Não estás a chorar? Então de quem é essa
grande lágrima que te vem a rebolar pelo nariz?
não querem lá ver - exclamou Jessie.
- Pois bem, é verdade - confessou Hermengarda - tenho um
desgosto... mas ninguém tem nada
com isso.
E, voltando as costas a Jessie, tirou o lenço
da algibeira, sem disfarce, e cobriu a cara com ele.
Na noite desse mesmo dia, Sara foi para o
quarto mais tarde do que era costume. Tivera muito
que fazer, ainda depois da hora das alunas se deitarem,
e em seguida estivera a estudar na aula deserta. Ao chegar ao
patamar; ficou surpreendida
por ver a luz brilhar por debaixo da porta.
"Ninguém aqui vem a não ser eu” - pensava
ela. - Quem teria acendido a luz? “Efetivamente, alguém
entrara no quarto, com
uma vela acesa.
Com uma camisa de noite vestida, e embrulhada
no xale vermelho, esse alguém estava sentado no
velho banco desbotado: Sara reconheceu Hermengarda.
- Hermengarda - exclamou ela, quase assustada. - Vais
ser castigada!
Hermengarda levantou-se, cambaleando, por que
tinha calçado pantufas muito largas. Os seus
olhos e as suas faces estavam vermelhos e inchados.
- Bem sei, mas não me importo - respondeu
ela. - Oh Sara! Peço-te que digas que mal te fiz
eu? Porque não és já minha amiga?
As suas palavras eram tão afetuosas, tão simples, faziam
lembrar tanto a Hermengarda de outro
tempo, quando ela lhe propusera serem "amigas
íntimas", que Sara sentiu a garganta apertar-se-lhe
um pouco.
Com aquelas palavras, Hermengarda desfazia
toda a aparência de crueldade da sua atitude.
- Gosto muito de ti - disse Sara. - Mas eu
julgava... tu compreendes, tudo mudou tanto para
mim... que eu julgava que tu também já não eras
a mesma.
Hermengarda abriu muito os olhos ainda cheios
de lágrimas.
- Mas... tu é que não és a mesma - exclamou
ela. -Não me querias falar. Eu não sabia o que
havia de fazer. Tu é que estavas diferente, quando
eu voltei.
Sara refletiu um momento e compreendeu o
seu erro.
- Eu mudei, é certo - explicou ela - mas não
no sentido em que tu julgas. Miss Minchin não quer
que eu fale com as alunas, e a maior parte delas
não tem vontade nenhuma de me falar. Pensei que
tu eras como elas e, por isso, procurei evitar-te.
- Oh Sara - gemeu Hermengarda, num tom
de censura.
Depois, olharam-se e lançaram-se nos braços
uma da outra. A cabeça de cabelos pretos demorou-se
um pouco sobre o ombro coberto pelo xale vermelho. A
verdade é que, ao julgar que também Hermengarda a abandonava,
Sara sentira-se mais só do que nunca.
Em seguida, sentaram-se no chão, ao lado uma da outra:
Sara com os braços em volta dos joelhos, Hermengarda
embrulhada no seu xale.
Hermengarda fitava a carinha original e os grandes olhos
da amiga, com uma espécie de adoração.
- Eu não podia mais - disse ela. - Tenho a certeza,
Sara, de que tu podes muito bem passar sem mim; mas eu é que
não posso passar sem ti. Sentia que ia morrer. Hoje, quando
estava a chorar, com a a cabeça debaixo da roupa, lembrei-me,
de repente, de subir até ao teu quarto, para te pedir que
tornemos a ser boas amigas.
- Vales mais do que eu - disse Sara. - Eu teria sido
demasiado orgulhosa para fazer isso. Vê, Hermengarda, chegou
para mim o tempo da provação, e tem-me mostrado que eu não
sou boa nem generosa... Eu tinha a certeza... Talvez fosse
por isso - disse ela, curvando a cabeça - que a provação me
foi enviada...
-Eu cá não vejo onde possa estar a utilidade das
provações - afirmou Hermengarda com energia.
- Para falar francamente, eu também não - concordou
Sara. - Mas penso que tudo tem um lado bom, mesmo quando nós
o não vemos. A própria Miss Minchin... (aqui a voz de Sara
perdeu a convicção)... Sim, a própria Miss Minchin talvez
tenha o seu lado bom!
Hermengarda inspecionava o quarto com o olhar. Estava
cheia de curiosidade tímida.
- Sara! - perguntou ela. - Julgas que podes habituar-te
a viver aqui?
Sara olhou também.
- Se eu conseguir convencer-me de que isto é muito
melhor do que parece, sou capaz - respondeu ela. - Ou, então,
se eu imaginar que isto é um lugar histórico.
Falava lentamente. A sua imaginação despertava de um
longo sono, porque depois da sua grande infelicidade,
sentira-se incapaz de imaginar ou inventar fosse o que fosse.
- Muitas pessoas - continuou ela - viveram em lugares
piores do que este. Lembras-te do conde de Monte Cristo nas
masmorras do castelo D’If? E os prisioneiros da Bastilha?
- A Bastilha - repetiu Hermengarda, como que fascinada.
Lembrava-se das histórias da Revolução Francesa que,
contadas por Sara, com uma grande expressão dramática, se
tinham fixado na sua memória. Ninguém, além de Sara,
conseguira, nunca, semelhante prodígio...
Pouco a pouco, brilhava nos olhos de Sara o antigo
ardor.
- Sim - disse ela, como se falasse consigo própria. -
Este sótão é perfeito para imaginar um romance. Eu sou um dos
prisioneiros da Bastilha. Há anos que estou encarcerada aqui;
toda a gente me esqueceu. Miss Minchin é o carcereiro, e
Becky... (os olhos brilharam-lhe mais), Becky é o prisioneiro
da cela vizinha.
Olhou para Hermengarda; a verdadeira Sara reaparecia.
- Aqui está o que eu vou imaginar - continuou ela - e
será uma grande consolação.
Hermengarda sentiu-se, ao mesmo tempo, contente e um
pouco assustada.
- Hás de contar-me tudo, sim? - pediu ela. Dás-me
licença que eu venha ter contigo, à noite, quando todos
estiverem deitados? Dir-me-ás o que
tiveres inventado durante o dia, e nós seremos ainda
mais amigas íntimas do que dantes.
- Pois sim - aprovou Sara. - É na adversidade que se
conhecem os amigos: a minha infelicidade provou-me quanto tu
és boa!
RODILARD
Lottie era o terceiro membro do trio consolador. Era
ainda muito pequena para compreender o que é a desgraça, e a
transformação da vida da sua "mamã adotiva" lançara-a na mais
profunda perplexidade. Haviam-lhe dito que Sara tivera
grandes infelicidades, mas ela não podia explicar a si
própria por que razão Sara mudara tanto, e porque usava um
vestido preto, velho, feio, e por que motivo tomava conta das
mais novinhas, em vez de ocupar o melhor lugar na sala de
estudos, como antigamente.
As mais pequeninas tinham ficado espantadas e não se
fartavam de dizer segredinhos, ao descobrir que Sara não
ocupava já o quarto, onde, durante tanto tempo, reinara
Emily. Mas o que atormentava principalmente Lottie eram as
respostas breves de Sara, sempre que ela lhe perguntava
qualquer coisa. Quando se tem sete anos, é preciso que os
mistérios sejam claramente explicados, para que possam ser
compreendidos.
- Então, tu agora és muito pobre, Sara - perguntava
Lottie, baixinho, a primeira vez que a sua grande amiga foi
dar lição à classe infantil. - És
tão pobre como os mendigos da rua?
E, ao dizer isto, metia a mãozinha gorda entre
os dedos esguios de Sara, e os olhos tornavam-se-lhe
maiores, cheios de lágrimas.
- Eu não quero que tu sejas pobrezinha como
os mendigos...
Estava quase a chorar, e Sara apressou-se a consolá-la,
dizendo-lhe, corajosamente:
-Os mendigos não têm casa para se abrigar!
e
tu
bem
vês que eu tenho uma.
- Onde moras tu? - continuou Lottie. - Está
uma nova aluna no teu quarto, e o quarto, agora,
já não é tão bonito...
- Deram-me outro - respondeu Sara.
- Também é bonito? - insistiu Lottie. - Eu
queria vê-lo...
- Cala-te - ordenou Sara -, Miss Minchin está
a olhar para nós e ela vai ralhar-me se tu continuas
a falar comigo.
Já tinha compreendido que a tornava responsável
por todas as desobediências ao regulamento. Se as
petizas estavam distraídas, faladoras ou irrequietas,
Sara era sempre a culpada...
Mas Lottie era uma pessoazinha muito decidida.
Sara não queria dizer onde era o seu quarto? Pois
bem! Ela saberia descobri-lo sozinha.
Falou nisto às amigas, andou em volta das
"grandes" a ver se surpreendia as suas conversas;
e,
depois
de
ouvir
algumas
frases
que
elas,
inconscientemente, tinham deixado escapar, Lottie decidiu-se,
um dia, a partir para uma viagem de exploração... E, depois
de ter subido umas escadas, de
cuja existência nunca suspeitara, chegou, finalmente ao
sótão. Lá, encontrou duas portas, próximas uma
da outra e, ao abrir uma ao acaso, descobriu a sua
querida Sara, em pé, em cima de uma velha mesa!
a
espreitar para fora, por uma trapeira.
- Sara - gritou ela, consternada. - Mamã Sara!
Não podia acreditar: o sótão era tão feio e parecia tão
longe de tudo, que Lottie tinha a impressão de haver subido
centenas de degraus.
Ao ouvir a sua voz, Sara voltou-se e ficou, por sua vez,
consternada também. Que iria acontecer, Santo Deus... Se
Lottie começava a chorar e alguém a ouvia, estavam perdidas,
as duas. Sara saltou abaixo da mesa e precipitou-se para a
criança.
- Não chores, Lottie não faças barulho - suplicou ela -
se não ralham comigo, e eu já ouvi ralhar muito durante todo
o dia. Isto não é um quarto feio, Lottie.
- Achas? - disse Lottie, com dificuldade. E, olhando em
redor de si, a pequenina mordia os lábios. Era chorona e
cheia de mimo, mas gostava tanto de Sara que, por ternura por
ela, estava disposta a fazer o possível para não chorar... E
depois, refletindo melhor, pensou que podia muito bem ser que
todos os lugares fossem bonitos, desde que Sara lá vivesse.
- E porque é que não é feio ? - perguntou ela, em voz
baixa.
Sara apertou-a muito ao peito e tentou rir. Sentia um
grande conforto no contato daquele corpinho de criança doce e
quente. O dia fora mau. Era com olhos vermelhos e ardentes
que ela espreitava pela janela.
-Daqui vê-se muita coisa que não se pode ver lá de baixo
- explicou ela.
- Que coisas - perguntou Lottie, com aquela curiosidade
que Sara sabia tão bem excitar, mesmo nas pessoas muito mais
velhas.
-As chaminés, com o fumo, tão bonito, que sobe para o
céu fazendo caracóis e grinaldas; os pardalitos que saltitam,
conversando uns com os outros, como se fossem pessoas; as
janelas dos outros sótãos, onde aparecem, a todo o instante,
cabeças de pessoas
que não conhecemos, de forma que podemos
divertir-nos a adivinhar de quem serão. Sentimo-nos
tão alto, tão alto, que chegamos a convencer-nos
de que habitamos um mundo diferente.
- Oh! Eu gostava tanto de ver- implorou Lottie. - Ajuda-
me a subir, se fazes favor!
Sara pegou-lhe ao colo e as duas, empoleiradas na velha
mesa e encostadas à trapeira, olharam para fora.
Quem nunca lançou um olhar sobre os telhados não faz a
menor idéia do espetáculo que
eles ofereciam às duas crianças.
Em toda a volta, os telhados de ardósia desciam
suavemente, alongando-se até às goteiras.
Os pardais, sentindo-se em sua casa, saltavam
e pipilavam sem o menor receio. Dois vieram pousar
na chaminé vizinha e, ali, tiveram uma forte questão...
Até que um deu ao outro uma valente bicada, obrigando-o a
levantar vôo. A janela do sótão mais
próximo estava fechada, porque a casa não era
habitada.
-Eu gostava que houvesse alguém naquela
casa - disse Sara - porque, se vivesse outra criança
naquele sótão, poderíamos, conversar de janela para
janela e, mesmo, com alguma coragem, passar pelo
telhado e visitarmo-nos uma à outra.
O céu parecia muito mais perto do que visto
da rua, a tal ponto que Lottie estava encantada.
Ali naquela fresta, rodeada de canos de chaminés,
tudo o que se passava lá em baixo parecia irreal.
Esqueciam a existência de Miss Minchin, de Miss
Amélia, das aulas, dos livros... e o rodar das
carruagens da praça parecia um ruído vindo do outro
mundo.
- Oh Sara ! - exclamou Lottie, aconchegando-se muito ao
braço protetor da sua grande amiga.
- Eu gosto muito deste sótão, imenso! É bem mais
bonito do que lá em baixo!
- Olha para aquele passarito - murmurou Sara.
-Que pena não ter migalhinhas para lhe deitar!
- Mas tenho eu - respondeu Lottie, com um gritinho de
alegria. - Tenho no meu bolso um bocadinho de pão doce, que
comprei ontem com o meu dinheiro.
Ao vê-las atirar-lhe com migalhas, o pardalito voou para
uma chaminé.
Evidentemente, não tinha nenhum amigo ali, nos telhados,
e
aquelas
migalhas
inesperadas
não
lhe
inspiravam
confiança... Mas vendo que Lottie não fazia um movimento e
que Sara o chamava imitando o seu pipilar, como se ela
própria fosse um passarinho, pensou que se enganara e que não
se tratava de uma armadilha, mas sim de um amável convite.
Curvou a cabecita, lá do alto do seu poleiro, e olhou para as
migalhinhas de pão com os olhos brilhantes e espertos. Lottie
dificilmente se conservava quieta.
- Virá? Não virá? Que dizes?... - murmurou ela, muito
baixo.
- Parece que tem um grande desejo de vir...
- respondeu Sara, ainda mais baixo. - Está a ver se
atreve-se ou não... Sim... vai decidir-se... Lá vem ele.
O pardalito descera da chaminé e vinha aproximando-se
aos pulinhos,mas, a três passos das migalhas, parou e tornou
a pôr a cabecita de lado, como se perguntasse a si próprio se
Sara e Lottie não iriam transformar-se em grandes gatos, que
saltariam sobre ele. Por fim, convencido de que as duas
meninas eram menos terríveis do que podiam parecer, avançou
mais e mais, aos pulinhos tímidos, até que, tendo apanhado
com o bico, mais rápido do que um relâmpago, uma grande
migalha, voou, levando consigo o belo petisco, e foi
refugiar-se do outro lado da chaminé.
- Agora já perdeu o medo - disse Sara. Não tarda a vir
buscar mais...
O pardalito não só voltou, como trouxe um
amigo. O amigo, por sua vez, foi buscar o pai, e os
três comeram regaladamente, soltando muitos pios
alegres, e parando, de instante a instante, para
observarem Lottie e Sara.
O contentamento de Lottie era tão grande, que a
ave a fez esquecer a deplorável impressão que o quarto
de Sara lhe havia causado. A tal ponto que, ao descerem
da mesa, Sara pôde mostrar-Lhe todas as belezas do seu novo
domicílio, e das quais nem sequer
ela própria tinha ainda suspeitado a existência.
- Vês? - dizia Sara. - Este quarto é, ao mesmo
tempo, tão pequeno e tão alto, que parece um ninho
colocado numa árvore. O teto, que desce muito de
lado, é engraçado! Quando estamos deste lado, mal
podemos ficar de pé! Quando amanhece, vejo
o céu do meu leito, através da janela quadrada, aberta
no teto: é tal qual como se fosse a própria luz
encaixilhada. Se está um dia de sol, vejo flutuar
nuvenzinhas cor-de-rosa e parece-me que posso, até toca-
las com os dedos. Quando chove, ouve-se
o ruído que fazem as gotas de chuva a cair: dir-se-ia
que conversam gentilmente conosco. À noite, há as
estrelas; podemos entreter-nos a contar quantas se
vêem pelo quadrado da janela. Não fazes idéia da
quantidade que é. E, olha agora para esta grade, um
pouco ferrugenta, do fogão. Se estivesse bem limpa
e reluzente, e houvesse lá dentro um bom lume, como
seria agradável... Vês? É um belo quartozinho, este.
Sara ia e vinha, no pequeno espaço do aposento com
Lottie pela mão e acompanhando cada palavra
com um gesto, à medida que descrevia todas as
maravilhas que ia descobrindo para si própria e
para Lottie. Esta acreditava sempre em tudo quanto
Sara lhe contava.
- Vês? - continuava Sara. - Podia-se cobrir
o sobrado com um tapete da Índia, espesso e macio, de
linda cor azul; neste canto, ficaria um pequeno divã com
muitas almofadas, para nos recostarmos: por cima uma
prateleira de livros, que estariam ali, mesmo à mão. Diante
do fogão, um tapetezinho de pele; e nas paredes, panos
preciosos e quadros; era preciso que fossem pequenos, mas
isso não impedia que fossem bonitos. Aqui, instalar-se-ia um
candeeiro com quebra-luz cor-de-rosa; no meio do quarto, uma
mesa com um serviço de chá; em chaleira de cobre redonda e
reluzente, cantaria a água, sobre o lume. Quanto ao leito,
seria inteiramente diferente: um bom colchão, uma linda
colcha de seda adamascada... Enfim, seria soberbo. E talvez
nós conseguíssemos que os passarinhos fossem tão nossos
amigos, que viessem bater com o bico na vidraça, para lhes
abrirmos a janela e eles entrarem...
- Oh Sara! - exclamou Lottie. - Como eu gostava de morar
aqui!
Quando Sara, depois de convencer Lottie a ir-se embora e
de tê-la acompanhado até à escada, entrou novamente no
quarto, parou no meio do cubículo onde dormia, e olhou em
volta. A sua imaginação tinha-se acalmado; o seu entusiasmo
desaparecera. O leito apareceu-lhe tal como era: duro e
coberto com um miserável cobertor.
O gesso das paredes caía aos bocados; nem um farrapo de
tapete dissimulava o sobrado ordinário e para se sentar,
tinha ùnicamente o velho banco desconjuntado e sem um pé.
Sara sentou-se e deixou tombar a cabeça nas mãos. A curta
visita de Lottie conseguira, apenas, tornar-lhe a solidão
mais amarga-tal como sucede aos prisioneiros, que sentem mais
vivamente o peso do cativeiro quando a porta da prisão se
fecha sobre os visitantes.
"Estou num canto perdido... - disse ela consigo mesma. -
O canto mais triste do Universo.”
Estava ela entregue a estas reflexões quando lhe
pareceu ouvir um pequeno ruído. Ergueu a cabeça
e valeu-lhe não ser medrosa pois, de contrário, teria
dado um salto no banco.
Não longe dela, encontrava-se um grande rato
sentado nas patas traseiras, farejando o ar com muito
interesse.
Alguns bocaditos do pão doce que Lottie trouxera tinham
caído no chão, e o rato, atraído por
aquele maná inesperado, saira do seu buraco.
Parecia-se de tal maneira com um gnomo de
bigodes grisalhos, que Sara ficou imóvel, sem saber
o que fazia. O rato olhava para ela com olhos
brilhantes, tal como uma pessoa que fizesse uma pergunta e
esperasse a resposta. Evidentemente, o animalzito não estava
certo de ser bem recebido, e a
sua atitude fez nascer no espírito de Sara mil
pensamentos como só ela tinha.
"Na realidade, é muito triste ser rato” - pensava. -Toda
a gente detesta os ratos e, quando
algum aparece, todos fogem e gritam: -"Que horrível
bicho ! " Eu, por mim, não gostaria nada que ao ver-me,
alguém gritasse: - "Que horrível Sara!"
ou que me preparassem ratoeiras, disfarçadas num
petisco. Ser passarinho é muito diferente. Mas ninguém
se lembrou de perguntar a este rato, quando
nasceu, se preferia ser pássaro. Ninguém lhe perguntou:
"Que preferes tu ser?"
Continuava tão quieta, que o rato ia tomando
coragem. Tinha medo, mas tal como fizera o pardal dizia
lá consigo que Sara não era um animal pronto
a saltar sobre ele. O pobre rato tinha muita fome.
A sua família, composta da senhora rata e de numerosa
ninhada, vivia na parede e andava com pouca
sorte, naqueles últimos tempos: não havia maneira de
encontrar nada para comer nem para roer. Os ratinhos
choravam, e o pai sentia-se disposto a arriscar
a vida por aquelas apetitosas migalhas de pão doce.
Resolveu-se, finalmente, a pôr as quatro patas no chão.
- Vem, vem - dizia-lhe Sara. - Eu não sou uma ratoeira.
Vem comer o pão, pobre bichinho. Os prisioneiros da Bastilha
tornaram-se amigos dos ratos da prisão. E se eu tentasse
tornar-te meu amigo?
Compreenderão os animais o que Lhes dizem? Ninguém sabe,
mas há uma coisa certa: é que entendem muita coisa. Talvez
exista uma linguagem universal que não é feita de palavras e
que é compreendida por todos os seres que vivem no vasto
mundo. Talvez haja, na Natureza, uma voz que fala sem fazer o
menor ruído...
Seja como for, o rato, a partir daquele minuto,
compreendeu que se encontrava em segurança. Adivinhou que
aquela menina, sentada no banco vermelho, não procuraria
afugentá-lo com gritos selvagens, não lhe atiraria terríveis
objetos que o assustariam ou fariam com que regressasse ao
seu buraco mutilado e coxo. E ele era, na realidade, um belo
rato, que não tinha a menor má intenção.
Ao erguer-se nas patas traseiras, com os olhos fixos em
Sara, esperava que ela o compreendesse e não começasse
imediatamente a detestá-lo. E quando a voz misteriosa da
Natureza o tranqüilizou, aproximou-se devagarzinho das
migalhas e começou a comer. Olhava sempre para Sara,
exatamente como os pardais haviam feito, com uma expressão
tão suplicante, que a pequenina sentiu-se entristecer.
Observava-a sem fazer o menor movimento. Havia uma
migalha muito maior do que as outras, um verdadeiro bocado de
pão, que tentava o pobre animal; mas era preciso aproximar-se
muito do banco, e mestre rato sentiu-se ainda um pouco
intimidado.
"Ele quer levar aquele bocado à família - pensava Sara.
- Não me mexerei. Talvez seja capaz de vi-lo buscar. "
Estava de tal maneira imóvel, que nem respirava.
O rato, insensivelmente, tinha-se aproximado, comendo os
bocadinhos mais pequeninos; depois, parou, farejou o ar com
seu focinho pontiagudo, sempre a olhar para Sara, e depois,
com a mesma rapidez do pardal, correu para o bocado de pão,
apanhou-o e desapareceu, como um relâmpago, numa pequena
fenda da parede.
-Eu tinha a certeza de que o bicho queria levar aquele
bocado aos filhos - disse Sara em voz alta. - Creio que vou
arranjar um amigo.
Cerca de oito dias depois, uma noite em que Hermengarda
pudera ir, de fugida, até ao sótão, ficou surpreendida ao ver
que Sara não respondia, imediatamente, à pancadinha discreta
com que era seu costume anunciar-se. O silêncio era mesmo tão
absoluto, que Hermengarda julgou que a sua amiga já estivesse
a dormir. Mas, com grande surpresa, a pequena ouviu Sara rir-
se
baixinho,
ao
mesmo
tempo
em
que
parecia
falar
afetuosamente a alguém.
- Toma - dizia ela. – Pega-lhe depressa e volta a
correr, para casa, Rodilard! Vai depressa ter com a tua
mulher!
Quase ao mesmo tempo, Sara abriu a porta e deu com
Hermengarda, muito assustada.
- Com quem falavas tu, Sara? - balbuciou Hermengarda.
Sara fê-la entrar, cautelosamente, mas tinha o ar de
quem acabava de passar uns momentos agradáveis.
-Dir-te-ei, se me prometeres não ter medo e
não gritar - respondeu ela.
Hermengarda por pouco não soltou imediatamente um grito,
mas conseguiu dominar-se.
Percorreu o quarto com o olhar e não viu ninguém. Mas
Sara falara a uma pessoa, com certeza.
Uma vaga ideia de fantasmas atravessou-lhe o espírito.
- É alguma coisa que me vai assustar? - perguntou ela,
com hesitação.
- Há pessoas que têm medo - respondeu Sara.
- Eu própria assustei-me, a primeira vez, mas agora já
não.
- Não é... um fantasma - disse Hermengarda com os dentes
a bater.
- Oh, não - exclamou Sara, soltando uma gargalhada. - É
o meu rato.
Hermengarda precipitou-se sobre o leito, puxando a
camisa para os pés e escondendo os braços no xale. Não
gritava, mas estava sufocada de medo.
- Oh Oh - dizia ela, com voz estrangulada.
- Um rato! Um rato!
- Eu bem sabia que terias medo - replicou Sara. - Mas
não é motivo para isso. Estou quase a domesticá-lo. Ele
começa a conhecer-me e vem quando eu o chamo. Tens medo de o
ver?
Depois do seu primeiro encontro com o rato, e graças aos
restos que trazia da cozinha, esta estranha amizade tinha
feito grandes progressos, e Sara acabara por esquecer, a
pouco e pouco, o verdadeiro estado civil do seu companheiro.
Primeiro, Hermengarda só pensou em se aninhar sobre o
leito e esconder os pés, cuidadosamente, sob o cobertor. Mas
a história do primeiro encontro de Sara com Rodilard excitou
a tal ponto a sua curiosidade, que ela acabou por se debruçar
nos pés do leito, para ver melhor a amiga, ajoelhada muito
perto da fenda do rodapé.
- Ele... não vai sair de repente e saltar sobre a cama?
- perguntou.
- Que ideia - respondeu Sara. - É tão bem educado como
nós. É tal qual uma pessoa. Vais ver.
Pôs-se então a assobiar muito baixinho; para ouvi-la,
era necessário que o silêncio fosse absoluto. Sara estava tão
absorvida como se quisesse fazer um feitiço ou pronunciasse
palavras mágicas. Por fim ,respondendo ao chamamento,
apareceu no buraco uma cabecinha de olhos muito vivos e
grandes bigodes. Sara tinha na mão umas côdeas de pão, que
deixou cair, e Rodilard saiu tranquilamente e veio comê-las.
Depois, avistando um bocado maior do que os outros, pegou-lhe
com os dentes e levou-o para casa, com um ar de pessoa muito
ocupada.
- Vê como é gentil - exclamou Sara. - Come os bocadinhos
pequenos e leva os maiores à mulher e aos filhos. Muitas
vezes ouço-os soltar gritinhos de alegria. Cada um tem uma
forma diferente de gritar. Sei reconhecer, muito bem, se é o
pai, a mãe ou os pequeninos.
Hermengarda pôs-se a rir.
- Oh! Sara! - disse ela. - Tu és extraordinária Mas és
boa!
- Bem sei que sou extraordinária - respondeu Sara,
alegremente. - E também sei que procuro ser boa.
Esfregou a testa com a sua mãozinha morena, e os olhos
encheram-se-lhe de ternura.
- O papá estava sempre a fazer-me arreliar - continuou
ela - mas eu gostava tanto! Chamava-me original, mas ficava
encantado quando eu inventava as coisas mais extravagantes...
Não posso deixar de imaginar e inventar... Estou mesmo
convencida de que, sem isso, não poderia viver...
Calou-se um instante, e olhou em volta. Depois concluiu,
em voz baixa:
-Não poderia viver... principalmente aqui.
Hermengarda estava, como sempre, suspensa das palavras
de Sara.
- Quando tu falas - disse ela - parece que tudo quanto
contas é verdade. Falas de Rodilard como se ele fosse uma
pessoa a valer.
- Mas é, realmente, uma pessoa - respondeu Sara. - Tem
fome, tem medo, tal como nós. Têm família, como os homens.
Quem nos diz que não pensa como nós pensamos? Os seus olhos
são inteligentes. Foi por isso que lhe dei um nome.
Sara sentara-se no chão, na sua atitude favorita, com os
braços em volta dos joelhos.
- Para mais - continuou ela - é um rato da Bastilha, que
me foi enviado para que eu tenha um amigo. Não me custa nada
arranjar pão seco, porque a cozinheira deita muito fora. E o
Rodilard não precisa de mais nada.
- Então, continuamos na Bastilha? - disse Hermengarda,
com vivacidade. -Ainda imaginas que estás lá?
- Imagino - respondeu Sara. - Às vezes quero imaginar
que estou noutro lugar, mas é mais fácil supor que estou na
Bastilha, principalmente quando faz frio.
Naquele momento, Hermengarda saltou para o chão,
assustada com um ruido que acabava de ouvir. Dir-se-iam duas
pancadas muito nitidas, dadas do outro lado da parede.
- Que é isto - exclamou ela.
Sara respondeu, num tom dramático:
- É o prisioneiro da cela vizinha...
- Becky! - disse Hermengarda, contentíssima.
- Exatamente!- respondeu Sara. – Escuta.As duas pancadas
querem dizer: "Estás lá, prisioneiro»?"
Sara, por sua vez, bateu três pancadas na parede, como
se respondesse.
- Isto - explicou ela - significa "Estou cá e tudo corre
bem".
Quatro pancadas soaram do lado de lá.
- E isto - continuou Sara - traduz-se assim "Nesse caso,
companheiro de desgraça, durmamos tranqüilos! Boa noite!"
A carinha de Hermengarda tinha uma expressão radiante.
- Oh Sara - disse ela. - É como nas histórias.
- Mas é, realmente, uma história - respondeu Sara. - A
vida de toda a gente é uma história a tua, a minha, a de Miss
Minchin...
E, tornando a sentar-se, continuou a dar livre curso à
sua imaginação, de tal maneira que Hermengarda esqueceu que
estava fora do regulamento e foi preciso que Sara Lhe
lembrasse a urgência de deixar a Bastilha e voltar, com
passos cautelosos, para o quarto donde desertara havia tanto
tempo.
O CAVALHEIRO DA ÍNDIA
As peregrinações de Hermengarda e Lottie ao sótão eram
muito arriscadas. Nunca tinham a certeza de encontrar Sara no
seu quarto, e podia muito bem acontecer encontrarem Miss
Amélia, numa das rondas silenciosas, quando já eram horas de
todas dormirem. Por isso, as suas visitas eram raras e a vida
de Sara cada vez mais triste. Sentia-se ainda mais só quando
estava no rés-do-chão do que no sótão. Lá em baixo ninguém
lhe dirigia a palavra e, quando ia pelas ruas, carregada de
embrulhos ou de cestos, quando lutava, contra o vento, que
lhe arrancava o velho chapéu, ou sentia a chuva repassar,
lentamente, os sapatos rotos, sentia-se mais abandonada
ainda, no meio de desconhecidos que passavam por ela
indiferentes.
No tempo em que era a princesa Sara e saía de carruagem,
acompanhada por Mariette, com a sua carinha tão bonita e
original, os seus abafos suntuosos e chapéus elegantes,
chamava, muitas vezes, a atenção dos transeuntes.
Uma menina bonita, bem vestida, desperta sempre
interesse e admiração. Mas as pequeninas mal vestidas passam
despercebidas e ninguém pensa em sorrir-lhes.
Assim, já não olhavam para Sara, agora que ela percorria
apressadamente as ruas cheias de gente.
Crescera muito e, como do seu riquíssimo enxoval apenas
lhe havia deixado os vestidos mais usados, Sara compreendia
que devia ter um aspecto lamentável, com as roupas justas e
as saias muito curtas.
Miss Minchin tinha disposto, como entendera,de todo o
seu vestuário, e contava que Sara usasse até ao último fio as
pobres roupas que ela "generosamente" lhe concedera.
Algumas vezes, Sara parava diante das montras com
espelhos, e ria alto, ao ver a sua figura;outras vezes,porém
corava até à raiz dos cabelos e mordia os lábios, voltando-se
rapidamente.
À noite, quando passava em frente de janelas bem
iluminadas, gostava de olhar para dentro das casas aquecidas
e confortáveis, e inventava histórias acerca dos seus
habitantes, que ela via agrupados junto do fogão ou sentados
em redor da mesa.
Isto a divertia muito. Havia, assim, na praça onde
ficava o colégio de Miss Minchin, várias famílias de quem ela
fizera, pela imaginação, verdadeiros amigos.
Uma delas agradava-lhe particularmente. Chamava-lhe a
"Grande Família", não porque as pessoas que a compunham
fossem exageradamente altas, mas porque eram muito numerosas.
Nesta "Grande Família" havia oito crianças, um papá esbelto e
vigoroso, uma mamã fresca e robusta, uma avó de cabelos
brancos e faces rosadas e um grande número de criados. Agora,
via os pequeninos sair com criadas bem vestidas; logo, subiam
para a carruagem, com a mãe; mais tarde, quando o pai
chegava, vinham todos esperá-lo, precipitando-se para o
beijar, tirar-lhe o sobretudo e esvaziar-lhe as algibeiras;
ou,
então,
juntavam-se
ao
pé
das
janelas
da
"nursery"(aposentos reservados às crianças) e empurravam-se,
alegremente, a fim de olhar para fora. Numa palavra, pareciam
sempre agradàvelmente ocupados, como sucede, em geral, numa
grande família.
Sara gostava muito deles e batizara-os, a todos, com
nomes românticos, tirados dos seus livros preferidos: elas
eram Eldelberta, Violeta, Liliana, Rosalinda e Verónica; aos
rapazes chamava Vivian, Guy e Heitor. Uma vez por outra, em
lugar de dizer a "Grande Família", chamava-lhes "os
Montmorency".
Certa noite, aconteceu uma coisa muito engraçada,
embora, pensando bem, não houvesse motivo para rir.
Alguns dos Montmorency deviam ir a um baile infantil e,
justamente quando Sara passava em frente da porta, saiam eles
para entrar na carruagem. Verónica e Rosalinda, com vestidos
de tule bordado, subiram primeiro, e Guy, que tinha cinco
anos, subiu depois. Era um amor o rapazinho, corado, de olhos
azuis e com uma linda cabecinha redonda, toda encaracolada.
Sara esqueceu-se do cesto que transportava, do casaco velho
que a cobria e de tudo o mais, para parar e admirar, durante
um minuto, aquela criança encantadora.
A festa do Natal estava próxima, e tinham contado aos
pequenos Montmorency muitas histórias de crianças pobres que,
não tendo mãe nem pai para acarinhá-las, nunca recebiam
presentes e sofriam frio e fome. Em todas estas histórias
havia sempre meninos e meninas felizes e amimados, que
encontravam, por acaso, as crianças pobres, e se apressavam a
dividir com elas o seu dinheiro e os seus brinquedos. Às
vezes levavam-nas, mesmo, a jantar com eles nas suas casas.
Naquela tarde, Guy tinha-se comovido até às lágrimas com
uma história deste gênero e ardia em desejos de encontrar uma
daquelas crianças desgraçadas, para lhe dar um xelim (Moeda
inglesa) novinho que possuía; estava convencido de que, com
um xelim tão reluzente, a criança pobre nunca mais precisaria
de nada. Quando saiu com as irmãs, para o baile, levava a
bela moeda de prata no bolso das calças à maruja e,justamente
ao chegar à carruagem, viu Sara com o seu vestido muito usado
e o cesto já velho, parada no passeio úmido, a olhar para ele
com uma espécie de avidez.
Guy pensou logo que ela talvez não comesse havia muito
tempo. Era pequenino de mais para compreender a dor que feria
o coração de Sara, ao pensar na doce vida familiar daquela
criança, e a alegria que sentiria se o pudesse abraçar e
beijar com todas as suas forças. Só viu uma coisa: que era
muito magra, tinha os olhos pisados e um vestido feio.
Meteu imediatamente a mão na algibeira, tirou o xelim e
aproximou-se de Sara com um sorriso gentil.
- Toma, pobre pequena! - disse ele. – Aqui tens o meu
xelim novo. É para ti!
Sara estremeceu e, pela primeira vez, compreendeu que se
parecia realmente com as crianças pobres que, noutro tempo,
paravam para a ver descer da carruagem. Então, era ela quem
distribuía moedas.
Corou e empalideceu violentamente e, durante um segundo,
julgou que não teria coragem de aceitar o xelim de Guy.
- Oh Não ! - exclamou ela. – Não! Muito obrigada! Não
posso aceitar.
A sua voz parecia-se tão pouco com a dos pequenos
mendigos vulgares, e a sua atitude era tão perfeitamente a de
uma criança bem educada, que Verónica (que na realidade se
chamava Janet) e Rosalinda (cujo verdadeiro nome era Nora) se
debruçaram para escutar.
Mas Guy não queria desistir de ser generoso. Colocou a
moeda na mão de Sara.
-Sim, minha pobre menina, deve aceitar - disse ele, com
energia. Poderá pagar o jantar, porque o xelim está inteiro!
Havia tanta candura e bondade no seu rostozinho honesto,
e era tão fácil adivinhar que uma recusa o deixaria desolado,
que Sara compreendeu que era preciso aceitar, sob pena de ser
cruel. Dominando o seu orgulho, com as faces em fogo, disse:
-Muito obrigada. O menino é bom, muito bom e gentil!E
enquanto ele subia, contentíssimo, para a carruagem, ela
afastou-se, procurando sorrir, embora o coração lhe batesse
desordenadamente e os seus olhos estivessem rasos de
lágrimas. Sabia muito bem que estava pobremente vestida mas,
até então, nunca pensara que a pudessem tomar por uma
mendiga!
A carruagem dos Montmorency pôs-se em andamento e, já
dentro, as três crianças que a ocupavam conversavam
animadamente.
- Oh! Donald (era este o verdadeiro nome de Guy), porque
deste tu o teu xelim a esta pequenina?- perguntou Janet, num
tom de censura. - Tenho a certeza de que não é uma pedinte.
-É possível que seja, mas, na verdade, não tem o ar nem
as maneiras dos mendigos - disse Nora.
- E depois, ela não pediu nada - continuou Janet. - Eu
até estava com medo que ela se zangasse. Tu compreendes,
Donald, ninguém gosta de ser tomado como pedinte, quando não
é.
- Ela não ficou zangada - retorquiu Donald um pouco
perturbado, mas não convencido. Riu-se para mim e disse que
era um menino muito bom e gentil. E é verdade! - concluiu
ele, com vigor:Dei o meu xelim novinho, todo inteiro.Janet e
Nora trocaram um olhar.
- Uma verdadeira mendiga não teria falado assim -
afirmou Janet.Teria dito "Muito obrigada; meu bom senhor...e
teria feito uma reverência.”
Sem que Sara pudesse suspeitar, os membros da "Grande
Família", a partir desse dia, começaram a dispensar-lhe o
mesmo interesse que ela lhes dispensava a eles. As cortinas
das janelas levantavam-se, quando ela passava, e à noite,
junto do fogão, discutia-se a seu respeito.
- Serve de criada no Colégio de Miss Minchin- dizia
Janet.Deve ser órfã. Ninguém parece ocupar-se dela. Mas,
embora use vestidos rotos, não é uma mendiga.
Em consequência disto, Sara passou a ser conhecida,
entre as crianças, pela "pequenina que não é mendiga" - nome
bastante longo e que os mais novinhos pronunciavam a seu
modo, de uma forma pitoresca.
Sara conseguiu furar o xelim de um lado ao outro, mesmo
ao meio; enfiou-lhe um bocado de fita estreita e trazia-o
pendurado ao pescoço. A sua afeição pela "Grande Família"
tornou-se maior depois deste incidente como, de resto,
sucedia com tudo, fosse o que fosse a que pudesse afeiçoar-
se. Estimava Becky cada vez mais, e esperava, com
impaciência, as duas manhãs de cada semana em que dava lição
de francês às alunas mais novinhas. As pequeninas gostavam
muito de Sara; todas queriam estar mais perto dela e dar-lhe
a mão. Senti-las muito perto de si, confortava o coração da
pobre criança. Tinha conseguido domesticar de tal maneira os
pardais,
que,
mal
subia
à
mesa
e
aparecia
na
trapeira,assobiando docemente, ouvia logo um rumor de asas e
um pipilar alegre. Um bando de passarinhos precipitava-se
para o telhado, para vir "conversar" com a sua amiguinha e
fazer honra às migalhas que ela lhes deitava.
Quanto a Rodilard, tinha tanta confiança nela que, de
tempos a tempos, fazia-se acompanhar da esposa e por um ou
dois dos filhos. Sara falava-lhe, qualquer pessoa iria jurar
que ele a compreendia.
Sara experimentava agora um sentimento um tanto complexo
por Emily que, insensível a todas as suas vicissitudes,
fitava sempre as pessoas e as coisas com o mesmo olhar
indiferente. Esse sentimento nascera numa hora de grande
desespero. Sara tinha querido acreditar, ou, pelo menos,
fingia acreditar, que Emily a compreendia e partilhava os
seus desgostos. Custava-lhe confessar a si própria que a sua
única companheira não sentia nem ouvia coisa alguma. De
tempos a tempos, colocava a boneca em cima da mesa, sentava-
se no banco, em frente dela, e imaginava tantas coisas, que,
a pouco e pouco, a sua fisionomia exprimia uma espécie de
pavor, principalmente quando, ao anoitecer, o silêncio era
apenas perturbado pelos guinchos e corridas da família
Rodilard.
Sara queria persuadir-se de que Emily era uma espécie de
fada benéfica que velava por ela. Algumas vezes, quando a sua
imaginação estava mais excitada, a pequenina falava à boneca
quase com a certeza de que ela ia responder-lhe. Mas Emily
ficava sempre impassível.
- Apesar de tudo - dizia Sara, para se consolar - eu
própria não respondo, muitas vezes, quando me falam. Quando
as pessoas dizem disparates, o melhor que há a fazer é não
responder nem uma palavra e olhar para elas, enquanto
fazemos, intimamente, reflexões. É um bom sistema, que
exaspera Miss Minchin e que assusta um pouco Miss Amélia e a
todas as "grandes". Quando não nos encolerizamos, os outros
compreendem logo que somos os mais fortes, visto que
conseguimos dominar-nos, ao passo que eles não, e dizem
coisas estúpidas de que se arrependem em seguida. A cólera é
uma grande força; mas o sentimento que ajuda a dominar-nos, é
ainda mais forte. Nada é melhor do que não responder aos
nossos inimigos. Eu quase nunca lhes respondo. Pode ser que
Emily vá ainda mais longe... Não responde nem mesmo aos
amigos. Guarda tudo no coração!
Mas, apesar de toda a boa vontade de Sara, estes
argumentos não a satisfaziam inteiramente. Quando, depois de
um longo dia de trabalho, passado a correr de um lado para o
outro, à chuva e ao frio, ela entrava, toda molhada, com
fome, o corpo transido e as pernas trôpegas; quando não havia
recebido como agradecimento senão más palavras e maus
olhares; quando a cozinheira tinha sido grosseira e Miss
Minchin detestável, e as alunas riam, disfarçadamente, ao ver
o seu vestido muito curto e os sapatos rotos, então, o
coração torturado e desolado de Sara recusava deixar-se
consolar diante do rosto impassível de Emily.
- Eu morro, tenho a certeza - murmurava ela. Os grandes
olhos de Emily fitavam a parede, vagamente.
- Não posso suportar mais esta vida - dizia a pobre
criança, toda tremula. Tenho frio, estou encharcada, morro de
fome. Andei todo o dia sem parar e ralharam-me desde manhã à
noite. E porque não foi possível encontrar o que a cozinheira
queria, privaram-me de jantar. Na rua, riem-se de mim porque
os meus sapatos estão tão velhos, que me fazem escorregar e
cair. Fiquei toda coberta de lama. E riem-se! Ouves-me?
Olhava sempre para os olhos de vidro e para a cara de
porcelana. O desespero apoderou-se dela. Com uma pancada seca
da sua mãozinha empurrou Emily; Emily caiu no chão e Sara,
que nunca chorava, rompeu num aflitivo soluçar.
- Não passas de uma boneca - gritava ela
nervosamente. - Não ouves, não tens coração, não
snntes nada! Não passas de uma boneca!
-Emily estava no chão, com as pernas dobradas sobre a
cabeça, mas conservava-se calma e imperturbável. Sara
escondeu a cabeça nos braços. Na parede os ratos perseguiam-
se, a chiar: certamente Rodilard estava castigando algum dos
filhos.
Pouco a pouco, as lágrimas de Sara secaram.
Era tão pouco extraordinário abandonar-se assim que ela
própria estava surpreendida. Não tardou a erguer a cabeça e a
olhar para Emily, que parecia olhá-la também e, na realidade,
Sara julgou ver uma expressão de simpatia nos seus olhos
azuis.
Cheia de remorsos, levantou a boneca. Os seus lábios
sorriram...
- Tu não podes ser de outra maneira - murmurou ela, com
um suspiro de resignação - tal como Lavínia e Jessie não
podem mudar o seu estúpido cérebro. Nós não somos todos
iguais!
E, depois de ter beijado a boneca e de lhe haver
arranjado as roupas, foi colocá-la na cadeira.
-Sara desejava ardentemente que a casa vizinha tivesse
habitantes. A trapeira do sótão dessa casa ficava muito perto
da sua, e parecia-lhe que seria uma grande consolação para
si, ver, um dia, aquela janela abrir-se e aparecer uma cabeça
na estreita abertura.
"Se fosse uma cara bondosa e sorridente “- pensava ela -
eu poderia dizer-Lhe "Bons dias...”
E, depois disso, aconteceriam, talvez, muitas coisas
agradáveis... Mas é provável que ali ficassem apenas
instalados os criados.”
Certa manhã em que regressava a casa o mais depressa que
podia, depois de ter corrido, da mercearia para o talho, do
talho para a padaria e da padaria para outros sítios onde a
mandaram, ela viu, com grande satisfação, que, durante a sua
ausência uma carroça de mudanças tinha parado em frente da
casa pegada. As grandes portas de entrada estavam abertas de
par em par, e alguns homens, de mangas arregaçadas, iam e
vinham carregados de móveis e grandes embrulhos.
"Até que enfim!” - disse ela para consigo. A casa foi
alugada! Agora, espero que hei-de ver, muito brevemente, uma
cara simpática na trapeira vizinha da minha!"
Sentia, quase, desejo de se juntar ao grupo de
espectadores que se entretinham a observar os homens que
faziam a mudança. Parecia-lhe que, se pudesse lançar um olhar
sobre o mobiliário, faria mais fàcilmente uma idéia dos novos
locatários.
"As mesas e as cadeiras de Miss Minchm parecem-se com
ela - pensara Sara. - Isso me deu logo na vista, quando
cheguei, e, no entanto, era ainda bem pequena! Disse-o ao
papá e ele riu, mas era de minha opinião. Tenho a certeza de
que
a
"Grande
Família"
tem
boas
poltronas,
sofás
confortáveis, e já notei que o papel das paredes, com flores
cor-de-rosa, se harmoniza maravilhosamente com o seu caráter
tão alegre. Tudo o que está naquela casa é atraente e
agradável como eles."
No mesmo dia, um pouco mais tarde, tornou a sair para ir
buscar salsa, e, ao chegar à rua, o coração bateu-lhe com
mais força. No passeio estavam alguns móveis e, entre eles,
uma mesa de madeira de teca( nome de um gênero de árvores da
Índia), admiràvelmente esculpida, com duas cadeiras iguais e
um biombo coberto com um rico bordado oriental. A vista
daqueles objetos quase fez desfalecer a pobre criança.
Na casa paterna, lá longe, na Índia, havia móveis
idênticos! E entre as coisas de que Miss Minchin se tinha
apoderado, havia, justamente, uma secretária de teca
oferecida a Sara pelo pai.
"São belos móveis!” - pensou ela. - Móveis suntuosos.
Devem pertencer a uma família rica e distinta.
As carroças de mudança sucederam-se sem interrupção,
durante todo o dia, e Sara teve, por várias vezes, ocasião de
ver o que elas transportavam. Pôde assim, convencer-se de que
não se enganava, ao supor que os seus novos vizinhos eram
muito ricos. Todo o mobiliário era soberbo e a maior parte
dos móveis orientais. Sara viu sair das carroças tapetes
espessos e, por fim, um magnífico Buda, num nicho de
incomparável beleza.
- Certamente - observou Sara - alguns dos membros desta
família viveram na Índia. Gostam das lindas coisas orientais.
Estou bem contente... Pensarei que são meus amigos, mesmo que
não veja ninguém na trapeira.
À noite, à hora em que recebia o leite (pois nenhuma
tarefa lhe era poupada), Sara ficou ainda mais satisfeita. O
papá da "Grande Família" atravessou a praça e subiu os
degraus da entrada do palacete novamente aberto, com o à-
vontade de alguém que está em sua casa e tenciona subir
muitas vezes aquelas escadas. Demorou-se lá dentro muito
tempo e, de vez em quando, vinha dar ordens aos homens da
mudança. Evidentemente, devia ser amigo íntimo dos novos
locatários.
"Se houver crianças - calculou Sara - as da "
"Grande Família" virão brincar com elas, e quem sabe se
não subirão ao sótão, para se divertirem?”
Naquela noite, Becky, depois de acabar a sua tarefa,
veio ter com a sua companheira de infortúnio e deu-Lhe
notícias:É um senhor indiano que vem viver aqui para o lado -
disse ela. - Não sei se é preto ou amarelo, mas é mesmo
hindu, muito rico e decente; o papá da "Grande Família" é o
seu procurador. O tal senhor teve toda a sorte de desgostos
e, por isso, é que está doente e triste. Oh miss, ele adora
ídolos! É, com certeza, um pagão. Eu vi um deus de madeira
dourada, que levaram lá para casa. É preciso que alguém lhe
leve um livro de orações.Sara não pôde deixar de rir.
- Becky - explicou ela - o senhor aqui do lado com
certeza que não adora essa estátua. Muitas pessoas têm outras
semelhantes porque são objetos de arte. O meu pai tinha uma
magnífica, e posso afirmar-te que não a adorava.
Mas Becky preferia pensar que o novo vizinho era pagão;
era mais palpitante do que se ele fosse prosaicamente à
igreja próxima, como toda a gente.
Nessa noite, Sara ficou, durante muito tempo, a imaginar
como seria o famoso vizinho, a mulher, se por acaso a tinha,
e os filhos se existissem.
Compreendeu que Becky desejava que fossem todos pretos,
com grandes turbantes e, principalmente, pagãos.
- Nunca vivi perto dos pagãos - confessara a criadita. -
Gostava de saber como eles vivem.
Passaram-se bastantes semanas sem que a sua curiosidade
fosse satisfeita; souberam, então que o novo habitante da
casa vizinha não possuía mulher, nem filhos, nem família; que
era muito doente e tinha um desgosto misterioso que parecia
matá-lo lentamente.
Um dia, parou uma carruagem diante da casa; o pai da
"Grande Família" apeou-se, seguido por uma enfermeira, com a
sua bata branca. Dois criados aproximaram-se, e viu-se sair
da carruagem, amparado por eles, um homem de pele amarelada,
olhos desvairados, e cujo corpo, de esquelética magreza,
desaparecia sob os abafos de peles. Os criados levaram-no
quase em braços até a casa, onde o chefe da "Grande-Família"
o seguiu com ar ansioso. Pouco depois, chegou o carro do
médico, e este, por sua vez, entrou também.
- Sara, há um senhor amarelo que habita aqui ao lado -
murmurou Lottie, durante a lição de francês. - Parece-te que
seja chinês? Dizem que os Chineses têm a pele amarela.
- Não, não é chinês - respondeu Sara, brevemente. - É um
senhor que está muito doente. Vamos, Lottie, voltemos ao
tema. Como se diz: Não, senhor, eu não tenho o canivete do
meu irmão!
E Foi assim que o cavalheiro da Índia apareceu no
horizonte de Sara.
RAM DASS
Embora fosse muito sombria e triste, a praça onde estava
situado o Colégio Minchin tinha, por vezes, lindos poentes.
Viam-se apenas parcialmente por entre chaminés, sobre os
telhados. Da cozinha não se via nada, além de uma claridade
dourada ou rosada, que aquecia as paredes durante alguns
segundos, ou um reflexo esbraseado nos vidros da janela.
Entretanto, havia no colégio um único lugar donde se podia
admirar à vontade todo o esplendor do pôr-do-sol - as grandes
nuvens de ouro que apareciam no poente e outras de púrpura,
bordadas a prata, ou ainda aquelas, muito pequeninas, que, às
vezes, atravessavam o céu, como se fosse um bando de pombas.
Esse lugar donde se podiam contemplar todas estas maravilhas
e respirar um ar mais fresco, era a janela do sótão.
Quando a praça começava a escurecer e as árvores se
transformavam como por encanto, Sara sabia que se preparava a
magia celeste; e se lhe era possível sair da cozinha nesse
momento, subia as escadas, a correr, trepava para a mesa e
debruçando-se tanto quanto podia na trapeira, aspirava
amplamente o ar e olhava em volta de si.
Era como se o céu e a paisagem dos telhados lhe
pertencessem; a maior parte das outras janelas estavam
fechadas, e se algumas estavam semiabertas para deixar entrar
o ar, não aparecia lá ninguém.
Ela ficava ali, admirando ora a bela cúpula azul, que
parecia tão próxima, ora a maravilha do poente e das nuvens
que se aglomeravam e se dissolviam passando do carmim ao cor-
de-rosa, do lilás ao cinzento, ou formando cadeias de
montanhas, separadas por lagos cor de turquesa, de jade ou de
âmbar. Promontórios sombrios avançando em mares luminosos e
pontes lançadas sobre margens mágicas.
Sara chegava a convencer-se de que, por um pouco,
poderia atingir aquelas regiões encantadas e passear ali até
ao momento em que as nuvens a envolvessem e a levassem...
Nunca vira nada tão bonito como o quadro que contemplava na
sua trapeira enquanto os passarinhos saltitavam à sua volta,
nas ardósias dos telhados. E tinha a certeza de que naqueles
momentos, eles próprios, subjugados pelo esplendor do
espetáculo, punham maior doçura no seu pipilar.
Poucos dias depois do cavalheiro da Índia se ter
instalado na sua nova habitação, houve um desses fins de dias
maravilhosos; e como, por feliz coincidência, o trabalho
estava feito e ninguém a encarregara de qualquer tarefa ou
recado urgente, Sara pôde escapar-se mais cedo que de costume
e subir ao seu quarto.
Trepou à mesa e pôs-se à janela. Era deslumbrante. Havia
no poente uma verdadeira maré alta de ouro em fusão; e as
silhuetas pequeninas dos pardais recortavam-se, escuras,
sobre um céu de topázio líquido.
- É o mais belo dos crepúsculos – murmurou ela. - É tão
belo, que chego, quase, a ter medo, como se estivesse para
acontecer alguma coisa extraordinária... Sinto-me sempre
assustada... quando o céu tem um tal esplendor...
Voltou a cabeça, bruscamente; parecia-lhe ter ouvido um
ruído ali mesmo ao pé - um ruído estranho, como se fosse um
gritinho agudo e tremulo, que dava a impressão de vir da
trapeira vizinha. Sara viu, então, que não era só ela a
admirar o céu! Uma cabeça e uns ombros haviam surgido na
outra janela, mas não pertenciam nem a outra menina, nem a
uma criada; e Sara, com o coração a bater fortemente,
reconheceu a tez morena, os olhos brilhantes e o turbante de
imaculada brancura dos indígenas do Industão.
"Um
"lascar!”(marinheiro
indígena)pensou
ela
imediatamente. O grito que chamara a sua atenção fora dado
por um macaquinho que o índio segurava nos braços, com mil
cautelas, e que se aconchegava carinhosamente a ele.
O índio, por sua vez, olhava para Sara, e ela teve a
impressão de que os seus olhos estavam tristes e que o
afastamento do país natal o fazia sofrer cruelmente. Ele
devia ter sede de luz e calor, e fora essa razão por que
viera, como ela, admirar o sol, que tão raramente via na
brumosa Inglaterra. Sara olhou para o índio durante um
minuto, depois lhe sorriu. Sabia, por experiência própria,
como um sorriso, mesmo vindo de um desconhecido, pode ser
reconfortante.
O sorriso de Sara reconfortou-o, incontestavelmente,
porque a sua fisionomia animou-se e, por sua vez, ele
respondeu-lhe com um tão belo sorriso, que os seus dentes,
muito brancos, iluminaram-lhe o rosto como um clarão.
Os olhos de Sara, tão cheios de simpatia, aqueciam
sempre a alma dos que se sentiam cansados e tristes.
Foi, sem dúvida, nesse momento, que o índio largou o
macaquinho. Este, malicioso como todos os da sua espécie e,
provàvelmente, excitado pela própria vista de Sara, fugiu ao
dono, abalou pelo telhado que atravessou numa corrida, saltou
para o ombro da pequenina e de lá para o sótão. Uma
gargalhada de Sara acolheu este alto feito. Mas era preciso
entregar o fugitivo ao dono. Como havia de ser? O macaco
deixar-se-ia apanhar por Sara, ou procuraria fugir, perdendo-
se no labirinto dos telhados? Isso é que era aborrecido...
O animal pertencia, certamente, ao cavalheiro da Índia,
que devia gostar muito dele!
Sara voltou-se para o "lasca", encantada com a idéia de
se lembrar ainda do dialeto hindu, que aprendera com o pai.
Podia, assim, fazer-se compreender.
- Parece-lhe que ele se deixará apanhar? - perguntou
ela.
Uma expressão de espanto e, ao mesmo tempo, de
satisfação, se estampou no rosto trigueiro; parecia, ao pobre
homem, que os seus deuses intervinham, em pessoa, e que
aquela voz tão doce, descia diretamente do céu. Sara
compreendeu que ele já convivera com europeus.
O índio desfez-se em agradecimentos respeitosos: o
macaquinho era muito gentil e nunca mordia, mas dificilmente
deixava alguém aproximar-se dele. Saltava de um lado para
outro, mais rápido que um relâmpago. Era muito desobediente.
Conhecia-o como se ele fosse seu filho e conseguia, algumas
vezes, fazer-se obedecer, mas não sempre. Se a jovem senhora
lho permitisse, Ram Dass atravessava o telhado, entrava pela
janela e agarraria o atrevido animalzinho... Mas aquele
pedido era uma grande audácia da sua parte e, naturalmente, a
jovem senhora recusaria...
Sara, porém, consentiu imediatamente.
- Não se demore - disse ela. - O macaco salta de um lado
para outro, como se tivesse medo.
Ram Dass, com a agilidade de um gato, passou ràpidamente
de uma janela para a outra. Escorregou na trapeira e caiu de
pé, sem fazer o menor barulho; saudou profundamente Sara e
depois, tendo fechado a janela, como precaução, começou a
perseguir o fugitivo. A perseguição não demorou muito tempo.
O macaco, que parecia muito divertido, não tardou a saltar
para o ombro de Ram Dass; uma vez empoleirado ali, sentou-se
a guinchar, e passou o bracinho magro em volta do pescoço do
seu guarda.
Ram Dass agradeceu respeitosamente a Sara. Ela bem tinha
compreendido que o índio notara, logo à primeira vista, o
aspecto miserável do quarto, mas fazia de conta que não vira
coisa alguma e continuava a falar-lhe como se ela fosse a
filha de um rajá. Os poucos minutos que durou ainda a sua
visita, depois de ter apanhado o macaquito, foram consagrados
a exprimir a Sara o seu reconhecimento e dedicação. Aquele
maroto - dizia ele, acariciando o macaco - não era tão mau
como parecia, e o dono, que estava doente, divertia-se com
ele algumas vezes. Ficaria contrariadíssimo se o seu animal
favorito se perdesse. Depois, Ram Dass fez ainda uma
reverência e foi-se embora, pela janela e pelo telhado, com a
mesma ligeireza que o próprio macaco.
Quando ele partiu, Sara ficou algum tempo a sonhar, de
pé, no meio do quarto. A vista do vestuário do índio, as suas
maneiras respeitosas, tudo acordara nela recordações muito
queridas e dolorosas.
Como era estranho pensar que ela própria, Sara, a
"vitima expiatória, a quem a cozinheira dirigira palavras
grosseiras uma hora antes, vivia, há poucos anos ainda,
rodeada por servidores semelhantes a Ram Dass que a saudavam
quando ela passava e cujas frontes se inclinavam quase até ao
chão, quando ela lhes falava. Era verdadeiramente um sonho;
um sonho lindo, que não recomeçaria mais... Como fora
possível
produzir-se
na
sua
vida
tal
transformação?
Adivinhava perfeitamente o futuro que Miss Minchin lhe
preparava. Enquanto não tivesse a idade necessária para ser
professora, utilizá-la-iam como criada, exigindo-lhe, ao
mesmo tempo, que não esquecesse nada do que tinha aprendido e
que, milagrosamente, aumentasse ainda os seus conhecimentos.
Passava a maior parte dos serões a estudar e, de longe em
longe, submetiam-na a uma espécie de exame; se este não fosse
inteiramente satisfatório, isso lhe valeria ser severamente
repreendida. No fundo, Miss Minchin sabia muito bem que Sara
tinha um tão grande desejo de se instruir, que era inútil
dar-Lhe mestres: os livros bastavam; tinha a certeza de que
ela assimilaria todo o seu conteúdo e que, dentro de alguns
anos, poderia começar a ensinar. E, então, encarregá-la-iam
de todos os trabalhos da aula, como a encarregavam, agora, de
todo o serviço da casa. Dar-lhe-iam vestuário um pouco mais
decente, mas Sara sabia que seria sempre feio e que ela teria
sempre o ar de uma criada. Eis o que a esperava no futuro, e
Sara pensava em tudo isto, de pé e silenciosa, no meio da sua
água-furtada.
Depois veio-lhe um pensamento, que lhe fez corar um
pouco as faces e brilhar mais os olhos.O seu corpinho delgado
endireitou-se e ergueu a cabeça.
"Suceda o que suceder - pensou -, há qualquer coisa que
não pode mudar. Eu ando esfarrapada, coberta de andrajos, mas
na minha alma e no meu coração sou sempre uma princesa. Não
teria grande merecimento em proceder como uma princesa, se
andasse vestida de ouro; tenho muito mais, sendo como sou
atualmente. Maria Antonieta, por exemplo,quando estava na
prisão, com um pobre vestido preto, remendado, e os cabelos
todos brancos quando todos a insultavam e lhe chamavam a
viúva, era ainda mais rainha do que no tempo em que vivia
feliz e alegre no meio da sua corte. É nesse tempo de
martírio que eu mais a admiro. As multidões que rugiam, não
lhe faziam medo; ela era mais forte que toda essa gente,
mesmo quando lhe cortaram a cabeça. "
Este pensamento não era novo para Sara e já a havia
consolado muitas vezes; nesses dias, a pequenina ia e vinha
pela casa, com um ar misterioso que Miss Minchin não sabia
explicar e que a irritava, por que tinha a impressão de que
Sara vivia, interiormente, uma vida que a elevava acima de
todos os que a cercavam. Dir-se-ia que, nessas ocasiões a
pequena não ouvia as más palavras que lhe dirigiam ou, pelo
menos, que essas palavras não a impressionavam. Por vezes, no
meio de uma repreensão dura e cruel, Miss Minchin sentia
fixar-se nela aquele olhar que não era de uma criança e
parecia iluminado por um sorriso de altivez. Miss Minchin
estava longe de imaginar que, nesses momentos, Sara dizia
consigo própria:
"Tu ignoras que insultas uma princesa e que, se eu
quisesse, podia mandar-te para o cadafalso com um simples
gesto da minha mão. Mas eu poupo-te, unicamente porque sou
uma princesa e tu... tu não passas de uma pobre criatura
estúpida, vulgar e má, incapaz de proceder de outra forma."
Esta dupla existência imaginária era, para Sara, não
somente uma distração, mas também um verdadeiro conforto e,
mesmo, um preservativo moral, porque, enquanto o seu espírito
estava assim ocupado, a baixeza e maldade dos que a rodeavam
não exerciam nela influência alguma.
- Uma princesa é sempre bem educada.
E quando as criadas, regulando o seu procedimento pelo
de Miss Minchim, lhe davam ordens insolentemente, Sara erguia
a cabeça e respondia-lhes com uma cortesia singular, a tal
ponto, que elas, esquecendo as suas próprias palavras,
grosseiras e más, calavam-se e ficavam a olhar, sem
compreender.
- Tem uns ares e umas maneiras como se chegasse agora
mesmo de Buckingham Palace (palácio real de Londres), esta
garota - dizia, às vezes, a cozinheira, em voz baixa.
- Eu não a poupo, mas reconheço que ela é sempre bem
educada. Nunca se esquece de dizer: "Se faz favor...”, "Quer
ter
a
bondade?...”,"Peço-lhe
desculpa...”,
"Não
a
incomodo?...”. E diz, estas bonitas frases a propósito de
tudo, na cozinha, como se lhe não custasse nada!
No dia seguinte àquele em que travara conhecimento com
Ram Dass, estava Sara na aula, com as suas alunas. A lição
terminara e ela reunia os livros de exercícios de francês,
pensando nos vários trabalhos que muitas pessoas de sangue
real tinham sido forçadas a fazer, escondidas sob qualquer
disfarce: Alfredo, o Grande, entre outros, que deixou queimar
os bolos e recebeu uma bofetada da mulher do vaqueiro. Que
susto devia ter tido esta mulher, quando soube quem era a
pessoa que ela esbofeteara! E Miss Minchin, que pensaria ela,
se descobrisse que a pobre Sara, cujos pés andavam quase de
fora, era uma princesa verdadeira?... A esta idéia, os olhos
da pequena brilhavam com um fulgor estranho, que exasperava a
diretora. Era de mais; Miss Minchin não pôde conter-se e,
como estava muito perto de Sara, fez, sem o saber, o mesmo
que a mulher do vaqueiro: esbofeteou-a. Sara estremeceu; a
bofetada fê-la despertar do sonho e, durante um segundo, o
seu coração deixou de bater. Depois, involuntáriamente,
soltou uma gargalhada breve.
- De que te ris, impertinente - exclamou Miss Minchin.
Foram precisos alguns momentos para Sara se dominar e
lembrar-se de que era uma princesa. As suas faces estavam
vermelhas e ela sentia como que uma queimadura no lugar onde
lhe tinham batido.
- Estou a refletir! - respondeu ela.
- Pede-me perdão imediatamente - ordenou Miss Minchin.
Sara teve um segundo de hesitação.
-Peço-lhe perdão de ter rido, porque foi, talvez, uma
indelicadeza - respondeu ela , mas não me desculparei de
refletir.
- Como te atreves tu a refletir?! - interrogou Miss
Minchin. - Em que refletes tu?
Jessie sufocou uma gargalhada e tocou no braço de
Lavínia. Todas as alunas tinham levantado a cabeça;
divertiam-se sempre quando Miss Minchin ralhava com Sara,
porque esta nunca mostrava medo e as suas respostas eram
sempre extraordinárias. E naquele dia, também não parecia
assustada, embora estivesse vermelha e os olhos lhe
brilhassem mais do que nunca.
- Pensava - respondeu Sara, delicadamente - no que
aconteceria se eu fosse uma princesa e a senhora me tivesse
esbofeteado. Pensava também que, se eu o fosse, na realidade,
poderia dizer e fazer não importa o quê, porque a senhora não
se atreveria a levantar, para mim, nem a ponta de um dedo. E
imaginava que surpresa e que susto a senhora teria, se
descobrisse de repente...
Sara vivia tão completamente o seu sonho e falava com
tal convicção, que a própria Miss Minchin se sentiu
impressionada. Aquela mulher de inteligência acanhada acabava
de perguntar a si própria se a ingênua Sara não escondia
algum poder misterioso.
- O quê? - gritou ela. - Se eu descobrisse o quê?
- Que eu sou realmente uma princesa - disse
Sara com a maior calma - e que posso fazer tudo quanto
quiser.
Os cinqüenta pares de olhos fixos nesta cena
abriram-se desmedidamente.Lavinia debruçou-se sobre a estante
para não perder nada.
- Sobe imediatamente para o teu quarto - exclamou Miss
Minchin, quase sem poder falar. Saiam da aula vamos, meninas,
continuem a estudar!
Sara fez uma pequena reverência.
- Desculpe-me ter rido, se fui incorreta disse
ela.Depois saiu, deixando Miss Minchin a debater-se contra
uma fúria impotente, e as alunas a segredar por detrás dos
cadernos.
-Viram
a
cara
dela?
Viram
aquela
fisionomia
extraordinária?-disse Jessie, incapaz de se dominar por mais
tempo. -Pois bem, Eu não ficaria surpreendida se ela fosse
uma pessoa importante.E imaginem, se fosse verdade...
DO OUTRO LADO DA PAREDE
Quando se habita uma casa, metida entre outras casas, é
engraçado procurar adivinhar o que fazem e o que dizem os
vizinhos, que se encontram tão perto, do outro lado da
parede. Sara gostava muito desta distração e perguntava
frequentemente a si própria o que lhe esconderia a parede que
separava o colégio de Miss Minchin da casa do cavalheiro da
Índia. Sabia que a sala de estudo ficava ao lado da
biblioteca do misterioso vizinho e desejava, às vezes, que a
parede fosse bem espessa, para que o barulho que as alunas
faziam depois das aulas não o incomodasse demasiado.
- Interessa-me cada vez mais - dizia ela a Hermengarda.
- Contraria-me a idéia de que o nosso barulho o fatiga.
Decidi que ele será meu amigo. Não é impossível, embora nunca
nos falemos. Sonho com ele, penso nele, tenho pena dele e,
assim, tornamo-nos quase parentes. Afirmo-te que estou
inquieta quando vejo o médico vir duas vezes por dia.
- Eu não tenho muitos parentes - observou Hermengarda,
com ar pensativo - e estou bem contente por isso, porque os
que tenho não me agradam. As minhas duas tias só sabem dizer-
me: "Meu Deus, Hermengarda , como estás gorda! Comes doces de
mais!" Quanto ao meu tio, esse passa o tempo a perguntar-me:
"Em que data subiu ao trono Eduardo III?” ou então "Quem foi
que morreu com uma indigestão de lampreia?".Sara começou a
rir.
-As pessoas com quem nunca falamos não podem fazer-nos
perguntas dessas - disse ela. Mas tenho a certeza de que o
cavalheiro da Índia, mesmo que te conhecesse intimamente, não
te perguntaria nada disso. Eu, por mim, gosto muito dele.
Sara sentia-se ligada aos membros da "Grande Família”
porque eles pareciam muito felizes; mas o que a atraia para o
cavalheiro da Índia era o seu ar triste e sofredor. Via-se
que não estava ainda refeito de uma grave doença. Na cozinha,
onde, como é costume, as criadas conseguiam saber tudo por
meios ocultos, o novo vizinho era muito discutido. Não era
hindu, mas sim inglês, e vivera muito tempo nas Índias.
Tivera um tão grande revés de fortuna, que se julgava
arruinado e desonrado para sempre. O abalo fora tão forte,
que ia morrendo de uma febre cerebral. Depois disso nunca
mais tivera saúde nem alegria, embora a roda caprichosa da
fortuna desandasse, e a grande riqueza que julgava perdida,
voltasse intacta ao seu poder. A causa de tantos desgostos
tinham sido umas minas.
- Parece que eram minas de diamantes - contava a
cozinheira. -As minas são pouco seguras, principalmente as de
diamantes... - e, ao falar assim, olhava de lado para Sara,
acrescentando - Sobre isto já tivemos provas...
"Ele sofreu como o pai? - pensava Sara. -Esteve doente
como ele, mas não morreu...”
Tudo isto a fazia interessar cada vez mais pelo vizinho.
Quando ia fazer compras, ao cair da noite sentia-se feliz
porque dizia, de si para si: - “Talvez os cortinados ainda
não estejam corridos e eu possa avistar o meu amigo...”
Quando a praça se encontrava deserta, parava em frente da
casa e, encostada às grades, dizia-lhe baixinho " Boa noite".
"Como não pode ouvir-me - imaginava ela - talvez possa,
ao menos, sentir que penso nele. Quem sabe se os pensamentos
afetuosos atravessam as paredes, as portas e as janelas! Pode
ser que tu, meu amigo da Índia, te sintas um pouco
reconfortado, sem saber por que, enquanto eu estou aqui, ao
frio, a desejar-te boa noite e melhoras para a tua saúde.
Tenho tanta pena de ti - Falava com uma voz muito doce e
profunda. - Gostava que tivesses uma "senhorazinha" para te
acarinhar, como eu acarinhava o papá quando ele tinha dor de
cabeça. Gostaria de ser eu mesma a tua "senhorazinha", meu
pobre amigo... Boa noite! Boa noite! Deus te guarde"
Afastava-se, sentindo-se, ela própria, consolada. Sara estava
convencida de que a sua ardente simpatia chegaria, de uma
forma ou de outra, até ao doente, quando ele estava sozinho,
sentado na sua cômoda poltrona, junto do lume, todo envolvido
num longo roupão e quase sempre com a cabeça apoiada na mão,
olhando vagamente para as chamas. A pequena tinha a impressão
de que os sofrimentos daquele homem eram causados não somente
pelas provações já passadas, mas também por um grande
desgosto atual.
"Se não fosse assim - pensava ela - não estaria tão
abatido e triste, visto ter recuperado toda a sua fortuna e
saber que se curará de todo, com o tempo. Tenho a certeza de
que há qualquer outra coisa".
Se havia, realmente, outra coisa - e sobre esse ponto as
criadas não tinham conseguido saber nada, Sara estava
persuadida de que o pai da "Grande-Familia" (o Sr.
Montmorency,
como
ela
lhe
chamava)
sabia
tudo.
O
Sr.Montmorency vinha visitar muitas vezes o cavalheiro da
Índia, e a Sra.Montmorency e as crianças também, embora menos
frequentemente. O doente parecia ter predileção pelas duas
mais velhas, Janet e Nora, aquelas que se tinham indignado
quando o seu irmãozinho Donald dera o xelim a Sara. Era
evidente que ele gostava muito de crianças e talvez,
particularmente, das meninas.
Janet e Nora retribuiram-lhe a afeição e esperavam
sempre com impaciência as tardes em que lhes era permitido
atravessar a praça e ir visitar o seu velho amigo, como duas
meninas bem educadas. Estas visitas eram sempre curtas, como
verdadeiras visitas de cerimônia, porque ele estava doente.
- Coitado! - explicava Janet. - Diz sempre que o
alegramos. Nós procuramos alegrá-lo suavemente.
Janet era a mais velha e dirigia o ranchinho de irmãos e
irmãs. Era ela quem decidia se podiam pedir ao cavalheiro da
Índia que lhes contasse alguma história bonita do país das
florestas e dos tigres; era ela quem dava conta do momento
preciso em que ele começava a sentir-se fatigado, ou
compreendia ter chegado o momento de se retirarem na ponta
dos pés e irem dizer a Ram Dass que voltasse para junto do
patrão. Todas as irmãzinhas adoravam Ram Dass e lamentavam
vivamente que a sua absoluta ignorância da língua inglesa as
privasse de tantas histórias maravilhosas que ele poderia
contar-lhes.
O cavalheiro da Índia chamava-se, na realidade,
Carrisford; e Janet tinha contado ao Sr. Carrisford o seu
encontro com a "pequena que não era mendiga". Esta história
interessara-o imenso, e o seu interesse aumentara ainda
quando ele teve conhecimento, pelo fiel Ram Dass, da fuga do
seu macaco favorito. Ram Dass fizera-lhe uma descrição
impressionante do sótão miserável, das paredes esburacadas,
da grelha do fogão, toda ferrugenta, e do catre que fazia as
vezes de leito.
- Carmichael - dissera o Sr. Carrisford ao pai da
"Grande Família", pergunto a mim próprio quantas mansardas
semelhantes se encontrarão nas casas desta praça, e quantas
desgraçadas criaditas, ainda crianças, dormem em camas como
aquela, enquanto eu me volto, e torno a voltar, sobre as
minhas almofadas de sumaúma, esmagado pelo peso desta
fortuna, que, na sua maior parte, me não pertence.
- Meu caro amigo - respondeu alegremente Carmichael-,
quanto mais depressa deixar de se atormentar assim, mais
depressa melhorará. Mesmo que possuísse todos os tesouros da
Índia não poderia remediar todas as misérias deste mundo e,
admitindo mesmo que chegava a mobiliar confortàvelmente todas
as mansardas desta praça, isso não passaria de uma gota de
água no oceano.
Carrisford, com os olhos fixos no belo fogo que ardia no
fogão, mordeu os dedos, nervosamente.
- Parece-lhe - disse ele, lentamente , parece-lhe
possível que a outra criança em que eu penso de noite e dia,
esteja reduzida a uma existência tão miserável como a dessa
pobre pequenina aqui ao lado?
Carmichael olhava para ele com pena; sabia que não havia
nada pior para a saúde física e moral do seu amigo do que
principiar a encarar sob esse novo aspecto aquele assunto,
muito íntimo, em que falava sempre com ele.
-Se a pequena pensionista de Madame Pascal, em Paris, é
a criança que procura - disse ele com calma, parece ter sido
confiada a pessoas capazes de a tratarem e amimarem;
adotaram-na por ela ter sido a companheira querida da
filhinha que perderam. Não têm mais filhos, e Madame Pascal
disse-me que eram uns russos muito ricos.
- E a miserável nem sequer sabia para onde a levaram! -
exclamou Carrisford.
Carmichael ergueu ligeiramente os ombros e respondeu:
- É uma mulher superficial, mas honesta, que está
encantada com a idéia de se desembaraçar, assim, da criança a
quem a morte do pai deixara totalmente sem recursos. As
mulheres deste gênero não se preocupam com o futuro das
pobres crianças que poderiam vir a ser, para elas, um pesado
fardo. Quanto aos pais adotivos, devem ter partido sem deixar
vestígios.
- Mas o senhor diz sempre: "se a criança é a que eu
procuro...” Não tem a certeza. Creio que havia uma diferença
de nome...
Madame Pascal pronunciou Carewe, em lugar de Crewe, mas
talvez fosse simples engano. Todos os outros sinais condiziam
exatamente: uma menina sem mãe, internada no colégio pelo
pai, oficial da Índia, morto sùbitamente, depois de ficar
arruinado.
Carmichael parou, de repente, como se uma nova idéia lhe
atravessasse o espírito.
- Tem a certeza de que a criança foi internada num
colégio em Paris? Julga, realmente, que foi em Paris?
-Não tenho a certeza de coisa alguma, meu amigo! Não
conheci a criança nem a mãe. Ralph Crewe e eu fomos
excelentes condiscipulos, mas nunca mais nos vimos desde a
nossa saída do colégio, até ao dia em que nos encontramos
novamente na Índia. Eu estava muito absorvido por este
negócio das minas; ele, também, sentiu-se tentado, desde o
primeiro momento, e o futuro parecia-nos tão brilhante, que
perdemos um pouco a cabeça. Não falávamos de outra coisa! Eu
apenas sabia que a filha de Ralph estava num colégio, em
qualquer parte, e já nem me recordo a propósito de que foi
que ele me falou nisso.
Excitava-se, ao falar, como lhe sucedia sempre que
revolvia a lembrança da catástrofe passada. Carniichael
olhava para ele com ansiedade; queria fazer-lhe algumas
perguntas indispensáveis mas, para isso, era preciso muita
calma e prudência.
-Tem razões para supor que o colégio era em Paris e não
em qualquer outra parte? - perguntou ele.
-Tenho. A mãe da pequenina era francesa e ouvi dizer que
ela desejara sempre que a filha fosse educada em Paris.
Parece-me, portanto, verossímil que a levassem para lá.
- Efetivamente-aprovou Carmichael- é mais que provável.
O cavalheiro da Índia curvou-se e bateu na testa com a
mão esguia e magra.
- Carmichael! - exclamou ele. - É preciso que eu a
encontre. Se é viva, está, com certeza, em qualquer parte. Se
não tem família nem fortuna, é por minha culpa. Como quer o
senhor que eu me cure, com semelhante peso na consciência?
Esta surpresa teatral do negócio das minas realizou os nossos
sonhos mais insensatos... e a filha do pobre Ralph anda
talvez a pedir esmola pelas ruas!
- Não! Não - disse Carmichael. - Acalme-se e console-se
com a idéia de que no dia em que a encontrar, terá uma
fortuna principesca para lhe entregar.
- Porque não tive a coragem de reagir quando o horizonte
se nublou - prosseguiu Carrisford, com nervosismo crescente.
- Estou certo de que teria tido mais sangue-frio se fosse só
o meu dinheiro e não o de outrem que estivesse em perigo.
Aquele pobre Crewe tinha comprometido tudo quanto possuía,até
ao último "penny". Confiava em mim e era-me muito dedicado.
Morreu convencido de que eu, Tom Carrisford, o tinha
arruinado... eu que jogava o críquete com ele em Eton. Como
me deve ter desprezado!
- O senhor é muito severo para consigo próprio.
-Eu não me acuso pelo fato de a empresa ter estado
prestes a falir, mas sim por ter perdido a coragem. Fugir
como um ladrão, como um escroque, porque não me atrevia a
aparecer diante do meu amigo e dizer-lhe que o tinha
arruinado, a ele e à filha!
O bom Carmichael passou afetuosamente a mão sobre oombro
do doente.
- O senhor fugiu porque a razão se lhe perturbou
momentâneamente, em conseqüência das torturas morais que
sofreu. Se não fosse isso, teria feito face, corajosamente, à
má fortuna. Dois dias após a sua fuga, o senhor estava num
hospital, amarrado ao leito por meio de correias, com uma
febre cerebral violentíssima, em pleno delírio. Não se
esqueça disto.
Carrisford deixou pender a cabeça nas mãos.
- Ah Grande Deus, é verdade - murmurou ele. - Estava
louco de vergonha e horror. Na noite em que fugi de casa,
parecia-me estar cercado de monstros que rugiam e me
apontavam com a mão.
- Isso explica tudo - disse Carmichael. - Um homem que
está nesse estado não pode raciocinar normalmente.
Carrisford abanou a cabeça:
-Quando eu tive novamente consciência dos meus atos, o
pobre Crewe estava morto e enterrado.
E eu tinha esquecido tudo, até a filha dele! Só mais
tarde é que a lembrança dessa criança surgiu na minha
memória, mas de forma indistinta como envolta em nevoeiro.
Parou e, passando a mão pela fronte, prosseguiu:
- Mesmo presentemente, a impressão que tenho é ainda
vaga, quando tento recordar-me de tudo o que sabia acerca
dela. Certamente, Crewe disse-me em que colégio a internara.
Não lhe parece?
-Pode ser que ele não lhe tenha dito nada de concreto.
Julgo até que o senhor ignora o nome exato da pequena.
-Ele tratava-a sempre por um curioso nome que lhe havia
dado. Quando falava da filha, dizia: a "senhorazinha". Mas
aquelas malditas minas tinham-se apoderado de nós a tal
ponto, que não falávamos de outra coisa. Se ele nomeou o
colégio... esqueci-me. E nunca mais me lembrarei...
- Vamos! Vamos - disse Carmichael. - Verá que havemos de
encontrar essa criança. Continuaremos a procurar os bons
russos de madame Pascal. Ela tinha uma vaga idéia de que
habitavam em Moscovo. É talvez uma pista interessante. Irei a
Moscovo.
-Ah! Se eu pudesse viajar, acompanhá-lo-ia!- exclamou
Carrisford. - Mas não presto para mais nada senão para viver
envolto em peles e a contemplar o lume. Quando olho para ele
um momento, julgo logo ver surgir a fisionomia tão alegre de
Crewe; olha para mim, como se quisesse perguntar-me qualquer
coisa. As vezes sonho com ele enquanto durmo e, então, faz-me
uma pergunta, mas em voz alta. Sabe que pergunta é,
Carmichael?
- Meu Deus! Como hei-de saber? - respondeu Carmichael,
comovido.
- Diz-me sempre: "Tom, velho camarada Tom, onde está a
"senhorazinha"?
Carrisford calou-se bruscamente e apertou a mão de
Carmichael.
- Quero poder responder-lhe finalmente. Quero! Ajude-me
a procurá-la. Suplico-lhe: procure-a!
Ora, nessa mesma noite, do outro lado da parede, Sara
conversava com Rodilard, que tinha vindo buscar a ceia da
família.
-Na verdade, é muito difícil, hoje, ser princesa - dizia
ela. - Mais difícil do que habitualmente! À medida que o
tempo vai arrefecendo e as ruas estão mais lamacentas, é cada
vez mais difícil. Quando Lavínia troçou do meu vestido cheio
de nódoas, no momento em que eu atravessava a sala, veio-me
aos lábios uma boa resposta, mas dominei-me a tempo. Não se
responde a semelhante gente, quando se é uma princesa... Mas
é preciso morder a língua... e eu mordi a minha, asseguro-te!
Fazia bastante frio, esta tarde, Rodilard. E a noite vai ser
mais fria ainda.
Bruscamente, Sara escondeu a cabeça entre os braços,
como costumava fazer nas suas horas de isolamento.
- Oh! Papá - murmurou ela. - Como vai longe o tempo em
que eu era a tua "senhorazinha"!
... E aqui está o que se passou, naquela noite, de cada
lado da parede...
UMA VAGABUNDA
Naquele ano, o Inverno foi muito rigoroso. Em certos
dias Sara enterrava-se na neve até aos artelhos, quando ia
fazer recados. Outras vezes - o que ainda era pior- a neve,
derretendo-se, misturava-se com a lama, formando um horrível
lodo, viscoso e glacial; ou então o nevoeiro era tão cerrado,
que os candeeiros das ruas ficavam acesos durante todo o dia,
e Londres tinha o aspecto daquela tarde, já longínqua, em que
Sara atravessara, de carruagem, as grandes ruas da cidade,
com a cabeça apoiada no ombro do pai.
Nesses dias, a casa da "Grande Família" parecia, mais do
que nunca, confortável e acolhedora e, pela janela da
biblioteca, onde se encontrava o cavalheiro da Índia,
distinguia-se o clarão da chaminé, avivando ainda mais as
magníficas cores dos panos que recobriam as paredes. O quarto
de Sara era também mais frio e lúgubre do que nunca. Tinham
acabado as madrugadas radiosas, os poentes maravilhosos, e as
próprias estrelas dir-se-ia que haviam desaparecido para
sempre. Grossas nuvens cinzentas ou amareladas passavam tão
baixo, que pareciam tocar a trapeira, desfazendo-se, muitas
vezes, em chuva torrencial. Às quatro horas, mesmo quando não
havia nevoeiro, era noite. Se, por acaso, Sara tinha de subir
ao sótão, era preciso acender uma vela. Aquele tempo influíra
na disposição das criadas e Becky era maltratada como uma
verdadeira escrava.
- Sem a menina -- dizia ela a Sara, com a voz rouca, uma
noite em que entrara no quarto da sua companheira-, sem a
menina e sem tudo o que costuma contar-me, tenho a certeza de
que morreria. Não acha que as histórias da Bastilha parecem
cada vez mais verdadeiras? A senhora parece-se cada vez mais
com o chefe dos carcereiros; chego a julgar que lhe vejo as
grandes chaves, de que a menina costuma falar, penduradas à
cinta. Quanto à cozinheira é perfeitamente um carcereiro.
Conte-me qualquer coisa: por exemplo, fale- me da passagem
subterrânea que devemos abrir nas paredes da prisão.
-Vou contar-te outra coisa que nos reconfortará mais -
respondeu Sara, com os dentes a bater de frio. -Vai buscar o
teu cobertor, embrulha-te nele, que eu farei o mesmo;
encostar-nos-emos muito uma à outra, em cima da minha cama, e
eu falar-te-ei da floresta tropical, donde veio o macaco do
cavalheiro da Índia.
"Quando o vejo sentado em cima da mesa, junto da janela,
olhando para fora com uns olhos muito tristes, tenho a
certeza de que ele pensa na floresta, onde saltava de
coqueiro em coqueiro, pendurando-se pela cauda. Gostava de
saber quem o apanhou e se deixou lá longe uma família que
sustentava, com os cocos que apanhava.”
- Tem razão; esta história é mais reconfortante- disse
Becky, agradecida , mas a própria Bastilha reconforta, quando
é a menina que fala nela. Porque nos faz mudar de pensamentos
- observou Sara, muito embrulhada no velho cobertor, só com a
carinha de fora. - Já notei isto: quando o corpo sofre, é
preciso forçar o espírito a ocupar-se de qualquer outra
coisa.
- E a menina consegue isso?-murmurou Beckv, olhando-a
com admiração.
Sara franziu as sobrancelhas durante um momento, depois
respondeu corajosamente:
- Algumas vezes, sim, outras não. Mas quando o consigo,
sinto-me imediatamente melhor. E creio que se pode conseguir
sempre, se quisermos. Tenho-me exercitado muito nestes
últimos dias e começa a parecer-me mais fácil. Quando tudo
corre mal, horrivelmente mal, persuado-me, mais do que nunca,
de que sou uma princesa. E digo comigo própria: "Sou uma
princesa e, mais ainda, uma princesa-fada; e, visto ser uma
fada, nada pode ferir-me ou fazer-me sofrer". Tu não
imaginas, Becky, quanto isto me ajuda a esquecer - concluiu
ela, rindo.
A pobre pequena tinha muitas ocasiões para se convencer
de que era uma princesa... Mas a mais notável dessas ocasiões
ofereceu-se-lhe certo dia, particularmente lúgubre, que
jamais devia apagar-se da sua memória.
Chovera sem parar, durante toda a semana; um nevoeiro
frio invadira as ruas, que estavam escorregadias; havia lama
por toda a parte - a lama amarela e pegajosa de Londres - e
toda a cidade estava envolta num cortinado de bruma de chuva
miudinha.
Quis o azar que, naquele dia, Sara tivesse de fazer
muitos recados, distantes e fatigantes, passou a tarde fora e
acabou por ficar com a roupa inteiramente encharcada. A pluma
do seu velho chapéu era grotesca e os sapatos estavam de tal
forma repassados de água, que já não podiam absorver mais.
Acrescentemos a isso que Sara fora privada da refeição do
meio-dia, porque Miss Minchin decretara que ela merecia ser
castigada. A pobre pequena tinha tanto frio e tanta fome,
sentia-se tão fatigada, que o seu rosto estava roxo e, de vez
em quando, alguns transeuntes de alma caridosa lançavam-lhe
um olhar de compaixão. Mas ela não dava por isso. Andava o
mais depressa que podia, esforçando-se por "pensar noutra
coisa". E bem precisava, porque os seus sonhos, as suas
suposições eram a única consolação que lhe restava. E ainda
assim, nesse dia, teve, por duas ou três vezes, a sensação de
que a sua fome aumentava em vez de diminuir, com as fantasias
da sua imaginação. Mas não queria sucumbir e, enquanto os
sapatos pingavam água lamacenta e o vento fazia inchar o seu
pobre casaco, ia falando baixinho, sem mesmo mexer os lábios.
"Suponhamos que tenho roupa enxuta - pensava ela - bons
sapatos, um casaco grosso, meias de lã e um guarda-chuva
novo. Suponhamos, também, que, perto de um padeiro, onde se
vendem "bunsn"(pãezinhos com passas de uva,em forma de bolo)
quentes, encontro uma moeda de seis "pence" que alguém
tivesse perdido, que não pertença a ninguém. E suponhamos,
finalmente, que entro na padaria e compro, com aquela moeda,
meia dúzia de "bunsn” acabados de sair do forno, e os como
todos seis a seguir sem parar".
Acontecem,
às
vezes,
neste
mundo,
coisas
bem
extraordinárias. Nesse dia, aconteceu uma a Sara.
No momento em que ela acabava de imaginar os "bunsn"
fumegantes, teve de atravessar a rua. Uma lama horrivelmente
espessa cobria a calçada.
Sara, que se esforçava por escolher o sitio onde punha
os pés, avançava lentamente, com os olhos fixos no chão,
quando viu uma coisa luzir na lama.
Era uma moeda, uma moeda verdadeira, que ainda brilhava
um pouco, apesar da porcaria de que estava coberta. Não era
uma moeda de seis "pence", mas uma sua irmã mais nova: uma
moeda de quatro "pence".
Em menos de um segundo estava na sua mãozinha roxa de
frio.
- Oh - balbuciou Sara. - É uma moeda, uma moeda
verdadeira!
Olhou então para a loja que estava em frente. Era uma
padaria e, lá dentro, uma mulher fresca, robusta, com ar
maternal, preparava-se, exatamente, para colocar na montra um
cesto de "buns" redondos, dourados, apetitosos, cheios de
uvas-passas.
A surpresa do achado, a vista dos "buns", o cheiro
delicioso do pão quente que saía pelo ventilador da padaria,
tudo isto impressionara tanto a pobre Sara, que, durante
alguns segundos, sentiu-se desfalecer. Mas nem um só instante
hesitou em se apropriar da pequena moeda; era evidente que
ela estava caída na lama havia algum tempo e que o seu
legítimo proprietário devia já encontrar-se muito longe,
perdido na multidão dos transeuntes que iam e vinham durante
o dia.
"Em todo o caso, vou perguntar à padeira se não foi ela
quem a perdeu" - pensou Sara, numa surda agonia.
No momento em que, tendo atravessado o passeio, punha o
pé na porta da padaria, parou sùbitamente: acabava de ver uma
pequenita, que parecia ainda mais abandonada e pobre do que
ela, uma verdadeira trouxa de farrapos, onde não se
distinguia nada além de dois pezinhos descalços, roxos de
frio e cobertos de lama, uma cabeça desgrenhada e uma carinha
suja, com dois olhos dilatados pela fome.
Sara compreendeu o olhar daqueles olhos e o coração
encheu-se-lhe de simpatia pela pequena.
"É uma criança filha de gente pobre - pensou
ela,suspirando - e ainda deve ter mais fome do que eu.”
A criança, a "filha de gente pobre", olhou para Sara e
recuou um pouco para deixá-la passar. Estava habituada a
deixar passar os outros: ela bem sabia que, se por acaso
aparecesse um polícia, a mandaria "circular".
Sara apertava nervosamente na mão a preciosa moeda.
Depois de uma ligeira hesitação, dirigiu-se à outra
pequenina.
- Tens fome - perguntou ela.
A criança pareceu encolher- se ainda mais nos seus
andrajos.
- Se tenho fome? - disse ela numa voz sumida.
- Ainda precisa de mo perguntar?
- Não comeste nada ao jantar? - inquiriu Sara.
- Nem ao jantar, nem ao almoço, nem à ceia...
- respondeu a outra, com a voz ainda mais rouca...
- Não comi nada.
- Desde quando - perguntou Sara.
- Sei lá! Ainda hoje não me deram nada. Eu bem pedi, mas
não recebi fosse o que fosse.
Só de olhar para aquela pobrezinha, Sara sentiu-se
novamente prestes a desfalecer. Mas já o seu cérebro
trabalhava e Sara dizia baixinho, a si própria, embora o
coração quase lhe parasse no peito: "Eu sou uma princesa, e
as princesas expulsas do seu trono e privadas de todos os
seus bens, dividem sempre o que lhes resta com as pessoas
mais pobres do que elas. Dividem tudo!Os "buns" custam um
"penny" cada um. Com uma moeda de seis "pence" eu poderia ter
comido seis. O que eu tenho não é o suficiente nem para ela
nem para mim, mas sempre é melhor do que coisa nenhuma".
- Espera um pouco - disse ela à pobrezinha. Entrou na
loja. Lá dentro havia um calor bom e um cheiro apetitoso. A
padeira ia, justamente, pôr novos "bunsn", quentinhos, na
montra. Sara dirigiu-se-lhe
-Dá-me licença? A senhora não perdeu, por acaso, uma
moeda de quatro "pence"?
E estendeu-lhe a moeda enlameada. A padeira olhou para a
moeda, e depois para Sara, para o seu rosto expressivo, para
o seu vestuário miserável que, no entanto, deixava ainda
adivinhar a antiga elegância.
- Não perdi, com certeza - respondeu ela. Foi agora que
a encontraste?
- Foi - confirmou Sara. - Encontrei-a na lama.
- Guarda-a para ti - aconselhou a padeira. Talvez já lá
estivesse há mais de uma semana. Sabe Deus quem a perdeu!
- Eu também pensei isso - disse Sara -, mas quis
perguntar-lhe...
- Poucas, no teu lugar, teriam esse cuidado - continuou
a mulher, cujo rosto exprimia, ao mesmo tempo, espanto,
interesse e simpatia. - Queres comprar qualquer coisa? -
acrescentou ela, vendo Sara olhar para os "buns".
- Quatro "buns", se faz favor - disse a pequena-, desses
que custam um "penny" cada.
A mulher aproximou-se da montra e meteu alguns "buns"
num saco de papel. Sara notou que eram seis.
- Tenha a bondade... eu disse quatro - explicou ela. -
Só tenho uma moeda de quatro "pence".
- Os outros dois são para completar o peso - disse a
padeira, com um sorriso bom. - Tenho a certeza de que não
ficam por comer... Não tens fome?Passou uma sombra nos olhos
de Sara.
- É verdade - confessou ela. - Tenho muita fome,
agradeço-lhe muito a sua bondade e...
Ia a acrescentar: "Está lá fora alguém que ainda tem
mais fome do que eu". Mas, exatamente naquele instante,
entraram dois ou três clientes, todos com ar apressado, de
maneira que Sara só pôde renovar os seus agradecimentos e
sair da loja.
A pequena mendiga estava ainda encolhida ao canto da
porta. Fazia impressão vê-la embrulhada naquela farrapagem
suja. Olhava para diante de si com um olhar espantado pelo
sofrimento, e Sara viu-a, de repente, passar a mão enegrecida
pelos olhos, para enxugar as lágrimas que corriam mesmo sem
ela querer.
Sara abriu o saco de papel e tirou um dos "buns"
quentes, que já Lhe tinham aquecido um pouco as mãos
enregeladas.
- Vês - disse ela, pondo o "bun" sobre o vestido
esfarrapado. - É bom e é quente. Come, deve fazer-te bem.
A criança olhou; dir-se-ia que aquela boa sorte, que lhe
caía do Céu, a assustava. Depois, arrancou o "bun" das mãos
de Sara e comeu-o àvidamente, como se fosse um lobo
esfaimado.
- Oh! Meu Deus Como é bom - dizia, com a voz rouca - Oh
Meu Deus!
Sara tirou do saco mais três "buns" e pô-los sobre os
joelhos da pequenita. O timbre daquela voz faminta fazia-lhe
mal.
"Ela ainda tinha comido menos do que eu - pensava ela. -
Está morta de fome"
Mas a mão tremeu-lhe ao largar o quarto "bun".
- Eu... eu não estou a morrer de fome - acrescentou ela.
E deu também o quinto "bun".
A mendiga devorava ainda os bolos, como uma selvagem
voraz, quando Sara se afastou. Tinha tanta fome, que nem
pensou em dizer - "Obrigada", mesmo que tivesse a mais leve
noção de delicadeza. Não passava de um pobre animal errante.
- Até à vista - disse Sara.
Quando atravessou a rua, voltou-se. A pequena tinha um
"bun" em cada mão, mas parara de comer e ficara, com a boca
cheia, a olhar para Sara. Esta fez-lhe um sinal com a cabeça;
a criança, depois de um longo e singular olhar, sacudiu a
cabecita,desgrenhada, como se respondesse, e, enquanto pôde
ver Sara, ficou imóvel, sem mesmo engolir o que tinha na
boca.
Justamente nesse momento, a padeira olhou para a rua.
- Oh! Não querem ver? - exclamou ela. Estou convencida
de que a pequena deu os “buns"a uma mendiga. Não foi porque
ela própria não tivesse vontade, porque eu vi que ela tinha
fome...Gostava de saber porque foi que ela os deu!Ficou um
momento a refletir, por detrás da montra; depois, vencida
pela curiosidade, abriu a porta e perguntou à pobrezinha:
- Quem te deu esses "buns"?
A criança, com um gesto de cabeça, indicou Sara que já
ia longe.
- Que te disse ela? - continuou a padeira.
- Perguntou-me se eu tinha fome – respondeu a voz rouca
da petiza.
- E que Lhe respondeste tu?
- Disse que sim.
- E ela veio logo comprar uns "buns" e deu-tos, não foi?
A criança respondeu que sim com a cabeça.
- Quantos te deu?
- Cinco.
A boa mulher refletiu um momento."Só guardou um!-
murmurou ela, em voz baixa.E era capaz de comer os seis! Bem
o vi nos seus olhos!"
Olhou ao longe onde se distinguia ainda a pequena
silhueta,
mal
vestida,
de
Sara,
e,
apesar
de
ser
habitualmente calma, a padeira sentiu-se perturbada, como
havia muito tempo não lhe sucedia.
"Tenho pena de que ela se tivesse ido embora tão
depressa - pensou a mulher. - Juro que era capaz de Lhe dar
uma dúzia de "buns".
Depois, voltando-se para a mendiga, perguntou-lhe:
- Ainda tens fome?
- Tenho sempre fome - foi a resposta , mas já não é
tanta como antes...
- Entra - disse a padeira,
abrindo a porta da loja.A
criança levantou-se e avançou, arrastando os pés. Ser, assim,
convidada a entrar num lugar quentinho e cheio de pão!
Parecia-lhe que estava a sonhar! Não sabia o que Lhe ia
acontecer mas também, isso pouco lhe importava!
- Vai aquecer-te - disse a
padeira,
indicando-lhe
o
interior da loja, onde ardia um bom lume - escuta-me! Quando
precisares de um bocado de pão, não tens mais nada a fazer
senão vires pedir-mo e podes ter a certeza de que nunca to
negarei, em lembrança daquela pequena que se foi agora
embora.
Sara encontrou uma certa consolação em comer o seu
último "bun". Estava muito quente e era melhor que nada. Ao
longo do caminho foi-o partindo em bocados pequenos e comeu-o
lentamente, para fazê-lo durar mais tempo.
"Suponhamos que é um "bun" mágico -- pensava ela. -Cada
bocadinho representa uma refeição completa. Se fosse verdade,
era capaz de comer de mais...”
Era já noite, quando chegou à praça onde se encontrava o
Colégio Minchin. Todas as casas estavam iluminadas. As
persianas ainda não se encontravam descidas na sala onde Sara
costumava avistar, quase sempre, os membros da "Grande
Família". Muitas vezes àquela hora, estava o Sr. Montmorency
sentado numa grande poltrona, cercado pelos filhos, os quais,
uns empoleirados sobre os braços do móvel, outros sentados
nos joelhos do pai, riam e falavam todos ao mesmo tempo.
Naquela noite permaneciam em redor do pai, mas este não
estava sentado, e todos pareciam agitados.
O Sr. Montmorency ia partir para uma viagem demorada. Em
frente da porta via-se uma carruagem, onde tinham acabado de
colocar uma grande mala. As crianças corriam de todos os
lados e agarravam-se ao pai. A mãe, tão bonita, fresca e
rosada, estava também ao pé dele e parecia pedir-lhe as
últimas instruções. Sara parou, um minuto, para ver o Sr.
Montmorency levantar nos braços o filho menor e beijá-lo,
enquanto os mais velhos lhe saltavam ao pescoço.
"A sua ausência será longa? - perguntava Sara a si
própria. - A mala é grande. Oh! Como a família deve
aborrecer-se sem ele! A mim também me vai fazer falta...
embora ignore que eu existo.”
Ao abrirem a porta, ela afastou-se, mas viu a silhueta
do viajante recortar-se na claridade que vinha de dentro, e
os filhos mais velhos reunidos à sua volta.
- Haverá muita neve em Moscou - perguntou Janet. -
Estará tudo gelado?
- O papá vai andar de "droschy"?(carruagem usada na
Rússia) perguntou uma das outras pequenas. - O pai vai ver o
kzar? Contarei tudo nas minhas cartas - respondeu o pai,
rindo. - E mandarei fotografias de "mujiks"(homem do povo, na
Rússia) e de muitas outras coisas. Entrem depressa;esta
umidade é terrível. Gostava bem mais de ficar aqui do que ir
para Moscou. Boa noite! Boa noite, meus filhos! Deus fique
convosco!
Desceu rápidamente os degraus e saltou para a carruagem.
-Se encontrar a menina, dê- lhe cumprimentos nossos
gritou Guy, aos pulos sobre o capacho.
Voltaram todos para dentro e fecharam a porta.
- Viste a "pequena que não é mendiga"?
- Ia a passar em frente da nossa casa. Estava toda
molhada e parecia ter frio. Voltou a cabeça para não olhar
para nós. A mamã diz que os vestidos dela têm o aspecto de
lhe terem sido dados por uma pessoa muito rica, que já os não
usasse por estarem velhos.
-A dona do Colégio manda-a sempre fazer recados nos dias
e nas noites em que o tempo está pior!
Sara atravessava a praça para se dirigir à escada da
cave. Tremia e sentia a cabeça andar à roda.
"Quem será esta menina que ele vai procurar?"- pensava
ela.
E desceu a escada, segurando o cesto que lhe parecia
ainda mais pesado do que habitualmente, enquanto o papá da
"Grande Família" se apressava a ir tomar o comboio que devia
levá-lo a Moscou, onde ia empregar todos os meios possíveis
para encontrar a filha do capitão Crewe.
O QUE RODILARD VIU E OUVIU
Durante aquela mesma tarde, passou-se no quarto de Sara
um fato bem singular. Só Rodilard pôde ver e ouvir... Mas,
tomado de espanto, meteu-se apressadamente no seu buraco, e
foi a tremer que se atreveu, apenas, a pôr a ponta do focinho
de fora, para saber o que se passava.
Desde a hora matinal em que Sara dali saíra, reinava na
mansarda a mais completa calma. O silêncio era apenas
perturbado pelo ruído da chuva caindo sobre as ardósias do
telhado e as vidraças da trapeira.
Rodilard achava o dia triste; quando deixou de se ouvir
o barulho monótono da chuva, decidiu partir em exploração,
embora soubesse, por experiência, que o regresso de Sara
ainda demoraria. Depois de ter farejado um pouco por todos os
cantos, acabava de descobrir, inesperadamente, uma soberba
migalha, que ficara esquecida, certamente, desde a véspera,
quando um ruído que vinha do telhado lhe chamou a atenção.
Parou, com o coração a bater com mais força, porque o tal
ruído dava a impressão de que qualquer coisa se arrastava
sobre as ardósias, aproximando-se da janela. Não tardou que
as vidraças se erguessem misteriosamente.
Primeiro apareceu uma cara bronzeada; depois surgiu
outra cara, e as duas olharam cautelosamente para dentro.
Estavam dois homens sobre o telhado e preparavam-se para
entrar, sem fazer ruído. Um deles era Ram Dass; o outro era
um homem novo, que desempenhava a função de secretário do
cavalheiro da Índia. Mas Rodilard ignorava tudo isso. Sabia
apenas uma coisa: era que os dois homens violavam a
tranqüilidade e o silêncio da sua mansarda. E quando aquele
que tinha o rosto bronzeado se deixou escorregar pela
trapeira com tanta agilidade e jeito que não fez o mais leve
ruído, Rodilard voltou- se bruscamente e meteu-se para
dentro. Estava aterrado. Havia já muito tempo que não tinha
medo de Sara. Sabia que ela só lhe dava migalhas saborosas e
apenas assobiava devagarzinho. Mas aqueles desconhecidos
eram, sem dúvida, muito perigosos. Rodilard, encolhido lá ao
fundo do seu esconderijo, contentava-se em espreitar por uma
fresta da parede, com os olhos brilhantes e ansiosos. Que
julgou ele que se passava? Não é possível dizê-lo. Mas, ainda
que tivesse podido compreender, nem por isso deixaria de
ficar assustado.
O secretário, que era ainda muito novo, desceu pela
janela quase com tanta agilidade como Ram Dass; e no momento
em que pousava os pés no chão, avistou a ponta da cauda de
Rodilard, que fugia.
- É um rato? - perguntou ele, em voz baixa, a Ram Dass.
- É, sim, "sahib,"(patrão,senhor) - respondeu Ram Dass,
no mesmo tom.As paredes estão cheias deles.
-Que horror! - exclamou o secretário. - É extraordinário
que a pequena não tenha medo deles.
Ram
Dass
fez
um
gesto
com
a
mão
e
sorriu
respeitosamente. Parecia-lhe ser, ali, o representante de
Sara, apesar de só lhe ter falado uma única vez.
- Esta criança ama e compreende tudo, "sahib"- respondeu
ele. - Não se parece com as outras crianças. Vejo-a sem que
ela me veja; escorrego silenciosamente no telhado e venho,
muitas vezes, velar o seu repouso. Observo-a da minha janela,
sem ela dar por isso. Costuma subir para a mesa e contemplar
o céu, como se ouvisse uma voz. Os passarinhos aproximam-se
dela sem receio. Domesticou e sustenta o rato que "sahib"
avistou agora. A pobre criadita, verdadeiro burrinho de carga
da casa, vem junto dela procurar consolação. Há uma pequena,
muito novinha, que a visita, às escondidas, e outra mais
crescida, que parece adorá-la e nunca se cansa de ouvi-la. Vi
e descobri tudo isso, aproximando-me da trapeira sem fazer
barulho. A dona desta casa, que é uma mulher má, trata-a como
a uma pária, mas a pequena ergue a cabeça com altivez, como
se tivesse no corpo sangue real!
- Vejo que estás bem elucidado a seu respeito - observou
o outro.
- Conheço a sua vida dia a dia - respondeu Ram Dass - a
hora a que ela sai, a hora a que ela entra; a sua grande
tristeza e as suas pobres alegrias; sei que tem frio e fome.
Tenho-a visto estudar nos seus livros, sozinha, até à meia-
noite; vi as amigas virem, às escondidas, e o prazer com que
ela conversa baixinho com elas (porque as crianças, mesmo as
mais pobres, podem ter instantes de felicidade). Se estivesse
doente, eu sabê-lo-ia e viria tratá-la, se fosse possível.
-Tens a certeza de que ninguém, a não ser ela, entra
aqui, e que não virá surpreender-nos?
-A pobre pequena ficaria assustada, e o projeto do
"sahib" Carrisford seria irrealizável.Ram Dass foi até
junto da porta, com passos de lobo.
- Só costuma voltar aqui à noite, senhor - disse ele. -
Vi-a partir, com o seu cesto. Não deve voltar tão depressa.
Ficarei ao pé da porta e ouvi-la-ei subir a escada muito
antes de ela chegar cá acima.
O secretário tirou da algibeira um bloco de papel e um
lápis.
- Presta atenção - recomendou-o. E começou a ir e vir,
de um lado para o outro, no miserável quarto, tomando notas.
Foi até ao leito, apalpou a enxerga e soltou uma
exclamação:
- É mais duro do que pedras! É preciso substituí-lo, num
dia em que ela esteja ausente durante algumas horas. É
necessário uma ocasião especial... Não pode ser hoje.
Levantou a colcha e examinou o travesseiro. - Um edredão
velhíssimo, um cobertor esburacado e lençóis rotos -
continuou ele.Que cama, para uma criança, num estabelecimento
de ensino que goza de tão boa reputação! Desde quando se não
acende aqui o fogão - acrescentou ele, lançando um olhar para
a grelha toda enferrujada.
- Nunca o vi aceso - disse Ram Dass. A dona da casa é
daquelas que se esquecem de que os outros podem ter frio.
O secretário escrevia rápidamente. Por fim, arrancou uma
folha do bloco e guardou-a na algibeira.
-A verdade é que nós vamos realizar qualquer coisa
extraordinária... - disse ele. - Quem teve a ideia?
Ram Dass inclinou-se modestamente.
-Fui eu quem primeiro pensou nisso, "sahib"- disse ele -
e, a princípio, foi apenas uma fantasia.
Dediquei-me a esta criança: nós somos, ela e eu, dois
isolados. Ela costuma contar, em voz alta, aos seus humildes
amigos, tudo quanto nasce da sua imaginação. Uma noite em que
estava muito triste, escutei-a; ela explicava o que seria
este miserável quarto, se o tornassem mais belo e mais
confortável. Dir-se-ia que via o que estava descrevendo, e a
sua face animava-se, os olhos tornavam-se-lhe mais alegres.
No dia seguinte, o "sahib" estava doente e, para o distrair,
contei-lhe o que tinha ouvido. A história agradou-lhe muito e
ele começou a interessar-se pela criança e a fazer-me
perguntas. E veio-lhe a idéia de transformar o sonho da
pequena em realidade.
-Achas que podemos conseguir isso enquanto ela dorme? E
se ela acorda? - observou o secretário.
Era, porém, evidente, que, tal como o "sahib"
Carrisford, o secretário estava encantado com o projecto.
- Eu sou capaz de andar como se os meus pés fossem de
veludo - respondeu Ram Dass. - E as crianças dormem
profundamente, mesmo as que são desgraçadas. Sou capaz de
entrar muitas vezes neste quarto sem que ela se volte,
sequer, sobre o travesseiro. Se alguém me der objetos pela
janela, arranjarei tudo sem que dê por coisa alguma. Ao
acordar, julgará que passou por aqui um feiticeiro.
Ram Dass sorriu, com um sorriso radioso, como se o
coração se lhe dilatasse; o secretário sorriu também e disse:
- Um verdadeiro conto das "Mil e Uma Noites". Semelhante
idéia nunca poderia ter nascido nos nevoeiros de Londres; só
um oriental a poderia ter tido.
A visita não se prolongou muito, com grande alívio de
Rodilard que, não compreendendo nada da conversa, achava
aqueles murmúrios, aquelas idas e vindas bem estranhos. O
jovem secretário, cada vez mais interessado, tomou notas
acerca da chaminé, o sobrado, o banco desbotado, a velha mesa
e, enfim, acerca das paredes, que apalpou com a mão parecendo
ficar satisfeito por descobrir ali um certo número de pregos
pregados um pouco ao acaso.
- Poderemos suspender aqui muitos objetos observou ele.
Ram Dass sorriu misteriosamente.
- Ontem, enquanto ela estava ausente, vim espetar pregos
miudinhos e pontiagudos, que não necessitam de martelo.
Coloquei-os nos sítios onde serão necessários. Aí os tem.
O secretário meteu o bloco no bolso, olhando mais uma
vez em redor.
- Creio que tomei nota de tudo - disse ele. Podemos
partir. O "sahib" Carrisford tem um grande coração. Que
pena,que ele não tenha encontrado a criança desaparecida!
-Se chega a encontrá-la, as forças voltar-lhe-ão -
respondeu Ram Dass. - O seu Deus pode ainda entregar-
lha.Desapareceram pela trapeira, com tão pouco ruído como
tinham chegado.
Quando Rodilard se convenceu de que eles não voltariam,
atreveu-se a pôr o narizito de fora e não tardou a correr, de
novo, pelo quarto, na esperança de que aqueles seres
inquietantes pudessem trazer nas algibeiras, apesar de tudo,
excelentes migalhas e algumas tivessem caído no chão, por
mera casualidade, para felicidade dos humildes ratinhos...
MAGIA
Quando Sara passou em frente da casa do cavalheiro da
Índia, avistou Ram Dass que fechava as janelas, e lançou um
rápido olhar para a suntuosa biblioteca.
"Há quanto tempo eu não entro numa sala tão bonita como
aquela" - pensou a pobre pequena.
Distinguia-se, como sempre, o fogão aceso e o cavalheiro
da Índia sentado ao canto da chaminé, com a cabeça apoiada à
mão e um ar mais solitário e triste do que nunca.
"Pobre homem - murmurou Sara. - Gostava bem de saber se
ele "imagina" qualquer coisa...”
Naquele mesmo instante, o doente pensava: "Imaginemos
mesmo que Carmichael encontra os russos em Moscou. Imaginemos
que a pequenina que eles levaram a casa de Madame Pascal não
é a que eu procuro. Onde poderei eu continuar a procurá-la?".
Sara, ao entrar, encontrou Miss Minchin mesmo frente a
frente. A diretora tinha descido à cave para ralhar com a
cozinheira. Ao ver a pequena, perguntou-lhe:Por onde tens
andado a perder tempo? Há não sei quantas horas que andas por
fora.
-A lama é tão espessa, que tenho muita dificuldade em
caminhar com estes sapatos, porque, como estão muito velhos,
fazem-me escorregar.
-É inútil arranjares desculpas e dizer mentiras! -
interrompeu Miss Minchin.
Sara entrou na cozinha. A cozinheira, que tinha sido
repreendida, estava de péssimo humor. Precisava de desabafar
o seu mau gênio com alguém, e Sara chegava a tempo...
-Porque não ficaste tu lá fora toda a noite?-perguntou
ela, com aspereza.Sara colocou os embrulhos em cima da mesa,
e respondeu:
-Aqui estão as compras.
A cozinheira olhou para os pacotes, a resmungar. Estava
furiosa.
- Posso comer qualquer coisa? - pediu Sara, com a voz a
tremer.
- Já tomaram o chá há muito tempo! - foi a resposta. -
Julgas talvez que o guardei para ti?!
Sara ficou um momento, silenciosa.
- Não me deram almoço... - disse ela, baixando cada vez
mais a voz, para que não a sentissem tremer.
- Há pão na despensa - respondeu a cozinheira. - Por
hoje chega...
Sara foi buscar o pão. Era seco e duro. A cozinheira
estava tão irritada, que era inútil pedir-lhe mais qualquer
coisa e arriscava-se, ainda a aturar maus modos.
A pobrezinha teve dificuldade em subir os três altos
lanços de escada que levavam ao sótão! Afiguravam-se-lhe
sempre longos, quando estava fatigada; mas, naquela noite,
pareceu-lhe que não tinham fim.
Teve de parar várias vezes, para repousar. Quando chegou
ao último patamar ficou contente por ver um fiozinho de luz
filtrar-se pelas gretas da porta. Isso queria dizer que
Hermengarda viera, em segredo, fazer-lhe uma visita. Este
pensamento reconfortou-a. Ao menos, o quarto não estaria tão
vazio e desolador; bastava a presença da boa e gorducha
Hermengarda, embrulhada no seu xale vermelho, para aquecer um
pouco o ambiente.
Sim, Hermengarda encontrava-se lá, sentada no leito, com
os pés escondidos sob o vestido. Estava, já, em muito boas
relações com a família Rodilard, mas no fundo tinha sempre
algum receio... Por isso, preferia instalar-se em cima da
cama, quando chegava à mansarda antes de Sara. Desta vez
tinha razão para estar nervosa; Rodilard saía constante mente
do buraco, a farejar o ar e, uma das vezes, pusera-se de pé,
sobre as patas traseiras e fitara-a com uma insistência que a
assustara ainda mais. Hermengarda por pouco não soltou um
grito!
- Oh Sara! - exclamou ela -ainda bem que chegaste.
Rodilard anda a cheirar tudo. Tentei, com muito bom modo,
mandá-lo para o seu buraco, mas ele não fez caso. Gosto muito
dele, acredita, mas assusta-me quando começa a fungar,
voltando a cabeça para o meu lado. Julgas que ele era capaz
de saltar para cima de mim?
- Que idéia! - respondeu Sara.
Hermengarda estendeu-se sobre o leito para ver melhor a
amiga.
- Tens um ar muito fatigado, Sara - disse ela. - Estás
muito pálida...
- Efetivamente, estou muito cansada - respondeu Sara,
deixando-se cair sobre o banco velho. Oh, lá está Rodilard!
Vem buscar a ceia.
Com efeito, Rodilard acabava de aparecer, como se
tivesse reconhecido os passos de Sara. Avançou com ar
confiante, enquanto ela metia e tornava a meter a mão na
algibeira, abanando a cabeça.
- Tenho muita pena - disse ela - mas não encontro nem
uma migalha de pão. Volta para a tua casa, Rodilard, e diz à
tua família que hoje não há nada na minha algibeira, porque a
cozinheira e Miss Minchin estavam de péssimo humor.Rodilard
pareceu compreender. Retirou-se a passos lentos e com um ar,
senão contente, pelo menos resignado.
- Não esperava ver-te hoje, Garda - - disse Sara.
- Miss Amélia foi passar a noite à casa de uma tia
velha. Ninguém, a não ser ela, vem inspecionar os quartos,
depois de estarmos deitadas. Posso ficar aqui até de
manhã.Depois de dizer isto, Hermengarda apontou para uma
quantidade de volumes que estavam sobre amesa e nos quais não
tinha reparado, ao entrar. Com um gesto de desânimo,
Hermengarda continuou:O papá mandou-me mais livros, Sara. São
esses.Sara pôs-se de pé num abrir e fechar de olhos.Correu
para a mesa, pegou num volume e folheou-o rápidamente. Já nem
se lembrava das suas desditas!
- Ah! - exclamou ela. - Que bom! A "História da
Revolução Francesa", de Carlyle. Sempre desejei tanto lê-la!
- Pois, eu não - confessou Hermengarda. E o papá vai
ficar furioso, se eu a não ler. Ele espera que estude tudo
isso antes das férias. Que hei-de eu fazer, meu Deus?
Sara parara de folhear o livro e olhava para a amiga com
as faces coradas e os olhos brilhantes.
- Escuta - disse ela. Se tu quiseres emprestar-me os
livros, eu leio-os e, em seguida, contar-te-ei e explicar-te-
ei tudo tão bem, que tu não te esquecerás mais.
- Será possível! - exclamou Hermengarda. Parece-te que
serei capaz?
- Tenho a certeza - afirmou Sara. - As pequeninas da
classe infantil lembram-se sempre de tudo o que eu lhes
ensino.
- Ouve, Sara - disse Hermengarda com uma expressão
radiante de esperança na carinha bochechuda , se tu
conseguires, realmente, ajudar- me a compreender e a não me
esquecer do que aprendo, eu...eu dou-te o que tu quiseres!
- Não preciso que me dês seja o que for - replicou Sara.
- Apenas desejo ler os teus livros! Tenho tanta vontade!
Ao dizer isto, os olhos tornavam-se-lhe maiores e o
peito erguia-se-lhe numa respiração profunda.
- Aqui os tens - respondeu Hermengarda. - Quem me dera
gostar tanto de ler como tu, mas é escusado tentar! Não sou
inteligente, mas meu pai é, e quer, por força, que eu também
o seja.
Sara ia abrindo os livros uns após outros.
- Que vais tu dizer ao teu pai?- perguntou ela, em voz
um pouco perplexa.
- Oh! Não é preciso dizer-lhe nada -- replicou
Hermengarda. - Ele julgará que os li.
Sara fechou o livro que tinha nas mãos e abanou a
cabeça.
- Seria quase mentir - disse ela. - E mentir, repara
bem, não só é uma ação má, como é, também, vulgar. Às vezes -
e ela falava como se olhasse para dentro de si própria -penso
que podia fazer qualquer coisa muito má por exemplo, matar
Miss Minchin, num acesso de raiva. Tu compreendes: quando ela
me maltrata... Mas o que eu não podia era ser vulgar. Porque
não dizes tu a teu pai que fui eu quem os leu?
- É porque ele quer que eu os leia - disse Hermengarda,
um pouco despeitada com o caminho inesperado que a conversa
ia tomando.
-O que ele quer, principalmente, é que tu saibas o que
eles contêm - replicou Sara. - E se eu puder explicar-te bem
claramente tudo, de forma que tu não te esqueças mais, tenho
a certeza de que ele ficará satisfeito.
- Oh! O que ele quer é que eu aprenda, seja lá de que
maneira for - respondeu Hermengarda, com voz desanimada.Se tu
estivesses no lugar dele, fazias o mesmo.
- Tu não tens culpa... - começou Sara. Mas calou-se a
tempo, antes de concluir - de seres curta de entendimento.
- Não tenho culpa de quê - perguntou Hermengarda.
-De não seres capaz de aprender rápidamente- emendou
Sara. - Se tu não podes, é porque não podes E se eu posso,
muito bem! É porque posso nada mais.
Sara era sempre indulgente para com Hermengarda e
esforçava-se por não lhe fazer sentir a diferença que há
entre uma pessoa que aprende tudo ràpidamente, e outra que é
incapaz de aprender seja o que for. Enquanto olhava para o
rosto redondo da companheira, ocorreu-lhe um daqueles
pensamentos sensatos que Lhe eram habituais.
-Talvez, mesmo, a inteligência não seja tudo, neste
mundo - disse ela. - A bondade é um dom ainda mais precioso.
Se Miss Minchin soubesse tudo quanto há, mas continuasse a
ser tão má como é, a sua sabedoria não a impedia de ser uma
criatura má, merecendo o ódio de toda a gente. Muitos homens
de grande inteligência fizeram mal e foram odiados.
Por exemplo, Robespierre...
Calou-se e olhou para Hermengarda, cuja fisionomia
exprimia uma profunda consternação.
- Não te lembras - Contei-te a sua história não há muito
tempo. Parece-me que já te esqueceste!
- Sim, em parte... - concordou Hermengarda.
- Pois bem; espera um momento - disse Sara.
- Vou despir esta roupa, que está encharcada, e
embrulhar-me no cobertor. Depois conto-te outra vez a
história de Robespierre.
Tirou o chapéu e o casaco, pendurando-os, num prego, e
substituiu os sapatos, todos embebidos em água, por umas
velhas pantufas. Em seguida, saltou para o leito e, lançando
o cobertor sobre os ombros, passou os braços em volta dos
joelhos, como costumava.
-Agora, escuta com atenção! - disse ela.
Começou, então, a fazer tais descrições da sangrenta
Revolução Francesa, que os olhos de Hermengarda se dilataram,
assustados. Mas, apesar do pavor que sentia, escutava Sara,
deslumbrada.
Agora tinha a certeza de não se esquecer mais de
Robespierre e de não se enganar acerca da princesa de
Lamballe.
-Lembra-te que Lhe espetaram a cabeça num ferro e
dançaram em volta - continuou Sara:Ela tinha uns lindos
cabelos louros, encaracolados. Quando penso nela, nunca lhe
vejo a cabeça sobre o corpo, mas sim espetada no ferro, com a
população, furiosa, a gritar e a dançar em redor.
Combinaram, então, que o Sr. Saint-John - o pai de
Hermengarda- seria posto ao corrente do plano que elas haviam
traçado, e que os livros ficariam no quarto de Sara.
- Falemos, agora, de outra coisa - disse Sara.
- Como vais tu nas lições de francês?
-Muito melhor, desde a última vez que aqui vim e tu me
explicaste as conjugações. Miss Minchin ficou admirada por eu
ter feito tão bem o tema, no dia seguinte.
Sara sorriu com bondade, apertando mais os braços em
volta dos joelhos.
-Miss Minchin também não compreende a razão por que
Lottie apresenta as contas de somar certas - diz ela - é
porque vem ter comigo às escondidas e eu ajudo-a.
Enquanto falava, olhou em redor de si.
- Esta mansarda seria agradável... se não fosse tão
feia! - continuou ela, a rir. - Presta-se, admiravelmente, a
todos os sonhos e a todas as suposições possíveis.
A verdade, porém, é que Hermengarda não fazia a menor
ideia da vida, por vezes, miserável, que Sara levava, e a sua
imaginação estava tão profundamente adormecida, que não era
capaz de supor fosse o que fosse.
Durante as suas raras visitas, via apenas o lado
pitoresco daquela situação, distraída com as descrições e as
invenções da amiga. As idas de Hermengarda ao sótão eram,
para ela, aventuras divertidas e, se algumas vezes, a palidez
de Sara era maior e a sua magreza mais evidente, a altiva
pequena nunca se lamentava. Jamais quisera confessar que, em
certos momentos, como, por exemplo, naquela noite, quase
morria de inanição. Crescera ràpidamente, e os eternos
recados de que a incumbiam abrir-lhe-iam o apetite, mesmo que
ela
tivesse
refeições
regulares
e
abundantes,
muito
superiores aos pratos mal cozinhados e pouco apetitosos que
lhe davam de vez em quando, conforme os caprichos da
cozinheira. Sara, pouco a pouco, tinha-se habituado às
contínuas "reclamações” do seu pobre estômago.
- Penso que os soldados são como eu, quando fazem uma
marcha longa e fatigante - repetia ela muitas vezes.
Gostava desta frase: "uma marcha longa e fatigante".
Tinha a impressão, quando a dizia, de ser ela própria um
desses pobres soldados.
Estava absolutamente compenetrada do papel de dona de
casa, quando recebia a visita das amigas no quarto, e
pensava:
"Suponhamos que habito um castelo e Hermengarda outro”,
ela viria ver- me com uma escolta de cavaleiros, escudeiros e
vassalos, e estandartes flutuando ao vento. Quando eu ouvisse
as trombetas tocar em frente da ponte levadiça, desceria para
recebê-la e conduzi-la-ia a um grande festim servido no salão
nobre; depois mandaria entrar os menestréis para que eles
cantassem e se acompanhassem com o alaúde, e nos recitassem
versos. Quando Hermengarda vem visitar-me, não posso
oferecer-lhe banquetes, mas posso contar-lhe histórias e não
lhe deixar adivinhar os meus desgostos. Tenho a certeza de
que os pobres castelões faziam o mesmo, quando havia fome e o
seu domínio fora devastado pelos inimigos.
Sara era, sem dúvida, uma altiva e corajosa castelã, que
distribuía generosamente a única riqueza que lhe restava: os
seus sonhos, as suas visões, tudo o que, afinal, constituía
para ela a única possibilidade de alegria e consolação. E era
tanto assim que, naquela noite, Hermengarda estava longe de
supor que Sara se sentia exausta de cansaço e fraqueza,
perguntando a si própria se a fome devoradora que a
atormentava Lhe permitiria adormecer, quando a amiga se fosse
embora. Nunca tive tanta fome!
-Gostava de ser magrinha como tu, Sara- disse, de
repente, Hermengarda. - Parece que agora ainda és mais magra
do que dantes; os teus olhos estão enormes e vêem-se-te
perfeitamente todos os ossos do cotovelo!
Sara, tranquilamente, baixou as mangas, que estavam
arregaçadas.
-
Sempre
fui
bastante
magra
-
replicou
ela,
corajosamente - e sempre tive grandes olhos verdes.
- Gosto muito dos teus olhos - disse Hermengarda,
fitando-a com afetuosa admiração. -Dir-se-ia que eles vêem
muito longe, muito longe, muito mais longe do que os da outra
gente! Gosto deles e gosto da sua cor verde, embora, muitas
vezes, pareçam pretos.
- São olhos de gato - disse Sara a rir. Mas apesar disso
não vejo de noite... Já tentei! Mas não consegui ver nada. E
tenho
pena!Precisamente
naquele
momento
passava-se
na
trapeira qualquer coisa que escapou às duas pequenas. Se uma
delas, por acaso, se tivesse voltado, teria ficado assustada
ao ver um rosto bronzeado que lançava, ràpidamente, um
imprudente olhar para a mansarda e desaparecia tão depressa
como
havia
vindo.
Tão
depressa
mas,
talvez,
menos
silenciosamente, porque Sara, que tinha esplêndido ouvido,
voltou-se, de súbito, a olhar para o teto.
- Não é Rodilard - disse ela. - Ele faz maisbarulho, com
as unhas.
- Então quem é - perguntou Hermengarda, um pouco
sobressaltada.
- Não ouviste nada? - interrogou Sara.
- Não... não... - balbuciou Hermengarda. E tu?
- Não tenho a certeza - respondeu Sara. Pareceu-me
qualquer coisa a arrastar-se pelo telhado.
- Meu Deus! -exclamou Hermengarda. - E se fossem
ladrões?
- Podes estar tranquila - retorquiu alegremente Sara. -
Não há nada para roubar, e...
Interrompeu-se. Vinha da escada, e era a voz irritada de
Miss Minchin. Sara saltou abaixo do leito e apagou a vela.
- Está a ralhar com Becky - murmurou ela, na escuridão.
- Já a fez chorar...
- É capaz também de vir aqui... - disse Hermengarda,
apavorada.
- Não. Ela julga que eu estou deitada. Não te mexas...
Era muito raro Miss Minchin subir ao último andar. Sara
apenas se lembrava de tê-la lá visto uma vez. Mas, naquela
noite,
parecia
furiosa
e
dava
a
impressão
de
ir
subindo,empurrando Becky à sua frente.
- Atrevida! Ladra! - ouviram as duas amigas. - A
cozinheira disse-me que lhe faltam coisas, constantemente.
- Não sou eu, minha senhora - soluçava Becky. - Tenho
fome, mas nunca tirei nada, nunca!
- Merecias que eu te mandasse prender - prosseguia a voz
furiosa. - Roubar metade de uma empada! Que desaforo!
- Não fui eu - dizia Becky, sempre a chorar. - Era capaz
de comer uma inteira, mas nem sequer lhe toquei com um dedo.
Miss Minchin não podia mais: a cólera e a subida das
escadas tinham-na deixado esfalfada. A malfadada empada fora
guardada especialmente para ela... E Becky recebeu um par de
bofetadas.
- É inútil mentir - disse Miss Minchin. - Vai
imediatamente para o teu quarto!
Sara e Hermengarda haviam escutado tudo: depois ouviram
os passos de Becky correndo para o quarto e a porta fechar-
se. Perceberam que a pobre rapariga se atirara para cima da
cama.
-Tenho fome que chegava para duas empadas- soluçava ela.
- E nunca tirei uma migalha fosse do que fosse. A cozinheira
deu-a ao sargento que costuma visitá-la.
Sara, de pé na obscuridade, cerrava os dentes e cruzava
e descruzava febrilmente as mãos. Não podia dominar-se mais;
esperou, porém, que Miss Minchin descesse e que todo o ruído
cessasse. Então, explodiu:
- Má! Desumana! É ela quem rouba e depois acusa Becky!
Não é verdade! Ela mente! Pobre Becky, às vezes tem tanta
fome, que vai apanhar as cascas que estão misturadas com as
cinzas.Escondendo a cabeça nas mãos, rompeu em soluços
aflitivos que consternaram Hermengarda.Sara,a intrépida,Sara,
chorava... Que era aquilo? Custava- lhe a acreditar.
Uma idéia terrível surgiu, lentamente, no cérebro um
tanto obtuso da Hermengarda. Levantou-se, por sua vez,
aproximou-se da mesa, riscou um fósforo e acendeu a vela.
Depois se debruçou para Sara, com um olhar de verdadeira
angústia.
- Sara - murmurou ela, com voz trêmula -tu... tu tens...
Tu nunca dizias nada, eu não queria magoar-te, mas...
Costumas ter fome?Era a gota de água que faz trasbordar a
taça. Sara levantou a cabeça.
- É, verdade - disse ela com ardor. - Sim, tenho fome.
Tenho tanta fome, hoje, que comeria fosse o que fosse. E
ainda me custa mais depois de ter ouvido a pobre Becky,
porque ela ainda está mais esfomeada do que eu!
- Oh! Oh! - exclamou Hermengarda, numa aflição. - E eu
que não sabia nada!
- Eu não queria dizer-to - respondeu Sara. ! Se o
fizesse, dava-me a impressão de ser uma mendiga... Eu sei, de
resto, que tenho todo o aspecto...
- Não, não - interrompeu Hermengarda. - Os teus vestidos
estão velhos e sujos, é verdade, mas não pareces uma mendiga.
Nunca parecerás!
-Um dia, um petizinho deu- me um xelim - disse Sara- e
não pôde deixar de sorrir. – Está aqui.E, ao dizer isto,
tirou a fita que trazia ao pescoço.Se eu não tivesse o ar de
uma pessoa que passa necessidade, com certeza que ele não mo
teria dado.
A vista da tocante recordação distraiu as duas crianças
que principiaram a rir, com os olhos cheios de lágrimas.
- Quem era esse pequenito - perguntou Hermengarda,
olhando a moeda com uma espécie de respeito.
- Era lindo e devia ir a qualquer festa. É uma das
crianças da "Grande Família", aquele petiz de perninhas muito
gordas e a quem eu chamo Guy. A minha idéia é que eles têm
muitos brinquedos, caixas de bombons e bolos com fartura, e
compreendeu que eu não tinha nada...
Hermengarda estremeceu. As últimas palavras de Sara
fizeram nascer no seu cérebro uma súbita inspiração.
- Oh! Sara - exclamou ela. - Como eu sou estúpida por
não ter pensado nisto mais cedo!
-Pensar em quê?
- Oh! Uma idéia esplêndida - continuou Hermengarda,
muito excitada.Recebi hoje mesmo uma grande caixa que a mais
gentil das minhas tias me mandou. Está cheia de coisas boas.
Ainda nem a abri porque comi tanto pudim, ao meio-dia... E
depois, os livros do papá atormentavam-me... Mas eu sei o que
a caixa contém - continuou ela, gaguejando, tanta era a
pressa com que falava. - Tem uplum-cake"(bolo inglês
empadinhas, tortas de doce, laranjas, figos, chocolate! Vou
buscá-la, trago-a, sem fazer barulho e comeremos tudo!
Sara sentia a cabeça andar um pouco à roda; a enumeração
de tantas coisas boas aumentava o seu mal-estar.
Apertou o braço de Hermengarda e perguntou:
- Achas que poderemos?
- Tenho a certeza - replicou Hermengarda. E, correndo
para a porta, abriu-a sem ruído e ficou de ouvido à escuta,
durante um segundo.
- Todas as luzes estão apagadas - murmurou ela. - Está
toda a gente deitada. Vou descer devagarzinho e ninguém
sentirá nada.Esta perspectiva era tão deliciosa, que as duas
amigas apertaram a mão uma da outra, e os olhos de Sara
iluminaram-se.
- Garda - disse ela. - Imaginemns qualquer coisa,
suponhamos que eu dou uma festa! Achas bem que convidemos o
prisioneiro da cela vizinha?
- Mas naturalmente que sim! Bate na muralha; o
carcereiro não ouvirá.
Sara aproximou-se da parede e ouviu a pobre Becky, que
ainda chorava. Bateu quatro pancadas.
- Isto significa: "Vem ter comigo, tenho uma coisa para
te dizer" - explicou ela.
Responderam-lhe cinco pancadas rápidas.
- Vem já - disse Sara.
A porta abriu-se imediatamente, e Becky apareceu. Tinha
os olhos vermelhos e, ao ver Hermengarda, limpou nervosamente
a cara com o avental.
- Não te preocupes comigo, Becky... - disse-lhe
Hermengarda.
- És convidada de miss Hermengarda - explicou Sara. -
Ela vai trazer-nos uma caixa de guloseimas que recebeu hoje.
A touca de Becky escorregou para trás; não podia
acreditar no que ouvia!
- São coisas... coisas boas para comer? - perguntou ela.
- Naturalmente - respondeu Sara - e nós faremos de conta
que damos uma grande recepção.
- E vocês comerão tudo o que quiserem - interrompeu
Hermengarda. - Vou buscar a caixa num instante.
Saiu com tanta pressa, na ponta dos pés, que o xale
vermelho lhe caiu dos ombros, sem ela dar por isso. Ninguém
reparou. Becky estava sufocada com aquela boa surpresa.
- Oh miss Sara, eu sei que foi a menina quem lhe pediu
que me convidasse! Estou quase a chorar de alegria - exclamou
Becky.E aproximou-se muito de Sara, olhando para ela com
adoração. Mas já a imaginação de Sara começara a trabalhar,
transformando e embelezando tudo o que acabava de suceder.
Apesar da pobreza do quarto e do frio que fazia lá fora;
apesar das suas caminhadas estafantes pelas ruas lamacentas e
da lembrança dolorosa dos olhos espavoridos da pequena
mendiga, Sara via, na idéia de Hermengarda, qualquer coisa de
sobrenatural. E suspirou profundamente.
- É quando tudo corre pior que acontece sempre o que
menos se espera! Dir-se-ia que passa por nós um Feiticeiro.
Não devemos esquecer que nunca se é infeliz até ao fim.
E bateu, alegremente, no ombro de Becky, exclamando:
- Não! Não! Hoje não se chora mais. Vamos pôr a mesa,
depressa!
- Pôr a mesa - perguntou Becky, perplexa, percorrendo a
mansarda com o olhar. -Com quê?
Sara olhou também.
- Efetivamente, não temos nada - disse ela, sorrindo.
Mas, naquele momento, avistou um objecto sobre o qual se
precipitou: era o xale vermelho de Hermengarda, que tinha
caído há pouco no chão.
-Tenho a certeza de que Hermengarda não dirá nada -
exclamou ela. - Este xale dará uma esplêndida toalha
encarnada.
Puxaram a velha mesa e cobriram-na com ele. O vermelho é
uma cor maravilhosa: imediatamente o quarto deixou de parecer
tão nu.
- Um tapete encarnado no chão, eis o que nos falta.
Façamos de conta que temos um - disse Sara.
E olhou para o chão esburacado, com grande alegria.
- Vê como é macio - continuou ela, num tom de grande
convicção.
Levantava e baixava o pé, delicadamente, como se o
enterrasse em qualquer coisa muito espessa.
- É verdade!- respondeu Becky, que a contemplava
gravemente.Becky, mesmo nos momentos de felicidade, estava
sempre séria.
- E agora, que mais é preciso - disse Sara, pondo as
mãos sobre os olhos. - Pensemos um pouco! O feiticeiro me
inspirará - acrescentou ela, com uma voz muito doce.
Porque Sara estava persuadida - era uma das suas
invenções favoritas - de que há, espalhadas no ar, idéias à
disposição de quem precisa delas. Becky tinha-a visto, muitas
vezes, esconder assim o rosto nas mãos e levantá- lo, depois,
com uma expressão feliz e inspirada.
Foi o que sucedeu naquela noite. Pronto! – exclamou-Já
tive uma idéia,vou procurar na mala que me pertencia quando
era rica!Dirigiu-se ao canto onde estava a referida mala.
Havia-na-na levado para o sótão, não para comodidade de Sara,
mas porque não tinham outro sítio onde a pudessem meter. Lá
dentro só havia velharias sem valor; mas Sara estava
convencida de que ia fazer belas descobertas... O feiticeiro
lá estava, para transformar tudo.
Num canto da mala via-se um embrulhinho tão pequeno que,
com certeza, havia escapado ao olhar investigador de Miss
Minchin. Sara guardara-o como recordação. Continha uma dúzia
de lencinhos brancos, muito finos. Sara pegou neles e,
voltando
para
junto
da
mesa,
começou
a
dispô-los
elegantemente, com a rendinha muito bem esticada.
- Os pratos - dizia ela - são de ouro maciço. E aqui
estão os guardanapos, guarnecidos de rendas caras, feitas em
conventos de Espanha.
- Isso é verdade - murmurou Becky, cheia de admiração.
- O que é preciso é imaginar que é verdade!Afirmou Sara.
- Se acreditares firmemente, verás rendas preciosas.
- Sim, rendas - respondeu Becky, docilmente. E, enquanto
Sara voltava à mala, ela fez todos os esforços possíveis para
chegar àquela conclusão.
Sara viu-a, de repente, com os olhos fechados, a cara
estranhamente convulsionada e as mãos crispadas; dir-se-ia
que procurava levantar um peso enorme.
- Que sucedeu, Becky - exclamou ela. – Que estás tu a
fazer?Becky estremeceu e abriu os olhos.
-Estava a ver se era capaz de acreditar!Respondeu ela,
um pouco confusa.Procurava ver as coisas bonitas que a menina
vê - E estava quase...- concluiu a pobre pequena. - Mas não é
fácil!
- É porque tu não estás habituada - disse Sara,
afetuosamente. No teu lugar não me esforçaria tanto no
começo. É uma coisa que vem a pouco e pouco. Repara bem: vou
explicar-te tudo.
Sara tinha na mão um chapéu velho, de palha, guarnecido
com uma grinalda de flores, que encontrara no fundo da mala.
Arrancou-Lhe a grinalda, e disse, com ênfase:
-Aqui estão as flores para a sala do banquete. O seu
perfume embalsama o ar. Oh Becky, dá-me o jarro da água e
também a saboneteira, que fará um magnífico centro de mesa.
Becky,
respeitosamente,
foi
buscar
os
objetos
designados.
- Que representa isto agora? - perguntou ela.
- Isto é um gomil cinzelado - explicou Sara, colocando
um ramo de folhagem em volta do jarro da água. -E isto é uma
taça de alabastro, incrustada
de pedras preciosas - disse ela, enchendo a saboneteira
com as rosas do chapéu velho.
- Muito bem! Creio que é muito bonito - suspirou Becky.
-Precisamos de qualquer coisa para pôr os bombons -
murmurou Sara. – Pronto, já sei (e correu para a mala). Vi
aqui uma coisa que nos serve.
Era apenas um bocado de tecido embrulhado em papel de
seda branco e vermelho: Mas, com aquele papel, Sara fez uns
pratinhos e, depois, misturando os bocados que sobejaram com
as flores que ainda tinha, ornamentou o castiçal que fazia as
vezes de candeeiro. Só o Feiticeiro seria capaz de ver em
tudo aquilo outra coisa que não fosse uma mesa velha e sem um
pé, coberta com um xale e ornamentada com trapos. Mas, para
Sara, era uma mesa suntuosa; e Becky abria os olhos, falando
o mais que podia.
- Ainda estamos na Bastilha - perguntou ela, olhando em
volta de si. -Ou a Bastilha também foi transformada?
- Oh Com certeza - respondeu Sara. - É tudo diferente!
Estamos na sala do banquete.
- Do quê? Meu Deus - exclamou Becky, absolutamente
confundida.
- Na sala do ban-que-te - explicou Sara. Quer dizer: uma
grande sala para refeições de cerimônia, com um teto alto, em
abóbada, uma galeria para os músicos, uma grande chaminé
cheia de troncos de árvore a arder, e inúmeras velas de cera
que cintilam de todos os lados.
- Palavra... - murmurou novamente Becky. Naquele
momento, a porta abriu-se e Hermengarda entrou, vergada ao
peso da caixa. Soltou uma exclamação de alegria, à vista dos
brilhantes preparativos para o festim, que contrastavam com a
glacial escuridão da escada.
- Oh! Sara - disse ela. - Tu és a pessoa mais
inteligente que eu tenho conhecido!
- Não é verdade que é bonito – respondeu Sara.Tudo isto
saiu da minha mala velha. Foi o Feiticeiro que me inspirou.
-Oh Miss Hermengarda, é preciso saber o que tudo isto
representa... Explique-lhe, Miss Sara! - pediu Becky.
Então, Sara, ajudada, sem dúvida, pelo Feiticeiro,
descreveu tão bem os magníficos preparativos, que as suas
duas companheiras viam, quase, os pratos de ouro, os troncos
a arder, as velas a cintilar.
E quando retiraram da caixa, uns após outros, os bolos
cobertos de açúcar, as tortas, os frutos, os chocolates e o
xarope, então a mesa do banquete tornou-se, verdadeiramente,
uma maravilha.
- É um jantar completo! - exclamou Hermengarda.
- Dir-se-ia a mesa de um rei! – murmurou Becky.
Hermengarda teve, sùbitamente, uma brilhante inspiração.
- Ouve, Sara - disse ela. - Imaginemos que tu és uma
princesa e que isto é um banquete real.
- Mas és tu que ofereces o banquete ,objetou Sara.
Serás tu a princesa e nós as tuas damas de honor.
- Oh! Eu não posso ser princesa – respondeu Hermengarda.
- Sou muito gorda. E, além disso, não sei como hei-de fazer.
Tu sabes muito melhor.
- Nesse caso, aceito, visto que tu queres -disse Sara.
Mas, uma nova idéia fê-la correr para a grelha
enferrujada do fogão.
- Está cheia de lixo e papéis velhos ! - exclamou ela. -
Deitemos-Lhe fogo. Fará, durante alguns minutos, uma linda
chama, e imaginaremos que temos na realidade, o fogão aceso.
Pegando num fósforo, juntou a ação às palavras e a
mansarda ficou toda iluminada.
- Quando os papéis acabarem de arder - disse Sara -
esqueceremos que foi um simulacro de fogueira. (Enquanto
falava, conservava-se sorridente junto das chamas). Parece
mesmo que é verdade, não parece? perguntou ela. Agora vamos
dar começo à festa.
Com um gesto gracioso, indicou a mesa, com a mão, a
Hermengarda e a Becky. Vivia, cada vez mais, o seu sonho.
- Aproximai-vos, gentis damas - disse ela - e tomai
lugar na mesa do banquete. O rei, meu nobre pai, que partiu
para uma longa viagem, ordenou-me que o substituísse junto de
vós.
E, voltando a cabeça para o fundo da mansarda,
continuou:
-Que os menestréis façam ressoar violas e oboés... As
princesas - explicou ela, ràpidamente, às companheiras -
tinham sempre músicos que tocavam durante as refeições.
Imaginemos que há ali uma galeria cheia de menestréis.
Ainda mal tinham comido, cada uma, um bocado de bolo,
quando as três empalideceram e se levantaram, de ouvido
atento na direção da porta.
Não havia engano. Alguém subia a escada. As três
crianças reconheceram os passos que tanto temiam e
compreenderam que chegara o fim do seu lindo sonho.
- Lá vem a senhora - disse Becky, com a voz estrangulada
e deixando cair o bolo.
- Sim - confirmou Sara, em cujo rosto pálido se
distinguia apenas dois olhos imensos. - Miss Minchin ouviu-
nos.
Com um gesto brusco, miss Minchin abriu a porta. Também
ela estava pálida, mas de cólera, e o seu -olhar ia dos três
rostos apavorados para a mesa do banquete e da mesa para a
última labareda do papel que acabava de arder no fogão.
- Eu já suspeitava... - gritava ela - mas nunca poderia
acreditar em semelhante audácia. Lavínia tinha razão!
Assim, fora Lavínia quem descobrira o segredo e as
atraiçoara! Miss Minchin dirigiu-se a Becky e pela segunda
vez, esbofeteou a pobrezinha.
- Atrevida - disse ela. - Sairás desta casa amanhã de
manhã!
Sara conservava-se imóvel e branca como mármore.
Hermengarda começou a chorar.
- Oh! Não a despeça, miss Minchin - suplicou-a. - A
minha tia mandou-me um presente e nós fizemos uma festa...
- Bem vejo - respondeu a diretora, com glacial ironia. -
E a princesa Sara presidia à mesa.
Ao dizer isto, voltou-se, furiosa, para Sara, gritando:
-A culpa é toda tua! Hermengarda nunca teria semelhante
idéia. Foste tu quem decorou o quarto com todas estas
porcarias!
E voltando-se de novo para Becky:
- Volta imediatamente para o teu quarto.
Becky fugiu, com a cabeça escondida debaixo do avental.
- Quanto a ti - continuou Miss Minchin, dirigindo-se a
Sara - ficará privada de almoço, jantar e ceia.
- Já hoje não almocei, não jantei, nem ceei - Miss
Minchin - disse Sara, com a voz muito sumida.
-Tanto melhor! Não te esquecerás tão depressa... Não
fiquem a olhar para mim. Metam tudo dentro da caixa.
Ao dizer estas palavras, deu com os olhos nos livros de
Hermengarda.
- A menina atreveu-se a trazer os seus magníficos livros
para esta mansarda... Pegue neles, já! e vá para a cama.
Amanhã não sairá do quarto, e vou escrever ao seu pai. Que
diria ele se soubesse onde a menina veio este serão!
O olhar profundo e singular de Sara fê-la interromper.
- Em que estás a pensar? - perguntou Miss Minchin,
ásperamente. - Porque olhas assim para mim?
- Estou a refletir! - respondeu Sara, como já fizera uma
vez na sala de estudo.
- Em quê? Diz!
Parecia a repetição da mesma cena. Não havia a menor
insolência na voz de Sara. Era calma e triste.
- Perguntava a mim própria - disse ela, lentamente -, no
que diria o meu pai se soubesse onde eu estou, este serão...
Como no dia da famosa cena, Miss Minchin perdeu o
domínio de si própria. Agarrou a pequena pelos ombros e
sacudiu-a com brutalidade!
- Insolente! -gritou ela. - Como te atreves tu... Atirou
com os livros e os bolos, tudo misturado, para dentro da
caixa, e pô-la sobre os braços de Hermengarda, ao mesmo tempo
que dizia a Sara:
-
Deixo-te
com
as
tuas
reflexões.
Deita-te
imediatamente.
Empurrando a pobre Hermengarda, fechou a porta e Sara
ficou sozinha.
O sonho, tão lindo, acabara. Na grelha não havia senão
papel queimado; a baixela, os guardanapos de renda e as
grinaldas tinham voltado a ser lenços usados, papel de seda
branco e vermelho, e velhas flores artificiais que juncavam o
chão; os menestréis haviam desaparecido e o som das violas
extinguira-se. Restava apenas Emily, sentada junto da parede;
tinha o ar de ver qualquer coisa estranha, com os seus
grandes olhos redondos. Sara reparou nela e, com as mãos
tremulas, pegou-Lhe.
-Acabou-se
o
banquete,
Emily,
e
acabaram-se
as
princesas. Só ficaram os prisioneiros da Bastilha.
Sentando-se no velho banco, escondeu a cabeça entre os
braços.
... Que teria acontecido se, em vez de tapar os olhos,
ela os tivesse levantado para a trapeira, justamente nesse
momento? Ninguém sabe. Talvez que o fim deste capítulo fosse
diferente... Porque se Sara tivesse erguido os olhos, teria
visto, através da vidraça, o mesmo rosto bronzeado que já, ao
começo da noite, a estivera contemplando e a Hermengarda,
enquanto conversavam.
Mas Sara não se movia. Ficou muito tempo com a cabecinha
morena deitada sobre os joelhos, como fazia sempre que
procurava suportar corajosamente uma nova provação. Por fim,
levantou-se e aproximou-se lentamente da cama.
- Hoje não posso imaginar mais nada - murmurou ela. - É
inútil tentar. Talvez, se eu adormecer, venha algum sonho
"imaginar" por mim...
Sentia-se, sùbitamente, tão cansada - talvez por não ter
comido durante todo o dia, que quase tombou, desfalecida,
sobre o leito.
- Suponhamos - recomeçou ela, entretanto, suponhamos que
há um bom lume no fogão, com muitas labaredazinhas azuis, que
dançam; suponhamos que, em frente do lume, se encontra uma
mesinha sobre a qual... Sobre a qual está servida uma ceia
bem quente. E suponhamos - continuou a pobre pequena,
embrulhando-se no velho cobertor , suponhamos que eu estou
deitada numa caminha macia, com espessos cobertores e grandes
almofadas de sumaúma. Suponhamos... Suponhamos...
E aquela grande e súbita fadiga transformou-se, quase,
num benefício, porque os olhos fecharam-se-lhe e ela
adormeceu profundamente.
Quanto tempo dormiu? Não podia fazer a menor idéia. Mas
dormia tão pesadamente, que toda a família Rodilard, pais,
filhos e filhas, correndo e galopando através da mansarda,
não teriam sido capazes de despertá-la do seu profundo sono.
Quando acordou, quase de repente, não teve a impressão
de haver sido despertada por qualquer coisa. E, no entanto,
fora um ruído verdadeiro que a chamara à realidade - o ruído
seco feito pela janela que se fechava, depois de ter deixado
passar uma forma branca e silenciosa que, apenas se encontrou
no telhado, se alongou, sem ruído, sobre as ardósias,
bastante próximo, para ver o que se passava no interior da
mansarda, mas não tanto que pudesse ser visto por Sara.
Sara não abriu logo os olhos. Ainda tinha sono e, coisa
curiosa, experimentava uma doce impressão de calor, uma
impressão tão boa, que não podia acreditar que estivesse
realmente acordada: um sonho, só um sonho podia dar-lhe tal
sensação de completo bem-estar.
- Que bom sonho -- balbuciou ela. - Estou tão quentinha!
Eu... Eu queria... Não acordar.
Evidentemente, só podia ser um sonho. Parecia-lhe que os
cobertores que a agasalhavam eram leves e quentes. Na
verdade, ela estendeu as mãos e os seus dedos apalparam
qualquer coisa como um edredon de sumaúma, forrado de
cetim... Ficaria muito quieta para não quebrar o encanto...
Mas era mais forte do que ela; havia no quarto qualquer
coisa que a forçava a abrir os olhos: uma sensação luminosa e
um ruído - o mesmo ruído que faria um lume crepitante.
"Oh! Estou a acordar - pensava ela, com desespero". - E
não posso impedir que isso aconteça!” Os olhos abriram-se
,apesar de ela não querer. E. então, sorriu, porque viu o que
nunca tinha visto no sótão, e o que não tornaria mais a ver.
- Não estou acordada - murmurou, erguendo-se sobre o
cotovelo e olhando para todos os lados. - O sonho continua.
Tinha a certeza de estar sonhando: o que ela julgava ver
não podia existir na realidade.
Eis o que via: - Na grelha ardia um belo lume vermelho
e, sobre esse lume, estava uma pequena vasilha de cobre, onde
a água fervia, a cantar; sobre o sobrado, um espesso tapete
vermelho; em frente do lume uma poltrona articulada, aberta e
cheia de almofadas; junto da poltrona uma mesinha também
articulada, coberta com uma toalha branca, e sobre a qual se
encontravam pratinhos com as suas tampas, uma chávena com o
seu pires e um bule; sobre o leito estavam cobertores novos e
quentes, assim como um edredon de cetim; ao pé da cama havia
um curioso roupão de seda acolchoada, um par de pantufas
forradas de pele e alguns livros. O miserável quarto tornara-
se um lugar maravilhoso e uma claridade iluminava tudo,
porque em cima da mesa havia um bonito candeeiro, com um
quebra-luz cor-de-rosa.
Sara olhava, sempre apoiada no cotovelo; o coração
batia-lhe desordenadamente.
- A visão não desaparece - dizia ela, ofegante. - Oh!
Nunca tive um sonho tão bonito como este!
Não se atrevia a mexer-se; mas, por fim, afastando a
roupa, pôs um pé no chão.
- Estou a sonhar que me levanto - ouviu ela dizer a sua
própria voz.
E quando, já de pé, olhava lentamente à sua volta, foi
dizendo:
- Estou a sonhar que o meu sonho continua; sonho que é
verdade. Estou enfeitiçada! Imagino que vejo tudo isto...
Falava cada vez mais depressa.
- Se eu puder continuar a crer que é verdade, pouco me
importa que seja um sonho... Não é verdade! Não pode ser
verdade. Mas, meu Deus! Como tudo isto parece verdadeiro.
O lume atraiu-a.Ajoelhou em frente da grelha e estendeu
as mãos tão perto, que o calor intenso fê-la recuar.
- Um fogo de sonho não me queimaria – disse ela em voz
alta.
Levantou-se e foi tocar na mesa, no tapete, no bule.
Tocou nos cobertores, pegou no roupão acolchoado e encostou-o
à cara.
- É quente! É macio - dizia ela, com lágrimas na voz. É
verdade! Tudo isto é verdade!Pôs o roupão sobre os ombros e
enfiou os pés nas pantufas.
- Tudo isto é real! Eu... Eu não sonho! exclamou.
Quase a cambalear, dirigiu-se para os livros e abriu o
que estava ao de cima.Na primeira página estava escrito:
"Para a menina da mansarda. Da parte de um amigo".
Ao ler isto, Sara escondeu o rosto entre as folhas do
volume e rompeu em soluços.
- Não sei quem é - dizia ela. - Mas alguém pensa em mim!
Tenho um amigo!
Pegou no castiçal e, em bicos de pés, foi ter com Becky.
Junto do leito parou, chamando, nervosamente.
- Becky! Becky! Acorda!
Quando Becky, com a cara ainda toda suja de lágrimas,
abriu os olhos, viu diante de si uma pequena silhueta envolta
num luxuoso e bonito roupão carmesim. Um lindo rosto
resplandecente olhava para ela: a princesa Sara estava a seu
lado, com o castiçal na mão.
-Vem - dizia-lhe ela. – Oh! Becky, despacha-te!
Becky estava tão espantada, que não podia falar.
Levantou-se e, com os olhos dilatados e a boca aberta, seguiu
Sara, sem dizer palavra.
Quando entraram no quarto de Sara, esta fechou a porta
devagarzinho e, afetuosamente, levou a companheira até junto
de todas aquelas maravilhas, diante das quais ela própria
sentia o coração palpitar e a cabeça andar à roda, e disse-
Lhe:
-Tudo isto é verdadeiro! Não é um sonho. Toquei em tudo.
Tudo é tão real como nós. O Feiticeiro veio, Becky, e
trabalhou enquanto nós dormíamos: o Feiticeiro que nunca
permite que sejamos infelizes até ao fim.
O VISITANTE
Agora, imaginemos, se é possível, o que foi o resto da
noite. Imaginemos as duas crianças sentadas sobre o tapete,
em frente do lume que enchia de fulgor a triste grelha, toda
enferrujada. Pensemos na sua alegria quando, ao levantar as
tampas dos pratinhos, descobriram um bom caldo, ainda
fumegante, sanduíches, torradas com manteiga e bolos em
quantidade suficiente para as duas. A velha campainha que
estava em cima da cômoda serviu de chávena a Becky, e o chá
estava tão bom, que era perfeitamente escusado "supor" fosse
o que fosse ao bebê-lo. As duas amigas, bem quentinhas,
sentiam-se reconfortadas; estavam contentíssimas; e Sara,
convencida, finalmente, de que o seu sonho era realidade,
abandonava-se ao prazer de gozar completamente aquele bem-
estar.
À força de viver sempre num mundo imaginário, chegava a
considerar naturais os acontecimentos mais incompreensíveis,
e a deixar de ver neles o que quer que fosse de misterioso.
-Não conheço ninguém que pudesse fazer-me semelhante
surpresa; mas, enfim, esse alguém existe. Porque, eis-nos
sentadas junto do lume... E esse lume arde e aquece! Em todo
o caso, Becky, eu tenho um amigo. Há alguém, neste mundo, que
é meu amigo.
Continuando sempre a aquecer-se e a fazer honra à
substancial e saborosa refeição, as duas pequenas olhavam uma
para a outra, com ar de interrogação, e a maravilha que as
rodeava fazia nascer nas suas alminhas uma espécie de
deslumbramento quase assustado.
- Não acha - murmurou Becky, com voz tremula - que tudo
pode muito bem desaparecer, e que nós faríamos melhor se nos
despachássemos?
E, juntando a ação às palavras, meteu metade de um
sanduíche na boca.
"Palavra - pensava ela - se não é mais do que um sonho,
podemos muito bem pôr de parte as cerimônias... "
- Não - respondeu Sara -, nada desaparecerá. Eu como
este bolo, a valer, saboreio-lhe o gosto. Nos sonhos nunca se
come a valer. Além disso, já me queimei umas poucas vezes, de
propósito, e agora mesmo toquei numa brasa. Asseguro-te que a
senti...
O sono reparador, que as ia dominando pouco a pouco,
dava-Lhes também uma sensação agradabilíssima. Era o doce
entorpecimento que se apodera das crianças felizes, bem
alimentadas e amimadas. Ficaram assim, todas penetradas de
bem-estar, até ao momento em que Sara se surpreendeu a olhar
para o lado do seu leito transformado. Havia bastantes
cobertores para dividir com Becky, que teve, nessa noite, uma
cama como nunca tivera.
Ao deixar o quarto de Sara, Becky olhou longamente para
todos aqueles esplendores.
- Se amanhã de manhã não encontrarmos nada disto aqui,
tivemos, ao menos, o prazer deste serão, que eu nunca
esquecerei - disse ela.
Olhava para cada objeto, um após outro, como para fixar
para sempre, na memória, a sua imagem.
- O bom lume - enumerava ela , a mesa em frente, o
bonito candeeiro cor-de-rosa; o edredon de cetim em cima da
cama, o tapete no chão, todas estas coisas tão boas...
E, ao dizer isto, punha a mão sobre o estômago, num
gesto eloqüente.
- A magnífica sopa, as sanduíches, os bolos... tudo isto
era verdadeiro...
E bem convencida, desta vez, de que também ela vivera o
seu sonho, foi-se embora.
Graças à telegrafia misteriosa que funciona entre as
alunas do colégio e os criados da mesma casa, toda a gente,
no Colégio Minchin, sabia, logo na manhã seguinte, que Sara
Crewe estava em plena desgraça, que Hermengarda fora
condenada a ficar fechada no quarto e que Becky teria sido
despedida, logo de madrugada, se tivessem podido substituí-la
imediatamente. Os criados compreenderam que Miss Minchin a
conservava porque lhe seria impossível encontrar uma criança
tão só e abandonada, que trabalhasse como uma escrava, com um
ordenado miserável. E as "grandes" diziam umas às outras,
baixinho, que, se Miss Minchin não punha Sara na rua, era
porque lhe convinha mais conservá-la.
-Ela cresce ràpidamente e aprende tudo com tanta
facilidade - explicou Jessie a Lavínia , que poderão confiar-
lhe uma classe daqui a pouco tempo, e nem sequer terão de Lhe
pagar. Mesmo assim, Lavínia, foi mal feito da tua parte ires
denunciá-la, só porque ela se distraía um pouco lá no sótão.
Como o soubeste tu?
- Foi Lottie quem mo disse; ela é tão pequenina, que nem
percebeu o que eu a obrigara a contar.
Não vejo mal algum em ter ido prevenir Miss Minchin.
Senti que era o meu dever - acrescentou Lavínia num tom
convicto.Porque Sara enganava Miss Minchin. E ela é ridícula,
com os seus ares importantes, mal vestida e quase descalça
como anda!
-Que faziam elas, três, quando Miss Minchin entrou?
- Oh! Tinham inventado não sei que estupidez como de
costume. Hermengarda levara um cesto com guloseimas para
dividir com Sara e Becky. A nós, nunca nos oferece nada...
Para mim, isso é indiferente, mas acho bastante vulgar ir
misturar-se, assim, com as criadas, no sótão. Fiquei
surpreendida por Miss Minchin não ter expulsado Sara, embora
perdesse, assim, uma boa professôra.
- Para onde iria ela, se a expulsassem - perguntou
Jessie, um pouco inquieta.
- Sei lá - respondeu àsperamente Lavínia. Penso que ela
deve ter um ar comprometido, daqui a bocado, quando entrar na
aula. Parece que, ontem, não lhe deram de jantar e que será
privada de comer hoje durante todo o dia.
Jessie era bastante superficial mas, no fundo, não era
má. Pegou nos livros, com gesto nervoso, e disse:
- É horrível! Miss Minchin não tem o direito de matá-la
à fome!
Quando Sara entrou na cozinha, as crianças olharam-na de
alto; mas ela não deu nenhuma atenção. Ela e Becky haviam
acordado um pouco tarde, e as duas, sem trocar uma palavra,
tinham-se apressado a descer.
Sara entrou na copa. Encontrou lá Becky, a esfregar
vigorosamente uma cafeteira e a cantarolar baixinho uma
canção. Olhou para Sara com uma cara satisfeitíssima.
-O cobertor ainda lá estava, quando eu me levantei -
murmurou ela, muito excitada. - Tal como ontem!
- Os meus também - respondeu Sara. - Não me falta nada.
Enquanto me vestia fui comendo um dos bocados de bolo que
tinham sobejado.
- Oh meu Deus - exclamou Becky, com uma espécie de
voluptuosidade.
Depois, bruscamente, baixou o nariz sobre a cafeteira,
porque a cozinheira acabava de chegar.
Tal como Lavínia, Miss Minchin esperava ver Sara muito
deprimida. Aquela pequena fora sempre um enigma, e um enigma
irritante, porque a severidade parecia não ter sobre ela a
menor influência. Se lhe ralhavam, escutava delicadamente,
com um ar muito sério; se a castigavam, ou deixava de jantar,
não se lamentava nem mostrava exteriormente o menor sinal de
revolta. Miss Minchin achava que o facto de ela não
responder, nem sequer com uma palavra insolente, era, em si
mesmo, uma insolência. Mas, desta vez, depois da cena
violenta da noite anterior e da perspectiva de passar todo o
dia em jejum, Sara acabaria por ceder... Decerto, ia aparecer
muito pálida, de olhos vermelhos, com um ar humilde e
desgraçado.
Miss Minchin viu-a entrar na aula, para a lição de
francês às pequeninas. Caminhava com passo vivo; tinha boas
cores e quase um sorriso nos lábios. A diretora não podia
acreditar no que via; sentiu como um choque desagradável. De
que espécie era esta criança? Fez-lhe sinal para se aproximar
dela, e disse-lhe:
-Parece ter-se esquecido de que está de castigo! Estará
definitivamente insensível?
Quando se é ainda criança, se comeu uma boa ceia e se
dormiu muito agasalhadinha; quando um bom sonho se tornou
realidade, é muito difícil ter um ar desgraçado e impedir os
olhos de brilhar.
Miss Minchin ficou muda, quando Sara, olhando para ela,
lhe deu esta resposta, perfeitamente correta:
- Peço-lhe desculpa, Miss Minchin; eu sei realmente que
fui castigada.
- Recomendo-lhe que o não esqueça e que não tome um ar
triunfante, absolutamente fora de propósito. E lembre-se,
também, de que está privada de comer durante o dia de hoje.
- Sei isso bem, Miss Minchin - respondeu Sara. E, ao
voltar para o seu lugar, o coração apertou-se-Lhe, ao
recordar o dia da véspera.
"Se o Feiticeiro não tivesse vindo em meu socorro -
pensava ela - hoje seria terrível...”
- Não tem ar de ter fome - segredou Lavínia -Olha para
ela. Talvez "imagine" que comeu um bom almoço - acrescentou,
com um risinho perverso.
- É diferente de toda a gente! - respondeu Jessie, que
observava Sara no meio das suas alunas.
- As vezes, chega a fazer-me medo...
- Meu Deus, como tu és ridícula - disse Lavinia.
Sara conservou até à noite o olhar brilhante e as faces
frescas. As criadas olhavam para ela, muito intrigadas, e os
olhinhos azuis de Miss Amélia estavam redondos de espanto:
não podia acreditar em tanto aprumo da parte de alguém que
incorrera tão gravemente no desagrado de sua augusta mana!
Mas era bem uma atitude de Sara! Estava, sem dúvida, disposta
a mostrar-se indiferente...
Ao que Sara estava disposta, era a guardar o maior
segredo
possível
sobre
os
acontecimentos
maravilhosos
sucedidos no seu quarto. Se Miss Minchin subisse novamente ao
sótão, tudo seria descoberto, com certeza. Mas parecia pouco
provável que repetisse a ascensão, pelo menos naqueles tempos
mais próximos. O que ela ia, sem dúvida, era vigiar
rigorosamente Hermengarda e Lottie, que elas não se
atreveriam a recomeçar as suas expedições noturnas. Em todo o
caso, recomendaria o maior segredo a Hermengarda, e podia
confiar nela. Se Lottie chegasse a descobrir qualquer coisa,
obrigá-la-ia a jurar que não diria nada. E, depois, o
Feiticeiro ajudá-la-ia a preservar a sua obra de olhares
profanos.
- Mas, suceda o que suceder - repetia Sara consigo
mesma, durante todo o dia - há, em qualquer parte, sobre a
Terra, um ser divinamente bom que é meu amigo. Talvez eu
nunca venha a saber quem é, e não possa agradecer-lhe, mas
nunca mais me sentirei tão só como até agora. Oh! O
Feiticeiro foi generoso!
O tempo tinha estado mau, na véspera; e continuou assim
naquele dia; úmido, lamacento e frio ao máximo. Havia imensos
recados a fazer; a cozinheira estava tal qual um porco-
espinho e, como sabia a má disposição de Miss Minchin em
relação a Sara, não fazia a menor cerimônia em descarregar
também sobre ela o seu mau gênio. Mas, que importância pode
ter tudo isso, quando um socorro maravilhoso veio até nós,
misteriosamente?
A bela ceia da noite anterior dera força a Sara; sabia
que ia dormir muito quentinha e, embora o estômago começasse
de novo a gritar que tinha fome- o que era naturalíssimo -
sentia que poderia esperar, até ao dia seguinte de manhã, que
chegasse o fim do seu castigo.
Era já bastante tarde quando subiu para o quarto. O
coração batia- lhe com força assim que pôs a mão no fecho da
porta.
"Talvez tudo tenha desaparecido!-pensava- procurando ser
corajosa. Naturalmente foi só para me ajudar a passar esta
terrível noite. Mas, de qualquer maneira, vivi, na realidade,
horas deliciosas: não foi um sonho!"
Empurrou a porta e entrou. Por pouco não deixou escapar
um grito. Dominou-se, porém.
Fechou a porta e, encostando-se a ela, olhou para o
quarto.
O Feiticeiro tinha voltado e fora ainda mais generoso do
que na véspera. O lume ardia; sobre a mesa estava uma nova
ceia, e desta vez havia dois talheres; um soberbo tecido
bordado, com aspecto exótico, escondia a parte superior da
desmantelada chaminé. Todos os móveis velhos, partidos e
estragados, estavam escondidos sob panos de cores lindas;
algumas tapeçarias, presas por pregos tão finos, que era
inútil o martelo para pregá-los, dissimulavam as paredes
esburacadas. Havia leques lindíssimos pendurados aqui e ali,
e grandes almofadas, sobre as quais se podia sentar,
espalhadas no tapete. Uma arca de madeira, coberta com um
pano e guarnecida com mais almofadas, fazia admiravelmente as
vezes de divã.
Sara aproximou-se do lume, sentou-se e abriu muito os
olhos, para ver melhor.
- É como um conto de fadas que se tornasse realidade -
murmurou ela. Parece-me que bastaria eu manifestar um desejo:
diamantes ou sacos cheios de ouro e logo os veria aparecer!
Não me espantava! Será esta a minha mansarda? Serei eu a
mesma Sara esfarrapada, encharcada e transuda de frio...
Quando penso em tudo o que eu imaginava e como desejava que
houvesse fadas! Pois bem! Eis-me vivendo um conto de fadas!
Chega a parecer-me que, por pouco, eu própria serei fada e
transformarei tudo com a minha varinha de condão.
Levantou-se e foi dar as pancadas regulamentares na
parede. Becky apareceu imediatamente.
Quando entrou, ia caindo no chão, espantada! Ficou muda,
durante alguns minutos. Por fim, balbuciou:
- Meu Deus! Meu Deus!
- Vês - exclamou Sara.
Naquela noite, Becky instalou-se sobre uma das grandes
almofadas, em frente do lume, e teve uma chávena e um pires
verdadeiros, para tomar chá.
Quando, depois de cearem, Sara se foi deitar, encontrou
um belo colchão novo e um magnífico almofadão de sumaúma. A
antiga enxerga e o pequeno travesseiro que lhe haviam dado,
tinham sido transportados para a cama de Becky, que dormiu,
assim, muito mais confortàvelmente.
- Donde pode vir tudo isto? - perguntava Becky, pasmada.
- Meu Deus! Quem pode fazer este milagre?
- Não queiramos saber - respondeu Sara. Se não fosse o
grande desejo que eu tenho de dizer, ao menos, "Obrigada!”,
preferia não saber coisa nenhuma. Seria ainda mais belo.
Desta
forma,
a
vida
das
duas
pequenas
foi
maravilhosamente transformada, a partir desse dia. O conto de
fadas continuava. Todas as noites, quando Sara voltava para o
sótão, descobria sempre um novo embelezamento. As paredes
decrépitas desapareciam a pouco e pouco, sob tapeçarias e
gravuras; engenhosos móveis desmontáveis iam aparecendo dia a
dia; depois foi uma pequena estante, cheia de livros; enfim,
parecia não haver mais nada que fosse possível desejar.
Quando Sara descia para a cozinha, de manhã, havia
ainda, em cima da mesa, os restos da ceia; ao regressar, à
noite, o Feiticeiro tinha-os levado; substituindo-os por uma
esplêndida refeição.
Miss Minchin mostrava-se mais severa do que nunca; Miss
Amélia andava bastante rabugenta e a cozinheira sempre
absolutamente insuportável. Sara ia fazer recados, fosse qual
fosse o tempo, e ouvia ralhar a propósito e despropósito de
tudo, chegando a levar empurrões. Só de longe em longe
conseguia trocar uma palavra com Hermengarda ou com
Lottie.Lavinia olhava com ar de desprezo e troça o seu velho
vestido, todo remendado, e as outras lançavam-lhe olhares
curiosos, quando ela entrava na aula. Mas que importava tudo
isto a Sara, se estava vivendo no país das maravilhas? Era
uma história incomparávelmente mais espantosa do que todas as
que ela imaginara para se defender do desespero. Por vezes,
quando lhe ralhavam, tinha dificuldade em não sorrir.
"Se soubessem - pensava ela. – Oh! Se soubessem"
Quando voltava para casa, toda molhada, cheia de cansaço
e fome, reconfortava-a a idéia da boa ceia e do bom lume que
encontraria lá em cima... Mesmo durante os dias mais
trabalhosos, conservava a sua melhor disposição, pensando no
que veria à noite, ao abrir a porta do quarto, e perguntando
a si própria que nova surpresa a esperaria... Não tardou a
parecer menos magra. As faces tornaram-se-lhe rosadas, e os
olhos já não pareciam grandes de mais para a sua carinha tão
original.
- Sara Crewe está esplêndida - disse um dia Miss Minchin
a Miss Amélia, num tom de desaprovação.
- É verdade - respondeu imprudentemente a pobre Miss
Amélia. -Está a engordar, ela, que começava a parecer um
corvo esfomeado...
-Esfomeada!-protestou sêcamente Miss Minchin. -Não tinha
a menor razão para parecer esfomeada! Sempre teve comida em
abundância!
- Oh, com certeza, com certeza - concordou humildemente
Miss Amélia, assustada ao ver que, como de costume, fizera
disparate.
-É desolador verificar semelhante disposição numa
criança daquela idade - disse Miss Minchin, com ar altivo e
misterioso.
- Que disposição? - perguntou timidamente Miss Amélia.
- Dir-se-ia que pretende desafiar-nos - explicou a
diretora, um tanto ou quanto embaraçada, no fundo, porque
sabia, perfeitamente, que não era assim.
-Qualquer outra ter-se-ia sentido humilhada e teria
cedido perante... perante os acontecimentos que transformaram
a sua vida. Mas aquela pequena parece tão pouco disposta à
submissão e à humildade como se fosse, na realidade, uma
princesa.
- Lembras-te - começou a imprudente Miss Amélia - da
manhã em que ela te perguntou o que farias, se descobrisses
que ela era, realmente, princesa?
- Não - interrompeu secamente Miss Minchin.
-Não digas tolices.
Mas lembrava-se melhor do que ninguém. A própria Becky
criava bochechas e perdia o ar de animal escorraçado. Também
ela desempenhava o seu papel no maravilhoso conto de fadas...
Tinha agora dois colchões, duas almofadas, os cobertores de
que precisava, e todas as noites ceava abundantemente,
sentada sobre uma bela almofada, em frente do lume. Já não se
tratava da Bastilha, nem de prisioneiros; em vez destes,
havia agora duas pequenas que viviam num mundo de delícias.
Umas vezes, Sara lia em voz alta; outras, imóvel, olhava
o lume com ar ardente, pensando no amigo desconhecido a quem
tanto gostaria de exprimir, ao menos uma vez, uma pequena
parte da gratidão de que o seu coração estava cheio.
Depois, produziu-se uma nova maravilha. Um empregado de
um armazém levou ao colégio de Miss Minchin vários embrulhos,
que eram, todos, endereçados, em grandes letras, bem
legíveis: "A menina que habita a mansarda da direita.”
Foi mesmo Sara quem abriu a porta e pegou nos embrulhos.
Colocou- os sobre a mesa da antecâmara e estava a ler a
direção quando Miss Minchin a avistou:
- Leva imediatamente esses pacotes à sua destinatária -
disse ela, com severidade. - Não percas tempo a olhar.
- São para mim respondeu Sara, tranquilamente.
- Para ti - exclamou Miss Minchin. - Que queres dizer
com isso?
- Não sei quem os manda - explicou Sara -, mas são-me
dirigidos. Eu durmo na mansarda da direita. Becky dorme na da
esquerda.
Miss Minchin, muito agitada, aproximou-se para ver os
embrulhos.
- Que contêm eles? - perguntou.
- Não sei - respondeu Sara.
-Abre-o ordenou Miss Minchin. Sara obedeceu. Na
fisionomia
de
Miss
Minchin
estampara-se
uma
grande
perplexidade. Os pacotes abertos deixavam ver sapatos, meias,
luvas, um vestido, um casaco quente e confortável, e mesmo um
bonito chapéu e um guarda-chuva. Todos estes objetos eram de
excelente qualidade, e na algibeira do casaco haviam pregado,
com um alfinete, um papel onde estava escrito: "Para serem
usados todos os dias. Serão substituídos quando for
necessário". Miss Minchin estava perturbada. Este incidente
inesperado despertava estranhas angústias na sua alma
mesquinha.
Se ela se houvesse enganado, e a criança tão mal
tratada tivesse no mundo algum amigo original, talvez um
parente afastado, que houvesse descoberto o seu rasto e se
divertisse a velar por ela daquela forma misteriosa?
Às vezes, há tios, velhos solteirões, muito ricos, que
não gostam de ter as sobrinhas em casa e preferem ocupar-se
delas à distância. Pessoas desta espécie são sempre
caprichosas, impulsivas, e ofendem-se com a menor coisa.
Seria lamentável se algum parente de Sara aparecesse um
dia, e soubesse toda a verdade sobre os vestidos rotos, a
alimentação insuficiente e os trabalhos pesadíssimos...
Miss Minchin sentia-se pouco à vontade e olhava de lado,
para Sara.
- Está bem! - disse ela, num tom que nunca tivera depois
da morte do capitão Crewe. - É alguém que se mostra
verdadeiramente bom para ti.
Visto que te mandam essas coisas tão bonitas e que as
substituirão
quando
estiverem
usadas,vai
vesti-las
imediatamente, e arranjar-te melhor. Quando estiveres pronta,
podes vir estudar com as tuas companheiras. Não te ocupes
mais de recados, por hoje.
Quando, meia hora depois, Sara entrou na sala de estudo,
o colégio inteiro ficou tomado de espanto.
- Será possível - exclamou Jessie, tocando no cotovelo
de Lavínia. - Olhem para a princesa Sara!
Todos os olhos estavam fixos nela. Lavínia olhava-a
também e tornou-se vermelha.
Era, realmente, a princesa Sara, que acabava de entrar.
Nunca a tinham visto assim, desde o dia da sua grande
desgraça. As alunas não reconheciam nela a pequena que haviam
avistado duas horas antes, na escada de serviço.Sara trazia
novamente um vestido semelhante aos que Lavínia tanto Lhe
invejara - um vestido de linda cor e admiràvelmente feito.
Estava bem calçada, e os cabelos, todos em caracóis negros,
que lhe davam um ar de "pony" espantado quando ela os trazia
soltos sobre o rosto, estavam agora cuidadosamente seguros
por uma fita.
- Talvez tivesse recebido uma herança! - murmurou
Jessie. - Sempre tive a idéia de que lhe aconteceria qualquer
coisa extraordinária. É tão original!
- Ou talvez as minas de diamantes dessem notícias... -
disse maldosamente Lavínia. - Não fiques agora espantada
diante dela, parva!
- Sara! - disse gravemente Miss Minchin. Venha sentar-se
aqui!
E, perante os olhos maravilhados das condiscipulas, que
não podiam dissimular a sua intensa curiosidade, Sara retomou
o
lugar
de
honra
que
ocupava
dantes,
e
curvou-se
tranquilamente sobre os cadernos.
Naquela noite, quando Becky e ela acabaram de tomar o
seu chá, Sara sentou-se sobre o tapete e ficou durante muito
tempo silenciosa, a olhar vagamente para as labaredas do
fogão.
- Está a imaginar alguma coisa – perguntou Becky,
respeitosamente.
Porque Becky sabia que, quando Sara olhava para o lume
com aqueles olhos sonhadores, havia em geral, alguma bela
história em preparação... Mas,naquela noite, Sara abanou a
cabeça e respondeu:
-Não. Procuro, apenas, saber o que devo fazer.
Becky considerava-a sempre com respeito. Sentia qualquer
coisa, como se fosse veneração, por tudo quanto Sara fazia ou
dizia.
- Não posso deixar de pensar no meu amigo ,explicou
Sara. - Se ele não quer dar-se a conhecer;
será indelicado
da minha parte tentar adivinhar quem ele é. Mas gostava tanto
que soubesse como lhe estou reconhecida e como foi grande a
felicidade que ele me deu! Porque, aqueles que têm bom
coração, gostam de fazer os outros felizes. Isso hes é ainda
mais agradável do que receber agradecimentos.
Eu gostava... Eu gostava muito...
Naquele momento, os seus olhos fixaram-se sobre uma
mesinha que ocupava um dos cantos do quarto. Tinha-a avistado
ali, numa das noites anteriores, ao entrar. E sobre a mesa
encontrava-se uma bonita pasta com papel, sobrescritos e tudo
quanto é preciso para escrever.
- Oh - exclamou ela. - Porque não pensei nisto mais
cedo?
Levantou-se e trouxe a mesinha para junto do lume.
- Vou escrever-lhe - disse ela alegremente. Deixarei a
carta bem à vista, sobre a mesa, e talvez a pessoa que traz a
ceia compreenda e a leve. Não pedirei nada mais ao meu amigo;
e estou convencida de que os meus agradecimentos não o farão
zangar.
Eis o que dizia a carta de Sara:
"Espero que não ache indelicado da minha parte escrever-
lhe este bilhete, visto que não quer dar-se a conhecer. Peço-
lhe que não imagine que eu procuro descobrir qualquer coisa;
eu quero agradecer-lhe o ser tão bom para mim, tão
divinamente bom, e ter feito da minha vida um belo conto de
fadas. Estou-lhe tão reconhecida e sou tão feliz! - e Becky é
tão feliz e está tão reconhecida como eu, porque, tal como
eu, ela também vive, presentemente, no mundo das maravilhas.
Nós estávamos abandonadas, tínhamos frio e fome; e como tudo
mudou, graças à sua bondade! Peço-lhe que me deixe dizer-lhe
uma só palavra: obrigada, obrigada, oh! muito obrigada!
A pequena da mansarda.”No dia seguinte, colocou a carta
sobre a mesa, e, quando voltou, à noite, a carta tinha sido
levada. Sara soube assim que o Feiticeiro a recebera, e este
pensamento foi-lhe muito doce e consolador. Depois do chá,
estava ela a ler um dos livros novos, para Becky ouvir,
quando um ligeiro ruído, que parecia vir da trapeira, chamou
a sua atenção. Levantou os olhos e viu que Becky também
ouvira, porque levantara a cabeça e parecia assustada.
- Há qualquer coisa lá em cima - murmurou ela.
- Sim - respondeu Sara, baixinho. - Dir-se-ia um gato
que quer entrar.
Aproximou-se da janela. Ouvia- se como que um ligeiro
arranhar. De repente, Sara começou a rir: recordava-se de
certo pequeno intruso que já uma vez entrara na mansarda, e
que ela avistara naquele mesmo dia, melancòlicamente sentado
em cima da mesa, em frente da janela do cavalheiro da Índia.
- Se fosse o macaquinho - disse ela alegremente - o
macaquinho que tivesse fugido outra vez? Oh gostava bem que
fosse ele!
Subiu a uma cadeira, abriu a janela com precaução e
olhou para fora. Nevara durante todo o dia e ali mesmo ao pé,
sobre o manto branco que cobria o telhado, avistou um
corpinho trêmulo, cujo focinho preto se estendia suplicante
para ela.
-É o macaco! -exclamou. - Fugiu pelas águas-furtadas do
"lascar", e a nossa luz atraiu-o.
Becky tinha- se aproximado também.
- Vai deixá-lo entrar? - perguntou ela.
- Naturalmente - respondeu Sara. - Faz muito frio lá
fora, para os macacos, e eles são muito delicados. Vou ver se
o agarro.
Estendeu a mão para o macaco, falando-lhe ao mesmo
tempo, com doçura, tal como costumava falar aos passarinhos e
a Rodilard. A sua alma sensível inclinava-se ternamente para
tudo o que era pequenino, tudo o que sofria e era tímido.
- Vem, querido dizia ela. - Eu não te faço mal. O macaco
percebeu muito bem que ela não lhe faria mal; tinha-o
compreendido ainda antes de ela lhe tocar. Adivinhara que os
dedinhos de Sara lhe pegariam com o mesmo cuidado que os
longos dedos bronzeados de Ram Dass. Deixou-se agarrar
dócilmente e, quando se viu nos braços de Sara, envolveu-se
junto do seu peito e pegou-lhe delicadamente numa madeixa de
cabelos, olhando-a com fixidez.
- É gentil o macaquinho - repetia Sara, com doçura,
beijando-lhe a cabeça. -Gosto tanto dos animais pequeninos!
O macaco estava encantado por se aproximar do lume, e
quando Sara se sentou, instalou-se sobre os joelhos, pôs-se a
olhar para ela e para Becky com simpático interesse.
- É esquisito, não é? - disse Becky.
- Parece um bebê muito feio - respondeu Sara a rir. -
Peço-te desculpa, amigo macaquinho, mas gosto mais que não
sejas realmente uma criança.
Nem mesmo a tua mãe seria capaz de se envaidecer contigo
e ninguém se atreveria a dizer: "Oh, como ele se parece com o
pai... , mas gosto de ti mesmo assim.
Depois, encostou-se para trás, na poltrona, com ar
pensativo.
- Talvez ele tenha pena de ser tão feio – disse ela - e
pense constantemente na sua fealdade. Pensará ele realmente
nalguma coisa? Macaquinho, meu pequenino, tu tens alma?
Por única resposta, o macaco levou a pequena mão à
cabeça e coçou-se conscienciosamente.
- Que vai agora fazer-lhe?- perguntou Becky.
-Vou deixá-lo aqui ficar esta noite. E amanhã levo-o ao
cavalheiro da Índia.Tenho pena de ficar sem ti, meu querido
macaquinho, mas assim é preciso. Tu deves preferir viver com
a tua verdadeira família; e eu não sou mais do que uma
parente de ocasião...
Quando se foi deitar, arranjou-lhe um ninho junto do
leito; o macaquinho fez-se numa bola e adormeceu, como uma
criança encantada com a sua nova casa.
No dia seguinte, três membros da "Grande Família"
encontravam-se reunidos na biblioteca do cavalheiro da Índia,
fazendo quanto podiam para o distrair. De resto, só estavam
autorizados a visitá-lo quando ele próprio lhes mandava pedir
que viessem. Nos últimos tempos, O Sr. Carrisford vivia numa
grande incerteza e, naquele dia, essa incerteza transformara-
se em verdadeira ansiedade, porque esperava o regresso de
Carmichael, cuja permanência em Moscou se prolongara mais do
que contava. Ao chegar, tivera grande dificuldade em
descobrir as pessoas que procurava. Quando conseguiu saber a
sua direção, foi informado de que andavam em viagem, e
decidiu esperar o seu regresso a Moscou.
Carrisford estava sentado na sua grande poltrona, e
Janet instalara- se no chão, ao seu lado. Janet era a sua
preferida. Nora ocupava um banco baixinho e Donald montava a
cabeça de pele de tigre que servia de tapete. Diga-se, de
passagem, que ele "guiava" bastante ruidosamente a sua
montada.
- Não faça tanto barulho, Donald - disse-Lhe Janet. -
Quando se deseja distrair alguém que está doente, não é
preciso gritar. Talvez estejamos a fazer muito ruído, Sr.
Carrisford?
Mas o cavalheiro da Índia limitou-se a bater-lhe
afetuosamente no ombro e disse:
-Absolutamente nada. Até é bom, porque me impede de
pensar mais...
- Vou estar quieto - anunciou Donald, numa voz vibrante.
- Ficaremos todos caladinhos como ratos.
- Nunca os ratos farão tanto barulho - observou Janet.
- Mas se forem muitos? - objetou Donald.
-Era preciso que fossem cinqüenta mil, e mesmo assim...
- disse severamente a irmã. - E nós, nós não devemos fazer
mais barulho do que um só rato.
Carrisford pôs-se a rir.
- O papá não deve tardar - disse Janet. Podemos falar da
menina que ele procura?
- Parece-me, até, que, neste momento, não podemos falar
de outra coisa! - respondeu o cavalheiro da Índia, com ar
abatido.
- Nós gostamos muito dela - declarou Nora. Chamamos-lhe
"a princesinha quase fada".
- E por quê? - perguntou ele, interessado.
Os ditos e os gestos da "Grande Família" ajudavam-no a
esquecer um pouco o seu único cuidado. Porque - explicou
Janet - ela será tão rica, quando a encontrarem, que será
como uma princesa de contos de fadas.
- É verdade - perguntou Nora - que o pai dela tinha
empregado todo o dinheiro que possuía na mina de diamantes de
um amigo, e que este amigo, julgando tudo perdido, fugiu,
convencido de que era um ladrão?
- Mas, na realidade, não era – acrescentou Janet.
O cavalheiro da Índia pegou-lhe na mão e respondeu:
-Não; não era um ladrão.
- Tenho tanta pena desse amigo - continuou Janet. Se o
dinheiro parecia estar perdido, a culpa não foi dele, e eu
tenho a certeza de que isso lhe causou um grande desgosto.
-Compreendes muito bem as coisas Janet respondeu
Carrisford, apertando mais a mãozinha que conservava na sua.
- Já falaste ao Sr. Carrisford na "pequena que não é
mendiga" - gritou Donald, com toda a força. - Já Lhe disseste
que ela tem vestidos novos? Talvez ela também andasse perdida
e a tivessem encontrado.
- Chegou agora uma carruagem - exclamou Janet. - Parou
em frente da porta. É o papá!
Correram todos para a janela.
- Sim, é o papá - proclamou Donald. - Mas não vem
nenhuma menina com ele!
As duas irmãs e o pequenino precipitaram-se para a
entrada e ouviam-se saltar, bater as palmas e soltar gritos
de alegria, enquanto o pai os beijava um por um.
Carrisford fez um esforço para se levantar, mas deixou-
se tombar de novo na poltrona.
- É inútil - murmurou ele, tristemente. - Como eu estou
doente!
Ouvia-se a voz de Carmichael, que se aproximava.
- Não, meus filhos - dizia ele - vocês voltarão quando
eu tiver acabado de falar com o Sr. Carrisford. Agora vão
brincar com Ram Dass.
Depois entrou, bem disposto e ágil, como de costume.
Dir-se-ia que a saúde e o bom humor entravam também com ele.
No entanto, a sua fisionomia exprimia um certo desânimo,
quando apertou, com afeto, as mãos do doente que o olhava
ansiosamente.
- Então - perguntou Carrisford. - E a criança adotada
pelos russos?
- Não é a mesma que nós procuramos - respondeu
Carmichael. - É muito mais nova que a filha do capitão Crewe
e chama-se Emily Carew.Vi-a e falei-lhe. A família russa deu-
me todas as explicações possíveis.
O cavalheiro da Índia parecia bem desanimado e triste. A
sua mão deixou cair a de Carmichael.
-Nesse caso, é preciso recomeçar as pesquisas. Eis tudo!
- disse ele. - Sente-se um pouco, peço-lhe.Carmichael
obedeceu. Pouco a pouco, tinha-se dedicado profundamente
áquele homem tão desgraçado. Sentia-se, ele próprio, tão rico
de felicidade que um desgosto assim tocava o mais fundo da
sua alma. Se, naquela grande casa vazia, se ouvisse,um dia,
uma voz infantil, como tudo seria diferente!E não podia
suportar a idéia de que o seu pobre amigo estivesse condenado
a viver sempre sob o pesadelo daquele remorso e daquela idéia
fixa.
-
Então
-
disse
ele,
na
sua
voz
quente
e
reconfortante.Havemos de encontrá-la!
-É preciso voltar a pôr-se imediatamente em campo, sem
perda de tempo - disse nervosamente Carrisford.Tem um
projeto, uma idéia qualquer?Carmichael, também um pouco
agitado, levantou-se e começou a andar para trás e para
diante ao longo da sala, com ar indeciso e preocupado.
- Pois bem. - disse ele, por fim. - A idéia que me
ocorreu, há pouco, no comboio que me trazia de Dôver, é esta:
A criança está, com certeza, em qualquer parte. Já corremos
todos os colégios de Paris. Abandonemos Paris e procuremos em
Londres.
-A verdade é que não faltam aqui colégios de meninas -
disse Carrisford, e estremeceu ligeiramente.
- Depois concluiu: - Há um, exatamente na casa contígua
a esta.
- Muito bem! Começaremos por aí. Não podia ser mais
perto.
- Há neste colégio - continuou Carrisford - uma criança
por quem me interesso; mas não é aluna. É uma pobre pequena
abandonada, muito morena e parecendo-se o menos possível com
o pobre Crewe.
O Feiticeiro estaria novamente em acção, naquele minuto
preciso? Fosse como fosse, a verdade é que Ram Dass entrou,
enquanto o patrão ainda estava a falar, e inclinou-se
profundamente, com um imperceptível clarão nos grandes olhos
escuros.
- "Sahib- disse ele - está ali a menina, aquela que
tocou o seu coração. Traz o macaco que tornou a fugir para o
quarto dela, pelo telhado. Disse-lhe que esperasse. Pensei
que agradará, talvez, ao "sahib" vê-la e falar-lhe.
- Quem é? - perguntou Carmichael.
- Ninguém sabe-respondeu Carrisford: É, justamente, a
criança de quem lhe estava a falar, a pequena do colégio
vizinho.
E, voltando-se para Ram Dass:
- Sim, gostaria de vê-la! Manda-a entrar...
- Durante a sua ausência - explicou ele a Carmichael -
eu ia desesperando de tudo. Os sombrios dias de Inverno
pareciam-me intermináveis. Como Ram Dass me tivesse falado do
abandono e desconforto em que vivia esta criança, organizamos
uma pequena conjura, digna de um romance, para a socorrer.
Era quase pueril, mas, ao menos, o meu cérebro estava
ocupado. De resto, sem ajuda do meu ágil e silencioso Ram
Dass, não poderíamos ter feito nada.
Foi nesse instante que Sara entrou na biblioteca. Trazia
ao colo o macaquinho, que se via perfeitamente não ter o
menor desejo de deixá-la. Agarrava-se a ela soltando
gritinhos. Quanto a Sara, a comoção que sentia por se
encontrar em casa do cavalheiro da Índia, tornava-lhe coradas
as faces, habitualmente pálidas.
- O macaquinho tornou a fugir - disse ela, na sua voz
musical.Encontrei-o ontem, à noite, junto da minha janela e,
como fazia muito frio, deixei-o ficar no meu quarto. Tê-lo-ia
trazido imediatamente, se não fosse tão tarde. Mas eu sabia
que o senhor estava doente e pensei que não gostaria de ser
incomodado.
Os olhos profundos de Carrisford fitaram-se em Sara com
viva curiosidade.
- Foi uma gentil atenção da sua parte,disse ele. Sara
olhou para Ram Dass, que se conservava imóvel junto da porta.
- Deseja que o entregue ao "lascan" - perguntou ela.
- Como sabe a menina que é um "lascan"?Perguntou o
cavalheiro da Índia, sorrindo ligeiramente.
- Oh! Eu conheço os "lascars" - explicou Sara,
entregando a Ram Dass o macaquinho, que se mostrava muito
contrariado. Nasci na Índia.
O cavalheiro da Índia ergueu-se tão vivamente e olhou
para Sara com uma fisionomia tão alterada, que ela ficou
interdita.
- Nasceu na Índia! - exclamou ele. - Venha ao pé de mim!
-acrescentou Carrisford, estendendo-lhe a mão.
Sara aproximou-se e deu- lhe a mão. Não se mexia e
olhava com inquietação para ele. Parecia tão agitado...
- Mora na casa vizinha - perguntou Carrisford.
- Sim. No colégio de Miss Minchin.
- Mas não é aluna.
Os lábios de Sara desenharam um leve sorriso. Hesitou
um pouco. Depois respondeu:
- Não sei perfeitamente o que sou...
- Por quê?
-Ao principio era uma aluna e tinha tudo quanto
queria;mas agora...
- Era uma aluna E presentemente o que é?
O estranho sorriso, um pouco triste, reapareceu no rosto
de Sara.
-Durmo no sótão, ao lado da ajudante de cozinheira -
respondeu ela. Faço recados para a cozinheira e tudo o mais
que me mandam, e ajudo as alunas mais pequeninas a estudar as
lições.
- Interrogue-a, Carmichael - disse Carrisford, que se
deixara cair, exausto, na poltrona. - Interrogue-a; eu não
tenho forças para isso.
O excelente papá da "Grande Família" sabia conversar com
crianças. Sara compreendeu-o imediatamente, logo que ele Lhe
dirigiu as primeiras palavras, com voz afetuosa:
- Ouça minha filha: Que quer dizer "ao princípio"?-
perguntou ele.
-Quando o meu pai me trouxe para aqui.
- E onde está o seu pai?
- Morreu - respondeu Sara, muito docemente: O meu pai
tinha perdido tudo quanto possuía; eu fiquei sem nada e não
apareceu ninguém para se ocupar de mim ou pagar a Miss
Minchin.
- Carmichael!-gritou o cavalheiro da Índia. Carmichael!
- Não a assustemos - respondeu Carmichael, em voz baixa.
E, levantando novamente a voz, dirigiu-se a Sara:
-Foi então que a mandaram para o sótão e transformaram
em criada. É isto, não é verdade?
- Eu não tinha familia nem dinheiro - repetiu Sara. -
Não pertencia a ninguém...
- Como foi que o seu pai perdeu a fortuna?-interrompeu o
cavalheiro da Índia, ofegante.
- Não foi ele que a perdeu - respondeu Sara, cujo
espanto aumentava de minuto a minuto. O meu pai tinha um
amigo que se utilizou do dinheiro dele. O papá teve demasiada
confiança nesse amigo...
O cavalheiro da Índia respirava cada vez com mais
dificuldade.
- Esse amigo não teve, talvez, a intenção de fazer mal -
disse ele. Foi tudo, decerto, o resultado de um erro.
Sara nem avaliava como a sua voz, clara e tranqüila,
parecia inflexível.
- Talvez... - respondeu ela. - Mas isso não impediu que
o meu pai sofresse muito. Tanto, que morreu de desgosto!
- Como se chamava o seu pai – perguntou o cavalheiro da
Índia. Diga-me o nome dele.
- Chamava-se Ralph Crewe - respondeu Sara;um pouco
perturbada. Era o capitão Crewe. Morreu na Índia.O rosto, já
tão pálido, do doente, tornou-se lívido, e Ram Dass correu
para junto dele.
- Carmichael , balbuciou Carrisford. É ela!É a criança!
Durante alguns minutos Sara julgou que o cavalheiro da
Índia ia morrer. Ram Dass tinha pegado num frasco e deitara
algumas gotas do seu conteúdo num copo, que levava aos lábios
do doente. Sara tremia e olhava para Carmichael.
- Que criança sou eu - perguntou ela, numa voz que
desfalecia. - Quem é este senhor?
- É o amigo do seu pai! - respondeu Carmichael.Não tenha
medo, minha filha. Há dois anos que a procuramos!
Sara levou a mão à fronte e os seus lábios contraíram-
se.
-E, durante todo esse tempo, eu estava em casa de Miss
Minchin - murmurou ela. - Estava aqui a dois passos, do outro
lado da parede!
O CASTIGO DE MISS MINCHIN
Aquela grande alegria, absolutamente inesperada, que
Carrisford acabava de ter, era demasiado forte para ele.
- Oh! - murmurou o doente, com a voz fraquíssima, quando
Carmichael manifestou a intenção de levar Sara. Eu queria
conservá-la ao pé de mim, sem a perder de vista!
- Eu tomarei conta dela - afirmou gravemente Janet, que
o pai tinha chamado. E a mamã não tarda a chegar.
Sara acompanhou Janet, que lhe dizia:
-Estamos tão contentes porque a encontraram! Não pode
fazer idéia!
Donald, com as mãos nas algibeiras, contemplava Sara com
ar de alguém que se censura a si próprio.
- Se eu lhe tivesse perguntado o seu nome quando lhe dei
o meu xelim - disse ele -, ter-me-ia respondido: "Sara Crew",
e teria sido encontrada imediatamente!
A Sr.a Carmichael chegou, entretanto; estava muito
impressionada e, puxando Sara para si, beijou-a ternamente.
- Parece comovida, pobre criança - disse ela.
- E compreende-se perfeitamente que seja assim... Mas
havia uma pergunta que queimava os lábios de Sara.
- É ele - disse ela por fim, indicando com o olhar a
porta fechada da biblioteca. Foi ele o mau amigo? Diga-me,
peço-lhe!
A Sr.a Carmichael chorava, ao beijar novamente Sara,
pensando como ela devia ter sido pouco acarinhada durante
aqueles dois anos.
- Não lhe chame "mau", minha querida - respondeu ela. -
Ele não tinha, realmente, perdido o dinheiro de seu pai; mas,
durante um momento, convenceu-se de que, na verdade, o
perdera, e como era muito amigo, teve um desgosto tão
profundo, que adoeceu. Ia morrendo e, muito tempo antes de
recuperar a razão, já o seu pobre papá tinha falecido.
- E procuravam-me - disse Sara em voz baixa.
- Quando, afinal, eu estava tão perto...
Esta idéia não a deixava.
-Julgavam que a menina se encontrava em França -
explicou a Sr.a Carmichael. O Sr. Carrisford procurou-a por
toda a parte. Mal imaginava ele, quando a via passar em
frente das janelas, que a menina era a filha do seu amigo;
mas, pensando nela, pensava em si e quis protegê-la. Então
disse a Ram Dass que entrasse pela janela do seu quarto e
arranjasse um pouco a mansarda onde a menina dormia.
Sara soltou um grito de alegria e a sua fisionomia
iluminou-se.
-Como! Foi Ram Dass que me levou todas aquelas coisas
tão bonitas - exclamou ela. - Foi o cavalheiro da Índia quem
lhe deu ordem para isso?
Foi ele quem transformou o meu sonho em realidade?
- Sim, minha querida, foi ele mesmo. É muito bom, muito
generoso, e pela ternura que lhe inspirava a Sarinha que ele
procurava, teve pena de si.
A porta abriu-se e Carmichael fez sinal a Sara para
entrar.
- O Sr. Carrisford sente-se melhor - disse ele - e
deseja vê-la.
Sara correu para a biblioteca, e, quando o Cavalheiro da
Índia olhou para ela, pôde ver que a pequenina estava
radiante.
Aproximando-se muito da poltrona, com as mãos juntas no
peito, Sara exclamou, com a sua vozinha alegre e tremula:
-Foi o senhor quem me mandou todas aquelas coisas tão
bonitas, todas aquelas coisas?
- Sim, minha pobre filha, fui eu - respondeu ele.
A doença e a comoção tornavam-no mais fraco, mas olhava
para a pequenina com tanta ternura e um tão grande desejo de
a abraçar, que Sara julgou tornar a ver o olhar do pai. Muito
simplesmente, ajoelhou ao pé dele, como ajoelhava outrora ao
pé do pai, no tempo longínquo em que ele e ela se adoravam,
tal como se fossem duas almas num só corpo.
-Nesse caso, o senhor é que é meu amigo, o meu grande
amigo - disse ela.
E, curvando-se sobre a mão emagrecida, beijou-a muitas
vezes.
- Dentro de três semanas estará bom - disse Carmichael à
esposa. - Olha para ele...
Efetivamente, já não parecia o mesmo. A "senhorazinha"
tinha aparecido e era preciso tomar muitas decisões, resolver
novos assuntos. Antes de mais nada se impunha a questão de
Miss Minchin. Era indispensável que alguém fosse anunciar-Lhe
a transformação que se dera na vida da sua antiga aluna.
Sara não voltaria ao colégio. Sobre este ponto
Carrisford era categórico. Sara ficaria com ele, e Carmichael
se encarregaria de falar a Miss Minchin.
- Estou bem contente de não voltar lá - confessou Sara -
porque Miss Minchin vai ficar furiosa. Ela não gosta nada de
mim; talvez a culpa seja minha, porque, eu também, não gosto
dela.
Mas Carmichael não precisou de se incomodar. Foi a
própria Miss Minchin que se apresentou a reclamar a sua
antiga discípula.
Precisando de Sara e não a encontrando em parte alguma,
soubera, com grande indignação, que as criadas a haviam visto
sair pela escada da cave, levando um objeto escondido debaixo
do casaco; dirigia-se à casa vizinha, não voltando a
aparecer.
- Que foi ela lá fazer?! - exclamou Miss Minchin.
- Não sei, nem faço idéia. - respondeu a tímida Miss
Amélia. -Talvez fosse por ter vivido na Índia, como o nosso
vizinho.
-Isto de meter-se em toda a parte, sem que a chamem, e
procurar captar simpatias de uma forma audaciosa, é bem o
feitio de Sara! - disse Miss Minchin. - Há quase duas horas
que lá está! Não posso suportar tal atrevimento. Vou ver o
que se passa e pedir desculpa desta inqualificável conduta ao
dono da casa.
Sentada sobre um banquinho almofadado, junto de
Carrisford, Sara conversava animadamente com ele, quando Ram
Dass anunciou a visitante. Sara empalideceu e levantou-se,
involuntariamente. Mas Carrisford pôde verificar que ela
estava calma e não parecia assustada.
Miss Minchin, severa e digna, entrou na biblioteca.
Fizera "toalete" e toda a sua atitude era rigidamente
correta.
- Lamento incomodar o Sr. Carrisford - disse ela- mas
preciso de lhe dirigir algumas palavras.
Sou Miss Minchin, diretora do colégio vizinho da sua
casa.
O
cavalheiro
da
Índia
fitou-a
um
momento,
em
silêncio.Tinha um gênio violento e queria ficar senhor de si.
- É então Miss Minchin? - perguntou ele.
-Em pessoa, Sr. Carrisford.
- Nesse caso - prosseguiu ele - chega no instante
oportuno. O Dr. Carmichael, meu procurador e advogado, ia
exatamente agora a casa de V. Ex.
Carmichael inclinou-se ligeiramente.Miss Minchin olhou
para ele, olhou depois para Carrisford, com uma surpresa que
nem sequer pretendeu dissimular.
- Seu advogado?- perguntou ela.Não compreendo. Estou
aqui por dever profissional: acabo de saber que uma das
minhas alunas teve o atrevimento de se introduzir nesta
casa... Uma aluna que eu conservo por caridade. Venho
explicar a V. Ex. que isto sucedeu sem meu conhecimento. E,
voltando-se para Sara, ordenou:Volte já para casa! Será
severamente castigada. Vá imediatamente!
O cavalheiro da Índia puxou Sara para si e pegou-lhe na
mão.
- Não - disse ele. - Sara não irá.
Miss Minchim julgou estar a sonhar.
- Não irá - repetiu ela.
- Não!- confirmou Carrisford. - Não voltará para sua
casa, porque a sua casa nunca foi a casa de Sara. Agora é
aqui o lar que será o dela.
Miss Minchin recuou, estupefata e indignada:
- O seu lar! Que significa tudo isto?
- Tenha a bondade de lhe explicar, Carmichael. Mas que
seja o mais rápidamente possível - disse Carrisford.
E, fazendo sentar Sara, pegou-lhe nas mãozinhas... tal
como o pai costumava fazer-lhe.
Na sua voz pausada e calma, Carmichael falou como um
homem que conhece perfeitamente o assunto de que trata e não
ignora as leis. Miss Minchin, como
mulher
acostumada
a
negócios, compreendeu também este último ponto, e não se
sentiu muito à vontade...
- O Sr. Carrisford - explicou Carmichael – era amigo
íntimo do capitão Crewe. Os dois associaram-se para negócios
muito importantes. A fortuna que o capitão julgava ter
perdido, foi salva e encontra-se inteiramente na posse do Sr.
Carrisford.
- A fortuna?! - exclamou Miss Minchin, empalidecendo. -A
fortuna de Sara?!
- Exatamente, a fortuna de Sara – respondeu friamente
Carmichael. E continuou: - Foi, até, multiplicada por
determinados acontecimentos: as minas de diamantes estão hoje
mais prósperas do que nunca.
- As minas de diamantes!... - balbuciou Miss Minchin,
que estava vivendo uma das horas mais cruéis da sua
existência.
- As minas de diamantes - repetiu Carmichael. E não pôde
deixar de acrescentar, com um ligeiro sorriso de ironia:
Poucas princesas, Miss Minchin, são tão ricas como há-de vir
a ser Sara Crewe, a aluna que a senhora conservava por
caridade. Há dois anos que o Sr. Carrisford a procura;
encontrou-a, finalmente e agora, por nada deste mundo, se
separará mais dela. Continuou a dar a Miss Minchin todas as
explicações necessárias para a convencer completamente de que
o futuro de Sara era magnífico e a sua fortuna, que julgaram
perdida, estava multiplicada, e que, além disso, daquele dia
em diante, Carrisford seria o seu tutor e o seu maior amigo.
Miss Minchin era mediocremente inteligente;provou-o à
evidência naquele dia, fazendo um esforço desesperado para
readquirir o que perdera;compreendia-o bem , pela sua avareza
e crueldade de alma.
- Encontraram a criança em minha casa - objetava ainda.
- Fiz tudo por ela. Sem mim, teria morrido de fome na rua.
Carrisford não pôde conter-se mais.
-Talvez tivesse sofrido menos do que no seu sótão -
disse ele.
-
O
capitão
Crewe
confiou-ma
-
prosseguiu
desesperadamente Miss Minchin.Devem entregar-ma até que
atinja a maioridade. Voltará a fazer a mesma vida que fazia
dantes e terminará a sua educação. De resto, farei intervir a
lei a meu favor.
- Vamos! Vamos, Miss Minchin - interrompeu Carmichael. -
A senhora sabe muito bem que a lei não é para aqui chamada.
Se Sara pedir, ela própria, para voltar para o seu colégio,
estou persuadido de que o Sr. Carrisford não Lhe recusará a
sua autorização. Tudo depende de Sara.
- Pois bem - disse Miss Minchin - apelo para Sara.
Evidentemente que não a amimei - continuou ela, dirigindo-se
à pequenina; mas lembre-se da satisfação do seu pai pelos
progressos que a menina fazia. E... Sim... Eu sempre fui boa
para si...
Os olhos verdes de Sara fixaram-se nela, com o olhar
claro e brilhante como aço, que tanto desagradava a Miss
Minchin.
- Realmente - exclamou Sara. - Nunca dei por isso.Miss
Minchin tornou-se vermelha e levantou-se.
- Pois devia ter dado - replicou ela. - Infelizmente,
porém, as crianças não sabem apreciar aqueles que são bons
para elas. Tanto Amélia como eu ,sempre dissemos que a Sara
era a mais inteligente das nossas alunas. Não quer respeitar
a vontade do seu pobre pai e voltar comigo para o colégio?
Sara deu um passo em direção a Miss Minchin. Lembrava-se
do dia em que a diretora lhe dissera que ela não tinha
ninguém que a protegesse e que, se quisesse, poderia pô-la na
rua; pensava nas horas desoladas que passara no sótão,
sozinha com Emily e Rodilard. Olhou Miss Minchin frente a
frente e disse:
-A senhora sabe muito bem a razão por que eu não quero
ir consigo! Sabe perfeitamente! Um relâmpago de cólera passou
nos olhos de Miss Minchin.
-Visto que é assim, não tornará a ver as suas
companheiras - disse ela. - Vigiarei Lottie e Hermengarda...
Carmichael
interrompeu-a,
delicadamente,
mas
com
firmeza:
- Perdão! Sara verá quem ela quiser. É pouco provável
que os pais das amigas de miss Crewe recusem, para as suas
filhas, os convites do seu tutor. O Sr. Carrisford olhará por
isso...
Miss Minchin curvou-se a este último golpe. O tutor era,
decididamente, ainda mais perigoso que o velho excêntrico que
ela imaginara e o seu espírito sórdido concebia fàcilmente
que poucos pais recusariam às filhas autorização para
conviver com a proprietária de uma mina de diamantes. E se
Carrisford lhes contasse a lamentável existência que ela
proporcionara
a
Sara,
que
desagradáveis
consequências
poderiam vir daí para o seu colégio!
- O senhor assume um pesado encargo - disse ela,
dirigindo-se para a porta. - Compreendê-lo-á dentro em breve.
Esta criança teve sempre falta de franqueza e de gratidão.
Naturalmente - disse ainda, dirigindo-se a Sara - agora, vai
de novo julgar-se princesa.
Sara corou um pouco, porque receava que pessoas
estranhas -- embora cheias de ternura por ela difícilmente
pudessem compreender a sua quimera preferida, e respondeu em
voz baixa:
-Procurei ser uma princesa; sempre, mesmo quando tinha
muito frio e muita fome; procurarei sempre proceder como se
fosse princesa...
- Agora, não terá a menor dificuldade nisso...-replicou
àsperamente Miss Minchin, enquanto Ram Dass a acompanhava com
todas as deferências de um grande respeito.
Miss Minchin, logo que chegou a casa, mandou chamar a
irmã; ficaram fechadas, as duas, durante muito tempo, e a
pobre Miss Amélia passou horas horríveis, chorando amargas
lágrimas, que encharcaram vários lenços.
- Não sou tão esperta como tu - dizia ela - e tenho
sempre medo de falar, porque tudo te faz zangar. Mas, se
fosse menos tímida, talvez isso tivesse sido melhor para o
colégio e para nós. Pensei muitas vezes que era preferível
ser menos dura para Sara Crewe, e organizar-lhe uma
existência mais doce. Sei perfeitamente que a obrigaram a
trabalhar mais do que seria permitido à sua idade e que ela
não comia o necessário...
- Como te atreves a falar assim! - exclamou Miss
Minchin.
- Não quero saber! - respondeu miss Amélia, com uma
espécie de bravura desesperada. - Mas agora, já que comecei,
irei até ao fim, suceda o que suceder. Sara é inteligente e
boa, e teria sido sensível à menor manifestação de afeto. Mas
tu nunca a tiveste. A verdade é que a sentias mais
inteligente do que tu e daí a razão da tua antipatia. Ela
adivinhou...
- Amélia! - rugiu Miss Minchin, que parecia disposta a
tratar a irmã como se fosse a pobre Becky.
Mas Miss Amélia estava de tal forma excitada, que coisa
alguma podia fazê-la parar.
- Perfeitamente! - exclamou ela, por sua vez. Sara viu
como tu és dura e interesseira, e como eu sou fraca e parva;
ela compreendeu que nós estávamos de joelhos perante a sua
fortuna e que a maltratamos em seguida, porque ela não tinha
um "penny", ao passo que se conservou digna e boa como uma
verdadeira princesa, quando nós tínhamos feito dela uma
verdadeira desgraçada. Sim, uma princesa, eis o que ela
sempre foi!
Com os nervos perfeitamente desequilibrados, a pobre
Miss Amélia começou a rir e a chorar, balançando-se de tal
forma na cadeira, que Miss Minchim não sabia que fazer.
- E agora está perdida para nós! - continuou Miss
Amélia- irá para qualquer outro colégio e, se ela fosse uma
criança como as outras, contaria em toda a parte como nós a
tratamos; a nossa casa ficaria definitivamente arruinada, e
nós bem o teríamos merecido, principalmente tu, Maria
Minchin, porque és avarenta, cruel e sem coração!
Chorava e falava tão alto, os seus soluços nervosos eram
tão fortes, que a irmã teve de dominar a sua indignação e
contentar-se em fazê-la respirar sais e aplicar-lhe água-de-
colónia na testa, para acalmá-la um pouco.
Digamos desde já que, a partir daquele dia, Miss Minchin
começou a ver a irmã sob outro aspecto e a compreender que
devia ser cautelosa, porque ela não era tão estúpida como
parecia e podia dizer-lhe verdades comprometedoras.
Naquela mesma noite, quando as alunas estavam reunidas
na sala de estudo, Hermengarda entrou; trazia uma carta na
mão e a sua carinha redonda tinha uma expressão singular, em
que se misturavam o espanto e a alegria.
-Que sucedeu? Perguntaram algumas vozes.
- Trazes-nos a explicação da cena desta tarde?-
interrogou vivamente Lavínia. - Porque houve uma cena na sala
de Miss Minchin; miss Amélia teve um ataque de nervos e foi
para a cama.
Hermengarda respondeu lentamente, como alguém que ainda
não está refeito de uma grande comoção.
-Acabo de receber uma longa carta de Sara.
- De Sara? - foi a exclamação geral.
- Onde está ela? - quis saber Jessie.
- Em casa do nosso vizinho - respondeu Hermengarda,
sempre lentamente. -Em casa do cavalheiro da Índia.
- Onde? Como? Mandaram-na embora?Miss Minchin sabe onde
ela está? Foi por isso que houve a cena desta tarde? Diz! Diz
depressa!
Falavam todas ao mesmo tempo e Lottie principiou a
chorar.
Hermengarda começou pela notícia que lhe parecia
responder a todas as perguntas:
- As minas de diamantes existem! Existem realmente!
Todas as condiscípulas a rodearam,ansiosas.
-Existem! -- repetiu ela. - Durante algum tempo o Sr.
Carrisford julgou que tudo estava perdido...
- Quem é o Sr. Carrisford - perguntou Jessie.
-O nosso vizinho. E o capitão Crewe julgou também que
era verdade e morreu de desgosto.
O Sr. Carrisford ficou doente; quando melhorou, quis
encontrar Sara, mas não sabia onde ela se encontrava. Depois
souberam que nada estava perdido;havia milhões de diamantes
nas minas e metade pertencia a Sara; ela era rica, rica,
rica, quando dormia no sótão, tendo por único amigo um rato!
O Sr. Carrisford encontrou Sara esta tarde: está em casa dele
e não voltará cá. Agora é que ela é uma princesa, cem vezes,
mil vezes mais do que nunca! E eu vou visitá-la amanhã à
tarde e pronto!
A própria Miss Minchin teria sido impotente para dominar
o tumulto que se seguiu a esta comunicação inesperada. Apesar
de ouvir tudo no seu quarto, não teve coragem de aparecer; os
soluços de Miss Amélia, prostrada sobre o leito, já Lhe
bastavam. Sabia que a notícia estava espalhada e que, de alto
a baixo, da cozinha às aulas, toda a gente falava no grande
acontecimento.
A carta foi lida, relida e comentada por todas as
alunas. Só muito tarde é que se restabeleceu a calma.
Becky, como toda a gente, estava ao corrente do
sucedido, e arranjou as coisas de maneira a poder subir para
o quarto mais cedo do que habitualmente.Sentia a necessidade
de estar só, e ver, ainda uma vez, o quarto mágico. Que ia
acontecer àquele quarto maravilhoso?Com certeza que o
Feiticeiro não o deixaria ficar para Miss Minchin.
Becky estava bem contente por causa da sua querida miss
Sara, mas a garganta apertou-se-lhe e os olhos encheram-se-
lhe de lágrimas quando chegou ao último patamar. Naquela
noite já não teria lume, nem candeeiro cor-de-rosa, nem ceia,
nem princesa lendo histórias à luz da chaminé... Já não havia
princesa!
Ao abrir a porta reprimiu um soluço, mas, depois, ia
soltando um grito.
O candeeiro cor-de-rosa estava aceso, o lume ardia, a
ceia estava servida, e Ram Dass, de pé, sorriu a Becky que
não podia acreditar no que via.
- A "senhorinha" não se esquece - disse ele. Contou tudo
ao "sahib". Quis também contar-lhe, a si, a sua grande
felicidade. Aqui está a carta que ela lhe manda, pois não
quis que a menina adormecesse triste. O "sahib" ordena que vá
amanhã a casa dele. Ficará ao serviço da "senhorinha". Esta
noite, levarei tudo isto, pelo telhado.
Tendo falado assim, Ram Dass inclinou-se ligeiramente e
desapareceu pela trapeira, sem o menor ruido, com uma
facilidade tal, que Becky adivinhou logo o nome do Feiticeiro
e a forma como ele tinha feito as coisas.
ANA
As crianças da "Grande Família" estavam radiantes. Nunca
haviam sonhado um prazer tão grande como aquele que lhes
proporcionava a convivência da "pequena que não é mendiga.
Dificilmente encontrariam outra amiguinha que tivesse tido
tantas aventuras e passado tantas amarguras. E não se
cansavam de a ouvir.
Rodilard, os passarinhos e o esplendor do céu, que Sara
avistava da trapeira, encantavam-nos. Mas a história
preferida era a do banquete interrompido e do sonho
realizado.
Sara contara-lhes esta história, pela primeira vez, no
dia seguinte ao da sua ida para casa de Carrisford. Os
pequenos tinham ido tomar chá com ela; sentaram-se todos
sobre o tapete, em frente do fogão, e ela descrevera-lhes a
sua vida no colégio de Miss Minchim, com aquele pitoresco que
Sara imprimia a tudo quanto contava. O cavalheiro da Índia
também escutava. Quando acabou, ergueu os olhos para ele e
pôs-lhe a mão sobre o joelho.
- Acabei - disse ela. - Agora é a vez do tio Tom (Sara
resolvera tratá-lo assim, de futuro). A segunda parte é
consigo. Não sei como será, mas deve ser bem bonita.
Então, Carrisford contou como, num dia em que ele estava
mais doente e triste, Ram Dass procurava distraí-lo,
descrevendo-lhe as pessoas
que cruzavam
a praça e,
principalmente, uma pequenina que passava mais vezes do que
as outras.
Carrisford começara a interessar-se por ela, exatamente
porque pensava muito numa certa pequenina que procurava por
toda a parte, e também porque Ram Dass, depois da primeira
escapadela do macaco, lhe descrevera a mansarda em que vivia
essa criança, de quem traçou o retrato, e que parecia
pertencer a uma classe muito superior à das criadinhas
vulgares. Pouco a pouco, Ram Dass fizera ainda outras
descobertas acerca da vida miserável da sua pequena vizinha,
e um dia disse a Carrisford:
- "Sahib", eu posso, fàcilmente, atravessar o telhado e
fazer uma boa fogueira, enquanto a criança anda por fora. E,
quando ela voltasse, molhada e transuda; julgaria que um
feiticeiro tinha passado por lá.
Esta
idéia
agradou
a
Carrisford,
e
Ram
Dass,
contentíssimo por ver um sorriso iluminar o rosto sempre
triste do patrão, desenvolvera o seu projeto, explicando que
não havia nada mais fácil do que transformar completamente o
quarto, onde tudo era desconforto e pobreza. O doente
interessara-se cada vez mais por aquele plano romanesco, e
consagrara à sua execução vários dias que lhe tinham parecido
menos tristes. Na noite da festa interrompida, Ram Dass, com
todos os seus pacotes, conservara-se vigilante na sua própria
mansarda acompanhado pelo secretário, que o ajudava e achava
naquela aventura tanto prazer como o patrão.
Deitado de bruços sobre as ardósias, ao lado da
trapeira, Ram Dass assistira ao aparecimento de Miss Minchin
e à cena que se havia seguido; e, quando se assegurou do
profundo sono de Sara, introduziu-se no quarto, com uma
lanterna de furta-fogo e, com a ajuda do companheiro, que Lhe
ia passando as coisas do lado de fora, preparava tudo. Se,
por acaso, Sara se mexia, Ram Dass apagava a lanterna e
estendia-se no chão.
Tudo isto foi contado e explicado por Carrisford, no
meio das perguntas e exclamações sem fim das crianças.
- Como eu me sinto feliz, por saber que o Feiticeiro era
o tio Tom! - disse Sara.
A afeição que unia Carrisford e Sara era muito profunda.
Entendiam- se maravilhosamente. O Cavalheiro da Índia nunca
tivera, em toda a sua vida, uma companhia tão agradável como
a de Sara. Tal como Carmichael profetizara, antes que
passasse um mês já Carrisford parecia outro, tão grande era a
sua transformação. Tudo o distraía e interessava; a idéia de
possuir uma grande fortuna, que pouco antes lhe causara um
verdadeiro desgosto, tornava-o agora imensamente feliz. Havia
tantos projetos a fazer, em relação a Sara! A brincadeira do
Feiticeiro mantinha-se, entre os dois, e um dos prazeres de
Carrisford era inventar novas surpresas para Sara. Hoje,
apareciam lindíssimas flores, para lhe ornamentar o quarto;
amanhã, Sara encontrava, debaixo do travesseiro, ou entre as
almofadas, os objetos mais inesperados e divertidos; uma
noite em que estavam os dois na biblioteca, ouviram como que
o ruído de uma grande pata a arranhar na porta e, quando Sara
foi abrir, viu um cão magnífico, um soberbo galgo russo, cuja
coleira de ouro tinha a seguinte inscrição: "Chamo-me Bóris e
pertenço à princesa Sara".
Carrisford não se cansava de evocar as recordações da
princesinha de sapatos rotos e casaco desbotado. Passavam
ambos belos dias em casa da"Grande Familia", onde Hermengarda
e Lottie iam visitar Sara. Mas os seus melhores momentos eram
aqueles em que, sozinhos, liam, conversavam e evocavam o
passado.
Uma
noite,
Carrisford
percebeu
que
a
sua
companheirazinha não se mexia e contemplava o lume com olhos
sonhadores.
-Então? Que "imaginamos nós" neste momento - perguntou
ele.Sara olhou para ele e corou um pouco.
- Lembrava-me - respondeu ela - do dia em que eu tinha
muita fome, e da pequenina que nessa ocasião encontrei.
- Houve tantos dias em que tiveste fome - exclamou o
cavalheiro da Índia, com uma entoação triste na voz. - Em
qual deles foi?
- Naquele em que o sonho se tornou realidade- respondeu
Sara.
E contou-lhe, então, a história da padaria, da moeda de
quatro "pence" encontrada na lama, e da mendiga ainda mais
esfomeada do que ela. Narrava tudo muito simplesmente, em
rápidas palavras, o que não impediu Carrisford de voltar a
cabeça e levar a mão aos olhos.
- Há bocadinho - concluiu Sara - formava eu um
projeto... Imaginava uma coisa que gostaria muito de
realizar.
- Que é - perguntou Carrisford, com voz trêmula. - Podes
fazer tudo quanto quiseres, princesa!
- Pois bem - disse Sara, hesitando um pouco.
-Visto que o tio Tom diz que eu tenho muito dinheiro,
mesmo meu, gostava de ir visitar a padeira e dizer-lhe que,
sempre que veja crianças com ar de ter fome, as mande entrar
e lhes dê de comer; depois me manda a conta. Acha que isto
pode ser?
-
Trataremos
desse
assunto
amanhã
-
respondeu
Carrisford.
- Obrigada - disse Sara. - O tio compreende, eu sei o
que é ter fome, e deve custar tanto, quando não se tem
bastante imaginação para esquecer...
- Sim, sim, querida Sara - interrompeu ele.
- É realmente assim. Mas procura não pensar mais nisso.
Vem sentar-te ao meu lado, neste banquinho, e lembra-te
apenas de que és princesa!
- Que bom - disse Sara, a sorrir. - E quero pensar
também que posso distribuir pão e "buns" pelos pobres, à
minha vontade.
Ao mesmo tempo que falava, sentou-se no banquinho, e o
cavalheiro da Índia - Carrisford insistia para que ela o
tratasse assim uma vez por outra - puxou-lhe suavemente a
cabecinha morena e encostou-a aos seus joelhos, acariciando-
Lhe os cabelos.
No dia seguinte, de manhã, miss Minchin viu, da sua
janela, um quadro que lhe foi particularmente desagradável.
Carrisford preparava-se para sair de carruagem, acompanhado
de uma silhueta confortàvelmente envolta em magníficas peles.
Esta pequena silhueta era bem conhecida de Miss Minchin e
lembrava-lhe um certo passado... Atrás dela, apareceu uma
outra figura cuja vista irritava talvez mais ainda Miss
Minchin: era Becky, a graciosa criadinha particular de miss
Sara Crewe, que levava agasalhos. Becky nunca tivera, como
agora, faces tão redondinhas e frescas.
A carruagem partiu e não tardou a parar em frente da
padaria. Por um curioso acaso, a padeira colocava na montra,
exatamente nesse momento, um tabuleiro de "buns" acabado de
sair do forno.
Vendo que entravam pessoas na loja, deixou o que estava
a fazer e veio atender os elegantes fregueses. Fixou
atentamente Sara, durante uns segundos; depois o olhar
iluminou-se-lhe.
- Reconheço-a muito bem! - disse ela. - Apesar de
que...
- É verdade! -apressou-se a responder Sara. Foi a mim
que a senhora deu seis "buns" por uma moeda de quatro
"pence", e...
. . e a menina deu imediatamente cinco a uma mendiga -
interrompeu a padeira. - Nunca mais me esqueci e confesso
que, primeiro, não consegui compreender...
Voltando-se para Carrisford, a boa mulher continuou:
-Peço-lhe desculpa do meu atrevimento, mas afirmo-lhe
que é raro encontrar uma criança tão caridosa, e que pensei
nela muitas vezes, depois daquele dia... Não leve a mal a
minha liberdade ,isse ela, dirigindo-se novamente a Sara -
mas agora tem muito melhor aspecto e... parece muito mais
feliz do que...
Oh! Sem dúvida! - respondeu Sara. Agora tudo corre
melhor; sou muito, muito feliz e venho pedir-lhe que me faça
um favor.
- Oh miss, que favor posso eu fazer-lhe? Isso seria um
grande prazer para mim! - exclamou a padeira, afirando-se
cada vez mais. De que se trata?
Encostada ao balcão, Sara expôs-lhe o seu plano acerca
das crianças famintas e dos "buns" quentinhos.
A mulher escutava-a com a maior atenção e um ar de
grande espanto.
- Meu Deus - exclamou ela, quando compreendeu bem a
idéia da encantadora menina. Mas isto vai ser uma verdadeira
alegria para mim. Eu não passo de uma pobre padeira, não
posso dar muito e a miséria aparece de todos os lados; mas
posso afirmar- Lhe que, depois desse horrível dia, tão frio e
triste, tenho distribuído muitos bocados de pão a pensar na
menina.Como estava encharcada e como parecia ter fome! No
entanto, deu os seus "buns" quentes e apetitosos, como teria
feito uma verdadeira princesa!
Carrisford sorriu involuntàriamente e Sara também,
pensando no que dissera consigo própria, naquele dia, para
ter coragem de dar os "buns".
-A pobre pequenita tinha um ar tão desgraçado disse ela;
ainda tinha mais fome do que eu...
-Estava positivamente a morrer de fraqueza- confirmou a
padeira. Falou-me nisso muitas vezes, depois, explicando-me
que lhe parecia sentir o estômago desfazer-se...
- Mas tornou a vê-la - exclamou Sara. Sabe onde ela
está?
- Com certeza... - respondeu a padeira, com ar radioso.
- Está lá dentro, na cozinha. Há um mês que veio para minha
casa. Tornar-se-á uma bela rapariga. Não imagina como ela me
ajuda já nos trabalhos da casa e da loja. Quando penso na
existência que levava!...
Ao dizer isto, aproximou-se da porta que comunicava com
o interior. Ao seu chamamento apareceu uma rapariga que veio
até junto do balcão. Era bem a pequena mendiga - Sara
reconheceu-a logo , mas estava limpa, decentemente vestida e
sem o mais leve vestígio do ar esfomeado de outrora. Parecia
tímida, mas a sua fisionomia, agora que havia perdido o ar
meio selvagem que tinha dantes, tornara-se simpática. Também
ela reconheceu Sara e ficou a contemplá-la, como num êxtase.
- Os senhores compreendem - explicou a padeira-, eu
disse-lhe que viesse ajudar-me, sempre que não tivesse que
comer. Via-a tão cheia de boa vontade, que me dediquei a ela
e acabei por lhe arranjar um lugar cá em casa. Ajuda-me
imenso e porta-se muito bem, mostrando-se sempre reconhecida.
Chama-se Ana e não tem apelido de família.
As duas crianças olharam-se durante um instante.
Depois, Sara tirou a mão do regalo e estendeu-a a Ana, que a
tomou entre as suas.
-Estou bem contente por saber que vives aqui - respondeu
Sara. - E tenho uma idéia. Talvez a tua protetora te permita
que a ajudes a distribuir pão e "buns". Penso que isso te
dará prazer, porque, tal como eu, tu também sabes o que é não
ter nada que comer...
- Sim, sim - respondeu a pequenina. Ana não disse mais
nada, mas Sara teve a certeza de que ela a compreendera. Ana
acompanhou-a até à porta da loja e, de pé, com os olhos muito
abertos, viu desaparecer, ao longe, a carruagem que levava a
princesa Sara.
FIM