Título: Eterno Desencontro.
Autor: Flora Kidd
Título original: Beloved Deceiver.
Dados da edição: Editora Nova Cultural, São Paulo, 1988.
Género: romance.
Digitalização: Dores Cunha.
Correcção: Edith Suli.
Estado da obra: corrigida.
Numeração de página: rodapé.
Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à
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parte, ainda que gratuitamente.
Contracapa: Uma noite de mágica paixão, e um triste despertar...
O sol já brilhava no céu azulclaro quando Glenda acordou na varanda da
casa de praia. Ela se sentia ótima, nas nuvens... depois da excêntrica
noite de amor vivida
ali mesmo, na rede, que ainda balançava, discreta e harmoniosa...
Toda essa felicidade dissipou-se como por encanto, ao descobrir que não
se entregara ao homem Pelo qual se apaixonara Perdidamente, mas,
sim, ao irmão gémeo dele
(fim da contracapa)!
Copyright: Flora Kidd
Título original: Beloved Deceiver Publicado originalmente em 1987 pela
Mills Boon L t da., Londres, Inglaterra
Tradução: Aníbal Mari
Copyright para a língua portuguesa: 1988
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3º andar CEP 01452 — São Paulo —
SP — Brasil
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda e impressa na
Divisão Gráfica da Editora Abril S.A.
CAPÍTULO I
Glenda Thompson parou diante de uma barraca, entre as muitas
enfileiradas ao longo da entrada do moderno prédio que abrigava o
mercado, em Puerto Plata. Sobre a mesa, forrada com uma toalha
branca, havia uma grande variedade de brincos e colares em prata e
âmbar. Tomando uma das peças em suas mãos, ela a examinava
atentamente.
Grande número de pessoas passava pelo local, algumas
esbarrando em Glenda, que concentrava toda a atenção no brinco de
âmbar. O barulho de tantas vozes juntas a ensurdecia, e ela teve de
inclinar-se para perto da proprietária da barraca de jóias, uma mulher
roliça, de pele e olhos escuros, a fim de poder ouvi-la dizer o preço do
brinco em pesos.
Mentalmente, converteu o referido valor para dólares canadenses.
Vinte dólares ao todo, pensou. Ficou em dúvida se deveria pechinchar o
preço com a dona da barraca.
Com a jóia presa por entre os dedos, soergueu-a, dando uns
passos para trás para ver melhor o âmbar refletido contra o facho de luz
que entrava pelo pórtico do mercado.
A denominação "pedra candente" dada ao âmbar era bastante
apropriada, concluiu. Não só podia realmente ser queimado, visto se
tratar de uma resina fóssil, como também parecia arder em chamas
quando a luz era refletida através dele.
Nisso, um certo movimento no meio da lenta massa de
compradores desviou Glenda de seus pensamentos. Ao erguer os olhos,
ela avistou um homem que estava tentando encontrar desde que
chegara à República Dominicana. Era alto, usava calças folgada e uma
camisa branca trabalhada com um belo bordado nas laterais. Os cabelos
eram grisalhos, enrolando-se em densos caracóis, e contrastavam
estranhamente com o bronzeado da pele. Fora pela cor dos cabelos que
ela o reconhecera. Era ele mesmo: César Estrada.
Determinada a segui-lo, agora que finalmente o localiza-
Glenda deixou cair os brincos sobre a mesa, pendurou as alças de
sua sacola de compras, de lona, no ombro e, sem ouvir os apelos
veementes da vendedora tentando vender a jóia, partiu no encalço de
César. Foi esgueirando-se por entre turistas e, nativos do lugar, sem
perder de vista aquela altiva cabeça de cabelos prateados.
Ainda bem, pensava, que ele não estava usando, o chapéu que
carregava na mão.
Não era a primeira vez que Glenda perseguia uma pessoa no curso
de sua carreira como redatora. No momento, ela estava trabalhando
comofree-lancer, escrevendo artigos sobre celebridades interessantes.
Dentro das instalações principais do mercado, nada estava em
ordem. Frutas e legumes, trazidos do campo naquela manhã,
esparramavam-se de dentro de enormes cestos e caixas: tomates
vermelhos, mangas, pimentas diversas, bananas maduras e abacaxis
amarelinhos, além de ovos em profusão.
Foi por causa de um abacaxi que Glenda interrompeu a marcha
quando fazia uma curva. Um homenzinho de rosto enrugado, da cor da
nogueira, segurando um na palma da mão ofereceu-lhe por apenas meio
peso. Embora o fruto não estivesse totalmente maduro, ela sentiu-se
atraída por seus gomos amarelos, em forma de diamantes, levemente
tingidos de verde. Imaginou o sabor que teria quando amadurecesse por
completo e sua boca se encheu d água. Agindo por impulso, concordou
em comprá-lo.
Na barraca ao lado, César Estrada também estava comprando
frutas.
A mente de Glenda trabalhava atívamente enquanto, distraída, ela
consentia em adquirir tudo quanto o mercador lhe oferecia, sem,
contudo, tirar os olhos de César.
Só quando lhe foi empurrado um grande cartucho de papel
marrom é que ela se deu conta da quantidade de frutas que comprara.
com incisivos olhos negros piscando para ela, o comerciante pediu seis
pesos.
Glenda riu divertida e, ao mesmo tempo, arrependeu-se da
própria extravagância. Deixara-se convencer facilmente e comprara dois
quilos de tomates, vinte bananas, um punhado de pimentas e meia
dúzia de laranjas, além do abacaxi, é claro. Perguntando-se o que iria
fazer com tudo aquilo quando voltasse ao hotel onde estava hospedada,
ela procurou, dentro da bolsa, pela carteira onde guardava o dinheiro.
Seis pesos não era muito; possivelmente, menos de dois dólares
canadenses, mas o fato é que ela não precisava de tanta coisa.
Após apalpar várias vezes o interior da bolsa, Glenda verificou que
não havia nem sinal da carteira quadrada de couro. Alarmada, pôs a
sacola de compras no chão e retirou todos os pertences de dentro da
bolsa. A carteira preta de couro tinha mesmo desaparecido. Ainda
olhava, atónita, quando ouviu o vendedor de frutas interrogá-la em
espanhol. Volveu os olhos para ele e, nesse momento de aflição,
fugiulhe da memória o domínio daquele idioma.
— Não tenho dinheiro! Perdi minha carteira — explicou. Ao que
parecia, o comerciante conhecia inglês o suficiente para entender o que
Glenda dissera. Elevando a voz, irritado, estendeu-lhe o cartucho com
as compras e exigiu os seis pesos.
— No íengo dinero, senor — repetiu ela em voz alta e pausada. —
Perdi a carteira. Não posso pagá-lo já.
Furioso, o homem começou a reclamar, chamando a atenção dos
transeuntes para a gringa que lhe comprara frutas sem ter dinheiro para
pagar.
Embaraçada pelo estardalhaço que ele estava fazendo e aflita com
a perda da carteira, Glenda tentou desculpar-se, perante o grupo de
pessoas que a olhava, curioso.
— Com licença! Talvez eu possa ajudá-la.
Como que surgido do nada, César Estrada estava ali, ao seu lado,
oferecendo-lhe ajuda com sua voz repousante e cálida, que conservava
um leve sotaque espanhol.
Aliviada, Glenda levantou os olhos para ele, e encontrou os olhos
dele. Quase a mesma cor de âmbar que há bem poucos minutos ela
namorara: castanhos e límpidos.
Da mesma forma, os olhos dele cintilavam através das pestanas
negras. O rosto estava mais magro do que da última vez que o vira, as
faces marcadas por linhas traçadas
pela experiência ou pelo sofrimento. Os lábios, entretanto,
abriam-se no mais suave dos sorrisos.
— Minha carteira sumiu e não posso pagar as compras — explicou
ela, sentindo uma insólita falta de fôlego agora que estava, de fato, cara
a cara com César Estrada novamente.
Oito anos haviam se passado! Por alguns segundos, toda a afeição
que tivera por ele veio-lhe à mente, afastando de súbito todos os outros
pensamentos. Fitou-o fixamente, expressando sem querer, no olhar,
todos os seus sentimentos.
César também a encarou, contraindo os olhos ligeiramente.
Por um curto espaço de tempo, ambos deram a impressão de
estarem sozinhos no mundo, alheios a tudo e a todos. Mas a voz irritada
do vendedor de frutas trouxe os dois de volta à realidade. César então
voltou-se para o comerciante e pronunciou algumas palavras ásperas
em espanhol.
No mesmo instante, o vendedor de frutas parou de esbravejar,
assumindo uma atitude servil e bajuladora quando César enfiou a mão
no bolso da calça e ofereceu-lhe algumas notas.
Em seguida, César ajeitou o chapéu esporte branco na cabeça e
apanhou o cartucho com as compras de Glenda. Colocou-o na dobra do
braço esquerdo, pois já segurava um outro semelhante com o braço
direito.
— Agora não há mais problemas — de disse, sorrindo. — Podemos
ir embora. — E pôs-se a caminhar com passadas largas.
Glenda o seguiu tentando alcançá-lo para agradecer-lhe.
Entretanto, toda vez que se aproximava dele, alguém se interpunha
entre os dois. Apesar disso, enquanto abria caminho por entre a
multidão de compradores, seu coração estava radiante, e não só pelo
triunfo por tê-lo, afinal, localizado. Sentia uma felicidade incrível pelo
simples fato de tê-lo reencontrado.
De todos os homens que já conhecera, César Estrada era o único
que a fascinara realmente. Seria capaz de qualquer coisa para viver ao
seu lado para sempre! Só que ele não sabia!
Descendo dois lances da escada que conduzia ao mercado, ela
continuava correndo atrás dele. De repente, o calor dos raios de sol
atingiu-a em cheio e ela fez uma
pausa, lamentando não ter trazido um chapéu para se proteger.
Ao pé da escada, ele esperava por ela, e não pôde deixar de observar as
pernas bem torneadas, debaixo
do vestido vaporoso de algodão.
— Obrigada! Muito obrigada por ter pago as frutas apressou-se a
dizer quando finalmente o alcançou.
— De nada. Estou a sua disposição. Mas, e quanto a sua carteira?
Você deve tê-la esquecido em algum lugar... Numa outra banca, talvez.
— É possível que eu a tenha deixado no quarto do hotel ela
procurou se lembrar. — Eu troquei de bolsa esta manhã e talvez tenha
esquecido de tirá-la da que estava
usando ontem.
— Neste caso, me diga onde está seu carro. Quero ajudála,
levando este pacote até lá — César se ofereceu, animado.
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— Não tenho carro. Subi a colina a pé, da praça até aqui. Vim
porque estive em sua casa e me informaram que você havia vindo até o
mercado. Portanto, eu já esperava
encontrálo aqui — explicou, respirando fundo, tomada de emoção.
Glenda, porém, não estava preparada para aquele olhar
desagradável de desaprovação. Por um breve momento, ela olhou,
atónita, para aquele rosto magro e moreno, expressando
uma indisfarçável desconfiança.
— Você me seguiu? — perguntou ele. — Por quê?
— Oh, César, não se lembra de mim? Sou Glenda Thompson. Nós
nos conhecemos em Montreal, na Concórdia. Naquela época, você fazia
pós-graduação, e eu, o bacharelado
em língua inglesa. Fui à sua casa várias vezes, na semana
passada. Deixei um recado para você...
— Ah! — murmurou ele, começando a compreender. Debaixo da
aba do chapéu, os olhos dele brilharam com graça
e malícia. Ela o encarou surpresa e ao mesmo tempo intrigada.
— Quer dizer então que é você a mulher que esteve na minha
antiga casa! — exclamou ele, afinal.
— Você não está se lembrando de mim, não é mesmo?
— ela o censurou. — Como pôde se esquecer? Eu sei que faz
muito tempo desde a última vez que nos vimos, mas não é possível que
eu tenha mudado tanto assim... Reconheci
você logo que o vi passar no mercado. Não estava usando o
chapéu naquele instante e o identifiquei pelo cabelo.
César a escutava, impassível. Glenda fez uma pausa e depois
continuou:
— Certa vez, você me contou uma história sobre um antepassado
seu. Tratava-se de uma mulher, casada com um outro César Estrada,
que veio da Espanha em busca de fortuna
nas minas e aqui permaneceu. Mais tarde, tornou-se governadora,
mas foi seduzida por um pirata inglês e, por isso, a cada duas gerações,
nasce alguém em sua família
com cabelos e olhos claros.
— Eu lhe contei tudo isso? Que memória fantástica a sua!
— comentou ele, com um brilho de malícia nos olhos. — É.. Parece
que você não se esqueceu de nenhum detalhe desta minha história
incrível, depois desse tempo todo!
— Riu, mostrando os dentes alvos, e ela se deixou contagiar pela
alegria dele. — Eu devia estar tentando lhe causar boa impressão e acho
que tive sucesso. — Depois
retornou o tom sóbrio,
desviando o olhar e franzindo as sobrancelhas escuras. — Estou
novamente me lembrando de tudo agora... Daqueles tempos em
Montreal que passamos juntos... Nós nos
divertimos muito, não é? — Tornou a olhar para da, observando-a
curioso.
— É verdade, nos divertimos muito! Lembro-me que, no nosso
último encontro, combinamos que, se algum dia eu viesse a seu país,
deveria fazer-lhe uma visita para
que você pudesse retribuir a hospitalidade que recebeu durante
sua estada em Montreal. Pois bem... Estou aqui numa excursão
programada para uma semana, e aproveitei
a oportunidade para procurálo. Meu avião parte de volta a Toronto
no domingo.
— Entendo. — Ele examinou-lhe o rosto minuciosamente,
percorrendo com um olhar rápido e ardente como a luz do sol os olhos,
as faces e os lábios, onde se deteve
por alguns segundos, voltando em seguida a fitá-la dentro dos
olhos.
— Acho incrível que você esteja aqui e que nós estejamos agora
conversando um com o outro, tão longe do Canadá, após todos esses
anos -disse ele com suavidade, e
sua voz era terna e tão cálida quanto os olhos. — Espero que me
perdoe por não ter me lembrado de você imediatamente. Só ontem à
noite é que retornei a Puerto Plata.
Havia muitos recados para mim e não tive tempo de dar a devida
atenção a todos. Você disse que vai partir domingo? Como poderei
retribuir toda a gentileza e a generosa
hospitalidade que recebi em Montreal em tão poucos dias?
— Não tem importância — Glenda acrescentou logo. -Não quero
que pense que eu estava esperando algo especial. Só quero conversar
sobre o livro que você escreveu.
Fiquei tão emocionada ao saber que ganhou um prémio por ele!
Eul já o li. É maravilhoso e gostaria muito de entrevistá-lo,
— Entrevistar-me? — indagou, olhando-a novamente desconfiado.
— Sim. É esse o meu trabalho... Entrevisto pessoas interessantes
e famosas. Depois, escrevo artigos sobre elas e vendo às revistas. vou
fazer uma matéria sobre
este país e pensei também em escrever um artigo sobre você e
seu último romance. Acho que interessaria muito aos leitores
canadenses, porque você fez pós-graduação
numa universidade do Canadá. Quem sabe eu possa entrevistá-lo
hoje ou amanhã? Mal tinha acabado
de falar quando sentiu uma tontura repentina.
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Viu o rosto dele flutuar em meio ao nevoeiro, e suas pernas
bambearam por um instante. Quase desmaiou. — Desculpe —
murmurou, pondo a mão na testa. — Acho
que é o calor. Não estou acostumada com este clima.
Glenda teve a impressão de que César a olhava com um certo
ceticismo, como se desconfiasse de uma falsa vertigem, mas no
momento seguinte descartou essa possibilidade,
pois ele depositou os dois pacotes de frutas num degrau e,
segurando-a pelo braço, insistiu para que ela sentasse na escada.
— Espere aqui — ordenou ele com voz firme e autoritária.
— vou buscar meu caminhão e levar você de volta ao hotel.
Enquanto César afastava-se a passos largos, Glenda tirou um
lenço da bolsa e agitou-o diante do rosto, tentando criar assim uma
corrente de ar. Ora sentia um calor
febril, ora um tremor de frio. De repente, deu-se conta de que um
grupo de pessoas havia se formado a sua volta. Uma jovem de vestido
estampado quis saber, em um
inglês carregado de sotaque, se ela estava bem. Fazendo esforço
para sorrir, Glenda respondeu-lhe que sim, e que esperava por um
amigo.
Logo o grupo se dispersou, como que carregado por um vento
forte, e César ressurgiu com aqueles olhos penetrantes, estendendo-lhe
atmão para ajudá-la.
No interior da cabine do pequeno caminhão de cor cinza, fazia
muito calor e o revestimento do assento queimava-lhe a pele, através
do tecido fino da saia. Sufocada,
ela baixou rapidamente o vidro da janela ao seu lado. A lufada de
ar que entrou não foi suficiente para refrescá-la, mas o pior foi o ronco
do veículo e o cheiro
que exalava do escapamento, que quase a asfixiou, quando o
caminhão disparou como uma bala, depois de uma guinada em
semicírculo e entrou numa rua estreita.
Descendo a colina até a praça, o caminhão continuava rodando
rápido, passando por um casario antigo com sacadas de ferro batido e
ornamentos de mau gosto na beirada
dos telhados. Na praça, o tráfego movimentado era composto, na
maior parte, por motocicletas pilotadas por jovens. As paredes brancas
da igreja de torres duplas
faiscavam com a claridade do sol. No jardim da praça, o carmim e
o dourado dos viçosos arbustos tropicais davam um tom deslumbrante
ao local, onde havia também um
elegante e exótico coreto, pintado de branco.
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— Estou hospedada no Playa Dorada — indicou Glenda, quando o
caminhão atravessou um cruzamento e seguiu pela rua principal do
centro comercial, saindo da praça.
A tontura havia passado e, apesar dos solavancos do carro,
Glenda sentia-se aliviada.
— E quanto à entrevista? Você vai me concedê-la, não vai, César?
Por favor... — Ela interrompeu-se quando o veículo desviou
perigosamente a fim de evitar um outro
carro que parecia descer desgovernado de uma íngreme rua
lateral, atravessando-lhes o caminho.
— Não sabia que você dirigia. — Ela ofegou, procurando à sua
volta pelo cinto de segurança, agarrando-o e afivelando-o rapidamente.
— O que quero dizer é que você
nunca dirigiu em Montreal. — No íntimo, tinha achado isso bom.
Os motoristas de
Quebec eram considerados os mais negligentes e agressivos do
Canadá, mas nem se comparavam
aos dominicanos.
— Isso porque eu não possuía um carro — retorquiu ele,
lançando-lhe um olhar oblíquo. — Está se sentindo melhor agora?
— Sim, obrigada. Muito melhor — respondeu Glenda. De fato, a
náusea e a tontura não a incomodavam mais, mas a maneira como ele
dirigia sim.
— O que você pretende colocar em seu artigo? — César quis
saber.
— Bem, isso depende das respostas que você me der. Talvez eu
relate sobre suas experiências e estudos aqui na República Dominicana,
e também sobre a visão filosófica
que existe por trás da ficção, além de mencionar os motivos que o
levaram a escrever o seu livro em inglês, e não em espanhol.
— E onde gostaria de fazer essa entrevista comigo?
— Em sua casa, hoje à tarde, se for possível...
— Não, hoje eu não posso.
— Então, amanhã de manhã. Sempre trabalho melhor pela
manhã, principalmente neste clima tropical.
— Não estarei na cidade amanhã — justificou ele. — Agora mesmo
vou para Samana. Por que não vem comigo e me dá uma chance de
retribuir a hospitalidade que desfrutei
no Canadá?
— Samana não fica longe daqui? — objetou ela, embora tivesse
toda a intenção de aceitar o convite.
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— Não muito. Poderemos chegar no começo da tarde. Na hora da
siesta — acrescentou, fitando-a alegremente. — Então, você vem? É o
único jeito de conseguir a entrevista
comigo. Tenho uma casa lá, no litoral. Vai gostar dela! Tem uma
praia particular, ótima para nadar! A paisagem é esplêndida, e a paz e a
privacidade são perfeitas.
— Eu adoraria, mas antes terei de passar pelo hotel para ver se
deixei a carteira lá. Não é a que guardo os dólares e os cheques de
viagem, mas a outra, que só contém
pesos, porém, mesmo assim, gostaria de ter certeza de que não a
perdi por descuido e de que não foi roubada.
— Tudo bem! Nesse caso, aproveite para apanhar um maio,
algumas peças de roupas e uma camisola. — Ele deulhe uma olhada
maliciosa. — Quer passar a noite comigo,
Glenda? Que tal duas noites? Se quiser, eu a trarei de volta ao
hotel a tempo de encerrar a conta, no domingo de manhã, e pegar o
voo de volta ao Canadá.
Ela o fitou, surpresa. Será que ele estava brincando? Ou estaria
realmente sugerindo que passasse uma ou até duas noites com ela?
César jamais tomara liberdades
com ela quando o conhecera em Montreal. Nem uma só vez
haviam dormido juntos, mas teve de admitir que, no fundo, bem que o
desejara! Entretanto, já havia notado
algumas mudanças nele, como, por exemplo, uma desagradável
irritação e uma fria arrogância que não existiam em Montreal.
A verdade era que César estava agora oito anos mais velho,
possivelmente com trinta e seis anos de idade, e alcançara alguma
realização: um livro maravilhoso, que
conquistara o sucesso internacional, e um prémio literário nos
Estados Unidos. Além disso, ali naquele belo país tropical, ?de altas
montanhas, vales profundos e
largas planícies de plantações de cocos e extensos canaviais, ele
estava em seu próprio terreno.
Ela lera certa vez que o clima influenciava o comportamento de
uma pessoa. Na certa, no clima mais frio de Montreal, durante o inverno
gélido, César teria se comportado
de modo diferente de como se comportava vivendo ali.
Pensando nisso, Glenda fixou os olhos rápida e instantaneamente
no perfil moreno sob o elegante chapéu. Ele tinha o nariz convexo, típico
dos espanhóis, lábios firmes,
queixo
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anguloso e bem talhado. Depois de avaliar os detalhes do rosto,
os olhos dela voltaram-se para as mãos magras e crestadas de sol,
firmes sobre o volante, e, em seguida,
para as longas coxas que davam forma à calça de fino algodão.
Será que a memória não estava lhe pregando uma peça? Lembravase
dele um pouco mais gordo quando o conhecera
em Montreal. Ou, talvez, as roupas fizessem alguma diferença. Ali,
ele tinha que usar bem pouca.
— Então, Glenda, vamos para Samana? — ele tornou a perguntar.
— Eu gostaria. Haverá mais alguém na casa?
— Sim, é claro! — Havia frieza no tom de voz dete.
— Sua esposa? — ela indagou. — Eu soube que você se casou.
Tem filhos?
— Não vamos falar de meu casamento — ele cortou asperamente.
— Nem agora, nem em nenhuma outra ocasião. Nada de perguntas
sobre isso, por favor, quando me entrevistar.
— Está bem — disse Glenda, sentindo-se subitamente tensa. —
Não tenho intenção alguma de bisbilhotar sua vida particular. Só estava
tentando ser amável. Já fomos
amigos e conversávamos muito um com o outro. — Fez uma
pausa, lembrando-se daqueles tempos em que pareciam mais íntimos,
em que imaginara que sempre trocariam confidências,
compartilhando sonhos e esperanças. — Você se lembra daquela
ocasião em que fomos à casa de campo de meus pais, na região leste,
pouco antes de você deixar Montreal?
— recordou ela, com tranquilidade. — E como nos divertimos
velejando no lago no escaler de meu irmão? Quando contei a papai e
mamãe que iria procurar você, ambos
lhe mandaram lembranças. Ficaram felizes com o sucesso do livro.
César não respondeu e, desta vez, parecia se concentrar em
dirigir o carro com cuidado pela estrada estreita e sinuosa, cercada de
palmeiras. Logo depois, chegaram
até um pátio enorme e pararam defronte a um prédio baixo e
extenso, com telhado de folhas de palmeiras. Era o centro do complexo
hoteleiro, e abrigava a recepção,
o restaurante, os escritórios e a cozinha. Os hóspedes ficavam
alojados em chalés individuais, espalhados por entre a plantação tropical
que orlava a ampla e espetacular
praia de areia levemente dourada. O mar desaparecia no
horizonte com suas águas azul-
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turquesa e esmeralda, onde uma luz faiscava sob os reflexos
prateados do sol ardente. Enormes ondas rolavam e arrebentavam na
praia, deixando atrás de si uma espuma
abundante.
— vou esperá-la aqui — disse César, depois de ter estacionado o
caminhão debaixo da sombra refrescante das palmeiras, próximo ao
prédio central. Virou-se para ela
com um sorriso tão cálido quanto a luz do sol. — Quanto às
recomendações de seus pais, são muito bem-vindas. É bom ser
lembrado por pessoas tão amáveis, e espero
que sua breve estada comigo em Samana seja tão agradável
quanto a hospitalidade que recebi na casa deles durante os dias que
passei em Orford.
Embora as palavras dele tivessem um tom formal, Glenda sentiu
suavizada a estranha sensação de angústia que vinha crescendo dentro
dela, desde o momento em que ele
a tratara com frieza, quando ela tocara no assunto do casamento.
Novamente César se mostrava como sempre se lembrara dele: polido,
cordial e simpático. Feliz, ela
retribuiu-lhe o sorriso.
— Não vou demorar — prometeu, abrindo a porta do carro.
Enquanto percorria a alameda até o chalé, que dividia com sua
amiga Ida katin, redatóra de uma agência de publicidade, Glenda sentiu
a cabeça latejar e um ligeiro
enjoo no estômago. Tomara que não tivesse pego uma insolação
ou contraído algum vírus tropical, ponderou. Queria ir com César para
Samana e se houvesse qualquer
possibilidade de estar doente, deveria permanecer no hotel e
repousar até ficar boa.
Por outro lado, Glenda sabia que não teria outra oportunidade de
fazer uma entrevista com ele, e não podia perder essa chance. Além
disso, o reencontro fizera renascer
sentimentos adormecidos em seu coração. Se, pelo menos,
naquela ocasião, não estivesse tão envolvida com Greg...
Sacudindo a cabeça, Glenda expulsou tais ideias e, depois de
atravessar a varanda do chalé, abriu a porta. O espaçoso quarto-e-sala
conjugado tinha sido limpo e
arrumado. A roupa das duas camas de solteiro estava esticada e
macia ao tato, e havia no ar um cheiro forte de desinfetante vindo do
banheiro. Ida estava ausente,
e Glenda deduziu que sua amiga estivesse na praia tomando
banho de sol ou jogando volibol com outros turistas.
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Foi direto ao guarda-roupa e removeu a mala de viagem. Colocou-
a sobre a cama e, ao abri-la, encontrou sua bolsa vermelha. Dando uma
rápida busca na bolsa, achou
a carteira contendo pesos, o que a fez suspirar de alívio. Já não
precisaria mais comunicar a perda à polícia. Imediatamente transferiu a
carteira para a outra bolsa,
fechou a mala e recolocou-a no guarda-roupa.
com movimentos apressados, pegou o maio, uma toalha e a
saída-de-banho. Dobrou as peças e ajeitou-as numa frasqueira, por
cima do gravador e da máquina fotográfica.
Decidiu não levar a camisola, nem qualquer outra peça, conforme
César tinha sugerido, pois esperava convencê-lo a trazê-la de volta
ainda naquele mesmo dia. Não
seria tão imprudente a ponto de passar a noite com ele, sem
saber se estava casado ou não.
Rapidamente, escreveu um bilhete para Ida, explicando-lhe que
havia encontrado César Estrada e que estavam indo para Samana
juntos, mas que voltariam logo. Apoiou
o bilhete contra o estojo de maquilagem, em cima da cómoda, e
em seguida examinou a própria aparência no comprido espelho do
guarda-roupa.
Os cabelos loiros, semilongos, eram Usos e brilhantes; o rosto
ovalado, levemente tostado de sol, ganhara uma bela cor; e a camiseta
com decote redondo combinava
com seus olhos verdes, de pálpebras espessas, característica dos
irlandeses.
A dor de cabeça parecia ter sumido, afinal! Sorrindo para si
mesma, sentiu uma súbita felicidade pelo fato de saber que, dali a
instantes, estaria perto de César
Estrada novamente.
Ainda sorridente, Glenda pôs o chapéu e os óculos de sol, pegou a
bolsa e a frasqueira e correu ao encontro dele.
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CAPÍTULO II
César estava encostado na porta do carro, com displicência, o
chapéu tombado cobrindo os olhos, os braços cruzados sobre o peito e,
para surpresa de Glenda, tinha
um charuto aceso entre os dentes.
— Não sabia que você fumava — observou ela.
— Raramente, e só quando estou em casa — respondeu ele,
retirando o charuto da boca. Sob a sombra do chapéu, seus olhos
brilharam de um jeito maroto. — Os charutos
dominicanos são tão bons quanto os cubanos — comentou. -
Estimulamos a economia do vício nesta ilha: rum, tabaco e café.
— Baixou os olhos para a frasqueira de Glenda. Trouxe tudo o que
precisa aí dentro?
— Sim — ela respondeu, lacónica.
— Então, deixe-me pôr sua bagagem na traseira do caminhão
para que tenhamos mais espaço dentro da cabine. O que pretende fazer
com as frutas que comprou? — Ele riu.
— Tudo isso dá para alimentar uma família inteira por uma
semana! Pôr que comprou tanto?
— Eu pretendia comprar apenas o abacaxi, mas aí vi você na
barraca ao lado e fiquei tão ocupada em observá-lo, que concordei em
comprar tudo o que o vendedor me
ofereceu — explicou-lhe.
— E então armou aquela cena da carteira para chamar minha
atenção, não é mesmo? Foi tudo fingimento!
— Eu não estava fingindo — retrucou ela. — Como pode pensar
que eu seria capaz de
uma coisa dessas?
O sorriso dele fez com que ela sentisse de novo aquela repentina
onda de
atração. Lembrou-se dos velhos tempos, em que César costumava
brincar.
— Você ainda engole facilmente a isca — disse ele, alegre. — E eu
adoro o jeito como seus olhos lampejam e suas faces ficam ruborizadas
toda vez que fica zangada.
Vamos
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levar as frutas conosco? Caso não as queira, conheço uma família
que ficará contente em aceitá-las.
— Nesse caso, eu é que ficarei contente em oferecê-las... Por falar
nisso, já posso pagar, o que lhe devo. Minha carteira estava na minha
outra bolsa. Aqui está!
— ela disse, oferecendo-lhe alguns pesos.
com um encolher de ombros, César apanhou as notas e
comprimiu-as no bolso. Após colocar a bagagem na traseira do
caminhão, ele abriu a porta da cabine e fez um gesto
para que Glenda entrasse.
Ela observou-o, satisfeita por vê-lo apagar o charuto antes de dar
a partida no motor, pojs talvez não conseguisse suportar o cheiro de
fumaça na cabine pequena
e abafada. Voltaram para a rodovia e logo estavam rodando
rápido, em direção ao leste, pelo asfalto liso.
À frente deles, a estrada se aprofundava por entre colinas
íngremes e recobertas de coqueirais. Os troncos eretos e as folhas
reclinadas das palmeiras brilhavam
trémula e fracamente à luz do sol. À beira da estrada, cabanas de
sapé, que, na verdade, não passavam de barracos encolhidos no meio
da densa vegetação, completavam
a paisagem. Próximo àquelas habitações simples, algumas
crianças brincavam e corriam. De quando em quando, alguma mulner,
de lenço branco ou chapéu de palha na cabeça,
acenava amigavelmente para o caminhão.
Depois de percorrerem algumas milhas, César e Glenda chegaram
a um pequeno povoado. Ele contornou uma igrejinha com telhado de
estanho vermelho e um pequeno campanário,
saindo numa estrada mais estreita e mais acidentada. Logo
adiante, alguns homens com chapéus de palha estavam sentados
tranquilamente nos degraus de um barracão,
onde funcionava o armazém geral. Na fachada, um grande cartaz
anunciava: "Temos Bermudez". Era o rum do local.
A estrada prosseguia íngreme, numa série de curvas sinuosas,
pela encosta de uma imensa montanha.
— Vim por aqui para lhe mostrar um pouco da zona rural da
península de Samana — explicou César. — Talvez você veja algo
interessante para escrever sobre este país.
A
? rodovia que acabamos de deixar vai até a ponta da baía de
18
Samana e segue pela costa até o porto de Santa Bárbara. Esta
estrada, por sua vez, acompanha o litoral da península, antes de
atravessar as montanhas, até a baía.
Daqui, vê-se o mar do Caribe e muitas plantações de coco.
À medida que o caminhão guinava evitando os buracos, dando a
impressão de que a qualquer momento iria projetar-se das bordas
escarpadas dos vales, Glenda desejava
que ele tivesse escolhido outro caminho. As fazendas e as
paisagens dos vales de cor azul-escuro, que rasgavam as montanhas
recobertas de verdes florestas tropicais,
não amenizavam a impressão desconfortante de estar em cima de
uma montanha russa. Principalmente quando o caminhão subia de
arrasto a encosta para lançar-se vertiginosa
e assustadoramente ao outro lado da montanha.
Ela sentiu a cabeça e, diversas vezes, seu coração darem saltos,
como se quisessem pular fora do corpo. Esforçou-se para ouvir o que
César estava dizendo sobre a
extensão das fazendas, a quantidade de óleo de coco que cada
uma produzia. Dizia ele que o desenvolvimento recente da irrigação
tinha ajudado no cultivo, ali na
península.
Glenda sabia que ele estava sendo gentil em lhe dar informações
sobre a história e O desenvolvimento daquele país, portanto não queria
desapontá-lo. Ela fizera o
mesmo com relação à região da província de Quebec, onde sua
família morava, no passado.
— Aqui, em Samana, você vai encontrar muitas pessoas que falam
o inglês. São descendentes de escravos e negros emancipados que
escaparam dos Estados Unidos com a
ajuda dos abolicionistas. Daí os sobrenomes Brown, Green,
Shepherd e até Thompson, de algumas famílias do local. Naquela época,
por volta de 1824, toda a região
estava sob o domínio dos haitianos.
— Quanto tempo durou a dominação haitiana?. — quis saber
Glenda.
— De 1822 a 1844. Eles emanciparam os escravos dominicanos,
mas sob um regime despótico e cruel. O "fundador de nosso país", Juan
Pablo Duarte, expulsou os haitianos
e criou a República Dominicana independente tanto da Espanha
quanto do Haiti. Logo depois, ele também foi deposto e criada nova
constituição. — César deu uma risada
19
irónica. — Desde então, já tivemos vinte e oito constituições e, até
recentemente, a maioria dos governantes deste país foi déspota. Agora,
graças à ajuda económica
dos Estados Unidos, Canadá e outros países, estamos progredindo
lentamente. Mas ainda temos problemas : alta taxa de natalidade ,
subnutrição, escassez de água e
energia elétrica, desigualdade racial, doenças. Por Dios, ainda há
muito o que fazer para ajudar os pobres... — Sua voz adquiriu um tom
melancólico e ele calou-se.
— As fazendas parecem muito pobres — comentou Glenda ao
passarem por outro agrupamento de cabanas.
Galinhas corriam cacarejando à frente do caminhão, na estrada, e
escapavam rapidamente pelos lados, enquanto crianças pobremente
vestidas acenavam e assobiavam,
felizes.
— A beleza do país e o clima quente muitas vezes abrandam o
choque da pobreza — comentou César. — Neste país, como você está
vendo, não há muita necessidade de abrigo
ou de roupas. — Olhou para ela de relance. — Não é como o
Canadá, onde se é forçado a gastar muito em aquecimento e em roupas
quentes, durante o inverno.
— Isso é verdade — murmurou Glenda, agarrando-se à borda da
janela quando o caminhão deu mais uma guinada. A estrada mais
parecia o leito seco de um rio, devido
a grande quantidade de pedras e buracos existentes.
No topo de uma outra colina, César parou por alguns minutos. À
esquerda, a terra se perdia de vista, numa alternância de cristas e
vales, oculta pela floresta tropical.
Era um tecido delicado de vários tons de verde que se diluíam aos
poucos numa névoa azulada riscada por uma longa faixa de luz
prateada.
— Daqui temos uma última vista do oceano. Está vendo a luz do
sol brilhando na água? — apontou César. — Um pouco mais adiante,
vamos dobrar à direita e atravessar
mais aquela montanha e, então, você poderá ver a baía de
Samana. — Interrompeu-se ao perceber nela uma repentina falta de
interesse. — Você está se sentindo bem?
— É só uma pequena indisposição por causa da viagem, apenas
isso. Esta estrada está parecendo um tobogã — brincou ela,
conseguindo sorrir.
— Nesse caso, vou dirigir mais devagar — ele prometeu.
20
Entretanto, o restante da viagem foi como um turbulento pesadelo
para Glenda. Uma nuvem densa pairava diante de seus olhos,
ameaçando tragá-la totalmente. A cabeça
lhe doía e a náusea lhe sufocava a garganta. Desesperada, ela se
agarrava cada vez mais à borda da janela, lutando contra o desmaio.
Mas ondas alternadas de calor
e frio percorriam seu corpo e, do lado de fora, árvores e arbustos
sucediam-se como intermináveis borrões verdes.
Subindo e descendo, girando e girando, o caminhão seguia pela
última curva pedregosa, que culminava na rodovia que haviam deixado
antes. À direita, o mar surgiu
azul e dourado, estendendo-se majestoso até perder de vista.
— Aí está a grande baía de Samana! — exclamou César orgulhoso
da paisagem. — Vários galeões espanhóis naufragaram aí, colhidos por
furacões e arremessados sobre
perigosos bancos de areia. Muitos mergulhadores têm vasculhado
o local, e boa parte do tesouro recuperado se encontra no
museu em São Domingo.
Ao divisar os distantes prédios brancos de uma cidade, Glenda
relaxou um pouco, afundando o corpo para trás no assento, agora mais
tranquila. Fechou os olhos, mas
logo os reabriu, assustada.
— O caminhão desceu bruscamente uma ladeira, passou por um
conjunto de lojas e por um mercado, para, em seguida, virar à
esquerda, num triângulo de relva empoeirada,
alcançando uma larga avenida.
À direita, tremeluziam as águas azuis de um porto protegido do
movimento das ondas da baía por uma ilha juncada de palmeiras, e à
esquerda, erguiam-se modernos edifícios
de cor clara, contrastando com o verde das montanhas, atrás da
cidade.
No porto, junto ao cais de pedra, um barco da patrulha costeira
estava ancorado. Nele, hasteada na popa, a bandeira dominicana
balouçava ao vento. Outros dois grandes
iates à vela flutuavam nas águas. Para espanto de Glenda, ambos
tinham içado bandeiras do Canadá e por alguns instantes ela se animou.
— Olhe, iates canadenses! — exclamou.
— Neste porto, há sempre iates de vários países. A cidade é uma
zona turística e, se você olhar para trás, do outro
21
lado do porto, na direção do promontório, poderá ver um hotel,
que pertence a uma companhia canadense — afirmou ele.
Ela fez um esforço, girando o corpo no banco, para olhar pela
janela aberta, enquanto o caminhão percorria o bulevar.
O promontório era alto e verdejante e o hotel
ficava bem no meio dele, todo branco com arcos no estilo
espanhol. Logo abaixo, uma bonita ponte ligava a ilha de palmeiras ao
continente.
O bulevar terminava abruptamente, transformando-se em outra
estrada rústica que serpenteava morro acima. Novamente, o caminhão
saiu da estrada e entrou numa vereda
que descia direto por entre uma plantação de infindáveis
palmeiras, terminando numa clareira. Ao lado, havia uma casa pequena,
com paredes pintadas de branco e telhas
vermelhas. Arbustos e árvores exóticas a cercavam por todos os
lados.
Uma escada de ferro batido acompanhava a lateral da casa até a
varanda, que ficava nos fundos, com vista para o mar.
— Bem, aqui estamos — disse César com um tom de satisfação,
depois de estacionar o carro debaixo da sombra de uma casuarina. —
Este é o meu esconderijo, onde costumo
me refugiar. Espero que você goste. — Abriu a porta do carro e
desceu.
Glenda estremeceu levemente com o barulho da porta se
fechando. A sensação de mal-estar e náusea tinha piorado, e, tonta, ela
escorregou lentamente do banco, pondo
as pernas para fora. Embaixo, o chão arenoso parecia ondular
assustadoramente. Teve a impressão de estar despencando para dentro
de um abismo. Exatamente antes de
tocar os pés no chão, ouviu um grito e sentiu que a tomavam nos
braços. Depois, tudo escureceu e ela não viu mais nada.
Quando Glenda voltou a si, sentiu a cabeça rodopiar por alguns
segundos e a testa gelada. Alguém estava pingando água gelada no seu
rosto. Teve arrepios, ofegou
e finalmente abriu os olhos. com a língua ressecada e quente,
lambeu sofregamente as gotas d água nos cantos da boca. Levantou os
olhos para o rosto moreno, de cabelos
prateados. Os olhos castanhos brilhantes como o âmbar fixaram-
se nela.
Deu-se conta, então, de que estava confortavelmente deitada
22
numa cama e que César, sentado ao seu lado, molhavalhe o rosto
com uma toalha umedecida com gelo.
— O que aconteceu? — sussurrou ela.
— Você desmaiou quando estava saindo do carro. A sua sorte é
que eu estava perto. Amparei você e a trouxe para cá. — O rosto dele
se endureceu. — Por que não me
contou que estava passando mal?
— Eu... eu achei que o mal-estar passaria logo.
— Você começou a se sentir mal lá no mercado, não é mesmo? —
ele falou zangado.
Ela apenas confirmou com um tímido gesto de cabeça.
— Então, por que concordou em vir comigo? Por que não avisou
logo? Eu a teria deixado no hotel, descansando... César a censurou.
— Já disse! Pensei que eu fosse melhorar... Além disso, queria
acompanhá-lo. Tenho que entrevistá-lo — ela replicou fracamente.
— Você não está grávida, está? — foi a pergunta impertinente que
ele fez, em seguida.
— Não, claro que não! — Indignada, ela ergueu-se dos
travesseiros. Nesse exato instante, a náusea veio à tona.
— Oh, ajude-me! — arquejou, tapando a boca com a mão.
— De algum modo, tinha saído da cama e César estava ao seu
lado, guiando-a até o banheiro.
Quando saiu de lá, sentiu-se mais aliviada e, imediatamente, a
mão de César enlaçou-a pela cintura para ajudá-la a retornar ao quarto.
Ainda amparada por ele, Glenda
deitou-se no leito, e sorriu agradecida. Depois, fechou os olhos e
mergulhou num torpor febril...
Só muito tempo depois, Glenda acordou com a luz suave de uma
lâmpada que acendeu-se à sua cabeceira. Ao abrir os olhos, viu César
sentado próximo a ela. Carinhosamente,
ele pôs os dedos longos e frios na testa dela.
— Você está dormindo há horas... E teve muita febre durante o
sono — disse ele brandamente. — O que fez para ficar assim tão
doente? Bebeu água da torneira?
— Não. — Sua voz soava-lhe estranha, como se fosse de uma
outra pessoa. — Nós... Ida e eu... bebemos apenas água engarrafada.
Procuramos tomar muito cuidado, neste
ponto. Mas ficamos muito tempo na fila do teleférico que vai
23
até o alto de Isabela de Torres. Talvez seja isso, pois fazia muito
calor!
César murmurou alguma coisa em espanhol que ela não entendeu.
Sentia-se fraca demais para pensar sobre isso, e também constrangida
por se ver em tal situação.
— É melhor você vestir sua camisola — sugeriu ele, levantando-se
da cama. — vou mandar lavar sua roupa.
— Mas eu não trouxe camisola! — Glenda lembrou-se, sem jeito.
— Por que não? — Em pé junto ao leito, ele a olhava surpreso. —
Eu lhe avisei para trazer uma e algumas roupas.
— Eu sei, mas eu não trouxe. Não tinha a intenção de passar a
noite aqui. Achei que você me levaria de volta ao hotel, se eu lhe
pedisse.
— É mesmo? — O tom de sua voz era zombeteiro. — Pois se
enganou completamente! Ouça, não tenho a menor intenção de levá-la
de volta. Portanto, se não trouxe nada
para trocar, preciso providenciar alguma roupa para você.
Francamente, por esta eu não esperava! — exclamou César, impaciente
e contrariado.
Em seguida, ele deu-lhe as costas e abriu algumas gavetas,
procurando alguma coisa na cómoda. Glenda, por sua vez, observava-o
confusa e constrangida, sentindo as
lágrimas querendo brotar de seus olhos. Nisso, ele voltou junto à
cama, com uma camisa listrada de pijama nas mãos.
Sentou-se novamente ao lado dela e dobrou o corpo
para a frente a fim de examinar-lhe o rosto. Ela então virou a
cabeça para o outro lado, para que ele não pudesse ver-lhe as lágrimas.
— Você não precisa se preocupar comigo. Posso muito bem dar
um jeito nisso sozinha. Apenas me deixe em paz. Estou bem! —
obstinou-se em dizer.
César segurou-lhe o queixo, obrigando-a a voltar o rosto para ele,
a fim de ver-lhe a fisionomia.
— Não, você não está bem! Ainda tem febre e está muito abatida!
Agora, deixe-me ajudá-la a tirar suas roupas e a vestir esta minha
camisa — ele falou com firmeza.
— Certamente vai cobri-la até os joelhos. — O riso fez-lhe tremer
a voz.
— Você vai ficar muito sensual nela, o que não será bom para nós
dois, considerando-se o seu estado! Agora vamos, sente-se na cama.
24
— Não. Vá embora, por favor. Eu... eu mesma vou tirar minhas
roupas e vestir a camisa. Prometo! Mas vá embora!
— pediu ela, num fio de voz.
— Tudo bem! — Ele se levantou e saiu do quarto, deixando a
camisa.
Aliviada, Glenda sentou-se na cama. Ainda sentia vertigens, mas o
enjoo passara. Trocou a blusa pela camisa de tecido acetinado,
reparando que era grande demais
para ela. Mal teve tempo de abotoá-la e um súbito calor a invadiu
toda. Era a febre que estava voltando. Cambaleando, atravessou o
corredor e molhou a testa no banheiro.
Ao retornar ao quarto, ainda mais combalida, desabotoou a
camisa, deixando-a escorregar para o soalho antes que ela caísse na
cama, sucumbida pelo cansaço.
Passadas algumas horas, Glenda percebeu vagamente que César
estava no quarto. Ao lado da cama, ele insistia para que ela se sentasse
um instante a fim de tomar um
remédio.
Depois de ingerir o medicamento, ela voltou a deitar-se, sem
ânimo. Pouco a pouco, porém, a cabeça parou de latejar e ela foi se
sentindo melhor, apesar do suor
que lhe encharcava o corpo. Lentamente, o sono foi chegando e
ela, virando-se de lado em busca de uma posição mais confortável,
constatou, com surpresa, que César
também estava deitado na cama, bem próximo dela. Ele havia
virado as costas largas e bronzeadas, na cama, para ela, e estava
usando apenas um short. Chamou-o, mas
não obteve resposta e, enquanto se perguntava por que motivo
ele estaria ali, adormeceu.
Glenda abriu os olhos com a luz do sol batendo-lhe no rosto. Os
raios solares entravam obliquamente no quarto, Através das persianas
abertas da janela. Olhou para
o teto, pestanejando, e ouviu o som de ondas do mar morrendo
numa praia invisível, o farfalhar das folhas das palmeiras sopradas pela
brisa suave, o grito agudo
de um papagaio e o matraquear de um animal que poderia ser um
macaco. Todos os sons penetravam por duas janelas, uma diante da
outra, de modo que o ar circulava
livremente pelo quarto. Um ventilador, no alto, fazia um leve
zumbido que não chegava a perturbar. Olhou para o outro lado da
cama. Não havia
25
nem sinal de César, mas lembrava-se perfeitamente de tê-lo visto
ali, antes de adormecer.
com cuidado, esforçou-se para se sentar. Tanto a cabeça como o
estômago pareciam normalizados, sem nenhum sintoma desagradável.
O pesadelo tinha passado. Tudo que
sobrara era um sentimento opressivo de culpa pelo trabalho que
involuntariamente dera a César. Logo ali, no seu doce refúgio!
Consultando o relógio de pulso, ela verificou que já eram quase
duas e meia da tarde. Tarde de sexta-feira. Tinha que levantar e achar
César, entrevistá-lo e, depois,
pedir-lhe que a levasse de volta ao hotel. Cautelosamente, Glenda
ficou em pé, sentindo-se apenas um pouco fraca. Olhou em torno, as
paredes pintadas de branco e
o piso de ardósia, sobre o qual havia tapetes de palha espalhados
aqui e ali. As cadeiras também eram de palha e as almofadas da cama,
fofas e coloridas. Um grande
quadro ornamentava uma das paredes e, apesar da simplicidade
do aposento, a mobília era da melhor qualidade.
Sobre a cadeira estavam a frasqueira de Glenda e um roupão de
banho. Ela vestiu-o por cima do pijama, lembrandose, subitamente, da
observação de César de que ficaria
muito sensual dentro da camisa. Intrigava-a o modo como ele a
tratara na véspera: ora amável e gentil, ora áspero e autoritário.
Certamente, arrependera-se de tê-la
convidado para o passeio. Que falta de sorte, lamentou-se Glenda.
Ter ficado doente justamente quando reencontrara o homem que mais a
fascinara em toda sua vida!
Após deixar o quarto, ela cruzou um corredor estreito, passou pelo
banheiro e atravessou o hall que dava acesso à sala de estar. Havia ali
uma parede toda de vidro,
com portas corrediças. A parede oposta tinha divisórias de
persianas de madeira, que presumivelmente moviam-se para frente e
para trás, permitindo menor ou maior
circulação de ar no aposento, conforme a necessidade. Através da
porta de vidro, podiase ver a varanda e a vista da baía de Samana,
brilhando aos reflexos dourados
do sol.
Duas rústicas poltronas de bambu, com almofadas forradas do
mesmo tecido usado no dormitório, estavam dispostas uma em frente
da outra. Entre ambas havia uma mesa
26
.
baixa e comprida, e outra, redonda e menor, próximo à cozinha.
Glenda estava apreciando a paisagem quando ouviu uma voz atrás
de si.
— Sra. Thompson?
Ela voltou-se e olhou surpresa. Um rapaz estava postado no
batente da porta. Era magérrimo e usava bermuda de algodão leve e
uma camiseta azul. Sua pele morena reluzia,
o cabelo liso era preto como carvão e os olhos, grandes e
castanhos, eram doces e gentis. Quando sorriu para ela, abrindo os
lábios grossos, exibiu dentes muito
alvos.
— Sou Alberto Jones — ele apresentou-se. — Cuido da casa para o
patrão.
— O patrão? Você está falando do senhor Estrada? — corrigiu ela.
— Onde está
ele?
— No momento, acho que está em La Pasquale. Vai voltar mais
tarde. Recomendou para que ficasse à vontade aqui, senhora. Sente-se
melhor agora?
— Muito melhor, obrigada.
— Que bom, então vou preparar alguma coisa para a senhora
comer.
— Você fala inglês muito bem, Alberto. Onde foi que aprendeu? —
A curiosidade jornalística tinha despertado em Glenda.
— Toda a minha família fala um pouco de inglês, senhora. Meus
parentes vieram da América há muito tempo. Eram escravos lá. Aqui
são pessoas livres, embora pobres.
Entretanto, sinto saudade da América.
— Você também fala o espanhol? — Ela gostaria de entrevistá-lo
com o gravador ligado a fim de captar a pronúncia de seu inglês arcaico.
— Sim, senhora. Aprendi o espanhol na escola. Só falamos em
inglês entre a gente, ou com os turistas. E então? Quer comer alguma
coisa?
— Sim, obrigada. Que tal ovos à pocherl — ela sugeriu.
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CAPÍTULO III
Alberto não sabia o que eram ovos à pocher, por isso Glenda
ofereceu-se para ensinar-lhe como prepará-los, e ambos dirigiram-se à
ampla cozinha, onde os armários
eram brancos, a pia, de aço inoxidável, e o fogão, a gás, além de
oferecer uma excelente vista para a baía.
Sob o olhar interessado de Glenda, quebrou os ovos dentro de
uma panela com água fervente. Depois, ele lhe trouxe pão, manteiga e
uma garrafa de água potável.
Enquanto saboreava a refeição, sentada à mesa da cozinha,
Glenda conversava com Alberto. O rapaz tinha apenas dezoito anos e
ainda frequentava a escola. Estava de
férias naquela semana, por causa dos festejos de Páscoa. O pai
era pescador, a mãe cuidava da casa; tinha irmãos e irmãs, e todos
moravam perto da praia particular,
pertencente à casa de César.
— Papai costuma pescar cavalinhos, vermelhos e outros peixes
grandes existentes na baía. Ele usa redes, que joga da canoa. É um
trabalho perigoso, às vezes, principalmente
durante as tempestades. Alguns pescadores já morreram
afogados, por isso eu não quero fazer este tipo de trabalho. Alberto
sacudiu a cabeça, inconformado. — Quero
ir para a universidade e me formar advogado ou professor. O dr.
Estrada diz que vai me ajudar se eu me esforçar e passar nos exames.
Quero também ir para os Estados
Unidos. Tenho um primo, Fernando, que vive lá. Ele joga beisebol
em um time do Kansas.
— É mesmo? Ele joga então para os Royals?
— Isso mesmo — concordou Alberto. — A senhora é americana?
— Não. Sou canadense.
— De Toronto? — O rosto de Alberto brilhava de excitação e
entusiasmo. — Conhece o time dos Blue Jays?
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— Claro que sim — respondeu, rindo da agitação do rapaz.
— Dois amigos de Fernando jogam neste time. É um grande time.
Um dia ainda vou ao Kansas e depois a Tpronto ver Fernando e seus
amigos jogarem.
Conversaram mais um pouco sobre beisebol e as partidas do
campeonato mundial do ano anterior. Depois, Alberto foi buscar as
roupas de Glenda, que já estavam lavadas
e secas.
— Foi minha mãe quem passou a ferro — disse ele.
— Pois agradeça a sua mãe por mim. — Ela sorriu, prontificando-
se a lavar a
louça que havia usado. Em seguida foi para o quarto.
Era ótimo estar bem disposta novamente, pensou, enquanto
tomava uma boa ducha no banheiro, o que a fez sentir-se ainda mais
confortável. No quarto, vestiu as roupas
limpas e dobrou a camisa do pijama, colocando-a sobre a cómoda.
Estava pensando em arrumar a cama quando Alberto entrou trazendo
lençóis e. fronhas limpos.
— — Pode deixar, senhora. O patrão falou para a senhora
descansar lá fora, na varanda, até ele voltar. Lá tem uma sombra
gostosa a esta hora. Ele recomendou também
que a senhora evitasse o sol.
— Tudo bem, vou fazer o que o seu patrão mandou ela brincou,
achando César, de repente, muito paternal. No entanto, pelo que ela
lembrava, ele não era nada disso
em Montreal.
Caminhou devagar até a sala, analisando detalhadamente a casa.
Não era muito grande: tinha um único quarto, a sala de estar, o
banheiro e a cozinha. Não possuía
nenhum escritório onde César pudesse escrever seus livros. Onde
será que ele trabalhava quando estava na casa? Deu mais alguns
passos, atravessando as portas de
vidro corrediças. Reparou, então, que num canto do quarto, atrás
da parede divisória, havia uma escrivaninha e uma estante no alto da
parede. Esperando encontrar
ali algum material do livro de César, Glenda examinou os papéis
espalhados ao lado de uma máquina de escrever portátil. Contudo, não
havia nada entre eles que se
assemelhasse a um romance inédito. Eram, na maior parte,
folhetos impressos em espanhol.
29
Deu uma olhada na estante. Todos os livros pareciam relacionar-
se com assuntos médicos. Eram compêndios de anatomia, bioquímica e
de doenças tropicais. Havia, além
disso, revistas especializadas, em medicina, empilhadas nas
prateleiras. Os livros e as revistas, sem exceção, estavam escritos em
inglês.
Lembrou-se de que Alberto lhe contara sobre o dr. Estrada ajudá-
lo na formação universitária se se esforçasse nos estudos. Logo, aqueles
livros deveriam pertencer
ao pai de César. Mas por que o dr. Estrada os teria deixado ali, no
esconderijo do filho? Talvez ambos dividissem a casa. Era possível
Levada pela curiosidade, Glenda tirou um dos livros da estante e o
abriu. Havia um nome rabiscado nele: Rafael Estrada, e, abaixo deste,
um endereço em Chicago.
Recolocou o livro no lugar, tentando recordar-se de alguma coisa
que César pudesse ter lhe contado sobre o pai. Não se lembrava de tê-
lo ouvido mencionar que o pai
era médico. Na verdade, estava certa de que o sr. Estrada era um
alto funcionário do governo. Possivelmente, fora médico antes de
tornar-se um executivo.
Bem, isso ela descobriria quando fizesse a entrevista com César.
Por enquanto, seguiria as recomendações dele: sentaria na varanda e
relaxaria, aproveitando ao máximo
a beleza dos arredores. Aquele paraíso tropical era um delicioso
sonho que se tornara realidade! Ali estava ela Cercada de palmeiras
sussurrantes, numa praia particular,
localizada em uma isolada baía e protegida por promontórios
rochosos. A par disso tudo, podia usufruir de todas as comodidades
modernas!
Depois de contemplar a paisagem, desceu os degraus da varanda
que conduziam a um cais amplo, todo de madeira, com espreguiçadeiras
dispostas em torno de uma mesa
quadrada. Àquela hora do dia, o cais era protegido pela sombra da
casa. Estirando-se numa delas, Glenda suspirou extasiada.
Sem querer, seus pensamentos vagaram em torno de César. No
dia anterior, quando ela lhe perguntara sobre a esposa, César irritara-
se.
"Não vamos falar sobre o meu casamento", responderalhe áspero.
Por quê? Por que negava-se a falar sobre o assunto?
30
Teria sido um casamento fracassado? A casa fora projetada para
uma única pessoa, e não havia sinais de que uma mulher vivia ou tinha
vivido nela. Só havia
algumas peças de roupa penduradas no guarda-roupa. Apenas
roupas masculinas, de César.
O som de um veículo se aproximando da casa fez Glenda,
instintivamente, endireitar o corpo. Esperou ansiosamente que César
viesse ao encontro dela. Efetivamente,
ele surgiu pouco depois. A passos largos, atravessou a varanda,
ágil e esbelto, de camisa branca e calça jeans. Transpôs os degraus com
um pulo e aproximou-se.
O prazer em vê-lo foi tão intenso, que Glenda surpreendeuse
consigo mesma. Levantou-se do sofá, estendendo-lhe as mãos num
gesto acolhedor.
As mãos dele comprimiram as de Glenda com força, e, inclinando
a cabeça, beijou-a nas faces:
— Que bom vê-la aqui, tão bem disposta! — murmurou, ainda
segurando-lhe as mãos. — É um prazer voltar para casa e encontrar
você esperando por mim. Já está em forma
agora?
— Estou ótima! — afirmou, embora sentisse o pulso acelerado, e o
coração querendo pular do peito pela simples presença de César. —
Estou muito contente por você
ter voltado. Há tanta coisa que eu preciso saber. Mas, antes,
quero lhe pedir desculpas por ter lhe dado tanto trabalho, na noite
passada. Obrigada por ter cuidado
de mim!
— Não tem de quê. — Soltou suas mãos. — Eu é que fico contente
por não ter sido nada de grave. Apenas um malestar provocado pelo sol
ou algum alimento mal cozido.
A princípio, fiquei com medo de que tivesse contraído hepatite.
Acontece muito disso por aqui, apesar do cuidado que procuramos
tomar e de todas as advertências
que fazemos...
— Ele se interrompeu, com ar preocupado, e depois deu de
ombros. — Mas não importa. Você é forte,
saudável! Portanto, será difícil contrair alguma doença. Bem
diferente
das pessoas pobres que eu... — calou-se novamente, afastandose
um pouco e repelindo a súbita melancolia. Forçando um sorriso, voltou-
se para ela e perguntou: — Você
já comeu? Ela respondeu que sim e disse:
— Eu ensinei Alberto a preparar ovos à pocher.
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— Muito bem! Então será que agora gostaria de ir nadar comigo?
— Eu adoraria... — afirmou ela, fitando as águas tranquilas do
mar, sob a luz dourada do sol quase poente. Mas gostaria .de
entrevistá-lo antes de voltar para o
balneário...
— Mais tarde — cortou ele. — Agora quero dar um bom mergulho!
Sempre faço isso quando volto de... — Deixou a frase no ar e afastou-se
na direçâo das escadas. — Vamos!
-.convidou. — Venha se trocar. Você trouxe seu maio, não é? Eu o
vi dentro da frasqueira...
Sem discutir, Glenda o seguiu na direção da casa. Afinal de
contas, não teria a chance de nadar junto com ele outra vez. Dali a dois
dias, iria embora para o Canadá
e talvez nunca mais o visse. Aquela ideia foi-lhe desagradável, e
tratou de esquecê-la. Seria uma tolice estragar aquele momento tão
bom com pensamentos ruins. O
amanhã seria o amanhã... O importante agora era viver o hoje...
E, naquele momento, ela queria apenas aproveitar ao máximo a
companhia de César.
Na praia a água estava exatamente do jeito que Glenda esperava:
gostosa e clara. Nadou ao lado de César até um dos promontórios e,
depois do banho de mar, escalaram,
divertidos, os rochedos íngremes. Pararam num pequeno platô
gramado, sobre o qual estava montada numa estrutura de aço que
sustentava as luzes de navegação. Ao lado
dessa, havia uma outra que fixava as pás de um moderno moinho
de vento, que giravam lentamente, movidas pela leve brisa. Era
provavelmente a estação geradora de
energia elétrica do farol.
— Mas é óbvio, quando não há vento, não há luz — riu César. —
Isso é típico do país. Seria péssimo se você estivesse, por exemplo, num
iate, aproximando-se do porto,
e este farol se apagasse. Não demoraria muito para o iate
encalhar nos bancos de areia e. afundar depressa.
Quando retornaram a nado, o sol desaparecia no horizonte, e
formavam-se no céu nuvens purpúreas. Do outro lado da baía, as
montanhas distantes projetavam uma sombra
escura delineada contra o verde profuso da vegetação. Das
janelas da casa, uma luz amarelada derramava-se de duas candeias
fixas à parede, debaixo da varanda.
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Novamente vestida de saia e blusa e recém-saída do banho, com
os cabelos molhados, Glenda pegou o gravador, o bloco de anotações e
uma caneta e retornou ao cais.
César já estava lá, de bermuda branca e camisa estampada.
Estava em pé, junto à churrasqueira, observando a queima do carvão. A
luz de velas ardia numa tigela de
vidro, sobre a mesa posta para duas pessoas. Assim que Glenda
desceu as escadas, Alberto apareceu atrás dela, com uma travessa de
salada e uma cesta com pãezinhos
frescos. — Preciso começar já a entrevista com você, César —
disse ela decidida. — Vejo que está cuidando do churrasco, mas acho
que isso não o impede de me responder
algumas perguntas. Depois, po-É demos usar o gravador.
— Gravador? — César voltou-se para encará-la. À luz ténue das
candeias, ela observou-lhe o rosto carregado.
— Algum problema?
— Sim. Por que quer gravar minhas declarações?
— Ora! Isso é muito comum durante as entrevistas! É beml mais
prático e, além do mais, com o gravador, é mais difícil o redator
cometer enganos.
— Mas eu não quero! — retrucou César com frieza, enquanto
erguia os bifes de um prato, na mesinha ao lado
da churrasqueira, para dispo-los sobre a grelha.
— Mas por quê? — indagou Glenda.
— Não quero que nada do que disser fique gravado para outras
pessoas ouvirem — tornou ele, com ar de poucos amigos. — Terá que se
satisfazer em me ouvir e anotar.
E tome cuidado para não cometer equívocos.
— Oh, realmente! Você está fazendo tempestade em copo d água
— Glenda irritou-se. — Ninguém mais vai escutar a gravação da
entrevista. A gravação será só para meu
uso!
— Você poderia perder o gravador, assim como perdeu a carteira.
Você mesma admitiu que é muito distraída — gracejou ele. — Quem o
encontrasse, iria ligá-lo e ouvir
a gravação.
— Mas... — Ela ia protestar, mas logo mudou de ideia. Na
verdade, não ganharia nada com isso e ainda podia pôr tudo a perder.
Está bem — suspirou, por fim, sentando-se
à mesa. Abriu o caderno de anotações, escreveu o nome dele
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na primeira linha de uma página em branco e perguntou em tom
informal: — Você nasceu nesta ilha, não foi?
— Eu não lhe contei isso em Montreal? — O tom da voz dele era
zombeteiro e o sorriso provocante. — Ah, Glenda, assim você me
desaponta! Eu estava certo de que você
se lembrava de tudo que nós dissemos anos atrás. Achei que,
naquela época, você tivesse se apaixonado por mim, e uma mulher
apaixonada jamais se esquece do que seu
amante lhe diz. — Havia na expressão do rosto dele uma
suavidade mordaz.
— Não éramos amantes em Montreal. — Desta vez ela protestou
com veemência.
— Mas bem que gostaríamos de ter sido — recordou ele com
malícia.
Aquele comentário maldoso tocou-lhe num ponto sensível e,
cerrando os dentes, ela lançou-lhe um olhar desconfiado. César, porém,
já havia voltado sua atenção para
a churrasqueira.
— Acho que está redondamente enganado — defendeu-se. — Eu
era noiva de Greg. Esqueceu?
— Casou-se com ele? — César perguntou sem olhar para ela,
enquanto virava um bife com a espátula. ,
— Casei.
— É mesmo? Então, por que não usa aliança? — Ele fez a
pergunta de chofre, estudando-lhe bem a fisionomia ao esperar pela
resposta, o corpo ágil, viril e bronzeado
voltado para ela.
— E você, por que não usa? — ela contra-atacou, erguendo o
queixo, voluntariosa.
— Nunca tive uma.
— Eu não uso aliança porque me divorciei de Greg há quatro anos
— respondeu com franqueza e um tanto desanimada.
com duas largas passadas, César aproximou-se de Glenda e,
apoiando-se na mesa, inclinou-se para ela, com um olhar cheio de
curiosidade.
— Quanto tempo esteve casada com ele?
— Oh, uns dois anos. — Glenda ergueu o ombro num gesto de
indiferença, mas não conseguiu encará-lo.
Ele estava bem próximo, irradiando-lhe calor. O cheiro de sua pele
e de seus cabelos perturbavam-na, fazendo-a
desejar
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estender a mão e tocar-lhe o joelho nu. e deslizar os de dos até o
alto de suas coxas másculas.
— Por que se divorciou? — inquiriu, suave.
— Ele não queria que eu tentasse uma realização profissional. Ou,
melhor, não valorizava o meu trabalho. Criticavame sempre que eu saia
à cata de histórias para
escrever. Achava que eu devia ficar em casa, cuidar do
apartamento, e queria me encontrar toda vez que ele chegava do
trabalho... e nem sempre isso era possível.
— Era demais pedir-lhe isso? — César interveio bruscamente. A
maioria dos homens se casa para que suas esposas fiquem em casa
esperando por eles.
— Não devíamos ter nos casado! Ou melhor, ele é que não devia
ter se casado comigo. Eu... eu não podia fazer o que ele queria. Não
devia ter concordado em me casar
com ele. Devia, primeiro, seguir minha carreira e só depois ter-me
casado. Eu sabia que era tão culpada pelo fracasso de nosso casamento
quanto ele. Mas... jamais
esperei que Greg me traísse. — Sua voz soou trémula e, depois,
extinguiu-se.
— Ele conheceu uma outra mulher? — ele deduziu.
— Sim — admitiu Glenda.
— E você ficou surpresa? — pilheriou de novo. — Mesmo sabendo
que você não era o tipo de esposa que ele queria? Quanta ingenuidade,
minha cara! Isso sempre acontece!
— Agora sei disso! Fui ingénua em pensar que ele,
compreendendo os meus anseios, acataria e aceitaria minhas ausências,
sem me trair. Afinal, muitas vezes tive que
compreender as ausências dele, e nem por isso o enganei. Glenda
estacou de súbito, rabiscando a folha do caderno. Estava um pouco
surpresa consigo mesma. Era a primeira
vez que contava a alguém a sua grande decepção amorosa... o
fracasso de seu casamento com Greg, o namorado da adolescência e
dos tempos de faculdade, que se tornara
seu marido quase que naturalmente. Talvez porque todo mundo
as famílias e os amigos — esperasse por aquele enlace.
— Estou contente por ter me contado — murmurou César,
erguendo o corpo, apoiado na mesa. — Isso altera muito os meus
planos. Agora que você está aqui, devemos compensar
todo o tempo que perdemos há oito anos atrás!
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Simplesmente porque você era noiva de Greg. — E afastouse na
direção da churrasqueira.
Perplexa pelo que acabara de ouvir, Glenda continuou rabiscando
a esmo. De repente, não conseguia se lembrar das perguntas referentes
à entrevista que queria lhe
fazer. Irritada, percebeu que a entrevistada fora ela! Confusa,
endireitou o corpo na cadeira, arrumou os cabelos por detrás das
orelhas e tentou começar:
— Você ainda não me respondeu... Nasceu aqui nesta ilha?
— O churrasco já está no ponto — anunciou ele, impassível. —
Espero que você aprecie.
— Oh, é claro que sim! Nadar me deixou faminta. Posso ajudar em
alguma coisa?
— Ajudar? — zombou ele, trazendo para a mesa dois pratos onde
colocara os bifes fumegantes. — Pelo que me contou, suponho que você
não seja muito dada ao serviço
doméstico.
— Não seja mal-agradecido! — retrucou. — Sei cozinhar muito
bem! Só não vejo por que uma mulher não possa ter outras aptidões,
depois de casada. Greg achava que
eu devia substituir a mãe dele.
— Não diga! — César colocou um dos pratos diante de Glenda e
sentou-se à sua frente. — Quer dizer, então, que não dormiam juntos?
— Claro que sim! O que estou tentando dizer é que Greg queria
que eu o tratasse como a mãe dele sempre o fizera, além de dividir a
cama com ele, é claro! — respondeu
impaciente, enquanto pegava a travessa de salada que ele
oferecia.
— Greg só estava se comportando como a maioria dos homens —
disse ele, arrastando as palavras.
— Você... está querendo dizer que também acha que uma esposa
deve ser sempre uma serviçal?
— Para mim, não interessa o que uma mulher faz com seu tempo,
desde que ela me faça sentir bem quando vou para a cama com ela —
sugeriu.
Subitamente seus olhos se encontraram, e um estranho e leve
calafrio percorreu o corpo de Glenda, apesar da noite tépida. Ao longe,
ouvia-se o murmúrio suave das
ondas, na praia, e, em algum lugar, havia alguém tocando um
violão. Ela abaixou os olhos depressa, incapaz de encarar os dele
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por mais tempo, e apanhou o garfo, mecanicamente. De algum
modo, precisava mudar de assunto. A chegada de Alberto com dois
copos e uma garrafa de vinho foi providencial.
Assim que o empregado se foi, César perguntou, sem cerimónia:
— Você gosta de Alberto? Acha-o interessante?
— Conversamos sobre beisebol — disse ela, sorrindo. Ele me
contou que seu pai vai ajudá-lo a cursar uma universidade.
— Meu pai? — César parecia confuso. -
— Sim, o dr. Estrada, como ele me disse. Seu pai não é médico?
Notei que existem muitos livros de medicina na estante.
César não fez nenhum comentário, pois estava mastigando. Em
seguida, tomou um gole de vinho.
— Pensei já ter lhe falado sobre minha família quando estive em
Montreal — disse César por fim, enquanto se servia de mais vinho.
— Tudo o que você me contou foi que seu pai trabalha para o
governo dominicano. Não me disse que ele também era médico...
— E não é! Minha mãe é médica, mas meu pai é advogado —
explicou, e logo em seguida esbravejou: — O que está fazendo?
Glenda estava simplesmente ligando o gravador. O micro— fone
ficara no meio da mesa, apontado para ele, de modo a registrar-lhe a
voz.
— Não posso escrever enquanto estou comendo — explicou,
tranquila. — E o que você vai contar sobre sua família é importante para
o meu artigo.
— Não! — César deu um berro, jogando o pequeno microfone
longe!
— O que você pensa que está fazendo? — protestou Glenda,
levantando-se, ligeira, a fim de procurar o microfone que caíra na
escuridão por entre as moitas e os arbustos.
— Já lhe disse que não quero gravações! Anote ou guarde na
memória o quê eu disser — ralhou, cerrando os dentes. — Está
entendendo?
— Não, não estou. Não pensei que você fosse tão temperamental!
— Ela dobrou um joelho para procurar o microfone
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no chão, mas ele se antecipou, e suas mãos se encontraram no
escuro. Ele estava ajoelhado como ela.
— Eu sinto muito! — desculpou-se. — Mas você me deixou
nervoso. Além disso, não gosto de entrevistas, e preferia que não
insistisse mais... Se soubesse o que têm
sido estes últimos meses... — hesitou por uma fracão de segundo,
mas, depois, completou: -... para mim...
— O que quer dizer? Do que está falando? — indagou ela confusa.
O fato de estar junto dele, em circunstâncias tão íntimas,
obscurecia seu raciocínio normalmente frio. Aquele tom doce com que
ele lhe falava induzia-a a entregar-se
e fazer tudo o que ele queria...
com medo daquele súbito impulso, Glenda libertou-se das mãos
dele, desistiu de procurar o microfone e pôs-se de pé.
— O que está acontecendo com você nestes últimos meses? — ela
perguntou, dirigindo-se a César, também já de pé.
-Gostaria de poder dizer-lhe — respondeu misterioso.
— Retornando ao seu lugar à mesa, ele retomou o copo de vinho e
pediu-lhe: — Sente-se, por favor. Termine sua refeição...
Ainda desconcertada, Glenda obedeceu, tentando entender o
motivo pelo qual César se recusava a ser entrevistado com tanta
obstinação.
Por que me convidou a vir até aqui, se você não pretendia deixar-
me entrevistá-lo? — perguntou.
— Está se esquecendo de que você é uma velha amiga, Glenda?
Além disso, queria que você viesse e ficasse aqui comigo... Queria
retribuir-lhe a hospitalidade de oito
anos atrás.
Quando terminou de comer, Glenda cruzou o garfo e a faca sobre
o prato, e olhou para ele.
— Você tem medo que sua privacidade seja invadida, não é? —
brincou. — Sei que alguns jornalistas não têm cuidado com as perguntas
que fazem e muitas vezes distorcem
a verdade. Mas este é o preço que as celebridades têm de pagar,
e você agora é uma delas, quer goste, quer não. As pessoas querem
saber tudo a seu respeito, querem
saber o que o levou a escrever este romance. É uma curiosidade
natural. Não é malevolência. Eu gostaria que mudasse de ideia e me
concedesse a entrevista, ao menos
pela nossa velha amizade. Agora
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não posso usar o gravador, pois não consegui achar o microfone
no escuro, mas ainda posso anotar suas
respostas. Por favor, César!
César curvou-se sobre ela, o rosto iluminado pela luz das velas.
Glenda também inclinou o corpo para á frente, com um sorriso
provocante e um olhar matreiro.
— Cuidado, linda mariposa — ele murmurou. — Você pode se
queimar. — César, fale sério!
— Eu falo sério. Você está linda com essa pele branca levemente
rosada e esses olhos verdes brilhantes. Prefiro fazer amor com você do
que responder suas perguntas.
Estendeu o braço e tocou-lhe a mão. Os olhos dele novamente
brilhavam como o âmbar. — Vamos fazer amor, eu e você, esta noite?
Os lábios de Glenda umedeceram, o desejo despertou em seu
corpo febril e o coração pareceu ter disparado... InstinI tivamente seus
dedos finos entrelaçaram-se
nos dele, e ela o olhou bem dentro dos olhos. Sua cabeça
começou a girar como se tivesse bebido vinho demais. Em toda a sua
vida, nunca sentira o desejo pulsar
tão forte dentro de si como naquele momento. Mais do que
qualquer outra coisa no mundo, queria responder-lhe: "Sim, quero fazer
amor com você".
Mas... "Tem sempre um mas na vida da gente...", pensou. Mas
César era casado. E essa amarga lembrança teve o efeito de um jato de
água fria em sua cabeça. De repente,
tensa, Glenda retraiu a mão.
— Não! — disse-lhe com frieza.
— Você não está sendo sincera — ele murmurou.
— Estou — assegurou ela.
— vou provar a você que não. — Empurrou a cadeira para trás. —
Mas agora está na hora da sobremesa. Salada de frutas! Gosta?
Depois da sobremesa, tomaram um saboroso café dominicano e
um licor.
Após juntar os pratos usados, César subiu de um salto os degraus
que levavam à varanda. Embora a distância, GlenI da ouviu-o chamar
por Alberto...
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CAPÍTULO IV
Glenda deixou-se ficar estática na cadeira, não acreditando nas
próprias emoções. Tudo aquilo não podia ser real. Devia ser uma ilusão,
uma alucinação provocada
por aquela noite suave e tropical. A música romântica de um
violão, ao longe, o sussurro sensual das palmeiras, o murmúrio das
ondas batendo languidamente nos rochedos,
a luz do luar sobre a superfície do mar, toda aquela atmosfera era
um convite ao amor!
Uma mulher vivida como ela, desapontada com um casamento
prematuro e frustrado, fruto de um namoro de adolescentes, não podia
ser tão idiota assim! Estava sendo
irracional... quase a ponto de entregar-se à sedução sutil de um
homem experiente e sofisticado como César. Oito anos atrás,
apaixonara-se perdidamente por ele.
Entretanto, oito anos era muito tempo!
Agora só poderiam curtir uma boa e maravilhosa amizade. Mas o
que fazer, se o sangue fervia em suas veias? Se tudo que desejava era
abandonar-se aos prazeres da
paixão... . Não era a primeira vez, desde que seu casamento com
Greg se dissolvera, que tinha recebido a proposta de um homem para
irem para a cama, mas havia sido
muito fácil recusálas, pois nenhum dos candidatos despertara a
menor atração...
Agora era diferente! Naquela noite, se César a convidasse outra
vez para dormir com ele, talvez ela não resistisse ao calor da paixão
sufocada em seu íntimo, momentos
atrás. Fisicamente, ele a atraía como nenhum outro homem
jamais o fizera nem mesmo Greg. Desejava ardentemente tocar César,
acariciá-lo e estar junto dele. Esse
mesmo desejo Glenda experimentara-o anos atrás, no último
encontro com César. Entretanto, havia prometido casar-se com Greg.
Naquela noite, porém, aquele sonho do passado poderia
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se transformar em realidade. Só que, agora, o empecilho era, a
esposa de César.
Parecia um jogo cruel do destino, uma armadilha que a vida lhes
preparara, um desencontro sem fim...
Como poderia tomar um homem de outra mulher, assim como
Antoinette tomará-lhe Greg? Jamais! Seu sonho de amor continuaria
sendo apenas um sonho.
Suspirando, Glenda voltou a atenção para o seu caderno e
começou a anotar as poucas informações que César lhe havia dado.
Nascido na República Dominicana. Pai: um
advogado, funcionário público. Mãe: formada em medicina. Parou,
indecisa, com a caneta no ar, franzindo a testa, ao se lembrar dos livros
médicos na estante e do
nome escrito em um deles: Rafael...
César voltou trazendo uma bandeja que pôs em cima da mesa. O
aroma do café recém-preparado exalava de um pequeno bule.
Solicito, colocou um prato com salada de frutas diante de -Glenda
e encheu duas xícaras de café.
— Em que ano você nasceu? — ela foi logo perguntando,
determinada a ocultar seus pensamentos por detrás de um frio interesse
profissional. E pretendia partir tão
logo obtivesse os dados necessários.
— Mas Glenda, você sabe minha idade! Eu devo ter lhe contado
em Montreal.
"Por que ele insiste em evitar minhas perguntas?", indagou-se ela.
"Talvez realmente não goste de ser entrevistado. Ou..." A suspeita
surgiu e se espalhou rápida em sua mente...
"tallvez esteja me escondendo algo..."
— Tudo bem — exclamou Glenda, sem se alterar. — Se você não
quer me dizer, vou tentar adivinhar. Está com trinta e seis anos.
Acertei?
— Se é o que acha... — respondeu irónico.
Glenda comprimiu os lábios com firmeza, recusando-se a se deixar
vencer.
— E seu pai? Ainda trabalha para o governo?
— Não. Aposentou-se. — Ele encolheu os ombros, como se
considerasse a informação sem importância.
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— E quanto a sua mãe? Ainda está viva? Estudou medicina neste
país?
— Sim, ainda está viva. Meu pai também. Estão casados há
tempos e se dão muito bem. Minha mãe não estudou aqui. Ela é de
origem americana, nasceu em Milwaukee, no
Estado de Wisconsin. Veio para cá com um grupo de jovens
médicos para trabalhar como voluntária num hospital recém-construído,
isso já faz tempo! Recebeu ajuda financeira
dos Estados Unidos. Então, conheceu meu pai, se gostaram e
casaram. — César lançou-lhe um outro olhar zombeteiro e passou a
mão pelos cabelos. — vou simplesmente
acrescentar um detalhe para os seus leitores mais românticos.
Minha mãe é tão responsável pela cor de meu cabelo como aquele pirata
inglês do qual já lhe falei.
Ela é alta e loira, com aparência de escandinava. Seus ancestrais
emigraram da Suécia para a América, no século passado. vou lhe dizer
inclusive o nome dela: Ingrid
Jensen. Por aí você vê que sou uma mistura de norte e sul, de
claro e escuro, e minha crença está na livre expressão do pensamento e
no amor livre. É uma herança
de meus antepassados escandinavos, sempre em conflito com a
possessividade ardente, herdada de meus antepassados espanhóis. É
difícil conviver com esse temperamento.
Mas chega, por enquanto. Pare de rabiscar e coma sua salada de
frutas. Seu café já está frio...
Glenda fez o que ele disse: pôs a caneta de lado para pegar a
colher de sobremesa. A salada de frutas, com pedaços de abacaxi,
laranja e banana, estava deliciosa,
e o café, apesar de morno, era estimulante.
Comia e bebia em silêncio, refletindo sobre o que acabara de
ouvir. Aqueles detalhes a respeito da mãe dele e o temperamento
descrito não transpareciam no livro
de César. O romance que escrevera não revelava absolutamente
nada sobre si mesmo, limitando-se apenas a fazer uma análise objetiva
dos tipos latino-americanos mais
comuns. Intrigada, ela tornou a pegar a caneta.
— Você não me falou do tempo em que sua mãe viveu em
Montreal. Tem irmãos ou irmãs?
— Só um irmão — respondeu, lacónico.
— Morou em Santo Domingo, quando menino? Frequentou a
escola local?
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— Amanhã, talvez.
— O que disse? — Olhou para ele, confusa.
César estava recostado na cadeira e acendia um charuto entre os
lábios com a mão direita.
— Talvez eu lhe conte mais amanhã — esclareceu. — Agora já não
tenho vontade de responder mais nenhuma pergunta. Para dizer a
verdade, acho que todo esse interrogatório
está sobrecarregando demais minha imaginação. Inventar
histórias não é realmente meu forte. — Deu uma risada gostosa.
— Mas você é um romancista — argumentou Glenda. Inventar
histórias, ou melhor, transformar os fatos em ficção é a sua profissão.
Não pare, por favor, responda o
resto das perguntas agora. Eu... eu não posso ficar até amanhã.
Preciso voltar ao hotel esta noite.
— Responderei o restante das questões amanhã, com a condição
de que passe a noite aqui comigo. É este o preço que terá de pagar se
quiser me entrevistar. -
César inclinou-se para ela e acrescentou com voz suave: — Você
vai ficar, Glen da, e vamos tornar real aquele sonho do passado, quando
éramos jovens e honestos demais para praticar o amor livre...
Mais uma vez aquela excitação lhe
fervia o sangue. Aquela chama tranquila no olhar de César e a
ligeira curva ascendente
no canto de sua boca incomodavam-na. Eram uma tentação para
que concordasse em passar a noite com ele e, quem sabe, atingir
alturas vertiginosas de um êxtase
desconhecido. A educação que recebera e a experiência
desapaixonada com Greg haviam-na levado a crer que o êxtase
proporcionado no ato do amor fosse apenas um
mito, criado pelos românticos.
— Não posso ficar. E nem fazer o que você quer que eu faça —
respondeu ela, lutando contra o desejo de amá-lo e possuí-lo com todos
os sentidos. — Também não estou
disposta a pagar o preço que me pede pela entrevista. vou me
arranjar com as informações que já tenho e basear-me no conteúdo do
seu livro. — Empurrou a cadeira
para trás e levantou-se. — Deixei um bilhete para minha amiga
Ida, dizendo que se eu não voltasse ontem à noite, eu estaria em casa
hoje, sem falta. Se eu não aparecer,
ela vai ficar preocupada. Agora, por favor, seja gentil e leve-me
para o hotel. César,
peço-lhe pela nossa amizade!
43
Ele também ficou de pé e esmagou o charuto no cinzeiro.
Lentamente, contornou a mesa. Alto e ereto, postou-se diante dela, com
aquele brilho de âmbar nos olhos.
— Nossa amizade não é suficiente para me convencer a levá-la de
volta ao hotel. — Ele estava aparentemente tranquilo, mas seu tom de
voz era enérgico. — Você vai
ficar aqui esta noite. Não desejo ser seu amigo, apenas. Quero ser
seu amante também. Era o que eu queria, da última vez que nos vimos,
mas não houve tempo, nem
oportunidade. Agora temos ambos! E não vou permitir que volte
para o hotel ou mesmo para o Canadá sem primeiro fazermos amor.
— Mas... mas Ida... — balbuciou Glenda.
— Esqueça Ida — insistiu, segurando-lhe as mãos e tocando-lhe
com os lábios as palmas febris. — Sua amiga não vai ficar preocupada
com você. Hoje cedo, enquanto
você dormia, peguei o carro e fui até o hotel avisar a gerência que
você só retornaria no domingo de manhã, antes de seguir para o
aeroporto e embarcar no voo para
Toronto. Pedi permissão para ir até seu quarto e, por sorte, Ida
estava lá. Ela prontificou-se a arrumar a mala para você, quando eu lhe
contei sobre o seu mal-estar
imprevisto. Mandou-lhe um bilhete dizendo para você se cuidar e
aproveitar ao máximo sua estada aqui comigo.
Dito isso, César começou a atraí-la para si, e, completamente
atónita com o que acabara de ouvir, Glenda nem percebeu.
— Portanto — prosseguiu ele -, vamos aproveitar ao máximo
esses dois dias, juntos. Vamos ter um caso... Um caso complicado,
difícil, cheio de desencontros, adiado,
ansiosamente esperado... mas o melhor caso de amor!
— Não, não vou ter caso algum! — exclamou ela, irritada,
desprendendo-se dele abruptamente.
— Não acha que já perdemos muito tempo? — O hálito dele
envolvia-lhe os lábios, tentadoramente. — Beije-me, Glenda! —
murmurou. — Sei que você quer me beijar...
Beije-me e mostre-me, assim, que perdoa-me por ter planejado
prendê-la comigo, esta noite. Confesse que também me deseja tanto
quanto eu!
Não era um apelo. Na verdade, César ordenava-lhe, doce e
gentilmente, que ela o beijasse. Instintivamente, Glenda entreabriu
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os lábios, deixando-se envolver por aqueles braços fortes. Queria
sentir o contato excitante da língua dele, e, então, cingiu-lhe o rosto
com as mãos, trazendo
os lábios de César para junto dos seus. Assim que sentiu o contato
firme e quente daquela boca sensual, ela deixou transbordar toda a
paixão que reprimira e guardara
dentro de si por tanto tempo! Impulsivamente, seus dedos finos
foram subindo até os cabelos grisalhos espessos e rijos.
Abrasado por aquele fogo inesperado, César ofegou, entregando-
se àquele beijo avassalador. Abraçou-a com mais força, comprimindo o
corpo másculo contra o outro,
macio e curvilíneo, até fazê-la sentir a rija virilidade dele, através
do tecido fino da saia.
Por um momento sublime, Glenda se perdeu naquele redemoinho
de estranhos desejos, apenas envolta nas sensações sutis que
percorriam todo seu corpo. O calor físico
que transbordava dele transpassava-lhe a finura da saia,
irradiavase através de sua blusa, queimando-a. O gosto doce de sua
boca mesclava-se ao travo do tabaco.
Sua língua infiltravase, impertinente, demorando-se ali, num
duelo terno e torturante. Agarrou-se nos cabelos encaracolados, os
seios endurecidos colados ao peito
largo.
Entretanto, lento e insidioso, um pensamento insinuou-se na
mente de Glenda: César era casado. Pertencia a outra mulher, assim
como um dia Greg havia pertencido
a ela. Até aparecer Antoinette Lavallée.
Toda a paixão esfriou por completo. Afastou os lábios dos dele,
abriu os olhos e desprendeu-se daquele abraço, dando um passo atrás.
Ereto e imóvel, César a fitava com ar inquiridor. O cabelo prateado
formava um halo sobre o rosto ensombreado, à luz das velas.
— O que houve? — perguntou, franzindo a testa.
— Nada — mentiu Glenda, recuando em direção à mesa.
— Não minta! Não pense que sou tão insensível a ponto de não
perceber que você ficou fria de repente. Talvez não tenha apreciado o
jeito como retribuí aos seus beijos...
Ou será que você gostou, mas se arrependeu, com medo de se
comprometer, de ir até as últimas consequências?
— Não. Não é isso! Eu... eu só me lembrei de uma coisa...
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— — murmurou sem refletir. Mas, na realidade, estava com medo
de se comprometer, sim, com medo de ir até o fim e, depois, se
machucar.
— O quê? — Ele tomou-lhe o braço com rudeza, forçandoa a
encará-lo. Os olhos dele tinham um brilho penetrante;
— Do que foi que se lembrou?
Ela respirou fundo, engolindo em seco. Precisava dizerlhe a
verdade. Não conseguia mentir quando ele a olhava assim.
— Lembrei-me de que você é casado — desabafou com franqueza.
— E isso faz diferença para você? — Havia na voz dele um misto
de desdém e surpresa, como se não acreditasse nas palavras .dela.
— Faz muita diferença, sim!
Subitamente, César afrouxou a pressão sobre o braço de Glenda,
e seus dedos recomeçaram a acariciar sedutoramente a pele macia,
enviando-lhe suaves mensagens eróticas
e, fazendo-a estremecer involuntariamente de um doce prazer.
— Por favor, pare com isso! — ela sussurrou, retraindose. — Não
quero que me toque. Não posso fazer amor com o marido ou o
namorado de uma outra mulher. É... é um
principio que tenho.
— Mesmo quando está apaixonada por esse marido ou namorado?
— ele desafiou.
— Mesmo assim — assegurou, de cabeça erguida. — Além do
mais, não estou apaixonada por você.
— Aposto que sim — ele retrucou, e seu sorriso ameaçou pôr a
perder o controle que ela estava tentando impor a si mesma.
Gentilmente, César tocou numa mecha dos cabelos dela,
enrolando-a em seus dedos.
— Acontece que eu estou apaixonado por você, minha doce e
deliciosa puritana.
— Oh, não! Não acredito! — gritou. — Não sente remorsos com
relação à sua mulher? Se eu tivesse adivinhado que isso iria acontecer,
não teria aceitado seu convite
para vir aqui. Também pensei que houvesse outros convidados e
que não ficaríamos a sós.
46
— Tem Alberto! — Ele estava se divertindo com a situação.
— Você precisa entender que não posso e não vou ficar aqui com
você.,Deixe-me ir.
Um golpe rápido no pulso com o lado da mão o fez soltarlhe o
cabelo. Em seguida, Glenda subiu às carreiras os degraus da escada.
Não estava realmente certa do que
estava fazendo, mas tinha de escapar da forte atráção que sentia
por ele. Atravessou a varanda e precipitou-se pela sala adentro. No
corredor, à direita, correu
com uma flecha até chegar ao quarto. Ali, a escuridão era cortada
pela luz de um dos lampiões da varanda. Entrou rápido e, tropeçando
em um objeto largado no chão,
perdeu o equilíbrio. Ao estatelarse no chão, feriu o tornozelo.
Ainda estava tentando levantar-se quando uma luz repentina
dispersou as trevas. Era César que estava ali, parado à porta, e que
acabara de acender a luz.
— O que foi isso? — ele gritou, aproximando-se e ajoelhando-se
ao lado dela.
— Eu tropecei nisso! — explodiu com raiva, apontando para a
frasqueira que deixara cair bem no meio do caminho.
— Você se machucou?
— Levei uma pancada no tornozelo.
— Deixe-me ver.
— Não! — ela recusou com veemência, erguendo-se sozinha.
Pondo-se também de pé, ele sorria irónico.
— Ah! Você não quer que a toque... Mas, então, por que veio para
o quarto?
— Vim buscar minhas coisas. Quero ir embora agora mesmo!
— Quer ir realmente embora sem terminar a entrevista? .Mas que
tipo de jornalista é você?
— Infelizmente, tenho que interromper meu trabalho porque não
estou disposta a dormir com o entrevistado — ironizou ela, agressiva.
— E como pretende voltar agora à noite para o hotel? indagou,
avançando furtivamente para ela, corri um olhar maldoso.
— Eu... eu vou a pé para a cidade — ela respondeu sem pensar,
retraindo-se. — A menos que você seja gentil e me
47
leve de carro até o hotel mais próximo, no promontório. Posso
pernoitar lá.
— Só que eu não sei ser gentil. — Ele sorriu, manhoso como um
gato, e ainda avançando para ela. — Sei apenas que estou apaixonado,
ardendo de desejo por você...
— Oh, não seja tolo — ela balbuciou. — Não é verdade!
— Mas eu lhe garanto que é. Deixe-me mostrar-lhe o que sinto. —
Ele se moveu ligeiro, estendendo os braços e agarrando-a.
Quando os lábios de César cobriram os dela com arrogância,
Glenda não se sentiu ofendida. Nem mesmo quando a língua dele
explorou, com possessividade, a maciez de
sua boca de forma cada vez mais atrevida.
Na verdade, ela estava gostando do jeito como César a beijava,
como se a desejasse mais do que a tudo no mundo. As mãos calorosas
percorreram-lhe a espinha com sofreguidão,
até chegar nas nádegas. Sentindo-o ficar cada vez mais excitado,
ela também se excitou, retribuindo-lhe os beijos, toda entregue àquele
prazer alucinante.
— Não devemos fazer isso — disse ela, ofegante, mas seus lábios
a traíram, pois retribuíram aos beijos dele com intensidade cada vez
maior e com igual carinho.
— Pôr que não, se nós dois queremos? — insistiu César, calmo e
seguro.
— Você é casado! — disse Glenda fracamente, tentando livrar-se
dos braços fortes e abrasadores. — Por favor, pense em sua esposa...
Como ela se
sentiria se soubesse
que estou aqui com você?
— Não acredito que você realmente se importe com o que minha
mulher sentiria... Você também me quer! Então, por que se importar
com ela?
— Porque eu sei o que é estar numa situação dessas. Sei o quanto
é duro uma traição... Foi por isso que eu me divorciei de Greg. Não
quero o que eu passei para ninguém!
Uma expressão de impaciência anuviou o rosto de César.
Deixando cair os braços ao longo do corpo, ele abriu a boca para dizer
alguma coisa, mas mudou de ideia. E,
sacudindo a cabeça, desanimado, virou as costas e caminhou para
a porta.
Trémula e confusa, Glenda oscilou entre o alívio e o
desapontamento.
48
Sentou-se depressa na cama, sentindo-se profundamente infeliz.
Queria ir atrás dele, atirar-se em seus fcraços e convidá-lo a fazer
amor... Por um
instante, César hesitou no umbral da porta e voltou-se para olhá-
la mais uma vez. Novamente, quis dizer fcualquer coisa, mas não disse.
Apenas ficou parado,
olhando...
Depois, lentamente, retrocedeu e veio sentar-se na cama, ao lado
dela. Tomou-lhe a mão delicada e a beijou. A expressão do seu rosto
era sombria e séria, quando
ele ergueu a cabeça para fitá-la.
— Acreditará em mim se eu lhe disser que meu casamen to
significa tão pouco quanto o seu? E que, se fizer amor
comigo, não estará magoando ninguém? — Então seu casamento
acabou? — ela indagou, esperancosa, estudando as feições dele.
— Na verdade, ele nunca começou. — Ele fez um trejeito
engraçado com o canto dos lábios, e a sombra do desprezo velou seus
olhos.
— Está querendo dizer... — Ela se interrompeu, embaraçada, mas
corrigiu-se em tempo. — Lamento que seu
casamento não tenha dado certo...
— Não tem do que se lamentar. Apenas achei que devialhe uma
explicação. Isso faz alguma diferença para você? Ele ergueu lenta e
pesadamente as pálpebras e olhou-a
bem
dentro dos olhos.
, Uma onda de calor invadiu o corpo de Glenda. Parecia possuída
de um outro acesso de febre, mas uma febre diferente, inebriante! Todo
o seu corpo pulsava e doía
de desejo sexual. Lambeu os lábios ainda úmidos dos beijos dele,
e os ofereceu a César.
— Sim. Isso muda tudo... — murmurou.
— Você ainda está apaixonada por Greg? Não tem nenhum
namorado a sua espera no Canadá?
— Não, não tenho nenhum namorado — afirmou Glenda, cedendo
ao impulso de tocá-lo outra vez. Suavemente, ela delineou com o dedo
o formato dos lábios, a linha do
seu queixo viril. Depois escorregou a mão delicada pelo pescoço,
insinuando-a por dentro da camisa. Percebeu-lhe as batidas rápidas do
coração.
— Você é muito bonita para viver sozinha, Glenda. Precisa
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ter alguém. Eu quis ser seu namorado, anos atrás, e teria sido, se
você me olhasse desse jeito uma única vez... sussurrou ele, mordendo-
lhe de leve o lóbulo
da orelha.
— Oh, eu desejei tanto isso! — ela gemeu.
Agora nada mais importava... Passou os braços em volta dele,
acariciou-lhe a nuca, enredando os dedos nos cabelos grisalhos e
brilhantes.
Ardendo de paixão, ele tocou os bicos palpitantes e excitados dos
seios redondos de Glenda, por cima da blusa.
— Então, vai me deixar fazer amor com você, agora? perguntou
César, esfregando o rosto levemente áspero na face delicada.
— Sim, sim! — Foi só o que Glenda disse, completamente
desarmada.
Ela teve um rápido vislumbre da expressão do rosto dele
carregado de desejo, antes que César a beijasse novamente, enquanto
a deitava sobre as almofadas da cama.
— Senor! — Do lado de fora, Alberto chamou em voz alta. —
Venha depressa!
Pego de surpresa, César ergueu a cabeça e, num segundo, pôs-se
de pé, saindo apressado. Glenda não viu Alberto e supôs que estivesse
no corredor. Ainda aturdida,
ouviu a voz metálica de César perguntar alguma coisa em
espanhol.
Em seguida, ele desapareceu...
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CAPÍTULO V
Ao ver-se sozinha em seu quarto, Glenda pulou para fora da ama,
ajeitou os cabelos para trás e espiou o corredor.
Cesar estava voltando, com uma expressão preocupada.
— Oh! O que há? O que está acontecendo? — ela perguntou.
— Nada de grave! — respondeu ele com frieza, mas segurando-lhe
as mãos. — Tenho de sair um instante, mas
você Promete que vai ficar, Glenda! Promete que não...
— ão vou fugir. Estarei aqui quando você voltar.
— Gracias — falou com ardor, beijando-lhe as mãos antes de sair.
Pouco epois Glenda ouviu o ruído do motor do caminhão dando a
partida. Não viu nem sinal de Alberto, o que a fez acreditar que ele tinha
saído com César.
De repente, a casa parecia muito vazia sem a presença dinâmica
de César. E, para espantar a monotonia, ela
resolveu dar uma volta até o cais. O ar quente a envolveu,
acariciando-lhe a pele. No entanto, apesar do calor, sentia
arrepios de frio. Alberto tinha arrumado e empurrado a
meSa para um canto. Glenda sentou numa espreguiçadeira
e se encostou no espaldar. Bem no alto, no céu a lua brilhava,
bainhando tudo com sua luz diáfana. De longe, do outro lado da
praia, ouvia-se o som de uma musica romântica.
"Onde teria ido César, e por quê?", Glenda perguntou se Alguma
coisa importante devia ter ocorrido para
arrancá-lo dela. Justamente quando estavam prestes a fazer
amor... Teria algo a ver com a família dele, ou, então com a
esposa? Respirou com dificuldade, aturdida por mil
ideias. Talvez ele estivesse mentindo, ao dizer-lhe
que não era mais casado Na verdade, César não tinha dito nada
de concreto... Oh,
Deus! Ele apenas dera a entender que não pertencia a outra
51
mulher, e que seu casamento nunca acontecera, realmente... Daí
ela havia concluído que ele estava livre.
Lembrou-se do sorriso um tanto cínico de César, como se
estivesse se divertindo com o que estava lhe contando. A suspeita foi
crescendo no coração de Glenda e dilacerando-a
por dentro.
com o semblante expressando tristeza infinita, Glenda endireitou-
se na cadeira. Arqueou os joelhos, rodeou-os com os braços e
descansou o queixo sobre eles. Não
havia nem sombra do desejo sexual que experimentara momentos
antes no quarto... Só sentia um latejar nos pulsos e uma dor aguda bem
profunda.
Por que César tinha aparecido em sua vida? Para frustrála
eternamente, negando-lhe o seu amor... lamentava-se. Mas, ao mesmo
tempo, ela ansiava por que ele retornasse
logo, a tomasse em seus braços e a beijasse com todo aquele
ardor. Nem Greg, nem qualquer outro homem fora capaz de excitá-la a
tal ponto! Pois, se houvesse um outro
homem capaz de tanto, ela não estaria agora ali, naquele cais,
esperando por ele com tamanha aflição.
Ainda ficou muito tempo sentada pensando em César. Ele
representava uma espécie de enigma... Quanto mais misterioso, mais
tentador! A princípio ela o imaginara um
homem discreto e tímido. Mas, depois, percebeu que as
lembranças que tinha dele há oito anos eram bastante obscuras.
Estavam sempre cercados de outras pessoas, em
festas e bailes, e só por duas vezes haviam conseguido ficar
sozinhos. Esses momentos eram os mais nítidos na sua memória. Os
únicos que ela conservara na lembrança
durante anos e anos... Via-o, então, como uma pessoa dinâmica,
sempre seguro de si, abjetivo e um tanto sonhador. Exatamente como o
César atual.
De repente, Glenda se apercebeu que fazia duas ideias
completamente distintas a respeito da personalidade de César. Seriam
dois homens fisicamente iguais? com os
mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cabelos cor de prata?
Não era possível! A menos que fossem gémeos...
Glenda riu, sozinha, do seu excesso de imaginação. Se houvesse
irmãos gémeos na família Estrada, ela saberia, claro! Além disso, ambos
não poderiam ter o mesmo nome.
Afinal,
52
o próprio César havia admitido que possuía uma espécie de dupla
personalidade pelo fato de seu pai ter origem espanhola e a mãe,
escandinava. Isso explicava
perfeitamente várias facetas do comportamento dele. Sem dúvida!
Já passava das onze horas, quando César finalmente voltou para
casa. Glenda estava deitada, no escuro, com o ventilador ligado, por
causa do calor. Não conseguia
conciliar o sono. Viu-o entrar no quarto como o vento que ela
estivera esperando.
Calmamente, ele aproximou-se da cama e sentou-se ao lado dela.
— Você estava dormindo? — ele perguntou.
— Não! Estava apenas tentando pegar no sono, mas está tão
quente! Mesmo com o ventilador...
— Então, por que não tira essa roupa? — Bateu os dedos de leve
na camisola curta, de algodão. -; Numa noite dessas, melhor é dormir
sem nada... — Ergueu-se da cama
e, com movimentos ligeiros, tirou a camisa, jogando-a para o
lado. Depois deixou cair o short, mostrando a cueca sexy. E, voltando-
se para ela, estendeu-lhe a mão.
Quando se tocaram, uma corrente elétrica transpassou pelo corpo
de ambos e ele a envolveu em seus braços. Então, famintos, seus lábios
se buscaram em beijos ardentes.
— Sinto muito por ter sido obrigado a deixá-la.... ele murmurou,
com o rosto colado ao dela. — Você ainda me quer?
— Sim, quero — respondeu tímida.
Debaixo das suas mãos, Glenda sentia o calor de sua pele
máscula, molhada de suor, e o cheiro de mato que desprendia de seu
corpo.
— E eu quero você — disse ele sofregamente, e mais uma vez os
seus lábios se apossaram dos dela.
Quando o beijo terminou, César tomou-a pela mão e a levou para
o banheiro. Persuadiu-a, entre caricias, a desfazer-se da camisola para,
juntos, entrarem no chuveiro.
Debaixo da água morna, ensaboou-a gentilmente com um
sabonete de essência de flores, caçoando da timidez dela diante de
tanta intimidade. Propositalmente, ele prolongava
o contato das mãos em pontos mais vulneráveis, de preferência
em seus seios.
53
— Agora é a sua vez — pediu, com voz suave entregando o
sabonete a
Glenda— — NeSte jogo sensual do amor, você precisa aprender a
receber, a acariciar e ser
acariciada, numa deliciosa trocade prazer. Sabe, apesar de ter
sido casada, percebe-se quevocê é inexperiente. Sua ingenuidade me
excita tanto que tenho vontade
de possuí-la aqui mesmo, neste momento. Masquero mUito mais
do que isso... Quero que você também me seduza Mas, agora, mostre-
me o que sabe fazer!
Glenda sentia todo seu corpo ardendo de desejo, provocado pelas
carícias
dele e também estimulado pela ducha do chuveiro. Contemplou o
físicO de César quando ele
lhe voltou as costas largas e reluzentes. Nos quadris magros, as
nádegas
nuas. Então, pos-se a esfregar-lhe o sabonete na pele, surpresa
consigo mesma por se encontrar
numa situação tão íntima.
— Use sua imaginção querida — murmurou César, voltando a
cabeça e falando
por cima do Ombro. — Faça por nós dois uma experiência
inesquecível!
Enquanto as mãos se moviam ritmadamente pelo dorso dele,
Glenda sentiu
uma reação intensa bem no fundo de seu próprio corpo. Estava
tão excjtada que nem percebeu
quando o sabonete escorregou de suas mãos. Apenas continuou a
tocar nele, deslizando os dedos finos pelo corpo másculo à vontade.
Lentamente çésar foi se virando para ela.
— Continue! — ele suplicou, deliciado.
Daí em diante, Gleada sentia-se submersa pela esmagadora
torrente de desejo. Suas mãos tornaram-se cada vez mais audaciosas e
exigentes. Encorajada pelas palavras
carinhosas que César murmurava em seu ouvido e pelas carícias
que ele lhe fazia, ela perdeu toda a timidez e começou a beijá-lo,
inteirinho. Ele gemia, sufocando
os gritos de prazer em sua garganta.
No auge do prazer, ela entregou-se toda quando ele a tomou nos
braços,
como a uma sereia escorregadia, e a possuiu. Enquanto moviam-
se um de encontro ao outro,
não pensaram em mais nada, além do gozo intenso que estavam
sentindo.
Os dois em pé ali Debaixo do chuveiro chegaram afinal ao clímax
delicioso,
pleno e total... Quando seus corpos se separaram,
54
um pensamento triste veio perturbar a mente de Glenda: no
domingo ela voltaria ao Canadá, e César ficaria para trás, para sempre!
Mais tarde, vestindo apenas um robe, Glenda dirigiu-se com César
até a varanda, onde havia uma ampla rede de dormir, de tecido grosso,
e sobre a qual havia almofadas
macias. ali lua brilhava no céu azul-escuro e ouvia-se, ao longe, o
sorri de violões e tambores.
— É a banda de discoteca do hotel — disse César, olhanB do a
baía tranquila.
— Lembra-se da discoteca na rua St. Paul, na parte velha de
Montreal, onde íamos todos dançar? — ela indagou, quando se deitaram
lado a lado, na perigosa intimidade
da rede de balanço. — Eu achava você o melhor dançarino do
lugar.
Na verdade, nunca havia dançado com ele, mas se lembrava de
tê-lo admirado, dançando, na pista.
— Se você me achava bom, os outros, então, deviam ser muito
ruins — ele replicou, num tom de zombaria. Acaricioulhe o rosto, depois
deu-lhe um beijo rápido e carinhoso.
Não vamos pensar no passado. Vamos pensar que estamos
finalmente juntos, aqui e agora.
— Você... você não se lembra daquela discoteca? — ela insistiu
num murmúrio. Aquele pensamento maluco
sobre haver mais de um César, de repente, voltava-lhe à mente.
Teria notado um certo embaraço nele? Ou era apenas imaginação?
Mas, no instante seguinte, ele falou, com toda naturalidade:
— É realmente importante para você se eu me lembro ou não?
Não é o momento presente o que nos interessa agora? Nós fomos feitos
um para o outro, querida. Você é
a única mulher a quem amei, a única.que eu desejei que fosse
minha para sempre.
. — Então, por que se casou com outra?
Como resposta ele a beijou novamente, enquanto a rede
balançava mansamente para lá e para cá. Sem pensar em mais nada,
Glenda agarrou-se a César sem pudores, apalpandoo,
atrevida. Rindo, ele foi mudando de posição, até ficar debaixo
dela. A rede continuava no seu balanço doce e excitante.
— Nós vamos cair! — ela exclamou, arquejando.
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Habilidosamente, César abriu-lhe os botões do robe e deslizou as
mãos furtivamente pela pele macia e cheirosa, detendo-se na altura dos
seios.
Uma agradável excitação reacendeu todos os sentidos de Glenda,
acrescida pelo clima romântico que os envolvia. Seus olhos refletiam a
luz do luar quando César lhe
sorriu, roçando depois os lábios nos bicos dos seios.
Agora a sensação era de estar sendo devorada pelas chamas. com
a respiração entrecortada, Glenda não conseguia mais resistir. A.
necessidade dê possuir e ser mais
uma vez possuída queimava-lhe as entranhas.
Pela primeira vez na vida, ela queria amar sem se preocupar com
as consequências. Apertou-se contra César, correspondendo à volúpia
dele e às suas carícias, cada
vez mais estimulantes. Docemente, ele lhe sussurrava palavras de
amor ao ouvido.
Quando César a penetrou ternamente, ela deu um grito súbito e
abafado de prazer. O balanço da rede os excitava ainda mais, mas os
movimentos de César eram brandos
e sem pressa. com sutil delicadeza, ele esperou que ela atingisse
o clímax para, depois, gozar de igual delírio.
com ternura, ambos sussurraram um para o outro a felicidade que
sentiam, bendizendo a sorte de terem se reencontrado. Lá embaixo, as
ondas batiam nas pedras mansamente,
e a lua brilhava, serena, no céu de anil.
Discreta e harmoniosa, a rede balançava...
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CAPÍTULO VI
Na mata, ouviam-se os gritos dos macacos e papagaios. O céu
estava azul-claro e o sol brilhava. As ondas lambiam as areias da praia,
enquanto o vento soprava as
folhas verdes das palmeiras.
Glenda acordou na rede, que balançou primeiro para um lado,
depois para o outro. Ainda sonolenta, ela esfregou os olhos com a palma
da mão e fez um esforço para
endireitar o corpo. Tinha a impressão de ter despertado com o
chamamento de uma mulher.
A lembrança da noite passada veio-lhe de súbito à mente, e ela
sorriu, divertida, com a ideia excêntrica de fazer amor na rede. Por duas
vezes, ela e César tinham
sido lançados para fora do precário leito, ou caído um por cima do
outro. Tinha sido uma maravilhosa, se bem que hilariante, noite de
amor.
Reparou, porém, que havia mesmo alguém na casa chamando em
espanhol. com o robe semi-aberto, Glenda pulou, rápida, para o chão,
procurando se recompor. Sentia-se
ótima nas nuvens, e não via a hora de estar novamente com
César, para irem nadar juntos, com equipamentos de mergulho, talvez
depois da entrevista, era claro!
Passou os dedos pelos cabelos emaranhados e, quando já estava
na entrada do pátio, viu uma jovem se aproximar.
— Ao ver Glenda, a mulher estacou, surpresa, arqueando as
sobrancelhas negras e arregalando os olhos castanhoescuros,
— Quem é você? — perguntou em espanhol. Passado o impacto
inicial, os olhos se estreitaram e a boca, vermelha como uma papoula,
abriu-se num sorriso generoso. -
E onde está Rafael? — acrescentou.
— Eu... sou Glenda Thompson — respondeu ela, afastando, com
um certo nervosismo, os cabelos da testa.
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A outra mulher era alguns anos mais jovem do que Glenda. Era
esbelta e espigada como uma haste de salgueiro. Vestia
uma túnica que Glenda achou espalhafatosa com
grandes flores vermelhas salpicadas sobre um fundo verde-escuro,
decote em V e mangas compridas, que lhe realçava o porte. Tinha
pele clara, e seus cabelos longos
e exuberantes, penteados para trás chegavam até o meio das
costas. Ah é americana, então? Bem, eu falo inglês. Sou Rosário
Revês— Vim procurar Rafael para saber
se ele vai ao hotel esta noite, vou estar lá dançando. A dança é
minha profissão — E numa atitude espontânea, Rosário esboçou alguns
passos de dança, tamborilando
no piso com os sapatos pretos de salto alto. com os braços
levantados sobre a cabeça, estalou os dedos à maneira da dança com
castanholas. — Gostou? — perguntou,
sem modéstia. — Mas, afinal, onde está?
— CNão sei. Acabei de acordar e...
— Ele esteve aqui, com você, a noite passada — Rosário insistiu —
Você não estava
sozinha?
— Não evidentemente. Mas não estava com Rafael. Nem sequer o
conheço! — exclamou Glenda, perguntando a si mesma se deveria dar
alguma satisfação àquela mulher fogosa
e atraente. Olhou-a, intrigada.
Rosário trazia presa aos cabelos negros uma flor vermelha de
hibisco, como se fosse a coisa mais natural do mundo uma espessa
camada de sombra verde nas pálpebras
e nmel preto nos cílios acentuavam-lhe os olhos. — Mas você está
na casa de Rafael! Ele vive aqui quando está na ilha. — Rosário apertou
os olhos, numa expressão
hostil — Você não quer me dizer onde ele está, não é? Acha que
porque dormiram juntos a noite passada, ele é de sua DroDriedade.
Pensa, como todas as mulheres da
América do Norte que só porque um homem é seu amante, ele
não deve
mostrar interesse por nenhuma outra mulher?
— Não, não penso assim — Glenda se defendeu, dando um passo
para trás. — Apenas eu não estava aqui com esse Rafael. Não o
conheço.
— Nesse caso, como veio parar aqui? Quem foi que a trouXe — A
voz de Rosário se alterou. — Ah, não pense você que pode me enganar
com mentiras — continuou, sibilando
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as palavras. — Você conheceu Rafael em algum lugar, ficou caída
por ele e convenceu-o a trazê-la aqui para divertir-se um pouco, antes
de retornar ao seu país.
— Eu não o convenci a me trazer para cá — protestou Glenda,
irritada com as insinuações da outra. — Já disse que não conheço
nenhum Rafael. Vim aqui com César Estrada,
a convite dele. Somos velhos amigos. Eu o conheci há oito anos
em Montreal e vim fazer uma entrevista com ele...
— Mas César nunca vem aqui — Rosário interveio, a surpresa
dissipando a crise de ciúmes. — Ele prefere ficar numa velha casa de
estilo espanhol em Puerto Plata,
quando não está em Nova York. Dizem que possui um
apartamento em Greenwich Village, onde escreve seus romances. Por
que razão ele a traria aqui? — A expressão de
surpresa deu lugar a outra, divertida e sarcástica. — Ah, estou
começando a entender... — Rosário prosseguiu, piscando um olho. —
César trouxe você aqui para que
a esposa não saiba a seu respeito.
— Não é nada disso -. Glenda tomou a defensiva, mas emudeceu
logo, quando compreendeu que o raciocínio da outra fazia sentido. Um
calafrio percorreu todo o seu
corpo.
— Não se preocupe. Não vou contar a ninguém — disse Rosário,
com um sorriso cúmplice. — Desde que não seja com Rafael, não me
importa saber com quem você esteve.
Mas se ele não está aqui, onde estará e por que não foi ao hotel a
noite passada para me ver dançar? Prometeu que iria.
— Não sei. Já disse que não conheço nenhum Rafael. Glenda
achou que estava se tornando repetitiva. — Quem é ele?
— Dr. Rafael Estrada. Se, como você mesma diz, conhece bem
César, já deve ter ouvido falar de Rafael. É o irmão gémeo de César.
O choque fez Glenda gelar. Ficou olhando pasma para o bonito e
malicioso rosto de Rosário, enquanto o caos se instalava em sua mente.
— César tem um irmão gémeo? — Sua voz saiu rouca e medrosa.
— Si. Todo mundo aqui conhece os irmãos Estrada, ou, pelo
menos, já ouviu falar deles. Não são idênticos, mas parecidos o bastante
para confundir quem não os conhece
bem.
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Ambos têm a mesma cor de pele e cabelo. Mas, olhando de perto,
percebe-se que são muito diferentes. — Fez uma pausa e olhou bem
para Glenda. — Você está bem? Ficou
tão pálida!
— Sim, está tudo bem comigo — Glenda apressou-se a dizer. —
Foi só uma leve tontura, acho que é porque não me alimentei. Ainda
não tomei o café da manhã. Vamos lá
para dentro. Gostaria de comer alguma coisa? Ou tomar um café,
talvez?
— Não, obrigada. Apenas queria saber o paradeiro de Rafael, mas
já que você não sabe...
As duas entraram pela sala e dirigiram-se à cozinha. Glenda deu
uma olhada para fora, através da janela. O caminhão cinza não estava
estacionado ao lado da casa.
Em vez dele, havia um pequeno carro preto.
— Aquele é seu carro? — indagou Glenda à outra, que estava em
pé no meio da cozinha.
Subitamente, Rosário achou um pedaço de papel sobre a mesa,
junto a uma xícara de café vazia.
— Aqui diz que ele voltará ao meio-dia — murmurou Rosário, sem
despregar, os olhos do bilhete.
— O quê?
— Veja! — disse Rosário, entregando-lhe a mensagem.
— O bilhete é para você. Está sem assinatura, mas é de Rafael.
Reconheço a letra. No entanto, você diz que não o conhece, que ele não
se encontra aqui. Finge, afirmando
que se trata do irmão dele.
— Não, juro que não menti. Foi César quem me trouxe aqui... no
caminhão cinza, modelo Hyundai. — Glenda tirou os olhos do bilhete,
que dizia simplesmente:" Glenda,
estarei de volta ao meio-dia". Não conseguia se lembrar da
caligrafia de César, por isso não tinha como discutir a questão com
Rosário.
— Rafael dirige um Hyundai cinza — disse Rosário, sentando-se
bruscamente em uma cadeira. com a cabeça entre as mãos, pronunciou
alguns palavrões em espanhol.
Glenda teve a impressão de que a atraente dançarina não confiava
em Rafael. Julgava-o um trapaceiro, um homem perverso e astucioso,
que havia despedaçado o coração
de muitas mulheres.
60
— Vivem me avisando do caráter dele, mas eu custo a acreditar —
gemeu Rosário, e as lágrimas deslizaram pelo rosto, estragando a
maquilagem. Ergueu os olhos para
Glenda, com um ar de piedade. — Ele enganou você também. Está
se fazendo passar por César. Disseram-me que eles costumam trocar de
identidade, só por divertimento.
Foi Rafael quem a
; trouxe aqui, e não César. Ele a enganou, e a mim também. Ah,
se ele estivesse aqui agora, eu lhe arrancaria os olhos!
— E soltou um palavrão.
Lentamente, Glenda também se sentou. Lembrou-se do livro de
medicina que abrira na tarde anterior com o nome de Rafael Estrada
escrito na guarda. A caligrafia era
igual à do bilhete que estava em suas mãos: obscura e quase
ilegível. Em vão tentou recordar se alguma vez tinha visto a letra de
César em algum lugar. Certa vez,
ele havia lhe mandado um cartão de Natal. A assinatura era
pequena, caprichada, quase impressa. O endereço no envelope também
fora escrito com esmero.
Seria possível que ela estivesse sendo tapeada e que, na noite
anterior, tinha feito amor com um estranho? Pensou na dupla
personalidade que notara naquele homem
tão excêntrico... Olhou para Rosário, que continuava a fungar.
Seria possível o que estava pensando?
— Talvez César tenha tomado emprestado o carro e a casa de
Rafael — disse Glenda, não acreditando nas próprias palavras.
— César não dirige — retrucou Rosário, enxugando as lágrimas.
— Como é que você sabe? Por acaso o conhece?
— É claro que sim — Rosário respondeu com desdém. Meu irmão
mais velho estudou com os gémeos. Os dois sempre apareciam lá na
nossa casa, em Santo Domingo, quando
eu era menina.
— Quando foi a última vez que viu César?
— Não me lembro bem. Acho que há duas semanas, quando
retornou dos Estados Unidos, onde foi visitar a família, na capital, e
participar de uma recepção de honra
oferecida pelo Presidente. Todo mundo tem muito orgulho dele
pelo fato de ter escrito aquele romance que conquistou um
prêmio
61
na América. Mas gosto muito mais de Rafael... César é gordo e
preguiçoso.
— César gordo? Glenda sentiu-se estranhamente deprimida.
— Isso mesmo! Ele deve pesar uns dez quilos a mais do que
Rafael, e não é tão alto. — Nos olhos de Rosário brilhou uma centelha
de compreensão. — Não foi César quem
a trouxe aqui. Você sabe disso, não sabe?
— Ele... ele poderia ter aprendido a dirigir recentemente
— Glenda argumentou, sem muita convicção.
— Então, por que é que a esposa dele o leva de carro a todos os
lugares quando estão visitando Santo Domingo? Rosário interpelou,
tornando a pôr a cabeça entre as
mãos.
— Por Dios! — lamentou-se. — Não sei se dou risada ou se choro!
— Meio soluçando, meio rindo, Rosário enterrou o rosto nas mãos.
— Eu sinto a mesma coisa — suspirou Glenda, cabisbaixa, fitando
a outra. Todavia, por baixo da compaixão, ia surgindo um outro
sentimento, o desejo de vingança.
Queria vingar-se do homem que a enganara e a seduzira. Toda
paixão que sentira por ele agora se
transformava em rancor. Empurrou a cadeira para trás e se pôs de
pé. — vou para Puerto Plata imediatamente — anunciou. — Pode
me dar uma carona em seu carro até Samana e me dizer como posso
chegar até a cidade?
Rosário levantou os olhos, surpresa. As lágrimas tinham removido
a pintura verde e preta dos olhos, e seu rosto estava todo borrado.
Glenda precisou conter a vontade
de rir.
— Mas não prefere esperar aqui até que Rafael volte? disse
Rosário, estranhando a atitude de Glenda. — Ou por César? Se é que
ainda acha que foi ele quem a trouxe
aqui?
— Não foi César. O homem que me trouxe não era gordo e sabia
dirigir... até certo ponto... e não quero vê-lo nunca mais — Glenda
explicou, tensa, apanhando o bilhete
que lhe era endereçado, e rasgando-o em pedacinhos. — Acho,
porém, que você deve estar aqui quando Rafael retornar. Respirou
fundo, trémula. — E se ele perguntar
aonde fui, não diga nada. Diga apenas que fui ver César em
Puerto Plata
— acrescentou. Sabia perfeitamente de que modo poderia
62
se vingar do dr. Rafael Estrada. Tinha certeza de que ele não
gostaria que o irmão descobrisse a sua tramóia.
Rosário ficou intrigada por um instante. Depois, quando entendeu,
seus olhos se encheram de alegria e bateu palmas, satisfeita.
— Terei o maior prazer em lhe dizer isso. — Riu, levantando-se
bruscamente. — Mas vá se arrumar depressa! Eu a levarei até Samana.
Lá, tem um coletivo que parte
do porto para Puerto Plata daqui a pouco.
Quinze minutos depois, Glenda já estava no pequeno automóvel
preto, sentada ao lado de Rosário, rodando pela estrada principal. Sua
bagagem fora colocada no banco
de trás e ela comia uma banana, a única coisa que conseguira
arranjar, para quebrar o jejum.
Nem sequer olhou para trás, para a bela casa de praia, onde
passara duas noites, pois o arrependimento pelo que havia acontecido
ali já começava a atormentá-la.
Fora enganada. Não, isso não era correto. Fizera amor com um
homem que se parecia fisicamente com César Estrada, de quem julgara
lembrar-se bem. Compreendia agora
que tinha romantizado as recordações que guardara de César, e
que o homem que havia encontrado no mercado, há dois dias,
alimentara suas fantasias, aproveitando-se
da situação. Ávida de amor ela se entregara facilmente,
permitindo que o coração governasse a cabeça.
Como tinha sido boba!
Rafael, agora, devia estar rindo a valer da sua ingenuidade, das
confidências de amor que lhe fizera, do seu
comportamento atrevido durante o ato sexual.
Os edifícios brancos de Samana, ofuscando a luz do sol, passavam
turvos diante de seus olhos marejados de lágrimas. Lágrimas de
arrependimento e humilhação por ter
se comportado como uma adolescente tola e romântica, se
deixando corromper por um trapaceiro sedutor e experiente.
Subitamente, ela lançou um olhar rápido e oblíquo para o belo
perfil de Rosário.
— Há quanto tempo está apaixonada por Rafael?
— Desde os dezesseis anos penso em tê-lo como marido
— confessou a dançarina. — Mas ele partiu para os Estados
63
Unidos a fim de estudar medicina e, quando voltou, disse que não
estava preparado para o casamento, que precisava continuar estudando
para se tornar um especialista,
não sei em que área. — Rosário encolheu os ombros, com
indiferença. — Assim, retornou aos Estados Unidos e, desde então, vem
todo verão trabalhar como voluntário
em clínicas populares aqui na península. É isso que está fazendo
atualmente. — Suspirou. -Mas quando terminou sua especialização, não
veio diretamente para cá. Partiu
para a América Central, a fim de dar assistência médica aos
pobres. Eu acho que a maior vontade dele é se dedicar a esse tipo de
trabalho social, depois de ganhar
muito dinheiro tratando de gente rica.
— Mas você ainda quer se casar com ele? — quis saber Glenda.
Já estavam se aproximando do cais do porto. Na baía, a água azul
do mar
estava agitada, fazendo os barcos à vela, ali atracados, oscilarem.
Os dois iates canadenses
ainda se encontravam lá, as bandeiras fustigadas pelo vento forte-
.
— Sim. Ainda quero me casar com Rafael. É por isso que estou tão
contente por você ter resolvido partir — admitiu Rosário. Estacionou o
carro no meio-fio, atrás
de um outro veículo. Desligou o motor, depois virou-se para
Glenda com um olhar sombrio e provocativo. — Simpatizo com você,
mas não quero vê-la por perto. Entendo
por que Rafael acha você atraente. É bonita, elegante, mas é fria
demais. Ele queria conquistá-la. Imagino que tenha tentado a noite
passada e gostado. Por isso
deixou o bilhete avisando que voltaria. Quer repetir a dose. — Deu
uma gargalhada. — Vai ficar maluco quando chegar e não encontrar
você lá, e eu terei a chance
de confortá-lo, de me colocar em seu lugar. Mas, vamos depressa,
o ônibus está esperando Ali!
Assim que Glenda e Rosário desceram do carro, um bando de
crianças cercou-as, oferecendo amendoim torrado em canudos de papel,
e pedindo uns trocados. Rosário enxotou-as
com palavras ásperas, mas Glenda parou para procurar algumas
moedas na carteira. Acabou comprando vários pacotinhos de amendoim.
.— O ônibus já vai sair -Rosário agarrou o braço de Glenda e
puxou-a até o veículo -, e está cheio. Você terá que viajar em pé. Adios,
Glenda! Espero nunca mais
nos encontrarmos.
64
com a bolsa e a frasqueira na mão, Glenda subiu os degraus do
ônibus. O motorista, com uma cara feia e sombria, exigiu o pagamento
da tarifa no ato, obrigando-a
a atrapalhar-se com a pequena bagagem, enquanto procurava o
dinheiro. Neste ínterim, deu-se conta de que os passageiros do ônibus
haviam cessado o falatório e a
fitavam com atenção. Quando se virou de frente, após ter pagado
a passagem, enfrentou os olhares desconhecidos.
As portas do ônibus se fecharam com um zumbido mecânico. O
veículo partiu do cais com um solavanco, com Glenda correndo o risco
de perder o equilíbrio. Rapidamente,
agarrou-se à borda do assento mais próximo. Em poucos
segundos o ônibus ganhou velocidade ao longo da alameda, e todos
começaram a relaxar e a conversar outra vez.
Na traseira, dentro de um engradado de arame, ouvia-se o
cacarejar de galinhas.
De repente, Glenda percebeu um certo movimento no corredor.
Alguém avançou, vindo do fundo, abrindo caminho por entre a fila dupla
de passageiros em pé. O ônibus
fez uma curva fechada ao entrar na estrada, deixando para trás a
alameda, onde sobressaíam o mercado e o shopping center. A pessoa
que atravessara penosamente o
corredor surgiu à sua frente com um sorriso amigável.
— Olá, srta. Thompson — cumprimentou Alberto. Guardei um
lugar lá no fundo para a senhora. Deixe que eu levo sua bagagem. Para
onde vai? Puerto Plata?
Nunca ficara tão contente em ver um rosto familiar como naquele
momento, pensou Glenda, enquanto caminhava atrás de Alberto, que ia
abrindo o caminho, pedindo licença
e dizendo obrigado. Ninguém parecia se importar em ter de abrir
espaço para que eles passassem. Eram, na maioria, jovens em clima de
festa, que sorriam, simpáticos,
e, por vezes, exclamavam: "Tudo bem".
Por fim, Glenda alcançou o banco vazio, zelosamente guardado
por um amigo de Alberto. Ficava próximo ao ocupado por uma mulher
negra, dona do engradado de galinhas.
Glenda sentou-se, agradecida, enquanto Alberto ficou de pé, junto
dela. O ônibus saiu da rodovia principal e começou a subir a montanha.
— Muitas pessoas moram em fazendas, de modo que o
65
ônibus pára em vários pontos. Outros sobem para passar a Páscoa
na cidade — explicou Alberto. — Leva horas para se chegar em Puerto
Plata.
— Quanto tempo?
— Mais ou menos quatro horas. Estaremos lá antes do anoitecer.
— Os olhos castanhos examinaram-na com curiosidade. — Por que a
senhora não esperou o dr. Estrada
voltar?
Se havia tido alguma dúvida sobre a identidade do homem que a
hospedara em Samana, agora havia se dissipado. Alberto conhecia-o
como dr. Estrada, chamava-o assim
sem hesitação. O dr. Estrada que o ajudaria a frequentar a
universidade; o dr. Estrada que não se casara porque preferia trabalhar
para a população pobre de seu
país.
— Como sabe que ele me pediu para que o esperasse? Glenda
contra-argumentou, não querendo mentir para Alberto, mas também
não querendo contar-lhe toda a história.
— Sei disso porque vi ele deixar um bilhete para a senhora. Fui
chamá-lo para ver minha avó que ficou doente durante a noite —
respondeu Alberto. — Por que não o
esperou?
— Tenho algumas coisas para fazer em Puerto Plata, hoje, antes
de viajar amanhã para o Canadá.
O rapaz acenou com a cabeça, num gesto de compreensão, e
depois disse:
— Espero que tenha deixado um outro bilhete avisandoo disso. Se
não, ele ficará preocupado.
Mordendo o lábio, Glenda abaixou os olhos para o busto
avantajado da mulher negra e, depois, desviou o olhar para a densa
floresta úmida à margem da estrada que
subia, tortuosa. Não tinha deixado bilhete algum. Em vez disso,
pedira a Rosário para transmitir o recado a César... Não, decididamente
aquele homem não era César.
Era, sim, Rafael, mais magro e mais alto do que César, que sabia
dirigir razoavelmente.
O ônibus atingiu o topo da montanha, demorando-se aí por um
instante, e, em seguida, mergulhou do lado contrário, chacoalhando e
balançando. As galinhas fizeram
um grande alarido, alvoroçadas; os jovens, em pé no corredor,
caíram uns sobre os outros, dando risadas. Alberto chocou-se contra
Glenda e pediu
desculpas, desmanchando-se
num sorriso.
66
— Não foi nada — disse ela, também sorrindo. Mas, conte-me, o
que aconteceu com sua avó?
— Ela costuma se queixar de dores aqui — Alberto cutucou o
estômago com o polegar. — A noite passada,
sentiu-se muito mal, e eu tive que chamar o dr. Estrada. Ele
acha que ela tem uma úlcera. Esta manhã, logo cedo, ele a levou
de carro ao hospital para fazer uma operação.
Nesse ponto, a mulher negra entrou na conversa, fazendo a
Alberto perguntas diretas, no inglês arcaico e limitado da península. O
nome Estrada veio à tona muitas
vezes. Glenda lançou um olhar curioso para Alberto.
— O que ela está dizendo? — cochichou.
— Que conhece o dr. Estrada. Diz que é um excelente médico e
uma pessoa bondosa. Ele salvou a vida da filha dela, que teve
problemas
na hora do parto. Diz também
que tem muito prazer em nos conhecer e garante que o dr.
Estrada vai fazer o melhor por minha avó.
Glenda se voltou para a mulher, que se apresentou como Victoria
Jones, cumprimentando-a.
— Yanqui? — a passageira perguntou.
— Não, canadense. — Glenda respondeu.
A mulher pareceu confusa, e Alberto teve de explicar. Ela fez um
gesto de compreensão com a cabeça, abriu um sorriso largo e disparou
a falar. Novamente Alberto
serviu de intérprete.
— Diz que a senhora é bem-vinda a este país. Que todos os
canadenses são bem-vindos em Samana. Costumam gastar muito
dinheiro aqui, e possuem um grande barco em
Puerto Plata.
Nisso, o ônibus fez uma parada num vilarejo pobre. Houve muito
empurra-empurra e gritaria quando alguns passageiros desceram,
enquanto outros embarcavam. O
banco detrás de Glenda ficou vago, de modo que Alberto e seu
amigo puderam sentar-se. A conversa acabou e o ônibus recomeçou a
viagem, montanha acima.
Glenda fechou os olhos, recostou a cabeça no assento e seu
pensamento voou para Rafael Estrada. Por que ele havia feito aquilo?
Por que se fizera passar pelo irmão?
Por simples brincadeira de mau gosto, ou por espírito de
aventura? Será que ele era uma espécie de maníaco sexual, que
67
se satisfazia em seduzir uma mulher usando outra identidade?
Nesse caso, como conseguia ser um homem tão respeitado e um médico
de fama?
A lembrança dos cuidados que Rafael tivera para com ela durante
sua primeira noite em Samana veio-lhe à mente num relâmpago. Se
não tivesse passado tão mal, certamente
ficaria intrigada com o comportamento tão prático de César. Teria
se perguntado por que ele comentara sobre a incidência frequente de
hepatite entre as pessoas
pobres. Mas, se o tivesse interrogado, ele admitiria então não ser
César Estrada, o escritor, mas sim Rafael Estrada, o médico? E a
pergunta mais importante de todas:
Rafael teria, ainda assim, feito amor com ela na noite anterior? E
ela? Consentiria, se tivesse a certeza de que ele era outro?
O ônibus parou, e a mulher negra avisou que ia descer. Após
muita confusão, conseguiu atravessar o corredor com o engradado de
galinhas. Glenda sentou-se do lado
da janela e Alberto veio lhe fazer companhia. Mais passageiros
subiram, e o veiculo logo se pôs em movimento. Fazia um calor
sufocante e havia um cheiro fétido no
ar, que não se dissipou nem mesmo com todas as janelas abertas.
Entretanto, sob um límpido céu azul, iam se sucedendo belas
paisagens. De um lado, as encostas das montanhas recobertas de
vegetação tropical, frente ao mar ensolarado
do Caribe; de outro, as cordilheiras escarpadas que protegiam os
vales luxuriantes.
— Onde quer descer em Puerto Plata? — perguntou Alberto,
levantando a voz para que ela o ouvisse, pois o ruído do motor era
ensurdecedor, além do falatório geral.
— vou para a casa de César Estrada. Sabe onde fica?
— Claro! Descemos na avenida. vou com a senhora, para ensinar-
lhe o caminho — tornou ele, com um simples mas encantador
cavalheirismo.
Apesar do mau cheiro, do calor e do barulho, Glenda não teria
perdido esta viagem de ônibus por nada! Só assim tinha se aproximado
mais do verdadeiro povo daquele
país exótico e descoberto sua simpatia e cordialidade.
— Você conhece bem César Estrada? — ela perguntou.
— Não, ele não costuma vir a Samana. E a senhora, conhece?
68
— Sim. Eu o conheci, mas isso já faz muito tempo!
— Ele é um escritor famoso. Milhares de cópias de seus livros são
vendidas e rendem muito dinheiro. O doutor me disse que ele vive a
maior parte do tempo em Nova
York. Só vem para cá durante as férias, mas vai passar a Páscoa
em Puerto Plata. — Alberto falava com segurança, como se desfrutasse
da intimidade de César.
Bem, pelo menos alguma coisa batia com a informação que
Glenda recebera da governanta da casa de César quando telefonara no
começo da semana. Agora podia ter a certeza
de que César estava em casa, suspirou Glenda. Se conseguisse
chegar viva daquela viagem, faria uma entrevista com ele. Pensando
nisso, revistou a frasqueira à procura
do gravador, mas não o encontrou. com um gemido, deuse conta
de que não o vira mais desde aquele dia, no cais. Provavelmente,
esquecera-o na casa da praia.
— A senhora está bem? — indagou Alberto, percebendo-lhe a
ansiedade.
— Sim, estou. É que me esqueci de algo na casa do dr. Estrada.
Será que você viu um gravador ontem à noite, quando limpou a mesa
no cais?
— Vi sim. Eu o deixei na cozinha. A senhora não o viu hoje, de
manhã?
Glenda não tinha reparado. Ficara tão confusa com a chegada de
Rosário e com a descoberta incrível que fizera sobr
re César, que nem sequer havia se lembrado do gravador.
— Não, eu não o vi — e deu um suspiro.
— Não se preocupe! Quando o doutor o encontrar, mandará
alguém entregá-lo, ou, então, ele mesmo irá à casa do irmão levá-lo
pessoalmente. Quando a senhora vai embora
do pais?
— Amanhã de manhã.
— Gostaria de poder ir para o Canadá com a senhora.
— Você não diria isso, se tivesse passado um só inverno lá —
disse Glenda. — Faz frio demais. Além disso, não existem palmeiras.
— Eu sei. Mas lá há trabalho e muito beisebol — ele respondeu,
tranquilo. — Um dia eu irei. Pode deixar seu endereço para que eu
possa visitá-la?
— Ah, claro que sim! — Glenda pegou sua agenda e arrancou
69
uma folha em branco onde anotou seu endereço e telefone. — E
se você achar o gravador, diga ar Estrada para onde enviá-lo. Fará isso
para mim, Alberto?
— com todo o prazer. Pode ficar tranquila. — Ele apanhou a folha
e, em seguida, leu o endereço em voz alta, com certa dificuldade.
Depois perguntou: — Li corretamente?
— Claro, Alberto! É isso mesmo.
Enquanto ele guardava o endereço numa carteira que tirou do
bolso de trás, Glenda tornou a olhar pela janela. O assunto do gravador
trouxera à tona as recordações
da noite anterior, quando ela insistira na entrevista. Compreendeu
que, dali em diante, ela perdera todo o controle da situação. Deveria ter
sido mais forte e, crivando-o
de perguntas diretas e pessoais, que o levassem a confessar que
não era o mesmo homem que ela conhecera em Montreal.
Em vez disso, Rafael a seduzira com palavras românticas e olhares
ardentes. Habilmente, a levara a concretizar um caso de amor, frustrado
oito anos atrás. Na verdade,
ele lhe havia fornecido .alguns dados pessoais para suas
anotações, mas tudo o que ele dissera servia tanto para o próprio
Rafael, como para César. E assim que ela
começara a pressioná-lo, a entrevista foi adiada para o dia
seguinte.
Oh, devia ter percebido as intenções dele, mas não percebera
mesmo! Nunca poderia adivinhar que ele era um impostor. Um impostor
fascinante e maravilhoso, que a
conquistara num abrir e fechar de olhos...
Enquanto
o
ônibus
rodava
montanha
abaixo,
pegando
rapidamente a rodovia para Puerto Plata, Glenda mantinhase calada, de
mau humor e perplexa com o próprio comportamento...
70
CAPÍTULO VII
O sol poente era uma enorme bola de fogo no céu quando o
coletivo, finalmente, chegou na longa avenida de Puerto Plata. O
entusiasmo dos jovens passageiros contagiou
Glenda, sacudindo-a de seu profundo torpor. Lá fora, as calçadas
estavam apinhadas de gente, a maioria dos rapazes e moças vestiam-se
a rigor.
Eles estavam fazendo uma coleta de fundos na avenida, disse-lhe
Alberto, para o espetáculo de dança e música que iria se realizar à noite,
e também para comprar
doces e prendas nas barracas da quermesse.
— Somos pobres, mas sabemos nos divertir sem problemas —
continuou ele. — Todos vão se comportar direitinho. Caso contrário, a
polícia agirá rápido, levando o desordeiro
a passar a noite na cadeia. Veja ali, aqueles policiais, no meio da
multidão, munidos de walkie-talkies. Em caso de briga ou arruaça, eles
chamam, num piscar de
olhos, uma viatura. A polícia dominicana é muito rápida e
eficiente. É por isso que aqui não tem baderna, nem agitações.
O entusiasmo dele em relação à força policial surpreendeu Glenda
momentaneamente. Imaginou uma certa agressividade por parte dos
guardas para manterem a ordem,
mas não teve tempo de refletir sobre o assunto, nem fazer
perguntas, pois Alberto já se preparava para descer, insistindo para que
ela o seguisse pelo corredor,
em direção à porta.
Após combinar um encontro com seu amigo, no mesmo lugar, dali
a meia hora, Alberto conduziu Glenda por um terreno baldio. Subiram
um morro até chegarem a um beco
sem saída onde havia pequenas casas em ruínas, que não
passavam de barracos. A seguir, entraram numa rua que Glenda logo
reconheceu. Era ladeada por casas maiores,
muitas delas em estilo vitoriano, com altos frontões e amplas
varandas.
71
Em poucos minutos estavam parados do lado de fora da residência
de César Estrada. A casa compunha-se de três pavimentos, e as
paredes, de blocos de concreto, eram
pintadas de branco. Os ornatos em relevo que decoravam os
frontões e as varandas eram pintados de creme.
Acompanhada de Alberto, Glenda subiu os degraus da imponente
entrada.
— Agora me vou, senhora — disse Alberto no topo da escada.
Glenda remexeu dentro da bolsa, tirou algumas notas em peso e
entregou-as a ele.
— Obrigada, Alberto. Você foi muito gentil. Adeus!
— Obrigado, senhora, muito obrigado: — Os olhos grandes de
Alberto brilharam ao ver o punhado de cédulas. Volte logo a este país.
— Ele desceu os degraus aos pulos
e saiu correndo pela rua.
Por alguns instantes, Glenda ficou parada, quieta, acalmando-se.
Precisava se preparar para o que iria dizer em espanhol quando a
governanta abrisse a porta. A rua
estava silenciosa, sem nenhum movimento de tráfego.
Do lado oposto, as brancas fachadas das casas adquiriam uma
tonalidade colorida sob os últimos raios de sol. As sombras se
adensavam a seus pés, e o som de música
— o dedilhar monótono de violões e a batida erótica de tambores
vinha da avenida, dando certo encanto ao anoitecer. Sem querer,
lembrou-se da noite anterior, quando
se encontrou nos braços de um homem ao balanço de uma rede...
Ansiosa, Glenda voltou-se para a porta e comprimiu o botão da
campainha.
As luzes das casas começavam a acender, iluminando as janelas.
Nisso, ela percebeu, indistintamente, do outro lado da rua, os contornos
de um caminhão cinza estacionado
com displicência, entre a calçada e o meio-fio. Seria um Hyundai?
A porta se abriu e ela teve um sobressalto.
O rosto enrugado, cor de nogueira, da governanta abriuse em um
sorriso amistoso.
— Buenos noches, senorita — cumprimentou.
— Buenos noches. O senhor César Estrada está em casa?
— Si, senorita. Entre, por favor.
72
Glenda passou pela governanta e entrou no vestíbulo. A porta se
fechou e a criada a conduziu por um corredor até um salão que ocupava
toda a largura da casa.
— Por favor, espere aqui — disse a governanta com polidez. —
vou avisar o senor César que a senoriía está aqui.
— Ela se afastou na direção de uma escadaria, num dos cantos do
salão.
Uma magnífica balaustrada de madeira entalhada curvavase,
acompanhando a subida dos degraus, e desaparecia no pavimento
superior. Pondo a frasqueira no chão, Glenda
olhou ao redor com interesse.
As paredes do salão eram revestidas de uma madeira dourada e o
teto alto, decorado nos cantos com desenhos de rosas entalhadas. No
seu centro havia uma pintura de
querubins adejando em torno. O olhar de Glenda passou rápido
para o soalho de azulejos, um mosaico de ardósia colorido, formando
um desenho geométrico.
Subindo do piso, seus olhos detiveram-se numa cadeira antiga de
mogno avermelhado, em cujas costas estava gravada a.figura de um
guerreiro, empunhando uma espada.
No assento da cadeira havia um chapéu de sol masculino, de copa
alta e abas largas. Glenda estava fitando aquele chapéu de aspecto
familiar quando ouviu a voz de
uma mulher atrás de si.
— Quem é você e o que deseja? — O espanhol era carregado e a
entonação forçada, destruindo a melodia ritmada da língua, dando-lhe
um tom gutural.
Glenda se voltou bruscamente. Bem no centro de uma porta
envidraçada, na parede fronteira ao vestíbulo, havia surgido uma
mulher de meia-idade. Os cabelos loiros,
cortados à altura do ombro e um tanto opacos, cobriam parte do
rosto comprido e magro. Os olhos azul-claros, aumentados por lentes de
contato, fitavam, agressivos,
por debaixo de sobrancelhas finamente depiladas. Ao lado da
mulher encontravase uma menina morena de uns seis anos de idade.
Seus olhinhos castanho-escuros piscaram,
cheios de curiosidade, para Glenda, antes de se esconderem
timidamente atrás da saia da mãe.
— Sou Glenda Thompson e vim do Canadá para ver o sr. César
Estrada — disse em inglês, certa de que seria
compreendida.
73
O tom de voz era agradável, e Glenda sorriu sem prever a reação
grosseira da mulher.
— Como se atreve a vir aqui? — a outra respondeu, ríspida, em
inglês.
Imediatamente, Glenda reconheceu, surpresa, que estava diante
de uma compatriota. Entretanto, a mulher deu uns passos à frente com
um olhar gélido. Quanto à garotinha,
aproveitou a oportunidade para sair correndo, passando pela porta
envidraçada, em direção a um pátio ajardinado, onde as sombras da
noite já começavam a descer sobre
as árvores.
— Vá-se embora — ordenou a mulher, com frieza. — César não a
quer nesta casa, nem eu, tampouco. Saia imediatamente, ou chamo a
polícia.
— Mas eu sou uma grande amiga de César. Eu o conheci há anos,
em Montreal — Glenda replicou calma, sem se deixar intimidar. Já havia
enfrentado resistência muito
mais violenta no passado e, agora que se achava tão perto de
encontrar o verdadeiro César e entrevistá-lo, estava determinada a
manter sua posição.
— Sei quem você é, o que faz e por que veio aqui, e estou lhe
dizendo que saia. Tenho esse direito, pois esta é minha casa. Sou Janice
Estrada, esposa de César.
— Estou muito contente em conhecê-la. — Ignorando o olhar
penetrante e hostil de Janice, Glenda estendeu a mão.
— Saia! Vá-se embora! — com o pescoço vermelho de raiva,
Janice deu um tapa na mão de Glenda. — Volte para o Canadá e deixe-
nos em paz!
— Mas eu gostaria de vê-lo apenas uma vez antes de ir. Parto
amanhã de manhã, de modo que você não vai me ver mais rondando
por aqui e incomodando vocês. Por favor,
deixe-me vê-lo — Glenda insistiu.
Os passos na escada, no fim do salão, e o som de uma voz
masculina a fizeram deduzir que logo César iria aparecer, livrando-a das
garras hostis de Janice.
— Saia, vamos, antes que eu bata em você! — Janice esganiçou a
voz e levantou a mão, como que para dar uma bofetada no rosto de
Glenda, que deu um passo para trás,
quase perdendo o equilíbrio. Tinha a impressão de que Janice
estava psicologicamente desequilibrada, e gostaria de saber por quê.
74
— Ah, querida, finalmente você chegou! Espero que a viagem de
ônibus não tenha sido muito cansativa.
Espantada com o som daquela voz profunda e carinhosa que a
seduzira durante a noite, mas que agora dirigia-se a ela num leve tom
de troça, Glenda voltou-se bruscamente.
Dois homens aproximavam-se delas, idênticos e, no entanto,
diferentes. Ambos usavam calças e camisas brancas. Ambos tinham
cabelos grisalhos, puxados para trás da
testa, e a pele morena. Ambos possuíam aristocráticas feições
espanholas: nariz empinado e altivo, e lábios sensualmente curvos.
Um deles — o que estava ligeiramente à frente do outro
— sempre fora o líder, pensou Glenda. Era um pouco mais alto e
magro e ágil como um gato. O outro possuía formas mais arredondadas
e, na verdade, já estava criando
barriga. Usava óculos escuros e sorria, tímido, para ela. Glenda
não teve dúvidas de que era o pai da garotinha que estava há pouco
com Janice.
De repente, as mãos de Glenda foram seguras por outras mãos,
magras e fortes. O homem que era a causa de seus tormentos estava
diante dela, puxando-a para si, encostando
o rosto levemente áspero no seu.
Ao simular um beijo, ele murmurou rápido ao ouvido dela:
— Pelo bem de César, faça o que eu lhe disser! Janice está fora de
si. Ela tem ciúme de qualquer mulher que olhe oi converse com ele.
Deixe-a acreditar que você
é minha namorada, e tudo dará certo. Não lhe será difícil, após a
noite
passada. Eu explicarei mais tarde. Meu nome é Rafael.
— Eu sei disso, desgraçado! — ela também murmurouB furiosa.
Mas um beijo inesperado na boca pôs fim às suas palavras. O
beijo não demorou muito, mas a deixou sem fôlego e incapaz de
qualquer protesto.
Enlaçando-a pela cintura, Rafael a fez voltar-se e encarar César.
— Lembra-se de Glenda, César? Nós a conhecemos em Montreal!
— A voz dele soou agradável. — Ela passou os últimos dois dias comigo,
em Samana.
— Claro que me lembro! Olá, Glenda, É bom ver você de novo —
César falou devagar e com sobriedade, franzindo um pouco a testa,
como se estivesse repetindo palavras
75
que lhe haviam mandado dizer. Entretanto, não lhe estendeu a
mão.
— Vocês dois conheceram esta moça em Montreal? — perguntou
Janice, que estivera observando o desempenho de Rafael em silêncio e
estupefata. O tom de voz era alto
e brusco.
— Nunca soube que você esteve em Montreal, Rafael. Pensei que
só estudasse medicina nos Estados Unidos.
— É verdade — socorreu Rafael. — Mas eu costumava visitar
César quando ele vivia em Montreal, e lá conheci Glenda. Tivemos bons
momentos juntos, não foi mesmo, querida?
— Eu... ahn... sim. Porém, realmente esperava rever César
também, quando vim aqui.
— Para dar-lhe os parabéns, é claro, pelo novo romance
— Rafael apressou-se em explicar à desconfiada Janice.
— Correto. — Glenda conseguiu se desvencilhar do braço de
Rafael e deu um passo na direcão de César. — É ótimo ver você de
novo. — Sorriu para ele, mas se sentiu
embaraçada. Tinha conhecido aquele homem em Montreal, não
tinha? Mas conhecera também o outro, o que estava postado
exatamente atrás dela? — Passei para vê-lo quase
todos os dias desde que cheguei aqui — continuou. — Deixei um
recado para você. Você o recebeu?
— Um recado? — César fez uma cara de espanto.
— Deixei com a governanta pá quarta-feira. Ela me disse que o
esperava naquela mesma tarde. Deixei meu nome e o endereço do hotel
onde estou hospedada. Fiquei aguardando
que você entrasse em contato comigo e, depois, liguei novamente
na manhã de quinta. A governanta disse que você havia chegado, mas
tornara a sair.
— Você recebeu o recado dela, César? — perguntou Janice.
Aproximou-se do marido e deu-lhe o braço, num gesto possessivo.
César parecia constrangido. Começou a suar na testa e seus olhos
resvalaram do rosto de Glenda, a quem fitava como que fascinado, para
o do irmão. Glenda compreendeu,
de súbito, que ele havia recebido seu recado, mas não contara
nada a Janice, porque ficara com medo da
reação da esposa.
Tudo, em parte, esclarecido, Glenda decidiu não levar adiante o
assunto, para não criar mais dificuldades para o casal.
76
— Oh, bem, não faz mal se não o recebeu — disse
despreocupadamente, encolhendo os ombros. — Aposto que a
governanta não entendeu o meu espanhol. E deu tudo certo
no fim, não é mesmo? Tive afinal a chance de vê-lo e...
— Como soube que estávamos em Puerto Plata? Onde descobriu
que retornaríamos à República? — disse Janice, ainda irritada e
desconfiada. — Você lhe contou, Rafael?
— Sou inocente — replicou ele.
— Ninguém me contou. Simplesmente tinha esperança de
encontrar César aqui. Estou aqui, de férias, e me lembrei de que, certa
vez, César sugeriu que eu o visitasse,
se algum dia viesse a este país. — Glenda sorriu novamente para
César, que a fitava, desconcertado, enquanto mordia nervosamente o
canto do lábio superior. — Não
se lembra de ter me convidado? — ela indagou.
— Glenda, querida — Rafael disse, tranquilo, pondo a mão no
ombro dela. — Você já conseguiu o que queria, já reviu meu irmão.
Agora vamos embora! Eu a levarei de
carro para o hotel.
— Ainda não! — Ela libertou o braço. — Gostaria de fazer uma
entrevista com você, César. É para a revista onde trabalho. Todos os
seus amigos e conhecidos canadenses
ficarão contentes em ler uma reportagem a seu respeito.
Conversei com o professor Redman pouco antes de sair do Canadá. Ele
está impressionado com o seu sucesso
e acha que deu uma mãozinha na elaboração de seu romance por
ter lhe ensinado criação literária em inglês. Você se importaria em me
conceder meia hora a sós para
conversarmos sobre o seu trabalho?
— Não. — Foi Janice quem respondeu rispidamente. César já deu
muitas entrevistas. Estamos cansados do assédio de repórteres. Vá-se
embora! Rafael acompanhará você.
— Mas não tomarei muito tempo. Prometo não fazer perguntas
sobre sua vida particular. Quero apenas escrever sobre o romance e os
motivos que o levaram a criá-lo.
— Glenda apelou para César e notou que ele mordia ainda mais o
lábio.
— O livro fala por si mesmo — interferiu Janice, que parecia ter se
transformado em porta-voz do marido. — César não precisa explicar por
que o escreveu, nem para
você, nem para ninguém. Agora é melhor que se retire.
77
— Sinto muito, Glenda. — César, enfim, parecia ter acordado para
a vida, e ela reparou quão diferente ele falava de Rafael. Seu modo era
hesitante e o sotaque muito
mais carregado de espanhol. — Janice tem razão. Já estou
cansado de dar entrevistas. Também acho melhor que se vá com Rafael.
— Voltou os olhos para ela, como que
lhe implorando compreensão.
— Eu também lamento — disse Glenda, retirando-se com toda a
dignidade possível. — Não tive a intenção de causar aborrecimentos.
Adeus, César. Adeus, sra. Estrada.
— Adeus — respondeu Janice, como quem queria dizer "já vai
tarde".
— Adeus! — César parecia pesaroso. — Faça uma boa viagem.
Depois, de braços dados, marido e mulher deram as costas e
saíram para o jardim.
— Se você tivesse aguardado minha volta na hora do almoço,
conforme lhe pedi, Glenda, teria evitado esta cena desagradável. — O
tom de Rafael era áspero.
Ela rodopiou, encarando-o. com o chapéu numa das mãos e a
frasqueira de Glenda na outra, ele a observava, os lábios contraídos de
sarcasmo.
— Trapaceiro! Mentiroso! — desabafou ela, dando afinal vazão às
emoções
confusas
e
violentas
que
lhe
agitavam
o
íntimo.
Completamente fora de si, investiu contra
ele, batendo com os punhos em seu peito rijo. — Você nunca
esteve em Montreal oito anos atrás!
— Sim, estive. Todavia, você nunca percebeu a diferença entre
mim e César. Naquela ocasião, estava muito ocupada com o seu namoro
com Greg. Além disso, você morria
de medo de se apaixonar por mim... — Ele se interrompeu,
hesitante e, em seguida, enfiou o chapéu na cabeça. — Olha, prefiro
explicar tudo em um outro lugar. — E
olhou, cauteloso, para o local por onde Janice e César haviam
sumido.
— Vamos a algum lugar onde Janice não esteja por perto. Que tal
jantarmos juntos? Não comi nada, desde a manhã. Quando voltei para
casa, soube por Rosário que você
viria para cá e saí correndo ao seu encalço. Como vê, cheguei aqui
antes... — Entreabriu os lábios num sorriso irónico. — Você também
deve estar faminta.
78
Realmente. Sentia-se fraca e um pouco tonta. Mas não estava só
com fome. Estava também desnorteada e infeliz porque ele lhe mentira
descaradamente, demonstrando
um sentimento falso, inexistente... E, pior, porque ele, o César de
quem se lembrava, não era aquele homem casado com Janice.
— Pôr quê? Por que fez isso? Por que fingiu ser César?
— perguntou, desconsolada.
— Para ajudar meu irmão. É o que sempre tenho feito. Sou o
primogénito. Ele quase morreu ao nascer e precisou muito de cuidados
para sobreviver. Mamãe sempre me
pedia para tomar conta dele na escola, e, desde então, isso virou
um hábito. Na situação atual, estou tentando salvar seu casamento, já
quase desfeito. Em Montreal,
tive de ajudálo a sair de uma grande confusão em que se meteu.
No fundo, ele não é um mau sujeito, tem até um coração mole... A
verdade é que não sabe dizer "não"
a ninguém. Às vezes quer ajudar as pessoas, mas acaba
magoando-as quase sempre. — Uma expressão de tristeza anuviou seu
rosto. — Ouça, não posso contar-lhe o que
ele fez a Janice, aqui. Venha! Vamos jantar. vou explicar-lhe por
que muitas vezes tive que passar por César, a fim de livrá-lo de
situações difíceis. Talvez, então,
possa me perdoar, Glenda. Por favor!
Aquela voz profunda e aqueles olhos meigos a estavam seduzindo
novamente. Quando se deu conta, Glenda já atravessava o vestíbulo,
levada pela mão de Rafael, que
não lhe dera nem tempo de dizer não. Saíram apressados, pela
porta de entrada, e desceram os degraus.
Na rua, ele caminhou, sem hesitação, até o caminhão, estacionado
do outro lado da calçada. Glenda não conseguiu alcançá-lo
imediatamente, pois dois carros que passavam
obrigaram-na a esperar. Quando chegou ao caminhão, sua
frasqueira já estava no bagageiro e Rafael ocupava o volante. O motor
fora ligado e os faróis, acesos.
Glenda o enfrentou, ali parada ao lado do veículo, pela janela
aberta:
— Não quero jantar com você! Não quero vê-lo nunca mais.
Guarde para si suas mentiras. Acho você desprezível! Adeus, vou voltar-
para o hotel.
— Como?
79
— vou pegar um táxi em algum lugar. — Um carro passou veloz, e
ela teve de espremer-se contra a porta do caminhão para não ser
atropelada. O hálito morno de Rafael
bafejou-lhe o rosto quando ele falou:
— Sua tola! Você vai morrer se continuar parada aí. Entre! Eu levo
você para o hotel, se é o que quer. Quando chegarmos lá, porém, eles
já terão terminado de servir
o jantar.
— Um outro veículo passou perto, buzinando. — Entre, Glenda! —
ele berrou.
Glenda deu a volta, contornando a frente do caminhão. A porta já
estava aberta e ela subiu, sentando-se ao lado dele. O caminhão, então,
partiu como uma bala, executou
um semicírculo e desceu a rua ruidosamente.
— Vamos comer primeiro e, depois, iremos para o hotel
— anunciou Rafael com arrogância, agora que conseguira impor
sua Vontade.
O caminhão ia desviando de outros veículos. Era como descer uma
pista de esqui em ziguezague, pensou Glenda, agarrando-se à maçaneta
dá porta. De repente, veio-lhe
à recordação uma pista de esqui perto da cidade de Quebec, onde
anos atrás fora esquiar com Greg e César. Naquela ocasião, César
estava aprendendo a esquiar e levara
um tombo. Ela voltara-se para acudi-lo. Entre risadas, ele a
puxara para junto dele. Os dois haviam rolado pela neve e os abraços e
beijos tinham sido inevitáveis.
Horas depois, retornaram à estação de esqui, onde um grupo de
estudantes havia alugado dois quartos para o fim de semana. Fora um
dos momentos em que se sentira
mais atraída por César, a ponto de desejar desfazer o noivado
com Greg. Mas, agora, compreendia que o homem com quem estivera
naquele distante fim de semana não
era César, mas sim Rafael.
Depois de um cruzamento, o caminhão desceu em disparada uma
rua sinuosa, lá para os lados do porto, e freou bruscamente. Haviam
parado diante de duas casas antigas.
No meio, havia uma passagem apertada, iluminada por candeias,
que levava a um jardim.
— Quando? — perguntou Glenda, voltando-se nervosa para
Rafael. — Quando foi que você esteve em Montreal, fingindo ser César?
— Está lembrada da viagem a Quebec, no fim da semana
80
de carnaval, em fevereiro? — disse ele, dando uma risada
alegre e contagiante. — Eu era o sujeito que não sabia esquiar.
Pela primeira vez na vida, fui pior que César em um esporte. — Ele
pegou-lhe a mão direita sobre
o colo e levoua aos lábios. — Foi nessa ocasião que me apaixonei
pela
primeira e única vez na vida — murmurou.
— Por favor, não minta mais — ela implorou, agoniada,
soltando a mão.
Sem responder, ele abriu a porta do carro e saiu. A porta tornou a
se fechar com um estrondo. Sozinha na semiobscuridade, Glenda ainda
estava com os nervos abalados
pelos acontecimentos dramáticos daquela tarde. As luzes do porto
ofuscavam-lhe a vista, e sentia-se péssima, como se tivesse levado uma
surra. A porta ao seu lado
abriu-se, mas ela permaneceu imóvel. Dedos longos se fecharam
em torno de seu braço esquerdo.
— Venha! — convidou a voz doce de Rafael. — Deixeme ajudá-la.
Foi um dia péssimo para você e para mim também. Precisamos de uma
bebida forte e uma refeição bem
gostosa. Vamos relaxar e conversar sem o fantasma de César
entre nós. Prometo que não haverá mais mentiras daqui por diante.
Mediante aqueles argumentos, Glenda acabou concordando.
Estava com muita fome e tensa demais para continuar brigando. Assim,
permitiu que ele a ajudasse a descer
da cabina e a conduzisse até o alto das escadas, onde havia uma
sacada ampla, de madeira. Duas palmeiras enormes que se erguiam do
jardim serviam de abrigo e decoração.
As mesas estavam recobertas com toalhas brancas e guarnecidas
com baixelas de prata e copos brilhantes. Em algumas delas
viam-se casais de namorados ou pequenos grupos
de pessoas comendo e bebendo, num bate-papo tranquilo.
Uma mulher esbelta, de cabelos negros e vestida de branco, veio
cumprimentá-los. Sorria, satisfeita, para Rafael, enquanto lhe oferecia a
face para um beijo.
— Esta é minha prima, Ana Maria Hernandez. Ela é espanhola e
veio para cá há alguns anos com seu marido, Paço. Aqui eles instalaram
um bom restaurante — contou Rafael,
fazendo as apresentações. — Providencie uma mesa
81
para nós, Ana. De preferência em um canto onde possamos
conversar sossegados.
— vou lhes mostrar. Por aqui! — indicou Ana, conduzindo-os até o
extremo da sacada.
A mesa redonda ficava perto do parapeito. Era separada das
demais pela folhagem inclinada de uma das palmeiras, além de
proporcionar uma bela vista para as luzes
do porto e para os contornos escuros das montanhas, sob o céu
estrelado.
A pedido de Glenda, Ana ensinou-lhe onde era o toalete. Ali, no
espelho sobre a pia, Glenda olhou-se, com desagrado. Estava horrível,
pensou, e tentou melhorar a
aparência.
Ao retornar à mesa, Rafael conversava com um homem de
cabelos pretos e lustrosos. Era o marido de Ana, que havia trazido as
bebidas: dois cálices longos com rodelas
de limão, na borda, e, no interior, uma espécie de ponche. Após
ter sido apresentado, Paço os deixou a sós, à luz dos candelabros, na
noite cálida e densa.
— Agora beba tudo — ordenou Rafael. — Como seu médico,
recomendo-lhe um cálice de ponche.
— Ora, você não é meu médico.
— Mas fui anteontem à noite. E poderia ser sempre assim, se você
quisesse.
— Por favor, pare com essas brincadeiras. Até agora, fui apenas
um divertimento para você. Você... você me seduziu, fazendo-se passar
por César. Não posso lhe perdoar...
— Eu não a seduzi, Glenda. Você me queria... Glenda engasgou ao
tomar precipitadamente um gole do
ponche. Largou o cálice depressa e olhou para Rafael com raiva.
— Se quer saber, não estou apaixonada por você.
— Então você mentiu na noite passada — ele disse com ironia,
apanhando o cálice e esvaziando-o de um trago. Humm, está bom!
Justamente o que eu precisava depois
de um dia agitado. Primeiro, levei uma velhinha para o hospital;
depois, tive de vasculhar a cidade toda atrás de você; e, por fim,
precisei salvar César da fúria
da esposa. Sirva-se. de pão com patê. — Apontou para a tigela de
patê e a cestinha de pão. — A bebida poderá lhe fazer mal, se não
comer alguma coisa.
82
— Não se preocupe comigo! — Glenda limitou-se a dizer, com
altivez, pegando um pãozinho. Estava quente e macio e, quando o
cortou ao meio, a massa ainda estava branca
e fofa. A manteiga cremosa derreteu-se imediatamente dentro
dele. Glenda deu uma mordida, morta de fome.
— com o tempo, você se acostumará comigo. — Rafael levantou-
se com o cálice vazio na mão.
— Chauvinista! — praguejou ela, enquanto Rafael deixava a mesa
e desaparecia por detrás da palmeira frondosa.
Quando retornou, trazendo mais dois ponchesvGlenda já havia
comido três pãezinhos com manteiga e patê e esvaziado o cálice. O rum
adicionado ao ponche deixara-a
um pouco tonta, mas, por outro lado, a fazia sentir-se melhor.
O tom sarcástico de Rafael parecia ter amenizado e sua expressão
era quase melancólica quando ele se serviu de um pãozinho e o comeu
em silêncio. Uma jovem de pele
negra e fina, cabelos trançados e avental colorido veio colocar os
pratos na mesa. Numa voz melodiosa, sugeriu que se servissem no
bufê.
" Em silêncio, Glenda e Rafael dirigiram-se até a mesa comprida,
arrumada diante de duas grandes portas-janelas que davam acesso ao
interior da casa. Havia ali pratos
variados: travessas de saladas, legumes e carnes assadas, tenras
e suculentas.
Solícitas, as garçonetes, todas negras e esbeltas, com seus
aventais vistosos, trinchavam as carnes a pedido dos fregueses,
colocando, depois, as porções em seus
pratos. Complementavam os pratos quentes, na maioria legumes
cozidos.
Glenda encheu o prato com uma mistura de salada, carne de
vitela e batata doce cozida e, depois, voltou para a mesa. Estava com
muito apetite e, assim que Rafael
sentou-se diante dela, começo a comer.
Por longo tempo mantiveram-se calados. Quando o prato de
Rafael estava quase vazio, ele deixou o garfo e a faca descansando e
recostou-se na cadeira.
— Você não reconheceu Janice quando a viu, não é mesmo? —
perguntou ele, tomando um gole de ponche.
— Não. Por quê? — Glenda indagou, espantada.
— Ela trabalhava na biblioteca da universidade que você e César
frequentaram, mas mudou muito de lá para cá.
Tingir
83
os cabelos e usar lentes de contato pode, facilmente, alterar a
aparência de uma mulher.
— Ou de um homem — ela rebateu, secamente. — Por que você,
ou César, não mudou a cor do cabelo para não serem confundidos um
com o outro?
— Ora! Tem sido uma brincadeira tão divertida! Mas não
poderemos brincar por muito tempo. Ele está engordando por falta de
exercício. À medida que o tempo passa,
vamos ficando menos parecidos, e as diferenças de temperamento
vão se sobressaindo cada vez mais. — Seus olhos cor de âmbar
brilharam quando ele acrescentou: — No
entanto, você pensou que eu fosse ele, outro dia, no mercado.
Mas é de mim e não de César que você tem se lembrado todos esses
anos, não é, Glenda?
com muita relutância, ela admitiu que Rafael estava certo. Era
dele que se lembrava, do homem que a conquistara durante aquela
excursão, na pista— de esqui, e, num
outro fim de semana, na casa de campo dos pais, pouco antes que
o outro, ou melhor, César... partisse para Montreal.
— Por que fez isso comigo? — Glenda tomou a perguntar. — Por
que fingiu ser César em Quebec? Por acaso foi ele quem lhe pediu para
tomar o seu lugar?
— Não, na verdade não. — Rafael tomou mais um gole de ponche.
Depois, afastou o prato vazio e, cruzando os braços sobre a mesa, olhou
fixamente para Glenda. — É
uma longa história! Você não gostaria de comer alguma coisa
enquanto escuta?
— Sim, eu gostaria. A comida está deliciosa! — Ela se levantou e,
com o prato na mão, contornou a mesa. Ao passar por ele, perguntou:
— Quer que pegue alguma coisa
para você?
— Não, obrigado.
Aquela era uma boa oportunidade para fugir, pensou Glenda,
enquanto caminhava até o bufe. Poderia abandonar o prato vazio em
algum lugar e correr para a saída, apanhar
sua bagagem na boleia do caminhão, depois subir a pé até a praça
e pegar um táxi. Entretanto, queria saber por que Rafael se deixara
passar por César, tanto no passado,
como
84
no presente. Talvez, sabendo o motivo, ela não se sentisse assim
tão infeliz...
Quando retornou à mesa, Rafael ergueu-se polidamente,
aguardando que ela se sentasse. Se havia uma coisa que sempre
chamara a sua atenção era a boa educação dos
gémeos. Ambos eram bastante gentis com as mulheres.
— Como está se sentindo agora? — indagou Rafael, sentando-se
outra vez. — Já esqueceu aquela cena desagradável com Janice? Isso é
típico dela! Está sempre fazendo
escândalo, pois tem ciúme doentio de César... Já em Montreal,
tinha ciúme de você.
— Engraçado... Não me lembro de Janice. Nem sequer havia
ouvido falar de seu nome.
— César envolveu-se com ela, antes de conhecer você, logo que
chegou a Montreal, e ela o agarrou. — Rafael riu, cínico.
— Esse é um comentário machista de sua parte...
— Confesso que sou machista com certas mulheres... E Janice é
um exemplo. Ela armou uma cilada para César, e ele caiu direitinho.
Quando voei de Chicago até Montreal
para visitá-lo, naquele inverno, encontrei-o metido numa confusão
danada. Janice estava grávida, e usou esse fato para impedi-lo de ir a
Quebec com você e seus amigos,
conforme o combinado. Foi então que ele me pediu para substituí-
lo, pois já havia pago sua parte na excursão. Concordei. Quando apareci
na estação rodoviária para
juntar-me ao grupo, todos acreditaram que eu fosse César. Isso
me divertiu, e levei adiante a brincadeira. — Encolheu os ombros. — O
resto você já sabe.
Mas então... Então era por Rafael que ela havia se apaixonado oito
anos atrás, e não por César!, concluiu Glenda, lembrando-se daquele
beijo maravilhoso que ele
lhe roubara sobre o gelo, quando praticavam esqui. Seus
pensamentos, misturados às lembranças, tumultuavam-lhe a mente e
seu coração pulsava comovido...
Olhou para Rafael, incapaz de articular uma só palavra... incapaz
de confessar suas emoções.
— César era tão tímido, tão gentil e sonhador!... Pelo menos é
assim que eu me lembro dele — ela mentiu, por fim.
85
— César, tímido? Sonhador? — Rafael ironizou. — Dà licença um
instante! — disse, levantando-se da mesa. — Volto já para
continuarmos essa conversa interessantíssima
sobre os seus verdadeiros sentimentos a respeito de meu irmão...
86
CAPÍTULO VIII
Sozinha à mesa, sob a luz dos candelabros, Glenda permaneceu
absorta, com o olhar perdido em algum ponto qualquer. As recordações
ainda afluíam à sua mente, num
turbilhão de imagens confusas. Deduziu que todas as vezes em
que estivera com o verdadeiro César havia sempre outras pessoas por
perto — nas discotecas, nos concertos
no Place dês Arts, nas partidas de hóquei, no Fórum, nas festas de
outono e inverno. E, após a viagem à
estação de esqui, tinham se visto raramente... Nessas ocasiões,
notou-o frio e distante, mas julgou que ele estivesse ocupado
demais em escrever sua tese.
Então, um ano depois, no dia da formatura — ela havia assistido à
cerimónia -, quando saia do anfiteatro, César aparecera à sua frente.
Ainda podia visualizar a
figura alta, de aparência distinta, o rosto moreno, cabelos
espessos, e os olhos brilhantes como o âmbar, olhando-a com atenção.
Nos lábios, um leve sorriso.
— Podemos almoçar juntos em algum lugar agradável?
— Ela havia se espantado com o convite.
— Faz tempo que a gente não se vê — tentará pilheriar sem
resultado, não querendo que ele a considerasse fácil demais.
— Tenho andado muito ocupado. — Ele se justificara com um dar
de ombros, e ela entendera.
Haviam almoçado em um restaurante francês, recentemente
inaugurado. Glenda não podia se lembrar sobre o que haviam
conversado, mas sim do que havia sentido: uma
enorme alegria! Lembrava-se, e como, daquele olhar intenso e
persistente que a envolvera estranhamente...
Um leve ruído a alertou, trazendo-a de volta ao presente, para
aquele canto escuro daquele romântico restaurante. Do outro lado da
mesa, o olhar ardente de Rafael
a fitava.
87
— Na última vez em que nós almoçamos juncos, após a cerimónia
de formatura, foi a pedido de
César.
— Não. Fui assistir à formatura do meu irmão e, por acaso, vi
você na saída. Aí você disse: "Olá, César!" Convideia então, para
almoçar, com a intenção de lhe revelar
quem eu era, mas você parecia tão feliz, julgando estar na
companhia de César, que desisti da ideia. Não quis estragar aquele
momento tão bonito. — Fez uma pausa
e sorriu. — Você teria me convidado para ir à casa de seus pais se
soubesse que eu não era César?
— Não sei. Realmente, não sei — ela murmurou, confusa,
evitando o olhar dele. Tentou recordar aquele restaurante em Montreal,
onde, percebia agora, começara a se
apaixonar por Rafael, -— Óh, como fui boba em não perceber que
você não era César. Na verdade, mesmo naquela época, as diferenças
eram evidentes. Você era mais...
mais...
— Mais agressivo, mais machista, mais chauvinista? ele completou
zombeteiro.
— Tudo isso! — ela brincou, dando uma risada gostosa. Ao mesmo
tempo apenas pensou:
"Mais bonito, mais charmoso, mais parecido com o homem que
sempre quis ter para companheiro".
— E então? Por quem foi que você realmente se apaixonou? Por
mim, ou por César?
O rosto de Glenda ardia, e ela não conseguia encará-lo. Apanhou
o cálice de ponche e sorveu o resto do conteúdo de uma só vez. Havia
um travo forte de rum na bebida,
que lhe deu a coragem necessária para ignorar a pergunta
atrevida de Rafael.
À garçonete veio retirar os pratos e os convidou a serviremse da
sobremesa no bufe: frutas da estação, queijos variados e doces. Glenda,
então, aproveitou a oportunidade
para mudar de assunto.
— Está muito quente esta noite!
— Quente o bastante para dormir na varanda, balançando na rede
— Rafael comentou, malicioso. Por que você veio a Puerto Plata? Para
entrevistar César, ou ter um
aventura com ele? — perguntou.
— Claro que foi para entrevistá-lo! — Irritada com aquela
insinuação maliciosa, Glenda respondeu ríspida: — Nunca
88
me passou pela cabeça ter um caso com ele. Soube que estava
casado através de uma revista americana. Só não me lembrava da
esposa dele...
— Janice sabia que César gostava de você em Montreal e procurou
impedi-lo de se relacionar com você e com o grupo de estudantes que
eram seus amigos. Sempre foi
extremamente possessiva. e você sempre foi mais bonita do que
ela...
— Ora, isso é ridículo!
— Janice pensa que você é a escritora com quem ele está tendo
uma relação amorosa em Nova York — Rafael explicou em poucas
palavras.
— Ele está tendo uma relação, extraconjugal? — Glenda
perguntou surpresa.
— Eu também fiquei surpreso quando soube. Talvez César não
tivesse a intenção de envolver-se com outra mulher. Mas, como você
mesma diz, ele é sonhador, gentil e
possui um coração generoso. Essa mulher parece tê-lo encantado
pelos conhecimentos que tem de língua e literatura. Assim como você,
ela é repórter de uma revista,
escreve artigos sobre celebridades...
— Então é por isso que Janice não quer que eu entreviste César —
ela murmurou.
— Exatamente. Quando descobriu o caso dele em Nova York,
Janice ficou furiosa. Depois, vieram para cá, tentar uma reconciliação,
por causa dos filhos: Janetta e
Juan. Quando César recebeu seu recado na última quarta-feira,
ele entrou em pânico. Felizmente, quando você apareceu naquela
manhã de quinta-feira, foi a empregada
quem atendeu à porta. Eu estava lá, com César, e pedi à
governanta que dissesse a você que meu irmão tinha ido ao mercado.
Como eu esperava, você foi procurá-lo.
Peguei o carro em seguida e também fui para lá, a fim de explicar-
lhe a situação. Mas você me confundiu com ele, e parecia tão contente
em me ver... ou a ele...
que não tive coragem de lhe dizer a verdade. — Ele deu uma
outra risada, caçoando de si mesmo. Naquele momento, recordei todo o
passado... Lembrei de quanto gostei
de você e de quanto a desejei... Foi então que me veio a ideia de
me fazer passar por César. Só assim conseguiria convencê-la a me
acompanhar até Samana.
89
— Você fez de propósito — ela exclamou, irritada.
— Confesse que você gostou da troca! Ontem a noite, me queria
tanto quanto eu a você.
— Não, eu não queria! — ela negou, furiosa. — Oh, você está
apenas tentando se justificar de um erro...
— Erro? — ele a interrompeu, enraivecido. — Acha mesmo que o
que nós dois fizemos foi um erro? Que mal há em um homem e uma
mulher se amarem? Somos adultos e estamos
apaixonados um peto outro.
— Foi um erro porque... porque eu pensei que você fosse César...
— Você não teria feito amor com César, sabendo-o casado, mas
comigo sim! Não se envergonhe do que fizemos disse Rafael, sereno. —
O que nós dois fizemos, a noite
passada, foi algo muito bonito! Nos entregamos um ao outro
porque nos queríamos, nos desejávamos, independentemente do meu
nome, ou do seu... Fiz amor com você porque
te quero... .porque te amo!
— Oh, por favor, pare. Não diga mais nada. Não minta mais.
— Mas não estou mentindo! — gritou Rafael, de repente alterado.
Nisso, Ana Maria aproximou-se da mesa, com uma expressão
preocupada no rosto fino e jovem. Ao falar com Rafael, sua voz era
apressada e queixosa. Ele respondeu-lhe
em espanhol, em tom de brincadeira, e Ana sorriu.
— Si, eníiendo — ela disse, lançando um olhar de compreensão
para Glenda. — Quer que eu lhe traga a sobremesa? Temos morangos
frescos com creme chantily. E um bom
café para completar.
Rafael aceitou, e a mulher desapareceu por entre as folhas das
palmeiras. Sorrindo para Glenda, ele comentou: Eu disse a Ana que a
nossa briga é de namorados.
— Nós não somos namorados — protestou Glenda.
— Então, o que somos? — ele interpelou, exaltado, seu
temperamento passional rompendo qualquer controle
que, porventura, tivesse, os olhos fulminando à luz das velas.
Se não somos namorados, então somos amantes! É assim que
você prefere?
Glenda escondeu o rubor do rosto entre as mãos.
90
— Por que você está me atormentando assim? Você fingiu ser um
outro homem, e jamais vou perdoá-lo por isso. Você... você se
aproveitou de mim!
— Você se sente indigna e enganada só porque descobriu que o
homem a quem se entregou ontem à noite não se chama César? —
perguntou ele, inconformado. — Pois então,
tente imaginar como eu me sinto, sabendo que era em outro que
você estava pensando, enquanto fazíamos amor. Foi você quem me
usou!
— Eu não fiz isso!
— Não? Quem você beijou e tocou? Que nome murmurou em
meus braços? César! Sempre César... Acha que foi fácil para mim?
— Oh! — Ela rompeu em soluços, completamente desnorteada.
— Vamos! Não é preciso chorar por causa disso... Ele acariciou-lhe
os cabelos como se ela fosse uma criança. Não vamos mais falar de
César. Vamos começar tudo de
novo. Vamos pensar apenas em nós dois, você e eu...
Nesse instante, Ana Maria aproximou-se mais uma vez, trazendo a
sobremesa e o café, num bule de prata, duas xícaras e os pires. Ao
colocar tudo sobre a mesa, comentou,
sobre os festejos de Páscoa: .
— Vocês vão assistir as cerimónias religiosas? Glenda informou
que não poderia ir.
— Infelizmente, tenho que retornar amanhã ao Canadá!
— respondeu Glenda, no mesmo tom afável da jovem,
— Você precisa convencê-la a ficar — disse Ana Maria dirigindo-se
a Rafael. .
— Estou tentando, pode estar certa disso — ele respondeu, com
um sorriso enigmático.
com um gesto silencioso de aprovação, Ana Maria afastou-se.
Disposta a encerrar a discussão com Rafael, Glenda pegou a
colher de sobremesa e mergulhou-a no creme batido. Por um curto
período de tempo, os dois apreciaram a
sobremesa, calados. Depois, Rafael serviu-lhe o café, e ela
agradeceu sem olhá-lo. A curta conversa com Ana servira para preveni-
la. Não iria se deixar convencer
a permanecer mais
91
tempo no país, muito menos a ficar com ele, para ser apenas sua
amante...
— E então, Glenda? Está mais calma agora? — ele falou
docemente. — Nos demos bem em Montreal e podemos nos dar bem
agora. Não negue isso — acrescentou depressa quando
Glenda tentou contradizê-lo. — Fomos feitos um para o outro, e
eu gostaria de me casar com você. Na verdade, você é a única mulher
que eu gostaria de ter como esposa.
Surpresa, ela deixou a colher cair das mãos. Aquilo só podia ser
mais uma brincadeira de Rafael, refletiu, incrédula.
— Você ficou maluco? — perguntou num tom de zombaria, a fim
de disfarçar a emoção intensa que estava sentindo.
-Acho que sim — ele respondeu rindo. — Até hoje eu pensava que
quando um homem pedia uma mulher em casamento era porque tinha
ficado doido. — Encolheu os ombros.
— Bem... acho que hoje eu faço parte dessa turma... pois estou
doidinho por você! Case-se comigo, Glenda! Eu a amo...
Na semi-escuridão, as poucas luzes existentes dançavam em torno
dos olhos de Glenda. Não estaria sendo enganada outra vez? Não seria
mais um sonho lindo? Mas, se
era um sonho, não queria mais despertar.
— Mas e Rosário? Você prometeu se casar com ela!
— O quê? — perguntou Rafael. Uma ligeira irritação turvou seu
rosto. — Quem lhe disse isso?
— Ela mesma. Ontem. Disse que um dia vocês vão se casar.
— Ela está fantasiando! Nunca lhe prometi nada.
— Ela o ama.
— Não, não me ama. Ela ama uma fantasia que ela mesma criou.
Ela vai se casar com outro homem, com o jovem Pedro, seu parceiro de
dança. Ela é muito jovem para mim
e muito ingénua. Além disso, eu não a quero. Quero você, Glenda.
E então? Quer se casar comigo?
Um pouco tonta pelo efeito da bebida e pelas surpresas deliciosas
daqueles últimos instantes, Glenda sentia a cabeça rodopiar. Ao longe,
via as lâmpadas no porto
dançarem, numa festa de luzes. As folhas das palmeiras, agitadas
pela
92
brisa, sombreavam a mesa, formando desenhos... De repente, ela
voltou o olhar para Rafael. Os olhos dele tinham um brilho dourado e
pareciam sinceros.
— Como posso me casar com você, Rafael? Eu mal o conheço, e o
pouco que sei a seu respeito não me agrada. Sentia calor agora, como
se estivesse queimando por dentro.
Desejava-o,
mas
precisava
reprimir
esse
sentimento,
rapidamente.
— Que existe em mim que não lhe agrada? — Rafael perguntou,
ansioso. .
— Você é um mentiroso! Prometeu a Rosário que iria se casar com
ela... Prometeu vê-la dançar no hotel de Samana, ontem à noite, e não
foi...
— Não prometi nada! E não fui vê-la dançar porque estava com
você.
— Você fingiu ser César — Glenda não conseguia se esquecer.
— Pare de pensar nele! Pense apenas em mim. — Rafael se
inclinou para a frente. — É a mim que você ama! Demonstrou isso em
Montreal, e ontem à noite também! Vamos,
admita-o para você mesma...
Glenda balançou a cabeça de um lado para o outro, como se
quisesse se livrar de toda aquela confusão de ideias, temores e
perguntas.
— Eu... eu não sei. Depois de tudo que aconteceu, eu não posso
confiar em você... — murmurou. Sentia um aperto no peito. A recusa
lhe doía fundo, pois o queria mais
do que tudo no mundo. — Gostaria de voltar para o hotel agora.
Estou cansada e preciso levantar cedo amanhã e ir para o aeroporto.
— Então vamos! vou levá-la de carro.
Glenda deu uma olhada rápida para Rafael. Ele já estava se pondo
de pé, não lhe dando tempo de ver a expressão de seu rosto.
Ana e Paço os acompanharam até as escadas, insistindo para que
voltassem logo ao restaurante. Rafael desceu primeiro e, num gesto
polido, abriu a porta do caminhão
para Glenda.
Seguiram
em
silêncio
enquanto
o
caminhão
avançava,
serpenteando,
93
por entre o tráfego, em direção à rodovia. Ele dirigia com a
mesma imprudência de sempre, mas isso, agora, não tinha a menor
importância para Glenda.
Na verdade, não queria voltar para o hotel, e sim para a casa dele
em Samana.
Quando ele diminuiu a marcha e manobrou o caminhão para pegar
o atalho estreito, margeado de palmeiras, Glenda ficou profundamente
decepcionada porque ele não queria
sequestrá-la e levá-la à força para seu esconderijo, como fazem
os heróis dos romances.
Os reflexos prateados do luar incidiam sobre o mar, uma massa
mole, móvel e escura. Rafael parou o caminhão no estacionamento.
Embora as luzes do prédio da administração
do hotel estivessem todas acesas, o local estava quieto.
— Que estranho! O hotel parece vazio — Glenda comentou.
— Provavelmente, todos foram passar o sábado de Aleluia na
cidade — ele respondeu, desinteressado.
— Você não precisa vir comigo até o chalé — Glenda disse,
tomando a frasqueira da mão dele.
— Prefiro ir. Quero ter certeza de que você chegará sã e salva —
ele teimou, dando-lhe o braço livre.
As sandálias de Glenda enchiam-se de areia enquanto eles
caminhavam pela praia até o chalé. Ouviam-se o dope murmúrio do mar
e o farfalhar das folhas das palmeiras.
Quando chegaram no chalé, Glenda vasculhou a bolsa à procura
da chave. Depois de abrir a porta, ela se voltou para Rafael. Chegara o
momento da despedida. No entanto,
Glenda não encontrava palavras para lhe dizer. Não queria
separar-se dele... Não queria perdê-lo.
O quarto estava iluminado pela luz ténue do luar. Mesmo assim
Rafael entrou, tateando o interruptor, junto à porta. A lâmpada se
acendeu, dissipando as trevas. Glenda
entrou logo a seguir. Ele então largou a frasqueira em cima da
cama, fechando a porta com uma pancada. Depois, virou-se e, antes
que Glenda pudesse dizer qualquer
coisa, segurou-a pelos ombros, puxou-a para si e beijou-a.
O contato quente dos lábios de Rafael em sua boca fez com
94
que ela esquecesse todos os seus receios, e o fogo da paixão
reacendeu em seu corpo. Os lábios se abriram ávidos para deixar a
língua
dele penetrar, firme e quente.
Acariciou-lhe os cabelos cor de prata, rebeldes e encaracolados,
com ânsia incontrolável.
Excitado, Rafael explorava o corpo de Glenda com os de dos ágeis
e experientes.
Sobre o fino tecido de sua blusa, tateou-lhe os bicos dos seios
enrijecidos. Porém, alguma oisa a impedia de se entregar a Rafael
completamente.
— Oh, por favor, vá embora! — ela gemeu.
— Ainda não — ele pediu, levantando a cabeça e fitando-a com
olhos brilhantes de desejo. — Não, enquanto eu não lhe der algo que a
faça lembrar-se de mim para sempre...
— , Erguendo-a nos braços, ele a carregou para a cama,
deitandoa carinhosamente.
Quando Rafael tirou a camisa, Glenda contemplou sua pele E
queimada de sol, e o anseio de tocá-lo a incendiou. Contudo, ainda tinha
medo, ao vê-lo aproximar-se
do leito, completamente nu e sem pudor, os olhos brilhantes,
cobiçando-a, querendo-a urgentemente.
— É melhor que você vá embora, Rafael! Ida pode chegar a
qualquer momento.
Rindo, Rafael segurou-a pelos punhos e sentou-se ao seu lado, na
cama. Havia uma mescla de crueldade e ternura em seu rosto.
— Ida não vai chegar agora, não se preocupe! — disse ele,
curvando-se sobre Glenda. Sua voz era suave e seus lábios quase
tocavam os de Glenda.
— Como sabe? — ela perguntou, sem fazer resistência enquanto
seus dedos finos acariciavam os pêlos do peito forte e tentador.
— Passei hoje por aqui, a caminho da cidade, achando que você
talvez tivesse vindo para cá, e encontrei sua amiga. Pediu-me para
avisá-la de que passaria a noite
fora, junto com o grupo da excursão. Pretendiam ir ao baile de
Aleluia, na cidade, e, ao amanhecer, passear perto das montanhas para
ver o sol nascer. — Os lábios
dele desceram até a curva de seu pescoço.— Como vê, meu amor
— murmurou -,
temos
95
a noite toda para ficarmos juntos. Eu, Rafael, e você!
— Oh, tenho tanto medo... eu...
— Não tenha medo! Sou Teu, Rafael, quem está beijando você,
tocando-a, excitando-a... Glenda, querida, diga meu nome... diga que
você me ama! — Apossando-se novamente
dos lábios dela, apertou-a contra si, fazendo-a sentir a rigidez de
seu sexo.
Glenda aspirou o hálito quente e retribuiu seus beijos
apaixonadamente.
— Rafael, meu bem... Rafael! — Sem ter consciência do que
estava fazendo, ela arrancou suas próprias roupas e experimentou uma
extraordinária sensação de prazer
ao sentir na própria pele o contato do corpo dele, másculo e
macio.
Por um instante apenas, Rafael afastou-se para poder contemplar
a nudez de Glenda, e seus olhos brilharam de luxúria. Em seguida, seus
corpos fundiram-se ávidos
e trémulos de volúpia e paixão.
No alto, o ventilador zumbia, quando ambos sucumbiram ao
clímax do prazer, .
— Foi bom para você? — Rafael indagou, quase sem fôlego,
descansando ao lado dela.
— Sim. E para você? -ela sussurrou, dando um fraco gemido de
satisfação.
— Agora diga: -quem eu sou?
— Você é Rafael e... eu amo você. Oh, meu amor, faça amor
comigo outra vez! Por favor, por favor...
Ele deitou-se novamente sobre Glenda, que percorreu suas costas
largas com as unhas, num instante de rreflexâo. Em seguida, Rafael
mergulhou bem dentro dela, dizendo-lhe
palavras de amor em espanhol.
Glenda se movia contra ele com tal premência, que o
surpreendeu. Cada vez mais excitado, Rafael correspondia aos
movimentos dela, desejoso de satisfazê-la, antes
de entregar-se ao gozo pleno e total.
— Acredita agora que me ama? — ele perguntou, suave e
tranquilo, depois de terem feito amor.
— Acredito...
— Isso é muito bom! Estou feliz agora — ele murmurou,
acariciando-lhe os cabelos.
96
Glenda estava feliz também. Um maravilhoso torpor foi tomando
conta de seu corpo. Nada mais importava a não ser aquela confortável
sensação de amar e se saber
amada. "Rafael", murmurou, sonolenta. "Eu amo você!" Em
seguida, adormeceu nos braços dele.
97
CAPÍTULO IX
— Acorde, acorde, Glenda! Já é de manhã... E está na hora do
café! Não se esqueça de que partimos hoje, daqui a exatamente duas
horas e quarenta e cinco minutos.
Glenda endireitou o corpo, abruptamente. Deu uma olhada
cuidadosa pelo quarto, procurando sinais da presença de Rafael. Em
vão! Ele não deixara nenhum vestígio.
Só aquele sentimento profundo que chegava a ser dor no seu
íntimo. Jamais voltaria a ser a mesma mulher, que viera à República
Dominicana para entrevistar César
Estrada. Rafael lhe dera realmente algo que a faria lembrar-se
dele para sempre. Mas junto a essa lembrança dera-lhe também uma
profunda decepção. Ele se fora antes
que ela pudesse dizer-lhe que o perdoava e que aceitava sua
proposta de casamento.
— Você se divertiu ontem à noite? — Glenda perguntou à amiga,
disfarçando o desânimo.
Ida estava ocupada em retirar as roupas do armário e arrumá-las
na mala de viagem.
— Sim. Pode crer! — Alta, graciosa, de cabelos pretos, Ida deu
uma olhada para Glenda. — E você? Aproveitou bem sua estada com
César, em Samana? Ele esteve aqui,
ontem, procurando por você...
— Aquele não era César — disse Glenda sem rodeios, achando
melhor contar logo a verdade a Ida. — Era seu irmão gémeo, Rafael.
— Sério? — Os olhos claros de Ida piscaram curiosos quando ela
se voltou. — Você já o conhecia?
— De certa forma, sim. Ele visitou César em Montreal.
— Glenda afastou o lençol, pulou da cama e enfiou a saia fina de
algodão. Ida estava entretida em colocar suas roupas de baixo num
canto da mala, negligentemente
arrumada.
98
— Mas você viu César também? — indagou despreocupada.
— É, também... — respondeu Glenda, observando seu reflexo no
espelho oval do armário. Seus cabelos estavam desgrenhados, suas
faces, tostadas de sol e rosadas. Sentia-se
diferente: menos séria, menos fria, mais mulher. E seu gelo
parecia ter sido derretido pelo sol tropical.
— César também estava em Samana?
— Não, não estava. Por isso é que voltei para a cidade ontem de
manhã. Eu fui à casa dele em Puerto Plata.
— E conseguiu entrevistá-lo?
— Não. Sua esposa não deixou. — Glenda deu uma risada, — Ela
é terrivelmente ciumenta.
— Ora, que pena! — disse Ida, demonstrando solidariedade. —
Mas, pelo menos, você se divertiu com Rafael, em Samana? — Ela fez
uma pausa e se voltou, com um olhar
maroto para Glenda. — E aqui, a noite passada?
Glenda, que estava indo para o banheiro, parou, gelada. Virou-se
lentamente. Ida sorria, maliciosa.
— O que está querendo dizer? .
— Ele... Rafael... você esteve com ele, aqui, ontem à noite? — Ida
insinuou.
— Como sabe?
— Eu o vi saindo daqui hoje cedo. Passou por nós no seu
caminhão e pegou o atalho para sair na rodovia. Seguiu na direção
leste. Imagino que estava voltando para
Samana. Por que você não foi com ele?
— Eu... ahn... Porque vamos retornar hoje ao Canadá
— Glenda retorquiu, mal-humorada, e entrou no banheiro.
Enquanto tomava uma ducha, Glenda pensava em Rafael.
Lembrou-se do
banho que haviam tomado juntos. De como ele a beijava e
acariciava, ensinando-a a compartilhar
do seu prazer. Excitada, ela desligou o chuveiro e rapidamente
começou a enxugar-se.
O que fazer agora? Como esquecê-lo? Ela havia descoberto o céu
nos braços dele. Como se acostumar de novo com a solidão? Então, por
que não aceitara seu pedido de
casamento?
"A esta hora, ele já deve ter se arrependido", pensou,
desanimada,
99
enquanto saía do banheiro com a mesma pressa com que havia
entrado.
Meia hora depois, Glenda já estava junto ao grupo de turistas
canadenses no estacionamento do hotel. Observava distraída as malas,
dentro do bagageiro do ônibus
que levaria os passageiros para o aeroporto. A tristeza que sentia
em deixar o país onde aprendera a ser feliz era imensa! Nem sequer
percebia o calor forte do sol,
que resplandecia num céu límpido, sem nuvens.
— É bom aproveitar esses últimos minutos de calor — comentou
Ida, tirando o chapéu e erguendo o rosto para o sol.
— As últimas notícias sobre o tempo em-Toronto são de que a
primavera ainda não começou. Houve até uma nevasca lá ontem à
noite. — De repente, ela examinou Glenda
com os olhos. — Deus, o que há com você, Glenda?
-
— Desculpe — respondeu Glenda friamente e, dando-lhe as
costas, caminhou até a praia a passos lentos.
As ondas espumavam e arrebentavam com força, mas ela nem
sequer as via. Fora até ali apenas porque não podia suportar a alegria
espontânea de Ida.
Naquele momento, tudo que Glenda queria era ir até o ônibus,
remover sua bagagem e dizer a todo mundo que iria ficar porque,
estava apaixonada por Rafael e queria
casar-se com ele.
Subitamente, contemplou o mar azul-turquesa.
"Esta praia, esta ilha tão bonita...", pensou. Estava simplesmente
enfeitiçada por aquele lugar, por aquela areia, suas palmeiras incríveis,
e por aquele despreocupado
estilo de vida. Voltaria à rotina assim que retornasse ao seu país e
recomeçasse a escrever...
— Glen, Glen! — A voz estridente de Ida cortou o ar. Glenda se
virou, impaciente. Por que Ida não a deixava em paz?
— O que é agora?
— Chegou um rapaz com um recado para você — Ida gritou de
longe, apontando para um homem magro, moreno, a poucos passos-
dela.
Uma esperança nasceu dentro do coração de Glenda. Só
100
podia ser um recado de Rafael, naturalmente. De quem mais
seria? Caminhou, apressada, ao encontro do mensageiro.
— É a sra. Thompson? — ele perguntou.
A magreza dele, seu rosto escuro e luzidio e os dentes alvos
fizeram-na lembrar-se de Alberto. Mas o outro era mais velho que o
rapaz que estava à sua frente.
— Sim, sou Glenda Thompson.
— O senor Estrada deseja vê-la. Mandou entregar à senhora este
bilhete.
— Senor — estranhou. — O sr. César Estrada? — Glenda percebeu
que Ida não poderia ouvi-la.
— Si, senorita.
Ela pegou o bilhete e, antes de abri-lo, deu uma rápida olhada ao
redor, a fim de certificar-se de que não havia ninguém observando-a. A
caligrafia era miúda e nítida,
completamente diferente dos rabiscos do dr. Rafael. O bilhete
dizia:
"Glenda, desculpe não tê-la recebido adequadamente, ontem à
tarde. Gostaria muito de dar-lhe a entrevista que você queria. Venha,
por favor, no meu carro, com o
portador desta mensagem. Vamos a um local onde possamos
conversar à vontade. Mais tarde, eu próprio a levarei até o aeroporto a
tempo de pegar o avião. César".
— Onde está o carro? — ela indagou, dobrando o bilhete e
enfiando-o no bolso da saia.
— Lá atrás. — O rapaz apontou com um sinal de cabeça para a
direção do atalho que levava à rodovia. — Está estacionado debaixo das
árvores. O sr. Estrada não quis
vir aqui. Não quer que o vejam com a senhora. Por favor, pode vir
comigo,
senorita?
— Sim, claro! Mas, primeiro, preciso avisar a minha amiga.
— Tudo bem, eu espero.
Glenda alcançou Ida, tocando-lhe no ombro. A amiga voltou-se
com um brilho de curiosidade no olhar.
— E então? O bilhete era de Rafael? Afinal de contas, você vai
ficar aqui?
— Não, não. — Glenda sacudiu a cabeça. — O bilhete é de César.
Ele vai me conceder a entrevista antes da minha partida. Está
esperando por mim no carro, logo ali,
no atalho. Depois, vai me deixar no aeroporto. Quer fazer a
gentileza
101
de avisar ao guia turístico que eu não vou com os demais no
ônibus? Vejo você mais tarde no portão de embarque. Estou com a
passagem. A bagagem pode seguir
sem mim. Tudo o que preciso é do meu bloco de anotações.
— E o seu gravador?
— Eu o deixei em Samana — disse Glenda, fazendo uma careta
engraçada, de auto-recriminação. — Pura distração!
— Oh, entendo — Ida gracejou. — Mas, e se você não aparecer a
tempo de pegar o avião? Como vou explicar?
— Mas eu vou aparecer, esteja certa disso. O avião só parte daqui
a uma hora e meia, e não vou demorar mais do que trinta minutos com
a entrevista. Estarei no aeroporto
com tempo de sobra para passar pela alfândega e pela segurança.
Até mais tarde!
— Adiós, Glenda. Mande-me um cartão postal, se resolver ficar. ,
Bastante irritada com a irreverência da amiga, Glenda
acompanhou o rapaz até o atalho, tentando se lembrar de todas as
perguntas que queria fazer a César. Finalmente,
tinha a chance de realizar o trabalho que a trouxera àquele país, e
não queria desperdiçar nenhum minuto
de seu encontro com César.
O automóvel era comprido, de cor cinza, e com vidro fume nas
janelas. Por isso, não conseguiu ver quem estava no seu interior, mas,
quem quer que estivesse dentro
do carro podia vê-la perfeitamente. Ao se aproximar, a porta de
trás se abriu e César, vestido de branco, apareceu. Através das lentes
dos óculos escuros, ele sorriu
para Glenda, um tanto apreensivo.
— Obrigado por ter vindo, Glenda — ele disse, polido.
— Entre, por favor.
Assim que ela se acomodou no assento de couro, ao lado dele, o
motorista fechou a porta.
— Ainda bem que você chegou a tempo. Minha bagagem já estava
dentro do ônibus.
— Caso eu não a encontrasse aqui, pretendia procurá-la no
aeroporto. .Precisava falar com você, Glenda — ele explicou, sério. — E
é muito importante.
— O avião sai às dez e quarenta e cinco. Logo, só temos meia
hora para conversarmos. Preciso realmente estar no
aeroporto
102
para a vistoria uma hora antes da decolagem, mas já avisei minha
amiga que talvez eu me atrase um pouco.
— Eu sei a hora do voo — ele respondeu, enquanto o automóvel
começava a rodar macio pelo atalho, em direção à rodovia.
Andar naquele carro era bem diferente de andar no caminhão
Hyundai.
— Em primeiro lugar, espero que não tenha ficado muito ofendida
com o que aconteceu na minha casa. — César tirou um lenço branco do
bolso e enxugou o suor do rosto.
No entanto, a temperatura ali dentro era agradável, por causa do
ar-condicionado. — Por
Dios! — exclamou, perdendo a calma de repente. — Tive uma
noite péssima pensando
em você. — Voltou-se para ela, com uma expressão de desculpas
nos olhos. — Você não pretende se vingar pelo que aconteceu,
pretende? Por favor, Glenda, diga que
não.
— Vingar-me, eu? O que está querendo dizer? Como é que eu
poderia fazer uma coisa dessas?
— Fiquei a noite toda preocupado com a possibilidade de você se
vingar, escrevendo um artigo sobre mim e Janice, nos criticando —
explicou ele, enxugando novamente
a testa. Você entende? Foi isso o que ela fez — acrescentou num
sussurro, olhando para fora da janela.
— Ela quem? — Glenda indagou, ciente de que o carro chegara ao
fim do atalho.
O automóvel deu uma parada, então. Visto que nenhum veiculo
passava pela rodovia, fez uma conversão e entrou à esquerda. Glenda
afundou no banco, suspirando aliviada.
Já estavam a caminho do aeroporto.
— Quem é elal — Glenda retomou o fio da conversa, abrindo seu
caderno e localizando a página onde havia anotado as informações que
Rafael lhe fornecera.
O tempo estava passando rápido e a entrevista ainda não tinha
começado. De algum modo tinha que fazer César se apressar, mas
antes queria muito descobrir quem havia
escrito um artigo crítico e maldoso a respeito dele.
— Paula Van Druten — ele citou. — Será que você já ouviu falar
dela? — Glenda fez um gesto negativo com a cabeça, anotando, porém,
aquele nome no caderno. — Ela
era nossa vizinha em Nova York e tinha planos de escrever um
103
grande romance. Eu a estava ajudando, mas aí Janice ficou com
ciúme e a proibiu de entrar em nosso apartamento, assim como minhas
-visitas a ela. Dios, que situação!
— E seu irmão gémeo não estava por perto para ajudálo? —
Glenda perguntou, secamente.
César girou a cabeça e arregalou os olhos. Ela não pôde ver-lhe a
expressão do rosto, pois a luz do sol refletia em seus óculos, mas teve a
nítida impressão de que
ele ficara surpreso.
Então, ela explicou: — Rafael me contou, a noite passada. Muitas
vezes fingiu ser você, para tirá-lo de encrencas, não é? Agora, por
favor, conte-me o que Paula
Van Druten fez para se vingar de você e, depois, vamos
prosseguir com a entrevista.
Mais tranquilo, com a naturalidade de Glenda, César suspirou
longamente.
— Ela escreveu um artigo em que ridicularizava Janice e eu;
expondo nossa vida particular ao conhecimento público.
Dios, foi horrível! Tive medo de que você fizesse
o mesmo. Por isso, resolvi procurá-la. Queria lhe pedir desculpas
pelo incidente de ontem e conceder-lhe a entrevista. Desde que você
prometa não escrever nada sobre
o meu casamento com Janice.
— Sei muito pouco sobre a vida particular de vocês, portanto.seria
difícil para mim fazer qualquer comentário — ela replicou, com frieza. —
Sei apenas o que Rafael
me contou. Janice descobriu sobre a nossa amizade em Montreal e
ficou com ciúme. Certo?
— É isso mesmo.
— Agora diga-me: Por que me julgou capaz de prejudicálo.
Conhece-me tão pouco assim?
— Eu realmente conheço muito pouco a seu respeito — ele se
defendeu. — É verdade que fazíamos parte da mesma turma em
Montreal, mas nunca fomos íntimos. Rafael
deve tê-la conhecido melhor, quando foi me visitar em Montreal.
— Alguma vez ele lhe contou que eu o confundi com você quando
fomos esquiar em Quebec?
— Sim, contou. — Os lábios dele se crisparam num sorriso irónico,
que o fez parecer-se ainda mais com o irmão.
— Naquela época, éramos mais parecidos do que hoje. De certa
forma foi divertido, mas a verdade é que ele se
apaixonou
104
por você. O sorriso se extinguiu. — Ele ainda a ama, sabia? Quer
se casar com você...
Glenda baixou os olhos para o caderno. As palavras na página
aberta ficaram embaçadas.
— O que foi?
— Mas eu me recusei — ela apressou-se em dizer, assumindo uma
postura ereta. — Mas o tempo está se esgotando e eu gostaria de
anotar alguns dados. Possuo informações
sobre onde iasceu e foi educado, mas quero saber por que decidiu
ir para uma universidade canadense para fazer seu mestrado em Inglês.
— Ora, isso é fácil — ele respondeu. — Eu conheci outras pessoas
que estudaram em Montreal, e gostaram muito... É mais barato
frequentar uma universidade lá do que
nos Estados Unidos ou na Inglaterra. O curso oferecia todas as
matérias que me interessavam, além de uma sólida formação literária.
— Na sua opinião, qual é a melhor literatura?
— A inglesa. Eu tenho preferência pela inglesa. Já se escreveu
mais em inglês do que em qualquer outra língua, mas também aprecio
outras. No Brasil, por exemplo,
existem grandes talentos. Como você deve saber, o Português é
um idioma que possui um vocabulário riquíssimo!
Consequentemente, o escritor brasileiro dispõe desse
recurso para dar vazão à sua criatividade da forma que lhe
parecer mais original.
Enquanto o automóvel rodava macio, Glenda ia anotando as
respostas rapidamente, erguendo a cabeça somente para fazer a
pergunta seguinte.
— Por que não aceitou se casar com Rafael? Não gosta dele? —
César a interrompeu quando ela ainda escrevia.
— Eu... Por que quer saber? — Ela tomou uma posição defensiva e
continuou a escrever.
. — Porque me preocupo com ele. Sempre nos entendemos bem e
nos ajudamos mutuamente. Ele, principalmente, que é mais ajuizado. —
César riu, bem-humorado. Eu sou
mais sonhador e ele, mais realista. Você gosta dele, não é?
— Gosto. — Glenda respondeu friamente. — Agora, voltemos à
nossa entrevista, por favor! Só temos alguns minutos... Quanto tempo
você precisou para escrever seu
livro?
105
— Não sei dizer com precisão, mas levei anos! Sou um pensador
lento e demorei para elaborar o enredo e criar os personagens.
— Uns oito anos, mais ou menos?
— Mais do que isso. Comecei a pensar nele antes de ir estudar no
Canadá. É uma fusão de impressões e ideias sobre meu próprio povo.
Você já o leu?
— Não ousaria entrevistá-lo se não o tivesse lido.
— Ótimo! E o que achou?
— Achei um pouco triste.
— Mas somos um povo triste! Muitos foram trazidos para o
hemisfério ocidental por conquistadores espanhóis. Depois, despejados
nessas ilhas ou no continente, abandonados
à própria sorte. — César entusiasmou-se com o assunto,
obrigando Glenda a escrever mais depressa. Estava tão concentrada no
trabalho, que nem prestou atenção no
percurso. Ouviu-o, em seguida, discorrer sobre os problemas
encontrados ao escrever seu romance e sobre os planos para o próximo
livro. Enquanto rabiscava às pressas
as informações, Glenda percebeu que escrever era, para César, a
coisa mais importante do mundo.
E, como todo escritor, vivia sempre com a cabeça nas nuvens!
Quando a entrevista terminou, Glenda espiou para fora, pela
janela. O carro diminuíra a marcha, prestes a parar; entretanto, não
haviam chegado ao aeroporto, conforme
esperava. Estavam, sim, numa praia tranquila...
Nisso, o carro deu um arranco na estreita pista litorânea e entrou
numa estrada secundária, entre árvores e arbustos. Depois, passou
sobre uma superfície desigual,
com suavidade, e parou em um pátio, em frente a um comprido
bangalô de telhado vermelho.
— Oh! Onde estamos? — Glenda perguntou assustada,
consultando rapidamente o relógio de pulso. Constatou, desolada, que
já passará mais de meia hora. — O avião vai
decolar daqui a trinta minutos! Peça ao motorista para ir direto ao
aeroporto, imediatamente. Senão vou perder o avião!
— Você já o perdeu — César respondeu calmo e, por um
momento, ela achou que era Rafael quem estava falando.
— Estamos muito longe, a quase cinquenta milhas do aeroporto.
106
Eu fiz de propósito! Quería que você perdesse o avião, e consegui.
— Mas por quê? Não estou entendendo. Oh, seus truques são tão
sujos quanto os de Rafael! — Ela se enfureceu. O que vou fazer agora?
De que jeito vou voltar a Toronto?
Eu estava em um voo fretado e será muito difícil trocar a minha
passagem por outra, num voo normal. Isso vai custar muito mais caro e
não tenho dinheiro suficiente.
Além disso, terei que passar mais uma noite, ou duas, num hotel.
Oh, por que fez isso, César?
— Você poderia economizar, se ficasse na casa de praia de Rafael
— César retrucou, sem se perturbar. — E, nesse caso, Rafael não
poderia retornar à Nicarágua. -
Ele deu um longo suspiro. — Meu irmão lhe contou que pretendia
voltar para lá?
— Não. Não me contou nada. — A voz de Glenda era baixa e
trémula. — Por que ele quer voltar à Nicarágua?
— Para continuar o trabalho que vem realizando lá nesses últimos
anos. Como médico voluntário. Primeiramente, trabalhou em El
Salvador e, depois, na Nicarágua, cuidando
da população pobre que sofre os efeitos da guerra civil. Costuma
ir de aldeia em aldeia a pé, com a mochila de suprimentos médicos nas
costas, para acudir essa gente.
Há alguns meses atrás, Rafael foi ferido a bala, acidentalmente
disparada por uma metralhadora em poder dos guerrilheiros. Ele foi
obrigado a automedicar-se, voltando
para casa a fim de se recuperar. Aqui, ele retomou o atendimento
médico às pessoas carentes. Precisamos da presença dele nesta cidade.
Mas acho que ele só permaneceria
aqui se constituísse uma família. — César fez uma pausa, para
tomar fôlego.
— Rafael me falou sobre seus planos de casamento com você,
ontem à noite. Não temos segredo um com o outro quando estamos
juntos. E eu esperava que você aceitasse
a proposta dele. Gostaria de saber por que recusou, Glenda.
— Rafael me pediu em casamento, logo após eu ter descoberto
que ele se fazia passar por você, entende?
— Eu entendo, é claro. Mas você não o ama?
— Amo. Mais do que a qualquer outra pessoa — ela admitiu,
desesperadamente. — Eu... eu me apaixonei por ele
107
há oito anos atrás, mas pensei que se tratava de você. Quando o
reencontrei, no mercado, compreendi que ainda o amava.
— Sim, era ele que estava lá no mercado. Era ele usando meu
nome. Eu nunca me apaixonei por você, Glenda. Rafael sim. Ele a ama!
Você é que não o ama. Se amasse,
saberia perdoá-lo. Afinal de contas, o que é um nome? O que
importa é o que vai dentro da gente.
— Foi Rafael quem pediu para você me fazer perder o avião? —
Glenda perguntou, cabisbaixa, enquanto rabiscava no caderno, a esmo.
— Não, não foi ele. Eu é quem tive a ideia. Como já lhe disse,
passei uma noite péssima, pensando em vocês dois. Tive uma forte
intuição de que vocês tinham brigado
por causa da troca de nomes. Eu precisava fazer alguma coi
para ajudálo. Ele é imprudente, não liga a mínima para o risco que
poderá correr, se
retornar à Nicarágua. Pensa apenas em auxiliar as pessoas mais
pobres. Mas nós nos preocupamos.
Meus pais e eu. E eu espero que você também se preocupe,
Glenda.
— Eu me preocupo — ela murmurou. — Eu me preocupo, e muito.
Más Rafael simplesmente fugiu de mim...
— Ele é orgulhoso demais! O próximo passo tem que ser seu, se é
que se preocupa com ele realmente. E agora, já que perdeu aquele
avião, por que não tenta?
— O que eu posso fazer?
— vou descer aqui para visitar um amigo que mora nesta casa.
Carlos levará você para Samana, se quiser. — César deu uma olhada no
relógio. — Você poderá chegar lá
a tempo,
— A tempo de quê?
— De impedi-lo de sair do país hoje. Foi isso que decidiu fazer,
depois que você se recusou a casar com ele.
A luz do sol batia na janela, ao lado de Glenda, parecendo
queimar a sua pele. Ideias fugidias revolviam-lhe a mente. Pensava no
avião que decolará há pouco rumo
ao Canadá e em sua bagagem. Estaria dentro do avião, ou fora
deixada no aeroporto? Lembrava do tom irónico de Ida quando se
despediram. Pensava em Rafael. Sobretudo,
nele...
— Está bem — decidiu-se. — Pode pedir ao motorista para me
levar até Samana;
com um sorriso parecido com o de Rafael, César curvouse para
beijá-la no rosto.
108
— Bueno, desejo-lhe muita sorte! Se tiver, terei imenso prazer em
vê-los amanhã. Caso contrário, volte a Puerto Plata e vá para minha
casa. Pode ficar lá o tempo
que precisar... Adias, por enquanto.
— Após ter dado as instruções a Carlos, César desceu do carro e
fechou a porta. Imediatamente, o motor voltou a funcionar e o carro
seguiu na direção oposta. Ela
só teve tempo de acenar para César antes que o carro
arrancasse...
Cansada, Glenda recostou-see fechou os olhos. Seu coração batia
mais rápido do que o normal. Estava excitada e ao mesmo tempo
confusa. Em pouoo mais de uma hora,
sua vida sofrera uma tremenda reviravolta. Agora, em vez de
pegar um avião para o Canadá, estava retornando a Samana, para junto
de Rafael. . , -
De repente, abriu os olhos e endireitou o corpo no assento,
deixando o caderno escorregar dos joelhos para o piso do carro. Rafael
não merecia que ela fosse procurá-lo...
Ele a enganara, e ela conseguia esquecer-se disso... Por quê? Por
que o amava.e o queria?
O carro fez um desvio, saindo novamente na rodovia e virando a
esquerda, e ela inclinou-se para falar com Carlos.
— Quanto falta para chegarmos a Samana?
— Nesta velocidade, chegaremos lá daqui a uma hora. Fique
tranquila — o motorista respondeu, sorrindo por sobre o ombro.
Glenda recostou-se novamente, com um suspiro. Passado o
aborrecimento inicial por ter sido mais uma vez ludibriada, desta vez por
César, teve vontade de rir. Ele
a sequestrara da maneira mais gentil possível: mantendo-a
ocupada em anotar os dados da entrevista.
Silenciosamente, o carro continuava a rodar, deixando para trás
os altos coqueiros e os barracos humildes do vilarejo, que fazia a junção
entre a estrada que atravessava
as montanhas e a rodovia. Passaram pela cidade de Sanchez e
seguiram pela costa da ampla baia de Samana, que, agora, apesar do
sol forte, estava coberta de névoa,
prejudicando a visão das montanhas distantes. O automóvel subiu
e desceu a encosta, passou pelo shopping center, pelo mercado e entrou
numa alameda larga. Brancos
edifícios retangulares sobressaíam-se na vegetação tropical. O
mar azul cintilava. Os
iates,
109
ancorados, flutuavam, com suas bandeiras tremulando ao vento.
"Não tinha sido ela àquela hora, no dia anterior, que tomara o
ônibus para Puerto Plata?", Glenda se perguntou quando o carro
passava pelo cais. O local estava
apinhado de gente, devido ao feriado. Todos esperavam a barcaça
que os levaria à ilha de Sabana de Ia Mar.
Pouco depois, o carro afastou-se da cidade, subindo a estrada
sinuosa que margeava os rochedos íngremes.
Apesar de um tanto ocultas pelas árvores e arbustos, Glenda
avistou as paredes do refúgio, que refletiam os raios do sol. O
automóvel, então, parou, rangendo os
pneus no espaço arenoso reservado ao estacionamento.
A ideia de fazer uma surpresa a Rafael deixou-a imediatamente
excitada. O que diria ele? O que faria? Mas, o mais importante, era
saber o que ela iria dizer-lhe.
Como iria explicar a repentina visita àquela casa, quando todos
supunham que ela viajara para Toronto?
Assim que desceu do automóvel cinza, Glenda notou que o
caminhão Hyundai encontrava-se estacionado no lugar habitual. Ao lado
dele, havia um outro veículo, um pequeno
automóvel preto. Seria de Rosário? Era só o que faltava!
Enciumada, Glenda quase entrou no automóvel para dizer a Carlos
que queria ir para Puerto Plata. Não pretendia rebaixarse, a ponto de
disputar o amor de Rafael com
outra mulher.
— Carlos, por favor, espere. — Quero voltar a Puerto Plata. Carlos
fez apenas um sinal de cabeça, assentindo. Nisso, alguém surgiu ao
longe, correndo na direção
de
Glenda. Era uma mulher esbelta, de cabelos negros, usando um
vestido extravagante.
— Você? O que está fazendo aqui? — exclamou Rosário assim que
alcançou Glenda.
A mulher estava em prantos e o rímel escorria-lhe dos olhos,
manchando seu rosto.
Mesmo assim, Glenda ergueu a cabeça arrogantemente, e
respondeu:
— Voltei para buscar meu gravador.
110
CAPÍTULO X
Rosário colocou a mão nos seios para estancar os soluços,
exibindo uma corrente grossa de ouro em volta do pescoço, e deu um
passo para trás, os grandes olhos negros
molhados de lágrimas.
— Não acredito em você — ela retrucou mordaz, meneando a
cabeça.
— Mas é verdade. Vim para buscar meu gravador. Glenda repetiu
com obstinação. Eu o deixei aqui ontem e não posso partir sem ele. —
Pôr nada deste mundo Glenda iria
admitir que estava ali por causa de Rafael.
— Mas você disse que iria viajar para o Canadá hoje cedo —
Rosário argumentou, recuperando, rapidamente, sua impetuosidade
habitual.
— Eu sei, mas no momento exato em quê estava indo para o
aeroporto, me lembrei do gravador. Por isso resolvi voltar aqui para
apanhá-lo — Glenda continuou insistindo.
Logo estaria acreditando no seu próprio argumento, pensou com
ironia.
— Rafael pensa que você já foi — disse Rosário, enxugando as
lágrimas do rosto. Ele também vai partir para a Nicarágua, à tarde.
Tentei demovê-lo desta ideia e propus
me casar com ele, caso ficasse, mas ele riu na minha cara. E
ainda sugeriu que eu me casasse com Pedro.
—
E
por
que
não?
—
Glenda
perguntou,
gentil.
Surpreendentemente, o ciúme que ela sentia de Rosário sumira. Não
conseguia vê-la como uma espécie defemmefatale,ou
a sedutora morena, prestes a conquistar o amor de Rafael. Glenda
a via agora, nitidamente, tal qual como era: uma mulher jovem, simples
e ingénua, que não sabia
ao certo o que queria da vida.
— Você também acha que devo me casar com Pedro? Rosário
ergueu as sombrancelhas, surpresa. — Mas você nem o conhece! Ele
nunca olhou para mim, a não ser quando estamos
111
dançando e, quando não estamos trabalhando, ele desaparece.
Nunca ficamos juntos.
— Talvez pense que você só se interesse por ele como seu
parceiro de dança. Ou ache que você não o vê como alguém que tem
sentimentos e ideias, além de saber dançar.
Tente seguir o conselho de Rafael e se interessar pelo rapaz. É
possível que Rafael saiba que Pedro gosta de você como pessoa e como
dançarina, não é mesmo?
— É, talvez... — murmurou Rosário, franzindo a testa. Em
seguida, deu um sorriso que iluminou todo o seu rosto.
— vou agora mesmo procurar por Pedro e dizer-lhe que, apesar de
tudo, prefiro me casar com ele e não com Rafael. Ela lançou-lhe um
olhar vingativo em
direção à porta
envidraçada e, atirando a cabeça para trás, resmungou algumas
palavras em espanhol.
Glenda só entendeu pouca coisa do que Rosário dizia: não
pretendia ficar a vida inteira esperando por Rafael, até que ele ficasse
de cabelos mais brancos ou usasse
bengala...
— Pronto! — exclamou Rosário quando parou de resmungar. — Eu
me sinto muito melhor agora. Pode ficar com Rafael. Eu não o quero
mais, nem que ele venha me pedir
de joelhos. Ele está à sua disposição. Adiós, Glenda. — Em
seguida, Rosário escapuliu pela varanda e desapareceu.
Por alguns instantes, Glenda deixou-se ficar ali, divertida com o
comportamento da
moça. Ouviu o ronco do motor do carro preto e os pneus como
que triturando o cascalho.
O ruído foi sumindo gradualmente à medida que o carro subia a
montanha.
Pouco depois, tudo ficou silencioso. Glenda olhou para a casa de
praia, na esperança de que Rafael surgisse à porta. O sol estava muito
quente e seria um alívio
ficar com ele à sombra da varanda. Mas ele não apareceu.
Os minutos se arrastaram enquanto ela hesitava em se aproximar.
O orgulho induzia a dar meia-volta e ir embora. Por outro lado, queria
entrar na casa e surpreendê-lo.
Confessarlhe que o amava e abrir-lhe os braços...
Lentamente, Glenda caminhou para a porta de entrada. Espiou lá
dentro, na sala de estar. Tudo parecia igual ao dia anterior, mas não
havia ninguém. Relutante, entrou,
fazendo uma pausa, à escuta de sons que lhe dessem uma pista
de Rafael.
112
Mas só ouviu a água fungando de uma torneira, na cozinha. Lá,
Rafad também não estava, porém o gravador ehcontrava-se em cima da
mesa.. Sobre de havia um envelope
e uma folha de papel de carta. Talvez Rafael pretendesse
despachar o gravador pelo correio, pois, ao lado, achou também o
pedaço de papel onde anotara o endereço
dela para Alberto.
Glenda pegou o gravador e instintivamente olhou para a porta. Ao
ver Rafael, parado ali, em pé, observando-a, levou um choque que a fez
estremecer toda...
— Oh, que susto você me deu! — exclamou, com a voz abafada. -
Por que não me avisou que estava aí?
— Eu é que pergunto por que não me avisou que você havia
chegado — ele retrucou friamente. Depois, encostou o ombro no batente
da porta, enfiando as mãos nos bolsos
do short azul, combinando com a camisa branca. O cabelo estava
despenteado, e os olhos, melancólicos, demonstravam cansaço. Todo o
seu brilho e vivacidade pareciam
ter se apagado. — O que está fazendo aqui? Seu voo deve ter
saído há mais de uma hora.
— Eu... eu... — Glenda baixou os olhos para o gravador que
segurava nas mãos. Era difícil vencer o orgulho diante da calma
enervante de Rafael. — Lembrei-me de
que deixei isto aqui... — ela balbuciou, confusa.
— Você perdeu o voo só para vir atrás disto?
O desprezo que havia na voz dele mexeu com seus nervos, e
Glenda levantou os olhos rapidamente, sem saber o que dizer.
— Não há nada gravado na fita — preveniu ele.
— Como sabe?
— Eu liguei o gravador pára ter certeza disso — respondeu,
irónico.
. — Ah! Sim! Ainda bem...Afinal, você não era o escritor César
Estrada. Portanto, seria pura perda de tempo! — ela revidou, sarcástica.
— Você acreditou mesmo que eu era César? Ou fingia acreditar
nisso?
— Eu não estava fingindo — ela se exaltou, mas logo se
interrompeu. — Ora, de que adianta? Isso sempre ficará entre nós! Você
me ludibriou.
-, Somente em relação ao meu nome, mas fui sincero sobre meus
sentimentos — disse Rafael calmamente.
113
Sem coragem de encará-lo, temendo ceder ao impulso de atirar-
se nos braços
dele Glenda baixou os olhos, timidamente.
— De que maneira você veio aqui? — ele quis saber.
— Vim de carro. O mesmo que está esperando para me levar de
volta. -
Por que motivo ambos estavam tão tensos? Por que ela não
conseguia dizer-lhe que O perdoava, que o amava e que gostaria de
viver com ele para sempre? Seria capaz
de qualquer coisa para impedi-lo de partir para a Nicarágua.
Rafael foi até a janela e deu uma olhada no estacionamento.
— Qual é o carro?
— Um automóvel grande, de cor cinza. Não sei a marca.
— Não está lá.
— Tem de estar! — Ela se postou ao lado dele, na janela, para
espiar o estacionamento. Só viu o caminhão Hyundai debaixo das
casuarinas. Totalmente iluminado pela
intensa luz solar-, o resto da área se encontrava vazio. -Ele...
Carlos, o motorista, deve ter ido procurar uma sombra, para estacionar,
talvez no atalho mais acima
— ela disse, indecisa.
— vou dar uma olhada.
Dando meia-volta, ela saiu apressada da cozinha, atravessando a
sala. Percorreu a varanda, quase correndo, e desceu as escadas. Parada
no chão de cascalho, crestado
de sol, examinou o atalho. Não viu nenhum carro estacionado à
sombra das árvores. Carlos tinha ido embora. Mais uma vez precisaria
recorrer a Rafael para transportá-la.
Mas não tinha dúvidas de que fora César que dera instruções a
Carlos.
Guardando o gravador dentro da bolsa, Glenda retomou o
caminho de volta, lentamente. A afobação em localizar o carro parecia
ter exaurido suas energias, e o calor
do meiodia fazia-a sentir-se sonolenta. Gostaria de poder deitar
em algum lugar e dormir. Agora compreendia por que os hispano-
amerícanos gostavam tanto da siesta!
Como, porém, poderia descansar, se ainda tinha que enfrentar
Rafael? César estava certo: o irmão era orgulhoso.
Ao passar pela varanda, algo lhe chamou a atenção. A rede onde
fizera amor com Rafael balançava suavemente. Era Rafael que estava
espichado nela, com uma perna para
fora.
com o coração batendo forte, Glenda caminhou até ele. Sob os
cabelos grisalhos e em desalinho, a testa era lisa, e
114
seu rosto, jovem. Seus olhos estavam fechados, mas os cílios
negros se moviam, enquanto a linha firme dos lábios desmanchara-se
num quase sorriso. Teria ele adormecido?
— Rafael! — ela o chamou baixinho. Queria poder deitar na rede
ao lado dele, mas ficou sem jeito.
— Mmm? — Ele abriu os olhos cor de âmbar. — Você ainda está
aqui? — A voz se arrastou, preguiçosa.
— O motorista se foi... — ela falou medrosa. — César deve ter
pedido a Carlos que, retornasse a Puerto Plata depois de me deixar aqui.
— César mandou você aqui? — Rafael a encarou, espantado.
— Não, ele não mandou. Apenas facilitou as coisas. Glenda se
colocou na defensiva. — Ele foi ao hotel pela manhã para pedir-me
desculpas pelo incidente de ontem
à tarde e conceder-me a entrevista que eu queria, no carro.
Prometeu levar-me ao aeroporto. César, então, pediu a Carlos que me
trouxesse aqui...
Rafael olhava para Glenda atentamente. Era um olhar nítido e
penetrante, como o de uma águia, que a estava fazendo perder o
controle. De repente, ela sentiu uma
vontade enorme de virar as costas e sair correndo.
— E você concordou? — perguntou ele, ajeitando as almofadas
nas costas e fechando novamente os olhos, como se estivesse
subitamente desinteressado.
— Claro! Eu precisava vir buscar meu gravador.
Ele abriu os olhos e sentou-se na rede. Depois, estendeu a mão e
arrancou-lhe o gravador, arremessando-o longe. Felizmente caiu sobre a
maciez dos arbustos.
— Oh, por que você fez isso? — Glenda perguntou, furiosa.
Erguendo-se da rede, Rafael postou-se cara a cara com ela,
os olhos brilhando de raiva, os lábios atrevidos desafiando-a.
— Foi só o gravador que você veio buscar? Se foi só por causa
disso que veio, tudo bem., ali está ele! Mas saiba que eu não acredito
em nada do que está dizendo.
— Estou falando a verdade. César foi até o hotel, me fez perder o
avião e sugenu... — ela interrompeu-se, achando melhor deixar as
coisas no ponto em que se achavam.
Afinal, ele só estava tornando tudo mais difícil, pensou irritada.
— César sugeriu que você viesse aqui — Rafael adivinhou.
— Então você não veio por vontade própria...
115
— Mas eu também queria vir, para...
— Já sei... para reaver seu gravador — e a interrompeu, tenso.
— Não, não exatamente...
O fato de Rafael deliberadamente interpretá-la mal, somado à
decepção de ser recebida tão friamente, era frustrante. Glenda sentia-se
como se sua cabeça fosse explodir
a qualquer momento. "Será que não poderiam conversar de um
modo racional?", pensou. Mas fazia calor demais para raciocinar. Então,
para que deixar que a razão prevalecesse?
Por que não permitir que a paixão assumisse o comando? Ela o
amava, não amava? Pois então? Por que continuar hesitando?
Olhou na direção do seu pescoço forte e bronzeado, contrastando
com o colarinho branco da camisa, e um súbito desejo cresceu dentro
dela. Todo
o senso de pudor desapareceu
diante da emoção forte e transbordante. Involuntariamente, seus
dedos finos tocaram aquela garganta e, contemplando-lhe o rosto,
murmurou:
— Vim porque o amo e não pude suportar a ideia de me separar
de você. Queria dizer-lhe isso, mas, quando acordei, de manhã, você já
havia ido embora...
Glenda não conseguia dizer mais nada, pois Rafael a envolveu nos
braços, exigindo-lhe os lábios ávida e arrebatadoramente. Como
resposta, ela acariciou-lhe a nuca
e entranhou os dedos delicados nas mechas encaracoladas do seu
cabelo. As mãos dele insinuaram-se por debaixo da sua blusa à procura
dos seios. Depois de acarinhá-los
com doçura, ele a ergueu em seus braços, deitando-a na rede. Em
seguida, deitou-se também. Seus corpos colaram-se desesperadamente
atraídos um para o outro e suas
bocas buscaram-se entre risadas e beijos.
De repente, como se fosse a reprise de um filme, tudo aconteceu
outra vez, enquanto a rede balançava suavemente...
— Você falou sério quando disse que não suportaria a ideia de se
separar de mim? — Rafael indagou, depois de terem se amado, na
tranquilidade da rede.
— Falei sim — ela respondeu langorosa.
A cabeça dele descansava sobre seus seios, e o contato leve e
quente dos lábios em sua pele nua ainda a excitava. Eu... eu quero me
casar com você! — confessou,
afinal.
— Acha que pode confiar outra vez em mim e me perdoar?
116
— perguntou ele, com um brilho de felicidade iluminando os olhos.
— Acho que sim... — ela respondeu, tocando-lhe o rosto,
carinhosa.
— Então, vamos esquecer tudo e começar vida nova. Depois que
nos casarmos, você poderá retornar ao Canadá e eu seguirei para a
Nicarágua.
— O quê? — Atónita com os planos de Rafael, Glenda olhava-o
sem entender.
— É isso mesmo! — ele confirmou, tranquilo, enquanto lhe
acariciava os cabelos. — Você não disse agora que confiava em mim,
querida?
— Eu quero confiar em você. Só não compreendo por que deseja
voltar à Nicarágua. César me disse que você desistiria dessa ideia
depois de casado.
— Você veio até aqui porque me ama, ou para me impedir de
voltar à Nicarágua? — Afastou-se de Glenda e bruscamente pulou para
fora da rede. — Afinal, quem está enganando
quem agora?
— Não estou enganando você! — ela retrucou, exasperada. — Vim
porque realmente o amo e quero ficar com você. Mas não vejo muito
sentido em nos casarmos, para depois
você desaparecer nas selvas da América Central!
— Eu tenho um ideal! Será que você não compreende? Sou
médico e tenho meus planos! Não posso ficar o tempo todo amarrado à
sua saia...
— Se é assim, vamos esquecer toda essa conversa de casamento
— ela replicou, nervosa.
Ele deu uma olhada no relógio de pulso.
— Não há tempo de pegar o avião para a Nicarágua agora, mas se
eu sair imediatamente, poderei embarcar no voo para Cuba ainda hoje e
de lá pegar um avião até Manágua.
Girando
nos calcanhares, Rafael afastou-se a passos largos e entrou dentro
da casa.
Desnorteada com aquela mudança brusca de planos, Glenda
defrontou-se novamente com o orgulho e, afinal, chegou a uma
conclusão. Pulou fora da rede e foi atrás dele.
Encontrou-o no quarto, acabando de arrumar uma mochila.
— Eu o amo! Quero me casar com você — ela falou, emocionada.
— É... é difícil para mim aceitar sua partida, mas
117
prefiro qualquer coisa a perder você... — A voz lhe falhou e ela
não pôde prosseguir.
Rafael deixou o que estava fazendo e olhou fixamente para ela.
Depois aproximou-se e passou os braços em torno da sua cintura,
aconchegando-a junto de si.
— Eu sei. Eu entendo — murmurou. Acho que eu devia me
explicar melhor antes de lhe propor casamento. No entanto, o desejo de
tê-la como esposa foi tão forte que
me fez agir impetuosamente. Devia ter-lhe avisado que o
casamento não vai me impedir de fazer o que minha consciência pede.
Não vai me impedir de voltar à Nicarágua.
O semblante dele estava bastante sério. Glenda olhou para ele
como se o estivesse vendo pela primeira vez. Rafael não era apenas
médico, ou um homem apaixonado...
Era um idealista, um sonhador! E ela não tinha nenhum direito de
impedi-lo de correr atrás dos seus sonhos. Ele era um homem
maravilhoso, humano, dono de uma forte
personalidade, e ela o amava!
— Não... não é muito perigoso? — ela perguntou baixinho,
deslizando a mão pelo peito másculo e insinuando os dedos pelo interior
da camisa semi-aberta. — César me
contou que certa vez você se feriu seriamente lá e eu já reparei na
cicatriz em seu ombro. Tenho muito medo que aconteça algo de mal
com você. Acho que eu morreria...
— Não deve ter medo... Não vai me acontecer nada! Além disso,
você gostaria de mim se eu fosse covarde? Perigo existe em todo lugar!
Até ao atravessar a rua, por
exemplo. — Ele sorriu.tentando animá-la. — Eu prometi que
voltaria, para ajudar as pessoas que conheci lá. Muitas delas
sobreviveram graças ao meu tratamento. Preciso
resolver mil problemas... mas, se você quiser se casar comigo
assim mesmo, poderei adiar a viagem por alguns dias, para fazermos a
nossa lua-de-mel.
— Mas, e depois? O que farei?
— Você poderá voltar ao Canadá e terminar seu trabalho sobre
César. Provavelmente deve haver alguns probleminhas seus a serem
resolvidos também... ou outros projetos
por concluir. Não faço nenhuma objecão à sua carreira. Pelo
contrário, faço questão que prossiga! — Ele deu um outro sorriso, cheio
de malícia. — Além disso, pode
ser que você fique tão ocupada, nos próximos meses, esperando o
nascimento
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de nosso filho, que não tenha nem tempo de pensar em mim!
—
Um
filho?
—
ela
quase gritou,
colocando
a
mão
involuntariamente sobre o ventre. À ideia de engravidar não lhe passara
pela cabeça. Agora sentia uma espécie de
pânico mesclado a um sentimento agradável. — Por que você acha
que vou ter um filho?
— Depois do que nós andamos fazendo ultimamente, acho muito
natural que isso aconteça! — de replicou, rindo. — Aliás, já é tempo de
termos um filho... — com um brilho
matreiro nos olhos, Rafael a estreitou mais em seus braços,
aproximando os lábios dos dela. — Bem, mas você ainda não me
respondeu: Ainda quer casar comigo? Ou já
mudou de ideia?
— Você está muito ansioso por ter esse filho, não é? Glenda
indagou, aninhando-se em seus braços.
— É verdade! Mas também estou ansioso para tê-la como minha
mulher para sempre... Mas, afinal, quer responder a minha pergunta?
— Não existe nada que eu queira mais neste mundo do que me
casar com você — ela respondeu, enfim. — Nem que eu tenha que
esperá-lo a minha vida inteira!
Glenda e Rafael casaram-se alguns dias mais tarde, numa
cerimónia simples. César e
Janice, acompanhados dos filhos, Rosário e Pedro, todos
assistiram à cerimónia.
Os pais de Glenda e os de Rafael enviaram telegramas,
felicitando-os pelo casamento.
Os sete dias seguintes foram de plena felicidade para Glenda e
Rafael, usufruída a dois na casa de praia, com longas caminhadas pela
areia e o amor compartilhado
na rede.
Conforme haviam combinado, após a lua-de-mel, Rafael partiu
para a Nicarágua e Glenda para Toronto. César acompanhou a ambos
até o aeroporto.
A reportagem sobre o escritor César Estrada foi publicada na
íntegra e Glenda recebeu vários convites de outras revistas. Mesmo
envolvida com seu trabalho, ela morria
de saudade de Rafael. Finalmente chegou o dia em que pôde
escrever ao marido contando-lhe que estava grávida.
Rafael chegou um pouco tarde. Atrasara-se por causa do
119
mau
tempo,
que ocasionou o cancelamento dos voos.
Desembarcou num dia frio do mês de janeiro, um dia depois que os
meninos nasceram... Ele estava com a pele ainda
mais morena, queimada do sol, e o cabelo mais curto, quando se
curvou sobre o leito de Glenda, na maternidade, para beijála com todo
amor...
Os bebés dormiam tranquilos no berço ao lado. Eram igúaizinhos e
parecidos com o pai.
. — Tinham que ser gémeos — Glenda brincou, os olhos refletindo
toda sua felicidade.
— Vai precisar tomar muito cuidado para não confundi-los um com
o outro — Rafael replicou, bem-humorado e orgulhoso dos garotos.
— Sentiu falta de mim? — ela perguntou, levemente enciumada.
— Tanta, que não vou deixá-la tão cedo — ele afirmou, beijando-
lhe a mão com carinho.
Mais uma vez os olhos dele lembravam o âmbar que um dia
Glenda quisera comprar num certo mercado. Agora estavam
especialmente brilhantes e muito mais bonitos...
— O que quer dizer? — ela perguntou esperançosa.
— Quero dizer que já terminei meu trabalho na Nicarágua e que
voltei para ficar. Estou pronto para trabalhar no meu próprio país. Quer-
vir comigo para Samana?
Samana! Um paraíso tropical, cheio de luz e calor do sol!
Palmeiras sussurrantes e um mar turquesa...
— Você ainda pergunta se eu quero? Oh, meu amor, eu te amo!
— Eu também te amo.
Depois de um longo beijo, Glenda desprendeu-se dos braços de
Rafael e contemplou os gémeos que ainda dormiam ao seu lado. Em
seguida, olhando o marido com ternura,
disse-lhe:
— Não vou confundi-los nunca... Prometo!
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Fim