Microsoft Word Flora Kidd E Renato(1)

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Título: Esposa por um Verão.
Autor: Flora Kidd.
Título original: The summer Wife
Dados da Edição: Abril SA., São Paulo, 1984.
Género: romance.
Digitalização: Dores Cunha.
Correcção: Edith Suli.
Estado da Obra: Corrigida.
Numeração de página: rodapé.
Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à
leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de
direitos de autor,
este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em
parte, ainda que gratuitamente.

SABRINA 302


Copyright: Flora Kidd
Título original: "The Summer Wife" Publicado originalmente em 1976 pela
Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra
Tradução: Maria Cecília Kinker Caliendo
Copyright para a língua portuguesa: 1984 Abril S.A. Cultural - São Paulo
Esta obra foi integralmente composta e impressa na Divisão Gráfica da
Editora Abril S.A.
Foto da capa: R.J.B. Photo Library

CAPITULO I

Naquela manhã ensolarada de sábado, Clara Lane caminhava pela Regent
Street, em Londres, com a sensação agradável de que algo diferente estava
por acontecer, alguma
coisa que mudaria completamente sua vida. Não pôde deixar de sorrir ao
reconhecer aquela esperança antiga, que teimava em retornar a cada verão,
fazendo com que
seu coração pulsasse de ansiedade. Os sonhos românticos de sempre...
Por que não amadurecia? Já não era tempo de ser mais realista e deixar de
lado as fantasias da adolescência? Uma mulher adulta como ela não deveria
se entregar tão
facilmente a devaneios, é verdade, mas era quase impossível deixar de
pensar na surpresa que o destino poderia estar reservando. Quando
aconteceria aquele momento
mágico que haveria de transformar toda a sua vida?
As roupas coloridas expostas nas vitrines chamaram-lhe a atenção. Parou
para observar os maios e biquinis de cores vivas, os vestidos floridos,
os chapéus de sol.
A decoração das lojas era toda baseada no tema "férias de verão", e Clara
admirou as fotografias dos mais diversos e famosos pontos turísticos. Lá
estavam o Partenon
e o porto de Rodes; Salzburgo e a estátua de Mozart; Viena e seu Teatro
da Ópera, lugares que ela já havia visitado no verão passado.
Na verdade, eram poucos os países da Europa que ela ainda não
havia conhecido, uma vez que sempre aproveitara as -férias para
conhecer lugares novos. Nos tempos de estudante, a escola também
(organizava excursões maravilhosas, e Clara não se lembrava de ter
perdido uma.
Este ano, ela e Elise Downie, a amiga com quem dividia o apartamento,

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sairiam juntas, muito embora ainda não tivessem escolhido o lugar em que
passariam as férias
de verão.
O tempo custava a passar, e parecia não haver nada mais interessante a
fazer, naquele dia de folga, do que percorrer vitrines. Seus olhos
pousaram num magnífico
vestido verde. Ela logo pensou que uma roupa como aquela merecia ser
usada num jantar à luz de velas, na companhia de um homem charmoso e
gentil. Novamente estampou-se
em seu rosto o sorriso maroto de quem se conhece muito bem, um sorriso
que, embora Clara não soubesse, dava-lhe um ar gracioso. Mas, afinal, de
que adiantaria um
vestido como aquele, se ela não conhecia nenhum homem charmoso?
Os olhos desviaram-se do vestido para as fotografias que decoravam a
vitrine. Escócia! Por que não? Ela e Elise talvez pudessem conhecer a
fascinante história do
povo escocês e o magnífico cenário de montanhas e castelos, que para ela
sempre estiveram envoltos numa aura de mistério e romantismo.
Ainda estava admirando as gravuras quando percebeu no vidro o reflexo de
uma mulher esbelta, de cabelos loiros que brilhavam à luz do sol.
Reconhecendo-a, Clafa
virou-se e saiu atrás da figura que caminhava, apressada.
- Toni! - chamou. - Espere!
A mulher voltou-se e esperou que Clara a alcançasse.
- Clara! Como vai? Há séculos que não a vejo!
- Para sermos mais exatas, desde setembro passado. Você havia dado uma
festa no seu apartamento, lembra-se? - Os olhos de Clara brilhavam de
prazer por ter reencontrado
a velha amiga.
- Eu telefonei várias vezes, mas você estava sempre viajando. Escute, por
que não conversamos um pouco? Podemos tomar um café. Tenho milhões de
coisas a contar.
- Não era verdade e Clara sabia muito bem disso, mas estava determinada a
ficar com a amiga o tempo suficiente para trocarem confidências, como na
época do colégio.
Os grandes olhos negros de Toni arregalaram-se, surpresos,
como se duvidassem de que qualquer coisa que Clara pudesse dizer fosse
interessante. Olhou então para o relógio.
Está bem. Tenho meia hora, antes de correr para o aeroporto.
- Quer dizer que você ainda é aeromoça? - indagou Clara enquanto
atravessavam a rua.
-- Ainda. Mas por pouco tempo, espero. - Sorriu, enigmática, dando a
entender que a alternativa que tinha em mente era muito mais interessante
que o trabalho atual.
- Mas diga-me, e você? Ensinando um bando de adolescentes estúpidas
naquela escola feminina, suponho.
- Acertou. Só que elas não são nada estúpidas, pelo contrário. E é
preciso estar sempre atenta para que não me passem a perna. Até agora não
posso me queixar. É
um trabalho interessante e tenho me dado muito bem.
Surpresa, Toni arqueou as sobrancelhas bem-feitas enquanto entravam na
lanchonete.
- Otimo para você - disse, e, com o mesmo sorriso travesso de quando
ambas tinham quinze anos, perguntou: - Você se lembra de como nós
atormentávamos o velho Tommy
nas aulas de História?
- Nós não, você - corrigiu Clara, sentando-se à mesa. - Eu sempre tive

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pena dele.
- Clara, a compadecida! - caçoou Toni. - Sempre do lado dos indefesos.
Está lembrada de quando me socorria nas lições? Estava sempre pronta a
fazer, no meu lugar,
os deveres de casa, quando eu tinha algo melhor em mente. Sempre fui
muito grata a você por causa disso, sabia?
- Só o fato de você ter me levado a vários lugares já dispensa qualquer
agradecimento - respondeu Clara com sinceridade, e outra vez Toni
levantou as sobrancelhas,
em sinal de surpresa.
- Obrigada, querida. Só por isso, pagarei o café - brincou.
A garçonete se aproximou para anotar os pedidos. Clara, então, olhou em
volta e sentiu a atmosfera aconchegante do lugar, o burburinho vindo das
outras mesas, as
pessoas parecendo
despreocupadas. Tomar parte daquele clima sociável dava-lhe uma enorme
sensação de bem-estar. Agora só restava esperar o momento mágico.
- Você não mudou nada, Clara. Ainda continua usando o mesmo tipo de roupa
que, perdão, não combina com o seu tipo.
- É mesmo? - Clara passou os olhos pela blusa branca que vestia sobre a
saia marrom. - Pensei que estivesse bem, assim. Nunca tive a pretensão de
ser tão elegante
quanto você, Toni.
- Pois deveria. Você é alta, tem presença. E esse cabelo? Por que o usa
assim, preso à nuca?
- É muito comprido - respondeu, quase pedindo desculpas -, e eu preciso
colocá-lo em algum lugar.
- Mas não desse jeito. Você fica com aparência de velha. Por que não
tenta um corte moderno? Afine também essas-sobrancelhas grossas que
deixam a sua expressão carregada.
Uma blusa bem justa e de preferência verde, para realçar os seus olhos, e
pronto! eles cairão na armadilha.
- Eles quem? - indagou Clara, antes de beber um gole de café.
- Os homens, querida, os homens. - Toni sorria enquanto observava a amiga
arregalar os olhos.
- Mas eu não quero saber de armadilhas! Por que você sempre se refere aos
homens desse jeito, como se fossem idiotas? Para mim, eles são seres
humanos que podem
sofrer como qualquer uma de nós, quando alguém fere os seus sentimentos.
Toni encarou-a por alguns segundos e então caiu na risada. Muitas pessoas
voltaram-se para olhar; Clara notou que principalmente os homens
demoravam o olhar naquela
figura provocante, de dentes muito brancos e olhos castanhos, claros, que
cintilavam de alegria.
- Que mulher mais séria - comentou Toni, ainda rindo. Será possível que
você não se diverte nunca?
- Se eu tiver que me transformar num objeto sexual para poder me
divertir, então pode ter certeza de que a resposta é não.
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Simplesmente me recuso a adotar um comportamento falso só para atrair os
homens. Não acho justo.
.- Você sempre me surpreendeu. Lembro que estudava tanto que era
considerada o cérebro da escola. E, nas conversas em grupo, nunca fez
questão de esconder que era
a favor do casamento. Muito tradicional, se entende o que estou querendo
dizer.
- Se o casamento deu certo para meus pais, por que não deveria acreditar

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nele? - argumentou Clara, recordando o tempo de colégio, quando sua única
ambição era alcançar
notas cada vez mais altas para agradar aos pais, sempre orgulhosos dos
progressos da filha.
Infelizmente, não viveram o suficiente para vê-la receber o diploma. Às
vezes Clara se perguntava se não teria sido melhor estudar menos e
divertir-se mais. Tanto
tempo gasto em meio aos livros, fechada no quarto, estudando,
estudando...
- Você sai mais, agora? - indagou Toni, interrompendo aqueles
pensamentos. - Deve ser terrível lecionar numa escola feminina. Mulheres
por todos os lados. Não gostaria
de trabalhar numa escola mista?
- Nunca pensei nisso - admitiu Clara. - Mas não acho tão terrível assim.
Alguns membros do corpo docente são bastante interessantes. E você, Toni?
Vai mesmo mudar
de emprego? O que pretende fazer?
Toni sorriu, misteriosa.
- Estou fazendo planos - respondeu, sem entrar em detalhes.
- Olhe, preciso ir, agora. Por que não tomamos o mesmo táxi? Eu deixo
você, é caminho para mim. Vai fazer alguma coisa hoje?
- Não, nada. - As esperanças de Clara começaram a acender-se.
- Então, talvez possa me fazer um favor.
Na expectativa de que a amiga viesse com algo interessante, Clara seguiu-
a para fora da lanchonete. A personalidade marcante de Toni, seu modo
elegante de se portar
e ainda uma grande
autoconfiança sempre abriram portas para mundos que Ciara jamais havia
frequentado.
Logo as duas estavam no banco de trás de um táxi, rodando pela Marble
Arch. Toni explicava:
- Um amigo meu está num hospital, aqui em Londres. Ele é fotógrafo e
trabalha por conta própria; só faz aquilo de que gosta. Por isso, aceitou
participar de uma
expedição ao Himalaia, para fotografar as montanhas.
- Espere aí! Não me diga que foi aquela expedição em que morreram algumas
pessoas que escalavam as montanhas! Eu li a respeito nos jornais.
- Uma só pessoa morreu - corrigiu Toni. - A outra, o amigo de quem lhe
falei, ainda está se recuperando. Prometi visitá-lo com frequência, mas o
horário dos voos
não me deixa muito tempo livre. Tenho certeza de que ele ficaria contente
de ver alguém, especialmente do sexo feminino - acrescentou, maliciosa. -
O coitado não
tem família. Você não poderia visitá-lo no meu lugar, Clara querida? Este
fim de semana e os outros sete dias em que vou ficar fora?
- Qual é o nome dele?
- Richard Mallon. Ele estava presente àquela festa no meu apartamento,
você deve se lembrar. Alto e forte, selvagem como uma águia, sempre com
um comportamento
fora do comum, fazendo o que lhe dá na telha. - Da maneira entusiástica
como falava do amigo, Toni dava a impressão de gostar muito dele.
Clara lembrava-se de Richard: olhos cinzentos e cabelos castanhos que
emolduravam o rosto magro, onde sobressaía a boca um tanto cínica. Ela
não havia gostado do
amigo de Toni, daquela voz rouca sempre pronta a caçoar.
- Já sei quem é - disse com frieza. - Pensei que você e ele fossem...
- Nós tivemos um caso - interrompeu Toni prontamente. Ficávamos juntos

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quando coincidia de ambos estarmos na cidade. Richard é o tipo de homem
que não gosta de se
prender a mulher
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alguma. Eu o conheci numa outra festa, na casa de Louise Bolton, jj-mã de
uma das aeromoças. Você deve se lembrar de Louise. Há alguns anos, foi um
dos modelos mais
requisitados do país. Era Richard quem tirava as fotografias que mais
tarde apareciam em quase todas as capas de revistas.
Clara permanecia calada. Lembrou-se das fotos que haviam tornado famosa a
beleza de Louise e encolheu-se involuntariamente na cadeira, ante a
perspectiva de ter
de visitar o responsável por aquelas fotografias.
- Aqui está o nome do hospital e a ala em que ele se encontra
- continuou Toni, entregando-lhe um pedaço de papel. - Você me prestará
um grande favor, Clara, se puder ir até lá no meu lugar.
- vou tentar, mas não prometo nada - respondeu ela, enquanto o carro
diminuía a marcha.
- Você irá - replicou Toni com confiança -, pois sempre ajudou os que
precisam.
Clara pensou que mais uma vez, como nos tempos de escola, Toni empurrava
para ela um dever que era seu. Entretanto, já começava a sentir a velha
piedade invadir
seu coração. Era sempre assim: reclamava mas acabava cedendo.
- Pronto, Clarinha, chegamos. Foi ótimo ver você. Qualquer dia, ainda vou
lhe dar um belo presente. Tchau!
- Tchau, Toni - despediu-se ela, saindo do carro.
Elise havia viajado, naquele fim de semana, e o apartamento tinha um ar
desolador. Clara preparou alguns sanduíches e foi comê-los perto da
janela, por onde entravam
fortes raios de sol.
Estava achando difícil suportar os fins de semana, desde que começara a
trabalhar, em setembro. Não tinha mais seus pais para visitar e os poucos
amigos estavam
sempre ocupados ou viajando. Era verdade que poderia ter ido até
Berkshire, onde moravam tia Irene e tio Bert, mas eles a esperavam só no
próximo sábado.
Tentou ler o livro que retirou da biblioteca, mas sua mente só se
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concentrava no pedido de Toni. A imagem de Richard Mallon não a deixava
em paz. Não que ele a houvesse atraído, muito pelo contrário. A maneira
arrogante como se
portara em relação a ela era algo de detestável. Por isso mesmo, Clara
havia deixado a festa mais cedo: não suportara ser alvo das zombarias de
Richard.
Mas agora ele estava doente, na cama, incapaz de sair para aproveitar o
sol de junho, e não tinha família que pudesse distraí-lo um pouco. Nem ao
menos Toni. Num
impulso, procurou o papel que a amiga lhe dera e ligou para o hospital.
Uma voz impessoal informou-lhe que logo mais começaria o horário de
visitas aos doentes.
Minutos mais tarde, Clara estava no ponto de ônibus, com um buque de
rosas numa das mãos e um pacote com uvas na outra. Logo em seguida descia
em frente ao hospital
e se dirigia ao hall de entrada, onde várias pessoas esperavam o
elevador.
A enfermeira sorriu com gentileza, quando Clara perguntou por Richard

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Mallon, e conduziu-a à cama que ficava próxima à janela. Enquanto seguia
a enfermeira, ela
pôde observar que todos os doentes tinham flores, bombons e frutas nas
mesinhas ao lado das camas.
- Sua namorada veio visitá-lo, sr. Mallon - disse a moça com ar
satisfeito, abrindo as cortinas que mantinham a privacidade do doente. Em
contraste com as outras,
a mesinha de Richard só contava com um jarro de água e um copo.
Ante as palavras da enfermeira, ele levantou a cabeça envolta em
bandagens que chegavam a cobrir-lhe os olhos.
- Toni? - perguntou, ansioso.
- Ele ainda não pode enxergar - murmurou a enfermeira, notando o embaraço
de Clara.
Cego! Entre surpresa, e incrédula, ela olhou para as flores que trazia
numa das mãos. Que utilidade poderiam ter para uma pessoa cega? Olhou
para a enfermeira, que
pousou a mão em seu ombro e sorriu tristemente, antes de deixá-los a sós
e levar o buque.
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. Toni? - A voz de Richard tinha o mesmo timbre rouco que
ela guardara na memória. - Onde está você?
- Eu... eu... sou Clara Lane - gaguejou. - Toni não pôde vir. Ela sente
muito, mas o horário dos voos... - Sua voz sumiu. O desapontamento de
Richard, que voltou
a cabeça para outro lado, era visível.
Movendo-se com cuidado, Clara colocou o pacote de uvas em cima da mesinha
e sentou-se na cadeira que a enfermeira havia posto do lado da cama.
Podia ouvir as risadas
dos outros pacientes, que na certa estavam apreciando as visitas de
amigos e familiares. Não era o caso de Richard, que se mantinha em
silêncio. Sem ter o que fazer
ou falar, Clara passou a observá-lo. Um dos braços descansava fora das
cobertas, e a manga um pouco arregaçada do pijama permitiu a visão
parcial dos pêlos escuros
e do pulso grosso de Richard. A mão estava envolta em ataduras.
Teve muita pena dele. Abriu a bolsa para pegar um lenço e Richard,
ouvindo o ruído, virou-se para ela.
- Você ainda está aí?
- Estou. Trouxe-lhe uvas e algumas rosas. Desculpe-me, mas eu não sabia
que... - Calou-se. Não era capaz de encontrar a palavra exata.
- Que estou cego - completou Richard, esboçando aquele mesmo sorriso
cínico que ficara na memória de Clara.
- Cego para sempre?
- .Espero que não. É um tipo de cegueira causada principalmente pela
severa exposição à neve e ao sol. Pode levar semanas, até que eu volte a
enxergar. Semanas!
- A voz rouca agora traía uma angústia muito grande.
com um misto de compaixão e simpatia, Clara lembrou que ele era
fotógrafo, dependendo, portanto, dos olhos para trabalhar e poder viver.
Se ao menos o conhecesse
melhor, tivesse mais mtimidade, poderia confortá-lo com palavras. Ou
tocar-lhe o braço Para transmitir coragem. Um simples toque às vezes é
mais eloquente que palavras.
Entretanto, nem palavras, nem gestos. O
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máximo que- poderia fazer era ficar ali ao lado dele, em silêncio,
esperando que pelo menos sua presença trouxesse um pouco de conforto.

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- Será que posso ajudá-lo de algum modo? - indagou tentando quebrar o
silêncio pesado.
- Você? Por que você? Nem a conheço! Qual é mesmo o seu nome?
Frases curtas e ríspidas que feriam a sensibilidade de Clara.
- Clara Lane. Nós nos conhecemos na casa de Toni, numa festa em setembro
passado. Não se lembra?
- Não. - A sinceridade dele era desconcertante. - Em todo caso, descreva-
me o seu tipo físico. Dificilmente esqueço um rosto feminino.
Agora-, com um sorriso sarcástico, Richard dava a impressão de que se
divertia às suas custas. Animada ao perceber que ele abandonava a
seriedade inicial, Clara
começou:
- Bem, os meus cabelos são castanhos. - Como era difícil falar de si
mesma!
- De que comprimento? Na altura dos ombros?
- Como costuma usá-los: soltos, voando livremente ao sabor do vento?
- Não. Sempre os prendo à nuca, em forma de coque. Richard não disfarçou
a decepção.
- Não gosto desse estilo. E os olhos?
- Um tipo de verde.
- "Tipo de"... - brincou. - Ou são verdes ou não são. Os cílios são
negros, aposto.
- Acertou, negros e longos. - Não pôde evitar uma risada gostosa.
Começava a se divertir com aquele interrogatório.
- Muito bom. Gosto da maneira como você ri. E a pele?
- Pálida.
- Nariz?
- Meio arrebitado.
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Vamos à boca. Será que eu gostaria de beijá-la?
Clara permaneceu em silêncio, após aquela pergunta petulante, sentindo um
rubor subir-lhe às faces. Entretanto, o riso cínico estampado no rosto
daquele homem demonstrava
que ele sabia tê-la embaraçado.
- Não sei - replicou friamente.
- Existe um modo de descobrirmos.
- Agora você está sendo impertinente. - Clara sentiu que sua voz se
alterara.
- A impertinência é uma das minhas qualidades, como acabou de observar.
Estou me lembrando de você, agora. A professora séria e responsável, não
é? Sentou-se num
canto e lá permaneceu a noite toda. com certeza, ficou chocada com o
comportamento dos convidados.
-; Quem disse que fiquei chocada?
- Claro que ficou! Era o seu primeiro contato com os amigos de Toni e
você não gostou de nenhum deles, especialmente de mim. Lembro-me de que
saiu cedo e nós demos
boas risadas às suas custas.
Aquilo já era demais! Mas, antes que ela conseguisse esboçar uma reação
qualquer, Richard perguntou, intrigado:
- Por que veio?
- Porque Toni me pediu que fizesse isso. Só que eu jamais poderia
imaginar que você fosse tão desagradável, senão não teria vindo.
Disse isso e se arrependeu imediatamente. Era preciso ter paciência com
uma pessoa doente.
- Droga! -- exclamou ele. - Que porcaria de homem eu posso ser, sem
enxergar? Não posso fotografar, nem escalar, nem nada. Por que não morri

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de uma vez? - Falava
cada vez mais alto, como se estivesse a ponto de ter uma crise.
- Por favor, não diga isso... - Clara tentava acalmá-lo, mas não sabia o
que fazer.
A enfermeira apareceu, com um olhar de reprovação.
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- Agora chega, sr. Mallon. Lembre-se do que o médico disse o senhor não
deve se agitar. Infelizmente, preciso pedir à su amiga que se vá agora.
- Droga! - resmungou Richard novamente, mas então dirigiu-se a Clara: -
Você voltará amanhã? Venha, por favor.
A ansiedade na voz dele tocou o coração de Clara. Apesar de minutos
atrás, ter estado a ponto de ir embora para não ver
mais aquele homem insuportável, concordou
em voltar no dia seguinte.
Assim aconteceu no domingo e em todas as outras noites da semana
seguinte. Ele parecia melhorar. Costumavam
conversar sobre tudo, menos alpinismo e fotografias.
Clara descrevia o tempo, os outros pacientes, as enfermeiras, as cenas
que podia ver da janela. Richard se interessava pelas atividades diárias
dela, e dessa maneira
o tempo passava rápida e agradavelmente.
- Você é ótima, sabia? - disse-lhe ele uma noite.
- Em quê?
- Em descrições. Por que não se torna escritora? Você estudou História,
não é? Pois, então, poderia muito bem escrever romances históricos.
- Acho que não conseguiria. Não entendo nada de romances.
- Nem de amor?
- Também não. - Mudou rapidamente de assunto: - Quando vão tirar essas
bandagens?
- Amanhã. Você virá, não é?
Clara tinha intenção de visitar tia Irene e tio Bert, mas a ideia foi
posta de lado, assim como todas as outras coisas, desde que começara a
visitar Richard. com
uma rapidez incrível, ele passara a ser o centro de sua vida, ainda que
ela soubesse que estava entrando num terreno perigoso.
Os dias passavam e as alunas começaram a notar sua crescente falta de
atenção. Pela primeira vez na vida, o trabalho lhe pareceu monótono e
cansativo. Ela não via
a hora que a noite chegasse para poder estar com Richard. Era difícil
acreditar que somente uma semana se passara, desde que reencontrara Toni.
Apesar de ter
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tentado entrar em contato com a amiga, não havia conseguido. Tinha
certeza de que Toni não havia mais falado com Richard; caso contrário,
ele certamente lhe contaria.
No hospital, antes de se dirigir à ala onde ele se encontrava, parou para
se observar num espelho. Havia tomado alguns cuidados em relação à
aparência, para o caso
de Richard recuperar a visão. Seguindo os conselhos de Toni, comprou uma
blusa verde-água e sentiu de imediato o resultado: os olhos foram
realçados pela cor e agora
mais pareciam duas gotas brilhantes.
Richard estava sentado na cama, trocando piadas com o homem do leito
vizinho, e parecia muito bem-disposto. Só então Clara notou que ele já
não tinha as bandagens.
Ansiosa, ao perceber que aqueles dois olhos cinzentos estavam fixos nela,

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perguntou:
- Você está enxergando?
- Não, ainda não. Quer dizer, consigo distinguir vultos, formas
enevoadas. Será que eu apreciaria você, Clara? perguntou, com o cinismo
já familiar.
- Não sei - respondeu ela secamente, e então o sorriso dele se tornou
ainda mais largo.
- Um dia descobrirei - acrescentou, descansando a cabeça no travesseiro.
Sem as bandagens, Richard parecia menos vulnerável, e Clara pensou, entre
triste e feliz, que ele logo sairia do hospital. Uma vez recuperado,
voltaria ao seu mundo,
um mundo de mulheres maravilhosas no qual ela não tinha vez.
- Recebi uma carta, hoje - anunciou ele. - Não quer lê-la para mim? Está
dentro da gaveta.
Clara pegou o envelope branco e de imediato reconheceu a autora da letra.
- É de Toni - disse, e olhou para ele, esperando ver algum sinal em seu
rosto. Richard, entretanto, não esboçou reação alguma.
- "Querido Richard" - leu -, "sinto muito não ter podido visitá-lo.
Espero que Clara tenha me substituído. Estarei de volta
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no próximo sábado, quando terei algo muito importante a lhe dizer com
amor,
Toni."
Dobrou a folha de papel e guardou-a no envelope. Ler a carta não foi tão
difícil quanto imaginara. Só que agora já sabia que não deveria voltar ao
hospital no dia
seguinte. Iria a Berkshire e trataria de não pensar em nada.
- Você tem uma linda voz, Clara. - disse ele.
- Ainda bem que Toni estará de volta, pois este fim de semana devo ir até
Berkshire.
- É mesmo? Porquê?
- Preciso visitar a sepultura de meus pais. É o terceiro aniversário da
morte deles.
- Como foi isso?
- Desastre de avião. Eles tinham ido a Jerusalém e o acidente aconteceu
na volta. Papai era doutor em Teologia e, juntamente com mamãe, tomava
parte numa excursão
à Cidade Santa.
- Então seu pai era professor de religião... Você só podia ter mesmo essa
moral rígida - provocou ele.
- A maneira como ajo ou penso não tem nada a ver com a profissão de
papai.
- Não mesmo? Pode ser. - Ficou um instante pensativo e depois perguntou:
- Você me acha imoral?
- Não. O que eu acho é que você se comporta de uma forma pouco
convencional.
- Talvez eu não me comporte de modo convencional segundo os seus padrões
morais, mas não conforme os meus.
- Richard, sempre tive curiosidade de saber .uma coisa: por que motivo
participou daquela expedição? - Clara tentava aproveitar o pouco tempo
que ainda teria na
companhia dele para conhecê-lo melhor.
- Para fotografar as montanhas, minha antiga ambição. Pratico alpinismo
desde a adolescência. Cresci na cidade grande e durante os fins de semana
convidava alguns
amigos para escalar qualquer morro que aparecesse à nossa frente. - Seus
olhos brilhavam de

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prazer, com a recordação. - Foi um tempo maravilhoso, mas você não teria
gostado muito de mim, naquela época. -E o que o faz pensar que agora eu
goste?
- Você está aqui, não está? Tem vindo sempre.
- Só porque Toni me pediu. - A insegurança que começava a sentir a
colocava na defensiva.
- E você sempre faz o que Toni pede?
- Não! Quero dizer, sim... - Estava tão confusa que Richard caiu na
risada. Tentando dominar-se, continuou:
- Por que você resolveu ser fotógrafo?
- Quando saí da escola, arrumei trabalho numa companhia de equipamentos
fotográficos. Nada muito criativo, mas me rendia um dinheiro certo no
final do mês. Comecei
a me interessar por càmeras quase sem querer. Pedi uma emprestada e levei
num daqueles fins de semana. Tirei várias fotos das montanhas e descobri
que tinha talento.
Mais tarde, minha grande ambição passou a ser fotografar os Alpes e as
montanhas do Himalaia. Fez uma pausa e então continuou: - Não foi tão
fácil concretizar o
sonho. Compreendi que, mesmo tendo experiência em alpinismo e
fotografias, ninguém me convidaria para uma expedição. E eu não tinha
dinheiro para financiar uma.
- O que você fez, então?
- Procurei tornar-me conhecido. Vim a Londres e conheci uma modelo que,
como eu, ansiava por tornar-se famosa. Trabalhamos juntos
e logo nos tornamos respeitados
nas nossas profissões. De repente, todos queriam os serviços de Richard
Mallon. Desse modo, pude concretizar o meu sonho e fotografar as
montanhas.
Clara levantou-se e ele ouviu o ruído da cadeira arrastando-se no
assoalho.
- Já vai? - perguntou, desapontado. - Promete voltar?
- Acho que não - respondeu ela, com um nó na garganta. Preciso preparar
as provas e... Bem, mas agora você terá a Companhia de Toni. Vai ser
muito mais interessante,
garanto.
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- Será mesmo? - perguntou ele com voz fria. - Por favor, Clara, não vá
ainda. Fique só mais um pouco.
- Não posso, Richard. Talvez nos encontremos qualquer dia desses. Adeus.
- Clara, espere! Preciso falar com você!
Ela não deu atenção e saiu apressada, temendo que os outros doentes
vissem as lágrimas que molhavam seu rosto.
20
CAPITULO II

Enquanto o trem corria a caminho de Berkshire, Clara acordava para a
realidade. Sua decisão de não mais visitar Richard e a saída intempestiva
do hospital não tinham
outra razão senão o medo de se envolver demais.
A carta de Toni soara como um alerta: era preciso não esquecer que. os
dois tinham um caso. Como não se lembrara disso durante, aqueles dias?
Fora uma tola. Toni
era a mulher ideal para alguém como Richard. Por que ele se interessaria
por uma pessoa como ela, que pensava de modo tão diferente? De fato,
seria mais seguro não

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tornar a vê-lo.
Nas semanas seguintes. Clara se entregou completamente ao trabalho,
evitando pensar em Richard. Além disso, os planos para as próximas férias
tomavam seu tempo livre.
Uma tarde, voltando ao apartamento e sentindo-se mais cansada do que o
normal, largou a pasta sobre uma cadeira, esticou-se no sofá e atirou
para longe os sapatos
que lhe apertavam os pés. O tempo estava abafado e pesadas nuvens se
formavam no céu, anunciando uma tempestade para breve.
- Nossa, você parece exausta! - admirou-se Elise, ao sair da cozinha com
uma xícara de chá que ofereceu à amiga. - Por que chegou tão tarde,
Clara? - perguntou,
sentando na poltrona ao lado.
- Reunião de professores. Pensei que a rabugenta não fosse mais parar de
falar. - A "rabugenta" era a diretora da escola. Hum, este chá está
ótimo, Elise. Lembre-me
de fazer o mesmo por você, qualquer dia desses.
21
- Certo - respondeu a amiga, sorrindo.
Elise era uma mulher pequena e magra, com um rosto bonito, emoldurado por
cabelos castanhos. Atrás dos óculos redondos, os olhos azuis davam-lhe um
ar inocente,
mas essa aparente fragilidade escondia um raciocínio frio e calculista,
que Clara invejava.
- Espero que você não tenha esquecido que Daphne nos espera para os
preparativos finais da nossa viagem à Espanha - disse Elise, olhando para
Clara, que cerrara
os olhos.
- Não esqueci, não. Mas você se importaria de ir sozinha? Estou tão
cansada... O que decidirem estará decidido, certo?
- Acho que você não está muito interessada em ir à Espanha. Sei que
queria mesmo era conhecer a Escócia. Aliás, Clara, olhando para você, eu
diria que nem a Espanha
nem a Escócia fazem parte dos seus planos. Pálida e com olheiras, mais
parece heroína de romance trágico. Se não parar de trabalhar tanto, vai
acabar com uma estafa
daquelas.
Clara não respondeu. Permaneceu de olhos fechados. Não estava com vontade
de conversar. Se ao menos conseguisse dormir profundamente e esquecer
tudo...
- Isso não faz sentido - continuou Elise. - Não é possível que um bando
de adolescentes deixe você tão abatida assim. Aposto que é alguma outra
coisa... ou alguém.
Não ajudaria, se você desabafasse?
Clara abriu os olhos e fixou-os demoradamente no rosto bonito da amiga.
Não, não podia contar-lhe nada. Elise não compreenderia, se dissesse que
sentia saudades
de um homem que vira apenas uma hora por dia, durante uma semana. Então
resolveu não responder e tomou o último gole de chá.
- Está bem, já entendi. Sem confissões, hoje. Ah, já ia me esquecendo!
Alguém lhe telefonou há mais ou menos meia hora; deixou o número mas não
disse o nome !-stá
anotado na agenda. Ele insistiu para que você ligasse tão logo chegasse
em casa. bom, preciso ir andando - disse, levantando-se.
22
Clara esperou até que Elise fechasse a porta e correu ao telefone. Olhou
o número rabiscado na agenda e sentiu o coração bater acelerado. Rápida,

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discou e esperou
que alguém atendesse, enquanto os mais diversos pensamentos cruzavam sua
mente. Finalmente, uma voz rouca e já familiar respondeu:
- Alo?
- Richard? Sou eu, Clara. Onde você está?
.- No estúdio, no meu apartamento. Saí do hospital há poucas semanas e
estive viajando. Cheguei faz dois dias.
- Você já pode enxergar? - A voz dela traía uma grande ansiedade.
- Quase nada.
- Então, como está conseguindo se cuidar?
- Não tão mal quanto você pensa. Tenho uma empregada que faz a comida e
deixa tudo limpo por aqui. E não tenho
ficado sozinho desde que cheguei. Os amigos não deixam. Por falar nisso,
você não vem me ver?
- Quando? - Clara parecia estar sonhando.
- Agora.
- Eu... eu... acho que não posso. vou sair com alguns amigos.
- Mande-os passear sozinhos e venha até aqui. Se você não vier, não me
responsabilizo pelo que possa acontecer - disse, num tom falsamente
trágico. Mas, logo em
seguida, acrescentou, sério:
- Venha, Clara, por favor.
Todas as defesas dela caíram por terra. Respondeu, emocionada:
- Está bem, eu vou. Dê-me o endereço.
O táxi deixou-a em frente a uma construção tipicamente inglesa que já
havia sido um armazém. Agora, recém-pintada e de janelas novas, a casa
tinha um aspecto aconchegante
e convidativo.
Abrindo a porta, Clara viu-se num pequeno hall pintado de azul. À
direita, uma escada conduzia ao andar superior, e ela parou, hesitante,
ouvindo a chuva que começava
a cair lá fora.
- Vamos, suba! O que está esperando? - Richard estava no
23
alto da escada, e Clara pôde ver que ele era bem mais alto do que parecia
naquela cama de hospital.
Subiu os degraus devagar, observando as fotografias espalhadas pela
parede: montanhas brilhando à luz do sol, picos cobertos
de neve, precipícios sem fim.
Quando chegou ao topo, Richard já não estava lá e ela olhou ao redor,
observando a sala espaçosa, toda atapetada e com mais fotografias nas
paredes.
Numa parte da sala, câmeras e spoís juntavam-se a outros equipamentos
fotográficos; na outra ficava a área de estar, muito bem mobiliada.
Richard estava em pé, junto
a um pequeno bar, com um copo numa das mãos.
- Venha cá - disse ele, olhando na direção de Clara. Tentei preparar um
coquetel para você, mas saiu horrível. Pode sentir o aroma?- Estendeu-lhe
o copo.
- É, parece forte. Mas não se preocupe comigo, porque não quero beber
nada.
- Então quer fazer o favor de me servir um pouco de uísque?
- Você acha que deve beber? Talvez fosse melhor...
- Clara, se vai começar com sermões, pode voltar - ele ameaçou, em tom de
brincadeira.
Seus olhos estavam escondidos por óculos escuros que lhe davam um ar
misterioso. A gola alta do suéter realçava o rosto magro. Clara sentia

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que ele não estava bem,-parecia
um pouco tenso.
- Você é quem sabe - murmurou, e serviu-lhe a bebida. - Já jantou?
- Não. Só almocei. A empregada deixou a comida pronta, mas não estou com
ânimo para esquentá-la.
- Eu também não comi nada ainda - afirmou ela. - Que tal dividirmos o seu
jantar?
- Acho ótimo, desde que você concorde em ir para a cozinha.
- E onde fica? - perguntou Clara, alegre, enquanto arregaçava as mangas
da blusa.
24
Conversaram animados, durante o jantar, como se nunca houvesse acontecido
a separação de semanas.
- Por que você chegou tão tarde ao seu apartamento? Richard perguntou.
- Reunião na escola. Sempre há muito que fazer, em época de provas. -
Quando terminam as aulas?
- Na próxima quinta-feira. - Vai sair de férias?
- vou, sim. com Elise e mais duas amigas. Vamos até a Espanha de carro.
Na verdade, eu preferia a Escócia, mas as outras não concordaram. E você,
o que vai fazer?
- Ainda vai levar algum tempo, até que eu recupere a visão respondeu ele.
- O especialista recomendou-me relaxar e não ter preocupações, pois, tão
logo o meu estado
geral melhorar, a visão voltará. Assim, resolvi viajar.
- Para onde vai?
- Para a Escócia, ilha de Jura, onde possuo um chalé. Tudo o que preciso
é de alguém que possa cozinhar para mim e que também me auxilie na
seleção de fotografias
e outros detalhes necessários para um livro que estou preparando acerca
da expedição. Alguém que saiba e goste de escrever. Pensei em você,
Clara. Não gostaria de
passar o verão comigo, em Jura, em vez de ir à Espanha?
Ela emudeceu de surpresa e ficou paralisada, observando os gestos
precisos de Ricard, que se servia de um pouco mais de salada.
- Mas... e Toni?
- Toni não está interessada em viver com um homem cego respondeu ele com
voz gelada, mas logo recuperou o ânimo. Então, o que acha? Vamos a Jura?
Como era difícil descobrir se ele estava sendo sincero! Tudo o que ela
via era seu próprio reflexo nas lentes escuras dos óculos de Richard. Era
impossível adivinhar
que razoes aquele convite repentino escondia.
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- Eu também não viveria com você, Richard, se é o que está; tentando
propor - respondeu ela, escolhendo bem as palavras, com receio de parecer
ridícula.
- Exato - completou Richard. - O que -você diria, então, se estivéssemos
casados?
Clara começou a tremer. Jamais poderia esperar que palavra como aquelas
saíssem dos lábios de Richard.
- Por favor, sem caçoadas - disse, quase sem voz. - Você não sabe o que
está fazendo.
- Eu não tenho o hábito de brincar com coisas sérias, Clara replicou. -
Tive tempo suficiente para refletir e acabei por descobrir uma maneira de
você passar comigo
o verão: vamos nos casar?
- Mas... mas... nós mal nos conhecemos!
- Discordo. Acho que nos conhecemos o suficiente. Só duas perguntas: você

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sabe datilografar e tem carta de motorista? -
- A resposta é sim para as duas perguntas. Mas, Richard, é preciso muito
mais do que isso para que duas pessoas se casem!
- Clara, ouça: eu preciso de ajuda e você pode me auxiliar muitíssimo.
Sei que isso soa de modo egoísta e nada romântico, mas eu não poderia
falar de outro jeito.
- Fez uma pausa e depois acrescentou, com um tom quase gentil: - Não
existe qualquer outra pessoa no mundo a quem eu possa recorrer, neste
momento. Se você disser
não, não saberei o que fazer. Talvez acabe ficando louco, se continuar
neste marasmo.
Clara permaneceu em silêncio, atordoada com tudo o que acabava de ouvir.
Emoções conflitantes a dominavam. O senso prático de Richard a magoara,
mas não podia deixar
de sentir compaixão por aquele homem cuja cegueira temporária o havia
tornado tão dependente.
Perturbado com o silêncio de Clara, Richard levantou-se abruptamente,
fazendo com que a cadeira em que estava sentado caísse. Ela correu para
ajudá-lo e ele a tomou
nos braços.
- Aonde vai?
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- vou levantar a cadeira. Deixe-a aí mesmo e vamos lá para dentro - disse
ele,
soltando-a mas pegando-lhe a mão em seguida.
Clara deixou-se conduzir ao estúdio, que ficava nos fundos do
apartamento, surpresa com a segurança que ele demonstrava no caminhar
desenvolto.
Sentaram-se muito próximos, no sofá que ficava defronte à janela. Clara
percebeu que a tempestade havia passado e no céu sem nuvens a Lua
brilhava.
- Clara...
- Você quer que eu dê a resposta agora?
- Isso mesmo.
- Preciso contar a meus tios. Quero que eles o conheçam.
- Oh, não.
- Por que não? Eles são pessoas adoráveis e vão compreender o seu
problema. Não há razão para essa timidez. Você logo irá se recuperar.
Richard riu muito daquela ingenuidade e depois acrescentou:
- Clara, não é timidez. Mas a resposta ainda é não.
- Mas, Richard, eles não vão procurar atrapalhar os nossos planos -
insistiu. - São apenas duas pessoas que estimo e que ficariam magoadas,
se eu não lhes dissesse
nada.
- Está bem. Diga a eles o que quiser, mas poupe-me cenas familiares.
Quanto menos pessoas envolvidas, melhor. Porque, se algum de nós quiser
voltar atrás, assim
que eu recuperar a visão, não precisaremos dar satisfação a ninguém. Será
apenas um contrato civil assinado diante de duas testemunhas. Nada de
presentes ou convidados.
A mulher independente que existia dentro dela revoltou-se com aquele
autoritarismo machista,
- Você se importaria ao menos de me dizer quando assinaremos o tal
contrato? A data pode não ser conveniente para
mim - acrescentou, demonstrando irritação.
- Na próxima quinta-feira - respondeu Richard, ignorando a
27

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ironia daquelas palavras -, assim que as suas aulas terminarem. À noite
estaremos viajando para Glasgow e já de manhãzinha partiremos para
Tarbert, de onde pegaremos
a balsa para Jura. Chegaremos ao chalé por volta das quatro da tarde.
Aquilo era ir longe demais. Clara sentia o chão fugir de seus pés. Tentou
agarrar-se a qualquer coisa que a livrasse daquela ideia louca e
intempestiva.
- E o meu emprego? Tenho um contrato a cumprir e não há como voltar
atrás.
Richard riu e passou o braço por trás de Clara, descansando-o no encosto
do sofá. Ergueu a mão e delicadamente começou a explorar o rosto dela,
sentindo os olhos,
as sobrancelhas, os lábios. Os dedos demoraram-se na nuca e seguraram o
queixo com suavidade.
Um leve tremor sacudiu o corpo de Clara e ela pôde sentir o quanto era
agradável a carícia que vinha daquelas mãos quentes.
- Você se preocupa demais com as pessoas - ele sussurrou.
- Olhe, quando o verão terminar, é provável que eu esteja em forma e
então você poderá voltar aos seus compromissos. Posso garantir que até lá
já estará enjoada
de mim. Prometo que o nosso casamento durará somente até o final do
verão. Bem, sim ou não?
Apesar do tom casual que ele usava, Clara sentiu que sua voz traía uma
ansiedade muito grande.
- Sim - disse depressa, antes que pudesse mudar de ideia. Eu me casarei
com você.
- Obrigada, minha querida. Acaba de tirar um grande peso da minha cabeça.
Agora, dê-me a sua mão.
Ela colocou uma das mãos entre as dele, que, sério, continuou:
- Prometa-me uma coisa, Clara.
- Prometer o quê?
- Não é fácil explicar. Compreendo que estamos para fazer algo que vem
atender somente às minhas conveniências, mas quero que saiba que, se
conhecer alguém especial
nesse meio tempo, pode considerar-se livre.
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- Você quer dizer que, se eu me apaixonar por alguém enquanto estivermos
casados, é só dizer e o nosso casamento estará acabado?
- Isso mesmo.
- Estranho ouvir isso do homem com quem se está prestes a casar. - Sorriu
amargamente. - Para mim, o casamento deveria durar para sempre.
Richard ficou em silêncio por um momento, franzindo a testa.
- Eu sei que você acredita nisso - disse finalmente. - Mas compreenda que
estou tentando evitar complicações. Só conseguiremos levar adiante este
nosso acordo se
formos honestos um com o outro. Nada nos garante que você não se
apaixone, nesse meio tempo, concorda?
- O mesmo pode acontecer com você - contra-argumentou Clara. - Só posso
aceitar o que propõe desde que também prometa fazer o mesmo.
Novamente Richard ficou em silêncio, incerto de como proceder.
- Não seria justo, se eu prometesse e você não - insistiu ela.
- Está bem, prometo.
Naquele fim de semana, Clara foi até Berkshire. Tia Irene, irmã de seu
pai, era uma mulher doce e romântica. Por isso, ficou desapontada, quando
soube que não só
não haveria um grande casamento como também ela não participaria nem ao
menos da cerimónia.

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- Mas, Clara, um casamento no verão é tão romântico! disse com tristeza.
- Sinto tanto por seu querido pai... Se estivesse vivo, não gostaria nada
de ver a filha
casada somente no civil.
- Tia, não somos contra o casamento religioso - ela disse, tentando
consertar a situação. - Mas o problema é que não há tempo para os
preparativos. É preciso que
tudo corra o mais rápido
29
possível, pois Richard deve estar sexta-feira na Escócia. Não pod adiar
por mais tempo a sua recuperação.
Clara já não sabia mais o que inventar. Para grande alívio, tio Bert veio
em seu socorro:
- Ora, vamos, Irene. Por que, em vez de colocar empecilhos não lhe deseja
boa sorte e dá a sua bênção? Afinal, não é todo
dia que a nossa sobrinha querida se casa.
Apesar de tia Irene não se ter dado por satisfeita, a intervençãc do
marido serviu para pôr um ponto final naquela conversa, e Clara passou o
resto do fim de semana
em agradável companhia.
Entretanto, persistia a estranha sensação de que, casando-se com Richard,
os amigos se afastariam dela. Toni, por exemplo. Já ligara para a amiga
diversas vezes
e não a encontrara. Na noite de quarta-feira, entretanto, conseguiu
entrar em contato com a moça com quem Toni dividia o apartamento.
- Então você não sabe? - perguntou a voz arrastada do outro lado da
linha. - Toni conseguiu, afinal.
- Consegui o quê?
- Agarrar um americano bonitão! Deixou a companhia de aviação e foi a
Paris com ele. Não ficarei nada surpresa, se já estiverem casados. Era o
que ela estava procurando.
Agradecendo a informação, Clara desligou. Só agora podia compreender as
palavras de Toni em relação a uma provável mudança de emprego. com
certeza, fora por esse
motivo que ela recusara o pedido de Richard.
Compadecida, Clara sentiu-se mais segura e com o firme propósito de
compensar Richard. Faria o impossível para que ele esquecesse Toni.
O fim do período letivo e os preparativos para a viagem mantiveram-na
ocupada até o último minuto. Na quinta-feira à tarde, ela e Elise, sua
testemunha, encontraram-se
com Richard e Albert Huntêr, a outra testemunha.
Após a rápida cerimónia, todos foram jantar no apartamento de
30
Richard. Elise foi logo embora e Albert ajudou Clara a empacotar o
restante do material necessário à execução do livro.
Albert Hunter havia sido o líder da expedição em que Richard sofrera o
acidente. Era um homem bastante alto, com um rosto bem-humorado e olhos
astutos. Seu comportamento
em relação a ela havia sido frio e crítico, e pela primeira vez passou
pela cabeça de Clara que os amigos de Richard poderiam não estar
aprovando o casamento.
A impressão de que Albert era um desses amigos tornou-se mais forte
quando ele, após levá-los à estação e ter cuidado de todos os detalhes
para embarcar o carro
no trem, voltou-se para ela, perguntando secamente:
- Acha que pode cuidar de tudo sozinha?
- Obrigada, mas não precisa se preocupar. - E acrescentou, irónica: - Já

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viajei de trem muitas vezes. Não costumo perder bilhetes ou malas e
normalmente consigo
voltar à cabine sem errar o caminho.
Albert perturbou-se, com tanta ironia.
- Por favor, desculpe a minha atitude superprotetora. Tudo isso me pegou
de surpresa e eu me pergunto se Richard tem consciência do que acabou de
fazer, casando-se
com uma pessoa como você.
- Puxa, você não é nada lisonjeiro, hein? - exclamou Clara, e, para sua
surpresa ele ficou mortificado.
- Diabos! Perdoe-me mais uma vez. O que estou tentando dizer é que ele
pode estar cego, mas continua o mesmo. Na verdade, ele... bem... Você
precisa saber que...
Droga, não sei se existe outra maneira de dizer isso, mas Richard não ama
você.
- Eu sei - admitiu Clara, sentido-se empalidecer. Uma coisa era suspeitar
de que ele não estava apaixonado, e outra ouvir isso de um amigo dele.
Albert olhou-a, entre surpreso e aliviado, e, pela primeira vez, sorriu.
- Então,, tudo está bem agora. Você não espera muito dele, e
31
isso é ótimo. Algumas vezes, as mulheres sentem-se traídas, quando um
homem não compartilha suas ideias. Olhe, já é o sinal de partida. É
melhor você entrar. - Ele
hesitou e depois acrescentou: - vou à Escócia daqui a alguns dias e
Richard sugeriu que eu desse um pulo até a ilha para ver vocês.
- Terei prazer em recebê-lo - arriscou, tímida.
Albert olhou para ela durante alguns segundos e então, para surpresa de
Clara, tomou suas mãos num gesto amigável.
- Obrigado. Espero vê-los em breve. Boa sorte.
A noite custou a passar. Em sua cabine, Clara não pregou olho, sentindo
pânico toda vez que pensava no que tinha feito. Havia dado um passo que
sempre considerara
o mais importante, na vida de uma mulher. Estava casada, sim, mas com um
homem que mal conhecia, que a arrastara para o mais estranho dos
relacionamentos: um casamento
sem amor.
32

CAPITULO III

Apesar da noite maldormida e da garoa fina que caía pelas ruas de Glasgow
na manhã seguinte, Clara sentiu-se outra, com aquela sensação boa que o
amanhecer traz.
Aquele era o primeiro dia de seu casamento. A aventura estava começando.
Enquanto dirigia o belo carro cinza de Richard, deixando para trás a
estação ferroviária, sentiu que ele estava nervoso. Não podia ver para
onde estavam indo e na
certa imaginava que ela não sabia guiar muito bem. Clara, por isso,
tratou de dirigir com bastante cuidado, de modo que, pouco a pouco, ele
conseguiu relaxar e começou
a responder o que ela lhe perguntava acerca dos lugares em que passavam.
Em Ardrishaig, tiveram que esperar que a ponte sobre o canal Crinan se
levantasse para a passagem de um barco que carregava carvão, conforme
explicou Richard. Aquele
carregamento destinava-se às ilhas Hébridàs. Quando a ponte voltou à
posição normal, Clara atravessou-a, a caminho da última etapa da viagem
até Tarbert. Logo o

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carro deslizava com velocidade em direção a um porto natural, quase todo
cercado por montanhas, onde vários barcos de pesca estavam ancorados.
Mais adiante, ela
avistou um castelo em ruínas, sinal de que, conforme as explicações de
Richard, já deveriam pegar o atalho que levava ao cais. Chegaram bem a
tempo, pois a balsa
que os conduziria à ilha estava de saída.
Enquanto a embarcação se afastava do quebra-mar, Clara observou que
Richard ainda continuava tenso. Ele se mantivera
33
calado, durante a viagem de carro, e só respondera às perguntas; que ela,
vez por outra, lhe fazia. Resolvida a não se deixar intimidar por aquele
silêncio constrangedor,
Clara aproximou-se
dele e perguntou-lhe que montanhas eram as que avistava ao longe.
- São as colinas de Jura - respondeu. - Na verdade, são três, embora
daqui você só consiga ver duas. Não são muito altas, cada uma tem cerca
de seiscentos metros.
- Muito interessante - ela ia dizendo, quando enrijeceu involuntariamente
o corpo, ao sentir os dedos de Richard em sua nuca.
Até agora, ele não havia tentado nenhuma aproximação maior, o que a
tranquilizava, pois não saberia como agir, se algo mais acontecesse.
Entretanto, deveria estar
preparada, porque ele, na certa, não aguentaria por muito tempo uma
amizade platónica com a mulher com quem havia acabado de se casar.
Notando a reação dela, Richard se afastou e, mais uma vez, Clara sentiu
que uma barreira se erguia entre eles.
- O chalé é seu? - ela perguntou depressa, para evitar que aquela tensão
aumentasse. - Ou é alugado?
- É meu. A velha miss Beaton, que morava lá o deixou para mim em
testamento. Era uma parenta afastada - respondeu com indiferença. - O que
você está conseguindo
ver até agora?
As perguntas afluíam à mente de Clara, que não abria a boca, ciente de
que ele não lhe responderia. Tudo havia ficado bem claro desde o início:
qualquer coisa que
fizesse parte do passado de Richard não era de sua conta.
- Acho que estamos chegando. Vejo alguns pontos brancos, parecem casas.
Nem bem acabou de falar e a embarcação começou a diminuir a velocidade
para alcançar o cais, onde desembarcaram sem problemas. ,
Já no carro, e seguindo as instruções de Richard, Clara tomou
34
a estrada que seguia através da costa, onde podia apreciar os pequenos
chalés cravados na bela paisagem montanhosa.
Pouco mais adiante, o caminho tornou-se sinuoso e já não havia mais
casas. A estrada parecia não ter mais fim, até que ela conseguiu avistar
uma pequena baía em
forma de "U". Numa das extremidades havia uma casa de três andares,
construída com pedras escuras, o que lhe dava um aspecto triste e
desolador.
- Nossa! - exclamou Clara, ao ver o local isolado em que se encontrava.
- O que houve?
- Estamos passando em frente a uma casa horrível que fica num lugar bem
triste.
- É a casa de verão de Douglas Fairlie. Quando criança, ele e sua irmã
Joan foram meus companheiros de férias. - Sorriu com a lembrança. - Nós
nos divertíamos muito

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com as histórias que contavam sobre a casa.
- Que histórias? - quis saber Clara, interessada.
- Diziam que era mal-assombrada. Uma noite ficamos acordados só para ver
os fantasmas, mas nada aconteceu, o que nos desapontou muito.
- É preciso que se acredite em fantasmas para que eles apareçam - brincou
ela.
Pouco tempo depois, o carro alcançava o outro lado da baía. Clara
admirava a paisagem que se apresentava a seus olhos, um cenário que em
nada lembrava o anterior,
tão triste. Aquele pedaço escondido de mar, coroado pela areia dourada,
parecia não fazer parte deste mundo.
Um pequeno chalé branco brilhava na praia e, atrás dele, na encosta,
estendiam-se os morros cobertos de vegetação. Tudo era paz e beleza,
naquele recanto.
Deliciada com o que via, Clara parou o carro em frente ao chalé, onde
terminava a estrada.
- Chegamos? - Quis saber Richard.
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- Chegamos. Que beleza! Que maravilha de cenário! O lugar perfeito para
uma... - Calou-se, embaraçada.
- Para uma lua-de-mel, você ia dizer - caçoou Richard, pegando a ideia no
ar. - Vamos lá, a chave está numa saliência acima da porta. Miss Buie,
que de vez em quando
vem fazer a limpeza, disse que a deixaria aí. Encontrou?
Clara abriu a porta e deparou-se com um aposento onde havia um fogão e
prateleiras com panelas. Estava para entrar quando Richard a segurou.
- Espere - disse ele. - Tenho que carregá-la. Não é esse o costume entre
recém-casados? E não posso perder uma oportunidade como esta. Onde está
você?
- Sou muito pesada - disse, envergonhada.
- Duvido - desafiou ele, e carregou-a nos braços.
- Pelo amor de Deus, não vá tropeçar, agora! - Ela experimentava uma
sensação deliciosa.
- Você esquece que eu já estive aqui antes? - respondeu ele, enquanto
entravam. - Pronto. Aqui estamos.
No momento em que ele a colocou de volta ao chão, Clara ainda sentia o
coração bater descompassado. Richard abriu a porta que separava a varanda
do resto da casa
e ela entrou num pequeno corredor que levava a três compartimentos: uma
pequena copa e dois quartos, cada qual com seu banheiro. Sorriu,
aliviada, ao perceber que
ficariam separados. Pelo menos esperava que assim acontecesse.
- Estou contente que a viagem tenha terminado - disse Richard, sentando
numa cadeira. - E você?
- Eu também. E acho melhor descarregar os alimentos que trouxemos e
prepararmos uma refeição rápida.
Clara não podia deixar de sentir-se animada com a nova perspectiva. Ali
ambos começariam suas vidas juntos, aprenderiam um com o outro e, quem
sabe, talvez um dia
viessem a amar-se. Corou, a esse pensamento, e tratou de sair dali
depressa,
36
esquecendo que Richard não poderia ver como seu rosto ficara vermelho.
Após a refeição, ela se pôs a desfazer as malas. Levou a de Richard até
um dos quartos e começou a pendurar as roupas, pepois arrumou a cama com
os lençóis que havia
trazido.

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Ele entrou no quarto e ela lhe notou a expressão pálida e cansada.
- Está com dor de cabeça? - perguntou. - A viagem deve tê-lo cansado mais
do que o normal. Quer uma aspirina?
- O que a faz pensar que estou com dor de cabeça? - Richard caminhou em
sua direção e, sentindo-a próxima, tomou-a nos braços. Clara não esboçou
reação alguma, tão
surpresa ficou.
- Não me casei com você apenas para que fosse meu chofer, fizesse a
comida e cuidasse de mim - continuou ele de forma insinuante, enquanto
apertava Clara contra
si.
- Eu sei - murmurou ela, percebendo que a respiração dele se tornava mais
forte.
Sentiu-o levar as mãos à sua cabeça e tirar os grampos que lhe prendiam
os cabelos. Livres, eles caíram como uma cascata. Richard passou a mão
por eles e admirou-se:
- Lembro-me agora da história de Rapunzel, que tinha cabelos tão longos e
fortes que seu amado subia por eles.
- Só que os dela eram loiros.
Richard, com suavidade, acariciou-lhe o rosto.
Seus lábios estavam muito próximos, perigosamente próximos. E se
encontraram, quase com violência. Naquele momento, Clara lembrou-se,
surpresa com a própria recordação,
de que Toni tinha cabelos loiros.
Ela acordou, na manhã seguinte, com o sol batendo em seu rosto. Por um
segundo sentiu-se confusa, sem saber onde estava. Não ouvia o barulho de
trânsito, só percebia
um grande silêncio. Ao deparar com o velho relógio na parede, lembrou que
estava
37
no chalé de Richard e que dormira sozinha no quarto maior. As imagens da
noite anterior vieram povoar seus pensamentos, imagens de Richard
beijando-a e de sua total
incapacidade de corresponder por causa da lembrança de Toni. Recordou-se
das palavras de Albert, segundo as quais Richard não a amava. Era fácil
relacionar as duas
coisas: ela fora uma simples substituta de Toni, pois, já que Richard não
conseguia vê-la, podia fingir que estava com sua amada. Clara não pudera
corresponder porque
Richard, na verdade, não a beijara, mas sim, a Toni.
Fora esta certeza que lhe dera forças para resistir. A princípio, essa
resistência parecia havê-la excitado ainda mais e, por alguns instantes,
Clara sentiu que
ele a dominaria.
Entretanto, em vez disso, Richard a soltou e, entre sério e brincalhão,
disse que era ela quem estava cansada da viagem. Sugeriu com delicadeza
que fosse dormir
e, após dizer boa-noite, entrou no quarto menor, fechando a porta.
Procurando evitar que as lembranças da noite anterior provocassem um
sentimento de culpa, Clara pulou da cama e vestiu-se depressa. Lavou o
rosto e prendeu os
cabelos, tentando esquecer tudo.
Entrou no outro quarto, onde Richard ainda dormia, e notou
que os cabelos escuros dele contrastavam com a brancura da
fronha. Nesse mesmo instante, como se tivesse ouvido alguma
coisa, ele se revirou na cama e suspirou profundamente. Clara
fechou a porta e saiu.

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O dia estava claro, o sol brilhava sobre as águas da baía. Alguns
pássaros cortavam o céu, na certa à procura de alimento.
Clara respirou fundo, sentindo prazer por estar vivendo num
lugar maravilhoso como aquele. Estava se dirigindo ao carro para
pegar algumas coisas quando uma voz vinda de longe obrigou-a a
voltar-se.
- Ei, você! Espere!
Um homem vinha em sua direção, sem camisa e com as calças
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arregaçadas até os joelhos. Quando se aproximou, Clara notou que ele
carregava uma fieira de peixes numa das mãos e uma vara de pescar na
outra. Não era muito mais
alto do que ela e sorria timidamente.
- Desculpe-me se a assustei. Meu nome é Douglas Fairlie. Estou passando o
verão aqui.
- Muito prazer. Meu nome é Clara Mallon.
- Mallon?
- Exato. Richard e eu chegamos ontem.
- Miss Buie nos disse que estava esperando Richard a qualquer momento,
mas não mencionou nada a respeito da esposa dele. Estão casados há quanto
tempo?
- Há dois dias.
Douglas arregalou os olhos.
- Isto é o que eu chamo de uma grande surpresa! Diga-me, é
verdade que os olhos dele foram seriamente afetados no acidente?
- É, mas os especialistas garantem que ele voltará a enxergar
assim que recuperar as suas forças. Não é só um problema físico,
mas também psicológico. Por isso viemos para cá.
- Bem, então muito prazer em conhecê-la, Clara. Já tomou o
seu café da manhã? - Ante a negativa, ele sugeriu: - Peguei
algumas trutas pequenas. Você poderia ir fazendo o café enquanto
eu as preparo. Que tal?
Clara simpatizou à primeira vista com aquele homem alegre e
gentil. Enquanto sentavam-se à mesa, Douglas perguntou:
- Onde conheceu Richard?
- Numa festa, há um ano.
- Isso foi antes ou depois do acidente?
- Por que você pergunta? - Clara sabia onde ele queria chegar.
- É que estou surpreso por ele ter casado com você.
Essas palavras trouxeram à mente de Clara a imagem de Toni, magra,
elegante e sexy.
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- Talvez esperasse uma mulher mais bonita e sofisticada, não?
- perguntou com voz trémula.
- Feri os seus sentimentos - acrescentou ele, mortificado. Perdoe-me, mas
o que eu quis dizer foi o seguinte: em primeiro lugar, não pensei que
Richard fosse se
casar, algum dia, e, em segundo, é estranho que ele tenha tido o bom
senso de escolher alguém como você. Pronto.
Clara sorriu e comentou em seguida:
- Richard já me falou a seu respeito. De Joan também.
- Eu e minha irmã gostamos muito dele. Divertíamo-nos muito quando
Richard vinha passar as férias aqui na ilha. Bem, devo ir andando. Meu
pequeno Alan está à espera,
na certa se perguntando por onde anda o pai.
- Quantos anos ele tem?
- Cinco.

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- Então espero vê-los logo. Ficarei contente de conhecer sua esposa.
- Ela já morreu - disse ele. - Minha mãe mora comigo e me ajuda na
educação de Alan.
- Sinto muito.
Douglas notou compaixão no olhar dela e acrescentou:
- Ora, vamos, não precisa ficar assim. Foi um acidente e aconteceu há
cinco anos. Bem, preciso ir. Até breve.
- Não quer esperar para ver Richard?
- Fica para outra vez - respondeu ele, já tomando o caminho de volta.
Clara preparou uma xícara de chá e levou-a até o quarto de Richard. Ele
ainda dormia, de bruços, com os braços sob o travesseiro.
- Vamos, acorde, preguiçoso! - chamou, colocando a xícara , em cima do
criado-mudo.
- Já estou acordado - respondeu ele, voltando-se, sonolento.
- com quem você estava falando?
40 ,
- Douglas Fairlie. Ele estava pescando no córrego e trouxe algumas trutas
para o café da manhã. Tome esta xícara de chá enquanto eu as preparo.
Richard sentou-se na cama e passou a mão nos cabelos, tirando-os dos
olhos.
- Está um lindo dia! - disse Clara, animada. - Você deveria ver que céu
claro, que coisa maravilhosa!
- Gostaria muito, se pudesse - comentou ele, mal-humorado, e Clara se
arrependeu na hora.
- Perdão - murmurou. - Esqueci completamente que você não pode ver. Não
parecia cego...
- ... ontem à noite. Não era isso que você ia dizer? perguntou com
sarcasmo. - Bem, um homem não precisa da visão para coisas que são
instintivas. Onde está o chá?
Ainda trémula com o comentário, Clara deu-lhe a xícara, sem saber se
devia ajudá-lo ou não. Ele esbarrou no pires e o líquido entornou, caindo
sobre o lençol. Richard
praguejou, enquanto ela se abaixava para recolher a xícara, que estava no
chão.
- Desculpe, Richard, a culpa foi minha. - Os olhos dela encheram-se de
lágrimas.
- Por favor, pare de se desculpar por tudo. Não é culpa sua se não posso
enxergar. - Mais calmo, pediu: - Agora saia, quero trocar de roupa. Isso,
pelo menos, posso
fazer sozinho.
Na copa, Clara arrumou a mesa, imaginando se todas as manhãs teria que
passar por aquilo. Sentiu um nó na garganta mas nem sequer teve tempo de
chorar: Richard apareceu
e encaminhou-se diretamente para a mesa, como se a estivesse vendo. Clara
trouxe as trutas, o pão e a manteiga, e despejou um pouco de chá na
xícara, colocando-a
em frente a ele. - Richard, eu...
- Se você vai dizer outra vez que sente muito, sou capaz de lhe dar uma
surra - brincou ele. - Não se desculpe mais. Se ficar me
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tratando como um inválido, nenhum de nós vai se divertir, este verão.
Agora pode parar de chorar.
- Mas eu não estou chorando!
- Claro que está. Tudo porque gritei com você no quarto, não foi?
- Não é por isso, Richard. É que me sinto tão desajeitada... Sobre a
noite passada, eu gostaria de dizer...
- Esqueça - cortou Richard. - Eu não me lembro mais daquilo.

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Ela não insistiu e um silêncio pesado caiu sobre eles, enquanto tomavam o
café.
- O peixe estava ótimo - observou Richard, ao terminar. Será que consigo
pescar com a sua ajuda? Entende alguma coisa de pesca?
- Acho que não - admitiu ela, já pensando que talvez alguém pudesse
ensiná-la.
- Doug é um ótimo pescador e tem muita paciência. Aposto como ficou
surpreso, quando você lhe contou a nosso respeito.
- Ficou, sim, e ainda comentou que não sabe como você teve o bom senso de
se casar comigo - brincou ela.
- Ele disse isso, é?
- Também fiquei sabendo que a esposa dele morreu e... Interrompeu o que
ia falar quando notou que Richard se enrijeceu na cadeira, o rosto
pálido. Fechou os olhos.
- Richard, você está bem? Parece ter levado um choque! Você a conhecia?
Ele fez um sinal afirmativo e esfregou os olhos.
- Logo que você acabar de tirar a mesa, vamos começar o nosso trabalho -
disse ele, mudando de assunto. - É melhor trabalharmos sempre de manhã. A
seleção das fotos
levará algum tempo para ser feita. A não ser que eu recupere logo a
visão, você terá que escolher as melhores.
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Era óbvio que aquele comentário sobre a morte da esposa de Douglas o
havia afetado. Por que ele fugira do assunto?
- Você confia em mim para a seleção das fotos? - perguntou ela. - Não vai
ser nada fácil.
- Não vai mesmo. Principalmente porque eu grito o tempo todo. Em vez de
chorar a cada palavra mais dura, eu preferia que você me xingasse -
acrescentou, rindo.
- Acho que eu não saberia fazer isso - replicou ela, rindo também.
- Fique alguns dias do meu lado e você logo aprenderá. Permaneceu alguns
instantes em silêncio, a olhar para ela como se a enxergasse. - "Frágil e
sensível como
uma flor", foi como Albert a descreveu. E ainda por cima teve a cara-de-
pau de perguntar se eu sabia o que estava fazendo!
- Talvez pelo fato de você ter casado com uma mulher que nunca viu antes.
- Você não conhece Albert. Ele não estava preocupado comigo, mas, sim,
com você.
- Por que ele se preocuparia comigo?
- Não sei. Ele disse que há muitas diferenças entre nós, que você é uma
mulher sensível, com uma visão do mundo completamente diferente da minha.
Que só podia estar
louca, quando aceitou casar comigo.
- E imagino que você tenha respondido que ele não devia se meter onde não
era chamado, certo?
- Lógico, só que com palavras que você jamais usaria - admitiu ele, rindo
bastante. - De qualquer modo, vai ser interessante, para você, passar o
verão tentando
descobrir se sabia ou não sabia o que estava fazendo, ao casar comigo.
Agora chega de conversa, precisamos
abalhar. Pensei que talvez pudéssemos usar o meu quarto como escritório.
Você se senta à mesinha e datilografa o que eu dito da cama.
- Preguiçoso! - acrescentou ela em tom de brincadeira, começando a tirar
a mesa.
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Richard levantou-se e, de repente, segurou-a pelos pulsos impedindo-lhe
os movimentos. Clara assustou-se, mas ele deu uma gargalhada e voltou-lhe

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as costas, indo
para fora da casa. Talvez quisesse demonstrar que poderia toma-la à
força, se assim o desejasse. Uma sensação estranha se apoderou dela, ao
compreender que estava
a sós com Richard, completamente à mercê de sua força física.
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CAPÍTULO IV

O carro rodava pela superfície, irregular da estrada, espalhando a água
que se acumulara em poças ao longo do caminho. Chovera bastante durante a
noite e o tempo
continuava feio e úmido. Era incrível que, após uma semana de sol e
calor, o céu estivesse encoberto por nuvens escuras .que anunciavam uma
nova tempestade.
Durante aquela semana, Clara aprendera a conciliar os afazeres domésticos
com o trabalho. Só não havia aprendido a viver na intimidade com Richard
e, como resultado,
uma barreira tinha se erguido entre eles. Por isso, apesar do mau tempo,
Clara não hesitou em sair para fazer compras. Ao menos poderia escapar
por algumas horas.
Mais adiante reconheceu o homem que caminhava pela estrada com uma cesta
e uma vara de pescar nas mãos.
- Quer uma carona?
- Bem na hora! - Douglas sorriu ao reconhecê-la. - Só um louco como eu
poderia sair para pescar com um tempo desses. Não vejo a hora de chegar
em casa, tomar
um bom banho e beber uma í xícara de chá bem quente - disse, entrando no
carro e colocando a cesta com os peixes no banco de trás.
- Por que não veio nos visitar? - perguntou Clara, pondo o carro em
movimento.
- Não quero me intrometer na lua-de-mel de vocês. Clara sentiu-se corar.
Não poderia dizer a ele que não existia nenhuma lua-de-mel, que Richard
não a amava.
Quanto a ela...
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Mordeu os lábios. Quais eram seus sentimentos em relação a ele?
Compaixão? Admiração? Medo? Sim, acima de tudo, um medo irracional que a
fazia tremer cada vez que
ele a tocava e que tornava mais distante a ideia de um dia chegarem a se
amar.
- Gentil de sua parte - respondeu ela afinal, compreendendo que ficara
calada por muito tempo -, mas Richard começa a achar que você pode ter
algo contra ele. É
verdade?
Douglas ajeitou-se no banco e fixou os olhos na estrada. Só depois de
tirar o cachimbo do bolso e de acendê-lo foi que respondeu:
- Talvez sim, talvez não.
- Como assim?
- Eu sei que parece estranho, mas não posso dizer com certeza se ele fez
ou não de propósito, embora tenha certeza de que seria bem capaz.
- Do que você está falando? O que Richard pode ter feito de propósito? -
Clara não estava entendendo nada.
- Não posso lhe dizer. Qualquer dia você descobrirá. É o tipo de coisa
que não se pode dizer a alguém que está em lua-de-mel.
Essa resposta fez com que ela engolisse em seco.
- Você está me assustando. Será possível que exista algo tão grave assim?

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Foi alguma coisa que Richard tomou emprestado e não devolveu? Meninos
sempre fazem isso
por esquecimento, apesar de parecer roubo ou algo parecido.
- O que você acaba de dizer talvez seja verdade - concordou ele. - Mas
por que disse "meninos"?
- Porque Richard só tinha quinze anos, quando visitou a ilha pela última
vez.
- Não é verdade. Ele esteve aqui há cinco anos. Clara emudeceu, sentindo-
se mal por ter acabado de demonstrar
que não sabia nada a respeito do homem com quem se casara. O que Douglas
pensaria? Não conseguiu imaginar nada para dizer, mas, para seu alívio,
ele mudou de
assunto:
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- Como estão os preparativos para o livro?
- Bem. Trabalhamos durante a manhã e às vezes à noite. Richard tem um
diário com todos os acontecimentos; eu o leio e em seguida compomos a
narrativa, baseando-nos
nas fotografias.
- Parece interessante!
. Muito! Depois de todas essas manhãs de trabalho, fico
surpresa ao constatar que estou numa das ilhas Hébridas e não entre as
montanhas de Kumoa, no Himalaia.
- Está gostando da nossa ilha?
- Adorando, embora ainda não tenha podido ver muita coisa. Todas as
tardes damos uma caminhada pela praia.
- Já andaram pelos lados do cabo?
- Não. Caminhamos sempre até um recanto, onde Richard gosta de ouvir as
águas do córrego batendo nas pedras. De fato, é um lugar muito bonito.
- Você devia passear mais. Podemos levá-la a outras partes. Existem
pedras também do outro lado da ilha e lugares muito mais bonitos, porém
de difícil acesso. De
carro é impossível chegar lá.
Clara suspirou.
- Gostaria muito, Douglas, mas Richard não consegue andar por lugares
assim.
- Ora, ele conhece tudo, por aqui. Tenho certeza de que não se
importaria, se você o abandonasse por poucas horas e viesse comigo.
Afinal, pode ser que não volte
mais à ilha.
- É verdade - concordou ela, pensativa. Douglas jamais adivinharia a
extensão das próprias palavras.
A baía em fora de "U" agora se tornava visível, e sobre o cabo podia-se
avistar a grande casa escura que Clara já conhecera por fora. O carro
logo parou em frente
a ela e Douglas inclinou-se até o banco de trás para pegar o equipamento
de pesca. - Venha conhecer a casa - sugeriu, enquanto saía do carro.
Ela aceitou e os dois correram para dentro, para evitar que a chuva que
agora caía forte os ensopasse por inteiro. Entraram na
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varanda e Douglas ajudou-a a tirar a capa, conduzindo-a em seguida para a
ampla cozinha.
Lá estava uma senhora de cabelos grisalhos, que acabava de tirar uma
panela do fogo. Ouvindo-os entrar, voltou-se e sorriu ao se deparar com
Clara.
- Eu vi vocês chegarem e estava torcendo para que Douglas a trouxesse até
aqui - disse amigavelmente. - Você é a mulher de Richard, não? Muito

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prazer, sou Margot
Fairlie, mãe de Douglas.
- Fico contente de conhecê-la.
- Obrigada, querida. Vamos até a sala? O pequeno Alan está lá, comKirsty.
- Enquanto você e Clara conversam, vou trocar de roupa. E os gémeos, onde
estão?
- Brincando no sótão - respondeu Margot. Em seguida dirigiu-se a Clara: -
Seu marido e Douglas sempre brincavam lá, quando o tempo estava chuvoso.
Mas isto foi há
muito tempo.
Entraram na sala grande e iluminada, decorada em estilo vitoriano. Ao
lado da lareira, duas pessoas estavam sentadas no chão. Uma era uma
criança ruiva que imediatamente
se virou para ver quem entrava. Seus olhos cinzentos eram vazios e sem
expressão. Á outra pessoa era uma mulher esbelta, aparentando ter trinta
anos.
- Kirsty, Alan, esta é Clara Mallon - apresentou-os Margot.
- Ela veio tomar chá conosco. Agora conversem com ela enquanto preparo
tudo.
- Onde está papai? - o menino perguntou. - Conseguiu pescar alguma coisa?
- Está lá em cima, no quarto. Fique aqui e...
- Não fico nada. vou lá com ele. Estou cansado de brincar com ela -
disse, apontando para Kirsty, e, sem dar ouvidos à avó, saiu da Sala.
Margot Fairlie olhou para Kirsty como que se desculpando. Esta percebeu e
adiantou-se antes que a outra pudesse dizer algo.
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- Tudo bem Mrs. Fairlie - afirmou, compreensiva. Cevará algum tempo até
que ele se acostume comigo.
- Por favor, sente-se e fique à vontade, Clara. Kirsty foi uma grande
amiga de minha nora e acabou de voltar do Canadá. Margot hesitou e então
saiu da sala.
Clara sentou-se na extremidade do sofá, sem jeito. Reparou em Kirsty e se
comparou com ela. Não gostou do resultado. Desejou não estar usando
aqueles jeans surrados,
com a blusa vermelha já meio desbotada. Kirsty, com uma saia preta que
combinava muito bem com a blusa cinza, media-a de cima a baixo. O brilho
de seus cabelos curtos
e sua figura esbelta e elegante fizeram com que Clara se sentisse
horrorosa.
- Então você é a esposa de Richard - disse Kirsty, sentando-se na
poltrona ao lado. - Ora, ora, não é exatamente o tipo de pessoa que eu
imaginaria para ele. - "O
mesmo assunto...", pensou Clara, enfadada. - Como você conseguiu? Pelo
que me lembro, Richard tinha fixação por beleza e elegância. Como vai
ele?
Clara engoliu o insulto e respondeu:
- Muito bem. Você o conhece, então?
- Eu o conheci há cinco anos. Era muito amiga de Sorcha Fairlie e fui
convidada a passar as férias aqui. Richard estava no chalé. Você sabe a
respeito de Sorcha,
suponho.
- Era a esposa de Douglas, não? Ele me disse que ela morreu num acidente.
- Douglas? - Kirsty levantou as sobrancelhas, demonstrando espanto. - Não
foi Richard quem lhe contou?
Clara sentiu-se embaraçada, quando notou aqueles olhos azuis brilharem,
mordazes. Não queria dar a entender que o próprio marido tinha segredos
para com ela.

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- Na verdade, fui eu quem lhe deu a notícia - tentou explicar. - Richard
não sabia e pareceu chocado, quando lhe contei. O que aconteceu?
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- Sorcha havia ido a Glasgow sem dizer uma palavra. Douglas não estava
aqui, mas numa conferência em outra cidade. Ele é professor-assistente na
melhor universidade
da Escócia - explicou Kirsty. - Richard havia deixado a ilha no dia
anterior. Ao que tudo indica, Sorcha foi-se encontrar com ele, mas sofreu
um acidente de
carro e morreu na hora.
- E por que ela haveria de se encontrar com Richard? - Clara começou a
ficar intrigada.
O sorriso de Kirsty era bastante significativo. Entretanto, ao ouvir que
Margot se aproximava, pôs o dedo nos lábios, dando a entender a Clara que
mudassem de assunto.
A seguir perguntou casualmente:
- Em que trabalhava, antes de se casar?
- Eu ainda trabalho - respondeu ela, compreendendo que aquela conversa
sobre a morte de Sorcha não deveria chegar aos ouvidos de Margot. - Sou
professora de História.
Margot entrou na sala e Clara levantou-se para ajudá-la, tirando,
prestativa, a bandeja das mãos da boa mulher.
- Obrigada, minha querida. Ponha-a do lado do sofá, sim? É uma pena que
Richard não esteja conosco para comer essas rosquinhas. Ele gostava
tanto! - lamentou-se
Margot, enquanto servia o chá.
- Ele adoraria ter vindo, estou certa.
- Compreendo que ele tenha medo de andar por aí sozinho. Que coisa
terrível, não? Ser obrigado a privar-se das coisas que mais lhe
agradavam: alpinismo, viagens,
pesca...
- ... mulheres bonitas... - disse Kirsty em voz baixa, lançando um olhar
maldoso para Clara.
- Fotografias... - continuou Margot, sem ouvir o comentário da outra. -
Acredito que você esteja sendo de grande valia para ele, principalmente
agora, com o prójeto
do livro. Richard é mesmo uma pessoa de sorte, por ter alguém como você.
- Uma datilógrafa seria útil do mesmo modo - troçou Kirsty.
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Não concordo - contestou Margot. - É preciso alguém que
tenha sensibilidade, que veja as coisas como ele as vê; não esqueça que
Richard não pode selecionar as fotografias.
Gostaria muito que você fosse visitá-lo - pediu Clara,
sentindo que aquela mulher simpática poderia ajudar Richard.
- Pensamos nisso, Douglas e eu. Mas uma lua-de-mel deve transcorrer em
meio à privacidade dos pombinhos.
Olhando para Kirsty, Clara corou. Parecia que a outra sabia de tudo o que
se passava entre ela e Richard.
A entrada de duas crianças na sala interrompeu a conversa. Eram iguais e
não tinham mais que doze anos.
- Quem é essa moça? - perguntou uma delas, apontando para Clara.
- George, que modos horríveis! Esta é Clara, esposa de Richard -
respondeu Margot.
- Podemos visitá-lo? - perguntou a outra criança. - Quero saber como ele
ficou, depois que caiu da montanha.
- Por favor, Clara, desculpe. Sabe como são as crianças, falam o que lhes
vem à cabeça.

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- Não se preocupe com isso, Margot - respondeu ela, i sorrindo de forma
compreensiva.
- Estes são meus netos George e Beth, filhos de minha filha Joan. Ela e o
marido estão velejando pelas ilhas. Normalmente, as crianças os
acompanham, mas este ano
eles preferiram viajar sozinhos.
- Acho que Richard vai ficar muito contente, se vocês forem visitá-lo -
disse Clara.
- Eu também? - perguntou uma vozinha tímida. Era Alan, .-que havia
voltado na companhia do pai.
- Você também. - Clara sentiu-se contente ao notar que aquela criança
aparentemente arredia sorria para ela.
- Por que não vamos todos juntos? - sugeriu Kirsty. - Será
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mais fácil quebrar-se o gelo, quando Douglas e Richard se encontrarem.
- O que a faz pensar que existe algum gelo para ser quebrado
- perguntou Douglas.
- Você não fez nenhum esforço para vê-lo, até agora, e entã deduzi que
ainda o considera culpado pelo que aconteceu a Sordi
- explicou Kirsty, e Clara notou que a maneira como se comportava não
combinava com sua beleza. Era como uma
fruta bonita por fora e podre por dentro.
Um silêncio pesado caiu sobre todos, até que Margot retomou conversa,
desviando-a para assuntos mais superficiais. Mais tarde convidou Clara
para conhecer o resto
da casa.
Depois de andarem pelos diversos cómodos, entraram no escritório. Ali
Clara foi surpreendida com uma pergunta, feita quase em tom confidencial:
- Você sabe muito pouco a respeito de Richard, não?
Clara ficou um pouco embaraçada, mas encontrou o olhar compreensivo e
solidário daquela mulher com quem simpatizara à primeira vista.
- É verdade.
- Então vou lhe dizer o que sei. Não é muito, pois o que conheço do
passado de Richard me foi contado por Grace Beaton, tia-avó dele.
- Não foi Grace quem lhe deixou o chalé? - perguntou Clara, lembrando que
Richard já havia mencionado isso por alto.
- Exatamente. Mas deixe-me começar do princípio. Grace e Roderick Beaton
nasceram naquele chalé onde vocês estão e onde os Beaton sempre viveram.
Entretanto, como
muitos jovens de sua época, abandonaram a ilha, à procura de uma vida
diferente.
- Para onde foram?
- Ele entrou para a Marinha mercante e ela foi para Londres, onde se
tornou enfermeira. Roderick casou-se com uma moça que
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conheceu numa de suas constantes paradas e, logo depois, tiveram uma
filha. Entretanto, Roderick mal chegou a conhecê-la, pois contraiu uma
doença grave no navio
e morreu em algum ponto do oceano. A esposa dele casou-se novamente e
Grace Beaton nunca mais teve notícias dela. Anos mais tarde, Grace
conheceu uma estagiária
no hospital onde trabalhava. Essa moça, verificou-se mais tarde, era sua
sobrinha, filha de Roderick. Não é preciso dizer que as duas ficaram
muito felizes, especialmente
a moça, que não vivia bem com o padrasto. Assim foi que passou a morar
com a tia. A guerra veio e Grace trabalhou como voluntária no front,
cuidando dos feridos.

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As duas, todavia, sempre se corresponderam, e numa dessas cartas a
sobrinha mencionou um piloto por quem se havia apaixonado.
- Era o pai de Richard?
- Ele mesmo - concordou Margot. - Foi um daqueles romances rápidos dos
tempos de guerra. Casaram-se e em seguida ele partiu, para acabar
morrendo num bombardeio.
A moça descobriu estar grávida. O marido nada lhe havia dito sobre a
família ou como encontrá-la, de modo que só restou a ela voltar para a
casa da mãe. Grace não
teve mais notícias da sobrinha, que deve ter morrido logo após o parto.
- Que triste...
- É verdade, mas esse não era um fato incomum, para aquela época. Richard
ficou então sob os cuidados da avó materna, até que esta, doente,
entregou-o a um orfanato.
- Que horror! E onde estava miss Beaton?
- Quando a guerra acabou, Grace procurou o sobrinho durante vários anos,
até finalmente encontrá-lo. Não conseguiu a tutela, entretanto, porque
era solteira. A avó
de Richard havia morrido há algum tempo, e Grace então conseguiu
permissão do juiz para que Richard passasse com ela alguns meses do ano.
Jamais esquecerei o dia
em que minha filha Joan trouxe um menino alto e magro que
53
havia conhecido na praia, do outro lado da baía... Enfim suspirou Margot
-, isto é tudo o que eu sei.
- Começo a compreender por que Richard parece tão frio e insensível,
algumas vezes - murmurou Clara, pensativa.
- A vida dele não foi nada fácil. Richard herdou o orgulho e a reserva
dos Beaton. Não gosta de ter que dar explicações e, às vezes chega a ser
mal-interpretado.
O semblante de Margot anuviou-se e Clara imaginou que ela talvez
estivesse recordando as palavras de Kirsty, de que Richard seria o
responsável índireto pela morte
de Sorcha. Respeitou aquele silêncio, comovida, mas no instante seguinte
Margot sorriu
e abraçou-a, acrescentando:
- Estou feliz por ele ter encontrado alguém como você, Clara justamente
no momento em que mais precisava.
- Às vezes me sinto tão inútil...
- Você é ótima, tenho certeza. De qualquer modo, seria bom que Joan
estivesse aqui. Eles eram muito amigos. Douglas é niais novo e, apesar de
ser meu filho, reconheço
que é austero demais para a idade. Bem diferente de Richard! - Olhou
instintivamente para o relógio antigo que ficava na parede do escritório
e exclamou: - Meu Deus,
estamos conversando há tanto tempo que seu marido deve estar preocupado
com a sua demora. Já são seis horas! Vá, querida, não o deixe esperando.
Parando o carro em frente ao chalé, Clara desceu, carregada das compras
que fizera no armazém, após ter deixado a casa de
Margot. Entrou na varanda e estranhou o
silêncio. Sentiu um frio no estômago. Será que Richard, frustrado pela
impossibilidade de enxergar e furioso pela longa demora, havia saído
sozinho?
Tentou acalmar-se e entrou na copa. Richard estava sentado à mesa,
examinando algumas lentes do equipamento de fotografia. Havia uma máquina
sobre a cadeira e, esparramadas
na mesa, diversas fotos. Segurando a respiração, Clara viu quando ele

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pegou
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um filme e colocou-o sem dificuldades na máquina que tinha à
mão.
Então ele estava enxergando! As têmporas dela latejavam e seu coração
começou a bater feito louco.
Richard voltou-se para ela e seus olhares se encontraram. Nos dela havia
ansiedade. Nos dele, mistério.
55

CAPITULO V

O silêncio era pesado, e Clara quase não conseguia suportar aquela
situação. Ela podia sentir seus músculos se contraírem e as pernas
tremerem. Richard a havia olhado
fixamente, estava certa disso, embora tivesse voltado novamente a atenção
para a máquina. Clara não conseguia mover os lábios, tal era o medo que
se apossava dela.
Sentiu-se culpada, ao compreender o que se passava em seu íntimo: não
queria que ele a visse. Não agora. Um de seus braços ficou tão mole que
ela não conseguiu evitar
que um dos pacotes que carregava caísse. Imediatamente Richard perguntou:
- É você, Clara?
- Sim, sou eu. Desculpe a demora. - Caminhou até o armário e começou a
guardar as compras, dando graças a Deus por ter conseguido responder com
naturalidade. - O
que esteve fazendo este tempo todo? - perguntou, ainda trémula e ansiosa.
- Descobri que posso pôr o filme na máquina. Sozinho! Após várias
tentativas, consegui afinal. Quer ver? - indagou, alegre como uma
criança.
Clara respirou, aliviada, ao constatar que nada mudara. Ele continuava
cego. Sentindo-se leve como nunca, aproximou-se
da mesa .para observá-lo.
As mãos hábeis moviam-se, seguras. Richard tirou o filme da máquina e o
recolocou em seguida, com segurança e
rapidez. Sentia-se feliz consigo mesmo.
- Que bom, Richard! - exclamou ela, feliz. - Estou certa de que você logo
poderá fazer tudo, como antes. Mais cedo do que pensa!
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E você ficará muito content, com isso, não é?
Clara o observou e hesitou um pouco. Não podia dizer que não; seria
cruel. Por outro lado, sabia que, assim que ele voltasse a enxergar,
aquilo tudo terminaria.
Por isso, foi com esforço que respondeu:
- Claro que ficarei feliz. Agora deixe-me preparar o jantar.
- O que há com você? - perguntou ele, intrigado. - Parece nervosa. Onde
esteve até agora?
- Na casa de Douglas. Encontrei-o na estrada e, como estava chovendo,
ofereci-lhe carona. Acabei entrando para conhecer a mãe dele e fiquei lá
a tarde toda. - Falava
sem parar, como se com isso pudesse apagar a impressão que causara a
Richard.
- Joan estava lá?
- Não. Foi viajar com o marido. Mas conheci uma tal de Kirsty. Você sabe
quem é, não?
Clara esperava que ele admitisse ter estado na ilha cinco anos atrás.
- Kirsty, você disse? Não me lembro.

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Ela se voltou para olhá-lo. Richard estava em pé, mãos nos bolsos, testa
franzida, como quem puxa pela memória.
- Vamos, Richard! - acrescentou, com uma risada nervosa.
- Você sempre se esquece das pessoas que conhece?
Ele levantou os ombros e sorriu.
- Não faço de propósito. É que tenho dificuldade em associar o nome à
pessoa. Descreva-a para mim.
Clara observou-o longamente. Ele havia adquirido uma aparência forte e
saudável, que lembrava o Richard petulante e auto-suficiente dos velhos
tempos. O Richard
que não precisava de ninguém. Muito menos dela.
- Ei, Clara, o que há?
- Como assim? Não há nada. Quero dizer... O que poderia haver?
- é que você parecia estar tão longe!..
57
Ela tremeu. Como aquele homem podia ter os sentidos tão aguçados?
- Bem, eu... estava pensando em como você melhorou acrescentou com
impaciência. - Bronzeado e bem disposto, nem parece a mesma pessoa.
- Sabe, eu já havia me perguntado quando é que iria notar. Tudo isso se
deve à ótima comida que você faz e ao ar puro daqui. Agora só preciso da
sua companhia durante
a noite. Assim ficarei melhor ainda.
Clara pensou que ele tinha todo o direito de sugerir aquilo. Afinal,
estavam casados. Mas, mesmo assim, sentiu-se chocada com a ideia.
- Imagino, pelo seu silêncio - concluiu ele -, que você ainda não pensou
nisso. Está bem, então. Descreva-me a tal mulher para ver se consigo me
lembrar dela.
Mais uma vez, Clara respirou, aliviada, por ele não ter insistido naquela
conversa. Descreveu Kirsty enquanto preparava o jantar e não omitiu
nenhum detalhe.
- Não pensei que você esquecesse tão fácil assim um rosto bonito -
concluiu, de costas para ele. Por isso mesmo, levou um susto, quando
Richard a enlaçou pela cintura.
- Uma mulher não precisa ter um rosto bonito para que eu me lembre dela,
bobinha.
O coração de Clara batia descompassado, ante o calor daquele corpo tão
próximo.
- E, além do mais, a beleza se mostra de maneiras diferentes
- continuou ele. - Você tem uma voz bonita e melodiosa, pele e cabelos
macios... Estou sentindo isso agora. - Encostou o rosto ao dela, que
sentiu estar sendo arrastada
num turbilhão de emoções. - Que beleza maior pode querer um homem cego?
- Você se lembrou de Kirsty? - indagou ela. Não havia muita suavidade em
sua voz, agora, que soava com aspereza. Era preciso que não se deixasse
levar pelas palavras
de Richard.
- Sim, mas não quero pensar nela agora.
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- Por quê?
- E o nosso jantar? Estou morto de fome!
- Não fuja do assunto, Richard. E, se você me soltar, logo, logo o jantar
estará pronto.
- Um a zero pra você - concordou ele, rindo e soltando-a. Eu a deixo ir
agora, mas não pense que vai escapar sempre.
Aquela ameaça em tom de brincadeira ficou soando nos ouvidos de Clara,
enquanto ela acabava de fazer o jantar. Sabia que Richard notava como
tremia, cada vez que

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a tocava. Isso, na certa, dava a ele a segurança de poder avançar cada
vez mais. Só que não era assim que ela queria.
Já à mesa, em silêncio, Clara observava com atenção o homem que a
desposara. Era muito atraente, e fazer amor com ele devia ser
maravilhoso. Uma loucura. Algo que
a faria até chorar de prazer e emoção. Faltava, entretanto, uma coisa:
queria ouvi-lo dizer que a amava, que Toni nada significava.
- Por que não me contou que esteve aqui há cinco anos? - A pergunta
quebrou de maneira abrupta o silêncio. Richard ajeitou-se na cadeira.
- Não pensei que você se interessasse no que eu pudesse ter feito cinco
anos atrás. Alguma vez fiz este tipo de pergunta a você?
- Não, mas não tenho nada a esconder. Há cinco anos, eu tinha quase
dezoito e me preparava para entrar na faculdade.
Clara pretendia, ao dizer essas coisas, que Richard se abrisse um pouco.
Seu esforço não passou despercebido.
- Suponho que, em troca, eu deva lhe dizer o que fazia naquela época -
caçoou ele. - Bem eu tinha quase trinta anos
e acabava de fazer a minha primeira exposição
de fotografias. Depois de ter sentido o gosto do sucesso, resolvi voltar
à ilha. Já fazia tempo que não vinha até aqui. Para ser mais exato, desde
a morte de tia
Grace. Pronto, isso satisfaz a sua curiosidade? - A voz soava sarcástica,
demonstrando uma certa irritação.
- Quanto tempo ficou aqui?
- Um mês. mais ou menos.
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- Kirsty contou que Sorcha Fairlie deixou a ilha um dia depois de você
ter partido, e morreu num acidente de carro.
Richard fechou os olhos e sua expressão demonstrava amargura. Por um
momento, pareceu ser o homem que Clara conhecera no hospital. Pousou os
cotovelos sobre a mesa
e descansou a cabeça nas mãos.
- O que mais Kirsty lhe contou? - perguntou, com voz fraca e cansada.
- Que era grande amiga de Sorcha e que ela saiu da ilha para ir atrás de
você.
Richard não disse uma palavra, mas seu nervosismo era evidente.
- É verdade? - insistiu Clara, desejando ardentemente que ele negasse.
- Talvez sim. Mas não lhe pedi que fizesse isso. - Depois desta resposta,
Richard entregou-se a seus pensamentos.
Clara só observava, sem saber o que falar. Toni, com certeza, não faria
tantas perguntas. Conversaria, animada, sobre outras coisas, procurando
distraí-lo. E, principalmente,
Toni não hesitaria em ir para a cama com ele.
- Você gosta de Douglas, Clara?
- Gosto, sim. Ele é muito gentil.
- Imagino que tenha sentido muito o fato de a esposa dele tei morrido -
comentou, enigmático.
- Tem razão. Também sinto pena de Alan. O garoto é muito estranho, parece
viver em outro mundo.
- Entendo. Talvez ele seja um predestinado, como a mãe.
- Predestinado? O que quer dizer com isso?
- Destinado a morrer. - Havia uma nota sádica em sua voz.
- Ou pode significar também tresloucado.
Terminado o jantar, levantaram-se e Richard dirigiu-se à porta, parando
antes de cruzar a soleira, de modo a bloquear a passagem. Clara, por um
momento, imaginou
que ele fizera isso de propósito, mas depois concluiu que,não.

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Você está bloqueando a passagem - explicou com cuidado,
detestando ter de lembrá-lo da cegueira.
- Estou, é? Que bom, pois é aqui mesmo que vou ficar replicou ele com
jovialidade, sem se mover um só milímetro.
- Porquê?
- Para não deixar você fugir. Só saio daqui se prometer que vai dormir
comigo, esta noite. E já não é sem tempo.
- Por que não tomamos um chá e conversamos a respeito? sugeriu ela,
tentando ganhar tempo.
- Porque não temos feito outra coisa senão conversar, e já estou cansado
de conversa. - Fez uma pausa e em seguida continuou, sério: - Você não
pensou que eu me
contentaria com uma esposa só no papel, pensou?
- Não. - O rosto dela pegava fogo. - Sinto muito, Richard, mas pensei que
talvez... Bem, sei que você não me ama e...
- Amor? Do que você está falando agora? Ouça, Clara, posso ser cego, mas
sou normal, com certas necessidades, como todos os outros. Você é uma
mulher saudável. Não
é possível que não sinta
a mesma coisa! - Riu-se do que considerava ingenuidade de Clara. - Amor,
como você quer, é algo que não existe. O que há, agora, são duas pessoas,
um homem e uma
mulher, convivendo sob o mesmo teto. Nada mais natural que esse homem e
essa mulher façam amor, não acha? - Depois acrescentou, impaciente:
- Já esperei muito, Clara. Será possível que você não compreende?
Clara não podia acreditar no que ouvia. Chocada com aquelas palavras, e
aproveitando que Richard saíra da passagem, encaminhou-se, apressada,
para o quarto. Qual
não foi sua surpresa ao perceber que ele entrou atrás.
- Ei, Richard! Você apagou a luz! - disse, assustada, enquanto tentava
chegar até o interruptor. Mas foi impedida.
- Eu sei. Agora você não tem mais vantagens sobre mim. Nenhum de nós vê
nada, nesta escuridão.
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- Richard, pelo amor de Deus, seja razoável! - implorou, recuando.
Quando sentiu que resvalou na cama, teve uma ideia repentina. Passaria
por cima dela, procurando não fazer o menor ruído, e então alcançaria a
porta pelo outro lado.
Precisava vencer a escuridão e ser rápida o suficiente para que Richard
não se desse conta do que estava acontecendo.
Nem bem pensou e já estava do outro lado, na direção da porta. Percebeu
então que Richard estava muito quieto. Tarde demais. Em meio ao escuro,
deu de encontro com
ele, que parecia estar esperando que ela passasse por ali.
- Peguei você - sussurrou, prendendo-a nos braços. - Foi uma boa ideia,
coração, mas você esquece que posso ouvir muito bem. Melhor do que você.
- E riu da tentativa
infantil de fuga.
Aquela risada despertou a fúria de Clara. Ela não fugiria, não teria
medo. Como ele ousava comportar-se daquele modo, tratando-a como um
objeto de uso pessoal? Sua
ira cresceu a ponto de desvencilhar uma das mãos e erguê-la na direção do
rosto de Richard. Como se enxergasse, ele a segurou no ar, evitando que o
tapa o atigisse.
- Não pensei que você fosse o tipo de homem que precisasse tomar uma
mulher a força! - A voz agressiva era um desafio. Ela sentiu um lampejo

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de triunfo, quando ele
reagiu:
- Pois não sou. Nem você é o tipo de mulher que se submete à força. Seria
capaz de lutar até o último instante mas não cederia, não é verdade?
- Se sabe disso, por que me segura desta maneira? perguntou, com voz
trémula de raiva. - E se não está usando a sua força, gostaria de saber o
que está fazendo.
- É tudo parte do jogo - murmurou ele. - Quando pedi que se casasse
comigo, deduzi que conhecesse as regras, mas parece que me enganei. Você
está tão presa a tabus,
ao que considera certo e errado, que não é capaz de reconhecer as suas
próprias necessidades. Talvez seja tempo de alguém abrir os seus olhos,
e,
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venhamos, é melhor que eu o faça. Eu tenho certeza de que concordará com
isso assim que lembrar que sou seu marido.
Disse isso e começou a desmanchar-lhe os cabelos. Soltos, eles caíram,
fartos e pesados. Uma sensação de abandono parecia querer tomar conta de
Clara, que lutou
desesperadamente para manter a cabeça fria. Se não se livrasse logo dos
braços que a envolviam, seria capaz de entregar-se de corpo e alma.
- Se você não me soltar... - Parou, à procura de algo para argumentar.
- Você o que, coração? - indagou ele, divertido.
- Não me chame assim!
- Por que não?
- Porque você me faz sentir igual às outras!
- Que outras? Ora vamos. Clara, pare com isso. - Aquele sorriso de quem
está se divertindo irritou-a profundamente.
- vou odiar você para sempre! - gritou, desesperada.
- Ah! Então está ficando violenta, hein? É incrível como você consegue
passar de um extremo a outro com tanta facilidade: amor e ódio. E parece
gostar muito das
palavras "para sempre". Sou muito diferente, sabe? Só penso no hoje, no
agora. Hoje, agora, você é minha esposa. Não de outro homem, mas minha.
Aquele sentido de posse e a ênfase que ele dera à última palavra
excitaram a imaginação de Clara, embora considerasse repulsiva aquela
ideia machista.
Mais uma vez tentou reunir os últimos esforços para manter o controle. A
última coisa que queria era ser possuída por um tirano. Estava casada por
compaixão, só
isso. Tão logo terminasse o verão, voltaria à sua vida em Londres.
Os pensamentos formavam ,um redemoinho em sua mente. Sentiu que os dedos
de Richard desabotoavam sua blusa. Mas, ela não queria aquilo. As mãos de
Richard acariciavam
seus seios.
- Você tem muito que aprender ainda, minha puritana sussurrou ele -, mas
posso garantir que nada do que vai acontecer será contra a sua vontade.
Existem outras maneiras,
além da força.
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- Você não está... jogando limpo - acusou-o ela, no limiar de suas
forças.
Quando afinal seus lábios se encontraram, Clara não pôde pensar em nada.
Alguma coisa explodia em seu corpo, como uma carga de dinamite, e depois
daquilo ela se
entregou, sem conseguir controlar o desejo que crescia forte e que a
arrastava para um mundo de emoções desconhecidas.

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64

CAPÍTULO VI

Clara despertou com a voz de alguém chamando seu nome. Ainda sonolenta,
deitada de bruços, ergueu a cabeça, pensando se aquilo estava mesmo
acontecendo ou se era
parte de um sonho.
A mesma voz, agora mais audível, chamava também por Richard. Clara virou-
se e abriu os olhos devagar. O espaço a seu lado se encontrava vazio.
Onde estaria Richard?
O quarto estava claro e os raios de sol que entravam pelas frestas da
janela projetavam-se na parede. Ela sentou-se na cama e olhou para as
roupas espalhadas pelo
chão. A porta do armário estava escancarada, e as gavetas abertas. Alguns
papéis, que na noite anterior estavam sobre a mesa, haviam caído no
assoalho.
Ouviu, através da porta entreaberta do quarto, que alguém entrava na
varanda.
- Clara! Richard! É hora de acordar!
Reconhecendo a voz de Kirsty, Clara pegou o relógio. Passava das dez e
ela havia perdido a hora. Por que Richard não a acordara como vinha
fazendo todas as manhãs?
Sentiu o rosto queimar, com a lembrança do excitante despertar dos
últimos dias. Esperou que Richard atendesse ao chamado, mas não houve
nenhuma resposta. Então
passou a imaginar por que Kirsty teria vindo se nem Douglas nem Margot
haviam tomado
essa iniciativa. Seria verdade que Douglas considerava Richard
responsável
pela morte de Sorcha?
Mas onde estaria Richard agora? Sentindo medo de que, ao sair sozinho,
ele pudesse ter-se perdido, ela pulou da cama, indo em
65
direção à porta para falar com Kirsty. Naquele momento ouviu a voz jovial
do lado de fora do chalé.
- Oi, Richard Mallon. Não adianta se esconder atrás desses óculos
escuros. Eu o reconheceria em qualquer lugar.
Óculos escuros! Clara fechou a porta e começou a se vestir. Richard não
usava óculos escuros desde que chegaram à ilha; dissera que ali não
precisava deles. Por
que então os colocara naquela manhã?
- E eu reconheceria a sua voz em qualquer lugar, Kirsty Brown - respondeu
Richard, enquanto se aproximava do chalé.
- O que está fazendo por aqui?
- Vim visitar você e sua mulherzinha, se é que ela ainda está por aqui.
Chamei-a diversas vezes, sem resultado. Será que Clara já o abandonou?
Falava de modo petulante, como quem procura discussão.
- Ainda não. - Richard sorriu, divertido. - Você espera que ela me
abandone?
- Bem, ela parecia bem contente por ter deixado você por algumas horas,
naquele dia em que Douglas a levou para casa. A voz chegava bem nítida
aos ouvidos de Clara.
- Foi muito divertido... - continuou Kirsty, com um risinho. - Vê-la
chegar toda molhada como um cachorrinho abandonado na chuva! Acho que
Douglas sentiu pena dela;
por isso a convidou para entrar. Qualquer pessoa de aparência maltratada

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lhe causa grande compaixão.
Clara sentiu vontade de abrir a janela e gritar:
"Não dê ouvidos a ela, Richard! Nada do que está dizendo é verdade".
Tremendo de raiva, começou a guardar as roupas, ouvindo ruído de passos
no corredor. Richard entrou no quarto, fechando a porta. Ante a visão
daquele homem alto
e forte, bonito, com aqueles cabelos revoltos e óculos escuros, Clara
sentiu o coração bater forte. Não conseguia deixar de espantar-se com o
que havia acontecido
entre eles. Não adiantava negar que Richard a atraía
66
demais e que esperava toda noite, ansiosa, que ele tomasse a iniciativa
de chamá-la para o amor. Entretanto, vivia insegura. Era impossível saber
o que se passava
na cabeça dele ou prever o que faria no momento seguinte.
- Clara? Já está de pé? - perguntou ele em voz baixa.
- Estou, sim. Você devia ter me acordado, Richard. Onde esteve?
- Caminhando. Fui até o córrego.
Era a primeira vez que saía sozinho e Clara sentiu ciúme por ele ter
preferido andar pela ilha sem ela. .
- Você acha que fez bem? Poderia ter caído e se machucado nas pedras.
- Mas não aconteceu nada, mamãe - brincou Richard, diante daquele cuidado
excessivo. - Já fomos tantas vezes até lá que sei a posição exata de cada
pedra.
Saindo de perto da porta, ele caminhou na direção dela. Clara tentou
afastar-se, mas as mãos dele tocaram seus ombros. O já familiar arrepio
percorreu-lhe o corpo;
bastou sentir o contato das mãos sensuais sobre sua pele ainda aquecida
pela cama. Ela sabia que aquele contato era perigoso, pois tinha o poder
de excitá-la ao
extremo.
- Pensei que já estivesse vestida - surpreendeu-se ele, para logo em
seguida sorrir de modo significativo.
- Ainda não coloquei a blusa, mas...
- Isso é ótimo - interrompeu ele, abraçando-a sensualmente. Ela
estremeceu de prazer, mas recuou um pouco e perguntou":
- O que Kirsty quer?
- Você a ouviu chegar, então? Por que não respondeu? Richard falava ao
acaso, mal dando atenção às próprias palavras.
- Porque você chegou no exato momento em que... Enrijeceu o corpo, ante o
toque das mãos experientes que a acariciavam sem parar.
- Resistindo, como sempre? - murmurou ele ao ouvido dela.
- Por quê?
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- Você sabe por quê. Tudo que está acontecendo há dias é contra a minha
vontade.
Richard fez uma careta de desdém.
- Isso é o que você pensa, não o que sente. Sei muito bem que finge não
aceitar que façamos amor, mas não me engana. Gosta, quando eu me aproximo
e a beijo assim.
- Ia beijá-la, mas Clara o evitou.
- Agora não, Richard, por favor - pediu. Obedecendo, ele a soltou e
sentou-se na cama de braços cruzados, enquanto ela acabava de se vestir.
- Kirsty veio convidar-nos para um piquenique. Você não gostaria de ir?
- E você? - perguntou ela, acabando de abotoar a blusa.
- Pensei que talvez fosse bom para você se distrair um pouco. Deve estar
cansada de tanto trabalhar e ouvir a minha voz.

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- Não me sinto cansada. Adoro o que estou fazendo.
- De qualquer modo, acho que você deveria ir. Douglas mandou convidá-la e
Kirsty disse que Alan e os gémeos também irão.
- Mas, e você?
- Para mim fica difícil. Não vou conseguir andar por aqueles lados sem
tropeçar.
- Eu o ajudarei.
- Não quero.
Clara compreendeu que ele não queria demonstrar aos outros sua
dependência. Era orgulhoso demais para isso. Deu de ombros, resignada, e
ouviu-o acrescentar:
- Você não vai ter outra chance de conhecer a ilha, Clara. Pense nisso.
Não se preocupe com o nosso trabalho, hoje. Já estamos bem adiantados.
Bem, vou fazer companhia
a Kirsty enquanto você acaba de se vestir.
Clara deu um jeito no quarto e depois foi até o espelho para pentear os
cabelos. Agora usava-os soltos, como Richard gostava, e acabara por se
acostumar com a nova
aparência. Olhou contente
68
para seu reflexo no espelho; sentia-se diferente, mais feminina, até
bonita.
A caminho da varanda, parou para escutar o que Kirsty dizia, num tom
gentil demais para seu estilo habitualmente provocativo.
- Sinto pelo que aconteceu ao seu amigo Euan, naquela expedição. Você
deve ter ficado triste, não? Como eu fiquei quando Sorcha morreu. Éramos
muito amigas. Ela
sempre me contava tudo, Richard. Tudo.
- Ah, é? Que bom para você, não? - respondeu ele com ironia, dando a
entender que aquela conversa o estava aborrecendo.
- Talvez você já tenha compreendido que Douglas sabe de tudo. Por isso
ele não apareceu para vê-lo.
- Tudo o quê? Escute aqui, Kirsty, por que você sempre fala nas
entrelinhas? Não consegue dizer as coisas sem rodeios, diretamente?
Clara vibrou, ao ouvir a voz irritada de Richard. Pena não ter podido ver
a reação de Kirsty.
- Douglas sabe que Sorcha o abandonou por sua causa.
- É? E também sabia para onde iríamos? - Richard resolveu entrar no jogo
para ver até onde ela seria capaz de chegar.
- Ora, ele não é bobo. Se você estava em Glasgovv, era óbvio que Sorcha
iria até lá. - Kirsty começava a ficar nervosa com a frieza e a
naturalidade que ele demonstrava.
- Engraçado, Kirsty... Se Douglas não estava aqui naquela época, como
pôde chegar a essa conclusão? A menos que alguém tivesse enchido a cabeça
dele com ideias maldosas
como essa. Richard riu e Kirsty, visivelmente contrariada com aquela
insinuação e com o pouco caso que ele fazia de suas palavras, levantou-se
para ir embora.
Clara achou que já era o momento de entrar e salvar a moça de uma
situação tão desagradável como aquela.
- Oi, Kirsty. Desculpe não ter acordado logo - disse, com alegria
forçada.
Os olhos de Kirsty fuzilavam Richard e as maçãs de seu rosto
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pegavam fogo. Ele, por sua vez, tinha um sorriso sarcástico nos lábios.
- Olá, Clara. Trouxe as desculpas de Margot por não ter vindo ainda. Ela
acha que deve esperar um pouco mais para não atrapalhar a lua-de-mel de

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vocês.
- Pena que você não pense do mesmo modo. - Richard encontrava prazer em
divertir-se às custas de Kirsty.
- Richard, por favor - repreendeu-o Clara, e voltou-se para Kirsty: -
Gostaria muito de ir ao piquenique com vocês. A que horas devo estar na
casa?
- Mais ou menos às onze e meia.
- Combinado.
- Você não vai, Richard?
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
- E vai deixar Clara ir sozinha?
- Sou marido, e não carcereiro. Minha esposa é livre para fazer o que
quiser. Até logo, Kirsty.
Clara acompanhou-a até a porta e, antes de se despedir, Kirsty ainda
comentou:
- Tenho pena de você, Clara, por ter casado com Richard. Ele precisaria
de uma mulher mais velha, com mais experiência...
- Como você, talvez? - completou Clara com ironia, mas, para sua
surpresa, Kirsty aceitou com naturalidade a observação.
- Possivelmente. Acho que ele andou interessado em mim. Há cinco anos.
- Desculpe, mas não acredito.
- Não? - Ela lançou-lhe um olhar de pena. - Pobre criança inocente...
Você ainda tem muito que aprender sobre Richard. Nunca pense, por um
momento sequer, que é
a única mulher na vida dele. Tchau, querida, vejo-a mais tarde.
Ela foi embora e, após fechar a porta, Clara aproximou-se de Richard, que
havia tirado os óculos e esfregava os olhos.
- O que você tem? - perguntou ela, pondo uma das mãos nos ombros dele.
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- Nada - respondeu, recolocando os óculos.
Não é verdade. Seus olhos estão doendo? Você não usa os
óculos desde que chegamos. Estou até surpresa por ter conseguido
encontrá-los.
. Então não deve ter reparado no estado em que ficou o quarto
retrucou ele, divertido. - Meus olhos estão bem, não se
preocupe.
- Gostaria muito que me dissesse o que está havendo.
- Nada, já lhe disse.
- Então, por que saiu sozinho hoje?
- Sentiu a minha falta? - perguntou ele com um sorriso provocante, e
Clara corou mais uma vez ao recordar-se das manhãs em que acordavam
juntos.
- Não me refiro a isso. É que você parece ter problemas. Por que não os
divide comigo? Estamos casados, lembra?
- Desculpe-me desiludi-la, mas quanto menos tocarmos no passado, melhor
será. - De repente caiu na risada, como se estivesse lembrando de algo
engraçado. - Você
tem algum passado, minha puritana? Duvido.
- Por favor, pare de se divertir às minhas custas. Sei tanto quanto
qualquer mulher.
- Verdade? Através de livros, quem sabe, mas não através de experiências.
Você está começando a viver agora, certo? - Piscou para Clara, que
entendeu o que ele quis
dizer.
- Não está exagerando demais a sua importância? - perguntou ela com voz
fria. - Só porque não conheci você antes não significa que nunca tenha
vivido.

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- Entretanto, a impressão que tenho é exatamente essa. Beijar você, por
exemplo, é como beijar â Bela Adormecida, que ficou cem anos fora da
realidade. Só agora
posso compreender o que o tal príncipe sentiu.
Clara voltou-se para o fogão e começou a preparar o café. Lembrou que,
algumas noites atrás, ameaçara odiá-lo para sempre porque ele era capaz
de fazer amor sem
estar apaixonado.
71
Agora a ameaça se tornara realidade: ela o odiava, e ainda mais porque
ele a tinha despertado de um longo sono, provocando desejos que nunca
havia sentido antes.
Tomaram o café da manhã, em silêncio. Quando Clara acabou de lavar a
louça, já era hora de encontrar-se com Douglas e os outros. A fúria que
havia enchido seu coração
de ódio minutos atrás já se amainara. Na verdade, essa inconstância de
sentimentos fazia parte de sua vida desde que conhecera Richard. Num
impulso, pediu:
- Gostaria que você fosse comigo. Não me sinto bem, deixando-o sozinho.
- Estarei bem, mamãe, não se preocupe.
- Você não quer ir para não ter que encontrar Douglas?
- Não há motivo algum para eu temer um encontro com ele! A voz dele se
alterou.
- Não acredito.
Richard agarrou-a pelos ombros e gritou:
- Por quê?! Será que é mais fácil acreditar no que os outros dizem?
- Sou obrigada a aceitar o que diz só porque é meu marido? Se você se
abrisse comigo, não haveria razão para suspeitas. E quer fazer o favor de
me soltar? Não vê
que está me machucando?
Richard soltou-a devagar e Clara percebeu quanto ele estava furioso.
Sentiu um estranho prazer por ter sido capaz de fazê-lo perder a calma.
- Como posso convencê-la de que nunca tive qualquer coisa com Sorcha?
Por um momento, parecia que os papéis haviam se invertido. Era Richard
quem se mostrava indefeso, enchendo de ternura o coração de Clara. Em
resposta, ela o beijou
de leve nos lábios, acrescentando:
- Gostaria que você viesse comigo ao piquenique. - Apelou mais uma vez,
esperando que ele mudasse de ideia. Para seu contentamento, Richard abriu
um sorriso.
72
- Hufa, mudança de tática? Você está aprendendo; é a primeira vez que
toma a iniciativa. - E beijou-a de verdade. - Está bem. vou com você à
casa de Douglas, mas
não ao piquenique. Contente?
Melhor do que nada, reconheceu Clara, embora suas suspeitas ainda
permanecessem. Richard tinha nervos de aço e poderia encontrar-se com
Douglas sem aparentar qualquer
emoção, ainda que toda aquela história fosse verdadeira.
Caminharam de mãos dadas, rindo a qualquer observação, olhando para o
mundo como duas pessoas apaixonadas.
Quando chegaram, Margot estava no portão, com os gémeos e Alan. Veio ao
encontro deles alegre, seguida pelas crianças.
- Richard, que bom vê-lo, após tanto tempo!
- Você está cego mesmo ou anda enganando todo mundo por aqui?
A criança que fizera a pergunta tinha uma cara tão marota que Richard
caiu na risada.

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- Deve ser um dos diabinhos de Joan. Qual deles? perguntou.
- George - gemeu Margot. - Richard, desculpe, sim? Joan não ensinou os
filhos a segurarem as suas línguas, de modo que não pensam duas vezes,
antes de abrirem a
boca.
Ele riu de novo e começou a explicar:
- Não estou completamente cego. Consigo ver algumas sombras. Mas logo
estarei bom. É só ter um pouco de paciência.
- Você, paciente? Duvido! - caçoou Douglas, que tinha ouvido a voz do
amigo e vinha juntar-se ao grupo.
- Como vai, Douglas? - Richard soltou Clara e estendeu a mão na direção
de Douglas.
- Otimo - respondeu ele, retribuindo o gesto. Clara notou a expressão
alegre e aliviada de Margot. - Kirsty disse que você não viria, mas estou
contente por ver
que mudou de ideia.
- Não mudei. Não vou com vocês ao piquenique. Só vim acompanhar Clara
para ter a certeza que ela estaria segura.
73
Todos riram com a brincadeira e Clara sentiu uma ponta de orgulho ao ver
que ele estava se saindo muito bem, melhor do que ela poderia imaginar.
Os gémeos começaram
a fazer mil perguntas sobre o acidente, e Richard respondia a todas com
calma e naturalidade.
Margot puxou Clara para um canto.
- Richard está com uma aparência ótima! - observou. Você anda fazendo
maravilhas. Nunca o vi assim tão bem. E olhe para Douglas! Vê como
conversa animado?. Ninguém
diria que ficaram tanto tempo separados.
Clara observou os dois e sorriu, satisfeita. Depois voltou-se para Margot
e pediu:
- Você se importaria de convidar Richard para passar a tarde aqui? Tenho
receio de deixá-lo sozinho.
- Ficaria muito contente com isso. Você não imagina como estou aliviada
por ele ter vindo. Eu tinha medo... - Margot hesitou por um segundo e
então abaixou a voz:
- Tinha medo de que tivesse fundamento aquela história sobre a morte de
Sorcha.
- Eu sabia que era esse o motivo pelo qual vocês não foram nos visitar.
Essa história de não querer atrapalhar a nossa lua-de-mel era apenas uma
desculpa. - Deu
um suspiro e acrescentou: - Estou arrependida por ter desconfiado de
Richard. O fato de ter vindo até aqui demonstra que não tem nada a temer.
Ele garantiu que não
teve culpa pelo que aconteceu a Sorcha. Nunca sugeriu a ela que
abandonasse Douglas.
- Graças a Deus, tudo se acertou - acrescentou Margot, feliz.
- Todos prontos? - a voz de Kirsty soou da porta, onde acabara de
aparecer, elegante como sempre, num conjunto azul-marinho.
- Claro - gritou Beth, a irmã gémea de George. - Faz um tempão que
estamos esperando você se embonecar!
- Richard! Mudou de ideia? - perguntou, surpresa, ao vê-lo ao lado de
Clara.
- Ele veio passar a tarde comigo, Kirsty - explicou Margot, sorrindo.
74
Ante a expressão curiosa de Richard, Clara apressou-se a pedir:
- Por favor, fique até que eu volte - sussurrou. - Só assim irei

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tranquila.
- E quanto a mim? Também poderei ficar tranquilo? - ele sussurrou,
surpreendendo-a.
- É só confiar em mim, meu querido. - E, num impulso, beijou-lhe o rosto.
75

CAPITULO VII

Poucos dias depois, Clara saía a passeio com Douglas e as crianças pela
terceira vez. Kirsty não os acompanhava porque estava gripada; preferira
ficar em casa com
Margot e Richard.
Clara sentou-se numa pedra para descansar e ficou apreciando o mar, que,
devido ao reflexo do sol, apresentava uma tonalidade prateada. com o
olhar perdido no oceano,
ela começou a imaginar por que Richard estava se comportando de modo tão
estranho. Na verdade, desde que saíra pela primeira vez com Douglas,
Kirsty e as crianças,
havia notado que ele estava diferente. Era alguma coisa que não podia
precisar com exatidão mas que podia sentir no modo de ele falar, ou de
sorrir, ou até mesmo
quando estava calado.
- Pensando? - Douglas se aproximou, deixando as crianças brincarem um
pouco sozinhas.
Clara o observou em silêncio enquanto ele se sentava a seu lado. Douglas
tinha um rosto melancólico, e ela sempre se perguntava se aquela tristeza
não vinha do fato
de ele ser um homem solitário.
- Pensando, sim - concordou, com um sorriso amigo. Gostaria de falar com
você sobre um assunto delicado.
Clara achou que aquela era uma boa oportunidade para esclarecer várias
coisas, já que, pela primeira vez, estavam sozinhos.
- Pode falar o que quiser.
- Douglas, quero esclarecer de uma vez por todas um terrível mal-
entendido - começou ela. - Você precisa saber que, quando Richard soube
da morte de Sorcha, e fui
eu quem lhe deu a notícia,
76
ficou muito chocado. Sou testemunha disso. Ele não sabia que ela havia
morrido.
Douglas olhou-a, surpreso.
Engraçado... sempre acreditei que ele soubesse - disse,
com um fio de voz.
Mas como? Você não lhe contou; ninguém contou. E
ninguém escreveu dando-lhe a notícia. Como ele poderia saber?
Douglas pareceu embaraçado. Os olhos grandes e negros a fitavam,
confusos.
- Não sei - admitiu afinal. - Devo ter deduzido que ele estava na cena do
acidente, que os dois se encontrariam na estação e que... - Interrompeu-
se, angustiado
com a recordação. - Deus, tenho pensado tantas coisas, durante esses
cinco anos!
- Richard não seria tão cruel a ponto de ter assistido à morte de Sorcha
e não entrar em contato com você. Ele não estava lá. Não sabia de nada
até eu lhe contar,
acredite.
- Como pode estar tão certa? - desafiou-a Douglas - Você o conhece tão

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bem assim?
Clara olhava o vazio e mordia os lábios, incapaz de explicar que sentia
que Richard não tinha culpa alguma.
- É muito natural que você o defenda. Afinal, é seu marido continuou
Douglas. - Quem lhe contou sobre Sorcha e ele?
- Kirsty. Ela mencionou algo sobre sua esposa ter fugido de casa para
encontrar Richard.
Douglas fez que sim com um gesto da cabeça.
- Ela me disse isso também. Então, você contou a Richard e ele disse o
quê?
- Disse que Sorcha poderia ter ido atrás dele, mas não porque ele
houvesse pedido ou sugerido isso.
- Richard não precisaria ter pedido - acrescentou Douglas, devagar,
olhando para outro lado, como se não quisesse enfrentar o olhar de Clara.
- Bastava somente...
existir.
- Não entendi bem o que você quis dizer. - Clara começou a
77
sentir uma pena muito grande daquele homem atormentado. Será que Douglas
tinha ciúme de Richard?
- Você lembra o dia em que vocês foram lá para casa? Clara concordou com
um movimento da cabeça.
- E notou como as crianças ficaram em volta dele como se fosse um imã? -
continuou.
- Não só as crianças. Você também - observou ela, em tom de caçoada, e
Douglas sorriu.
- Eu também - admitiu, relutante. - Pois é isso mesmo que estou tentando
dizer.
É difícil não gostar dele. Ficar perto de Richard é sentir que vale a
pena viver;
ele transmite uma energia e uma vivacidade que poucas pessoas têm. Desde
menino, era o líder, o melhor amigo de todos os garotos. As meninas,
então, o adoravam.
Enfim, era impossível ficar longe dele, como se isso significasse perder
momentos excitantes. Entende o que quero dizer?
- Entendo - concordou, animada, pois Douglas soubera exprimir em palavras
o que ela havia sentido desde a primeira vez que visitara Richard no
hospital.
- Joan e eu vivíamos atrás dele, aprovando qualquer ideia que tivesse,
qualquer brincadeira que inventasse.
- E você acredita que Sorcha sentiu esta atração também, não é? -
completou ela, imaginando onde Douglas queria chegar.
- Tenho certeza disso. A partir do momento em que ela o viu, começou a
me esquecer. E a esquecer Alan também - murmurou com amargura. - Um dia,
precisei me ausentar
da ilha e deixei Sorcha e Alan com Kirsty, Joan e os gémeos. Meus pais
haviam viajado naquele verão. Saí tranquilo, e agora me arrependo. Devia
ter levado Sorcha
comigo.
- Você acha que ela teria ido com você?
- Tenho que acreditar nisso ou admitir que o nosso casamento foi um erro
desde o início. Quando voltei, soube que ela havia ido embora na noite
anterior.
- Não deixou um bilhete, ao menos?
78
- Nada. - Sua voz traía uma grande angústia. - Sorcha era uma mulher
diferente. Quando nos casamos, parecia mais uma criança desprotegida à

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procura de segurança
do que uma mulher de vinte e cinco anos que busca a realização amorosa
através do casamento.
Clara desviou o olhar e reparou em Alan, que brincava com os primos.
- Você nunca pensou em casar de novo?
- Pensei, sim, mas nunca encontrei ninguém. Quero dizer, não até este
verão.
Clara fitou Douglas e viu naqueles olhos tristonhos que esse alguém era
ela. Confusa, sem saber o que dizer, recebeu com gratidão a presença de
Alan, que havia se
aproximado sem que nenhum dos dois se desse conta.
- Papai, vamos para casa?
Custando a desviar os olhos dos de Clara, Douglas respondeu:
- Vamos. Já está mesmo na hora. Vá chamar seus primos acrescentou,
levantando-se e ajudando Clara a fazer o mesmo.
No caminho de volta, Alan não procurou a companhia dos primos, preferindo
andar junto ao pai. Os gémeos iam mais à frente, divertindo-se em
encontrar pedras diferentes,
que recolhiam e guardavam numa caixa. A certa altura, o pequeno pegou a
mão de Clara num gesto instintivo, como a criança que procura a segurança
e o carinho da
mãe. O olhar satisfeito de Douglas, ao ver como o filho, normalmente
arredio com as pessoas, sentia-se à vontade com ela, fez com que Clara
começasse a ficar um
tanto embaraçada.
Apesar de estarem conversando sobre assuntos superficiais, ela não
conseguia esquecer a sutil declaração daquele homem solitário, que andava
à procura de uma companhia
e de uma mãe para o filho.
Tentou afastar esse pensamento. Não era possível, devia estar imaginando
coisas. Não tinha sentido Douglas sugerir que a queria como esposa,
sabendo que estava casada
com Richard.
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Pensou em Richard e sentiu uma grande felicidade invadir-lhe o coração.
Gostaria de estar com ele, sentir o calor de seu corpo, ser enlaçada por
aqueles braços fortes.
Só Richard a interessava, não podia pensar em mais ninguém. O fato de não
ser amada pouco importava; bastava estarem juntos.
- Você quer chegar logo para ficar com Richard, não é? perguntou Douglas,
e ela surpreendeu-se com aquela intuição.
- Como foi que adivinhou? Telepatia? - indagou, sorrindo. Quando
chegaram, Clara foi direto para a cozinha, com as
crianças, onde, como de costume àquela hora da tarde, Margot preparava o
chá. Douglas havia ido à procura de Richard.
- Vocês ficarão para o lanche, não é? - perguntou Margot.
- Por mim, tudo bem. Se Richard concordar, ficaremos.
- Então vá procurá-lo. Ele esteve impaciente a tarde toda, na certa com
saudades. - E Margot piscou o olho, com um sorriso cúmplice.
Clara seguiu os gémeos e Alan para fora da casa. Quando viu Richard, seu
coração bateu acelerado. Kirsty estava sentada junto a ele, conversando
com animação e aparentemente
esquecida da forte gripe que usara como desculpa para não ir no passeio
daquela tarde.
- Olhem só! Eis que surge a mulher nómade! Por onde andou? Seus sapatos
estão enlameados. E o que é isso nos seus cabelos?
De novo Kirsty atacava com comentários maldosos e sarcásticos. O que

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tinha contra Clara? Por que se divertia tanto em atormentá-la?. Esses
pensamentos passavam pela
cabeça dela enquanto abaixava os olhos para observar os sapatos e tentava
remover os raminhos que na certa se haviam prendido a seus cabelos.
Avançou devagar e pousou a mão no ombro de Richard, num gesto terno e
amigo. Para sua surpresa, ele levantou uma das mãos e pressionou a sua
com força. Voltou-se
para ela como que tentando vê-la.
- O que você tem nos cabelos? - perguntou com suavidade, de tal modo que
só ela pôde ouvi-lo.
80
- Nada. Algumas folhinhas apenas.
- Estou contente por você estar de volta.
poucas palavras, um simples aperto em sua mão. Nada demais, porém, para
um homem que vivia escondendo seus sentimentos, aquilo significava muito.
Clara sentiu o
coração se encher de esperança.
Durante o chá, ela quase não abriu a boca; preferiu ouvir os outros
conversarem. Notou como todos se preocupavam em agradar a Richard, numa
clara alusão de que estavam
contentes com a companhia dele.
- Por falar nisso - a voz de Margot soava animada -, recebi carta de Bob
Garmichael. Ele e a esposa estarão aqui na semana que vem. Querem ver
Alan, naturalmente.
- Voltando-se para Clara, explicou: - São os avós de Alan, pais de
Sorcha. Bob trabalha no serviço diplomático e agora estão morando em
Cingapura.
Clara olhou para Richard e notou que ele parecia impaciente. Sentiu as
mãos dele em sua coxa, por baixo da mesa, e ficou perturbada. Desviou o
olhar e deu de cara
com Kirsty, que a fitava.
"Pobre Kirsty", pensou, com uma ponta de compaixão. "Não sabe o que
significa amar. com toda essa beleza, ainda não encontrou o que eu
encontrei neste verão."
Era verdade. Não adiantava querer esconder de si própria que amava
Richard com todas as forças de seu coração.
Pousou o olhar em Douglas e sentiu-se constrangida ao pensar naquela
tarde. Ao mesmo tempo, achou muito bom ter passado por aquilo, pois
Douglas, sem saber, havia
lhe feito um bem enorme. Insinuando que Clara poderia ter sido a mulher
de sua vida, ele a obrigara a compreender e a assumir que só seria de
Richard. De ninguém
mais.
- Vamos para a nossa casa? - perguntou Richard, quase num sussurro, e nos
olhos de Clara brilhou uma luz de alegria. Ele
81
dissera "nossa casa"! Que bom saber que Richard queria estar a sós com
ela!
Apesar da insistência de todos para que não fossem embora tão cedo, eles
logo estavam a caminho do chalé, andando de mãos dadas sob o céu
salpicado de estrelas.
As águas da baía descansavam, plácidas, sob a luz do luar.
- Já estamos chegando - avisou ela, ao divisar o chalé.
- Sabe, Clara, eu gostaria de não ter ido à casa de Douglas, esta tarde.
O esforço de ser educado e não poder dizer o que estava pensando me
desgastou. Se você não
tivesse chegado àquela hora, não sei o que poderia ter feito.

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- Mas por que, Richard? Não foi bom estar com Margot?
- Estou me referindo àquela fingida da Kirsty - murmurou, entre dentes.
- Ei, esse não é um jeito muito agradável de se referir a alguém - Clara
repreendeu-o com doçura.
- Fingida é muito pouco. Sei muito bem o que ela é. - Disse ele,
reprimindo o palavrão que lhe viera aos lábios. - O que Kirsty quis
dizer, ao chamá-la de nómade?
.
- Acho que insinuou que tenho passeado muito com Douglas e as crianças -
tentou explicar, pensando se, por acaso, Richard estaria com ciúme. Não,
seria bom demais!
- Você se importa que eu passeie pela ilha com outras pessoas? Richard
franziu a testa.
- Eu? Claro que não. Fico contente de saber que você não se prende a num
o tempo todo. A liberdade é algo muito valioso, não acha? - Depois
acrescentou devagar:
- Além do mais, Clara, quando eu puder enxergar novamente, não espere
ficar comigo o tempo inteiro.
- O que mais Kirsty disse? - indagou ela, tentando minimizar -a dor que
aquelas palavras provocaram.
- Nada que prestasse. Só insinuou coisas e fez comentários mordazes.
Clara começou a rir.
82
- De que está rindo?
- Estou só imaginando o esforço que você dever ter feito, cada vez que
ela abria a boca. Mesmo que quisesse, você não conseguiria disfarçar o
que sente em relação
àquelas conversas fúteis de Kirsty.
- Está achando graça, é? Isso porque não foi você quem ficou a tarde
inteira ouvindo aquele blablablá. - Puxou-a para si e passou o braço em
volta da cintura dela.
- Sabe que adoro a sua risada? Gostaria de ouvi-la rir sempre.
Disse isso e beijou-a. Clara já havia sido beijada por ele com ardor, mas
dessa vez foi diferente; havia uma nota de desespero naquele beijo, como
se o tempo estivesse
passando e aquela fosse a última oportunidade de ele encontrar o que
estava procurando.
E, em resposta àquele desespero, ela agiu de um modo como jamais
conseguira antes: solta, natural, colando seu corpo ao dele, feliz por
estar ali.
- O. que estamos fazendo aqui? Não podemos perder tempo. Richard tomou-a
pelas mãos e ambos correram em direção ao
chalé. Lá chegando, ele abriu a porta, segurando a maçaneta como se
pudesse vê-la. Segundos depois estavam no quarto, onde Clara observou,
deliciada, que o luar
entrava pela janela e iluminava a cama, que parecia resplandecer em meio
à escuridão.
Dessa vez não houve resistência. As horas que havia passado longe de
Richard fizeram-na compreender que poderia se arrepender pelo resto da
vida, se continuasse
a se reprimir e a conter aquele amor imenso que tomava conta de todos os
seus sentidos. Acordara, afinal, de um longo sono.
83

CAPITULO VIII

Os dias transcorriam calmos, na ilha. Cada amanhecer traz uma nova

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expectativa para Clara, que aproveitava tuc intensamente, sem olhar para
o passado nem se preocupar
com o futuro. Tudo que importava era estar com Richard e não pensar no
que aconteceria quando o verão acabasse.
Algumas noites, entretanto; enquanto ele dormia, Clara permanecia longo
tempo acordada, olhando-o e perguntando a si mesma se o dia seguinte
seria tão bom quanto
o que terminara.
Eles não passavam o tempo todo juntos. Clara saía sempre com Douglas e as
crianças, e já andara por toda a ilha, descobrindo recantos bonitos e
afastados. Apesar
de Richard sempre ser convidado para esses passeios, nunca aceitava;
preferia ficar sozinho no chalé. Contudo, quando Clara voltava, ele
parecia contente ao vê-la,
e ouvia atentamente a descrição que ela, maravilhada, fazia das belezas
que havia conhecido.
Uma tarde, quando voltava de mais uma dessas caminhadas, ela encontrou
Richard frio e distante, mal conversando durante o jantar. Nuvens pesadas
anunciavam tempestades,
depois de um dia de muito calor, e Clara foi assaltada por um mau
pressentimento.
Essa sensação aumentou na manhã seguinte, quando ambos tomavam o café da
manhã.
- Acho que vai chover - constatou ela com tristeza, fitando o céu
nublado.
- A maior parte das coisas boas termina um dia - respondeu Richard,
enigmático.
Clara olhou-o, surpresa. Aquelas palavras soavam como um
84
aviso, e a sensação da noite anterior voltou mais forte, deixando-lhe
um gosto amargo na boca. Estavam na ilha há quatro semanas e, durante
esse tempo, ela se habituara
à ideia de viver com Richard. Mas agora o verão estava quase terminando e
com ele se encerrava para sempre um período em que Clara conhecera pela
primeira vez a
verdadeira felicidade.
- Acorde, Bela Adormecida - brincou ele, puxando de leve os cabelos dela.
- Richard, não me chame assim. Já lhe disse que não sou bonita.
Ele se calou por um momento e depois acrescentou:
- E daí? Acho que já lhe disse que a sua beleza é suficiente para
satisfazer um homem cego.
Aquelas palavras ficaram martelando na cabeça dela. Não era a primeira
vez querele dizia tal coisa, e isso significava que nunca teria se casado
com ela, se não
estivesse cego.
- Não vá me dizer que venci a discussão tão fácil assim provocou ele,
diante do silêncio de Clara.
- O que estou tentando dizer é que não posso competir com todas as
mulheres lindas com quem você já esteve.
- Que "todas as mulheres"? - Ele agora parecia divertido. Sei que os meus
cabelos têm alguns fios ruivos, mas esta é a minha única semelhança com
Casanova. Jamais
colecionei .mulheres, como ele.
- Eu estava pensando nas que você fotografou. Louise Bolton, por exemplo.
- Ora, aquela era uma relação puramente profissional!
- E Toni? - Diante do silêncio de Richard, ela acrescentou:
- E Kirsty?

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- Kirsty?! - Ele fez uma careta e perguntou: - O que a faz Pensar que eu
poderia ter qualquer coisa com aquela víbora?
- Ela me disse que há cinco anos você se sentiu, digamos, atraído.
- O quê?! - Richard parecia incrédulo. - Aquela mulher não
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passa de uma louca, mentirosa! O que ela quer é causar encrencas. Ontem
eu a pus daqui para fora justamente por causa disso.
- Não sabia que Kirsty havia estado aqui ontem. E o que aconteceu para
você ficar tão nervoso?
- Nada, não importa. Talvez eu estivesse sem paciência para aturá-la, só
isso. Como é? Vamos trabalhar?
Enquanto se sentava à máquina de escrever, Clara, desanimada, pensava que
mais uma vez ele fugia, não lhe dando oportunidade de conhecer o que se
passava em seu
íntimo.
Mais tarde, o carteiro chegou e ela foi até a porta receber a
correspondência.
- É para você, Richard.
- Deve ser de Albert. Não quer ler para mim?
Dentro do envelope havia uma folha de papel e um outro envelope, fechado.
Richard pediu que Clara lesse primeiro a carta. Nela Albert dizia esperar
que ambos estivessem
se divertindo bastante. Ele e os dois amigos, Bernie e tom, partiriam
para a Escócia no dia seguinte.
- Hoje! - exclamou Clara, fazendo rapidamente os cálculos.
- Eles estarão aqui hoje! Diz ainda que ficarão somente um dia e em
seguida partirão para Fort William.
- Ah! Vão escalar Ben Nevis! Ótimo, chegarão bem a tempo. O que mais diz
a carta?
- Que tudo está em ordem no seu apartamento e que ele encontrou esta
outra carta embaixo da porta. - Clara dobrou o papel e perguntou: - Por
que você disse que eles
chegarão bem a tempo?
- Em tempo para uma comemoração. Ele sorria e Clara ficou sem entender
nada.
- Comemorar o quê?
- É preciso ter alguma razão? Adoro festas, e a chegada dos meus amigos é
um motivo excelente para celebrarmos, não acha? Podemos ir jantar fora.
Existe um hotel
em Craighouse onde a comida é ótima.
86
Clara o olhou, perplexa. Era a primeira vez que ele manifestava desejo de
sair, e ela não podia deixar de sentir que havia alguma coisa por trás
daquilo.
- De quem é a outra carta? - perguntou Richard, ansioso.
- Não sei, não abri ainda.
No envelope. Clara reconheceu a letra de Toni, e a presença bonita da
amiga lhe veio à mente, forçando-a a lembrar-se de algo que não queria.
- Vamos, abra logo!
Clara rasgou o envelope e dele tirou uma folha de papel. Seus olhos
percorreram rapidamente a mensagem e ela sentiu o sangue gelar.
- É... é de Toni - gaguejou.
- Congratulações pelo casamento, suponho.
- Sim. Uma carta de congratulações.
Era a primeira vez que mentia e por isso estava nervosa, trémula. Richard
não pediu que lesse a carta em voz alta e então Clara, aliviada, guardou-
a na gaveta.

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Mas as poucas palavras que Toni escrevera ficaram em sua cabeça a manhã
inteira, fazendo com que ela não se concentrasse em nada.
- Clara, está me ouvindo? Que diabo há com você, esta manhã? - Richard
quis saber, intrigado.
Ela sentiu vontade de responder que era ele quem estava diferente,
distante. Por que não a procurara a noite passada? Mas engoliu em seco e
disse apenas:
- Não sei, não consigo me concentrar. Estou com dor de cabeça.
- Você parecia bem, quando se levantou, esta manhã replicou ele,
desconfiado, e acrescentou: - Sua dor de cabeça apareceu muito rápido.
- Eu sei, mas... - Calou-se. Não sabia o que dizer.
- Você é uma mentirosa, Clara. Pensa que não sei que está assim por causa
da carta de Toni? Vamos lá, o que ela dizia?
87
Clara segurou o choro e respondeu, com voz trémula:
- Ela não se casou - começou, devagar, e notou que Richa se ajeitou na
cadeira, interessado. - O americano não era o
que parecia ser e ela voltou para Londres exatamente
no dia em que partimos. - As lágrimas rolavam silenciosamente por seu
rosto mas, dominando a voz, tentando torná-la firme, Clara completou:
- Ela telefonou a você no dia seguinte. Se tivesse esperado vinte quatro
horas, não precisaria ter se casado comigo. Eu poderia
estar na Espanha e Toni aqui, no meu
lugar. Como você gostaria.
Richard virou o rosto e Clara se lembrou daquela primeira visita no
hospital, quando ele fizera o mesmo gesto, desapontado
por Toni não ter esperado.
- Deus, não posso mais suportar isso! - exclamou ela de súbito,
levantando-se e correndo para fora.
Pensou ouvir Richard chamá-la, mas não esperou para ter certeza. Correu
pela praia feito louca, sem prestar atenção aos pássaros ou às montanhas
que tanto a fascinavam.
Tudo o que queria, naquele momento, era estar o mais longe possível de
Richard, para não vê-lo sofrer.
Só parou de correr quando não tinha mais fôlego. Caminhando na beira da
praia, a cabeça baixa, as mãos no bolso, não percebeu que ia indo na
direção da casa de Douglas.
- Clara! - Voltou-se para ver quem a chamava e viu Douglas e as crianças,
que apressavam o passo para ir a seu encontro.
- Nós estávamos indo até o chalé para convidá-la a pescar conosco. Que
tal?
Douglas já estava à sua frente, sorrindo. Clara desviou o olhar, com
receio de que ele pudessse perceber seu sofrimento. Olhou para trás, na
direção do chalé. Richard
não a havia seguido. Talvez até tivesse ficado contente por poder ficar
só.
- Está bem, vamos! - respondeu, decidida, tentando animar-se.
Seria um passeio diferente. Pela primeira vez, iriam para o mar, na
lancha de Douglas. Era do que precisava naquele momento:
afastar-se o máximo possível da praia, como se com isso pudesse tirar
Richard de seus pensamentos.
À medida que a velocidade aumentava, Clara recebia de bom grado o vento
que batia em seu rosto e fazia esvoaçar seus cabelos. Entregava-se,
calada, à brisa marinha,
na esperança de que ela varresse a angústia que lhe oprimia o peito.
A embarcação se aproximou da entrada da baía, onde Douglas ancorou. As
linhas de pescar foram preparadas e os anzóis lançados à água. Então

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todos ficaram quietos,
à espera da primeira mordida. A não ser pelo burburinho das ondas mansas,
tudo estava silencioso.
- Amanhã nós poderíamos ir até Port Ellen, em Islay - disse Beth, incapaz
de ficar calada por muito tempo. - É uma ilha linda!
- Mas não tão legal quanto a nossa - acrescentou George com veemência. -
Lá não dá para a gente se divertir tanto quanto aqui. Eu penso como
mamãe: não há no mundo
lugar como esta nossa ilha.
- Agora que a conheço, não posso deixar de concordar com você, George -
disse Clara. - Mas gostaria muito de conhecer as outras ilhas, antes de
ir embora.
- Ir embora? Quando? - os gémeos perguntaram em uníssono, surpresos.
- Como vocês esperam pescar alguma coisa, se não ficam quietos? - Douglas
disse, voltando-se irritado para os sobrinhos.
- Desculpe, tio - pediu Beth. - É que Clara disse que vai embora.-
- É verdade? - perguntou ele, surpreso. Sua voz traía uma certa
ansiedade. - Quando?
- Não sei. Logo, provavelmente - respondeu, fingindo estar atenta à vara
de pescar que segurava.
- Mas Richard disse que vocês ficariam até meados de setembro!...
- Puxa, tomara que mamãe e papai cheguem logo, para que você possa
conhecer Corrievreckan - disse George.
89
- O que é isso? - perguntou Clara, aproveitando a chance para mudar de
assunto.
- É um redemoinho que se forma na divisa das águas desta ilha e Scarba -
explicou Douglas. - Só se pode chegar lá se o tempo está firme e o mar
calmo. Existem muitas
histórias sobre Corrievreckan.
Clara não prestou mais atenção às explicações de Douglas, embora
continuasse a olhar para ele. Seus pensamentos divagavam. Jamais
esqueceria aqueles quatro, que
haviam sido tão amigos, tornando agradável sua estadia ali.
Em particular, jamais esqueceria Douglas, aquele homem sensível, tocado
pela tragédia, fazendo-se forte em seu silêncio mas com certeza ainda
lamentando a perda
da esposa.
- Não quero que você vá embora - pediu Alan, com voz de choro. Surpresa,
Clara ouviu-o dizer: - Quero que você seja minha mãe.
Uma pausa constrangedora se estabeleceu de imediato. Os gémeos ficaram
embaraçados. Já eram grandes o suficiente para entender a implicação
daquele pedido, e olhavam,
em silêncio, ora para Clara, ora para Douglas. Este havia perdido a cor,
e, depois de alguns segundos, conseguiu dizer,
com um fio de voz:
- Você sabe que não pode ser assim, Alan. Clara é esposa de Richard.
- Então ele podia ir embora sozinho e deixar Clara com a gente
- insistiu o menino.
. - Não é tão fácil assim, Alan - Clara tentou explicar, embaraçada. -
Por mais que eu goste de você, não posso abandonar Richard. Ele precisa
de mim, pelo menos
até voltar a enxergar. E eu prometi que ficaria com ele.
- Peguei! - exclamou George, exultante. - Venham ver. deve ser um peixão!
Clara respirou aliviada. Aquele peixe pôs um fim na conversa difícil que
estava tendo com Alan.
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Uma hora mais tarde já estavam de volta. As crianças correram na frente
para mostrar à avó os peixes que haviam conseguido.
- Você vai entrar? - perguntou Douglas, olhando para Clara.-
.- Hoje não, obrigada. Preciso voltar cedo ao chalé porque Richard não
sabe que saí com vocês. Deve estar preocupado.
- Você fez muito bem em dizer aquilo a Alan - acrescentou ele, de olhos
baixos. - Você respondeu a uma pergunta que venho fazendo a mim mesmo
muitas vezes, desde
que a conheci.
Clara não foi capaz de dizer uma palavra, e Douglas, então, perguntou com
cuidado:
: - O que vai acontecer quando Richard recuperar a visão, Clara? Você
ficará com ele?
- Se ele quiser...
- E se não quiser?
- Então vou tratar da minha vida.
Sentiu um grande aperto no coração, pois Douglas a obrigara a entrar
direto numa questão que sempre evitara.
- Clara... Sei que sou um homem viúvo e com um filho ainda pequeno, o que
não é propriamente um atrativo para uma mulher jovem, mas, como já notou,
Alan gosta e
precisa muito de você. Ele sente demais a falta de uma mãe.
Clara irritou-se com aquelas palavras, embora não dissesse nada. Seria
possível que seu destino fosse somente ser querida pela capacidade que
tinha de ajudar as
pessoas? Quando chegaria o dia de ser amada pelo que realmente era?
Respeitando o silêncio dela, Douglas não forçou uma resposta:
simplesmente tomou uma de suas mãos e a beijou, dizendo:
- Pense, Clara, não há pressa. Você é a única mulher que pode me fazer
esperar o quanto for necessário.
Clara sentiu medo.
- Preciso ir, Douglas.
- Tudo bem. Até logo, então. Sabe? Richard é um homem de sorte.
Clara saiu apressada, quase correndo. Não via a hora de
91
encontrar Richard. E o fato de ele amar Toni não importava mais, Ela só
sabia que o amava, que precisava ficar perto dele.
Chegou ao chalé e procurou por ele, mas não o encontrou. Foi até o
quarto. Nada. Notou um envelope no chão e o pegou. Era o que continha a
carta de Toni. E estava
vazio.
Clara espantou-se. Tinha certeza de que havia guardado a carta dentro do
envelope, colocando-o depois dentro da gaveta. Quem poderia tê-lo tirado
de lá?
Procurou por todos os cantos e finalmente achou a carta, toda picada, no
cesto de papéis.
Intrigada, pensou que Richard não poderia ter feito nada daquilo: pegar a
carta na gaveta, tirá-la do envelope, ler o conteúdo e rasgar a folha,
atirando-a ao cesto.
A menos que estivesse enxergando.
Essa ideia voltou mais forte que das outras vezes, quando ela apenas
havia suspeitado que Richard não estava cego. Lembrou que o especialista
dissera que a visão
retornaria tão logo ele estivesse recuperado, e deu-se conta, assustada,
de que Richat estava bem.
Incapaz de se mover, Clara ouviu a tempestade desabar, depo; de um dia
inteiro de ameaça. Chovia forte lá fora, mas com certeza logo passaria. O

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que dizer, entretanto,
da tempestade que desabava sobre sua cabeça, fazendo todo o seu mundo de
sonhos ruir? Será que essa passaria, algum dia?
92

CAPITULO IX

A chuva aumentou e Clara sentiu vontade de procurar Richard. Era preciso,
de uma vez por todas, dissipar as dúvidas que a atormentavam.
Vestiu a capa e saiu na direção das pedras, certa de encontrá-lo em seu
recanto favorito. A chuva fustigava-lhe o rosto, embora ela parecesse
nada sentir, naquele
caminhar decidido e apressado.
Se Richard podia enxergar novamente, por que não havia contado nada? Por
que lhe havia pedido que lesse a carta de Albert? Por que havia dito que
ela era bonita
o suficiente para um homem cego? Por quê? Por quê? Estas perguntas não
saíam de sua cabeça.
Chegando às pedras, sentiu pânico, ao constatar que Richard não estava
lá. Por onde andaria, então? Talvez na piscina formada pelas águas do
mar, outro dos locais
favoritos dele. Mas era um lugar muito perigoso e ela lhe havia pedido
várias vezes que não fosse sozinho até lá.
Apavorada, já imaginando uma desgraça, saiu correndo na direção da
piscina e percebeu mais uma vez que havia se enganado. Olhou para as
águas, que em dias de sol
eram cristalinas a ponto de poder enxergar as pedras no fundo, e percebeu
que, naquele dia, pareciam escuras e profundas, cheias de mistério.
Enquanto tentava imaginar onde Richard poderia estar, escorregou nas
pedras cheias de limo. Assustada, pensou que seria muito fácil cair
naquelas águas fundas, principalmente
uma pessoa cega.
93
Não, não podia se entregar a pensamentos tão horríveis assim. Melhor
voltar ao chalé e esperar por Richard. Talvez, quem sabe, ele até já
estivesse lá...
- Clara! O que está fazendo aqui, com um tempo desses?
Era Richard! Voltou-se para ele, aliviada por vê-lo são e salvo. Por
outro lado, sentiu o pânico voltar. Agora tinha certeza de que ele não
estava cego.
- Você pode enxergar, não é, Richard? Você está me vendo murmurou,
trémula.
Os lábios de Richard se abriram num sorriso.
- Levou muito tempo para descobrir, coração.
- Richard! Então é verdade? Como estou feliz! - exclamou ela, abraçando-
o.
Mas ele não correspondeu àquele abraço. Permaneceu imóvel.
- Aposto que sim - ironizou. - O que está fazendo aqui?
- Saí à sua procura. Tive medo de que algo pudesse ter acontecido...
- Bem, agora não é mais preciso se preocupar comigo respondeu ele,
tirando-lhe os braços do pescoço e afastando-a um pouco. - Sua
responsabilidade para comigo chegou
ao fim. Como vê, não sou mais um homem cego.
Aquelas palavras, em contraste com a grande emoção que Clara sentia,
magoaram-na profundamente. Por que ele estava se comportando assim?
- Posso saber por que você saiu correndo de casa no meio da chuva? Eu
estava voltando com Albert e os outros, correndo por causa do tempo,

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quando a vi sair daquele
jeito. Não me ouviu chamá-la? - perguntou ele, visivelmente irritado.
- Não. Quer dizer que eles já chegaram?
- Já. Estão no chalé. - Passou as mãos pelos ombros dela, numa atitude
mais protetora que carinhosa. - Vamos, então. Você está encharcada.
. Chegaram ao chalé e Clara ouviu vozes masculinas na copa.
94
Richard se juntou aos companheiros enquanto ela se dirigia ao quarto para
mudar de roupa.
Sentia-se vazia. Tinha vontade de abraçar e beijar Richard, dizer
novamente que estava feliz por ele ter recuperado a visão e de convidá-lo
a mostrar que nada havia
mudado entre eles.
Saiu do banho e, enrolada na toalha, abriu o armário do quarto. No último
cabide estava pendurado o vestido verde que ela havia visto numa das
vitrines da Regent
Street, em Londres. Havia comprado a roupa num impulso, pensando que
combinaria com seu tom de pele e com a cor dos olhos. Mas de que
adiantava usá-lo, se Richard
não podia vê-la?
Tirou o vestido do armário e o.experimentou, ainda meio incerta quanto a
usá-lo ou não. O efeito surpreendeu-a e ela se admirou, orgulhosa, frente
ao espelho.
Estava imaginando como superar sua timidez e encarar os amigos de Richard
quando ele entrou no quarto. Pelo espelho, viu quando ele fechou a porta
e se mostrou surpreso
ao vê-la vestida daquele modo.
- Eu gosto muito! - disse, aproximando-se. - Por que nunca usou esse
vestido?
Ah! Aquela terrível timidez! Quando se livraria dela? Quando Richard não
enxergava, ainda conseguia ficar mais à vontade. Agora, entretanto, toda
a timidez e a insegurança
haviam voltado.
- Porque eu não estava com vontade - respondeu ela, escovando os cabelos.
- E posso saber quem ou o que fez você ter vontade de usar este vestido
hoje?
Seus olhares se encontraram e ela sentiu o sangue subir-lhe às faces.
Rapidamente desviou o olhar e respondeu:
- O fato de você estar enxergando não é um bom motivo?
- Acho que sim.
Aquela ironia velada a intrigou; a reação dele quanto ao fato de ter
voltado a enxergar havia sido tão fria... Clara pensou que ele
95
fosse ficar exultante, mas, ao contrário, viu-o tornar-se irónico. E não
podia atinar por quê.
- Há quanto tempo você está enxergando? - As perguntas deveriam ser
feitas agora, enquanto estavam sozinhos.
- Há alguns dias.
- E por que não me contou antes?
A situação era bem pior do que ela havia imaginado. Ele a tinha enganado,
fingindo-se de cego.
- Eu queria ter certeza de que não era coisa temporária. De que realmente
havia acontecido. - As palavras saíam fáceis, e nos lábios dele havia um
sorriso estranho.
- Já estava pensando quanto tempo ainda levaria para você descobrir.
Clara pensou nas outras vezes que havia suspeitado de que ele não estava
cego. Agora podia apostar que Richard já enxergava

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há muito tempo.
- Não foi nada gentil de sua parte não me dizer nada objetou em voz
baixa, magoada. Aquela omissão mostrou que Richard não confiava nela.
- Clara, eu aprendi .muito cedo que, para ser gentil cons alguém, é
preciso que superemos a nós mesmos, e isso não me agrada - respondeu,
enigmático. - Assim, desisti
de ser gentil há muito tempo e não é agora que vou mudar. Você
compreende, espero, que agora nosso relacionamento vai ter que mudar.
Aquelas palavras tiveram o efeito de imobilizá-la. Abaixou a cabeça,
sentindo-se uma prisioneira à espera da sentença de morte.
- Sim, eu sei.
- Estou contente com isso, porque torna mais fácil o que pretendo dizer.
- Fez uma pausa e acrescentou: - Decidi ir a Ben Nevis amanhã.
- Ben Nevis? - Clara surpreendeu-se. Olhou-o, certa de que o ouviria
dizer que o casamento acabara, que ele queria liberdade para voltar para
Toni. Mas ele estava
dizendo que ia a uma expedição! Surpresa, perguntou: - Você acha que
deve?
96
- Preciso tentar. Vai ser um teste; através dele vou saber se serei capaz
de escalar montanhas novamente, depois de tudo o que aconteceu. Ficaremos
uma semana, mais
ou menos. A chance é boa para eu descobrir se posso ou não. - Calou-se e
Clara imaginou que talvez estivesse embaraçado. - O que você vai fazer? -
perguntou, afinal.
Ela ficou desconcertada. Gostaria de ter sido convidada a ir com eles.
- Não sei... você vai levar o carro?
- vou. Mas, se você quiser ir embora, tenho certeza de que Douglas a
levará até a balsa.
Ir embora! Richard queria que fosse embora! Por algumas semanas, ela
havia sido útil, mas agora era um peso do qual ele queria se livrar o
mais rápido possível.
Pensou que estava mesmo louca, ao ter aceitado aquele casamento. Louca
ou... irremediavelmente apaixonada.
- Vamos, venha conhecer os meus amigos. Albert já perguntou por você -
disse Richard, saindo do quarto.
Clara mirou-se mais uma vez no espelho, De que adiantava aquele vestido?
Ela ainda não podia acreditar no que estava acontecendo. Que faria agora?
Como viver só
com a lembrança da felicidade de todos aqueles dias? Parecia que tudo ia
tão bem, e, no entanto, agora era o fim do sonho.
Atordoada, entrou na copa para cumprimentar Albert e ser apresentada a
Bernie e tom. Conversava e sorria como um autómato, notando que os três
amigos de Richard
haviam ficado contentes por ele ter decidido acompanhá-los. E todos
tinham achado normal o fato de Richard não a convidar para ir também,
pois, afinal de contas,
haviam deixado suas esposas para se aventurarem naquela expedição. Era um
procedimento comum, nada havia de estranho.
Tentando esconder a frustração, Clara os acompanhou até o hotel, uma
grande construção branca que já havia sido uma
97
destilaria. Apesar da frieza que havia entre ela e Richard, o jantar
transcorreu alegremente. Todos pareciam felizes. Todos menos Clara.
Richard, por sua vez, estava
animado e espirituoso como nunca, e como resultado houve muitas risadas o
tempo todo, o que chamou a atenção dos outros hóspedes.

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Após algumas horas, Clara e Richard saíram do hotel, pois os amigos
haviam insistido em dormir lá, recusando gentilmente a oferta de Clara
para que passassem aquela
noite no chalé. Acertaram tudo para a manhã seguinte, quando, bem cedo,
passariam para pegar Richard.
Na volta, Clara fingiu que estava dormindo para evitar que Richard
dissesse alguma coisa que ela não quisesse ouvir. Estava exausta,
desgastada, triste. Ela só queria
poder chegar logo e dormir.
- Aqui estamos, Bela Adormecida - disse ele, assim que o carro parou.
Clara murmurou qualquer coisa enquanto saía e, desculpando-se por estar
tão cansada, foi imediatamente para o quarto.
Ficou muito tempo acordada, ouvindo Richard, no outro quarto, arrumar
suas coisas para a expedição. Esperava que ele viesse fazer amor; afinal,
aquela seria a última
noite que passariam juntos no chalé.
Mas, exausta como estava, adormeceu profundamente e só acordou quando
sentiu a mão de Richard em seu ombro.
- Acorde, Bela Adormecida. Já estamos de partida.
- O quê? Como? De partida para onde? - perguntou sentando-se rapidamente
na cama e esfregando os olhos,
ainda sonolenta.
- Vamos pegar a balsa, que sai às nove e meia - respondeu Richard. O
traje azul que usava realçava-lhe ainda mais o bronzeado. Sua aparência
era ótima.
- Oh, preciso preparar o café - disse ela, já desperta e pondo de lado as
cobertas.
98
Colocou os pés fora da cama e levantou-se apressada, os cabelos caindo
sobre os ombros.
- Tarde demais - respondeu Richard, sorrindo. - Nós, alpinistas, sabemos
muito bem como cuidar de nós mesmos. Já tomamos café e lavamos as
xícaras. Não há nada para
você fazer, exceto aproveitar este lindo dia de sol.
- Por que não me acordou antes?
- Você estava dormindo tão bem que não tive coragem de acordá-la. O mesmo
aconteceu ontem à noite, quando vim me deitar.
Seus olhos se encontraram, mas Clara, trémula e tímida,
voltou-se para pegar suas roupas.
- Então vou me vestir bem rápido e já saio para me despedir de
vocês.
Quando se voltou, com as roupas na mão, encontrou-o
boqueando a passagem. Sentiu as mãos dele nos ombros e teve
vontade de chorar.
- Tem certeza de que não tem nada para me dizer?
Clara olhou para ele e respondeu com voz fria:
- Não, acho que não.
Ele não se deu por vencido. Insistiu, sério:
- Tem certeza, Clara?
- Absoluta. Por quê? Você quer me dizer algo? Richard puxou-a para si e
abraçou-a com força.
- Quero. Tenho muito a dizer. - Mas naquele momento Albert o chamou. -
Bem, acho que agora não há mais tempo. Suspirou
e, antes que ela pudesse esboçar qualquer
reação, beijou-a com desespero.
Clara queria que aquele beijo não acabasse nunca mais, que ele não saísse
de perto dela. Mas um outro chamado de Albert tirou-a daquele enlevo.

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- Escute, Clara - acrescentou ele -, serei capaz de entender se você não
estiver aqui, quando eu voltar. Até mais, coração.
99
E saiu apressado do quarto. Enquanto tirava a camisola, CJara ouviu o
motor dos carros dando partida. Ficou parada por um momento, até que o
som fosse ficando cada
vez mais distante, até que tudo que pudesse ouvir fosse o silêncio,
cortado, vez por outra, pelas ondas que quebravam na areia.
100

CAPITULO X

Sem Richard, os dias demoravam a passar e a saudade torturava, machucava.
Ele ficaria fora apenas uma semana, mas para Clara isso parecia uma
eternidade.
Não que tivesse medo de ficar sozinha. Acontecia que, após dois dias sem
Richard, seus nervos estavam em frangalhos. Não podia evitar pensar nele
a cada segundo,
cultivando na memória todas as coisas que haviam feito desde o dia em que
se casaram. Como num filme, as cenas passavam em sua cabeça, e algumas
observações de
Richard, que ela não havia entendido na hora, voltavam constantemente a
seus ouvidos.
"Serei capaz de entender se você não estiver aqui, quando eu voltar."
Aquela havia sido a última observação dele, antes de ir embora. Melhor se
não tivesse dito
nada.
Aquilo soava como um pedido velado; era como se ele a estivesse mandando
embora. Por outro lado, por que então falara que tinha muitas coisas para
dizer? E por que,
meu Deus, a havia beijado daquele modo?
Clara ficava confusa, quando se punha a pensar em tais coisas, e quanto
mais pensava, mais se convencia de que Richard tentara dizer que, se ela
deixasse a ilha
enquanto ele estivesse fora, o casamento teria acabado. E era isso que
queria, na certa, o fim daquele relacionamento e a volta da sua
liberdade.
Enquanto pesava todos os pontos, ela aproveitava para limpar o chalé.
Queria deixá-lo em ordem para o caso de chegar à conclusão de que devia
mesmo ir embora. Estava
no quarto, arrumando as folhas que datilografara, quando ouviu vozes
perto do chalé.
101
Alegrou-se por saber que teria companhia. Isto a pouparia de algumas
horas de tormento.
- O carro não está - observou George, quando ela abriu a porta da varanda
e saiu para receber os gémeos. George a fitou com um olhar esperto.
Estava representando
seu papel favorito, o de detetive. - Mas você está aqui. Isto significa
que Richard voltou a enxergar.
- Muito bem, Sherlock. Você é um grande detetive.
- Você está alegre ou triste? - indagou Beth, fitando-a com curiosidade.
- Lógico que estou alegre.
- Pois não parece - retrucou Beth. - Você está tão pálida...
- É porque apanhei um resfriado.
- Aonde Richard foi? - perguntou o pequeno detetive, ainda orgulhoso de
sua dedução. - Para Craighouse?

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- Não, desta vez você errou. Ele e alguns amigos foram para Ben Ne vis.
- Ah, lá é muito chato! - exclamou Beíh. - Vovó mandou que a gente viesse
até aqui para convidar você e Richard para o chá desta tarde. Mamãe e
papai chegaram ontem.
De qualquer modo, já que Richard não está, é bom você ir para se
distrair. Por falar nisso, por que não foi com ele?
Por quê? Clara também gostaria de saber. Tentou buscar uma resposta que
pudesse satisfazer os gémeos.
- Precisei ficar para empacotar tudo e fazer as malas. vou voltar para
Londres no sábado.
- Ah, que pena... Então Richard não vem mais para cá disse Beth,
deduzindo que ele se encontraria com Clara em Londres. - Mamãe vai ficar
triste por não poder vê-lo.
Clara não disse nada. Achou melhor deixar que as crianças pensassem o que
quisessem.
- Mas você vem para o chá de qualquer jeito, não é? insistiu George.
- vou, sim. Vocês esperam até eu trocar de roupa?
102
O dia estava quente e Clara pôs um vestido de linho verde. Como sempre,
os gémeos não tinham pressa alguma e foram até a praia, parando cada vez
que encontravam
uma concha diferente. Andavam tão devagar que acabaram encontrando
Kirsty, que usava urrr vestido estampado com um profundo decote.
Ela vinha a pedido de Margot, para saber a razão de tanta demora. Ao
saber, pelos gémeos, que Richard viajara, não pôde conter um sorriso de
satisfação. Pediu às
crianças que corressem na frente para avisar a avó que somente Clara iria
para o chá.
- Eu já imaginava que isso aconteceria, mais dia menos dia afirmou,
triunfante.
- Isso o quê? - perguntou Clara, impaciente.
- Que Richard a abandonaria - completou ela, dando ênfase à última
palavra.
Clara ficou perturbada. Abandonada... Como Kirsty havia descoberto bem o
que se passava em seu coração durante aqueles dias! Diante do silêncio de
Clara, Kirsty
continuou: - Douglas ficará contente com isso.
- Porquê?
- Aquela ceninha que vocês representaram, outro dia, em frente à casa de
Margot, quase me comoveu. Eu não tinha ideia de que ele pudesse ser tão
carinhoso - ironizou
Kirsty.
- Você nos viu?
Kirsty fez com a cabeça um gesto afirmativo.
- Richard e eu estávamos caminhando até a casa. Ele estava à sua procura,
um tanto preocupado. A propósito, ele viu quando Douglas beijou a sua
mão, pois ficou estranho,
depois daquilo. Posso garantir que não falei nada. Ele saiu apressado,
sem se despedir. Sabe, naquele momento tive certeza do que já havia
suspeitado: Richard podia
enxergar tão bem quanto qualquer um de nós. E, agora que não precisa mais
de você, o que iria ficar fazendo a seu lado?
- Escute aqui, Kirsty, Richard viajou por alguns dias. Isso não quer
dizer que tenha me abandonado.
103
- Não? - O olhar de Kirsty era de pena. - Duvido muito qui ele volte,
agora que recuperou a liberdade.

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Os olhos azuis pousaram em Clara, que não pôde deixar de concordar com o
que acabara de ouvir. De fato, por que Richara ficaria ao lado dela, se
durante toda a vida
só se sentira atraído por mulheres bonitas? Beleza suficiente para
satisfazer um homem cego... Só que agora ele podia enxergar.
Como sempre, Margot estava na cozinha, arrumando a mesa para o chá. Dessa
vez, entretanto, tinha a ajuda de uma mulher bonita, de cabelos negros e
olhos castanhos.
- Estou feliz que tenha vindo, querida. Esta é Joan, minha filha.
- Já ouvi falar muito em você - comentou Joan, com um sorriso simpático.
- Quer dizer que Richard voltou a enxergar? Que bom! Há quanto tempo foi
isso?
- Há alguns dias. Mas ele fingiu que nada tinha acontecido para descobrir
quanto tempo levaríamos para perceber.
- Continua o mesmo Richard! - comentou Joan, divertida com a ideia. -
Pena ele ter ido para Ben Nevis. De qualquer modo, estou muito contente
por conhecer você.
Agora venha, quero lhe apresentar Murray, meu marido.
Após o chá, todos foram até a sala, quando Douglas aproveitou para
aproximar-se de Clara.
- Você vai se encontrar com Richard? - perguntou, cheio de cautela.
- Não sei. Não programamos nada.
- Meus sobrinhos disseram que você vai depois de amanhã para Londres.
Pensei em ir também, já que tenho alguns negócios para resolver por lá.
Daí, se quiser, poderemos
ir juntos.
- Obrigada, Douglas. Eu já estava pensando mesmo em pedir uma carona até
a balsa.
- Ora, ora, o que será que os dois estão conspirando? zombou Kirsty, que
se aproximou sem que ambos percebessem.
104
- Desculpem se interrompo, mas Alan o está chamando lá fora, pouglas.
Acho que Clara não vai se importar, se ficar sem você só por alguns
minutos, não é?
Ignorando a provocação, Clara nada respondeu, sorrindo para Douglas
quando ele se desculpou:
- Volto num instante, está bem?
Kirsty saiu atrás dele em direção ao jardim, e Clara aproveitou para
conversar um pouco mais com Joan. Simpatizara muito com ela,
principalmente por saber que era
grande amiga de Richard.
Em meio a uma prosa agradável, Joan quis saber, curiosa:
- Você está muito apaixonada por Richard, não?
Aqueles olhos negros fitavam Clara de um modo familiar, lembrando muito
os de Douglas. Mas eram muito mais perspicazes, de modo que ela achou
inútil mentir.
- É tão óbvio assim? - falou, quase sussurrando. - Eu mesma só descobri
isso há alguns dias.
- Quer dizer então que casou sem estar apaixonada ou, pelo menos, sem ter
consciência disso?
- Nós nos casamos por conveniência. Richard precisava de alguém que o
ajudasse na execução do livro e que cuidasse dele. Talvez você esteja se
perguntando o porquê
do casamento. Bem, é que tenho alguns princípios morais, questão de
educação, compreende? Não sei se estaria preparada para viver com um
homem sem estar casada.
- Não precisa se explicar tanto, Clara. Compreendo perfeitamente porque

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compartilho desses mesmos princípios. Deu-lhe um tapinha nos joelhos e
acrescentou, piscando
um olho:
- Só que ainda acho que devia haver outra razão mais forte, ainda que
inconsciente, para você aceitar o pedido de Richard. Outra coisa que me
deixa intrigada é o
fato de Richard pedir alguém em casamento.
- Você não é a primeira pessoa que se surpreende com isso. Por quê?
- Porque Richard sempre ridicularizou, para quem quisesse
105
ouvir, o papel de marido. Jamais manifestou o mais remoto desejo de se
comprometer com alguém.
- Mas ele não está comprometido comigo, Richard não me ama e o nosso
casamento acabou no instante em que ele recuperou a visão. Não existe
mais nenhum vínculo entre
nós.
Joan ficou pensativa por alguns instantes e depois acrescentou:
- Richard é um covarde, Clara. Você não percebeu ainda que ele age dessa
maneira só para se defender?
- Richard, covarde? É difícil acreditar. Ele tem nervos de aço.
- Não sei, mas ainda acho que Richard morre de medo de gostar de alguém,
de sentir insegurança, de se mostrar vulnerável, enfim, todas essas
coisas a que as pessoas
apaixonadas estão sujeitas. Talvez um dia você ainda me dê razão.
Naquele momento, as duas se calaram. Kirsty acabara de entrar.
- Vocês não viram Douglas?
- Não - respondeu Joan. - Pensei que estivesse com você. Por que não
tenta o sótão? Ele deve estar lá com Alan, que adora brincar lá em cima.
Kirsty deu meia-volta e saiu à procura de Douglas.
- Pobre Kirsty... - suspirou Joan. - Deve ser horrível viver com tanto
ódio. Nem a memória de Sorcha escapou de uma raiva tão grande.
- Sorcha? Mas as duas não eram grandes amigas?
- Não. Na verdade, era uma amizade bem superficial. Foi Kirsty quem
apresentou Sorcha a Douglas. Não sei se você sabe, mas Kirsty e Douglas
foram colegas na faculdade
e ela sempre gostou dele. Só não podia prever que se apaixonasse por
Sorcha é se casasse com ela. Kirsty passou maus bocados e nunca perdoou
Sorcha. Agora vive atrás
de Douglas, embora ele não lhe dê a mínima atenção.
- Ah! Então compreendo por que ela é tão irónica e amarga.
- Levantou-se. - Bem, preciso ir. Obrigada por tudo.
Voltando para o chalé, Clara pensava no que Joan havia dito sobre
Richard. Talvez ele realmente tivesse medo de se entregar a
106
alguém. Também, não era para menos. Gostava tanto de Toni e ela o havia
trocado por outro homem... Mas agora Toni estava livre e à espera dele em
Londres.
Clara entrou no chalé e decidiu ir embora antes que Richard voltasse.
Faria isso porque o amava muito e não queria atrapalhar a vida dele. Tudo
o que queria era
que fosse feliz, ainda que ao lado de outra mulher.
Outra mulher... Angustiada, atirou-se na cama e adormeceu, exausta de
tanto chorar.
Assim que amanheceu, Clara acordou, disposta a passar seu último dia na
ilha escalando uma das montanhas, com Douglas, Kirsty e as crianças.
Escolheram uma não muito grande, de modo que a escalada foi fácil. No
topo, a vista era belíssima, e ela experimentou uma deliciosa sensação de

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triunfo. Agora era
capaz de compreender o que Richard sentia cada vez que chegava ao cume de
uma montanha.
Pensou nele e sentiu saudade. Onde estaria naquele momento? Sentou-se
numa pedra, imaginando, desanimada, que o que quer que ele estivesse
fazendo, com certeza não
estaria nem lembrando dela.
- Está dizendo adeus à ilha? - perguntou Douglas, aproximando-se.
Por um segundo, ela desejou que Douglas não exisjisse; que não fosse ele,
mas Richard que estivesse a seu lado.
- Por que diz isso? - perguntou, sem olhá-lo.
- Você parece triste, como se não quisesse deixar a ilha. Foi feliz aqui,
não é?
- Por um período muito curto - respondeu ela, emocionada.
- Por que então não tenta de novo com outra pessoa?
- Porque não quero mais ninguém.
- Clara, ouça... Pensei que agora nós dois pudéssemos ter uma chance.
107
- Não! - interrompeu ela com veemência, tentando pôr um fim nas ilusões
de Douglas. - Não iria dar certo. Por que não tenta com Kirsty?
Douglas ficou surpreso.
- Kirsty?
- Exatamente. Kirsty! A amiga de Sorcha, que um dia amou você e, ao que
tudo indica, ainda ama.
- Você sabe tão bem quanto eu que, para florescer, o amor deve ser
recíproco - argumentou ele. - E eu não amo Kirsty.
- E não me ama também. Você só me quer para cuidar de Alan e, ao mesmo
tempo, porque sente pena de mim, agora que o meu casamento está acabado.
Douglas, você não
entende que estaríamos juntos por conveniência, tal qual eu e Richard?
Juro que não quero repetir este tipo de experiência.
Parou de falar, ofegante, surpresa com a segurança de suas palavras. Os
olhos escuros-de Douglas a observavam, pensativos, e então pousaram em
Kirsty, que se divertia,
mais adiante, com as crianças. Era engraçado notar que, na companhia
delas, Kirsty parecia outra mulher, mais solta, mais espontânea, mais
alegre.
- Talvez você esteja certa - murmurou Douglas, e Clara sentiu um grande
alívio. - Eu não prestei muita atenção a Kirsty.
- Levantou-se, dizendo: - Foi um ótimo verão. É melhor descermos, temos
uma longa caminhada pela frente.
Em duas horas, Clara estava no chalé. Margot a havia convidado para
dormir na casa deles, para facilitar a partida na manhã seguinte.
Aceitando o convite, ela tomou
emprestado o carro de Douglas e acondicionou sua bagagem no porta-malas.
Antes de sair, olhou demoradamente cada compartimento, lembrando-se dos
momentos que ali
passara ao lado de Richard. Trancou a porta e guardou a chave no mesmo
lugar em que estava quando lá chegaram, para que Richard não tivesse
dificuldades em encontrá-la.
Na manhã seguinte, a caminho de Tarbért, Clara não podia deixar de sentir
um enorme vazio. Douglas e Kirsty conversavam
108
em outra parte do convés. Sorriu, ao pensar na possibilidade de um
romance entre os dois e desejou que tudo desse certo. Gostava de Douglas
e tinha muita pena de
Kirsty, agora que havia entendido o porquê das atitudes maldosas da moça.

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Assim que a balsa atracou em Tarbert, os carros começaram a se posicionar
para sair. O sol estava forte, brilhante, e seu reflexo na água adquiria
uma tonalidade
metálica. Gaivotas lançavam gritos estridentes, para diversão dos
veranistas que aportavam na ilha. Todos pareciam felizes, exceto ela. Sua
mente voltava para trás,
para os dias maravilhosos que passara na ilha e que duraram tão pouco.
Lembrou-se do dia em que chegaram, quando o tempo estava úmido e chuvoso.
Em vez de Douglas
e Kirsty, ela estava
,, com um homem alto, forte e brincalhão, sempre pronto a se
divertir às suas custas.
- Tentando roubar a minha esposa, Douglas?
Clara levou uma das mãos aos lábios. Meu Deus, aquilo estava
acontecendo mesmo ou ela começava a ficar louca? Seria possível
que o cansaço dos últimos dias a tivesse feito imaginar aquela voz
tão querida?
109

CAPÍTULO XI

Clara se armou de coragem e olhou na direção de onde provinha aquela voz
rouca. Não estava sonhando! Era Richard, que, encostado em seu carro, de
braços cruzados,
sorria irónico, como se a tivesse pegado em flagrante.
"O que ele está fazendo aqui?", pensou, surpresa. Richard não poderia ter
adivinhado que ela partiria naquele sábado; portanto, não havia sentido
pensar na possibilidade
de que teria vindo buscá-la. Notou que o carro dele era o primeiro de uma
longa fila à espera do embarque. Procurou raciocinar, tentando descobrir
o que Richard
estaria fazendo ali, e chegou à conclusão de que ele estava à espera da
balsa porque pretendia embarcar para algum lugar. Mas para onde? Dali a
balsa partiria para
Islay. Contudo, por que ele iria a Islay?
Ela se fez todas essas perguntas num momento, de modo que pôde ver quando
Douglas se voltou, surpreso, ante a provocação inesperada. Foi Kirsty,
entretanto, quem
tomou a iniciativa da resposta:
- Ele não está roubando a sua esposa - afirmou, zangada, na ânsia de
defender Douglas. - Será que três pessoas não podem viajar sem que você
venha com conclusões
apressadas?
- Ora, Kirsty, logo você vem me dizer isso? Estou somente deduzindo o que
você sempre fez questão de insinuar com essa sua .língua venenosa -
replicou ele, sem alterar
a voz.
- Richard, deixe-me explicar... - Douglas tentou dizer, mas foi
interrompido pela voz gelada que, ignorando aquelas palavras, dirigiu-se
a Clara:
110
- E agora? Não é possível que você não tenha nada a me dizer. Ou este é
apenas mais um dos seus passeios?
- Richard, não fale assim, por favor. Tenho muito que dizer a você, mas
não aqui - respondeu, caminhando na
direção dele, emocionada e confusa ante aquela presença
inesperada mas tão querida.

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Douglas puxou Kirsty pelo braço e os dois se afastaram discretamente para
o interior da balsa, onde os carros já haviam começado a desembarcar.
- vou até Islay porque hoje não há horários para Jura ixplicou Richard,
mal olhando para ela. - Se você tem alguma coisa a me dizer, é melhor que
seja aqui e agora.
- E ironizou: a não ser, é claro, que tenha deixado um bilhete para mim
no chalé. Neste caso, não precisa perder tempo com palavras, já que
posso ler as suas explicações.
- Richard, pare com isso, chega de ironias. Não deixei bilhete nenhum, o
que quero é conversar com você calmamente. Assim, com pressa, não posso
explicar nada.
Clara estava ansiosa, pois o tempo passava e era preciso agir rápido.
Agora que o reencontrara, quando não havia nem sequer sonhado com isso,
não deixaria que ele
fosse embora sem que tudo ficasse esclarecido.
- com licença, é o sinal. Preciso embarcar o carro.
Richard voltou-lhe as costas e Clara ficou parada, boquiaberta, seguindo-
o com o olhar até que ele desaparecesse no interior da balsa. Seu coração
batia acelerado
e ela não sabia o que fazer.
Naquele instante, Douglas chegou com a bagagem e, sem emoção alguma na
voz, falou:
- Você não vai mais conosco, certo? Aqui estão as suas malas.
- É verdade, Douglas, não vou. Mas também não sei o que fazer.
- Pois eu sei: você vai com ele. Até logo, Clara, e boa sorte.
- Até logo, Douglas, e obrigada por tudo. Jamais esquecerei você e
Margot...
111
- Não tem nada que agradecer. Estes dias foram muito agradáveis. -
Hesitou um pouco e acrescentou: - Acho que eu é que devo agradecer por
você ter-me aberto os olhos.
Quem sabe algum dia voltemos a nos encontrar, lá na ilha, e então veremos
as nossas crianças brincarem juntas.
- Espero que sim - afirmou Clara, com um sorriso. - Diga a Kirsty que...
- Interrompeu-se, mudando de ideia: - Não, eu mesma direi.
Kirsty já se encontrava no carro, esperando por Douglas, e seus olhos
estavam vermelhos como quem acaba de chorar. Quando viu que Clara se
aproximava, abriu a janela
e limpou com as costas da mãos os vestígios das lágrimas.
- Kirsty, sinto muito por Richard ter sido rude com você. Os olhos de
Kirsty se encheram de lágrimas novamente.
- Acho que eu mereci aquilo. Sempre tive ciúme de Sorcha. Depois a odiei,
quando abandonou Douglas, que era tão bom para ela, por um homem que
acabara de conhecer.
- Os lábios dela tremiam e os olhos se enchiam de lágrimas. - Você já
ouviu falar do ódio de uma mulher desprezada, Clara? Pois bem, senti esse
ódio duas vezes.
Ambas porque Sorcha se intrometeu na minha vida. Não contente de ter-me
tirado Douglas, ela também quis Richard. Sabe... tudo o que eu disse
sobre eles, aquela coisa
de terem planejado fugir juntos, foi porque estava com ódio. Ódio não
somente pelo que ela havia feito a Douglas, mas a mim também. - A voz de
Kirsty tremia e ela
parou por alguns segundos, tentando se controlar. - Mas, no fundo, sei
que não era tudo mentira - acrescentou. - Sorcha abandonou Douglas para
se encontrar com Richard.
- Só que ele não teve culpa. Richard nem suspeitava do que estava se

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passando na cabeça de Sorcha. Nem sequer deu a ela motivos para agir
daquela maneira. Acho que
isso faz uma enorme diferença, não, Kirsty? Você sabia disso, mas, mesmo
assim, quis que ele passasse por culpado diante de Douglas.
- Está bem, admito. Eu queria que Richard sofresse também,
112
queria que todos, principalmente você, suspeitassem dele. Tentei fazer
com que ele suspeitasse de você também, exagerando o que acontecia
naqueles passeios com
Douglas. Tentei fazer com que Richard pensasse que vocês tinham um caso.
Cheguei a ir até o chalé só para ter o gostinho de botar caraminholas na
cabeça dele. Saí
contente, pois, apesar de seu marido ter-me expulsado de lá, as minhas
insinuações surtiram efeito. Era exatamente o que eu queria: que ele
odiasse você e Douglas.
- Mas por que, Kirsty? Por quê? - Clara ficou chocada com aquela
revelação.
- Porque cinco anos atrás ele nem sequer me notou e porque este ano eu o
encontrei casado com uma mulher sem graça, por quem eu jamais poderia
imaginar ser passada
para trás.
- E posso saber por que está me dizendo tudo isso agora?
- Porque me deu vontade de ser honesta e porque não tenho mais raiva.
Pela primeira vez em anos, terei Douglas só para mim, nessa longa viagem
até Londres.
- Então aproveite - retrucou Clara. Não conseguia gostar de Kirsty, mas
sentia que devia ajudá-la de algum modo. Não era possível que uma mulher
tão bonita fosse
tão desagradável. - Permite que lhe dê um pequeno conselho, Kirsty Brown?
- Qual? - perguntou a outra, surpresa e ao mesmo tempo curiosa.
- Controle a sua língua e tenho certeza de que vai conseguir o que tanto
quer - disse sorrindo, e, pela primeira vez, os olhos de Kirsty
brilharam, sinceros.
- Pode estar certa disso. Adeus.
Clara voltou para perto de sua bagagem e não avistou Richard, embora
pudesse ver o carro dele a bordo. Comprou uma passagem para Isjay e subiu
a escada do tombadilho
para chegar ao convés superior. Deu de cara com Richard, apoiado na
amurada, e encaminhou-se na direção dele. Chegou a tempo de acenar para
Douglas e Kirsty, que
do cais esperavam que a balsa partisse.
113
Enquanto a embarcação se afastava, Clara viu Douglas e Kirsty entrarem no
carro e tomarem a direção da estrada.
- Por que você não foi com eles? - perguntou Richard.
- Porque nunca tive essa intenção. Lembra da sua sugestão sobre pegar uma
carona até a balsa, se eu quisesse deixar a ilha antes de você voltar?
Pois foi exatamente
o que fiz. - Olhou para ele e acrescentou: - Entendi que você só voltaria
na semana que vem.
- Mudei de ideia.
- Posso saber por quê?
- Por várias razões.
- Bem, eu também mudei de ideia. Decidi ir até Islay.
- Isso eu já havia percebido. Só não entendi por quê.
- Por várias razoes - respondeu Clara, imitando-o. E levou um susto
quando ele a agarrou pelos ombros e a colocou à sua frente. - Richard, há

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outras pessoas aqui
e elas estão reparando!
- avisou em voz baixa.
- Pois que reparem, não estou dando a mínima. Agora me diga: por que
mudou de ideia e decidiu ir até Islay, em vez de Glasgow? Você não estava
indo para Londres?
Baixando os olhos, ela sorriu. Havia descoberto que podia fazer o mesmo
jogo irónico de Richard e que isso o exasperava.
- Ora, disseram-me que Islay é uma bela ilha, toda verde, bem diferente
de Jura... E que existe amor por lá.
Os dedos de Richard pressionaram-lhe os ombros. Ele recuperou a calma e
olhou-a tão profundamente que parecia querer ler em sua alma.
- Você não encontrou o amor em Jura? - perguntou com suavidade.
Clara meneou a cabeça-, olhando-o fixamente.
- Não o tipo de amor que eu procurava.
Richard a soltou e ficou pensativo, olhando para as ondas que se formavam
à passagem da balsa.
- Claro que, se você não quiser, não irei até IsJay. Quer dizer,
assim
114
que a balsa atracar, compro uma passagem para Gourock, outro lugar que
tenho muita vontade de conhecer - falou, olhando
para ele na tentativa de descobrir sua
reação.
- Pode vir - afirmou Richard -, mas não contra a sua ontade. Não quero o
seu sacrifício. Agora que não estou mais
cego, não há razão para sentir pena. Ou você vem porque é o que realmente
quer, ou então nada feito. Vamos comer alguma coisa? Estou morrendo de
fome.
Enquanto o acompanhava até o bar que ficava no convés inferior, Clara
teve vontade de gritar que resolvera ir até Islay porque o amava.
- O que você fez durante a minha ausência? - quis Richard saber, após
pedir os sanduíches.
Clara contou então a respeito do passeio do dia anterior, não se
esquecendo de mencionar que havia conhecido Joan e o marido.
Entretanto, enquanto comia o sanduíche, pensava nas mil perguntas que
gostaria de fazer a ele. Queria saber o que tinha decidido em relação a
Toni; por que havia
voltado mais cedo de Ben Nevis e, se não tivesse voltado, o que teria
acontecido. Seria Bapaz de procurá-la em Londres ou teria aceitado sua
partida como
o fim daquele casamento de verão?
Comeu o último pedaço do sanduíche com raiva de si mesma por Hão ter tido
coragem de fazer todas aquelas perguntas em voz alta. Resolveu então ir
até o banheiro
para ajeitar os cabelos. Mirando eu reflexo no espelho, compreendeu que o
medo que sentia de Bazer essas perguntas a Richard era o de ouvi-lo
confirmar o que já
sabia: que ele amava Toni e que, agora que não precisava mais Bela.
Clara, dava por encerrado o casamento. Talvez as coisas
fossem diferentes, se ele, ao recuperar
a visão, tivesse deparado com uma mulher belíssima, o que, certamente,
não era o caso. Fez um rabo-de-cavalo e gostou da imagem que viu no
espelho. Nem
parecia uma professora; ao contrário, lembrava mais uma colegial, tão
rejuvenescida estava com aquele penteado. No convés superior, procurou
por Richard, sem

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encontrá-lo.
115
Ficou então na amurada, perguntando-se aonde ele poderia ter ido. Minutos
mais tarde viu-o aparecer na escada do tombadilho, com a máquina
fotográfica no pescoço.
- Aonde você foi? - perguntou ela. - Não o vi, quando voltei ao convés.
- Eu não queria que você me visse - respondeu Richard. sorrindo e
apoiando-se na amurada. - Agora é a minha vez de fazer uma pergunta: por
que você estava indo para
Glasgow, hoje?
- Porque... porque pensei que você não... quisesse me encontrar quando
voltasse - gaguejou. - Achei quê
não precisaria mais de mim. Afinal, o nosso casamento foi um
conveniência.
- E você se casou comigo por pena - contra-argumento Richard. - Não
adianta negar, sei que foi assim. Foi por isso que quando passei a
enxergar, não lhe disse nada.
Não queria que a nossa lua-de-mel acabasse tão cedo.
- Quando foi que voltou a enxergar?
- No dia em que você saiu para fazer compras. Estava chovendo e você me
contou que havia dado uma carona a Douglas, lembra-se? - Sorriu,
divertido. - Mas, como
não percebeu nada, passei a usar novamente os óculos escuros, para
continuar a me fazer passar por cego. Sem a ajuda dos óculos, seria
difícil representar esse papel.
- Richard Mallon! Você me enganou! Espero que tenha visto muito mais do
que desejava e, se assim aconteceu, foi muito bem feito! Quem mandou
jogar tão sujo?
- Eu vi, realmente, mais do que esperava - respondeu ele com cautela. -
Estou me referindo a você e Douglas.
- Muito engraçado! Não foi você quem sugeriu que eu saísse com ele? E
todo aquele papo sobre liberdade? Era tudo da boca para fora?
- Eu pensava mesmo desse jeito, até suspeitar, graças a Kirsty, que havia
algo mais entre vocês. Quando o vi beijar a sua mão, tive certeza de que
estavam apaixonados.
Por isso, antes de ir a
116
Ben Ne vis, perguntei-lhe se não tinha nada a me dizer. Á resposta foi
não e imaginei que isso se devesse à sua falta de coragem. Esta foi a
razão de eu ter dito
que entenderia, se chegasse ao chalé e não a encontrasse lá.
- E eu pensei que você quisesse se livrar de mim para voltar para Toni.
Surpreso, Richard arregalou os olhos.
- Voltar para Toni? O que você quer dizer com isso? Eu nunca tive nada
com ela. Está certo, Toni é uma mulher atraente, mas sem nada de
especial. Pelo menos para
mim.
- Então por que você ficou desapontado, quando relatei o conteúdo daquela
carta?
- Eu, desapontado? Pelo que me lembro, quem ficou desapontada foi você.
Pensei que estivesse arrependida por se ter
casado comigo, que preferia ter ido à Espanha e desejado que Toni
estivesse no seu lugar para tomar conta do homem cego que estragou as
suas férias. Quando saiu
correndo daquele jeito, deduzi que não estava suportando a ideia de se
ter sacrificado inutilmente. Afinal, Toni poderia estar cuidando de mim,
já que tinha voltado

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um dia depois da nossa partida. Fiquei chateado por notar a sua
decepção e tive ódio de mim mesmo por ter imposto a você um sacrifício
tão grande.
A balsa começou a diminuir a velocidade e logo alcançou o cais. Clara
pensou, amargurada, que mesmo agora, com tudo
começando a ser esclarecido, Richard não lhe havia pedido que
voltasse para o chalé. Ele havia ido pegar o carro, deixando-a sozinha
com a bagagem, e nem sequer dissera adeus.
Ela não sabia o que fazer. Desceu da balsa e caminhou como um autómato,
sem estar certa de que direção tomar. Aí viu o carro dele, parado, como
se estivesse à sua
espera.
- Vamos, ponha as malas no banco de trás - disse Richard calmamente, sem
fazer o menor esforço para ajudá-la.
As esperanças de Clara voltaram. Agora teria uma oportunidade de mostrar
que não queria deixá-lo, que não estava arrependida
117
de ter-se casado, que ficar ao lado dele não tinha sido um sacrifício. Ao
contrário, aqueles foram os melhores dias de sua vida.
Enquanto o carro se movia por Islay, ela admirava em silêncio a beleza do
lugar. Se bem que, na verdade, não pudesse apreciá-la muito, pois Richard
dirigia em alta
velocidade, não parando um minuto sequer para que ela pudesse conhecer de
perto os lugares por onde passavam.
A pressa era tanta que, pouquíssimo tempo depois, eles já estavam em Port
Askaig, na pequena balsa que os levaria até Jura.
- Gostou de Islay? - perguntou ele.
- Você não me deu tempo para conhecer a ilha - replicou. Passou por ela
como uma tempestade de verão.
- É que estou louco para voltar para a nossa casa.
Clara sentiu uma onda de felicidade invadir seu coração. Era a segunda
vez que Richard se referia ao chalé como "nossa casa". Mas era preciso ir
mais longe; ela
precisava ter certeza absoluta de que ele a queria para sempre. Tremeu,
ao pensar que nada daquilo poderia estar acontecendo, se eles não
tivessem se encontrado
em Tarbert. Estranho pensar que, poucas horas atrás, ela estava na balsa,
olhando para a praia que ficava cada vez mais longe, pensando que jamais
veria Jura novamente.
- Imagine se nós não tivéssemos nos encontrado em Tarbert hoje! -
exclamou, sentindo-se estremecer ante aquela terrível possibilidade.
Richard sorriu.
- Chega de suposições, meu amor - repreendeu-a, com voz macia. - Isso não
lhe trará bem algum. Nós nos encontramos, é tudo o que importa, e logo
estaremos em casa.
- Mas se você não tivesse voltado mais cedo do que planejava, nós não
estaríamos aqui, agora. Você pensaria que eu havia ido embora com
Douglas. Richard, preciso
saber: por que voltou mais cedo do que pensava?
- Bem, não sou muito bom em analisar por que faço
118
determinadas coisas. Sempre sigo os meus impulsos. Ontem à tarde, Albert
e eu estávamos conversando, quando, de repente, senti uma vontade enorme
de tê-la comigo.
Parecia que nada daquilo tinha graça, sem você.
- Richard! - exclamou Clara. - E eu ontem estava no topo de uma montanha,
desejando ardentemente estar com você!

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- Então desejou muito mesmo, porque não saiu da minha cabeça. Pela
primeira vez, uma mulher conseguiu me tirar de uma expedição. Clara, tive
de voltar, antes que
você fosse embora. Mas surpreendi-me ao vê-la com Douglas. Esperava
encontrá-la no chalé e lhe fazer uma surpresa.
- E eu estava indo embora porque pensei que você não me quisesse mais.
Mas não imagina com que tristeza fiz isso.
Já no carro, a caminho do chalé, passaram pela casa de Margot. Os gémeos
estavam no jardim e acenaram alegremente para eles.
Pouco depois, Richard estacionou em frente àquela deliciosa casinha
branca que abrigara duas pessoas que custaram tanto a descobrir que se
amavam. Antes de entrarem,
olharam-se nos olhos, felizes, cúmplices, cheios de esperança. Beijaram-
se com amor, esquecendo-se de tudo. O tempo havia parado para eles. Não
existia mais ninguém
no mundo, somente um homem e uma mulher apaixonados.
- Você ainda acha que eu não te amo, Clara? - sussurrou ele.
- Sempre quis você do jeitinho que é, sem me importar se é bonita ou não.
Você, na verdade, me cativou desde o primeiro dia, lá no hospital. Eu
sabia o que estava
fazendo, quando propus que nos casássemos. Me aproveitei do seu bom
coração para obter o que queria. E eu queria você, não uma enfermeira.
Depois, quando pude vê-la,
gostei: minha esposa era a mais linda do mundo. E eu a quis ainda mais,
inteirinha, para sempre. Por isso não lhe disse nada, quando voltei a
enxergar. Tive medo
de que você me deixasse. Me perdoa, meu amor?
- Não há nada para perdoar - sussurrou ela, encantada com aquela
confissão. - Tudo o que importa, agora, é que somos parte um do outro.
119
- Isso quer dizer que você aceita continuar casada com um egoísta como
eu?
- Sei que não vou conseguir viver sem você. Estes últimos dias foram
terríveis. Estava começando a pensar que iria enlouquecer. Eu não me
casei por compaixão, mas
porque te amei desde o início. Só que não sabia disso, naquela época.
- Exatamente o que aconteceu comigo - acrescentou ele, sorrindo. - Você
gostaria de me ouvir dizer o quanto te amo?
- Ajudaria muito - respondeu ela, incapaz de acreditar em tamanha
felicidade.
- Então vamos entrar. É provável que eu me empolgue demais, e por isso é
melhor estarmos entre quatro paredes. Além do mais, suspeito que os
gémeos chegarão a qualquer
momento.
Quando, de fato, as crianças chegaram, a porta do chalé estava trancada e
o único ruído naquele lugar tranquilo era o barulho de ondas que se
quebravam na praia.
Os gémeos bateram várias vezes, mas ninguém respondeu. Gritaram e
assobiaram, sem nenhum resultado. Então, cansados, resolveram ir embora,
lembrando os conselhos
da avó, de que não se deve interromper uma lua-de-mel. Principalmente a
de duas pessoas tão apaixonadas como Richard e Clara.
120

Fim


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