Uma noite de paixão
Flora Kidd
Título original: Beyond control
Sabrina no. 177
Publicado em 1982
Resumo:- A conveniência e o desespero foram as únicas razões daquele casamento estranho. Sem
memória e sem documentos, num país sacudido por uma revolução, Kate aceitou ser a sra. Sean Kierly só
para poder fugir de volta à Inglaterra. Depois disso se separaram e ela tentou desesperadamente arrancar
da memória a noite de amor que passou nos braços de Sean. Não conseguiu. Nada poderia apagar o amor
que sentia por ele. E agora que Sean a procurava para tratar do divórcio, Kate queria dizer não. Mas de
que adiantaria lutar, se Sean não a desejava e só tinha ido para a cama com ela por pena?
CAPITULO I
Num quartinho simples da Missão de Santa Rosa, uma jovem de vinte e um anos estava sentada na beira
da cama olhando, distraída, para a poeira que brilhava através dos raios de sol. Vestia uma camiseta de
algodão branco, barata, e uma saia de algodão cinza, com elástico na cintura. Seu rosto oval seria bonito,
se não fosse tão magro e pálido. Os cabelos eram castanho-avermelhados, puxados para trás e amarrados
num rabo-de-cavalo. Tudo nela demonstrava desânimo e apatia.
Alguém bateu na porta do quarto. Ela virou-se tão lentamente que parecia que aquela batida a tinha
ferido.
— Entre — disse, cansada.
O dia estava muito quente, e gostaria que já fosse hora da siesta. Então, fecharia as janelas e poderia
deitar. Para dormir? Duvidava. Tinha dormido pouco nos últimos dias, perturbada, como todos os outros
na missão, pelo som das bombas e explosões que vinha da cidade.
A porta se abriu e uma mulher gorda, vestida de cinza e com a coifa branca das freiras, entrou. Sorriu,
deixando ver os dentes brancos e perfeitos que contrastavam com a pele bronzeada.
— Um amigo veio vê-la, finalmente — anunciou. — Um rapaz.
— Da Inglaterra? — A moça pareceu interessada e seus olhos castanhos se arregalaram,
brilhando.
— Sí. Ou dos Estados Unidos... não tenho certeza. Ele fala espanhol muito bem. Quer vê-lo? Está no
jardim. Talvez, quando falar com ele, sua memória volte um pouco. O dr. Gonzalez disse que isso
acontece quando se vê alguém familiar — disse a freira.
A jovem levantou-se, mostrando-se mais animada. Automaticamente, arrumou a camiseta e alisou os
cabelos. Será que, finalmente, suas preces tinham sido atendidas? Será que ia encontrar alguém que a
conhecera antes do acidente de avião? Sabia apenas que seu nome era Kate Lawson e era inglesa. O
pessoal da companhia de aviação tinha dado essas informações. Sabia também que estava viajando com
os pais e que ambos morreram no acidente. Além disso, não sabia mais nada do que tinha acontecido em
sua vida, antes de recobrar a consciência no hospital da missão.
Seguiu a irmã Mônica pelos corredores. Era a freira encarregada de cuidar dela, por ser a única que falava
um pouco de inglês. Caminharam através de pequenos jardins internos forrados de azulejos, com
laranjeiras e fontes. Entretanto, as fontes estavam secas: desde que começara a revolução em San Marco
— aquele pequeno país da América Central —, toda água era usada com muita economia, na missão.
Um homem, de pé junto de um lago, olhava as águas paradas e lodosas. Tinha estatura média, ombros
largos; usava short, camisa caqui, sandálias e um chapéu de palha do tipo que os nativos usavam para se
proteger do sol, nas plantações.
— Senor, aqui está a senorita Lawson — a freira anunciou.
Ele virou-se depressa e Kate teve a sensação de ser um homem cheio de energia, mas muito controlado.
Durante um momento permaneceu parado, olhando-a. Depois, tirou o chapéu e veio ao seu encontro.
Tinha a pele bronzeada, olhos cinzentos e cabelos escuros. Colocou as mãos nos ombros dela e puxou-a
para si.
— Kate, que bom vê-la, finalmente — disse calorosamente, encostando o rosto ao dela
numa carícia afetuosa. — Sou Sean Kierly,
seu noivo. Antes de você sair da Inglaterra, tínhamos
planejado casar no ano que vem. — Aproximou os lábios do ouvido dela e murmurou: — Se não lembra,
finja que sim. É o único jeito de sair deste lugar. Eu prometi a Hugh que faria o possível para encontrá-la
e levá-la de volta.
— Hugh? — ela repetiu, encarando-o e procurando aquele nome na memória.
— Hugh O'Connor, o irmão da sua mãe. Ele queria vir pessoalmente, quando ouviu falar que você estava
aqui, mas não conseguiu o visto. A confusão aqui é tanta, que se tornou difícil para os estrangeiros
entrarem no país.
— Então, como está aqui?
Os olhos dele tinham reflexos dourados quando sorriu. Acariciou-a no rosto.
— Aquela batida na cabeça acabou mesmo com a sua memória, queridinha. Sou repórter. Fui
mandado para cobrir a revolução, para uma agência de notícias internacional. Nós nos encontramos na
casa do seu tio Hugh, em Hampstead. Você ainda estava na escola de música, em Londres.
Estudava piano e canto. — Aproximou-se do rosto dela novamente. — Pelo amor de Deus, finja
que lembra de mim; senão, vão me mandar embora.
— Estou contente em vê-lo — ela falou, com sinceridade, abraçando-o pelo pescoço.
— Assim é melhor. Está convencendo — ele murmurou, beijando seus lábios. — A freira entende bem
inglês?
— O suficiente — respondeu, olhando preocupada para a velha.
Ele a soltou, virou-se para a irmã Mônica e falou em espanhol. A freira respondeu, fazendo uma porção
de gestos, e dirigiu-se a Kate em inglês.
— Sabe, senorita, não posso deixá-la a sós com ele. Tenho ordens de nunca deixá-la a sós, a não ser
quando está no quarto... o senor Valdez insistiu nisso.
— Valdez? O general Valdez, líder do exército guerrilheiro, que acabou de se tomar presidente?
— Sean Kierly perguntou.
— Si, senor. Ele disse que é muito importante que a senorita Lawson seja protegida, para o bem dela.
— Vou falar com ele — Sean disse, com firmeza. — O general deixará que saia do país quando souber
que somos noivos, tenho certeza.
Confiará em mim e fará tudo que eu pedir, para sair daqui, Kate? — ele falou baixinho, disfarçando para
que a freira não ouvisse.
A moça observou-o por algum tempo. Ele tinha olhos frios e um perfil aquilino. Mas era a resposta às
suas orações: alguém que tinha vindo salvá-la.
— Sim, farei tudo — respondeu, acariciando-lhe os cabelos e erguendo os lábios, num convite
silencioso.
Novamente viu as partículas douradas brilhando em seus olhos e seus lábios se encontraram. Os dela,
trêmulos e medrosos; os dele, quentes, mas contidos. Ficaram muito juntos durante um momento,
ofegantes e dominados por emoções diferentes. Depois, ele a empurrou, como se não se atrevesse a
abraçá-la por mais tempo.
— Perdoe-nos, irmã — disse em inglês. — Há muito tempo que não vejo Kate. Estávamos noivos e
íamos casar mas até há poucos dias pensei que nunca mais fosse vê-la. — Sorriu. — Pode perceber que
estamos muito apaixonados.
— É verdade? — a irmã perguntou, dirigindo-se a Kate.
— Sim, é verdade — ela disse, alegremente. — Eu me lembro. Oh, irmã, não é maravilhoso? Lembrei
dele, assim que o vi.
— Deus teve piedade de você e nossas preces foram atendidas. Vai contar ao general Valdez, quando for
vê-lo, senor?
— Contarei a ele hoje ou amanhã. Enquanto isso, hasta Ia vista, querida. — Sean sorriu e o coração
de Kate bateu feliz. — Esteja preparada para tudo, quando eu voltar. — Beijou-a no rosto.
Deixando-o no pátio, a irmã Mônica levou Kate de volta ao quarto. Ficando a sós, Kate fechou a porta e
sentou-se perto da janela, observando os campos secos de San Marco.
— Sean, Sean Kierly. — Repetiu o nome uma porção de vezes, mas nada surgiu em sua memória.
Não havia nenhuma imagem daquele homem.
Mas o nome devia significar alguma coisa, se estivera apaixonada por ele, Como tinha dito. Sean Kierly!
Não era um nome inglês. Sean era um nome irlandês. Kate respirou fundo, surpresa. Como sabia daquilo?
Suspirou. O dr. Gonzalez tinha dito que lembraria de coisas comuns, como nomes de países e a língua que
falava. Apenas fragmentos da sua memória tinham desaparecido.
Tocou os lábios, lembrando do beijo dele. Talvez seus sentidos o tivessem reconhecido. Oh, como aquilo
tudo a atormentava e fazia sua cabeça doer!
Hugh O'Connor. Outro nome irlandês? O irmão de sua mãe. Seu tio. Será que a mãe era irlandesa?
Tinham lhe dito que os pais eram ingleses e vieram para San Marco há mais de um ano, porque o pai era
geólogo e supervisionava um campo de exploração de petróleo. O avião ia levá-los aos Estados Unidos,
mas caíra logo após a decolagem. Kate era a única sobrevivente.
Levantou-se e caminhou pelo quarto. A chegada de Sean, apesar de não lhe devolver a memória, pelo
menos a havia tirado daquela apatia em que vivera nos últimos tempos. Agora sabia que gostava de
música. Flexionou os dedos. Tocava piano. Não era de admirar que tivesse dedos fortes! E cantava,
Cantou algumas notas do hino que as freiras cantavam de manhã. Tinha a voz profunda e pura.
Tocava piano e cantava. Estudava música em Londres, quando ficara noiva de Sean Kierly. Corou, ao
pensar no casamento. Ia casar com aquele homem dinâmico. Como ele podia sentir alguma atração por
ela? Mas ela também sentia uma grande atração por ele.
Desejou que tivessem ficado mais tempo juntos. Mas ele voltaria e, quando voltasse, a levaria embora. De
volta à Inglaterra, ã sua vida antiga, talvez conseguisse lembrar de tudo.
Sean não voltou naquele dia; mas, tranquilizada pela certeza de ter alguém que a amava, em San Marco,
Kate dormiu melhor.
Tinha tomado café e voltado para o quarto, na manhã seguinte, quando a irmã Mônica veio buscá-la para
irem ao escritório da madre superiora, onde o general Valdez, o dr. Gonzalez e o senor Kierly a
esperavam.
Ao entrar, Kate foi direto para Sean, sorrindo e erguendo o rosto para ser beijada.
— Então, senorita Lawson, ficamos sabendo que sua memória voltou — disse o dr. Gonzalez olhando-a,
curioso. — A irmã Mônica disse que reconheceu o senor Kierly, logo que o viu.
— Sim. — Kate segurou a mão de Sean. — Mas ainda não consegui lembrar de tudo.
O médico virou-se para o homem que estava a seu lado e falou em espanhol. O general Valdez era
baixinho, de ombros largos, e devia ter uns trinta e cinco anos. Tinha cabelos crespos, oleosos; barba
preta, cacheada; olhinhos escuros, brilhantes e muito próximos do nariz. Quando o médico terminou de
falar, o general se aproximou de Kate e fez uma reverência.
— Sou Diego Valdez, senorita, e lamento não termos nos encontrado antes — disse, num inglês
carregado de sotaque. Depois encarou Sean. — O senor Kierty disse que é seu noivo e veio para levá-la
de volta à Inglaterra. Naturalmente, tenho que ser cuidadoso em assuntos como esse. Preciso ter
certeza de que tudo que foi dito é verdade. O que sabe sobre ele?
Kate respirou fundo. Olhou para Sean e sentiu que ele lhe apertava a mão, de modo encorajador.
— Conte a ele, Kate. Conte o que lembrar.
— Sean é repórter e trabalha para uma agência internacional de notícias — falou, encarando o
general. — Eu o conheci em Londres, na casa do meu tio, Hugh O'Connor. Eu... nós... tínhamos
planejado casar no ano que vem, quando eu me formasse.
— O que estudava? Lembra?
— Música. Toco piano e canto. — Sentia que o general tinha algumas suspeitas.
— Como canta? — Valdez perguntou.
— Como? Não entendi — Kate murmurou, espantada.
O general virou-se para o médico e conversaram em espanhol.
— O general quer saber se é soprano ou contralto — o médico explicou.
— Contralto — Kate respondeu imediatamente, surpresa consigo mesma, pois não lembrava
daquilo, conscientemente. — Escute. — E cantou algumas notas da escala.
— Muito bem. Ótimo! — Valdez sorriu. — Mas não é suficiente. Cante uma canção que aprendeu na
Inglaterra.
Ela tentou lembrar, mas não conseguiu. Suas têmporas começaram a latejar e levou as mãos à cabeça.
— Não consigo — murmurou. — Não lembro. Aborrecida, virou-se para Sean, que a abraçou
carinhosamente.
— Vá com calma, querida. Não o deixe pressioná-la.
— Está certo, senor Kierly — o médico comentou. — Não é bom lembrar muita coisa de uma só vez. É
melhor que a memória volte lentamente e com naturalidade. — Novamente ele se dirigiu ao general,
pedindo que fosse com calma.
Valdez olhou Kate e depois observou a irmã Mônica e a madre superiora. Ambas estavam com as mãos
cruzadas, como se rezassem, e estremeceram quando o general se dirigiu rispidamente a elas. A irmã
Mônica corou e a superiora encarou friamente o general e começou a dar uma longa explicação em
espanhol. Sem esperar que ela terminasse, ele começou a gritar. Logo, o médico e a irmã Mônica
gritavam também, numa discussão furiosa. Os quatro pareciam ter esquecido completamente Kate e Sean.
— O que há com eles? — a moça perguntou.
— A madre superiora ficou zangada com o modo de Valdez interrogar a irmã Mônica; acha que ele a
estava desrespeitando. O general quer que ela conte o que nós dissemos um ao outro, ontem, e a irmã se
negou. — Sean abraçou-a novamente. — Você foi ótima. Convenceu o médico. Mas Valdez ainda está
desconfiado. Não quer deixá-la sair do país.
— Porquê?
— Tem alguma coisa a ver com a imagem dele como novo presidente de San Marco. Você lembrou
alguma coisa, desde ontem?
— Não. Lembrei que o seu nome deve ser irlandês. É?
— Sou descendente de irlandeses. Nasci nos Estados Unidos. Meu pai, que também era repórter, morreu
na Coréia durante uma reportagem e, quando minha mãe casou novamente, deixou-me com minha avó
paterna. Meu avô também era jornalista. Ao se aposentar, foi morar na Irlanda. Frequentei a escola lá,
durante algum tempo.
— Provavelmente você já me disse tudo isso antes — ela murmurou. — Sinto muito, mas não lembro
nada.
— Não se preocupe. Agora, o que interessa é convencer esse demônio do Valdez a deixá-la sair do país,
comigo.
— Senorita Lawson! — O general estava parado diante dela, os olhos brilhando de ódio. A seu lado, as
duas freiras respiravam pesadamente e o olhavam, enfurecidas. O dr. Gonzalez parecia ter desistido de
tudo e tinha ido para perto da janela. — Sabe por que foi mantida nesta missão? — ele perguntou.
— Porque eu estava doente? — ela sugeriu, nervosa.
— Sí, é verdade. Mas também para sua própria proteção. Eu não podia deixar que, no seu estado,
viajasse sozinha para outro país. — O general enfiou os polegares no cinto e se balançou nos calcanhares.
— Se você se perdesse, eu ficaria ainda menos popular diante do seu povo e do governo
britânico. Entende?
— Eu... bem... sim. Acho que sim. Mas, agora, pode me deixar ir com Sean. Estarei em completa
segurança com ele. Por favor, deixe-me ir com ele, señor.
— Com uma condição — ele disse, em tom dramático.
— Qual é? — Sean perguntou, ríspido.
— Que concordem em casar primeiro — o general o encarou, com
frieza.
De repente, a sala ficou em silêncio. Todos pareciam estar prendendo a respiração. Sean apertava a mão
dela com tanta força, que Kate pensou que sua circulação fosse parar.
— Então? Concorda?
— Sim, concordo — Sean disse, — Mas isso depende também de Kate. Quer casar aqui em San Marco,
antes de partirmos?
— Sim, claro que quero casar com você. — Ela sorriu. Tinha que concordar, caso contrário Valdez
continuaria a mantê-la ali. — Só estaremos antecipando o que tínhamos planejado para o ano que
vem.
— Sim, acho que sim. — Os olhos de Sean estavam mais escuros e frios. Kate sentiu que uma porta da
sua memória tentava se abrir, como se quisesse lhe mostrar a verdade sobre aquele homem. O rapaz
virou-se para o general. — Está bem, vamos casar. Mas tem que ser logo; gostaria de partir para a Cidade
do México ainda hoje.
— Vamos conseguir logo um padre — Valdez respondeu, sorrindo. — Será uma boa notícia. O mundo
saberá que Diego Valdez tratou muito bem da sua noiva e acertou tudo para o casamento. Assim, vou
parecer um grande humanitário, ajudando as pessoas que se amam. — Ele
riu.
— E você também nos dará uma certidão de casamento — Sean disse, friamente. — Não é possível Kate
obter outro passaporte inglês até que cheguemos à Cidade do México, e eu preciso de um documento,
provando que é minha esposa.
— Terá a certidão, com a minha assinatura, como testemunha. E prometo que não terão
problemas na fronteira, se a cruzarem nas montanhas, depois do anoitecer. — Valdez
esfregou o polegar no indicador. — Alguns dólares... é tudo o que precisam gastar para chegar à
Cidade do México.
Depois daquilo, tudo aconteceu tão depressa que, sempre que lembrava daquele dia, Kate não sabia como
tinha saído do escritório da madre superiora e ido para a capela da missão. Mas lembrava perfeitamente
do padre que realizara a cerimónia em inglês, tropeçando em algumas palavras. Lembrava também da
confusão, quando pediram a aliança a Sean e ele não a tinha. Então o general Valdez dera um passo à
frente e oferecera seu grosso anel de ouro e esmeralda. Kate teve problemas para convencer o general a
aceitar de volta o anel.
Saíram da capeia e foram direto para a caminhonete empoeirada em que Sean tinha vindo da Cidade do
México para San Marco. As freiras se despediram e o veículo saiu pela estrada, deixando rapidamente
para trás a torre do sino da missão, delineada com o brilhante céu azul tropical.
Sean passou pela cidade, sem parar. Entre os destroços dos edifícios destruídos pela recente revolução,
homens e mulheres trabalhavam, procurando restaurar um pouco da ordem. Nas portas, crianças
esfarrapadas dormiam um sono letárgico.
— Como parecem infelizes! Miseráveis e infelizes — Kate murmurou. — Acha que estão contentes que
Valdez agora seja o presidente?
— É difícil dizer — Sean respondeu. — Acho que este lugar vai explodir novamente numa guerra civil,
nos próximos dias, quando um dos seguidores de Valdez se revoltar contra ele. É por isso que quero tirá-
la do país antes que outra matança comece. Graças a Deus, você concordou em casar! Deve ter percebido
que Valdez estava nos testando. Ele não se convenceu de que sua memória havia voltado, nem de que eu
era seu noivo, até que concordamos em casar.
— Quanto tempo ainda demora para chegarmos à fronteira? — Desejava ver o máximo
possível da paisagem, esperando que alguma coisa despertasse sua memória e lhe devolvesse as
recordações do tempo em que vivera naquele país com os pais. Mas não via nada familiar ali, onde o gado
magro pastava entre os cactos e a poeira. No horizonte, surgiam as montanhas, arroxeadas contra o sol.
— Umas três horas. Da fronteira, iremos para San Cristobal. Fica no alto da montanha, mas é um lugar
razoavelmente civilizado. É uma das mais antigas cidades mexicanas e muito popular para turismo.
Passaremos a noite num hotel e amanhã iremos para Tuxtla Gutierrez. De lá, voaremos para a Cidade do
México. Vou tentar entrar em contato com a Embaixada Britânica esta noite, para ver se conseguem que
Hugh vá nos encontrar no aeroporto.
Sean falava de um modo autoritário e frio. Kate o olhou, admirando seu perfil, e, de repente, sentiu que o
coração batia mais forte: seu marido era um homem duro e decidido.
— Quantos anos você tem? — ela perguntou.
— Trinta e um.
— Perguntei porque não consegui lembrar — disse, em tom de desculpas. — Sabe quantos anos
tenho? O dr. Gonzalez calculou vinte e um.
— E acertou.
— Quando foi o meu aniversário? — Era tão bom ter alguém que lhe desse informações sobre si mesma!
— Você me deu um presente? Nós comemoramos algo especial?
— Eu não lhe dei nenhum presente — ele respondeu, sempre mantendo os olhos na estrada.
— Oh... Porquê?
— Porque só a conheci depois do seu aniversário.
— Então, não nos conhecemos há muito tempo?
— Não.
— Conheceu meus pais?
— Não. Já estavam morando em San Marco, quando nos conhecemos.
— Eu gostaria de lembrar deles — murmurou, desapontada. — Você disse que o irmão da minha mãe se
chama Hugh O'Connor. Este também é um nome irlandês. Mamãe era da Irlanda?
— Hugh é. Provavelmente, ela também era. Ele vai responder a todas as suas perguntas. Pode ser que sua
memória volte, quando o encontrar.
— Espero que sim. Estou tão animada por me ver livre daquela missão. As freiras eram gentis e
também o dr. Gonzalez, mas eu me sentia uma prisioneira. — Inclinou-se e tocou na perna dele. — Estou
tão contente que tenha vindo me buscar, Sean.
Ele lhe segurou a mão e, gentilmente, tirou-a da perna.
— Vamos conversar sobre isso depois, quando chegarmos a San Cristobal — disse, baixinho. —
Agora, preciso me concentrar na estrada.
Kate sentiu-se recusada. Analisou o perfil dele novamente. Havia uma certa rudeza, que não tinha notado
antes. Estremeceu, pouco a vontade. Tinha casado com ele, mas não o conhecia; só sabia o que lhe havia
contado.
— Você já foi casado antes?
— Não.
— Mas, teve namoradas... antes de me conhecer.
— Algumas. — Ele sorriu.
— Eu gostaria de saber por que decidiu casar comigo — disse, suspirando e esperando a reação
dele. Viu que sorria novamente. Não, não era um sorriso, era uma expressão exasperada. Seus olhos
estavam brilhando, quando a olhou de lado.
— Olhe, por que não relaxa e tenta dormir? Esta viagem é muito aborrecida, não há nada para ver até
chegarmos às montanhas, e, até lá, já será noite.
— Você se aborreceu comigo porque fiz perguntas? Mas não posso evitar isso. Não lembro de nada
sobre você, e isso me deixa preocupada. É como estar casada com um estranho.
— Não precisa se preocupar. Agora, já está feito. Se não tivéssemos casado, Valdez a manteria
prisioneira na missão e você, talvez, nunca saísse de San Marco. Lembre-se sempre disso.
— Vou tentar.
Confortada com aquele comentário, Kate virou-se para a porta e observou a paisagem. Havia poucas
árvores e casas. A estrada passava longe das cidades, e o calor era intenso. Sentiu a cabeça pender
diversas vezes e, finalmente, recostou-se no braço de Sean e adormeceu.
Acordou por causa do silêncio. Tudo estava imóvel e sentiu-se em pânico, sem saber onde estava. Após
alguns segundos, percebeu que se encontrava deitada no banco.
Sentou-se devagar, e viu as montanhas banhadas de luar. Da parte de trás da caminhonete veio o som de
metal. Depois, parou. Passos se aproximaram sobre as pedras, A porta se abriu e surgiu Sean.
— O que está fazendo? — ela perguntou.
— Enchendo o tanque de gasolina. Não há postos até chegarmos a San Cristobal. Tive que trazer um
galão extra.
Ela estremeceu e cruzou os braços. Sean remexeu numa valise e tirou um suéter.
— Vista isso. Só tem estas roupas?
— Sim, e uma camisola que as freiras me deram e que deve estar na sacola que a irmã Mónica me
entregou.
— Humm, não é um grande enxoval! — Ele riu. — Vamos comprar roupas para você quando chegarmos
na Cidade do México. Não pode voltar para a Inglaterra nesses trapos. — Tocou seu rosto, como se
verificasse se tinha febre. — Está se sentindo melhor depois de dormir? — perguntou, com mais
gentileza,
— Sim, obrigada. — Na escuridão, ela se sentia mais à vontade, pois não via seu rosto sério e os olhos
frios. Num impulso repentino, pegou a mão dele e a levou aos lábios. — Estou tão contente por estar com
você! Não imagina como é maravilhoso a gente sentir que pertence a alguém novamente. Você... está
contente também?
Durante um momento ele não moveu a mão, mas Kate ouviu que respirava fundo. Então segurou-a pelo
queixo, levantando-lhe o rosto. O beijo foi quente e doce.
— Estou contente de você estar comigo — ele murmurou. Depois, entrou no carro e deu partida.
— Estamos longe da fronteira, Sean?
— Poucos quilómetros. Quando chegarmos, você não precisa fazer nem falar nada. Eu cuido de tudo.
Protegida pelo suéter dele e confortada por aquele beijo, Kate observou a estrada. Não sentia mais medo
nem ansiedade. Estava calma e descansada. Devia amá-lo muito, pensou, para ficar tão feliz em sua
companhia.
O posto de alfândega era todo cercado de arame farpado. Quando Sean estacionou a caminhonete e
buzinou, ninguém apareceu, apesar das luzes brilharem nas janelas. Após alguns momentos, ele deu
partida outra vez e atravessou para o México.
O posto da alfândega mexicana não parecia melhor do que o de San
Marco. O oficial saiu, relutante, do abrigo e não disse nada ao se aproximar do carro. Não pediu para ver
o passaporte de Sean e ignorou Kate completamente. Apenas fez um aceno, e ambos puderam seguir
viagem tranquilamente.
CAPÍTULO II
Quase duas horas depois, chegavam a San Cristobal, uma velha aldeia dos índios chiapas, transformada
em cidade pelos seguidores de Cortez e antigamente conhecida como Cidade Real. Era em estilo
espanhol, coro sobrados cobertos de telhas vermelhas, amontoados ao redor de uma praça central.
O hotel que Sean escolheu ficava em uma das ruas transversais à praça. Na recepção, uma mexicana
sorridente o reconheceu e lembrou que ele havia se hospedado lá, a caminho de San Marco. Mas, o
sorriso da moça sumiu quando ele preencheu as fichas de registro. Levantou os olhos para Kate, surpresa,
e disse algo em espanhol. Sean fez que sim e respondeu, também em espanhol.
— O que ela disse? — Kate perguntou, ao subirem a escada.
— Faz alguma diferença?
— Era sobre mim, não? Ela não acreditou que estamos casados? Ele abriu a porta do quarto e acendeu a
luz.
— Isso a preocupa? — perguntou, colocando a mala sobre um banquinho. — Que diferença faz que ela
não acredite que seja minha esposa?
— Bem, não quero que pense que sou alguém que você pegou na estrada. — Suspirou. — Gostaria de ter
uma roupa decente para vestir. Acha que podemos pedir para que a refeição seja servida aqui?
— Não. Eles não servem jantar no quarto. Você terá que ser corajosa e aguentar os olhares curiosos no
restaurante. Ou então, vai passar fome. A não ser que eu lhe traga um pouco de comida.
— Não, Eu aguentarei os olhares — ela disse, depressa. — Vai descer para jantar agora?
— Depois que você lavar as mãos, mocinha. As freiras não lhe ensinaram boas maneiras? — Ele riu,
brincalhão.
No restaurante, Sean pediu churrasco, batatas e ervilhas. Depois de ter vivido numa dieta só de arroz com
feijão e alguns tacos nas últimas semanas, aquilo era um banquete para Kate.
— Humm, que gostoso!
— Você está muito magrinha. De agora em diante, vai se alimentar bem — Sean disse, olhando-a, com
ar crítico.
De repente, ela ficou preocupada com a aparência outra vez. Na mesa ao lado, algumas jovens americanas
usavam roupas de seda, e várias vezes durante a refeição vira Sean observando uma das mulheres, como
se fizesse comparações ou estivesse com vergonha dela.
— O que gostaria de fazer, agora? — ele perguntou.
— O que eu gostaria de fazer? — repetiu, distraída. Perto das americanas, parecia uma bruxa. Isso era
evidente pelo ar de desprezo das moças e pelo jeito atrevido como olhavam para Sean.
— Preciso trabalhar — ele disse, jogando o guardanapo sobre a mesa e levantando-se. — Tenho que
mandar uma reportagem sobre a situação de San Marco para a sucursal da agência, aqui no México. —
Levou-a até o vestíbulo, e ia lhe entregar a chave do quarto, quando uma porta se abriu e dois americanos
barulhentos entraram. Rapidamente, Sean a segurou pelo braço e praticamente a arrastou pela escada.
Abriu a porta do quarto e empurrou Kate para dentro.
— Sugiro que fique aqui, enquanto procuro um telefone e passo a
minha reportagem — disse, brusco. —
Vejo que acenderam a lareira. Você ficará confortável.
— Mas, quanto tempo você vai demorar?
— Só Deus sabe. Quanto for preciso. Talvez uma hora ou mais.
— E o que farei?
— Tome um banho, lave o cabelo. — Olhou-a com ar crítico de novo.
— Parece que está precisando disso. — Sorriu.
— Não podíamos gastar muita água na missão — ela disse, defendendo-se. — Fazia muita
falta.
— Bem, aqui não temos problemas. Portanto, sugiro que aproveite ao máximo. — Abriu a porta. — Mas
não saia do quarto. Não quero... — Parou, olhando-a, com as sobrancelhas franzidas. — O que há, agora?
— Você não gosta de ser visto comigo, não é? — Ela acusou, com voz trémula. — Está com vergonha da
minha aparência. Percebi que me comparava com a mulher da mesa ao lado e me arrastou depressa para
cá, quando aqueles dois rapazes apareceram.
Em dois passos, Sean se aproximou dela; estava com os olhos escuros de emoção.
— Não é por isso; quero apenas que fique aqui — disse, baixinho. — Como Valdez, tenho medo que
você se perca, ficando sozinha. Vou tentar ser rápido, mas não se preocupe caso eu não voltar dentro de
uma hora. Há alguns livros na minha mala. Talvez possa se distrair com eles. — Fez uma pausa e encarou
a moça. — Não estou com vergonha de você, Kate.
— Curvou-se e beijou-a. — Não tenho esse direito.
Virou-se e saiu, depressa. Durante alguns momentos Kate não fez nada, ficou apenas sentada numa
cadeira, tentando lembrar o passado, até que sua cabeça começou a doer. Ficar fechada naquele quarto
não era muito diferente de ficar fechada em seu quarto, na missão. Ainda era uma prisioneira. Agora,
prisioneira de um homem que não conhecia. Estremeceu e apertou as têmporas. Cada vez mais, tinha a
impressão de que não conhecera Sean na Inglaterra, que nunca o havia visto antes.
Passou as mãos pelo cabelo. Estava grosso e ressecado. Ele tinha razão: precisava de um banho.
Lentamente, levantou-se e foi para o banheiro. Acendeu a luz e olhou-se no espelho. Sua magreza era
chocante, comparada com as curvas elegantes da mulher que vira no restaurante. Os ossos apareciam sob
a pele. Estava com olheiras e os olhos sem brilho.
Com um suspiro de desgosto, abriu as torneiras da banheira e foi pegar a camisola branca de algodão. Em
poucos minutos, estava mergulhada na água morna, coberta de espuma perfumada.
Ficou no banho durante um longo tempo, até sentir-se limpa. Diante do espelho, enxugou-se e olhou o
próprio corpo, com ar crítico. Ainda se sentia perturbada: não parecia uma noiva, não tinha um ar
saudável e nenhuma curva. Vestiu a camisola, e se sentiu melhor: parecia um cabide.
Não tinha escova nem pente e foi procurá-los na mala de Sean, Desembaraçou o cabelo que lhe chegava
quase até a cintura.
Voltou a mexer na mala, procurando os livros de que ele havia falado. Deteve-se em um deles,
encadernado em couro azul.- Ao pegá-lo, algo caiu no chão: a foto de uma moça de cabelos vermelho-
escuros, presos com uma fita de veludo preto. Era uma foto de Kate, tirada talvez há poucos meses,
quando ainda tinha uma aparência saudável e a pele suave como pêssego.
Sentindo as pernas trêmulas, sentou-se na beira da cama. Tinha sido bonita, e o cabelo não era tão liso.
Quando tiraram aquela fotografia, parecia feliz: estava rindo e com os olhos muito brilhantes.
Analisou demoradamente o retrato, pensando em por que não havia nada escrito atrás. Ficou contente por
ele andar sempre com sua foto e decidiu dar uma olhada no livro azul. De certa forma, sentia mais
segurança a respeito de Sean, agora.
Abriu o livro e viu que cada página tinha uma data e estava escrita à mão. Era o diário de Sean.
Ia fechar e guardar novamente na mala, mas hesitou. Será que não descobriria mais sobre si mesma, lendo
aquelas páginas? Entretanto, poderia também descobrir algum segredo dele. Relutante, procurou a última
página escrita. Datava de 15 de julho, quase há uma semana. O nome Hugh chamou sua atenção.
"Hugh está aqui na Cidade do México. Está tentando entrar em San Marco. Sua sobrinha, Kate Lawson,
filha de um geólogo que trabalhava para a Petróleo Global, parece ter sobrevivido ao desastre e está sendo
mantida em San Marco, no hospital da Missão Santa Rosa. Hugh me pediu para verificar se a garota que
está na missão é mesmo Kate. Ele me deu a sua descrição e uma foto. Se encontrá-la, tentarei tirá-la de
San Marco e trazê-la para a Cidade do México, de qualquer jeito.''
Havia algumas linhas em branco. Depois, estava rabiscado:
"Já ouvi falar de amor à primeira vista, mas será que é possível alguém se apaixonar por uma fotografia?
Será interessante descobrir se Kate vai satisfazer às expectativas desse sujeito".
Kate leu aquelas linhas várias vezes, sem entender o significado. Finalmente, deu de ombros, colocou a
foto dentro do diário e guardou-o na mala. Em seguida, pegou um dos livros e foi para a cama.
Estava deitada na escuridão, prestando atenção na música e nos risos que vinham de muito longe, quando
a porta se abriu.
— Sean?
— Pensei que estivesse dormindo — ele respondeu, acendendo a luz.
— Não consegui dormir. O que esteve fazendo? Demorou tanto!
— Eu sei. Estive conversando com Bill Jains e Ted Camden, os dois que você viu aqui no hotel. Eles
saíram de San Marco logo depois de nós. São correspondentes de jornais americanos. — Abriu a mala. —
Acho que vou tomar um banho.
Ouviu a porta do banheiro sendo fechada e suspirou fundo, puxando o lençol. Agora, sabia por que ele a
havia trazido depressa para o quarto, quando os dois entraram no vestíbulo: não queria dar explicações a
respeito da sua presença. Ela não tinha satisfeito as expectativas dele.
Abatida, virou para o outro lado. Não era noiva dele ao partir da Inglaterra e nem estavam apaixonados. O
que faria? Como desejava agora não ter lido o diário! Aquelas palavras sugeriam que não haviam nem
mesmo se conhecido, até a véspera. Como gostaria que tivessem se conhecido na Inglaterra, que tivessem
se apaixonado e planejassem mesmo casar!
Ele saiu do banheiro e ela não disse nada, nem abriu os olhos. Depois de alguns segundos, sentiu-o deitar-
se a seu lado, puxar a coberta e apagar a luz.
Deitados, um em cada extremidade da cama, ficaram em silêncio total. A música e os risos distantes
tinham parado, e o hotel estava tão silencioso que Kate leve certeza de que Sean podia ouvir as batidas de
seu coração.
— Sean — murmurou finalmente, incapaz de aguentar aquela tensão por mais tempo.
— Humm?
— Eu estou... estou como você me conheceu na Inglaterra?
Ele demorou tanto a responder, que Kate achou que tinha dormido.
— Por que está perguntando?
__Pensei que talvez tivesse perdido minha beleza e por isso você
esteja desapontado comigo. — Sua voz saiu trêmula. Novamente, ele demorou para responder. Kate
fechou os punhos, num esforço para controlar as emoções.
__Você está diferente do que eu esperava — disse por fim, cauteloso.
— Mas não estou desapontado.
Houve outro longo silêncio. O luar entrava pela janela. Kate virou-se e olhou para Sean. Sentiu uma
grande necessidade de se aproximar dele, como se o calor daquele corpo a atraísse, irresistivelmente.
Timidamente, tocou o braço dele. Sentiu o músculo ficar tenso.
— Já fizemos amor alguma vez? — murmurou, surpresa por ter coragem de perguntar aquilo.
— O que acha? — Moveu o braço, afastando-se dela.
— Eu... acho que... já. E gostaria que fizéssemos amor agora. — Deitou a cabeça no ombro dele e
sentiu que Sean respirava fundo.
— Você esteve doente e está longe de parecer curada — ele falou, baixinho. — Além disso, acho que
devemos esperar, até que sua memória volte.
— Mas pode não voltar nunca, e esta é a nossa noite de núpcias. — Ele continuou quieto e Kate teve
vontade de chorar. Escondeu o rosto no ombro dele e lamentou. — Oh, não acredito que ainda goste de
mim e queria que não tivesse sido forçado a casar comigo. Ontem, na missão, você me beijou como se me
amasse, mas não me beijou mais daquele jeito hoje, nem mesmo depois que nos casamos.
Finalmente, ele se virou para ela e segurou seu rosto.
— Está bem; vou beijá-la como se a amasse. Kate acariciou o cabelo do marido e murmurou:
— Beije-me. Oh, desperte-me e me faça sentir tudo outra vez.
Sean sussurrou alguma coisa e pressionou os lábios contra os dela, com tanta força que Kate achou que ia
perder o fôlego.
Então ele se afastou tão repentinamente como havia se aproximado e a encarou:
— Kate, tem certeza? — perguntou, rouco.
— Sim, tenho certeza. Tenho certeza! — Passou os braços no pescoço dele e puxou-o novamente. —
Mas não sei como. Por favor, mostre-me como se faz. Mostre-me como amar você. Mostre-me o que
fazer.
Ele sorriu e, gentilmente, tomou a mão dela, levando-a a acariciar seu corpo. Falando suavemente, como
se a estivesse entorpecendo com palavras, ele também começou a lhe acariciar os seios, levando-a ao
auge da paixão. Kate sentiu tudo rodar ao seu redor, suas sensações e emoções em tumulto. Não sabia
quem era e nem se importava com isso.
O som de um sino ao longe acordou-a. A princípio, achou que ainda estava na missão e teve medo.
— Não, não quero estar na missão! Não quero estar lá. Oh, Deus, não me deixe estar lá!
— Calma, Kate — disse uma voz profunda a seu lado e um braço a envolveu pela cintura, puxando-a
para um corpo quente e vibrante. — Está tudo bem, querida: você está em San Cristobal, comigo.
Ficou quieta, tentando reconhecer aquela voz. Não era seu pai. Era uma voz mais alegre e com um
sotaque diferente. E o pai não estaria ali, deitado na cama, com ela.
Arregalou os olhos e olhou ao redor. Os móveis não eram os de seu quarto, na casa dos pais, em San
Marco.
Sua memória estava voltando, como o dr. Gonzalez havia dito que aconteceria. Lembrou-se de algo a
respeito do pai e sentiu novamente o braço na cintura e a respiração quente no pescoço. Quem estava ali,
na cama, com ela?
Depressa, virou-se e olhou para ele. Não era ninguém de quem se lembrasse de ter conhecido, antes do
acidente. Era um homem de olhos cinzentos e cílios escuros. O homem que tinha ido à missão e dito ser
seu noivo. Era Sean Kierly. Tinha casado com ele e... fizera amor com ele na noite passada.
— Nós fizemos amor realmente? — murmurou, confusa, enterrando o
rosto corado no ombro dele.
— Fizemos mesmo — ele respondeu, rindo. Encarou-a e o sorriso desapareceu, sendo substituído por
um ar de preocupação.
— Qual é o problema? — perguntou, ríspido.
— Nada, nada — mentiu.
— Eu a machuquei?
— Não. Claro que não. — Acariciou o pescoço do marido e beijou-o de leve nos lábios, fechando os
olhos. Novamente sentiu que ele a abraçava, despertando-lhe a sensualidade, levando-a ao
caminho do êxtase, de tal modo que ela não se importava mais em saber se tinham estado noivos antes
ou não.
Em resposta à sua carícia, ele forçou seus lábios a se separarem, e novamente mergulharam na vertigem
da paixão.
Três horas depois, saíram do hotel e foram para San Cristobal. Na claridade da manhã, as construções em
estilo espanhol brilhavam ao sol, e alguns índios andavam pelas calçadas. Os homens usavam calças que
terminavam no meio da perna e chapéus enfeitados com fitas coloridas.
— As fitas são diferentes — Kate comentou.
— Têm um significado — Sean explicou. — Pelas cores, um índio pode identificar a que grupo o outro
pertence. Também é uma maneira de atrair as mulheres: os casados dão laços em suas fitas, enquanto que
os solteiros as deixam esvoaçar livremente ao vento.
— Você teria que amarrar suas fitas, agora que está casado — disse, em tom brincalhão.
— Acho que sim — ele respondeu, sério.
O carro saiu da cidade, em direção às montanhas. Passaram por pirâmides de pedra e pegaram a estrada
de Tuxtla, seguindo por ravinas cortadas por riachos. Desceram cada vez mais, até chegarem a uma
plantação de café e bananas, um local quente e úmido, no sopé da montanha.
Em contraste com San Cristobal, Tuxtla era uma cidade moderna e agitada. Kate estranhou ver tão poucos
índios nas ruas e Sean explicou que a maioria dos habitantes descendia de plantadores de café, alemães.
Não pararam na cidade, indo diretamente para o aeroporto. Kate ficou esperando, enquanto Sean devolvia
a caminhonete à agência de carros alugados e fazia as reservas no próximo vôo para a Cidade do México.
Lembranças dos pais, fazendo as malas e indo apressados para o Aeroporto de San Marco, invadiram sua
mente. Lembrou da terrível explosão e da fuselagem se partindo. Angustiada, olhou em volta procurando
Sean: só se sentia bem e segura ao lado dele. Era estranho,
pois agora, mais do que nunca, tinha certeza
de que jamais haviam estado noivos.
Sean voltou e sentou-se a seu lado. Kate estudou seu perfil e disse, baixinho:
— Lembrei... Lembrei dos meus pais, do acidente de avião, do tio Hugh... Oh, Deus, foi tão horrível! —
Estremeceu e cobriu o rosto com as mãos. — Lembrei de tudo, mas não lembrei de você.
Ele ficou quieto por alguns momentos; depois, abraçou-a pelos ombros.
— Temos meia hora, antes que chamem o nosso vôo — disse, gentilmente. — Vamos comer e beber
alguma coisa.
Ela o seguiu ao pequeno restaurante e sentou-se a uma mesa, enquanto Sean ia buscar sanduíches e café.
— Por que fez isso? — perguntou, quando ele se sentou. — Por que me contou todas aquelas mentiras a
respeito do tio Hugh e do nosso noivado?
— Eu lhe disse o motivo, quando nos encontramos: era o único jeito de entrar na missão para vê-la. Não
me deixariam falar com você, se não fôssemos parentes. Mesmo que você tivesse lembrado de tudo, eu
lhe pediria que continuasse fingindo. — Fez uma pausa e riu. — Mas nem por um minuto pensei que
teríamos que casar para que a deixassem partir comigo.
— Por que não me disse a verdade, depois de termos cruzado a fronteira em segurança? Por que me
deixou continuar acreditando que... — não conseguiu continuar.
— Pensei em lhe contar a verdade, Kate, mas o dr. Gonzalez tinha me avisado para não apressar as
coisas. Falou que seria melhor a sua memória voltar naturalmente. — Franziu as sobrancelhas.
— E ela voltou, mais cedo do que eu esperava. Na verdade, será que se importa em me contar quando
começou a lembrar que nunca estivemos noivos? Antes ou depois de ler o meu diário?
Surpresa, ela desviou o olhar. Os olhos dele estavam frios como gelo.
— Como soube que eu li?
— A sua foto não estava no lugar onde a deixei. Acho que pegou o diário quando estava procurando um
livro. Acertei? Não se sinta culpada. A curiosidade é normal e, no seu caso, ela precisa ser satisfeita.
Acho que
começou a lembrar antes de ler o que escrevi sobre Hugh. Por que não me contou quando cheguei, ontem
à noite?
Agora, ela sentia que estava com o rosto em fogo e não conseguia sustentar o olhar dele.
— Eu... eu... não sei.
— Tente novamente, Kate. Fui honesto com você e não sei por que não está me dizendo a verdade.
— Eu... pensei que descobriria a verdade, se... se sugerisse que fizéssemos amor. Achei que você
ia recusar... — A voz dela ficou trêmula. — Se não estivesse apaixonado por mim.
Sean respirou fundo.
— Parece que não teve muita experiência com os homens. A situação já estava ameaçadora, do ponto de
vista emocional; portanto, achei que se ficasse longe de você por uma hora ou mais, as coisas se
acalmariam, você estaria dormindo...
— Eu não teria feito aquilo se não estivéssemos casados — ela murmurou. — Eu não queria
acreditar que não tínhamos estado noivos. Queria que fosse verdade... que estivéssemos mesmo noivos,
planejando casar.
— Então, tentou realizar isso — ele terminou num tom amargurado, e ela ficou chocada.
— Bem, você não precisava concordar.
— Oh, compreendo... Então o que aconteceu foi por culpa minha. Acha que tirei vantagem da situação...
por causa da sua perda de memória. Está bem. Vou concordar com isso. Já fazia tempo que eu não dormia
com uma mulher atraente e perdi o controle. Então, o que quer que eu faça agora? Que peça desculpas por
ter cedido aos meus baixos instintos?
A rudeza dele deixou Kate descontrolada. Tentou conter as lágrimas, mas não conseguiu, e elas desceram
silenciosamente por seu rosto. Sean, abraçando-a pelos ombros, disse, carinhosamente:
— Escute, Kate, o que aconteceu entre nós ontem à noite poderia ter acontecido de qualquer modo e não
tem nada a ver com o que fingíamos ser. Não tem nada a ver com o fato de termos casado.
— Então não significou nada? — Ela soluçou.
— Não é isso. Claro que significou alguma coisa. Significou que
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■
sentimos atração um pelo outro. Gostamos um do outro e gostamos de Ficar juntos: Significou que
estávamos contentes por termos saído vivos de San Marco. Foi um tipo de comemoração da nossa fuga.
Estávamos bêbados de felicidade e nossos sentimentos fora de controle. Foi algo muito natural e muito
bonito.
Limpando o rosto com as mãos, Kate se afastou dele. Não era aquilo que queria ouvir. Ele não tinha se
apaixonado no momento em que a vira, como acontecera com ela. Mas, de qualquer modo, sentia-se
melhor. Não estava mais envergonhada.
— Agora que sua memória voltou, se está arrependida do que aconteceu, pode anular o
casamento assim que chegar à Inglaterra — ele continuou, baixinho.
— Não! Não quero isso. Ontem, fiz uma promessa e gostaria de mante-la.
— Você ainda está em estado de choque. Pode ser que não saiba o que está dizendo.
— Eu sei. Sei, sim — insistiu, com veemência. — Apenas pensa que sabe.
— Não, não! — Ela sacudiu a cabeça. — Tenho certeza. Eu o amo e...
— Não deve dizer isso — ele interrompeu, depressa. — Kate, o que está sentindo provavelmente vai
passar assim que chegar na Inglaterra.
— Não. Isso não vai acontecer. Vou amar você até... até sempre.
— Oh, Deus!
Sean passou as mãos pelos cabelos, parecendo muito perturbado. Depois de alguns momentos, levantou a
cabeça e olhou-a de frente, sério.
— O casamento nunca foi uma coisa importante para mim — ele falou, escolhendo as palavras com
cuidado. — Na verdade, acho que nunca pensei nisso por causa do meu trabalho. Não serei um bom
marido, Kate. Nunca passarei muito tempo com você. Gosto do meu trabalho e de ir aonde está a ação,
entrar no meio de problemas e tentar relatar a verdade, como eu a vejo. Você precisa entender isso, se não
quer anular o casamento. Não estou preparado para mudar o meu modo de vida. Não poderei viver com
você o tempo todo.
— Não me importo... desde que possa vê-lo de vez em quando. Eu também terei a minha carreira. Logo
que me formar, vou lecionar e
estarei muito ocupada. Agora sei que a música significa para mim tanto quanto as reportagens para você.
— Uma mulher com uma carreira — ele comentou, sorrindo. — Gosto disso. Estou contente que
queira viver a sua própria vida. — O alto-falante anunciou um número em espanhol e ele se
levantou. — É o nosso vôo. Venha.
De repente, Kate sentiu medo. Lembrou da última vez que tinha entrado num avião e ficou satisfeita que
Sean lhe segurasse a mão. Mesmo quando o jato se elevou acima das nuvens, ele continuou a segurá-la.
Depois soltou-a, recostou-se no assento e fechou os olhos.
Durante a hora seguinte, Sean dormiu. Mas Kate não conseguiu descansar, atormentada por emoções
confusas. Ficou olhando o céu e as grossas nuvens brancas, quase desejando nunca ter recuperado a
memória.
Reconheceu o tio, assim que o viu no aeroporto. Era alto e tinha cabelos avermelhados. Ele se sentiu
aliviado ao vê-la correr para seus braços. Abraçou-a demoradamente.
— Acho que trouxe a garota certa — Sean comentou, seco.
— Claro que trouxe — Hugh disse, apertando-lhe a mão. — Como conseguiu?
— Kate lhe contará tudo, quando ficarem a sós — Sean disse depressa, olhando cauteloso para o casal de
jovens que estava com Hugh. Eram secretários da Embaixada Britânica, que tinham ido dar as boas-
vindas a Kate e os parabéns pela fuga de San Marco.
— Acabamos de ouvir que o general Valdez foi assassinado e a guerra civil recomeçou — o rapaz disse.
— Estamos de carro e gostaríamos de levá-la diretamente para a embaixada, srta. Lawson.
A limusine do corpo diplomático estava parada diante do aeroporto banhado de sol. O jovem abriu a porta
e ajudou Kate a entrar. Ela procurou por Sean, mas não o viu por perto.
— Sean não veio conosco? — perguntou ao tio.
— Ele parou no aeroporto, para telefonar — Hugh disse.
— Não irei sem ele.
O tio pareceu confuso. Naquele momento, Sean apareceu e caminhou na direção deles.
— Bem, Kate, aqui devemos nos despedir — disse, estendendo a mão, não parecendo marido nem
amante, mas um completo estranho.
— Por quê? Para onde você vai?
— Volto para San Marco para fazer a cobertura da nova guerra civil.
— Mas... pode ser morto — murmurou, agarrando a mão dele, que procurou se soltar.
— E daí? Faz parte do jogo.
— Quando o verei novamente? — Como gostaria que Hugh e os outros não estivessem ali perto!
— Não sei.
— Vou escrever. Escreverá para mim?
— Não prometo nada. — Libertou a mão e encarou a moça. — É melhor que faça o que sugeri em Tuxtla
— ele disse, baixinho. — Cuide-se, Kate.
— Você também — ela murmurou, controlando a vontade louca de se atirar nos braços dele e implorar
que não partisse.
Com poucas palavras, Sean se despediu de Hugh e voltou para o aeroporto. De repente, Kate se sentiu
cega pelas lágrimas e entrou depressa na limusine. Sua aventura de San Marco tinha terminado e já
começava a se transformar numa recordação, uma sombra vaga e escura.
CAPITULO III
Era o último dia de aula, antes das férias de verão na Escola Netherfield, e o auditório estava lotado com
alunos e parentes, para a entrega anual dos prémios. Todos os premiados tinham sido apresentados, todas
as canções tinham sido cantadas pelo coral da escola e todos os discursos proferidos pelos professores.
Agora, a srta. Forbes, usando a beca que indicava que era uma doutora em Literatura, encerrava a
cerimónia com algumas palavras.
Sentada ao piano, Kate observou as janelas através das quais podia ver o céu. Aquelas janelas lembravam
as de um outro lugar. Muito longe dali, havia janelas daquele mesmo formato, só que se abriam para o sol
brilhante de um dia de julho, há dois anos. Olhou para as teclas do piano e franziu a testa. Fazia
exatamente dois anos que se casara com Sean.
— E agora, vamos terminar esta feliz ocasião com o hino da escola, srta. Lawson?
A srta. Forbes olhava para ela, esperando, e Kate procurou esquecer a
capela da Missão de Santa Rosa,
em San Marco. Tocou os primeiros acordes, todos se levantaram e a srta. Dodds (a velha, mas muito
amada diretora) começou a reger o coral.
Quinze minutos depois, tudo estava terminado. Kate fechou o piano, pegou suas partituras e saiu do
auditório. Mas não conseguia ir depressa, pois os corredores estavam lotados.
— Srta. Lawson... srta. Lawson! Virou-se e viu a lourinha que a chamava.
— Srta. Lawson, meu pai está aqui — disse Carol Wyman, quase sem fôlego. — Ele quer falar com
você.
Então, Barry estava ali de novo. Aquilo significava que teria convite para o almoço e talvez, mais tarde,
fossem dar uma volta em seu novo iate. Era um bom programa para começar as férias de verão, pensou,
sentindo-se mais alegre. O dia estava perfeito para velejar.
— Vou só guardar as partituras — disse a Carol. — Onde encontro seu pai?
— Ele está no jardim, conversando com a mãe de Felicity Paton. Felicity me convidou para ir à fazenda
dela, em Cornwall, passar as duas semanas de férias, e eles estão combinando tudo.
Depois de passar por sua sala, Kate foi ao toalete. Escovou o cabelo e tirou a beca. Olhou-se no espelho.
O tailleur marrom tinha sido uma boa compra: ele a deixava elegante e combinava muito bem com a
blusa de seda. Saiu e foi para o jardim.
Barry era alto, magro, muito bem-cuidado e confiante. Logo que a viu, despediu-se dos Paton, beijou
Carol e foi ao encontro de Kate. Apesar de seus olhos azuis demonstrarem alegria e admiração, era muito
cuidadoso para demonstrar claramente seus sentimentos e cumprimentou-a com um aperto de mão
formal.
— Carol disse que você queria falar comigo, Barry.
— Isso mesmo. Onde esteve, desde nosso último encontro?
— Bem, o trabalho aqui foi muito duro nesse fim de semestre. Não está contente por Carol ter ganho a
medalha de melhor aluna? E também pelo prêmio de piano?
— Sim, claro que estou. É a primeira vez que ela ganha alguma coisa, e acho que é a você que devo
agradecer. Tem sido boa para ela, Kate.
Você lhe dá atenção e o encorajamento que ela devia estar recebendo da mãe.
— Oh, espero que você não esteja insinuando que a sua filha ganhou o prêmio porque eu interferi. A srta.
Dodds foi quem teve a palavra final.
— Talvez sim, mas Carol não teria ensaiado, se você não a encorajasse. — Sorriu, um tanto
amargo. — Acredite: conheço minha própria filha. Ela é preguiçosa como a mãe.
— Não é uma coisa boa de se dizer — Kate protestou.
— Mas é verdade.
— Deve lembrar que ela também puxou alguma coisa de você.
— Algumas vezes, acho que não. Nada.
— Barry! Sabe o que está dizendo?
— Sim, sei. Geralmente, tenho a sensação de que Dily não é a mulher com quem casei. Nunca vi uma
pessoa mudar tanto! Mas não vim aqui hoje para falar da minha ex-esposa nem de Carol. Vim ver você,
minha linda loura. Quer ir velejar esta tarde? Podemos almoçar primeiro em Harbour Lights.
— Gostaria muito, mas primeiro tenho que ir ao apartamento, trocar de roupa.
— Não há problema. Passaremos por lá. Fica no caminho.
Entraram no Mercedes esporte azul, Barry era um homem rico e gostava de ostentar. Qualquer coisa
digna de ser comprada e de ser possuída ele comprava e possuía. Era diretor de um grupo de laboratórios
farmacêuticos que o pai havia fundado, tinha uma casa em Londres e outra no campo, perto de
Netherfield — onde treinava cavalos —, e acabara de comprar um novo iate.
— Carol não vai conosco? — Kate perguntou.
— Não. Ela está indo para Cornwall com os Paton, passar duas semanas — Barry disse, dirigindo
o carro para a saída principal. — Acha que em duas semanas teremos tempo de nos conhecer melhor? Ou
vai viajar nas férias?
— Tenho planos de ir à Irlanda no mês que vem, com alguns amigos que estão interessados em música
tradicional.
— Parece muito interessante. Posso, então, convidá-la para sair nas próximas duas semanas?
— Vai ler que esperar a sua vez! — ela respondeu, rindo.
— Isso significa que tenho competidores?
— Acho que não pode considerar uma velha avó que mora em Lake District como sua competidora, mas
prometi a meus pais ir visitá-la fogo.
— Não estava pensando nesse tipo de competição — ele respondeu, sorrindo. — Quando irá para o
Norte? Talvez eu possa levá-la de carro. Tenho parentes que moram perto de Ambleside.
— Agora, você está me apressando! Vamos viver um dia de cada vez, por favor, Barry.
— Está bem. Acho que isso é melhor do que nada.
O apartamento de Kate era no segundo andar de um edifício antigo que dava para um parque chamado
The Common. O local tinha sido comprado pela escola para alugar aos professores. Subiu, apressada. Não
podia deixar de se sentir orgulhosa com o interesse de Barry, Tinham se encontrado pela primeira vez em
dezembro, num concerto da escola em que Carol tocara piano. Desde então, ele sempre procurava Kate,
quando ia visitar a filha ou comparecia a alguma reunião de pais.
Agora, queria vê-la enquanto Carol estivesse ausente. Bem, podia fazer uma tentativa. Ele era atraente e
sabia como satisfazer uma mulher, apesar da diferença de idade entre ambos, que chegava a quase vinte
anos.
Trocou de roupa depressa, vestindo uma calça comprida azul, um suéter branco e uma jaqueta marinho.
Pegou uma sacola de lona e jogou outras roupas dentro, para o caso de se molhar enquanto velejavam.
Dez minutos depois entravam no confortável bar de Harbour Lights, que já fora um esconderijo de piratas
e tinha vista para todo o porto de Westcourt. Sentaram-se a um canto e comeram os deliciosos sanduíches
de caranguejo com cerveja. Alguns homens, também proprietários de iates, vieram cumprimentar Barry.
A todos, ele a apresentou só como Kate.
— Espero que não se importe — disse, ao saírem —, mas não há necessidade de espalhar para todo
mundo quem você é. Sou bastante conhecido por aqui e as pessoas falariam de nós. Gostaria de manter a
nossa amizade o mais secreta possível, pois você leciona numa escola onde tenho interesses financeiros.
Entende?
— Sim, entendo. Pelo menos, acho que sim. Oh, que barco lindo!
O novo iate era um modelo escandinavo e estava pintado de azul, que parecia ser a cor favorita de Barry.
Era grande, espaçoso, com quatro camarotes e um banheiro completamente equipado, até com chuveiro.
Saíram na maré alta e logo estavam na entrada do pequeno porto. Barry içou as velas e desligou o motor.
— Pensei em irmos a Yarmouth, na ilha — ele disse.
Kate olhou as águas prateadas e a ilha de Wight, que aparecia à distância.
— Parece muito longe, para um passeio à tarde — disse, cautelosa.
— Podemos passar a noite lá e voltar amanhã — ele sugeriu.
Ela o encarou. Será que a estava testando? Estaria tentando descobrir se era livre o suficiente para passar
a noite a bordo, sozinha com ele? Possivelmente... dormiriam juntos...
— Não, Barry — disse com firmeza. — Vamos voltar para Westcourt e esta noite vou dormir sozinha em
minha própria cama.
Uma sombra de irritação e impaciência passou pelo rosto dele, mas, no momento seguinte, Barry tinha se
controlado e já sorria.
— Sabe? Eu queria que dissesse isso. Esperava que fosse mesmo o que pensei que era: uma garota
direita.
Kate desviou os olhos depressa e observou o mar. Talvez não devesse ter concordado em vir. Se fosse
mesmo o que ele esperava, uma garota direita, não teria aceito o convite. Afinal, era uma mulher casada.
Talvez devesse lhe contar tudo agora. Sobre Sean. Olhou-o de lado. Parecia descansado e feliz. Não, não
podia lhe dizer nada agora; não, quando estava se divertindo. Mais tarde, talvez, quando ele a convidasse
para sair novamente. Então, contaria.
A brisa estava fraca e o iate ficou ã mercê da correnteza forte. Tomaram cerveja e comeram amendoins,
conversaram e esperaram que o vento viesse. Mas não veio. A maré estava começando a baixar quando
ligaram o motor e voltaram ao porto.
— Vamos voltar amanhã, se o tempo estiver bom? — Barry perguntou, ao desembarcarem:
Agora era hora de dizer, Kate pensou.
— Eu gostaria... — ela começou. — Mas...
— Otimo — ele terminou, depressa. — Passo cedo para pegá-la. Que tal às nove, mais ou menos?
— Mas tenho um monte de coisas para fazer, amanhã. É sábado, dia de compras, de arrumar a casa e
lavar roupa. Não posso vir.
— Então, domingo? — Barry insistiu. — E, em vez de velejar, vamos de carro até Rosedene, almoçar
com minha mãe. Você vai adorar a velha casa. Há uma sala de música perfeita para alguém como você,
com um piano de cauda e a harpa que minha avó costumava tocar.
— Acha que deve me levar para conhecer a sua mãe?
— Claro que sim. Quero que ela a conheça, porque quero casar com você. Não ia fazer o pedido assim,
tão cedo, mas parece que tenho que explicar que minhas intenções são sérias. Assim você me levará a
sério, Kate. Quer casar comigo?
Será que o chão estava se movendo, ou ela estava tonta de surpresa?
Sentou-se e olhou-o.
— Não sei — murmurou.
— Por que não? — Sentou-se ao lado dela e lhe segurou as mãos. — Acha que sou muito velho
para você? — perguntou, num tom
amargurado.
— Não, não é isso. A diferença de idades não é importante, quando duas pessoas se gostam e se divertem
juntas. É que não sei se posso casar com você... porque... bem, a verdade, Barry, é que casei com alguém
há
dois anos...
— Casada? Não acredito! Não acredito, mesmo! Por que não me
contou antes?
— Nunca tocamos no assunto casamento antes — ela respondeu calmamente. — Eu não tinha
idéia de que você estava interessado em
mim... assim.
— Oh, Deus! — Barry levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, no ancoradouro. Depois
parou e ficou observando o pôr-do-sol. De repente, virou-se para encará-la: — Onde está o seu marido?
— No momento, não sei — respondeu, com os olhos baixos. — Não moramos juntos porque ele é
repórter e trabalha numa agência de notícias internacional. Está sempre viajando. Não o vejo desde que
nos casamos.
— Então, não é um grande casamento — Barry disse aliviado, e voltou a sentar-se ao lado dela.
— Não, nunca foi. Depois de alguns minutos de silêncio, ele perguntou:
— Por que não acaba com isso? Será fácil, se não moraram juntos durante todo esse tempo. Francamente,
Kate, não a entendo. Por que casou com ele, se sabia que teriam que viver separados deste jeito?
— Acho que terei que contar tudo a você, desde o começo. — Suspirou. — E uma coisa que só o tio
Hugh sabe.
— Não quero forçar confidências, mas agradeceria se me contasse. Gosto muito de você, Kate, e acho
que também gosta de mim e confia em mim.
Não foi fácil contar a ele. A história do que tinha acontecido em San Marco parecia agora incoerente.
Quando terminou, Kate esperou, em silêncio.
— Você fez o que ele sugeriu? Foi a um advogado e pediu a opinião legal sobre esse casamento? —
Barry disse, finalmente.
— Não.
— Por quê?
Kate não respondeu logo. Ficou olhando o mar e o sol que brilhava na torre de uma velha igreja ali perto.
— Acho que esperava que tudo desse certo. Que ficássemos juntos outra vez...
— Só que não se encontraram mais.
— Isso mesmo.
— Ele nunca veio vê-la na Inglaterra?
— Não.
— Isso deve dar a você uma idéia de como ele se sente. Mostra que não quer estar casado com você, não
acha? Esteve se iludindo, ficou presa a um sonho de romance, desejando que se tornasse realidade.
Estou surpreso que uma mulher inteligente como você se deixe dominar pela fantasia a esse ponto. É hora
de acordar, Kate, e encarar a realidade. Parece que esse seu casamento, legalmente, já não existe. Afinal,
tudo aconteceu num país que não existe mais e cujas leis, provavelmente, não são reconhecidas aqui.
— Mas houve uma cerimônia religiosa. Fizemos o juramento diante de um padre.
— E isso significou alguma coisa para você?
— Sim — murmurou.
— Entretanto, obviamente não significou nada para Kierly. Senão ele
já teria vindo vê-la.
— Ele vinha me ver no Natal passado. Mandou um postal da Irlanda. Mas não veio e não tive mais
notícias, desde então.
— Escreveu para ele?
— Só uma vez, depois que voltei do México. Mandei a carta para a agência de notícias onde trabalha,
mas não recebi resposta e não escrevi de novo. — Respirou fundo e continuou: — Já acordei e encarei a
realidade há algum tempo. Não estou mais presa a este sonho. Sean não significa nada para mim, agora.
— Então, posso fazer uma sugestão? Posso pedir que consulte um advogado e saiba o que significou
aquela cerimônia religiosa? Se quiser, posso levá-la até Paul Holgate, que tratou do meu divórcio. É
muito inteligente e competente.
— Não sei...
— Eu sei. Quero casar com você, Kate. E quero que esteja livre de todo o seu passado. — Barry
levantou-se. — Vamos conversar sobre isso domingo. O convite para ir a Rosedene ainda está de pé.
Você vai?
Ele a levou de volta ao apartamento e combinaram sair no domingo, às onze da manhã. Kate não teve
uma noite tranquila. A proposta de casamento tinha lhe trazido de volta lembranças que acreditava mortas
para sempre.
Deitada, lembrou do dia em que Sean chegara à Missão de Santa Rosa, de como se sentira feliz quando
ele disse que era seu noivo, como aceitara aquilo sem dúvidas. Lembrou da cerimônia de casamento e da
viagem através das montanhas, para o México. Um pouco arrependida, pensou na noite no hotel em San
Cristobal, a ternura de Sean e sua paixão.
Incapaz de continuar pensando, saiu da cama e foi para a cozinha fazer um chá. Sentou-se e procurou ler,
esperando se interessar pelo livro. Mas não adiantou nada. Continuava pensando em Sean e no que ele lhe
havia dito no Aeroporto de Tuxtla.
Como tinha sido ingênua em confessar que o amava, daquele jeito, num local público, deixando-o
embaraçado! Como era tola e romântica! Agora, olhando o passado, via que Sean havia-feito o melhor
que podia para desencorajá-la, sugerindo que o que sentia não passava de uma
emoção passageira,
consequência apenas da situação dramática que haviam atravessado juntos.
Devia ter escutado, em vez de tentar transformar o sonho em realidade. Devia ter anulado o casamento
logo que chegara à Inglaterra. O amor que sentia por ele havia morrido, depois de não ter vindo vê-la nem
responder à sua carta.
Do México, Kate tinha voltado para Londres com seu tio Hugh, e ficara morando com ele, a esposa
Geraldine e um casal de primos na velha casa que dava para Hampstead Heath. Voltara à faculdade e
mergulhara nos estudos de música. Entretanto, havia momentos em que se sentia desconsolada e muito
solitária, com uma enorme saudade dos pais. Porém, o tempo cura todas as mágoas.
Após a formatura, fez uma viagem pela Europa, assistindo a muitos festivais de música. Ao voltar
conseguira emprego na Escola Netherfield, mudando para o apartamento no fim de outubro. Logo depois,
Hugh, a esposa e os filhos foram morar em Dublin.
O cartão postal de Sean tinha chegado quando Kate menos esperava. Mostrava um castelo do oeste da
Irlanda e a mensagem era curta:
"Espero ir à Inglaterra no Natal. Telefono para você, Sean".
Kate suspirou, guardando o livro que tentava ler. Como tinha ficado animada com o postal! Despertara
lembranças que pensava estarem esquecidas para sempre. E ilusões. Só bem mais tarde percebeu que ele
não havia colocado endereço no postal e não podia lhe dizer que não morava mais em Hampstead. Em
pânico, escreveu para os novos moradores do apartamento do tio, pedindo que dessem o endereço dela a
Sean, assim que ele telefonasse. Recebera uma carta muito gentil, garantindo que dariam a informação e
começara a se preparar para a visita dele, enfeitando o apartamento com uma árvore de Natal e recusando
convites de todos os parentes que a chamavam para a ceia. Mas Sean não apareceu, e nunca mais teve
notícias dele.
Seu orgulho ficou ferido. Sentiu-se desapontada e deprimida. Novamente decidiu-se a esquecê-lo e
passou a fingir, para si mesma, que nunca haviam casado. Até aquele dia, pensava ter conseguido
esquecer o que acontecera em San Marco e no México.
A proposta de Barry a surpreendera muito. Não havia percebido que a amizade dos dois evoluíra tão
depressa. Muitas coisas nele a atraíam. Era
calmo e culto, gostava de música, tinha sido muito ferido no
primeiro casamento e, por isso, era cauteloso em relação às mulheres. Não queria se magoar novamente.
Nem ela. Era provável que formassem um casal satisfatório, um não esperando demais do outro.
Satisfatório! Kate fez uma careta. Não havia nada de romântico naquilo. Conhecia muitos casais
satisfatórios, que pareciam completamente vazios. Será que o romance não passava de um sonho? Uma
flor que logo murchava?
No dia seguinte descansou bastante e foi dormir cedo. Quando Barry passou para pegá-la, no domingo,
sentia-se ansiosa para conhecer Rosedene.
Tanto a casa quanto a sra. Wyman a deixaram muito contente. A mãe de Barry era uma mulher bonita,
rosada e de cabelos grisalhos, que recebeu Kate alegremente, mas sem lhe dar atenção exagerada. Havia
outros convidados para o almoço, que foi servido na imensa sala que dava para um terraço de pedra onde
dois pavões passeavam, majestosos.
Só quando estava lhe mostrando os estábulos, Barry tocou novamente no assunto do casamento.
— Teve tempo de pensar na minha proposta? O que decidiu?
— Gostaria de visitar o seu advogado.
— Amanhã?
— Assim, tão depressa?
— Visitá-lo não significa nada — ele insistiu. — Apenas poderá esclarecer suas dúvidas, facilitando
uma decisão adequada. Tem que descobrir se esse casamento é válido ou não, Kate. Não pode fazer
nada, antes disso. £ acho que, quanto mais cedo resolver, melhor para a sua paz de espírito... e para a
minha, também.
— Acho que está certo.
— Então, posso levá-la a Londres amanhã, para vermos Paul?
— Sim.
Paul Holgate era um homem alto, de rosto fino e olhos cinzentos e frios, usava o cabelo castanho
penteado de lado, procurando disfarçar uma careca rosada. Leu a certidão de casamento que o general
Valdez e a madre superiora tinham assinado como testemunhas há dois anos e
começou a fazer
perguntas. Logo descobriu tudo o que tinha acontecido cm San Marco.
— Foi uma cerimônia válida — anunciou —, mas, considerando as circunstâncias, não terá problemas
em conseguir o divórcio. Vocês poderiam até ignorar isso e casar logo, pois não há possibilidade
desse Kierly aparecer e reclamar seus direitos de marido. Mas não aconselho isso, pois Kate poderia sei
acusada de bigamia. Tem alguma idéia de onde Kierly. está?
— Não.
— Ele precisa saber? — Barry perguntou. — Não podemos resolver tudo sem ele?
— Eu gostaria de procurá-lo e pedir seu consentimento para o divórcio — Paul disse, sério. — Assim,
tudo seria resolvido muito mais depressa. Mas você, meu amigo, precisa ficar calmo até que tudo esteja
terminado. Na verdade, sugiro que saia deste escritório agora, enquanto converso sozinho com a srta.
Lawson. E, por favor, encontrem-se o mínimo possível, até o divórcio.
Barry saiu, relutante, depois de combinar almoçar com Kate. Paul fechou a porta e começou a fazer mais
perguntas.
— Há algum jeito de descobrirmos onde está Kierly?
— A agência de notícias deve saber.
Ele pegou o telefone e falou com a secretária, dando instruções e o número da agência em Londres.
Segundos depois, o telefone tocou e Paul atendeu. A conversa não demorou muito.
— Não sabem onde ele está — disse, ao desligar o telefone. — Não trabalha mais lá há seis meses.
Portanto, por onde começamos agora? Há alguém... algum parente que possa nos dar uma pista?
— Vou perguntar ao tio Hugh. Ele conhecia Sean, antes de toda essa história de San Marco. Posso
escrever e perguntar.
— Não pode telefonar?
— Não, ele não tem telefone. É um escritor e não gosta de ser perturbado.
— Então, parece que teremos que ficar nisso, por hoje. Escreva logo e depois me conte as informações
que conseguir.
— Sim. — Kate levantou-se. — Mas, se encontrarmos Sean, o que acontecerá depois?
— Depende do que você decidir. Se quiser mesmo o divórcio, eu cuidarei de toda a papelada.
Naquela noite mesmo, Kate escreveu a Hugh. Não mencionou Barry nem o divórcio. Contou que
pretendia ir à Irlanda em agosto, para o Festival de Musica Tradicional Irlandesa, em Ennis e County
Clare, e disse que iria visitá-lo em Dublin, antes de voltar. Terminou a carta, perguntando se tinha tido
notícias de Sean ultimamente.
No dia seguinte, passou pelo correio, antes de ir para Lake District, visitar a avó. Enquanto esteve lá,
Barry foi vê-la e passaram alguns dias agradáveis juntos, passeando pelas montanhas. Depois que ele
voltou, ela ainda ficou lá uma semana.
Esperava encontrar carta de Hugh, ao chegar em casa, mas não havia nada. A única carta importante era
de Netherfield, informando que a srta. Dodds, diretora do departamento de música, estava doente e não
voltaria às aulas em setembro. Portanto, seu cargo estava vago, e esperavam que Kate a substituísse. Era
esperada para uma entrevista com a diretoria da escola no dia primeiro de setembro, às 10 horas da
manhã.
Ainda desejando uma carta de Hugh, antes de partir para a Irlanda, Kate começou a preparar a viagem.
Ela e os colegas da Faculdade de Música voariam até Dublin, onde alugariam dois carros, e conheceriam
o sul do país, a caminho de Ennis.
Para seu alívio, a carta de Hugh chegou um dia antes da, partida. Vinha com um endereço estranho, do
oeste da Irlanda. Como sempre, a mensagem era de poucas palavras.
"Estou aqui, numa pescaria. Ficarei encantado em vê-la. Depois do Festival de Ennis, venha para cá.
Pegue a estrada costeira para a cidade de Kilburke e pergunte pela Casa Moyvalla. Espero ter a resposta
para a sua pergunta final, quando chegar aqui. Hugh.
Aquilo significava que saberia do paradeiro de Sean, quando encontrasse o tio. Escreveu imediatamente à
Casa Moyvalla, dizendo a data em que esperava chegar.
Mais tarde, durante o jantar em Harbour Lights, contou as novidades a Barry.
— Então, está progredindo lentamente — ele disse, pensativo. — Não gostei de Paul insistir tanto em
entrar em contato com Kierly antes de
fazer qualquer coisa. Suponhamos que o encontre e ele recuse o
divórcio. O que fará?
Kate ficou olhando para o cálice de vinho que tinha ã sua frente. Jamais lhe ocorrera que Sean recusasse o
divórcio. Afinal, tinha sido ele quem sugerira a separação.
— Não conheço Sean muito bem, mas sei que não gosta de estar casado comigo. Tenho certeza de que
não recusará.
— Se souber onde ele está, irá vê-lo?
— Qual o problema? Não pode estar com ciúme.
— Estou. E não respondeu à minha pergunta.
— Não vou vê-lo. Acho que está no exterior, cobrindo alguma guerra ou num país em crise. Ele gosta de
estar sempre em ação — disse secamente. — O divórcio pode ser aceitado sem que nos encontremos.
— Graças a Deus. Tem mesmo que ir ã Irlanda? Não pode passar o resto das férias aqui? Pensei em
velejarmos até a Bretanha.
— Parece delicioso, mas a viagem à Irlanda já estava planejada há muito tempo e estou ansiosa para
assistir ao festival. Está com medo de que eu desapareça? Que as fadas irlandesas sumam comigo? Oh
não se preocupe. Barry. Eu voltarei. Tenho que estar aqui no dia primeiro de setembro.
— Por quê? — Sentiu que ele fazia a pergunta num tom possessivo que nunca tinha usado antes. Agora,
estava lhe falando como se fosse propriedade sua, e Kate ficou ressentida.
— Tenho uma entrevista — respondeu friamente.
— Que entrevista?
— Para substituir a srta. Dodds, a diretora do departamento de música de Netherfield, que está doente.
— Claro que não pensa em ficar no lugar dela...
— Penso, sim — Kate o interrompeu tranquilamente.
— Mas, você... é muito jovem para um cargo como esse. Ainda não tem experiência suficiente.
— A srta. Forbes não pensa assim. Na verdade, ela mesma sugeriu a substituição. Acho que vou
gostar. Estou muito entusiasmada com a perspectiva.
— Estou vendo. Está mais animada com isso do que com a idéia de casar comigo — ele reclamou. —
Não pensei que fosse tão ambiciosa.
— Não sou, mas gosto de trabalhar em Netherfield e sei que sou capaz de organizar o departamento de
música. Tenho todas as qualificações exigidas e me dou muito bem com as alunas, assim como com
as
professoras.
— Mas o trabalho vai exigir que se dedique muito mais. Não terá
tantas horas livres como agora.
— Pode ser, mas não me importo. Quanto mais ocupada estou, melhor
me sinto.
— Não poderei vê-la muitas vezes — Barry reclamou.
— Não está se preocupando antes do tempo? Nem sabemos ainda se
serei aceita.
— É verdade. Ainda não sabemos.
— Vamos agora — Kate levantou-se. — Quero dormir cedo, porque tenho que levantar de madrugada
para pegar o avião para Dublin.
— Claro, naturalmente. — Ele se levantou também.
Levou-a de volta ao apartamento e, quando Kate ia saltar do carro, segurou-a pelo braço. Virou-se,
surpresa, e ele se inclinou para beijá-la nos lábios. Era a primeira vez que se beijavam. Mas não sentiu
nenhuma chama queimá-la por dentro, como acontecia com Sean.
Subiu para o apartamento, sabendo que apenas gostava de Barry; não havia risco de se apaixonar por ele.
CAPITULO IV
A chuva formava uma espécie de cortina cinzenta, cobrindo os campos e as cidades, e Kate ficou
imaginando por que o tio viera para aquele lugar tão remoto, na costa oeste da Irlanda.
Entretanto, apesar da chuva, tinha se divertido no Festival de Música de Ennis. Os corais e os cantores
folclóricos locais eram de ótima qualidade. E havia também muitos pubs, onde grupos tocavam guitarra,
acordeão e gaita. Kate tinha adorado a viagem com os amigos, pelo sul, em Dublin e nas montanhas de
Wícklow, onde visitaram as fábricas de vidro e cerâmica.
De Cork, tinham ido para Killarney, passeando pelos lagos e visitando a península de Dingle e, dali, para
o festival.
Kilburke era apenas um amontoado de bangalôs e um pub. Lá, informaram que a Casa Moyvalla ficava a
poucos quilómetros, mas por uma estrada difícil.
Difícil era elogio. Na verdade, a estrada mais parecia uma
montanha-russa, e Kate levou
mais de duas horas para chegar diante da porteira da propriedade. Entrou, imaginando que logo Hugh
viria lhe dar as boas-vindas e que seria recebida com chá, bolos e biscoitos amanteigados. Haveria fogo
na lareira e lhe dariam um quarto com uma
cama confortável.
O caminho fez outra curva e terminou num pátio calçado com pedras. A casa era comprida e baixa, de
paredes brancas e telhado de sapé. A porta estava fechada e não havia luzes. Girou a maçaneta e, aliviada,
viu que não estava trancada.
O corredor era baixo, e um relógio antigo, a um canto, bateu as horas. Hesitou, mas estava ensopada e
decidiu pendurar sua capa de chuva, antes que molhasse todo o chão. Eram seis horas.
— Há alguém em casa? — Sua voz ecoou pelo hall. — Hugh, cheguei! Vim de Londres, só para ver
você!
Só o vento lhe respondeu.
Onde, diabos, Hugh tinha se metido num dia como aquele? Estaria pescando? Impossível. Entrou na
primeira porta que encontrou. Era um estúdio decorado com grandes poltronas, um sofá e uma mesa
coberta de papéis. Havia várias estantes cheias de livros e revistas.
— Hugh, onde está você? — ela chamou, indo para a cozinha, muito limpa e arrumada, como se
ninguém a estivesse usando.
Estremeceu. Só faltava agora pegar uma gripe. Voltou à sala de visitas.
A lareira era de pedra e muito grande. Tudo ali estava arrumadinho e
havia até uma lata de tabaco ao lado do cachimbo. Ao ver aquilo, Kate
sentiu-se menos preocupada. Significava que Hugh ainda morava na casa
e não podia estar longe.
Foi até o carro buscar a mala. Na cozinha, preparou um chá e comeu pão com manteiga. Durante todo o
tempo, só desejava que a porta dos fundos se abrisse e o tio entrasse com sua vara de pescar. Mas isso não
aconteceu, e ela resolveu acender a lareira da sala e descansar um pouco, enquanto começava a admitir
para si mesma que estava se sentindo
ansiosa.
Depois escolheu um livro, enrolou-se num cobertor e foi para o sofá. Dentro de pouco tempo, estava
cochilando. Largou o livro e decidiu
dormir ali mesmo.
Acordou com algo molhado lhe tocando o rosto e ouviu uma voz de
homem, seguida por um ganido.
Abriu os olhos e deu com um cachorro sentado ao seu lado, no sofá.
Lembrou-se de onde estava e sentou-se depressa. Ele estava parado diante dela, vestindo um suéter típico
da Irlanda, calça de flanela e botas. Seus olhos cinzentos pareciam frios como os lagos das montanhas.
— Olá, Kate — Sean disse, sentando-se e pegando um copo de uísque. Ela levou as mãos aos cabelos,
sentindo um nó na garganta: devia estar
com uma aparência horrível.
— Há quanto tempo você está aqui? — perguntou, tentando aparentar calma.
— Seis semanas.
— Não! Quero dizer... agora? — Percebeu que só uma lâmpada da sala tinha ficado acesa.
— Uns quinze minutos. Arrumei o fogo e preparei um drinque. Aceita alguma coisa? Um uísque, sherry,
brandy...
—
Aceito um brandy. — Precisava de algo forte para se recuperar do choque.
Ele se levantou, pegou um copo e serviu. Depois voltou à poltrona. Kate notou que mancava ligeiramente.
Estendeu-lhe o copo e brindou.
— Slainte — disse em galês.
Ela tomou o brandy de um só gole e o observou. Agora, deveria estar com trinta e três anos, nove anos
mais velho do que ela. Não era muito alto, tinha ombros largos e um rosto marcante. Seu corpo parecia
feito para aguentar a vida dura.
— Onde está Hugh?
— Hugh? — ele repetiu, confuso. — Acho que está em Dublin.
— Então, por que ele me convidou para vir aqui?
— Ele a convidou para vir aqui? Disse que estaria aqui?
— Não. Isso está muito confuso. Quando lhe escrevi para dizer que vinha ao festival de música em
Ennis, perguntei se tinha notícias suas. Na resposta, ele me convidou a vir aqui. Não mencionou você.
Sean encarou-a durante um momento, em silêncio.
— Parece que ele está cansado de lidar com personagens imaginárias e agora decidiu manipular
pessoas reais. Não me contou que tinha convidado você. Vai me falar por que perguntou a Hugh
sobre mim?
Perturbada por estar sozinha com ele naquela casa, Kate pediu mais brandy e quase engasgou.
— Para... poder entrar em contato com você. Pedi à agência de notícias o seu endereço, mas informaram
que não trabalhava mais lá há seis meses. O que aconteceu?
— Tirei uma licença.
Ficaram em silêncio mais algum tempo, ouvindo apenas o fogo
crepitando na lareira.
— Faz tempo que você está na Irlanda?
— Sim. Vim da Bolívia para cá em dezembro passado. Meu avô tinha morrido e sou seu único herdeiro.
Precisava resolver os assuntos da família. Mandei-lhe um postal. Você recebeu?
— Recebi. Por que não foi me ver no Natal?
— Não pude.
— Então, por que não me avisou? — insistiu, nervosa, sentindo que o
brandy
começava a fazer efeito.
— Foi impossível. Já lhe disse que tive que cuidar dos negócios do meu avô. E, quando estive em
Dublin, uma velha amiga me convidou para uma festa.
— Amiga?
— Sim, amiga. Depois da festa, eu a levei para casa e as coisas saíram do controle, não me lembro muito
bem... Qual é o problema?
Kate levantou-se, furiosa, sentindo o fogo do ciúme.
— Não se incomode em lembrar. Já adivinho o que aconteceu. — Caminhou em direção ao corredor.
— Onde vai? — Sean levantou-se e saiu mancando atrás dela.
— Vou embora!
— Por quê?
— Eu... não posso ficar aqui sozinha com você. Não sei por que Hugh me convidou para vir, mas, como
ele não está, vou embora.
— Também não sei por que ele a convidou — Sean respondeu. — Se tivesse me avisado, teria saído
antes de você chegar.
— Oh... está bem! — Kate correu para o corredor, agarrou a capa de chuva, fechou a mala e saiu,
batendo a porta. A chuva a atingiu com força, no rosto. Entrou no carro, dando partida.
O motor não reagiu. Tentou outras vezes, e nada aconteceu. Tentou
ligar os faróis e não conseguiu. A bateria tinha acabado. Droga!, pensou. O que faria agora, com aquela
chuva? Viu Sean se aproximar e, de repente, escorregar e cair Kate correu para ele.
— O que aconteceu? Você se machucou? — gritou, curvando-se sobre ele.
A resposta foi um gemido de dor. Tentou se levantar, mas, quando ela quis ajudar, ele a afastou.
— O que há de errado com o carro?
— A bateria acabou. Não há um jeito de recarregá-la?
— Não. Não tenho carro aqui.
Ficaram se encarando, enquanto a chuva escorria em seus rostos. Kate desviou os olhos.
— Não sei o que fazer — murmurou.
— Não tem muita escolha — ele disse friamente. — Terá que engolir o seu orgulho e passar a noite aqui.
Ou então, pode ir a pé até o vilarejo e ficar em um pub. — Virou-se e saiu mancando para a casa,
deixando a porta aberta, como se esperasse que ela o seguisse.
Kate ficou onde estava, na chuva, trémula. Estava arrependida do impulso que a fizera sair do calor e
aconchego daquela casa. Mas, como sempre, era difícil voltar atrás. Ao sair correndo, tinha fugido de algo
que não queria encarar: da conversa que devia ter com Sean, a respeito do divórcio. Espirrou duas vezes.
— Kate! — Sean chamou da porta. — Não seja boba. Não pode ir a pé até o vilarejo, nessa tempestade.
Venha para dentro. Pode pegar uma pneumonia.
— Como se você se importasse! — ela gritou.
— Pelo amor de Deus! — Desceu a escada e se aproximou, abraçando-a, antes que ela
pudesse evitar. Kate ficou tensa e curvou a cabeça para trás, para encará-lo. Sentia que sua raiva crescia.
— O que está fazendo? — perguntou, em tom de desafio.
— Isto... — Seus lábios se aproximaram dos dela. Kate tentou se libertar, mas suas bocas se
encontraram. A dele, vingativa e áspera; a dela, suave e quase submissa. Não houve piedade naquele
beijo, nenhuma afeição nem calor. Apenas exigência. Era um insulto e ela ficou chocada com aquela
selvageria. Procurou empurrá-lo para longe.
— Solte-me — pediu, empurrando-o com força, mas sem conseguir
nada. Sem responder, Sean levantou-
a nos braços com facilidade e levou-a para casa. Colocou-a no chão, no corredor, e Kate se afastou, com
os olhos brilhantes de ódio.
— Vá trocar de roupa — ele disse por entre os dentes.
— Não! Não vou ficar aqui e...
— Vai fazer o que mandei — ele interrompeu. — Quer que a carregue e a jogue na banheira?
— Não. — Kate passou a mão na boca. — Você não tem nenhum direito de ficar me dando ordens
assim. Não tem nenhum direito de me beijar daquele jeito e... — O espirro pareceu estourar sua cabeça, e
os olhos ficaram tímidos.
— O quarto fica perto da escada — Sean disse. — Encha a banheira e entre. Vou buscar sua mala.
— Mas eu não quero... — ela começou, e espirrou de novo. Ele a ignorou e foi pegar a mata.
Ainda sentia vontade de desafiá-lo, mas estava começando a tremer e achou atraente a idéia de um banho
quente. Sem perceber o que fazia, começou a subir a escada.
O banheiro era imenso e antigo, com uma banheira de porcelana, e Kate achou que ali talvez tivesse uma
bomba para tirar água do poço. Mas, quando abriu a torneira, jorrou água quente.
Ainda estava no banho quando a porta se abriu e Sean entrou. Colocou a camisola e o robe sobre uma
cadeira e olhou-a. Odiando-o por causa de tamanha insolência, ela o encarou, imóvel, durante um
momento.
— Quando tiver terminado, vá para a cama, no quarto ao lado. Já liguei o cobertor elétrico e estará
quente quando você chegar — ele disse friamente, pegando as roupas que ela havia jogado no chão. —
Vou pendurar isso na cozinha.
— Obrigada — murmurou, mas ele já tinha saído.
O quarto era decorado com muito bom gosto e cores suaves: um tapete
cor de areia, colcha e cortinas
alaranjadas. Foi para a cama e se acomodou debaixo do cobertor elétrico. Sentia a cabeça pesada e a
garganta doendo. Tinha que admitir que a cama era o local mais indicado, para ela, naquele momento.
Estava quase dormindo quando ouviu a maçaneta da porta girar. Ficou
logo alerta e viu Sean entrar,
devagar. Trazia uma caneca fumegante e colocou-a na mesinha de cabeceira.
— Beba isso. Vai ajudar. — Seu suéter ainda estava úmido de chuva, mas tinha escovado o cabelo, e
agora Kate via que havia alguns fios grisalhos em suas têmporas.
— O que é isso? — perguntou, olhando a caneca, com ar de suspeita.
— Uísque, limão e mel. Nada que lhe faça mal. Beba enquanto está quente.
Ela não se mexeu, esperando que ele fosse embora, mas Sean continuou ali, de pé.
— Não precisava ter preparado essa bebida para mim — disse, rouca.
— Sei disso. Mas já preparei e faria o mesmo por qualquer pessoa que estivesse com gripe. Vamos,
mostre sua gratidão bebendo tudo.
Ela pegou a caneca e o líquido lhe queimou a garganta.
— Beba até o fim — ele disse, quando ela quis parar.
— Sean, eu não...
— Beba. Senão, despejo pela sua goela abaixo.
Olhou para ele, furiosa, e tomou tudo, com medo de que a tocasse novamente. Depois colocou a caneca
na mesinha e afundou sob os cobertores novamente.
— Sean, preciso falar com você.
— Agora não.
— Sim, agora.
— Você. mal pode falar. Está com dor de garganta. É melhor se acalmar e dormir.
— Mas não quero dormir — insistiu, apesar de se sentir sonolenta. — O que colocou naquela bebida?
— Já disse para dormir. Conversaremos amanhã.
— Vou embora amanhã — respondeu com um ar desafiador, tentando manter os olhos abertos. —
Vamos conversar agora. Eu disse a Barry que tentaria entrar em contato com você. Por isso, escrevi a
Hugh, pedindo o seu endereço.
— Quem é Barry?
— Barry Wyman. Ele... me pediu em casamento. Finalmente tinha falado e sentiu-se aliviada. Agora,
poderia dormir.
— Pediu mesmo? Que interessante! — ele comentou. — E o que isso tem a ver comigo?
— Você sabe muito bem! Ainda estou casada com você; portanto, não posso casar com ele.
— Ainda está casada comigo? Pensei que já tivesse tratado do divórcio há muito tempo. Está bem,
conversaremos sobre isso amanhã. — Sean apagou o abajur e foi para a porta. — Boa noite.
— Boa noite. — Ela fechou os olhos e dormiu.
Já estava claro quando acordou e viu o céu. azul pela janela.. A chuva tinha parado e um raio de sol
preguiçoso brilhava na parede. Sentia a cabeça dolorida, mas a garganta estava boa. Não eslava com
vontade de levantar, mas lentamente foi esticando as pernas. De repente, sua perna tocou em alguém.
Puxou-a depressa e virou-se. Sean estava deitado ao seu lado e a olhava.
— O que está fazendo nesta cama? — Kate perguntou, furiosa.
— Nada. — Ele bocejou e virou-se, espreguiçando. — Até há poucos minutos, eu estava dormindo.
Agora, estou acordando...
— Quem disse que podia dormir comigo?
— Acho que foi o padre que nos casou. E acontece que esta é a minha cama. — Pegou um cacho de
cabelo dela e o acariciou.
— Você devia ter me dito isso, ontem à noite. Eu não estaria aqui, se soubesse. Teria dormido em outro
quarto.
— Mas era muito mais prático que dormisse aqui. As outras camas não têm lençóis nem cobertores.
Como vai o resfriado?
— Minha garganta não está doendo, mas o nariz ainda está entupido
— respondeu, sem jeito. A proximidade dele, ali naquela cama, a deixava pouco à vontade. O mais
desconcertante era que ele agora afastava as cobertas e começava a lhe acariciar os seios. — Não nos
vemos há dois anos — ela murmurou, tentando afastar sua mão.
— Eu sei. Avisei você de que não seria um bom marido.
— Então, não devia continuar pensando que ainda pode dormir comigo
— disse, desesperada, procurando resistir à magia dos dedos dele. — Não, Sean, por favor. Não quero.
— Eu quero — ele murmurou. — Eu quero muito.
— Mas não é seguro.
— O que quer dizer com isso? — ele perguntou, quando um uivo veio do outro lado da porta. Os dois
deram um pulo, tensos.
— O que foi isso, Sean?
— Padraic, o cão. Esqueci dele. Quer sair e, se eu não for abrir a porta, vai fazer uma sujeira enorme e
Agnes ficará furiosa comigo. — O cão uivou novamente e Sean gritou: — Está bem, menino, vou num
minuto. — Levantou-se e começou a tirar a calça do pijama.
Kate olhou para o outro lado, mas aos poucos arriscou um olhar. Ele estava muito mais magro, com
alguns ossos aparecendo sob a pele pálida. Mais magro e mais pálido do que no México. Parecia. ter
estado bem doente, do mesmo modo que ela, depois do acidente de avião, em San Marco.
— O que aconteceu com a sua perna? — perguntou, quando ele se aproximava da porta. — Por que está
mancando?
Com a mão na maçaneta ele a olhou, indiferente.
— Pensei que nem tinha percebido. Foi um acidente.
— No exterior?
— Não, aqui na Irlanda.
— Quando?
— O que você tem com isso?
— Gostaria de saber. — Por quê?
— Porque... porque... — Foi interrompida pelo uivo do cão, que começava a arranhar a porta. — Se
não quer contar, não tem importância.
— Está bem, garoto, vá dar a sua voltinha. — Sean tinha aberto a porta e conversava com o cachorro.
Depois, tudo ficou em silêncio.
Kate estava preocupada. Ele devia ter ficado muito ferido, para ainda mancar. Por que ninguém a avisara?
Por que as autoridades irlandesas não a haviam procurado? Talvez Sean não a considerasse sequer uma
parente próxima.
Suspirou e virou para o outro lado. Sentia-se cansada e queria dormir mais um pouco. Mais tarde
conversaria com Sean sobre o divórcio. Depois que ele desse o consentimento, iria embora. Iria até
Dublin, procurar Hugh e saber por que a convidara para o bangalô. Por que tinha feito aquilo, se sabia que
Sean estava lá?
Quando acordou novamente, era quase meio-dia e o quarto brilhava ao sol. Sentia-se com a cabeça leve e
já conseguia respirar com mais facilidade. Levantou-se e foi até a janela.
Os campos verdes eram cercados por muros de pedra e as ovelhas pastavam tranquilamente.
Rate procurou absorver aquela calma. Abriu a janela e observou o pátio, procurando seu carro vermelho.
Não estava lá. Entretanto, ela o havia estacionado exatamente em frente à poria. Onde estaria? Será que
Sean conseguira dar a partida?
Fechou a janela e olhou em volta, procurando suas roupas. Depois lembrou que Sean tinha tirado do
banheiro para pendurá-las na cozinha. Precisava usar outra coisa. Mas, onde Sean tinha posto sua mala?
Não estava no quarto. Só o robe se encontrava ali, dobrado sobre uma cadeira. Debaixo desta, os
mocassins.
Vestiu o robe, calçou os sapatos e foi ao banheiro. Enquanto lavava o rosto, olhou-se no espelho com ar
crítico, lembrando-se de sua aparência quando Sean a conhecera. Bem, apesar de estar com o nariz
vermelho por causa do resfriado, tinha melhorado muito. Parecia com a moça da fotografia que ele
guardava dentro do diário. Será que ainda tinha aquela foto?
Lá embaixo não havia ninguém, mas tudo estava arrumado e as cinzas tinham sido retiradas da lareira.
Ouviu sons na cozinha, abriu a porta e deu com uma mulher grisalha, de pé perto da mesa, batendo creme
com uma colher de pau.
— Mãe de Deus, que susto você me deu! — a mulher disse.
Depois de refeita da surpresa, perguntou: — Quem, diabos, é você?
CAPÍTULO V
Tão surpresa como a mulher, Kate respondeu:
— Sou Kate Lawson. E você, quem é?
— Agnes Daley. E o que está fazendo aqui?
A mulher tinha ombros largos, um busto enorme e usava uma blusa cor-de-rosa que não combinava em
nada com a saia de flanela vermelha berrante (aquela era a roupa tradicional do oeste da Irlanda). O
cabelo grisalho tinha sido preso num coque desajeitado. Olhava a camisola de Kate, com ar desaprovador.
— O tio Hugh não... Isto é, o sr. O'Connor não avisou que eu vinha? Sou a sobrinha dele.
— Por que ele me diria isso? — Agnes voltou a bater o creme com a colher de pau.
Ele me convidou para passar alguns dias aqui. Escrevi, dizendo que chegaria ontem, mas não deve ter
recebido minha carta.
— Chegou uma carta ontem. O sr. Kierly mandou-a para Dublin. Mas
não sei que direito o sr. O'Connor
tem de convidar alguém para vir a esta casa. Ele era apenas um convidado aqui, há algumas semanas.
— Um convidado? Mas pensei... Pode me dizer de quem é a casa? É sua?
— Não. É do sr. Sean Kierly. O avô, James Kierly, deixou-a para ele quando morreu. Sou apenas a
empregada. Venho todas as manhãs, limpo tudo, faço comida e lavo. Fiz isso para o sr. James e desde que
o sr. Sean veio, há seis semanas, estou trabalhando para ele. Tem certeza de que o sr. O'Connor não lhe
contou nada disso quando a convidou a vir aqui?
— Certeza absoluta. — Kate agora percebia que Hugh a tinha enganado.
A empregada começou a fazer tortas.
— Então, é a sobrinha do sr. O'Connor... Acho que o sr. Kierly ficou surpreso quando você chegou. Ele
não esperava ninguém. Senão, teria me avisado.
— Acho que sim. — Kate estava furiosa com o tio. — Sean não lhe disse que eu estava aqui, esta
manhã?
— Ele já tinha saído, quando cheguei. Como veio até aqui? — continuou, tirando um bolo do
forno.
— Vim de carro. — A mulher olhou-a, incrédula. — Vim, sim. Estacionei diante da porta da frente,
mas houve um problema com a bateria, por isso o sr. Kierly insistiu para que eu ficasse, apesar do meu tio
não estar. Mas o carro não está onde o deixei. Você o viu?
— Não. — Agnes começou a lavar a louça. — Não havia nenhum carro, quando cheguei. — Novamente
olhou Kate, com ar desconfiado.
— Há alguma garagem onde o sr. Kierly poderia tê-lo guardado?
— Claro que há. Era o velho estábulo. Dê uma olhada lá.
— Vou tirar minha roupa do varal — Kate disse e caminhou até o velho fogão de lenha, onde estavam
suas roupas. — Será que viu a minha mala? É marrom e não está no quarto onde dormi.
— Não vi. Procure na sala de visitas. Quando estiver vestida, venha tomar um café.
— Obrigada.
Aliviada, sentindo que Agnes já não a olhava com tanta desconfiança, Kate saiu para procurar a mala,
mas não a encontrou. Foi para o quarto e
se vestiu. E a bolsa, onde estaria? Lembrava-se de tê-la visto
pela última vez no carro. Suspirou, pegou uma escova de cabelo de Sean e penteou-se.
Onde ele teria posto a sua mala? Abriu a porta do armário e só viu roupas de homem. Também não
encontrou nada debaixo da cama. Talvez estivesse em outro quarto. Foi olhar, mas não achou.
O cheiro de bacon frito fez com que percebesse como estava faminta. Desceu depressa e, num impulso,
abriu a porta da frente. Ouviu os gritos das gaivotas, que voavam sobre a pequena praia, ali perto. Não
havia nenhum sinal de gente.
Saiu da casa e foi até o estábulo. Abriu as portas velhas, mas só viu uma velha carroça. Seu carro
vermelho não estava lá. Percebendo que não poderia ir embora, voltou à cozinha. Agnes serviu um prato
com bacon, ovos e uma xícara de chá.
— Achou a mala?
— Não. Nem a minha bolsa. E o carro não está no estábulo. Parece que tudo sumiu. — Kate riu
lembrando as histórias que sua mãe lhe contava sobre as fadas da Irlanda, que fazem brincadeiras com as
pessoas. — Talvez haja algumas fadas e anõezinhos por aqui — disse, brincalhona.
— Nunca diga isso — Agnes falou, séria, e se benzeu. — Acho que talvez o sr. Kierly tinha conseguido
ligar o carro e o levou até o vilarejo, para Martin McCormic consertar. Ele é um bom mecânico. Não há
nada que não conserte.
— Talvez sim, mas isso não explica o desaparecimento da minha mala. Pode ser que a bolsa esteja
no carro, mas não a mala. Ele a trouxe para dentro, ontem à noite. Eu sei porque... — Kate parou. Não ia
contar detalhes tão íntimos para aquela mulher. Ela poderia ficar chocada. — Sei porque tirei a camisola
de lá.
— É tudo muito confuso — Agnes disse. — Você terá que esperar até que ele volte, para perguntar onde
está a mala.
— Acho que sim. — Estava começando a achar que era uma vítima, não só dos truques do tio, mas
também de Sean. Por que ele teria escondido sua mala? O que esperava ganhar, mantendo-a mais tempo
ali?
— Quanto tempo trabalhou para o sr. James Kierly? — perguntou a Agnes.
— Mais de vinte anos. Desde que ele comprou esta casa. Sempre dizia que havia pertencido à família
Kierly antes que imigrassem para a América. Ele era um ótimo homem. Passou parte de sua vida
aqui escrevendo suas memórias. Ele foi jornalista nos Estados Unidos e levou uma vida muito
interessante. Você nem acredita quanta gente famosa ele conheceu. Terminou o livro poucas semanas
antes de morrer. O sr. Sean ia levá-lo a um editor em Londres, quando sofreu o acidente. Meu Deus, que
coisa terrível! — Ela sacudiu a cabeça.
— O que aconteceu?
— O carro que ele estava dirigindo derrapou na estrada e foi de encontro a um caminhão. Ele teve
muita sorte de escapar. Ficou seis meses num hospital, até poder andar novamente. Veio aqui para se
tratar.
— Quando foi o acidente? — Kate perguntou. Se Sean estava ali há seis semanas, tinha passado os
últimos seis meses no hospital.
— Pouco antes do Natal, na estrada de Dun Laoghaire. Ele ia pegar a balsa de Holyhead. Quebrou a
perna em dois lugares e quebrou algumas costelas, também. Acho que levou uma batida forte na cabeça, e
sabe o que isso pode causar em uma pessoa?
— Sim, eu sei. — Será que Sean tinha perdido a memória por algum tempo?
— Ele ainda não está bom. O seu tio, o sr. O'Connor, ficou muito preocupado. Ele me disse que não era
bom o sr. Sean ficar morando aqui sozinho. Ouvi os dois discutirem algumas vezes. Bem... vou trabalhar.
Tenho que arrumar as camas. Em que quarto você dormiu? O sr. Sean lhe arranjou lençóis?
— Eu... bem... sim. — Kate levantou-se, depressa. O que Agnes ia pensar, se descobrisse em que cama
ela dormira? — Pode deixar que eu arrumo as camas.
— Ótimo. É muita gentileza sua. Amanhã de manhã vou tirar o pó. Agora, vou lavar algumas coisas
enquanto as tortas não ficam prontas. Gostaria de ir embora à uma hora, para cuidar da minha casa.
— Onde mora?
— No povoado de Dunane, acima do estuário do rio. Já ouviu falar do castelo de Dunane?
— Não. Nunca estive nesta parte da Irlanda. É um castelo famoso?
— Dizem que foi construído no. século I d.C. e servia de fortaleza.
Thomas Cavanagh é dono do castelo
agora e transformou-o numa atração turística. A srta. Nuala Cavanagh é a anfitriã neste verão. Ela é
também atriz de teatro em Dublin e já estreiou alguns filmes. Talvez já tenha ouvido falar dela.
— Não — Kate respondeu.
— Ela e o sr. Sean são grandes amigos. Ela o trouxe do hospital para cá e me pediu que tomasse conta da
casa para ele. Vem aqui quase todos os dias para visitá-lo. E muito alegre e bonita. Eu não ficaria nada
surpresa se os dois casassem um dia desses, quando o sr. Sean não tiver mais que viajar para o exterior. E
hora de sossegar e ter uma família. Senão os Kierly acabarão.
Nuala Cavanagh, Kate repetiu mentalmente o nome, enquanto ia para o quarto. Era a mulher com quem
Sean casaria um dia. Mas como, se já estava casado com ela? Sentiu uma sensação estranha ao lembrar
que ele havia mencionado ter ido a uma festa em Dublin com uma mulher e que, depois, a levara para
casa. Tinha ficado com aquela mulher em vez de ir vê-la, na Inglaterra. Depois, sofrera o acidente e a
mulher o levara para lá comportando-se como se tivesse todo o direito de cuidar dele.
Estou com ciúmes, disse a si mesma. Mas como poderia estar com ciúmes? Não amava mais Sean. Seu
amor não tinha sobrevivido à separação e ao modo indiferente como ele a tratava. Se o amasse, teria
correspondido às carícias dele, naquela manhã, na cama. Teria feito amor com ele.
Arrumou a cama e decidiu dar um passeio. Atrás do estábulo havia um atalho que levava a um riacho.
Mais além, surgiam as montanhas escuras. Caminhando ao lado do riozinho, Kate teve que se curvar
várias vezes para evitar os ramos dos salgueiros. De repente, a correnteza se alargou formando uma
piscina escura.
Sean estava de pé numa pedra que se projetava sobre aquele pequeno lago. Calçava botas de borracha e
tinha acabado de jogar a linha de pescar.
Kate achou uma pedra baixa e sentou-se. A ponta da linha estremeceu. Será que algum peixe tinha
mordido a isca? Durante alguns segundos ele lutou com o peixe, mas logo o venceu. Começou a se
aproximar da margem e logo a viu.
perguntou, tirando a isca da
— Gostaria de uma truta para o jantar? boca do peixe.
— Não é muito grande, não vai dar para dois — ela disse em tom crítico.
— Tenho outras. — Pegou a sacola de lona e mostrou outras três trutas. — Foi uma boa pescaria.
— Você vai ter que comer todas: não estarei aqui para o jantar.
— Onde estará?
— A caminho de Dublin.
— Como vai partir?
— No mesmo carro em que vim. Eu o aluguei no aeroporto e tenho que devolvê-lo lá. Onde está o carro?
O que você fez com ele?
— Tentei dar a partida esta manhã, mas não consegui. Telefonei para Martin McCormic, em Dunane,
que veio buscá-lo. Ele disse que os fios estavam muito molhados e precisariam de algum tempo para
secar. Guinchou-o para sua garagem.
— Devia ter me contado — Kate reclamou.
— Você estava dormindo.
— Quanto tempo vai demorar?
— Um ou dois dias. Foi o que Martin disse.
— Oh, isso é impossível. Tenho de partir esta tarde.
— Ninguém trabalha depressa, nesta parte do mundo — Sean comentou. — Quando se vem
para cá é preciso jogar fora o relógio. Nada do que disser vai fazer Martin se apressar. Você não partirá
esta tarde.
— Mas... não posso ficar. Preciso estar em Westcourt depois de amanhã, tenho um compromisso.
— Que pena!
Kate olhou-o aborrecida, mas ele estava lidando com a vara de pescar.
— Agnes Daley me contou que a Casa Moyvalla é sua.
— Aposto que ela ficou surpresa de encontrar uma mulher estranha.
— Não mais do que eu, em saber que tio Hugh não é o dono da casa. Por que não me contou que tinha
herdado a propriedade de seu avô?
— Nãõ tive chance. O que mais Agnes lhe contou?
— Que você ficou muito mal depois do acidente. Que ia pegar a balsa de Holyhead quanto tudo
aconteceu. É verdade?
— É verdade. Depois de levar Nuala ao apartamento dela, dirigi
depressa demais. Estava indo para
Londres, ver um editor. E ia ver você também, como sabe. Ia lhe contar tudo isso ontem à noite, mas você
não quis ouvir.
— Desculpe-me. Lamento que tenha se machucado. Eu devia ter sido avisada. Por que ninguém me
avisou?
Sean encostou a vara de pescar numa árvore e ficou ao lado dela, de braços cruzados.
— Pensei que tinha sido avisada.
— Não. Pensei que tivesse mudado de idéia e resolvido que não queria mais me ver — murmurou.
— Logo que melhorei, pedi que avisassem você.
— Pediu a quem?
— A uma amiga... pelo menos, alguém que pensei que fosse amiga. — Ele sorriu cinicamente. — Oh,
bem, não tem mais importância, agora. Os danos já foram reparados.
— Nem Hugh me contou.
— Hugh só soube do acidente quando chegou, há poucas semanas. Ele nem sabia que eu estava morando
aqui, até começar a me procurar. Acho que isso aconteceu depois que recebeu a sua carta.
— Ele lhe contou que eu havia perguntado onde você estava?
— Não. Nem falou de você. Disse apenas que estava muito orgulhoso de sua carreira como professora de
música. Tive a impressão de que você estava indo muito bem.
Kate olhou para o lago e depois observou o céu. Aquele era um lugar tranquilo, muito diferente dos
outros onde havia estado com Sean. Era um lugar calmo, onde ninguém se apressava, e gostaria de ficar e
conhecer Sean melhor. Entretanto, não podia ficar.
— Você contou a Agnes sobre... o nosso relacionamento? — Sean perguntou.
— Não. Quando ela me perguntou, dei o meu nome de solteira, por força do hábito. Eu nunca... usei o
nome Kierly e nem disse a ninguém que casamos em San Marco.
— Até encontrar Barry Wyman.
— Sim, contei a Barry. Aconteceu... ele me pediu em casamento — ela disse, na defensiva.
— Há quanto tempo você o conhece?
— Desde novembro. Ele foi a Netherfíeld, a escola onde leciono, para ouvir a filha tocar num concerto.
— É viúvo ou divorciado?
— Divorciado há alguns anos. Eu o vi várias vezes, desde que nos conhecemos, mas não tinha idéia de
que pensava em casamento, até poucas semanas.
Ficaram alguns minutos em silêncio. A água brilhava ao sol e tudo ali parecia novo e limpo, após a chuva
da véspera.
— Já dormiu com ele?
Aquela pergunta a atingiu como uma chicotada. Os olhos dele estavam ainda mais frios e sérios.
— Não tem nenhum direito de me perguntar isso!
— Não? Mas algumas pessoas acreditam que sim. Entre elas, o padre que nos casou. Não entendo por
que você não tratou do divórcio, logo que chegou aqui. Teria sido tão simples... Poderia ter resolvido tudo
nos últimos dois anos, enquanto estive no exterior. Por que não tratou deste assunto? — Ele parecia
quase zangado, como se estivesse muito desapontado por ela não ter tratado do divórcio.
Kate sentiu-se magoada com aquilo e seus olhos se encheram de lágrimas.
— Por que você não cuidou disso? — disse, com a voz tremendo desconsoladamente.
— Ah! — ele riu, amargo. — É uma boa pergunta. Tive muitas razões. A principal é que estive
ocupado, tentando me manter vivo. Não apenas em San Marco, mas em outros lugares do mundo.
Estive na prisão, durante seis semanas, num país qualquer, por exemplo.
— Porquê?
— Porque contei a verdade, numa reportagem. Porque garanti ao mundo o direito de saber dos dois
lados da situação. — Respirou fundo e. continuou, mais calmo: — Esperava que você tivesse
resolvido o problema do nosso casamento... se quisesse.
E se ela dissesse a ele agora: "Eu não quis o divórcio porque esperava que o casamento acabasse dando
certo". O que ele responderia? Riria dela, por ser tão sentimental e romântica? Não podia se arriscar. Não
aguentava mais ser magoada por ele.
Olhou-o novamente e viu que a observava, mas seus olhos já não estavam tão frios. Sean tinha uma
expressão sensual e sorria.
— Você engordou um pouquinho, desde a última vez. Agora, os ossos não estão mais aparecendo. —
Aproximou-se e acariciou o rosto dela. — A pele está firme e macia como um pêssego — disse
suavemente. Kate sentiu como uma corrente elétrica lhe percorrer o corpo. — Mas ainda cora à toa —
Sean murmurou, pegando uma mecha do cabelo dela.
Kate percebeu que os lábios dele se aproximavam e, involuntariamente, aproximou-se também.
— Houve momentos em que acreditei que nunca mais a veria de novo, e agora você está aqui. Gostaria
que ficasse por algum tempo, Kate,
— Eu... eu... não posso ficar — murmurou, procurando ignorar a vozinha interior que gritava,
desesperada: "quero ficar, quero ficar!" — Vou partir para Dublin amanhã.
— Não deixarei.
De repente, Kate sentiu o calor daqueles lábios nos dela: sedutores, quentes, gentis, com uma promessa de
paixão. — Fique, por favor, Kate... por alguns dias... e noites.
— Não! — Ela o empurrou. — Não posso ficar. Tenho que voltar à Inglaterra. Preciso estar lá no dia 1º
de setembro, depois de amanhã.
— Então, pode ficar mais uma noite. Se partir amanhã, chegará na Inglaterra a tempo.
— Não. Não quero passar mais uma noite aqui... com você.
— Por quê? — Ele tinha um ar aborrecido.
— Porque... oh, porque... acho que quer que eu fique só porque sou uma mulher.
Ele riu, divertido, mas a expressão de seus olhos não mudou.
— Confesso que isso tem muito a ver com o meu convite. Ver você, deitada na minha cama, despertou os
apetites que eu pensava já estarem mortos pelo acidente. Lembra aquela noite em San Cristobal, Kate? O
que você sentiu? Acho que estou passando por uma experiência parecida. De repente, sinto-me contente
em estar vivo, sinto um fogo aqui... — Apontou para o estômago.
— Então, qualquer mulher serve — ela respondeu, afastando-se. — Mas não estou disponível, e o que
você sente não tem nada a ver comigo. Não tem nada a ver com amor nem com o fato de estarmos
casados. — A
voz dela tremeu de emoção. — Já lhe disse esta manhã que não quero fazer amor com
você. Não significaria nada para miro. Eu... estava apaixonada por você, em San Cristobal, caso contrário
não teria pedido para você fazer amor comigo. Mas não estou mais apaixonada, agora. O que você previu
em Tuxtla aconteceu: o que eu sentia acabou. Portanto, não posso ficar mais nem uma noite. Agora, por
favor, seja gentil e diga onde colocou minha mala e minha bolsa. Pretendo ir a pé até o vilarejo.
Sean ficou ainda mais pálido, fazendo-o parecer mais doente. Encarou-a demoradamente e ela sentiu que
ele procurava ler sua alma.
— Está bem, você ganhou. — Afastou-se, dando de ombros e dirigiu-se para a vara de pescar,
— Se não quer ficar, não fique. Sua mala e a bolsa estão num armário entre o banheiro e o meu quarto.
— Obrigada. — Ela devia estar contente por ganhar a discussão, mas sentia-se prestes a chorar. — Sean,
eu,..
— Se vai dizer que lamenta muito, esqueça. Volte para casa, pegue suas coisas e desapareça... quanto
mais cedo, melhor.
— Está bem.
Voltou pelo atalho, tentando fingir que não estava desapontada por ele deixá-la ir tão facilmente. Mas, por
que estava desapontada? Será que esperava outra coisa? Será que desejava que ele bancasse o homem das
cavernas e a forçasse a dormir em sua cama? Iria odiá-lo para sempre, se tivesse feito aquilo. Mas
também o odiava agora, porque a deixara tão confusa, mandando que desaparecesse de sua vida.
A casa surgiu ao longe, numa paisagem de sonho, entre os canteiros de flores e a praia que ficava mais
distante.
Não adiantava ficar mais tempo ali, Kate pensou, quando abriu a porta. Lembrou-se de ter lido uma
história de pessoas que moravam no oeste da Irlanda e podiam dizer as horas pelo modo como o sol
entrava pela porta. Sem dúvida, aquela região era encantadora e poderia aprisioná-la.
Mas, em Moyvalla havia um relógio que marcava duas e vinte. Agnes já tinha ido embora e tudo estava
quieto. A escada estalou, quando Kate subiu. Ia pegar a mala e a bolsa e caminhar até Dunane. Não era
longe, Agnes tinha dito. Quando chegasse lá, pediria a Martin McCormic para consertar o carro
imediatamente. Às cinco horas, poderia estar a caminho de Ennis, onde passaria a noite. No dia seguinte,
iria para Dublin e, à noite, estaria em Westcouxt.
Dirigiu-se
diretamente ao armário, imaginando por que não o tinha visto antes. Girou a maçaneta,
confiante, mas nada aconteceu. Tentou novamente: a porta continuou fechada. Puxou com mais força
ainda; novamente nada aconteceu. A porta estava trancada e não havia nenhuma
chave à vista.
65
CAPÍTULO VI
Recusando-se a acreditar que a porta estava trancada, Kate tornou a girar a maçaneta. Mas nada
aconteceu. Sean a tinha enganado. Por isso não perdera tempo em lhe contar que a mala e a bolsa estavam
naquele armário.
Ouviu-o entrando na casa, conversando com o cachorro. Não parecia nem um pouco interessado em
descobrir o que tinha acontecido com Kate. Ficou na sala de visitas; com certeza, esperando que ela
descesse para queixar-se do armário trancado. Devia haver um jeito de abrir aquela porta, sem pedir
ajuda.
Furiosa, Kate foi para o quarto procurar a chave, mas não a encontrou, mesmo depois de revirar algumas
gavetas. E se fosse embora sem as suas coisas? Mas precisava de dinheiro para pagar o conserto do carro,
gasolina e a passagem de avião.
Como poderia convencer Sean a abrir aquele armário? Parou junto da janela e olhou para fora. A
tranquilidade daquela paisagem a acalmou um
66
pouco. Gostaria de ficar naquela casa, com Sean. Os campos verdes, as gaivotas e a pequena praia a
atraíam muito. Ele a queria e, se ficasse,, fariam amor. Se ao menos ele tivesse dito que a amava, teria
concordado em ficar sem pensar duas vezes...
Seus pensamentos pareciam um rodamoinho. Então, ouviu um barulho. Era um carro se aproximando e
Kate se preparou para ver seu carro vermelho surgir na curva do caminho. Mas apareceu um Volkswagen
preto, que parou diante da casa. Saltou uma mulher alta. de cabelo longo e liso, que se aproximou da
porta.
A campainha soou e Padraic, o cachorro, latiu. Kate saiu do quarto e foi até a escada. Ouviu os passos de
Sean, que ia atender a porta. Ela se abriu e a mulher começou a faiar.
Quem seria? Nuala Cavanagh? Quem mais podia ser? Kate voltou ao quarto e arrumou o cabelo. Ia descer
e pedir a Sean a chave do armário. Ele não poderia recusar, diante de Nuala. E, quando a moça partisse,
Kate lhe pediria uma carona.
Na sala, a mulher tinha sentado no sofá e conversava com Sean. Ele se encostara na parede e segurava um
cálice.
Kate foi direto ao marido, ignorando a mulher.
— O armário está trancado — disse. — Por favor, pode me dar a chave?
— Oh, Deus, Sean! Por que não me disse que tinha companhia? — perguntou Nuala Cavanagh, num tom
melodioso e cheio de sotaque alegre da Irlanda.
Sean terminou o uísque e virou-se para pegar mais. Encarou Kate e ela corou.
— Não estou com a chave — respondeu calmamente.
— Sean, não vai nos apresentar? — A mulher falava como se estivesse repreendendo um garotinho mal
educado.
— Kate, esta é Nuala Cavanagh. Nuala, esta é Kate. — Sean levantou o copo em direção dela e virou-o
de uma só vez.
Kate cumprimentou Nuala. A mulher era uma beldade irlandesa morena de olhos azuis e nariz arrebitado.
— Kate? — a outra murmurou, em voz baixa.
— San Marco — ele disse laconicamente e bebeu mais.
— Oh, aquela Kate? — Nuala riu. — Desculpe o meu espanto, mas
Sean me contou a aventura de San Marco. Ele me disse que tiveram que realizar um tipo de cerimônia de
casamento para poderem sair do país.
— Não foi um tipo de cerimônia — o rapaz interrompeu —, foi um casamento de verdade, como
qualquer padre católico teria feito neste país. Casamento para ninguém botar defeito.
— Já notei — Nuala disse, impaciente. — Mas vocês nunca moraram juntos, não é mesmo? Foi um
casamento só para constar. — Olhou para Kate e sorriu, — Acho que você não teve dificuldade em
conseguir o divórcio, depois que voltou à Inglaterra. É tão fácil se divorciar, atualmente.
— Eu... nós ainda não estamos divorciados — Kate murmurou e os olhos da outra pareceram frios.
— Entendo. Então, o que a trouxe aqui?
— Vim ao Festival de Música de Ennis e resolvi dar uma passada para ver Sean — mentiu. — Já teria
ido embora, se não houvesse um problema como meu carro...
— Ele está com McCormic — Sean interrompeu. — E Martin já avisou que vai levar alguns dias para
consertar. Portanto, Kate ficará, até que esteja pronto. — Parecia um tanto agressivo, e ela não teve
coragem de desmenti-lo.
— Se você está mesmo interessada nas baladas irlandesas e canções folclóricas, devia vir ao castelo —
Nuala disse alegremente. — Há sempre cantores lá; principalmente, um grupo chamado Green Folk. E
esta noite daremos um banquete e apresentaremos uma peça.
— Sim, adoraria ouvi-los. Mas estou sem carro.
— Eu posso levá-la, mais tarde. — Nuala levantou-se. — Agora, estou indo para Kilburke. Parei aqui,
esperando que Sean viesse comigo. Na volta, pego vocês. Virá também, não é, querido? Você ainda não
me viu no pape! de castelã medieval.
— Já vi você em outros papéis. Desculpe, mas acabei de lembrar que ainda não almocei.
Nuala observou-o sair da sala. Kate achou que a fisionomia da mulher tinha se entristecido um pouco,
— Ele não está bem — Nuala disse, de repente —, mas eu nunca soube que bebia tanto. — Encarou
Kate, com ar acusador. — O seu
parente, que é amigo dele há anos. estava muito preocupado.
Naturalmente, você soube do acidente.
— Alguma coisa.
— Antes, ele era muito agitado, adorava o trabalho de repórter. Agora que não pode mais andar tão
depressa, sente-se frustrado e bebe demais. Isso retarda a recuperação e a coisa se toma um círculo
vicioso. E você também é culpada do que está acontecendo.
— Eu?
— Devo lhe dizer que Sean e eu nos conhecemos há muito tempo. Confiamos um no outro e falamos
sobre nossos problemas desde que nos encontramos aqui, quando James Kierly veio para a Irlanda. Se
fôssemos pessoas diferentes, teríamos nos casado há anos. Mas ambos gostamos demais da liberdade.
Portanto resolvemos, há alguns anos, que em vez de casar viveríamos no mesmo lugar. Entende o que
estou dizendo?
— Acho que sim. — Kate sentia um certo mal-estar. — Vocês são
amantes.
— Fomos. E seremos novamente, se Deus quiser! — Nuala suspirou dramaticamente, fechando os olhos.
— Foi maravilhoso nos encontrarmos novamente, depois de uma longa separação, mas ele se recusou a
ficar comigo. Disse que ia para a Inglaterra e me contou o que tinha acontecido entre vocês, em San
Marco. Disse que precisava descobrir se você. tinha feito alguma coisa para acabar com o casamento.
Mas não chegou à Inglaterra, por causa do acidente. Desde então, ficou apático demais para ir a qualquer
lugar. — Nuala olhou para o teto. — Espero que você tenha vindo vê-lo para resolver tudo isso. O
casamento ainda o preocupa e atrapalha o nosso relacionamento. Sean odeia a idéia de estar amarrado a
você, de não ser livre. E vejo que com você aqui, ainda está mais aborrecido.
— Eu não estaria aqui. se... se... o meu tio não tivesse me convidado a vir — Kate desabafou. — Só
queria saber onde encontrar Sean. Assim, o advogado poderia entrar em contato com ele e conseguir a
permissão para o divórcio.
— Oh estou contente, muito contente! — Nuala suspirou. — Isso já faz alguma diferença. Estou contente
que tenha vindo. Kate, assim poderá fazer alguma coisa para ajudá-lo...
— Você pode ajudar também, levando-me para o castelo. Não quero
passar outra noite com Sean. E...
bem, tenho certeza de que compreende que ele e eu não nos sentimos bem na companhia um do outro.
— Compreendo. E, se o seu carro não ficar pronto, poderá dormir no castelo. Devo estar em Kilburke às
três e meia. — Foi para a porta e Kate a seguiu. — Volto dentro de duas horas. Até logo.
Sozinha na sala, Kate parou diante da porta e observou o carro de Nuala se afastando. Dentro de duas
horas sairia daquela casa e nunca mais voltaria. Mas, primeiro, tinha que tirar a mala e a bolsa daquele
armário. Não podia ir ao castelo com aquela roupa... Certamente, Sean compreenderia isso.
Ele estava sentado à mesa da cozinha, lendo um jornal. Kate parou na
porta, pensando no que Nuala tinha dito. Não havia dúvida de que Sean
era infeliz. Talvez Hugh tivesse notado, e por isso a convidara para ir até
lá.. Mas será que a infelicidade de Sean estava ligada ao fato de ainda ser
casado com ela? Não tinha certeza.
O abatimento dele tocou seu coração. O Sean que havia conhecido no México e em San Marco era,
aparentemente, invulnerável. Este, bebia demais e havia perdido o entusiasmo pela vida.
Queria se aproximar e lhe colocar as mãos nos ombros, abraçã-lo de encontro ao peito. .Lembrou-se de
como ele havia sido um apoio, em San Marco. Devia-lhe muita consideração e um gesto de ternura.
Lentamente se aproximou, e ia tocá-lo, quando Sean falou: — Nuala já foi embora?
Kate afastou-se, surpresa. Não pensava que ele soubesse que havia entrado na cozinha.
— Sim, mas disse que volta às cinco e meia para me levar ao castelo. Você já almoçou?— Não havia
sinal de comida na mesa.
— Não.
— Vou preparar alguns sanduíches.
— Não se incomode. Eu mesmo preparo algo, mais tarde.
— Mas...
— Eu disse: não se incomode.
— Sei que disse, mas vou fazer os sanduíches assim mesmo. Não deve beber tanto, com o estômago
vazio. Devia comer regularmente. Vai ficar com úlcera, desse jeito.
— E daí? — Levantou a cabeça, furioso. — Vá embora e me deixe sozinho. Diabos, não pedi que viesse
aqui e ficasse se metendo na minha vida.
— Não estou me metendo! — ela gritou, zangada. — Faria isso por qualquer pessoa que estivesse
precisando se alimentar. — E foi para a despensa.
Fez alguns sanduíches, café e colocou na mesa, diante dele.
— Pronto, isso vai ajudá-lo a ficar mais sóbrio — comentou, irônica.
— Não estou bêbado. — Olhou-a, hostil, mas pegou o café.
— Bem, você não está se comportando normalmente.
— Como sabe? Pode saber como ajo quando estou normal? — Tomou o café e comeu um sanduíche.
— Se estivesse normal — ela disse, depois de um longo silêncio —, não moraria aqui. Gostava de estar
em lugares agitados, cheios de ação, fazendo suas reportagens, em vez de ler um jornal velho. — Ele a
olhou, zangado, mas não disse nada. — Quando sarar, voltará ao trabalho e irá para o exterior
novamente?
— Não sei. Depende. — Virou uma página do jornal, indiferente, e pegou outro sanduíche. Continuou
fingindo que lia, e ela ficou em silêncio.
Vinte minutos depois das quatro. Era hora de trocar de roupa e esperar Nuala... mas, cheia de sentimentos
contraditórios, Kate não queria ir embora.
— Sean, não posso ir jantar no castelo vestida assim. O jantar lá deve ser formal.
— Por que não? O que há de errado com sua roupa? Parece ótima.
— Não serve. Gostaria de trocar. Por favor, me dê a chave do armário.
— Está trancado? — Ele sorriu, surpreso.
— Sabe que está. E não entendo por que colocou minhas coisas lá e trancou.
— Eu também não entendo. Devia estar muito bêbado ou louco, ontem à noite. Pensei que pudesse
impedi-la de ir embora. Acho que estou ficando louco, vivendo sozinho neste lugar. Fiquei
maluco com o acidente, não sei por que tudo aquilo aconteceu ou por que tinha que acontecer naquele
momento... Mas acho que não está interessada. — Ele parecia muito cansado. — E nem um pouco
preocupada comigo. Devia
estar. Devia se preocupar com o meu estado de espírito. Você prometeu me
amar e confortar na saúde e na doença.
— Você também — respondeu, trêmula. — Mas não estava falando sério. Se estivesse, não teria ficado
longe de mim tanto tempo. Teria escrito.
— Eu lhe disse que não seria um bom marido. E lembro que falou que não se importava, porque tinha
que cuidar da sua carreira.
— Oh, de que adianta falar nisso? Aquilo aconteceu quando éramos pessoas diferentes.
— Mesmo? — Sean a encarou com ar desafiador. — Não. Aconteceu com você e comigo, e o nosso
passado agora esta nos cobrando isso. Temos que fazer algo a respeito. — Serviu-se de mais café. — O
que você quer fazer? — perguntou, virando-se para ela.
Kate tentou adivinhar o que estaria por trás daqueles modos bruscos e ríspidos. Não conseguiu e quis
fugir dali, desaparecer...
— Assim... que eu voltar à Inglaterra... vou pedir que o meu advogado trate do divórcio
amigável. Com o consentimento dos dois. Ela parecia forçar as palavras a saírem de seus lábios.
— Então poderá casar com Barry Wyman?
— Então você ficará livre de mim e poderá viver com Nuala? Ele franziu a testa.
— Ora, por que eu iria fazer isso? — E tomou o resto do café.
— Ela me contou o acordo que fizeram, de viver juntos sempre que estivessem no mesmo lugar. Ela me
disse que o nosso casamento é uma barreira entre vocês. Gostaria de ter sabido disso antes. Gostaria que
você tivesse me falado sobre ela, em Tuxtla. Teria entendido por que desejava o divórcio e teria
providenciado tudo, imediatamente. Agora, só posso lhe pedir que concorde com o divórcio.
— Você e Nuala devem ter conversado muito, depois que virei as costas — ele comentou, em tom
irônico. — Está bem: diga ao seu advogado para me escrever, e tudo estará resolvido.
Kate ficou tonta e teve que se apoiar na cadeira. Estava feito. Tinha pedido e ele havia concordado com o
divórcio.
— Agora, pode me dar a chave do armário? — pediu, com voz fraca.
— Não está comigo. — Então, onde está?
— Não sei. Perdi.
— Perdeu? Não acredito! — gritou. — Oh, pare de me enganar e me dê a chave, ou diga onde ela está.
— Não estou enganando ninguém. Estou dizendo a verdade. Perdi a chave do armário.
— Onde? Como? Sean, como pode ser tão distraído? O que você fez, depois que trancou o armário?
— Coloquei a chave no bolso da minha calça. Desta aqui. — Puxou o forro do bolso para fora. — Vê?
Está vazio. Estava vazio esta manhã, quando procurei a chave.
— Talvez, na noite passada, você a tenha colocado em outro lugar.
— Posso não estar muito normal, mas não estou tão louco. Eu me lembraria. Não tirei a maldita chave do
bolso, ontem à noite. Sei disso, porque já procurei em toda parte. Acho que caiu do meu bolso, quando
peguei o lenço ao levar Padraic para passear. Com certeza caiu na grama, na montanha.
— Já procurou lá?
— Já. Provavelmente, só vai aparecer no inverno.
— Mas eu preciso da minha mala — ela murmurou. — O dinheiro está lá, as chaves do meu
apartamento, meu talão de cheques, a carta me avisando para comparecer à entrevista...
— Que entrevista?
— Na escola onde trabalho. Será depois de amanhã. Vou dirigir o departamento de música. Por isso,
tenho que partir logo. Preciso chegar lá a tempo para a entrevista.
Sean olhou-a, desconfiado.
— Isso é verdade?
— Claro. Por que iria mentir? Se... se não acredita, mostrarei a carta que está na minha bolsa — disse,
indignada. — Sean, você tem que abrir aquele armário!
— Este emprego significa muito para você, não é? Significa muito mais do que Barry Wyman?
— Sim, significa mais do que ele... do que qualquer homem. — Olhou para ele, furiosa.
— Está bem, ganhou — disse, com um sorriso triste. — Vou ver se
acho um pé-de-cabra para arrombar o
armário. Se não achar... bem. derrubaremos a porta com o machado.
O armário deu mais trabalho do que Kate imaginava. Enquanto Sean lutava com a porta, ela lhe contou
sobre a escola e ele falou sobre suas aventuras como repórter.
Finalmente a fechadura cedeu e ela pôde tirar a mala e a bolsa.
— Quer ver a carta? — perguntou, abrindo a bolsa.
— Não precisa. Acredito em você. — E Sean desceu a escada.
Kate foi direto para o banheiro, tomar um banho e se arrumar. Meia hora depois, surgiu, usando um
vestido de seda azul-turquesa e o cabelo preso, mostrando o rosto delicadamente maquilado. No quarto,
colocou as roupas na mala, pegou a capa de chuva e dirigiu-se à porta.
Então, parou e olhou para trás, pensando na noite anterior, e em como Sean havia cuidado dela. Ele era
muito gentil, quando queria. Na verdade, fora por gentileza para com Hugh que chegaram a San Marco,
procurando por ela. Novamente, sentiu-se tentada a ficar, o que sabia que seria uma loucura.
Ouviu a buzina do carro de Nuala e passou apressada pela sala de visitas. Sean não estava lá, nem o
cachorro. Nuala buzinou de novo e Kate foi à cozinha. Nenhum sinal de Sean ou de Padraic. Parecia que
ia ter mesmo que partir sem se despedir.
Mas Sean estava lá fora, junto do carro. Parecia muito diferente do homem que tinha conhecido em San
Marco. Usava terno escuro, camisa branca e gravata vermelha, elegantíssimo.
— Desculpe fazer você esperar, Nuala. Devo colocar a mala no banco detrás?
— Não, ponha aqui. — A outra desceu e abriu o porta-malas. — Você terá que ir no banco de trás. Sean
vai ao castelo conosco.
Kate e Sean se encararam, sérios.
— Mudei de idéia — ele disse. — Resolvi que chegou a hora de ver Nuala no papel de castelã. Por que
não entra logo no carro?
A estrada para Dunane era muito bonita, entrecortada por riachos e margeada por árvores frondosas. O
vilarejo era pequeno, e todas as casas tinham telhados cinzentos. Havia um pequeno porto, onde o sol
brilhava sobre os iates e os curraghs, os barcos de pesca tradicionais da costa oeste da Irlanda.
— Podemos passar peio mecânico e ver se o meu carro já está pronto?
— Kate pediu.
— Martin não está lá a esta hora. Ele sempre vai para casa tomar chá
— Sean disse friamente.
— Não temos mesmo tempo para parar — Nuala falou. — Não se preocupe. Poderá passar esta noite no
castelo e eu a trarei ao vilarejo amanhã de manhã.
— Obrigada — Kate sorriu, percebendo as esperanças de estar na estrada para Dublin naquela mesma
noite.
Recostou-se no banco e olhou a paisagem. As árvores formavam uma espécie de túnel sobre a estrada.
Tudo ali era verde e brilhante, cheio de magnólias rosadas e azuis.
Depois de uma curva, surgiu o castelo, em estilo normando, e Nuala passou a dirigir com mais cautela,
aproximando-se da ponte levadiça. Estacionou no pátio.
— Eu lhe mostro o quarto onde vai dormir esta noite, Kate. Sean, talvez você queira ver mamãe. Ela
está... — Interrompeu-se, mordendo o lábio. Sean se afastava, sem ouvi-la. — Agora, ele está mesmo
desligado. Oh, bem, não temos tempo de correr atrás dele —- disse sorrindo. — Venha, Kate, por aqui.
Passaram por uma pesada porta de madeira e começaram a subir a escada em espiral que ia até as torres.
— Sua família sempre foi dona deste castelo, Nuala?
— Não. Papai o comprou, há vinte anos. Ele instalou o aquecimento central, restaurou o telhado e
modernizou os encanamentos. Meu pai ganhou dinheiro vendendo ferro-velho e agora está muito
satisfeito em ser dono de um castelo. No verão, aluga a parte mais antiga para uma companhia de
turismo que organiza uma série de programas para os visitantes estrangeiros. Este ano Guy Burke, o
diretor da companhia, me pediu para escrever e representar uma peça medieval depois do banquete.
Adorei, porque significa uma boa chance de emprego e porque estava de olho em Sean.
— Mas como sabia que Sean estaria na Casa Moyvalla no verão? — Kate perguntou, quase sem fôlego,
quando chegaram ao fim da escada.
— Eu mesma o trouxe, depois que saiu do hospital. Alguém tinha que
ajudá-lo. — Deu um olhar
crítico para Kate. — E eu era a única
pessoa por perto, capaz de cuidar dele. O quarto era circular,
com uma pequena janela. A cama parecia enorme
e estava coberta por uma espécie de tapete que ia até o chão.
— Espero que fique confortável — Nuala disse, colocando a mala de Kate num banquinho. — A cama
não é tão antiga como parece e o colchão é bem moderno. Aquela porta dá para o banheiro. Papai gastou
muito reformando os quartos de hóspedes, porque gosta de receber gente muito importante. — Foi até a
poria e, então, virou-se. — Você já disse a Sean que vai tratar do divórcio?
— Sim. Ele não contou?
— Não. Mas pude adivinhar, pelo jeito como está se comportando. Já fez alguma diferença. Ele saiu
daquela apatia. Parecia o mesmo quando estávamos conversando na Casa Moyvalla, antes de
você chegar. Obrigada, Kate. Agradeço por nós dois. Estou contente que tenha vindo procurá-lo. Agora,
acredito que ele vai mesmo sarar. Fique à vontade. Desculpe, mas tenho que me vestir.
— Como chegarei à sala do banquete? Não tenho idéia de como se anda pelo castelo.
— Mandarei um dos cantores vir buscá-la.
Meia hora depois,Kate abriu a porta para um jovem que se apresentou como Liam Rosse, cantor do grupo
folclórico Green Folk. Tinha vindo buscá-la para o banquete.
— Nuala disse que você veio para o festival de Ennis. Gostou?
Contente em encontrar companhia, Kate começou a conversar sobre o festival. .
Na porta da sala, Liam murmurou: — Continuaremos a conversa depois da peça. — Eu gostaria muito.
Na entrada, usando um vestido longo de veludo cor de esmeralda, muito decotado. Nuala cumprimentava
os convidados. Kate foi conduzida a seu lugar por uma moça vestida à moda medieval: saia colorida,
blusa branca e um xale preto.
As mesas estavam arrumadas perto das paredes, deixando o centro da sala vazio, para que todos
pudessem ver a peça que ia ser representada. O ambiente era iluminado por velas e, como tudo o mais,
também o menu seguia o estilo medieval, apresentando pratos antigos.
Nuala ia anunciando os pratos e explicando suas origens e ingredientes. O vinho foi servido e os
convidados fizeram um brinde. As velas e a lareira acesas davam à sala uma aparência fantástica.
Kate estava sentada entre duas irmãs americanas de meia-idade, que não paravam de tagarelar, muito
animadas com a primeira visita que faziam â Irlanda.
Do outro lado da sala, viu Sean conversando com uma loura e parecendo muito interessado. Sentiu uma
pontada no estômago (seria ciúme?) e tentou disfarçar que não havia ouvido nada do que as americanas
tinham dito nos últimos minutos.
Finalmente, os pratos vazios foram retirados, mais vinho servido e apagaram-se algumas velas. Ia
começar a peça.
Os jovens que tinham servido a mesa agora estavam transformados em atores e iam contar, com músicas,
a história do castelo. Nuala era a princesa irlandesa, única sobrevivente de uma família celta, cujo forte
tinha sido destruído pelos invasores normandos. Cantou sua súplica ao guerreiro normando e ele lhe
respondeu, pedindo-a em casamento, convidando-a a ajudá-lo a reconstruir o castelo e criarem uma nova
família.
Kate estava encantada com a história. Depois de muitas canções e poemas, a peça terminou e os turistas
começaram a se retirar. Viu Liam em um grupo e dirigiu-se a ele. Com o canto do olho percebeu que
Sean saía com Nuala.
O estábulo construído com pedras tinha sido transformado em alojamento para o grupo folclórico e Kate
ficou conversando com eles, testando uma série de instrumentos antigos e conhecendo as musicas dos
irlandeses, escoceses, galeses e ingleses, assim como músicas tradicionais dos Estados Unidos e Canadá,
cujas origens remontavam às vaiadas irlandesas.
A lua estava alta quando voltou ao castelo. Subiu direto para o quarto da torre. Nem tinha percebido o
tempo passar, como sempre acontecia quando estava em companhia de pessoas que, como ela, gostavam
de música.
Mas o som de risos à distância fez com que se lembrasse de Sean. Ele
estava em algum lugar daquele
castelo, com Nuala, e sua paz de espírito desapareceu. Mordendo o lábio para não gritar, subiu correndo
os degraus que faltavam para chegar a seu quarto.
Ficando longe dela durante o jantar e saindo com Nuala, Sean tinha deixado bem claro que pretendia
continuar seu caso com aquela mulher e que o casamento não significava nada.
Bem, os dois podiam ficar juntos e ir para o inferno. Eram muito parecidos. Ambos tinham traços
marcantes, olhos claros e os cabelos escuros dos celtas. Ambos eram ambiciosos, egoístas e não se
importavam com as outras pessoas que magoavam.
Não ia perder o sono pensando neles. Ia dormir e chegar à Inglaterra repousada no dia seguinte, pronta
para o trabalho, depois de tudo o que vira e ouvira naquela linda terra verde.
As dobradiças rangeram quando Kate abriu a porta do quarto. A luz do luar entrava pela janela alta,
mostrando que havia um homem deitado na cama.
CAPITULO VII
Estremecendo, Kate fechou a porta e se encostou nela, observando a cama. Não estava enganada. Era
Sean, e parecia dormir profundamente, pois nem se perturbara com o barulho da porta.
Aproximou-se e olhou para ele. Seu perfil se salientava ao luar e os cílios pareciam ainda mais escuros,
de encontro à pele clara. Gostara dele desde a primeira vez que o vira, na Missão de Santa Rosa. Na
época, achara que a atração física entre ambos estava além de seu controle.
Ainda era muito forte. Por que não admitir que estava com dificuldade para se controlar? Queria tocá-lo,
acariciar aquele cabelo, deitar ao lado dele e acordá-lo com um beijo. Seu corpo parecia pegar fogo. Era
um desejo que nunca sentira por nenhum homem. Nem podia se imaginar sentindo aquilo por outro.
— Sean — murmurou, e tocou seu ombro de leve, — Acorde, por favor!
Ele respirou fundo e, depois de alguns momentos, abriu os olhos, piscando.
— Kate?
— Sim, claro.
— Você voltou tarde. Por onde andou? — Ergueu-se sobre um cotovelo, e o coração dela
disparou.
— Estive com os cantores, no estábulo, onde estão alojados. Cantamos algumas canções. Pensei que
você tivesse voltado a Moyvalla ou... que estivesse com Nuala. Vi que saiu da sala do banquete com ela.
— Nuala insistiu para que eu fosse ver a mãe dela. Havia uma festinha particular, na parte do castelo
onde mora, para alguns amigos de teatro e um produtor que quer fazer um filme sobre o castelo, tendo
Nuala como estrela. Não aguentei a conversa deles e saí. Ia voltar para Moyvalla, mas queria me despedir
de você e vim até aqui.
— Como sabia que Nuala tinha me dado este quarto?
— Eu não sabia. Descobri por instinto. Você não estava aqui, e eu me sentia muito cansado; por isso,
deitei um pouquinho para esperar. — Sentou na cama e ela sentiu o coração disparar de novo. —
Estou contente que tenha voltado.
Kate sentiu seu hálito adocicado pelo uísque e viu que a camisa dele estava desabotoada até a cintura. O
impulso de se atirar nos braços do marido era quase irresistível.
— Você esteve bebendo outra vez — acusou suavemente, cruzando os braços, para não cair na tentação
de tocá-lo.
— Só no banquete. Mas confessa que dormi por causa disso — ele murmurou. — Gostei do brinde que
Nuala fez, no banquete, aos casais em lua-de-mel. — Acariciou o queixo dela. — Lembra da
nossa lua-de-mel, Kate?
— Nós... não tivemos lua-de-mel. Só passamos uma noite juntos. — Estava quase sem fôlego e sentia-se
dolorida por dentro, de tanto esforço para controlar o desejo.
— Mas foi uma noite de núpcias, não foi? — Ele desamarrou o laço que prendia o decote do vestido. —
Podíamos ter uma noite maravilhosa hoje, juntos.
Finalmente ela o tocou na mão, tentando impedi-lo de lhe tirar o vestido.
— Sean, por favor, comporte-se! É tarde e...
— Claro que vou me comportar — ele disse, rindo e desabotoando o último botão. — Vou me comportar
como todos os maridos se comportam na lua-de-mel.
Seus lábios tocaram os dela, gentilmente; depois, desceram até a curva
do pescoço, e pareciam queimá-la de paixão. As últimas resistências de Kate caíram por terra, mas, ainda
assim, tentou se afastar.
— Sean, não devemos... — murmurou, enquanto lhe acariciava os ombros e o peito.
— Por que, se nós queremos? — Beijou-a novamente. — E não tente dizer que não quer. Sei que é
mentira.
— Mas... não vai significar nada... Vamos nos divorciar. — Pretendia se afastar, fugir para longe dele,
sair da cama para onde ele a havia puxado, mas a resposta de seu corpo era muito mais forte e a fez
render-se completamente.
— Isso sempre significará algo para mim — Sean murmurou. — E não tem nada com o fato de estarmos
casados. Nada mesmo, Kate. Você não acreditou que eu ia deixá-la partir amanhã, sem lhe dar algo para
lembrar de mim, não é?
Seus lábios se encontraram gentilmente, num beijo tranquilo. Aos poucos, deitaram-se juntos, um
terminando de despir o outro e sentindo a paixão aumentar a cada segundo.
— Será melhor desta vez — Sean murmurou. — Iremos juntos, sem ninguém dominando. Você agora é
uma mulher forte, bonita, suave, não uma menininha magra e ingênua que começava a aprender. Sua pele
agora está macia, seu cabelo parece seda e seus lábios estão como pétalas de rosa. Seus seios... Oh,
Kate... — Seus lábios procuraram os dela, como se nada mais importasse, a não ser os dois juntos ao luar.
Kate acordou lentamente, percebendo o mundo aos poucos. Primeiro sentiu o calor de um corpo a seu
lado; depois, ouviu a respiração dele.
O quarto estava claro e ela piscou. A cabeça de Sean repousava em seu ombro esquerdo e ele ainda
dormia, depois de ter satisfeito a sua paixão.
Será que tinha sido só isso? A satisfação de um desejo físico? Mais nada? Será que não houvera um
encontro espiritual? Uma verdadeira união? Kate suspirou e procurou libertar seu braço. Devia ter saído
voando daquele quarto assim que o vira dormindo ali, na noite anterior. Não devia ter deixado que o
desejo a dominasse. Mas, mesmo agora, não sentia vontade de sair da cama. Ao contrário: queria se
aconchegar ao corpo do marido, acariciá-lo, até que acordasse... Oh, Deus! Fugiu da
cama e começou a
recolher as roupas. Era tarde e precisava ir para Dublin. Tinha de chegar a Westcourt a tempo da
entrevista.
Havia tomado banho e estava quase pronta quando ouviu alguém batendo na porta.
— Quem é?
— Nuala. Trouxe-lhe chá e torradas.
Desesperada, Kate olhou para a cama, onde Sean ainda dormia.
— Um momento.
Correu para a cama e jogou a colcha cobrindo Sean completamente. Abriu a porta, trêmula. Nuala vestia
um robe e trazia uma bandeja com chá e torradas. Entrou no quarto e colocou tudo sobre uma mesinha
perto da janela dizendo:
— Vou para Dunane dentro de vinte minutos.
Kate levou a mão à boca, em pânico. A camisa de Sean estava atirada no chão e a calça, jogada sobre uma
cadeira. E se Nuala tivesse visto? Mas a moça já estava saindo.
— Dormiu bem?
— Sim, obrigada. Gostei muito da representação e das músicas.
— Brendan, Liam e Colleen também gostaram muito de você. Disseram que tem uma voz
muito boa. — Nuala observou Kate de alto a baixo. — Você é bonita, também. Já pensou em fazer
carreira no teatro?
— Não. Gosto de meu trabalho.
— Então, não depende de Sean?
— Claro que não! Nunca dependi.
— Você o viu ontem à noite, depois de sair do estábulo e vir para cá?
— Por que está perguntando? — Kate desejou não corar e continuar olhando diretamente nos olhos de
Nuala.
— Eu pedi a ele que passasse a noite aqui, mas acho que decidiu voltar para Moyvalla, porque não está
no quarto que reservei para ele — Nuala explicou. — Estava estranho e fiquei preocupada. Por isso,
sugeri que ficasse. Mas não quero atrasar você. Devemos partir logo.
Nuala saiu, fechando a porta. Suspirando, Kate serviu-se de chá, observando o rio que brilhava ao sol.
Ouviu Sean se mexer na cama e olhou depressa. Ele tinha atirado longe a colcha e virado para o outro
lado.
Tomou o resto do chá, terminou de se vestir, arrumou a mala e trancou.Depois, fez a maquilagem, pegou
a capa de chuva. Estava pronta para partir. Dessa vez, ninguém iria impedi-la. O carro estaria pronto e, no
fim da tarde, chegaria a Dublin.
Olhou para a cama e perdeu toda a coragem. A mala caiu a seus pés. Sentou-se ao lado de Sean,
curvando-se sobre ele. Não queria deixá-lo. Queria ficar ali. Por quê? Para que pudesse fazer amor outra
vez? Não sabia. Pensava que sabia de tudo, em San Marco, mas agora percebia que sentira por ele apenas
a adoração por um herói, por um cavaleiro andante que tinha vindo salvá-la. Aquilo desaparecera e tinha
achado que havia acabado; descobrira que ele tinha defeitos, como todas as outras pessoas. Sean abriu os
olhos e a encarou. Kate levantou-se, pegou a mala e aproximou-se da porta.
— Nuala está esperando para me levar a Dunane. Adeus, Sean — disse, friamente.
— Espere um minuto!
Ele estava sentando na cama.
— Não tenho tempo, preciso estar em Westcourt esta noite. — Girou a maçaneta. — Adeus.
— Adeus, Kate — ele falou, baixinho, e ela o observou recostar-se no travesseiro, com os braços
cruzados atrás da cabeça. — E boa sorte na sua entrevista. Cuidado no caminho.
— Sim. — Saiu e fechou a porta.
Sentindo-se dividida (uma parte que partia e outra que ficava com Sean), desceu correndo a escada.
No pátio, o sol brilhava sobre o carro de Nuala. Saíram pela estrada, e Kate logo percebeu que a outra não
estava de bom humor.
— Telefonei para Moyvalla — ela disse —, e ninguém atendeu.
— Pode ser que ele ainda estivesse dormindo — Kate respondeu, tentando parecer indiferente.
Pensando bem, Sean não ficara nem um pouco perturbada com sua partida. — Ou pode ser que tenha ido
pescar.
— Pode ser — Nuala murmurou. — Espero que esteja certa. Acho que vou até lá, depois de deixar você
no McCormic, só para ter certeza. Falou mesmo sério, ontem? Vai mesmo cuidar do divórcio, assim que
chegar na Inglaterra?
— Falei sério.
— E Sean concordou?
— Sim, concordou.
— Você vai casar novamente?
— Ainda não sei.
Kate ficou aliviada ao ver que tinham chegado à oficina e que seu carro estava parado perto de uma
bomba de gasolina.
— Espero que seu carro esteja pronto — Nuala disse. — Quer que eu espere, até saber se pode viajar
com ele?
— Você pode esperar?
— Claro. Se não estiver pronto, posso levá-la até Ennis, onde você pegará um ônibus ou trem. — Nuala
sorriu. — Vê como estou ansiosa para me ver livre de você? Acho que você significa um certo perigo
para minha amizade com Sean.
— Não confia nele?
— Não, com alguém tão atraente como você por perto. E ainda por cima, casada com ele.
Martin McCormic apareceu e conversou com Nuala na gíria local, deixando Kate de lado, incapaz de
entender uma só palavra.
— Ele disse que você já podia ter usado o carro ontem à tarde — Nuala falou, franzindo a testa.
— Mas Sean falou que os fios elétricos estavam molhados.
— Parece que agora estão ótimos — Martin disse. — A bateria tinha acabado, mas já recarreguei.
O motor pegou na primeira tentativa. Kate se despediu do mecânico e de Nuala e foi embora. Estava
irritada com Sean por tê-la enganado na
véspera.
Mas tudo era culpa do tio Hugh, pensou. Não ia se apaixonar por Sean outra vez. Quando chegasse a
Dublin, se tivesse tempo, iria ver Hugh e dizer quanto estava zangada.
Dirigiu velozmente pela costa e não diminuiu a velocidade, ao se aproximar de Moyvalla. Viu o
Volkswagen preto de Nuala entrar na curva do caminho e riu, pensando que a outra não ia encontrar
ninguém em casa.
Não havia engarrafamento na estrada, e logo passou por Ennis, pegando a direção de Limerick, ao longo
do rio Shannon. Surgiram as muralhas do castelo do rei João e, além da fortaleza, a estrada verde-
esmeralda para Dublin.
À tarde, entrou na cidade. O ar estava pesado de fumaça, os engarrafamentos eram terríveis e Kate sentiu
os ombros e p pescoço doloridos de tanto dirigir. Estava com fome também. Entrou em uma rua
transversal, parando diante de uma pensão. Tinha acabado de tirar o mapa do porta-luvas, para ver onde
estava, quando um policial estacionou a seu lado. Era um guarda da polícia irlandesa. Kate baixou o
vidro.
— Não pode estacionar aqui, senhorita.
— Só parei para dar uma olhada no mapa.
— Onde pretende ir?
— Rua Milford.
— Acho que pode ir por ali. — Ele indicou o caminho. — Se me seguir, eu mostro.
— Não vou atrapalhar?
— Nem um pouco. É mais fácil do que lhe explicar. Vamos? Passaram por uma porção de ruas estreitas e
antigas, e ela se viu
estacionando diante do jardim da casa de Hugh. Agradeceu ao guarda e desceu. Geraldine O'Connor
atendeu.
— Alô, tia Gerry. Tio Hugh está em casa? Geraldine olhou para o céu, dizendo:
— Que os santos nos protejam! De onde você saiu?
— Vim de Dunane. Não é longe da Casa Moyvalla e tenho certeza de que já ouviu falar do lugar — Kate
disse, cansada. — Lamento ter assustado você, tia Gerry.
— Dirigiu tudo isso hoje? — Geraldine ficou surpresa. Era uma mulher baixa e gordinha, de olhos
castanhos e rosto redondo. — Por quê?
— Tenho que estar em Westcourt amanhã. Vou pegar um avião esta noite. Tio Hugh está em casa?
— Claro que sim. Ele está sempre na máquina de escrever. Vamos entrar, acabei de colocar uma chaleira
no fogo. Você parece precisar mais do que de um chá. Tem certeza de que não pode passar a noite aqui e
pegar o avião amanhã?
— Certeza absoluta.
Subiram a escada e entraram no corredor.
— Hugh, venha ver quem chegou! Você nunca adivinharia. Venha até a cozinha.
A cozinha era grande e clara, parecida com a da casa que os O'Connor tinham em Hampstead. Havia
plantas na janela e um papagaio numa gaiola. Geraldine espantou os dois gatos que tinham se acomodado
num banco e convidou Kate a sentar.
— Casa Moyvalla? — repetiu, espantada. — Por que acha que conheço esse lugar?
— Hugh passou alguns dias lá, no começo de agosto — Kate disse, suspirando e fechando os olhos.
— Passou, mesmo. Ele disse que tinha ido pescar. — Geraldine pegou umas colheres. — Mas você não
foi lá por causa disso. Você pesca, Kate?
— Não. Fui até lá por causa do convite de Hugh. — Algumas vezes, a distração de Geraldine a deixava
furiosa.
— E por que ele fez isso? — a tia perguntou.
— É o que quero saber — Kate respondeu friamente. Naquele momento, a porta da cozinha se abriu e
Hugh entrou.
— Kate! Que, diabo, está fazendo aqui? Por que não está em Moyvalla, com Sean? —
Abraçou-a e beijou-a no rosto. — Não recebeu a minha carta, convidando-a para ir lá?
— Sim, e respondi que chegaria anteontem, para passar uma noite. Não recebeu a minha resposta?
— Sean mandou a carta para cá. — Ele a olhou de perto. — Não pude ficar lá até você chegar.
— Quer dizer que não tinha intenção de me esperar lá? Quer dizer que me enganou, me fazendo ir lá?
Por que não disse que a casa era de Sean?
— Bem, você disse que queria vê-lo. Então, pensei...
— Eu não disse isso — interrompeu, furiosa. — Escrevi dizendo que queria saber onde ele eslava para
poder entrar em contato. Não queria vê-lo. Não queria. Não queria! — De repente, para sua própria
surpresa, caiu no choro, soluçando alto. — Oh, tio Hugh, eu não queria vê-lo de novo. Só saber onde
estava.
— Sim, sim, sim... — ele murmurou, abraçando-a.
— A chaleira está fervendo — Geraldine interrompeu. — Logo o chá estará pronto. Parece muito
cansada, Kate, viajando tanto tempo sozinha. Venha comer alguma coisa. Há sorvete de morango e
geléias. Hugh, ela
disse que tem que pegar o avião para Londres esta noite, mas acho que seria melhor
dormir aqui não é?
— Não posso — Kate interrompeu, limpando o rosto. — Tenho uma entrevista amanhã de manhã. Eu lhe
disse tudo isso, na minha carta.
— Disse, mesmo. Disse, mesmo. — Hugh pegou o cachimbo.
O chá estava ótimo e as geléias de frutas, deliciosas. Kate comeu e bebeu, enquanto Geraldine
conversava, contando que ela e Hugh logo seriam avós e perguntando o que Kate pretendia resolver a
respeito do casamento.
— Agora que viu Sean novamente, quais são os seus planos? Não pretendem morar juntos?
— Não. Vou me divorciar. Era por isso que queria saber onde ele estava, para o advogado procura-
lo. Podia ser feito sem que nos encontrássemos novamente.
Houve alguns minutos de silêncio, e ela sabia que os tios não tinham aprovado a sua decisão.
— Sean nunca desejou estar casado. Só casou para me ajudar em San Marco — disse, na defensiva. —
Ele queria o divórcio, logo que eu voltasse para a Inglaterra. — Encarou Hugh, com ar de desafio. — Por
que fez isso, titio? Por que me convidou para ir à casa dele, sem avisar que não estaria lá?
— Sim, por que fez isso, Hugh? — Geraldine repetiu.
— Tive boa intenção. — Hugh soltou uma baforada do cahimbo. — Não gostei nada do que vi lá. Nada,
mesmo. Como você não o procurou, depois do acidente, pensei que já tinha posto um fim ao casamento,
mas ele não estava feliz nem estava se recuperando e começou a beber demais. Assim, achei que era hora
de vocês se encontrarem de novo. Kate, por que não o procurou, depois do acidente?
— Porque eu não soube de acidente nenhum. Não soube nem que ele esteve no hospital. Tudo o que
soube é que ia me ver no Natal, e não apareceu. — Kate respirou fundo. — Gostaria de ter me divorciado
logo que cheguei aqui... então... nada disso teria acontecido. Nós... estaríamos livres um do
outro. — Piscou, procurando conter as lágrimas e levantou-se, depressa. — Tenho que pegar o avião.
— Pelo jeito, a sua tentativa de unir o casal não deu certo — Geraldine observou secamente.
— Estará cometendo um erro se pedir o divórcio agora, Kate — Hugh disse, nervoso. — Não deu
chances ao seu casamento.
— Sim, eu dei. Dei dois anos e, durante esse tempo, Sean não escreveu nem me procurou. Só no
último Natal ficou de me procurar, e agora sei que desejava saber se eu tinha me divorciado ou não. Ele
não ia me procurar porque me amava. Não casou comigo porque me amava. Agora sei que esperei demais
dele. Muito mais do que é capaz de dar. Jamais cometerei esse tipo de erro novamente, podem ter certeza
disso.
Notou que os dois estavam aborrecidos. Ambos eram muito religiosos e acreditavam que o casamento e a
família eram a base da sociedade. Quando Kate se despediu, os tios a abraçaram temamente e pediram
que voltasse a vê-los.
Pegou o avião logo em seguida e, durante uma hora de vôo, pensou no que Hugh tinha dito sobre Sean.
Era estranho que tanto o tio quanto Nuala estivessem preocupados com o comportamento diferente dele,
mas ambos tinham suas explicações. Nuala disse que era devido à infelicidade de ainda estar casado com
ela. Hugh insinuou que Sean estava assim por insegurança a respeito do relacionamento deles.
Quanto mais cedo se livrasse de tudo aquilo, melhor. Melhor para ela também. O casamento em San
Marco era um problema e impedia que se tornassem amigos. Logo que terminasse a entrevista, iria ver
Paul Holgate e dar o endereço da Casa Moyvalla, para que pudesse escrever a Sean.
Eram onze horas quando Kate chegou a Westcourt. Subiu a escada, entrou, jogou a mala no quarto e
começou a se despir. Tomou um banho rápido e deitou-se.
Horas mais tarde, ainda estava acordada, observando o luar e pensando em Sean. Depois de tê-lo
encontrado e passar duas noites com ele, seu coração disparava só em lembrar do brilho daqueles olhos
cinzentos. Não conseguia esquecer, apesar de tentar pensar na segurança do emprego em Netherfield, na
possibilidade de uma promoção e na vida rotineira em Westcourt.
Quando Sean a deixou na Cidade do México, e não voltou mais durante dois anos, ele a libertou da
promessa que fizeram no dia do casamento. Ao sair do castelo de Dunane, naquela manhã, ela o libertou
também.
Mas era uma liberdade amarga. Deitada ali, lembrando de tudo, de seu corpo contra o dele e de suas
carícias, sentiu vontade de morrer.
Será que era desejar demais que ele estivesse sentindo a mesma coisa? Será que Sean a amava e agora
percebia que ela também o amava? Mas, caso se amassem, precisariam ficar testando um ao outro? Não
deviam estar sentindo as mesmas sensações juntos?
Dormiu tarde e acordou cedo. Sentia-se infeliz, cansada e foi assim que saiu para a entrevista. Para sua
surpresa, a srta. Forbes e outros membros do conselho da escola limitaram-se a cumprimentá-la pelo
trabalho que tinha feito no ano anterior e pediram sugestões para o departamento de música. Depois
agradeceram e avisaram que, nas próximas semanas, receberia uma carta, comunicando se tinha sido
aceita para o novo cargo.
No dia seguinte, Kate foi a Londres, falar com Paul Holgate. Deu-lhe o endereço de Sean e avisou que ele
poderia escrever pedindo o consentimento para o divórcio. Fez algumas compras e voltou a Westcourt.
Barry a esperava do lado de fora do apartamento.
— Como foi a viagem à Irlanda, querida?
— Ótima. Adorei o festival.
— Viu seu tio? — Entrou, ajudou-a a colocar as compras no sofá da sala e sentou-se.
— Vi. — Kate tirou o chapéu de palha que usava e soltou os cabelos. — Ele lhe deu a informação que
você queria?
— Que informação? — perguntou, cautelosa, indo para a cozinha, fazer um chá.
— Sobre o paradeiro de Kierly?
— Oh, sim. Paul vai escrever a Sean hoje.
— Ótimo. Como foi a entrevista em Netherfield?
— Todos foram muito gentis... gentis demais. Achei que não estão muito interessados em mim.
— Tem planos para o resto das férias?
— Nenhum.
— Então, venha com Carol, minha irmã e o marido dela. Vamos fazer um cruzeiro até a França.
Voltaremos no meio da semana que vem.
Kate olhou ao redor, lembrando da agonia da noite passada. Qualquer coisa seria melhor do que ficar
sozinha na próxima semana. O cruzeiro afastaria os problemas de sua mente.
— Aceito. A que horas devo estar pronta?
O cruzeiro foi perfeito sob todos os pontos de vista. O clima estava átimo e a companhia era muito
agradável. Apesar disso, Kate sentia-se ansiosa para voltar a Westcourt e, quando chegou ao apartamento,
subiu correndo para verificar a correspondência.
Primeiro, procurou uma carta de Sean, mas não encontrou nenhuma. Encontrou um envelope da escola,
avisando-a de que não havia conseguido o cargo, que tinha sido oferecido à srta. Célia Fromsett, doutora
em Música, e desejando que ambas se dessem muito bem. Devia se apresentar três dias antes das aulas
começarem, para conhecer a nova diretora.
CAPÍTULO VIII
Lá fora, algumas folhas secas rodopiavam ao vento. Novembro estava no fim e o clima ainda era ameno.
Tinha sido um outono agradável, e Kate estava sentada ao lado do piano de cauda, enquanto Carol
Wyman estudava.
Sentia-se distraída e lembrava que já tinham se passado quase três meses desde que deixara Sean no
castelo de Dunane. Três meses, e nenhuma palavra dele.
Geralmente, não se permitia pensar em Sean durante o dia. Fazia o possível para não lembrar dele,
trabalhando o tempo todo. Mas estava cansada e sabia por quê. Não conseguia dormir bem e, a cada dia
que passava, lembrava cada vez mais dele. Agora, como se sentia fraca, as recordações a dominavam
durante o dia também.
— Srta. Lawson. — A voz aguda e fria de Célia Fromsett trouxe-a à realidade.
Kate endireitou-se e olhou para a porta. A nova diretora do departamento de música usava grandes óculos
de lentes bem grossas e tinha um ar de coruja. Kate não simpatizara com ela, desde o primeiro encontro.
No começo, pensava que era porque a mulher tinha conseguido o posto que desejava. Mas, com o passar
do tempo, viu que sua antipatia era porque a outra tratava muito mal as pessoas.
Agora, como se sentia cansada, sua irritação estava à flor da pele, e Kate levantou-se, lentamente.
— Srta. Fromsett, sei que, como diretora do departamento, pode me chamar sempre que quiser, mas
acontece que estou dando uma aula particular e estamos fora do horário da escola. Portanto, não tem
direito nenhum de interromper.
Os olhos de Célia brilharam como água gelada.
— Certo, Carol — Célia disse. — Já chega. Está bem óbvio que não estudou esta música. Na verdade,
não sei se você já estudou piano alguma vez. Parece que seu pai está jogando dinheiro fora, pagando essas
aulas. Seu talento musical é nenhum. Pode sair, agora. Vá para o seu quarto.
— Mas não terminei a minha aula — a garota reclamou, virando-se e encarando a srta. Fromsett. — Só
saio se a srta. Lawson mandar.
— Eu disse que sua aula terminou, e isso é suficiente — respondeu Célia. — Agora, faça o que mandei.
Vá para o seu quarto o mais depressa possível. Vou falar com seu pai, para você desistir da música.
— Mas não quero desistir. Gosto de tocar piano e de fazer parte da. orquestra da escola. — Olhou para
Kate, com os olhos marejados de lágrimas.
— Carol, faça o que a srta. Fromsett mandou — disse, procurando se controlar e falando o mais
calmamente possível. — Vejo você mais tarde.
Carol pegou a partitura e saiu da sala. Kate olhou para Célia, com vontade de esganá-la.
— Não precisava fazer isso. Carol é uma criança sensível. Tocar piano e flauta na orquestra ajudou-a
muito a superar certos problemas de sua vida. Não sei se sabia, mas a mãe a abandonou quando estava
com oito anos e...
— Srta. Lawson — a outra interrompeu —, é hora de perceber que o departamento de música desta
escola não existe para servir como terapia ocupacional para crianças neuróticas. Se Carol precisa desse
tipo de tratamento, devia ir para uma escola especializada. Ela não tem nenhum talento musical e suas
aulas de música são uma perda de tempo e dinheiro.
— Não concordo. Ela toca muito bem...
— Muito bem! — Célia sorriu. — Mediocremente, isso sim. E não tenho tempo para alunas medíocres.
Estou resolvida a transformar em
concertistas todas as nossas estudantes de música. Na próxima
primavera, a escola de Netherfield deve ter uma orquestra capaz de participar dos mais importantes
festivais, portanto não posso perder tempo com garotas como Carol. De qualquer modo, você sabe que só
está encorajando essa menina para agradar o pai, porque é amante dele.
O choque atingiu Kate como uma ducha de água fria. Respirou fundo e sentiu a raiva subindo,
consumindo-a, à medida que procurava se controlar. De repente, não se importou mais nem com Célia
nem com seu emprego ali.
— Isso não é verdade! Não sou amante de Barry Wyman! — gritou.
— Espera que eu acredite nisso, quando todos sabem que passa suas horas livres com ele e,
frequentemente, se hospeda em sua casa, nos fins de semana?
— Só me hospedei em Rosedene uma vez e porque fui convidada pela sra. Wyman, a mãe dele. E não fui
a única hóspede: Carol também estava lá.
— Parece que está defendendo demais a sua inocência — Célia riu.
— E parece que você está se metendo em assuntos que não são da sua conta — Kate protestou,
levantando a cabeça bem alto. — Não entendo como conseguiu chegar ao cargo de diretora de música
aqui. Pode ser muito competente, mas não sabe como tratar as pessoas; principalmente, as alunas. Não
tem jeito. É mesquinha e desagradável...
— Ah, agora você está se revelando — Célia disse, aproximando-se, mas mantendo a frieza. — Queria o
meu lugar, não é? Achou que estava garantido. Deve ter ficado muito desapontada quando seu amante
não usou a influência que tem sobre o comitê escolar a seu favor. Bem, já que estamos falando verdade,
quero deixar bem claro que não gosto do seu modo de trabalhar. Não exige disciplina e não melhorou os
seus métodos de ensino. Terei que reclamar com a srta. Forbes e insisto para que peça demissão. Assim,
alguém mais competente poderá substituí-la.
— E se eu também fizer algumas reclamações sobre você? — Kate disse, pegando a bolsa e saindo da
sala. Pressentia que, se ficasse ali, acabaria fazendo alguma coisa de que poderia se arrepender.
Sentia-se enjoada, ao caminhar para a sala da diretora. Queria falar com a srta. Forbes imediatamente e, se
necessário, pediria demissão. Estava magoada por ter que fazer aquilo. Significava que tinha sido
vencida por Célia Fromsett. Significava que teria que desistir de Netherfield e dos amigos que
tinha feito ali.
Bateu na porta da secretaria e entrou. Karen Williams estava batendo à máquina.
— A diretora está?
— Não. Vai passar a tarde toda em Londres. Posso ajudar?
Kate entrou e fechou a porta. Agora, depois da explosão de raiva, sentia-se muito fraca.
— Tive uma discussão terrível com a srta. Fromsett — disse, quase sem fôlego. — Estou me sentindo
mal. Posso sentar um pouquinho?
— Claro — Karen indicou uma cadeira. — Hummm, você está pálida. A srta. Dmmmond disse, outro
dia, que você parecia muito cansada.
— Devo estar mesmo, se até ela notou — Kate disse, sorrindo. Margery Drummond era vice-
diretora e uma das pessoas mais distraídas do mundo.
— Já procurou um médico?
— Não — Kate respondeu, sentando-se.
— Devia. Pode estar com anemia.
— Não tenho dormido bem, é só isso.
— Está preocupada com alguma coisa? Não deve se sentir muito feliz, trabalhando com Célia Fromsett.
— Dá para perceber?
— Um pouquinho. Sei que a diretora está preocupada com a situação. Gostaria de falar com ela
amanhã de manhã? Posso marcar uma entrevista. Qual o seu horário livre?
— Dez horas.
— Dez horas está bem. — Karen marcou na agenda. — E se não vier, mandarei chamá-la.
Ao voltar da escola até o vilarejo, Kate sentiu-se reanimada. Estava melhor e achou bom ter esclarecido
as coisas com Célia. Seu temperamento não lhe permitia se controlar muito tempo. Tinha que falar o que
pensava.
No apartamento, encontrou algumas cartas. Uma era da avó e a outra, de Paul Holgate. Kate abriu a
última, com as mãos tremendo.
"Já recebemos a resposta do sr. Kierly. Parece que, no momento, ele não está de acordo com o divórcio
amigável e lamenta ter demorado para
responder à nossa carta, mas disse que só a recebeu há pouco
tempo. Atualmente, está a serviço no Oriente Médio. Deseja que continuemos com as formalidades para
realizar o divórcio? Já tem motivos suficientes para conseguir se divorciar. Talvez possa vir até nosso
escritório, para discutirmos o assunto."
Kate dobrou a carta e colocou-a no envelope. Agora sabia por que não tinha tido notícias de Sean. Ele
colocara a carreira acima dela, como sempre. Mas, por que ele não concordara com o divórcio amigável?
De que adiantava continuarem casados, se não conseguiam se entender e nunca estavam juntos? O que
devia fazer agora?
Estava cansada de se preocupar com aquilo. Se ao menos pudesse vê-lo, para discutir o assunto. Se ao
menos tivesse ficado mais tempo em Moyvalla. Se ao menos não tivesse colocado a sua carreira em
primeiro lugar, se não tivesse voltado correndo para uma entrevista que não passara de uma farsa. Mas só
podia culpar a si mesma e à própria impulsividade por aquela situação.
Na manhã seguinte, às dez horas, estava na sala da diretora.
— Bom dia, srta. Lawson. Por favor, sente-se.
A sala era tranquila e clara, com duas janelas altas, e decorada com
móveis antigos muito elegantes. A srta. Forbes tinha um ar benevolente e
calmo.
— Qual é o problema? — perguntou. Kate ergueu a cabeça dizendo:
— Devo lhe dizer que não consigo trabalhar com a srta. Fromsett e gostaria de apresentar meu pedido de
demissão.
A outra piscou, mas continuou impassível.
— Claro que já percebi que não se deu muito bem com a srta. Fromsett — disse a diretora. — Tinha
certeza de que, a qualquer momento, vocês iam se entender, em benefício da escola. Posso saber qual é o
problema?
— Ela vê tudo de um ponto de vista diferente do meu. Exige muita disciplina, enquanto que eu
acredito que as alunas devem se autodisciplinar. E, várias vezes, já interrompeu minhas aulas
particulares para criticar as alunas. Ontem à noite, era Carol Wyman, e ela disse à garota que não tem
nenhum talento musical e devia desistir da música.
Novamente a srta. Forbes não se alterou.
— Você está indo muito bem com Carol — disse ela. — percebi como o comportamento dela melhorou,
desde que você começou a lecionar aqui na escola. Na verdade, é muito querida por todas as suas alunas
e, se for embora, sentirão sua falta. Devo dizer que estive esperando seu pedido de demissão, desde o
começo das aulas; mas não pelo motivo que apresentou agora.
— Estava esperando? — Kate perguntou, espantada.
— Sim.
— Por quê? Não pensou que eu ia me demitir porque não consegui o cargo da diretora do departamento
de música.
— Não. Pensei que ia se demitir para casar. Sei que seu futuro marido não quer que continue lecionando
em Netherfield, depois de casada, e foi com base nisso que decidi não escolhê-la para chefe do
departamento de música.
— Quem lhe deu essa informação? — Kate murmurou, sentindo a boca seca.
— Um dos membros do conselho. E senti que seria uma perda de tempo designá-la, pois logo estaria
deixando a escola.
— Então, por que me entrevistaram?
— Tentamos avisá-la para não vir à entrevista, mas você estava na Irlanda e não havia meio de entrarmos
em contato.
— Então, por isso a entrevista foi tão esquisita. Não passou de mera formalidade — Kate murmurou. —
Oh, como eu gostaria de ter sabido. Não teria voltado tão apressadamente. — Agora, era a srta. Forbes
que a olhava, confusa. — Só voltei para a entrevista porque achava que tinha boas chances de ser
escolhida — explicou.
— Confesso que a encorajei. — A diretora suspirou. — Gostaria de vê-la aceitando o desafio de
organizar o setor de música da escola e estava convencida de que seria capaz de fazer um trabalho
admirável. Tinha certeza de que o comitê também concordava comigo... mas o coronel Critchelow e seu
estilo conservador ganhavam, naquele dia. — Sorriu, com ar cínico. — Como quase todos os
membros do comitê têm interesses financeiros na escola, não consegui persuadi-los de que a srta.
Fromsett não era a pessoa mais indicada para esse tipo de trabalho. Entende?
— Entendo — Kate disse, levantando-se. — Eu lhe trarei a minha carta de demissão, assim que estiver
pronta.
— Deve saber que não será possível cancelar o seu contrato até a Páscoa. — A srta. Forbes também se
levantou. — Até lá, pode ser que você e a srta. Fromsett já tenham resolvido os seus problemas. Não se
apresse, por favor. Será difícil substituí-la na Páscoa. Deixe-me falar com Célia. No interesse da escola,
seria bom que vocês duas conseguissem trabalhar juntas.
— Fiz o que pude, mas não estou de acordo com as idéias dela — Kate disse. — E acho que não posso
ficar nem trabalhar com ela. Lamento, mas terei que me demitir. Obrigada por me ouvir. Ajudou muito.
Agora, sei o que fazer.
Kate passou o resto do dia sem encontrar Célia Fromsett. As aulas terminaram cedo, porque era sexta-
feira. Às três horas saiu, sentindo-se aliviada. Ao chegar no apartamento, viu o Mercedes de Barry
estacionado diante da porta. Ele saltou do carro e veio ao seu encontro.
— Não posso passar outra semana sem ver você, querida. Como vai?
— Bem, obrigada — respondeu automaticamente. Não estava contente de vê-lo. Nada nele fazia seu
coração bater mais forte. Era apenas o pai de Carol, e não queria conversar com ele, naquele momento.
Queria pensar em Sean. Planejar o que devia fazer. — Barry, algo desagradável aconteceu ontem,
relacionado com as aulas de Carol...
— Eu sei. Carol telefonou à noite e me contou. Kate, precisamos conversar... sobre nós. Estou
começando a ficar impaciente. Estou muito nervoso. Achei que você gostaria de ir a Rosedene, para um
passeio a cavalo, e poderíamos jantar... só nós dois. Mamãe foi passar o fim de semana fora.
— Eu... irei, mas não quero jantar — Kate disse friamente. — Concordo com você, temos que
conversar. Vou trocar de roupa.
Meia hora depois desceu, e partiram.
Em Rosedene, Barry escolheu dois cavalos e foram dar um passeio. O tempo estava agradável e a relva
convidava a um galope. Kate e ele subiram uma pequena colina.
— Num dia claro, dá para ver o povoado, daqui — Barry disse. —Mas hoje está muito nublado. — Por
que não quer jantar comigo aqui, esta noite?
— Porque não quero dar motivo a boatos sobre nós — respondeu, com firmeza. — Ontem, Célia
Fromsett disse que eu ensino piano a Carol só porque quero agradar você. Ela me acusou de ser sua
amante.
— Gostaria que estivesse certa. Gostaria que fosse minha amante. Já teve notícias do seu divórcio? O que
disse Paul Holgate?
— Recebi uma carta dele ontem. Sean recusou o divórcio amigável.
— Por quê? Deu algum motivo? — Barry perguntou, quase
engasgando com as palavras.
— Nenhum.
— E o que
VOCÊ VAI
fazer agora?
— Paul sugeriu que eu fosse a Londres, discutir o assunto com ele. Disse que tenho todos os motivos
para dar continuidade ao processo de divórcio, mas... — ela interrompeu, olhando ao longe, e engoliu
em seco. — Barry, contou a alguém que eu tinha concordado em casar com você?
A pergunta o surpreendeu. Piscou várias vezes.
— Contei à minha mãe que esperava casar com você, um dia — disse, em tom cauteloso. — Acredito
que mencionei o assunto a Carol... porque acho que ela gosta de você.
— A quem mais?
— Por que pergunta?
— Esta manhã, a srta. Forbes me contou que não consegui o cargo de diretoria do departamento de
música porque alguém a informou de que eu iria casar em breve e meu futuro marido não queria que eu
continuasse lecionando na escola. Assim, o comitê achou bobagem me indicar para o cargo. — Kate
respirou fundo e o encarou, com ar de desafio. — Você não tinha direito de interferir assim na minha
vida. Não tinha nenhum direito! Você fez isso de propósito, não foi?
Durante alguns momentos, achou que ele ia mentir e negar que usara sua posição na escola para
influenciar o comitê. Mas a resposta de Barry foi sincera.
— Está bem. Confesso. Fiz isso porque não quero dividir você com uma carreira, depois que nos
casarmos.
— Mas não vamos casar!
— Você disse...
— Eu disse que não podia casar com você, porque já era casada, e você concordou em adiar a proposta
até que eu ficasse livre para lhe dar uma resposta. Apesar disso, foi adiante e concluiu que eu casaria com
você, quando me divorciasse. Concluiu cedo demais, Barry. Mesmo que me divorcie de Sean, não vou
casar com você; não, agora...
— Não está falando sério. — Ele se aproximou dela, tenso. — A srta. Forbes não devia ter contado
sobre o comitê — continuou, falando entredentes. — Você está zangada e...
— Estou mesmo, muito zangada. Mas também estou satisfeita que tenha me contado o ocorrido. Agora,
vejo o que seria o casamento com você: eu nunca seria dona de mim mesma. — Estava com a garganta
apertada e seca, de tanta raiva. — Pelo menos... pelo menos, Sean entendeu o que eu sentia a respeito da
entrevista e me deixou sair da Irlanda para chegar a tempo.
Os olhos de Barry brilharam, zangados, e ele sorriu cinicamente. — Então, você o viu? Você o viu
quando esteve na Irlanda? Mas não me contou.
— Por que devia contar? Por que devo lhe dizer tudo o que faço? Sim, estive com Sean. Estive com ele e
agora... acho que vou ter um filho.
A violência surgiu nos olhos de Barry, que estavam mais escuros do que nunca, e ele empalideceu.
— Sua cadela! Sua maldita cadela! Não é melhor do que o resto das mulheres. — Parecia cuspir as
palavras.
Levantou o braço e ela sentiu que algo a atingia no rosto. Horrorizada, percebeu que ele a havia
chicoteado e estava levantando o braço novamente. Desesperada, esporeou o cavalo, fugindo a galope. Ao
chegar ao atalho que levava à casa, esporeou o animal, que correu ainda mais. Mas, poucos quilómetros
adiante, o atalho terminava. Nervosa, Kate puxou as rédeas, esperando que o cavalo parasse. Ele
relinchou, parou de repente e ela foi jogada fora da sela, por sobre o animal, batendo a cabeça numa
pedra. Perdeu os sentidos.
Quando voltou a si, estava numa maca. Viu o céu e gotas de chuva caindo em seu rosto. Alguém lhe deu
uma injeção no braço e a dor que sentia nos quadris foi desaparecendo aos poucos. Mais uma vez, perdeu
os sentidos.
Muito mais tarde, na enfermaria de um hospital, viu um rosto moreno e suave inclinado sobre ela.
— Irmã Mônica — murmurou, fraca e em pânico. — Estou outra vez no hospital da missão?
O rosto moreno sorriu, com simpatia.
— Meu nome é Davies e não sou freira, Sou apenas uma estudante de enfermagem. E este é o Hospital
Geral, e não o hospital de nenhuma missão. Você acaba de sair de uma anestesia; por isso, está um pouco
confusa.
— Eu caí, não é? Quebrei alguma coisa?
— Não. Teve muita sorte. Não quebrou nada. Só bateu a cabeça. Mas a médica poderá lhe dizer tudo,
quando fizer a próxima visita.
A enfermeira foi embora e Kate adormeceu. Acordou quando outra entrou no quarto, na manhã seguinte,
para ajudá-la a se lavar. Mais tarde, veio a médica. Era uma mulher baixinha, indiana, usando um sari
debaixo do avental branco. Observou Kate cuidadosamente e disse:
— Você sofreu uma queda muito violenta e teve um aborto. Sabia que estava grávida de três meses, srta.
Lawson?
— Eu... desconfiava — Kate murmurou, sentindo os olhos cheios de lágrimas. Depois, perguntou: —
Quanto tempo vou ter que ficar no hospital?
— Até termos certeza de que não sofreu nenhum problema interno. Uma semana; talvez, dez dias.
Depende de como se sentir e dos acertos que fizer para voltar para casa. Precisará descansar algumas
semanas, antes de começar a trabalhar.
À tarde, a srta. Forbes veio vê-la, trazendo um buque de crisântemos e uma caixa de bombons.
— Presentes da nossa equipe. Como se sente?
— Fraca.
— Há algum parente que deva ser informado? Acabei de saber que não poderá voltar à escola, até depois
do Natal.
— Por favor, escreva ao meu tio Hugh e conte o que aconteceu. Vou lhe dar o endereço.
— Fiquei muito perturbada quando o sr. Wyman telefonou, contando o acidente. — A srta. Forbes
continuou: — Ele virá visitá-la esta tarde...
— Não quero vê-lo — Kate disse, em tom decidido. — Srta. Forbes, por favor, avise-o para não vir, sim?
— Mas o homem está muito ansioso a seu respeito. Parece achar que se machucou por culpa dele.
Disse que não devia ter deixado que montasse aquele cavalo. Você deve dar a ele a chance de lhe pedir
desculpas.
Kate não discutiu. Estava cansada demais e muito fraca. A srta. Forbes saiu e ela ficou sozinha, pensando
na perda do bebê e no que significava aquilo.
A tarde, Barry entrou com um buquê de rosas. Parecia um homem de negócios comum, de meia-idade.
— Estou contente que não tenha quebrado nenhum osso — ele disse, pegando uma cadeira e sentando ao
lado da cama. — Por que esporeou o cavalo daquele jeito? Pensei que conhecesse melhor os animais;
senão, teria lhe dado outro.
Kate olhou-o, espantada diante do vazio dos olhos dele. Será possível que aquele homem tinha esquecido
sua fúria no dia anterior? Será que esquecera que levantara o chicote para ela?
— Esporeei o cavalo para fugir de você. Porque ia me chicotear outra vez, — Ela tocou o rosto.
— Chicoteei você? — Ele arregalou os olhos, incrédulo. — Minha querida, eu nunca faria uma coisa
dessas! Está imaginando isso. Deve ter sido a batida na cabeça... com certeza, bateu com muita força.
Devia sempre usar um capacete, quando andar a cavalo, você sabe disso.
— Por favor, vá embora! Não quero mais ver você. Nunca mais!
— Sabe que não está se sentindo bem. Eu devia ter esperado um pouco, antes de vir. visitá-la, mas
estava muito preocupado. — Barry olhou para o corpo dela. — Perdeu o bebê?
— Perdi — murmurou.
— Fico contente em saber. — Um brilho de triunfo surgiu nos olhos dele.
— Oh, vá embora. Vá embora e não volte nunca mais! — gritou, virando o rosto e fechando os olhos.
Ouviu as enfermeiras conversando vagamente e a voz de Barry respondendo a algumas perguntas.
Depois, passos. Ele tinha saído.
Não voltou mais a visitá-la. Lentamente, Kate recuperou as forças e saiu da cama, passando algumas
horas por dia na sala de estar. A tarde, algumas pessoas da escola sempre apareciam para visitá-la e, num
sábado, chegou Hugh.
— Sua maluca! — comentou, quando ela terminou de contar a história. — Maluca orgulhosa e
tola! E Sean é outro maluco orgulhoso, deixando-a ir embora daquele jeito. Ele devia ter insistido para
que ficasse em Moyvalla. Bem, não adianta falar disso agora. Quando vai ter alta?
— O médico disse depois de amanhã. Mas não posso trabalhar, ainda.
— Então, vai voltar para Dublin comigo e ficar lá, até o Natal. Gerry vai adorar cuidar de você. Venha.
— Sim, obrigada. — E, pela primeira vez, chorou livremente.
Duas semanas depois, e quatro dias antes do Natal, numa tarde chuvosa, Kate sentou-se ao piano, na casa
de Hugh, e tocou a música que iria apresentar no concerto da noite de Natal, na igreja que Geraldine
frequentava. Desde que chegara a Dublin os tios a mantinham ocupada, sem lhe dar um momento para
lembrar dos sofrimentos dos últimos tempos.
E deviam se sentir satisfeitos, porque Kate parecia inteiramente curada. Estava sozinha em casa, pela
primeira vez, desde que chegara. Os tios tinham ido a Dun Laoghaire, buscar o filho, Gary, que chegava
pela balsa, com a esposa e o bebê.
— Eu a convidaria para vir conosco — Geraldine tinha dito —, mas estou esperando uma encomenda
que deve ser entregue esta tarde. Será que não se importa de ficar em casa e receber o pacote para mim?
Kate olhou o relógio. Quatro e meia. Logo iria anoitecer e o pacote não havia chegado. Virou a página e
começou outra canção de Natal, quando a campainha tocou.
Atravessou o vestíbulo escuro e abriu a porta. Havia um homem ali, de costas para ela, vestido com um
casaco pesado. Ele virou-se e ela teve a impressão de ver um rosto bronzeado e olhos cinzentos, mas foi
atingida mais pela energia dele, que parecia explodir, fora de controle.
Durante alguns segundos os dois se olharam em silêncio. Sean sorriu.
— Alô, Kate. Hugh está em casa?
CAPÍTULO IX
Ainda tonta de espanto, Kate continuou a olhá-lo, feito boba. A chuva ficou mais intensa, molhando o
cabelo de Sean e escorrendo por seu rosto. Ele afastou o cabelo dos olhos e franziu as sobrancelhas.
— Você está bem? Ou perdeu a memória outra vez? Não sabe quem eu sou?
— Oh... oh, sim, sei quem é você. Não perdi a memória.
— Graças a Deus! — Parecia aliviado e impaciente. — Aqui está um tanto molhado, não acha? Se
importa de me convidar para entrar?
— Não... isto é, sim. Entre. Desculpe. Sabe?, eu não tinha certeza se... — Percebendo que começava a
gaguejar calou a boca e afastou-se da porta. Sean entrou no vestíbulo e ela o seguiu. Novamente
encararam-se, em silêncio.
— Você não tinha certeza se... o quê? — ele perguntou após alguns segundos.
— Se eu... se eu... — Kate parecia estar perdendo o fôlego e sentia as pernas tremerem. Tinha esquecido
algumas coisas a respeito dele e percebia isso agora. Tinha esquecido o efeito da atração que Sean exercia
sobre ela e o modo como reagia à presença dele, desde que se encontraram em San Marco. — Eu não
tinha certeza se era você mesmo, ali, de pé, na porta, ou apenas a minha imaginação. — Piscou e desviou
o olhar. — A tia Gerry me pediu para ficar em casa e receber um pacote que iam entregar. Quando a
campainha tocou, pensei que fosse a encomenda.
— Desculpe desapontá-la — disse, irônico.
— Oh, não estou desapontada — corrigiu depressa, encarando-o de novo. — Não quer tirar o casaco?
Hugh e Gerry não vão demorar. Foram a Dun Laoghaire buscar Gary, Susan e o bebê, que chegam na
balsa da Holyhead. Pendure o casaco aqui e venha até a cozinha. Lá é mais quente, e vou fazer um chá.
Isto é, você quer um chá? — Ia começar a gaguejar de novo, dizendo qualquer coisa, apenas para
continuar a conversa e esconder a inibição e o nervosismo que pareciam aumentar, sempre que o
encontrava.
— Aceito um chá — ele respondeu.
Na cozinha, Sean sentou-se enquanto Kate enchia a chaleira e a colocava no fogão. Em vez de mais
tranquila, sentia-se completamente descontrolada, com o coração disparado. Ele estava ali, com ela, e
finalmente alguma coisa podia acontecer. Suas mãos tremiam tanto ao colocar a xícara no pires, que
temeu que caísse tudo no chão.
— Ouvi dizer que estava trabalhando no Oriente Médio, Sean. Veio de lá?
— Sim, e passei pela Escola Netherfield, em Westcourt.
— Por que... por que foi lá? — perguntou, tentando parecer tão fria como ele, não demonstrar a surpresa
e colocar direitinho as xícaras e pires sobre a mesa.
— Por que acha que fui lá? — ele disse e ela lhe deu um olhar preocupado. Um dos gatos pulou no colo
de Sean, que ficou acariciando-o.
— Foi me ver? — perguntou e começou a procurar uma lata de biscoitos no armário.
— Sim, fui ver você. — Ele riu. — Qual outro motivo para eu ir lá? Felizmente a secretária ainda estava
na escola e me contou para onde você
tinha ido. Disse que teve de tirar uma licença e que esteve doente.
Está melhor, agora?
— Sim, obrigada. — Começou a arrumar os biscoitos num pratinho. — Vou ficar aqui até o fim das
férias.
— Quando será isso?
— No meio de janeiro; mais ou menos, dia 15. — Colocou os biscoitos sobre a mesa e foi buscar a
chaleira que estava fervendo.
— Como foi aquela tal entrevista? Conseguiu a promoção que queria?
— Não. — Despejou a água no bule. — Eu estava tão certa de que ia conseguir... Senão, não teria ido...
isto é, poderia ter ficado um pouco mais em Dunane, se soubesse que não ia conseguir o emprego.
— Tampou o bule e levou-o até a mesa. — Por que você foi me ver?
— Pela mesma razão pela qual ia vê-la, no Natal passado, mas não consegui chegar até lá — Sean
respondeu, sorrindo. Depois, empurrou o gato para o chão e puxou a cadeira para perto dela. — Você
está magrinha outra vez — comentou suavemente. — A secretária da escola falou algo a respeito de uma
queda de cavalo.
— Foi isso. Agora, estou bem.
Ficaram em silêncio alguns minutos, ouvindo a chuva que caía lá fora. No Natal passado, Sean tinha
desejado vê-la para saber se havia providenciado o divórcio. Agora, estava ali pelo mesmo motivo. Kate
ficou triste. Sua animação desapareceu, deixando-a apática novamente. Olhou para o marido: Sean a
observava, com as sobrancelhas franzidas.
— Recebi a carta do seu advogado — ele disse lentamente. — Foi mandada para o Oriente Médio.
Respondi que não estava de acordo com o divórcio amigável.
— Eu sei. Recebi uma carta dele me contando isso, um dia antes... de cair do cavalo. Depois, não o
procurei mais para discutir o assunto. Sabe?, eu tinha certeza de que você ia concordar. — Ela o encarou
de novo, tentando penetrar naqueles olhos cinzentos e descobrir o que ele estava pensando. — Por que
não concordou?
Ele desviou os olhos para o prato de biscoitos, pegou um e mordeu.
— Acho que, quando recebi a carta, não me sentia disposto a concordar — disse, sorrindo. — Nunca
suportei ser forçado a uma decisão, você sabe disso, e sempre acabo fazendo o oposto do que querem.
— Então, se eu... se eu o processar para conseguir o divórcio, vai se opor também?
— Pode ser. Tudo depende do que você quer fazer depois do divórcio.
— O que quer dizer?
— Pretende casar com Wyman ou com qualquer outro? Se pretende, não deixarei que se divorcie de
mim,
— Mas eu não entendo... A idéia do divórcio foi sua, em primeiro lugar. Você mesmo sugeriu que eu
conseguisse uma anulação do casamento, quando estávamos em Tuxtla, e...
— Sei que fiz isso — ele interrompeu —, mas foi naquela época e me pareceu a coisa certa, porque
pensei que você não devia ficar presa a uma promessa feita enquanto sofria de amnésia. Pensei que...
quando voltasse à Inglaterra... não gostaria de estar amarrada a mim. — Pegou outro biscoito. — Vamos
tomar o chá?
Olhando-o, desesperada, Kate pegou o bule e serviu. Mas só saiu água pura e quente. Arregalou os olhos
e parou.
— Agora, veja só o que você fez! — ela o acusou, furiosa, levantando-se com o bule nas
mãos e encarando-o.
— Eu não fiz nada.
— Você... me fez esquecer de colocar o chá no bule!
— Eu? Não sabia que causava esse efeito em você.
— Agora, está me provocando — respondeu, zangada, virando para a pia e despejando toda a água
quente.— E, outra coisa: você nunca dá uma resposta direta a uma pergunta direta — disse, colocando a
chaleira para ferver novamente.
— Você também foge das minhas perguntas.
Dessa vez o silêncio foi longo, e Kate virou de costas para Sean. A cozinha estava escura. Lá fora, as
chaminés e os telhados das casas brilhavam na chuva. Começou a colocar colheradas de chá dentro do
bule.
— Gostaria que eu não tivesse vindo ver você? — Sean perguntou e ela virou-se para encará-lo. Com
aquele cabelo escuro, os olhos cinzentos e brilhantes, usando um suéter de gola alta, ele era a imagem de
um homem diabólico e orgulhoso.
— Sim — disse entredentes, e viu que a expressão dele endurecia, os olhos ficavam gelados.
Imediatamente, corrigiu, com medo de que ele se
levantasse e fosse embora. — Isto é, não. Oh, não sei!
— Deixou cair a colher cheia de chá dentro da chaleira e cobriu o rosto com as mãos. Suas emoções
conflitantes a estavam destruindo. Desejara tanto que Sean aparecesse nos últimos meses, e agora que
estava ali não conseguiam se comunicar. Ele ainda era um mistério que ela não tinha resolvido.
— Vou para Moyvalla amanhã — Sean anunciou.
Tirando as mãos do rosto, Kate preparou o chá, procurando se manter calma.
— Oh, por quê?
— No momento, é o único lar que tenho.
— Quanto tempo vai ficar lá? — Levou o bule à mesa e sentou-se novamente.
— Até partir para o México. Fui designado gerente do escritório da agência para a América Central e
América Latina, Acho que foi porque falo espanhol e já tenho experiência na região. Ficarei lá, em bases
mais ou menos permanentes, durante uns dois ou três anos, se eu gostar do trabalho. — Sean a olhou
rapidamente. — Você será bem-vinda a Moyvalla, se quiser ir comigo.
Kate serviu o chá, que dessa vez estava perfeito.
— Não sei — começou, em tom hesitante. — Se eu for, o que vai acontecer depois de passar o Natal e o
Ano-novo?
— Voltará para a escola, acho. E eu irei para o México.
— Então, nada vai mudar.
— O que quer dizer?
— A situação... entre nós continuará a mesma.
— Certo. Ela só muda se você a fizer mudar.
— Mas por que tenho que ser eu a fazer as mudanças? Por que não pode ser você?
Sean não respondeu. Pegou apenas a xícara e provou o chá, sem olhar para ela.
— Não — Kate disse, como se falasse consigo mesma. — Não posso... Não posso passar por tudo
aquilo de novo. Se não podemos viver juntos, não devemos continuar casados.
Enquanto se servia de chá, ele a olhou disfarçadamente. Não parecia disposto a discutir. Não parecia se
importar com o que ela fizesse. Na verdade, não se importava. Então por que estava ali?
A porta da frente se abriu e várias vozes foram ouvidas na entrada.
— Acho que não quer ir para Moyvalla — Sean disse, seco.
— Não posso ir amanhã — murmurou.
— Está bem. Esqueça o assunto. — Deu de ombros e terminou o chá.
— Sean, que ótimo ver você aqui! — Hugh atravessou a cozinha para cumprimentar o amigo.
— Pegue mais algumas xícaras, Kate, querida — Geraldine disse entrando, seguida por Gary, Susan
e o bebê. — Vamos tomar um chá. Quanto tempo ficará em Dublin, Sean? Vai passar o Natal aqui,
espero.
— Não. Só esta noite — Kate ouviu a resposta dele enquanto pegava as xícaras e pires.
— Então, fique conosco — Geraldine convidou.
— Você já está com a casa cheia — ele respondeu. — Vou ficar em uma das pensões da cidade.
— Onde cabem três, cabem quatro, cinco ou mais — Geraldine disse.
— Não podemos deixar que fique num hotel, quando Kate está aqui — Hugh interrompeu. — Além do
mais, quero ouvir as novidades do Oriente Médio. Quero situar o meu novo livro de suspense lá. Vai
passar a noite aqui, e não se fala mais nisso. E tenho algumas novas marcas de uísque para você testar.
Enquanto arrumava as xícaras e pires, Kate prendeu a respiração. Se Sean recusasse a ficar, saberia que
tudo tinha acabado entre ambos, pensou, ansiosa.
— Está bem, eu fico — ele disse e ela suspirou, aliviada.
— Naturalmente, terá que dormir com Kate, mas acho que não se importam com isso, não é? — Hugh
disse, rindo e abrindo uma garrafa de uísque.
— Kate e eu já dormimos juntos outras vezes — ele respondeu, olhando-a com um ar de desafio.
— Mais alguém quer chá? — Kate perguntou, sentindo que corava.
— Claro, Susan e eu estamos morrendo de vontade, não é? — Geraldine disse. — Depois, vamos
subir para colocar o bebê na cama. Ele não é uma gracinha, Kate? Parece com Gary, quando tinha quatro
meses.
— Acho que também parece um pouco com Susan — Kate disse, procurando esquecer Sean.
Mais tarde, quando Geraldine e Susan subiram, Kate foi ter com elas, no quarto. Não demorou muito e
Geraldine surgiu, com uma porção de lençóis e fronhas.
— Tia Gerry, não pode fazer a cama do sótão para Sean? — Kate perguntou.
— E por que eu faria isso, se vocês são marido e mulher? Devem dormir juntos sempre que puderem. —
Piscou para ela e lhe entregou alguns cobertores.
— Não quero dormir com ele. Nós... eu... oh, nós não nos damos muito bem. Praticamente, somos
estranhos...
— Sei como está se sentindo. — Geraldine sorriu. — Eu me sentia assim, quando Hugh era repórter. Era
como se nunca me acostumasse com ele. Mas, depois que vocês ficarem juntos alguns dias, tudo será
diferente. Vocês só precisam ceder um pouquinho um com o outro. Só um pouquinho de amor, se você
prefere assim. Venha, ajude-me a colocar estes lençóis aqui.
— Mas é diferente... a sua situação com o tio Hugh... — Kate ajudou a esticar o lençol. — Isto é, você e
Hugh casaram porque se amavam e...
— Nós casamos porque pensamos que nos amávamos — Geraldine corrigiu. — E descobrimos logo que
não sabíamos nada sobre o amor. Tivemos que aprender do jeito mais difícil. Tivemos que descobrir
como fazer o casamento funcionar. Pena que Sean não possa ficar mais do que uma noite. Onde ele vai
amanhã?
— Para Moyvalla.
— Pensei que fosse para o exterior novamente. E por que você não vai com ele?
— Não posso ir, porque vou tocar piano para o coral das crianças daqui, no Natal. Não posso desapontá-
las, agora. Ia dizer isso a Sean, quando vocês chegaram.
— Não vai desapontar ninguém, se for com ele. Posso tocar piano. Tocaria, se você não estivesse aqui.
Só sugeri que me substituísse para ajudá-la a esquecer a perda do bebê. — Geraldine sorriu quando Kate a
olhou, espantada. — Oh, sim, eu soube disso. Hugh me contou.
— Por favor, não vá contar a Sean — Kate pediu, em tom de urgência. — Não vá contar nada a Sean, tia
Gerry. Nunca mais falarei com você, se fizer isso.
— Não, não vou contar a Sean. Deixarei que você faça isso. Sabe que deve contar. E vai, não é?—
perguntou séria.
— Não — Kate sacudiu a cabeça, com orgulho, — Não sei porque devo contar.
— Mas foi... o filho dele que você perdeu! Ou não foi?
— Claro que foi!
— Então por que não quer contar?
— Porque não quero que ele pense... Oh, acho que não quero que ele tenha pena de mim.
— Meu Deus! Você tem um orgulho dos diabos. Aliás, como o resto dos O'Connor. E, pelo que Hugh me
contou, Sean não é melhor. — Caminhou para a porta. — Não quer ir para Moyvalla com ele?
— Sim, mas...
— Então, diga que vai e pode esquecer o concerto como desculpa para não ir.
A tarde passou agradável como sempre, na casa do tio. Às dez e meia, quando parecia que Gary e Sean
iam ficar acordados a noite toda conversando e bebendo uísque com Hugh, Kate e Susan se despediram e
subiram para seus quartos.
Kate tinha resolvido que estaria dormindo quando Sean entrasse, mas ainda estava acordada. Fingindo
que dormia, ficou de costas e, mesmo quando sentiu o corpo dele afundando ao lado do seu, não se
mexeu.
A luz se apagou e ela mergulhou, nas doces lembranças da primeira noite que passaram juntos em San
Cristobal. Depois, lentamente, foi sentindo necessidade de se virar para ele e lhe falar. Continuou deitada,
tensa, procurando controlar as ondas de paixão que lhe dominavam o corpo. Trincou os dentes e fechou
os punhos.
— Kate? — A voz dele era suave e profunda. — Por que não pára de fingir? Sei que está acordada.
Virou-se, satisfeita por não precisar mais ficar naquela posição rígida. A escuridão só era quebrada pelo
brilho das luzes da rua, que entravam pela janela. Sean puxou uma cortina para poder vê-la melhor.
— Hugh contou o que aconteceu com você, depois do acidente.
— Por quê? — Ele parecia surpreso. Depois disse, num tom baixo e amargo: — Porque a criança não era
minha?
— Não, não! Como pode pensar isso?
— Você estava com o tal de Wyman.
— Mas éramos só amigos — respondeu, afastando-se dele. — Não quero falar nisso.
Sean bocejou e abraçou-a pela cintura, puxando-a para si. Através da camisola, Kate podia sentir o calor
dele e desejou descansar de encontro àquele corpo.
— Claro que vai falar nisso — sussurrou, apertando o braço. — Por que foi andar a cavalo, quando
estava grávida?
— Eu... eu... não sabia que estava. Não tinha certeza... eu não tinha ido ao médico. Bem, andar a cavalo
não teria causado dano nenhum, se eu não tivesse caído.
— Conte-me o que aconteceu, Kate — pediu gentilmente, acariciando-a da cintura até os
seios. — Preciso saber, para minha própria paz de espírito. Porque, se eu não insistisse em dormir com
você naquela noite no castelo de Dunane, você não teria ficado grávida. — Beijou-a no pescoço. —
Tenho direito de saber, pois foi o meu filho que você perdeu. O cavalo empinou com você?
— Não, mas ficou nervoso. — Fechando os olhos, lembrou daquele momento terrível em que tinha visto
o chicote erguido diante de seu rosto. — Tomei o caminho errado — murmurou. — O cavalo parou de
repente, caí, bati com a cabeça numa pedra e desmaiei.
— Havia alguém com você?
— Sim.
— Quem?
Não respondeu. Não queria pensar nem lembrar mais, pois as carícias dele estavam despertando
sensações deliciosas em seus seios.
— Kate, preciso saber — ele murmurou, de encontro ao rosto dela. — Wyman estava com você?
— Sim — murmurou, aliviada por confessar.
De repente as carícias pararam e ele se afastou deitando-se de costas. Kate sentiu-se sozinha e
abandonada.
— Ele sabia que você estava grávida? — Sean perguntou, com voz rouca, como se não conseguisse
controlar as emoções.
— Não, até que eu contei.
— E quando contou?
— Tivemos uma briga. Estávamos olhando a paisagem, em Banebury Circle. São ruínas da Idade do
Ferro, nas montanhas, um forte... como o do castelo de Dunane... construído pelos antigos bretões.
— Está bem, está bem. Esqueça isso e vamos ao que interessa — ele interrompeu. — Por que você e
Wyman discutiram?
— Eu descobri que, por causa dele, não consegui o emprego de diretoria do departamento de
música, em Netherfield, aquele que eu queria tanto.
— Como ele pôde interferir em algo assim?
— Ele é do comitê da escola e tem influência sobre os diretores que iam entrevistar. Disse ao pessoal que
nós íamos casar e que ele não queria que eu continuasse trabalhando, depois de me tornar sua esposa.
Assim, não me escolheram, pensando que seria bobagem nomear alguém que logo largaria o emprego.
Fiquei furiosa quando descobri, e disse a ele. Então, Barry... bem, ele me deu uma chicotada.
As molas do colchão fizeram barulho quando Sean se inclinou sobre ela, seu perfil delineado contra a
claridade da janela.
— Ouvi direito? — ele murmurou. — Você disse que ele a chicoteou?
— Sim, quando falei que não íamos nos casar mesmo que eu me divorciasse de você. Depois, deixei
escapar que tínhamos nos visto no último verão e que eu acreditava que ia ter um filho seu. — A voz dela
ficou trémula. — Ele ia me chicotear de novo; por isso, esporeei o cavalo, para fugir.
— Poderia ter morrido! — Sean começou a xingar Barry dos piores palavrões que ela já tinha ouvido.
— Foi minha culpa — Kate disse depressa, sentando-se ao lado dele. — Não deveria ter ido andar a
cavalo. E, quando descobri que ele me Fizera perder a chance do emprego, perdi o controle. Eu... não
sabia como Barry era desequilibrado, nem que podia fazer algo daquele tipo.
— Depois disso, você o viu de novo?
— Ele me visitou no hospital. Disse... que estava contente por eu ter perdido o bebê.
— Aposto que estava — Sean murmurou, furioso, e começou com os palavrões de novo. Viu que
ele curvava a cabeça até os joelhos, respirando profundamente, procurando se controlar.
— Sean... — Pousou a mão em seu ombro e sentiu a pele suave como
seda. Ele se afastou imediatamente, saindo da cama. — Onde você vai, Sean?
— Lá embaixo. — A maçaneta girou. — Depois de tudo o que você passou, não vai querer... — Ele se
interrompeu e suspirou. — Precisa de uma boa noite de repouso, sem mim por perto. Boa noite.
A porta se fechou sem ruído e Kate sentiu frio. Deitou novamente, puxando os cobertores até o queixo,
sentindo falta do calor de Sean a seu lado, desejando que ele não tivesse ido embora e, ao mesmo tempo,
procurando adivinhar por que havia feito aquilo.
Ceder um pouquinho... o conselho de tia Gerry surgiu em sua mente. Por que Sean a deixava sozinha
agora, procurando controlar suas próprias necessidades? Será que era por amor? Ou será que outra coisa o
tinha feito ir embora? Ao saber que ela perdera a criança, ele sentira a paixão esfriar?
De certo modo, a conversa com ele lhe fizera bem. Livre de toda a ansiedade, adormeceu rapidamente.
Quando acordou, ouviu o bebê chorando no quarto ao lado e, durante alguns momentos, permaneceu
deitada, observando a claridade e pensando no primo Gary e na esposa. Pareciam muito felizes, e estavam
encantados com o bebé. Como tinham conseguido chegar àquele relacionamento tão satisfatório? Porque
viviam juntos. Porque tinham a oportunidade. Nem sequer haviam namorado! Tinham sido jogados pelas
circunstâncias num contato íntimo, sem o menor tipo de preparação.
E hoje, se não fizesse alguma coisa, ele iria embora e nunca conseguiriam se conhecer melhor. Agora, via
claramente o que devia fazer. Estava ansiosa e saiu da cama. Vestiu um robe e desceu.
Como esperava, encontrou Sean no sofá da sala. Aparentemente dormia, com um gato enroscado aos pés
e outro esticado a seu lado. Kate espantou os animais e sentou-se na beira do sofá, lembrando do dia em
que o vira dormindo, no castelo de Dunane, em seu quarto na torre, e desejara nunca mais deixá-lo.
Acariciou-lhe o cabelo e beijou seus ombros. Ele se mexeu e ela sorriu. Sean abriu os olhos sonolentos:
— O que você quer?
— Ir para Moyvalla com você. Isto é... se o convite ainda estiver valendo.
— E depois?
— Terei de voltar a Netherfield. Minha demissão só será na Páscoa — contou, admirando-lhe os lábios
sensuais e desejando que ele sorrisse.
— Você se demitiu? Por quê?
— Não me dou muito bem com a nova diretora do departamento de música.
Acariciou-lhe o ombro e o pescoço. Sentiu a aspereza da barba. Ele segurou sua mão.
— E o que vai fazer? Já arranjou outro emprego? — perguntou num tom frio, enquanto seus olhos
brilhavam intensamente, como se quisesse hipnotizá-la.
— Não. Ainda não. Estava pensando... — ela se interrompeu e baixou o rosto. Como dizer a ele? Como
declarar seu amor novamente, de um modo que ele acreditasse? Suas mãos pareciam fora de
controle, acariciando as dele. — Eu estava pensando se... na Páscoa não poderia ir encontrar você... no
México, ou onde quer que esteja — murmurou.
Sean apertou as mãos dela. Depois, beijou-as. Kate sentiu o coração disparar. Seus olhos encontraram os
do marido.
— Você está planejando muito — ele disse —, mas tenho certeza de que tudo vai dar certo. Vamos
conversar sobre isso em Moyvalla. Com um pouco de sorte, chegaremos lá ao pôr-do-sol.
Estava certo. Ao pôr-do-sol, pararam diante da casa, vendo ao longe o mar cor de violeta. A porta da
frente se abriu e Agnes apareceu, seguida pelo cão, que pulou em Sean.
— Não sabia que vinha também, srta. Lawson — a mulher disse, olhando severamente para Sean,
quando entraram; estava zangada por ele não avisar que traria uma convidada.
— Sra. Kierly — Sean corrigiu, virando-se para a criada. — É hora de saber que Kate é minha esposa.
— Casou? — Agnes parecia chocada. — Bem, eu não sabia! Pensei que fosse casar com... — ela se
interrompeu. — A srta. Cavanagh vai ficar aborrecida, quando souber. Ela veio aqui ontem, saber quando
o senhor chegava. Eu lhe disse que o esperava hoje e ela falou que vem novamente amanhã.
— Obrigado pelos recados — Sean disse friamente, subindo com as malas. — O jantar está pronto?
— Claro. Vou colocar outro lugar à mesa — Agnes respondeu e saiu resmungando. — Casado... bem, eu
nunca...
Lentamente. Kate subiu a escada e foi ao banheiro. Ao lavar as mãos, olhou-se no espelho e analisou o
próprio rosto. Tinha esquecido de Nuala. Será que Sean sabia que aquela mulher estaria em Dunane no
Natal? Será que tinham vindo a Moyvalla por causa dela? Tinha que lhe perguntar. Precisava saber, para
se livrar logo das suspeitas e do ciúme.
Agnes só saiu depois de ter arrumado e limpado a cozinha. Logo em seguida, Sean foi dar um passeio
com o cachorro. Sozinha no quarto, Kate desfez a mala e arrumou suas roupas no armário. Depois,
tomou um banho e vestiu um robe longo, azul-escuro, estampado de vermelho, que combinava com a cor
de sua pele e do cabelo.
Estava sentada no sofá, tentando ler, imaginando por que Sean demorava tanto e se teria ido de carro ao
castelo de Dunane, quando o ouviu chegar com o cão.
— Quer um brandy? — ele ofereceu.
— Sim, obrigada.
Aproximou-se com dois cálices e sentou-se ao lado dela.
— Slainte — brindou,
— Feliz Natal — Kate respondeu. — Pelo menos, espero que para você este Natal seja mais feliz do que
o do ano passado. Espero que seja mais feliz para mim também — disse baixinho, observando o brandy.
— Sean... você veio aqui porque sabia que Nuala estaria no castelo? Veio para estar onde ela estava?
Ele colocou o cálice na mesinha e virou-se, para encará-la.
— Por que eu iria querer ver Nuala?
— Você foi a Dublin para vê-la, no Natal passado. Procurou por ela, antes de ir me ver— murmurou.
— Não fui a Dublin por isso. Encontrei-a por acaso, na rua O'Connel, e fui tolo bastante para ir a uma
festa com ela. — A voz dele tinha adquirido um tom amargo. — Fui tolo bastante para levá-la de volta ao
apartamento e lhe contar sobre você. Ela me ofereceu um café, para me ajudar a despertar e guiar melhor,
a caminho de Dun Laoghaire. Foi o que disse e aceitei, porque confiava nela. Éramos amigos há muito
tempo...
isto é, por isso demorei tanto a acreditar que ela havia colocado algo no café.
— Algo no café? — Kate arregalou os olhos.
— Um calmante. — Ele esticou as pernas e olhou o fogo.
— Mas... por que ela faria isso? — Kate perguntou, horrorizada.
— Porque esperava que eu dormisse lá, no apartamento. Então, perderia a balsa e não poderia ir
ver você. Ela esperava me seduzir. Mas consegui sair, quando percebi o que ela queria, e o que colocou
no café só fez efeito na estrada. — Sorriu, irônico. — Foi por isso que bati no caminhão. Estava
cochilando na direção e o carro derrapou.
— Tem certeza de que Nuala fez isso?
— Agora, tenho. Mas no começo fiquei confuso, por causa do acidente. Sabe?, ela foi a
primeira a ir me ver no hospital e ficou muito preocupada com o que tinha acontecido... preocupada
demais. Pedi que lhe escrevesse, para que viesse me ver. — Suspirou e virou-se para olhar Kate. — Só
quando você chegou, em agosto, foi que descobri que ela não havia escrito. Depois do banquete, no
castelo, quando a peça terminou, fiz algumas perguntas a Nuala e, só pelo jeito como corou, e gritou,
confirmei minhas suspeitas.
— Mas, por quê? Por quê? — Sentiu ciúmes.
— Mas você podia ter morrido no acidente!
— O acidente não estava nos planos, claro. Acredito que ela tenha ficado muito chocada, ao perceber o
que havia feito. Possivelmente foi esta a razão de ter ficado por aqui, no último verão, se comportando
como uma supermãe. Mas Nuala estava resolvida a destruir o nosso relacionamento e fez o
que pôde para voltar você contra mim. Aquele que ela disse existir, só existe na imaginação dela. Nunca
fiz nenhum acordo com nenhuma mulher... a não ser, com você. Você foi a única a quem fiz promessas.
Kate tomou brandy e colocou o cálice na mesinha.
— Você poderia ter me escrito, quando melhorou, após o acidente.
— Escrevi várias vezes, mas rasguei todas as cartas — ele respondeu, seco.
— Oh... Porquê?
— Disse a mim mesmo que você não estava mais interessada. Quando
não respondeu à carta que pensei
que Nuala tinha mandado, cheguei à conclusão de que o casamento estava terminado e você não queria
mais saber de mim. Que tinha providenciado o divórcio que eu sugerira. Resolvi fazer o possível para não
pensar mais em você. — Ele riu. — Acredite que foi mais difícil do que pensei. — Continuou, em voz
baixa e amargurada: — Mesmo quando bebia demais, só pensava em você. Era Então que escrevia muitas
cartas. Depois, ficava sóbrio e rasgava todas. Estava bem mal, quando Hugh chegou.
— Eu sei... ele me contou. Foi por acaso que usou aquele troque para me fazer vir aqui.
Sean virou-se e encarou-a demoradamente. Kate sentiu o coração bater mais forte.
— Por que está me olhando assim? — ela murmurou.
— Não posso evitar — disse, se aproximando. — Quando você apareceu aqui, em agosto último,
achei que estava vendo coisas. Depois, quando me contou que ainda estávamos casados, fiquei
um pouco maluco, tentando mantê-la aqui. Só assim você poderia saber quanto eu a amava e desejava.
Só quando me falou da entrevista, voltei à realidade e a deixei partir.
— Você... você disse que... me ama? — perguntou, incrédula. Ele lhe acariciou o rosto e o cabelo.
— Isso mesmo. Acho que aconteceu quando eu a vi pela primeira vez, em San Marco. Mas só depois que
você foi para a Inglaterra, percebi o que havia acontecido. Pensava muito em você e decidi que, se tivesse
oportunidade, iria procurá-la.
— Mas... não entendo — Kate disse, em voz fraca.
— Eu estava ansioso para vê-la novamente, no Natal passado. Pensei que tivesse tratado do divórcio e
que, quando nos encontrássemos, estaríamos livres de qualquer compromisso, livres para descobrirmos
se nos amávamos o suficiente para casar. Mas nosso encontro foi adiado e, ao nos encontrarmos, você
disse que não me amava mais.
— Eu pensei que não amava. Enquanto estive aqui, com você, em agosto último, o sentimento voltou
mais forte e profundo do que antes. Eu queria ficar, mas tinha certeza de que você queria se livrar do
casamento. Nuala me disse...
— Para o inferno com Nuala — ele interrompeu. — Devia ter me
ouvido e não a ela. Devia ter
acreditado em mim e não nela. Eu esperei que entendesse, naquela noite, no quarto da torre do castelo,
mas parece que não entendeu. Teria acreditado em mim, se me amasse. Mas acho que não ama. Deve ter
amado alguma imagem que criou em sua mente, algum tipo de cavaleiro andante, de armadura, que foi
salvá-la na missão — terminou, amargurado.
— Não. Isso foi verdade, mas não é mais. Eu o amo... e desejo, e é por isso que não pude me divorciar de
você. — Viu que o rosto dele ficava tenso e aproximou-se, depressa. — Eu o amo de todos os jeitos.
Amo, amo! — murmurou desesperada. — Oh, o que posso fazer para que acredite que não estou apenas
sendo possessiva? E como vou aguentar, quando tiver que voltar para a escola e você partir para o
México?
— Vai aguentar, porque saberá que eu a amo e sempre amarei, minha querida — Sean disse suavemente.
— E porque sabe que vamos nos encontrar na Páscoa. Irá me ver? — pediu, deixando o orgulho de lado.
— Sim, irei — ela prometeu, também se libertando do próprio orgulho. — Irei, nem que tenha
que viajar milhões de quilómetros.
Seus lábios estavam prontos para o beijo, quando ele se aproximou.
— Vamos para a cama — Sean disse, beijando-a no pescoço e procurando lhe abrir o robe.
— Tem certeza de que quer dormir comigo? Ontem à noite, não quis — lembrou em tom brincalhão,
acariciando-lhe o cabelo.
Sean levantou a cabeça e suspirou, com um ar torturado.
— Eu só estava brincando — ela murmurou, passando os dedos em seu rosto, suavemente.
— Ontem à noite, saí porque não ia conseguir ficar com você e não fazer amor — disse, rouco. — Estava
com medo de machucá-la. Havia pouco tempo que tinha perdido o bebê e... — Afundou o rosto no cabelo
dela. — Eu queria matar o Wyman pelo que ele lhe fez — disse, furioso.
— Eu não tinha idéia... nenhuma idéia do que você sentia por mim — Kate falou, quase sem fôlego.
— Este desejo é algo além do meu controle. Sempre que você está por perto, na mesma cama... —
Afastou-se um pouquinho, para olhá-la. Agora, a paixão estava controlada novamente. — Dormirei em
outro quarto, se você quiser, Kate, até que esteja melhor.
— Já estou bem e quero que durma comigo, estou ansiosa para ficar
com você. Não quero mais ficar
longe. Não quero mais perder tempo — murmurou.
— Nem eu — ele disse, rindo, finalmente. Depois segurou a mão dela, ajudou-a a se levantar do sofá e,
juntos, de mãos dadas, subiram para quarto.
FIM