ARENAS SANGRANTAS
Sabrina nº28
Copyright: Flora Kidd
Título Original: “Sweet Torment”
Publicado originalmente em 1978
Digitalização/ Correção: m_nolasco73
Juan era um famoso toureiro que só sabia ferir corações. E conquistar Sorrel seria mais
uma vitória na arena da vida!
Contra-capa: Foi difícil para Sorrel entender que o seu trabalho estava totalmente
comprometido pelos problemas conjugais de Ramon Angel e sua esposa Mônica. E a presença
de Juan Renalda, o melhor toureiro das arenas espanholas envolvia cada vez mais Sorrel
naquele intrincado triângulo amoroso em que Mônica não conseguira resistir aos encantos de
Juan e colocava em jogo o seu casamento.
As circunstâncias do destino acabaram por levar Sorrel a uma intimidade inevitável nos
braços de Juan. Que poderia Sorrel fazer para não ser apenas mais uma mulher na galeria de
conquistas daquele matador?
CAPÍTULO I
A estrada que liga a cidade de Manizales, localizada no alto de
uma colina, à estação de esqui EI Sombrero, atravessa plantações de
café, que cobrem as encostas dos morros.
A sombra das enormes bananeiras, as folhas dos arbustos
brilhavam nessa manhã ensolarada, enquanto as colhedeiras de
amoras, com camisas vermelhas e chapéus de palha, colhiam as
frutinhas maduras, colocando-as em grandes cestos, amarrados na
cintura.
Sorrel Preston admirava as diversas tonalidades de verde e achava
difícil acreditar que dentro de mais ou menos uma hora estaria em
plena neve.
Apesar de estar na Colômbia há seis semanas, ainda achava difícil
compreender que, nos países da América do Sul, o clima era
simplesmente uma questão de altitude: na semana passada estivera
ao nível do mar, bronzeando-se em uma praia deslumbrante e neste
fim de semana iria esquiar na cordilheira dos Andes.
Viera de Medellín naquela manhã, no banco traseiro de um
Cadillac creme, dirigido por seu patrão, Ramón Angel, tomando a
direção sul da rodovia Panamericana.
Mas esta estrada, que os levaria à estação de esqui, era bem
diferente. Era estreita e tortuosa. Quanto mais alto subiam, mais
curvas encontravam, dando a impressão de que a estrada se
dependurava no espaço, acima de estreitos desfiladeiros, que
dividiam montanhas, com suas encostas íngremes e arborizadas,
terminando em finos fios prateados nos rios abaixo.
— Eu não gostaria de guiar durante a noite por essa estrada —
disse Sorrel a Laura Angel, com quem compartilhava o banco
traseiro.
— Mamãe costumava vir sozinha, todas as semanas, quando vinha
esquiar com os amigos
— replicou Laura.
Laura, de 15 anos, era a mais velha das duas meninas. Alta e
magra, de pele clara e olhos azuis, parecia-se com a mãe, que era
inglesa. Falava e entendia maravilhosamente bem o espanhol e o
inglês. — Mas mamãe é uma excelente motorista.
— Eu não entendo -protestou Gabriela, sentada na frente ao lado
do pai. De doze anos, miúda e rechonchuda. Seus olhos eram de um
preto cintilante e sua pele macia como um pêssego. Falava inglês
com um sotaque encantador, omitindo as consoantes e usando
expressões tipicamente americanas.
— Se mamãe fosse realmente tão boa motorista, como teria dado
aquela trombada?
Fez-se um profundo silêncio. A trombada, que transformara
Mônica Ángel, mulher dinâmica e esportiva, em uma inválida, nunca
havia sido mencionada, constatou Sorrel. Pareceu-lhe que não
queriam assumir a realidade.
— Ela cometeu um erro — disse Ramón, repreendendo
rispidamente Gabriela. — Quantas vezes preciso lhe repetir a mesma
coisa?
Era rigoroso como pai e como marido e, desde que veio trabalhar
com eles, Sorrel percebeu que Mônica e as duas meninas tinham
muito receio em ofendê-lo. Percebeu também que o relacionamento
entre Ramón e Mônica estava estremecido e o motivo não era apenas
o estado de Mônica. Tinha certeza absoluta de que algo havia
acontecido antes do acidente, abalando o casamento dos dois.
Quanto mais o carro subia, mais penetrava em um novo mundo:
um mundo de neve e gelo, de claridade ofuscante e ar rarefeito.
— A altitude está afetando você? — perguntou Ramón. — Se está
sentindo náuseas, tontura, talvez seja porque estamos subindo
rapidamente.
— Sinto apenas um pouco de dor de cabeça — respondeu Sorrel.
— Oh! meus ouvidos estão tapados. Devo também sentir náuseas? —
disse Sorrel, rindo.
— Você deverá sentir falta de ar quando descer do carro. Não
esquiaremos
muito
esta
manhã.
Treinaremos
nos
declives
apropriados para aprendizagem e deixaremos os declives difíceis para
mais tarde. Aí você estará mais acostumada — respondeu Ramón, e
continuou guiando pelas curvas da estrada, ladeada de neve
acumulada pelos tratores que se ocupavam da desobstrução do
caminho. Não demorou muito para que aparecesse o hotel
semicircular, de cinco andares, localizado numa vasta planície, onde
iriam ficar.
Atrás do hotel, as pistas de esqui estavam coloridas por figuras
que se precipitavam pelas rampas.
O hotel era luxuosamente mobiliado, com cores alegres e claras.
Um elevador os levou ao terceiro andar, onde as meninas
compartilharam um apartamento de casal, e Sorrel e Ramón ficaram
em quartos de solteiro.
Como Ramón sugerira, passaram o resto da manhã nas rampas de
treinamento,
esquiando,
e
voltaram
pelo
teleférico.
Sorrel
rapidamente percebeu que as meninas e Ramón tinham muito mais
prática de esquiar do que ela, e ficou muito agradecida pela paciência
deles em aguardarem até que ela aquecesse os músculos e se
acostumasse com o ar rarefeito.
Almoçaram rapidamente no bar do hotel, onde Laura e Gabriela
observavam as idas e vindas de outros esquiadores com muito
interesse. Cochichavam em espanhol e riam, até Ramón ficar irritado
e dizer para falarem mais alto, pois assim ele e Sorrel poderiam
participar da conversa.
— Estávamos somente reconhecendo alguns dos rapazes que já
tínhamos visto aqui antes -confidenciou Laura a Sorrel, a caminho do
vestíbulo, onde foram apanhar os esquis. — Papai não nos permite
nenhuma camaradagem com rapazes. Se possível, gostaria de nos
ver sempre acompanhadas por pessoa de sua confiança, mas
acompanhante está hoje em dia completamente fora de moda.
— Em vez de guarda-costas, temos você, Sorrel — disse Gabriela
com todo o seu charme — o que é muito melhor... Oh! olhe Laura,
aquele homem ali! — Ela cochichou algo no ouvido da irmã.
— Não deixe papai ouvir você falar dele — disse Laura
rapidamente.
— Por quê? — exclamou a irresistível Gabriela. — Oh, você se
lembra, Laura, da época que viemos esquiar com mamãe e tivemos
de passar a noite no refúgio?
— Fique quieta! — disse Laura cutucando sua irmã.
— O que é o refúgio? — perguntou Sorrel, para distrair a atenção
de Ramón, que as observava.
— É uma cabana onde agente se abriga, quando a nevasca nos
pega de surpresa — disse ele. — Existem muitos refúgios pelos
declives, para a conveniência dos esquiadores mais afoitos, que
gostam de esquiar fora das rampas usuais.
— Venha aqui. Este é o mapa da área que nos mostra onde
estamos — disse ele apontando um gráfico na parede do vestíbulo. —
As cabanas são rústicas, mas equipadas com camas de campanha,
cobertores, fogão, combustível e comida enlatada.
Fora do hotel, eles puseram os esquis outra vez e deslizaram pelos
declives mais íngremes.
A subida era uma experiência tão fantástica quanto a descida
parecia ser, pensou Sorrel. enquanto da cadeira do teleférico
admirava os esquiadores descendo pelas montanhas, revolvendo os
cintilantes cristais de neve.
Do último mastro, até onde o teleférico chegava, eles subiam
ainda mais um pouco, desenhando com os esquis motivos diversos na
neve fresca. Quando chegaram ao topo. Sorrel
Descansou,
apoiando-se
nas
varas
de
esqui,
ofegando
e
contemplando estupefata a vista da montanha. Cortada pelo vento,
ensombreada por nuvens errantes, seus cumes pontudos brilhavam
como figuras prateadas contra o cinza-pálido do céu. As montanhas
eram de uma beleza majestosa!
— Este costumava ser o declive preferido de mamãe — disse Laura
tristemente.
— Eu posso ver por quê — falou Sorrel. — A vista é simplesmente
fantástica.
— As nuvens me parecem cheias de neve — disse Ramón
preocupado. — É melhor começarmos a descer. Gabriela, você vai na
frente e nos indica o caminho. Sorrel, siga Gabriela o mais perto que
você puder. Laura seguirá você e eu irei por último. Assim, se uma de
vocês cair, eu poderei ver e ajudar.
— Mas, e se você cair, papai? Não saberemos – replicou a
ingênua, mas extrovertida Gabriela.
— Eu sei que não cairei — disse Ramón com a fria segurança que
Sorrel percebera ser típica dos homens colombianos. Nunca
cometiam erros ou, se os cometessem, jamais admitiriam.
— Tenham cuidado com as rochas pontiagudas — acrescentou
Ramón. — Estão prontas'?
Sorrel colocou os óculos protetores e puxou seu gorro esmeralda,
que combinava com a roupa de esqui, ajustando-o firmemente na
cabeça.
Finalmente, Sorrel olhou para as duas garotas, verificando se
estavam adequadamente protegidas contra o ar gelado que poderia
cortar apele na longa descida até o mastro do teleférico. No entanto,
não havia nenhuma necessidade de se preocupar com elas. Muito
mais acostumadas a esquiar nos Andes do que ela própria, haviam
levantado a gola totalmente, para cobrir o pescoço, e os capuzes
estavam bem puxados, para proteção dos ouvidos.
— Podem ir — disse Ramón.
— Siga-me de perto, Sorrel — gritou Gabriela alegremente. — Não
gostaríamos que você se perdesse!
Observando a pequena e agradável figura, vestindo uma roupa de
um laranja forte, Sorrel enfiou suas varas de esqui na neve e
começou a descer. Ambos os esquis estavam paralelos e em ângulos
exatos para a descida e seu corpo com a inclinação certa, seguindo
Gabriela, que parecia mergulhar, ziguezagueando pela rampa.
De um lado para o outro, atravessou o desfiladeiro, tranqüila por
Gabriela estar usando uma roupa de forte colorido, fácil de ser vista a
distância, especialmente porque as garotas estavam tomando uma
razoável dianteira.
De repente, Sorrel viu um pedaço pontiagudo de rocha no meio da
neve, mas já era tarde demais para desviar-se. Afastando bem as
pernas, tentando juntar as pontas dos esquis, numa última tentativa
de safar-se da situação, ela praticamente mergulhou em um monte
de neve e, caindo de lado, escorregou até a base da rocha. Foi
melhor assim do que ter se chocado contra a rocha, pensou Sorrel,
ao mesmo tempo que olhava aturdida para o granito acinzentado. Se
ela tivesse colidido com ele, poderia estar seriamente machucada.
De repente um vulto vermelho e esguio passou rapidamente por
ela, cobrindo-a com uma tênue nuvem de neve. Não percebera que
Laura estava vindo tão perto dela, e aparentemente Laura não a viu
cair,
pois
nem
tentou
parar
para
ajudá-la
e
continuou
ziguezagueando pelo desfiladeiro. Sorrel levantou-se cuidadosamente
e empurrou seus óculos de proteção para a testa. O sol havia se
escondido atrás de uma densa nuvem acinzentada e não havia mais
nenhum clarão na neve.
Rapidamente Sorrel examinou as amarras de seus esquis para ter
certeza de que estavam firmes, quando outra pessoa vestida de
amarelo forte aproximou-se dela.
— Ei, espere por mim, señor! — gritou Sorrel com todas as suas
forças, e penosamente impulsionou as varas de esqui e saiu atrás da
pessoa desconhecida.
A frente dela Ramón deslizava rapidamente sobre um monte de
neve. As garotas haviam desaparecido há bastante tempo. Sorrel
tinha uma única esperança: quando ultrapassasse o monte de neve,
poderia ver Ramón novamente. Mas ela levou muito tempo até
chegar lá, muito mais do que pensara e, quando finalmente o
alcançou, o que ela pôde ver foi outro ingreme declive, onde
mergulhou num redemoinho de flocos de neve. Ninguém a viu cair,
para que pudesse ajudá-la.
Que direção teriam seguido? Ela poderia acompanhar as pegadas,
mas a neve caía densamente, e as trilhas dos esquis haviam se
apagado. Tudo o que poderia fazer era continuar descendo e, talvez,
quando a neve cessasse de cair, conseguiria ver a torre e os fios do
teleférico. No momento em que os encontrasse, poderia saber para
onde seguir até chegar ao hotel.
De um lado como de outro, o desfiladeiro parecia interminável e a
rampa a mais íngreme que já havia esquiado em toda a sua vida.
Teria ela tomado a direção errada? Se ao menos houvesse alguma
nesga de sol, tudo se tornaria mais visível e ela poderia se orientar,
mas havia pouca luz, quase nenhuma, pois a neve continuava a cair,
dando-lhe a impressão de estar sendo envolvida por um pesado
cobertor cinza.
Em meio à densa nevasca, outra rocha precipitou-se ao encontro
de Sorrel, e ela novamente caiu ao tentar escapar do perigo.
Ofegante, coberta pela neve, tentou desesperadamente safar-se e
quase foi atropelada por outro esquiador. De relance, viu duas tiras
brancas contrastando numa jaqueta preta. Rapidamente o esquiador
se distanciou dela, fazendo as curvas com facilidade e perfeição,
como se estivesse competindo em uma corrida de jogos de inverno.
Animada com o fato de ter companhia, Sorrel foi atrás do esquiador,
tentando seguir na mesma velocidade dele, mas no momento em que
ela ultrapassou outro monte de neve, ele também havia desaparecido
e tudo o que ela podia ver era uma vasta extensão de neve,
alargando-se até um bosque de árvores enormes.
Desanimada com seus esforços inúteis, Sorrel apoiou-se nas varas
de esqui, tentando respirar mais facilmente. Começou a sentir pânico,
pois a distância era enorme e ainda não havia conseguido localizar o
teleférico. Mordendo os lábios, achou melhor se tranqüilizar, na
esperança de ouvir o som metálico dos fios de aço, mas ouvia apenas
o lamento do vento, que aumentara, e o suave ruído da neve caindo
em sua jaqueta. Subitamente, viu uma luzinha que oscilava por entre
as árvores espalhadas embaixo do desfiladeiro. Imediatamente,
começou a esquiar nessa direção. A rampa ainda era íngreme e ela
teve que cruzá-la muitas vezes, consciente o tempo todo de que o
vento estava cada vez mais forte, transformando a queda suave da
neve em uma forte nevasca. Mas a luz continuou apagando e
acendendo, como um farol em meio à neblina, e afinal teve a certeza
de que vinha da janela de uma construção escondida entre árvores.
Imediatamente seu estado de espírito melhorou. Deveria ser um dos
refúgios que Ramón mostrara no mapa. Dentro do refúgio encontraria
outros esquiadores e talvez até Ramón e as meninas.
Aliviada, apressou-se a tomar uma trilha que cortava uma
pequena floresta de árvores assimétricas. Mas não tinha visto um
pedaço de gelo, até que pisou nele, perdeu o equilíbrio e caiu de
costas, com as pernas enganchadas nos esquis. Sua cabeça bateu em
algo muito duro. Atordoada, ficou deitada por alguns minutos na
neve, sentindo os flocos lhe caírem no rosto. Percebeu algo pegajoso
escorrendo em seu rosto e tentou levantar a cabeça, que agora
latejava e rodava, e a única coisa que viu, antes de desmaiar, foram
milhares de estrelas.
Quando recobrou os sentidos, teve a vaga impressão de que
estava de cabeça para baixo e sua cabeça latejava tanto que se
sentia cambalear. Após um momento, percebeu que estava sendo
socorrida, carregada nos ombros. Sua cabeça girava violentamente e
ela ouviu passos fortes subindo degraus de madeira e, logo em
seguida, o ruído de uma porta sendo aberta. Sentiu uma sensação
aconchegante.
Sorrel abriu os olhos e olhou diretamente para umas vigas de
madeira e entre elas podia ver um teto de forma inclinada.
Alguém estava levantando seu pé direito.
Ergueu a cabeça e viu a mão desamarrando suas botas. Pôde
discernir o perfil de um homem. Um queixo saliente, rugas no canto
da boca, um nariz bem feito, maçãs do rosto proeminentes, olhos
escuros, testa larga e cabelos negros mais ou menos longos
penteados para trás.
— O que aconteceu? — perguntou Sorrel em inglês, esquecendo-
se momentaneamente em que país estava.
O homem virou bruscamente a cabeça e ela viu seus olhos
iluminarem-se com surpresa. Sorrel lembrou-se onde estava e
repetiu a pergunta em espanhol.
— Você caiu e bateu com a nuca em um tronco de árvore. A batida
lhe deixou inconsciente
— explicou ele em inglês. — Se você tocar em sua cabeça, encontrará
um galo do tamanho de um ovo. Teve sorte de eu estar vindo atrás
de você.
— Atrás de mim ? — exclamou Sorrel, levantando-se um pouco
com a ajuda dos cotovelos.
— Mas pensei que era eu que o estava seguindo. Era você que estava
esquiando lá no desfiladeiro, não era?
— Sim, era eu — disse ele, tirando as botas dos pés de Sorrel —
Por que você estava me seguindo?
— Tinha a esperança que talvez você pudesse me levar de volta ao
hotel. Eu me perdi das pessoas com quem estava esquiando e a
tempestade de neve me desorientou completamente. Eles não estão
por aqui, não é?
— Não, aqui não há mais ninguém. — Sorrel levantou um pouco a
cabeça e com dedos tateantes ajeitou os cabelos na nuca.
— Ui! — exclamou ela. — É do tamanho de um ovo, não é? Será
que você não se aborreceria de ver se é só um galo, ou se há algum
ferimento?
Ele olhou-a fixamente por alguns segundos e finalmente levantou
os ombros indiferentemente.
— Como você desejar — disse em espanhol. — Vou buscar a
lamparina.
Ele colocou a lamparina em uma banqueta próxima da cama de
campanha em que ela estava deitada e ajoelhou-se no chão, na
tentativa de examinar-lhe a cabeça.
— Você pode se sentar? — perguntou ele.
Ela colocou as mãos ao lado do corpo, apoiando-se na estreita
cama e sentou-se. Novamente, tudo girou a sua volta, e Sorrel teria
caído para trás, se ele não a houvesse segurado pelos ombros.
— Espero que não esteja contundida — murmurou ela.
— Também eu — disse ele. — Por favor, abaixe um pouco a
cabeça — acrescentou.
Ela obedeceu e sentiu que ele estava repartindo o cabelo para
melhor ver o ferimento. Seu toque era suave e ao mesmo tempo
firme.
— Não é muito fácil de ver, pois você tem muito cabelo, mas
parece-me não haver sangue
— disse ele. Sorrel estremeceu ao sentir a respiração dele em seu
pescoço. — Sua cabeça está doendo?
— Sim, muito.
— Então deite-se e descanse. Acho que descanso e pouco
movimento é o melhor remédio.
Ela aquietou-se e o viu colocar a lamparina em uma mesa
redonda. Na vidraça sem cortina podia notar o reflexo da luz
contrastando com a escuridão da noite e reconheceu a luz que a
guiara até ali.
Observando atentamente, viu um fogão de ferro no meio da sala,
com portinholas típicas dos fogões antigos, por onde saíam labaredas
fortes.
— Este lugar é um refúgio? — perguntou.
— Sim.
— Estamos muito longe do hotel?
— Mais ou menos uns dez quilômetros.
— Oh! — Sorrel ficou surpresa. — Não tinha a menor idéia de
quanto me desviara da rota certa. Estava procurando achar o
teleférico.
— Está ao norte daqui.
Ela franziu a testa, numa tentativa de lembrar-se do mapa da área
que Ramón lhe havia mostrado no hotel e no qual os refúgios
estavam delineados, mas a dor de cabeça tornava seus pensamentos
confusos e ela não conseguiu imaginar o mapa nitidamente.
— Você parece preocupada, señorita. — A voz grave do homem
interrompeu seus pensamentos e ela o olhou de relance. Ele ainda
estava se apoiando na mesa e a observava.
— Estou. Não só por mim, mas também pelos outros. Com certeza
eles devem saber que me perdi. Imagino que não haja nenhuma
maneira de me comunicar com o hotel agora, para avisá-los que
estou salva.
— Aqui não há telefone, nem eletricidade, como você mesma pode
observar — disse ele calmamente. -Tenha um pouco de paciência e
espere até amanhecer. A nevasca já terá passado e após uma boa
noite de descanso você se sentirá melhor. De manhã, eu lhe indicarei
o caminho de volta para o hotel. Se você se preocupar com seus
amigos agora, não vai se sentir melhor, por isso relaxe e agradeça
por estar salva e confortavelmente instalada neste refúgio, pelo
menos por uma noite.
— Eu estou muito agradecida. De verdade! – exclamou Sorrel
rapidamente, com receio de que ele a achasse rude e mal-educada.
— Muito obrigada por me ter salvo. Deveria ter-lhe agradecido antes,
não é? — acrescentou sorrindo. — Acho que a pancada afetou minha
cabeça, eu ainda não entendo como você podia estar atrás de mim,
se eu o estava seguindo.
Ele levantou-se e dirigiu-se até o fogão, colocando mais lenha,
pois só restavam cinzas. Virando-se, cruzou os braços e olhou para
ela.
— Eu vi você cair no desfiladeiro — disse ele — e quase a derrubei
novamente. Você devia ter sido mais cuidadosa, olhar atentamente
antes de se mover, para ver se não vinha ninguém. Uma colisão
poderia ser fatal para nós dois. Se você não tivesse começado a
esquiar novamente, eu teria parado para ajudá-la, mas você parecia
estar inteira, por isso voltei para a cabana, abrigando-me da neve.
Cheguei, entrei e acendi o fogo e a lamparina. Olhei para fora e vi
você vindo em direção às arvores. — Ele parou um pouco de falar,
levantando a mão e esfregando o rosto. — Achei em você algo que
me pareceu familiar — disse ele prosseguindo.
— Pensei que fosse uma moça que conheço, por isso fui ao seu
encontro. Eu a vi, passando por entre as árvores, mas você não podia
me ver. Percebi que você não era a pessoa que eu pensava que fosse
e fiz uma curva para segui-la. Aí a vi cair novamente. – Ele levantou
os ombros. — Se eu não tivesse sido tão curioso e ido embora; você
ainda estaria lá.
Sorrel estremeceu levemente e tentou apagar da mente a cena
dela caída, inconsciente e sozinha, sendo tragada pela neve.
— Espero que sua decepção não tenha sido grande, ao me
encontrar, ao invés da outra pessoa por quem você me tomou —
disse ela suavemente.
Ele não respondeu e continuou olhando para ela de uma maneira
estranha, quase como um caçador que observa um animal que
pretende abater, à espera do menor movimento. Sorrel sentiu um
arrepio, provocado por sua apreensão.
— Não estou desapontado, — disse finalmente — muito pelo
contrário.
O contrário seria estar feliz por ela não ser a outra mulher que ele
conhecia, pensou Sorrel, franzindo a testa. No entanto, a tentativa de
juntar todas as coordenadas da conversa estava sendo demais para
sua dor de cabeça, e com um suave movimento ela deitou-se de
costas novamente.
O homem tirou a jaqueta e jogou-a numa cadeira próxima.
— Você está com fome? — perguntou subitamente.
— Não muita.
— Gostaria de tomar um prato de sopa?
— Se tiver...
— Há sopas enlatadas no armário e a panela para esquentá-la já
está no fogão. Você não precisa fazer nada. Sou capaz de prepará-la,
sozinho.
A luz do fogo seus olhares se encontraram novamente e ambos se
mediram de cima abaixo.
Sorrel não conseguiu descobrir quase nada na face sombreada do
homem, mas ele parecia olhá-la não apenas com os olhos mas com
todo o corpo; seus músculos estavam tensos, prontos para se
relaxarem ao menor movimento dela.
— Gostaria de tomar um pouco de sopa — disse Sorrel
fracamente, e de repente sentiu que tinha outra séria necessidade
— Onde é o banheiro?
— Atravesse a porta e vá até o fundo do quarto.
Ela começou a sentar-se e imediatamente ele se moveu como ela
tinha certeza de que o faria.
— Espere, vou lhe ajudar. Você pode sentir tontura quando se
levantar e não gostaria de vê-la cair novamente. Você já caiu
suficientemente por uma tarde — disse ele.
— Você deve pensar que sou uma péssima esquiadora, e
realmente
sou
se
me
comparar
com
você.
Você
esquia
maravilhosamente — disse ela.
— Muchas gracias, señorita — replicou ele um pouco surpreso. —
Eu faço o melhor que posso. Agora me dê sua mão.
Sorrel hesitou, olhando fixamente para a mão estendida, muito
bem delineada, forte e musculosa como o resto de seu corpo. Temia
um possível contato físico e resolveu levantar-se sozinha, sem sua
ajuda. Empurrando as mãos contra a cama de campanha, conseguiu
ficar de pé. Sua cabeça girou e ela caiu pesada e diretamente nos
braços dele.
— Então você é uma dessas feministas que andam por aí,
recusando qualquer ajuda de um homem ? — disse ele jocosamente,
e desta vez sua respiração moveu os cabelos da testa de Sorrel, com
resultados desastrosos.
Estranhas sensações percorreram o corpo de Sorrel. Um desejo de
agarrar-se a ele a queimou por dentro quando sentiu o poder e o
calor daquele corpo na mão pousada em seu peito. Seus dedos
praticamente o acariciaram e, quando conseguiu controlar-se, pulou
bruscamente para trás e soltou-se dele.
— Estou bem agora — afirmou. — Atravessando a porta, no fundo
do quarto, acho que foi isso que você disse, não é? — acrescentou ela
e, virando-se sem olhá-lo, forçou-se a andar firmemente.
O banheiro estava fracamente iluminado por uma lamparina de
querosene presa à rústica parede de madeira. Havia somente uma
bacia, uma pia antiga e uma vasilha com água para se lavar. A água
da pia estava muito gelada, mas mesmo assim refrescante e quando
ela voltou ao aposento principal da cabana, sentiu de alguma maneira
que, após se lavar, seus pensamentos estavam mais claros.
O homem estava em pé ao lado do fogão, mexendo o conteúdo de
uma panela, de onde saía um vapor deliciosamente agradável. Sorrel
foi até a mesa redonda onde estava a lamparina e sentou-se numa
cadeira.
— A sopa está cheirosa — disse ela delicadamente.
— É sopa de carne com trigo; é muito substanciosa e perfeita para
um clima como este
— respondeu ele, vindo até a mesa com a panela e a concha para
servir a sopa nas vasilhas que encontrou. Sua face direita estava
diretamente iluminada, salientando uma feia e grande cicatriz que ia
da orelha até o canto da boca, como se alguém tivesse pego uma
faca e arrancado a carne de seu rosto.
— Oh, seu rosto! O que aconteceu? — comentou Sorrel sem
pensar.
Fez-se um terrível silêncio enquanto ele a olhava. Então seus
longos cílios se juntaram por sobre o duro brilho de seus olhos, o
canto esquerdo de sua boca levantou-se e ele sorriu. Colocou a
concha na mesa e levou a mão à cicatriz.
— Você não deveria tocar neste assunto — disse ele, zombando.
— Você deveria olhar e fingir que nada existe de diferente no meu
rosto. Nunca ninguém lhe ensinou que não se deve comentar sobre
mutilações?
O sarcasmo dele afetou Sorrel mais do que ela podia esperar.
— Me perdoe! — murmurou. — Não fazia idéia. Não pude vê-lo
completamente antes, não estava suficientemente claro e...
— Não diga mais nada — ele a interrompeu energicamente. — Eu
entendo perfeitamente e, para falar a verdade, prefiro seu
comentário honesto do que olhares furtivos. Agora, por favor, você
vai tomar sua sopa?
Esperou que ele voltasse do fogão e sentasse à sua frente, antes
de pegar acolher e começar a tomar a sopa.
— Se vamos comer e passar a noite juntos, acho que deveríamos
nos apresentar — disse ela. — Eu sou Sorrel Preston.
— SOR-REL — repetiu ele vagarosamente. — Seu nome é inglês?
— É um nome dado a certos cavalos que têm uma coloração
específica — disse ela rindo divertida, quando viu o olhar dele cheio
de surpresa. — Eles têm uma cor marrom-avermelhada. Por causa
disso meu pai me deu este nome. Ele é treinador de cavalos para
corridas, e mora na Inglaterra.
— Você está de férias aqui?
— Não, trabalho na casa de um homem de negócios em Medellín.
Sou uma espécie de dama de companhia para a esposa ele e suas
duas filhas.
— Você também é dama de companhia dele?
Ela o olhou friamente.
— Seu comentário é fora de moda — replicou Sorrel rapidamente.
— É muito normal em meu país que um homem casado tenha uma
amante, até mesmo em Medellín, onde as pessoas são mais
puritanas, o que aliás combina muito com a imagem de soberanos
industriais que eles têm — comentou.
— Bem, não sou a amante de Ramón Angel e nem quero ser—
replicou Sorrel rispidamente, tentando se controlar.
— Ramón Angel, o presidente da Companhia Têxtil Angel? —
perguntou.
— Sim, você o conhece?
— Só de nome. Por que ele precisa pagar uma dama de
companhia para a esposa e as filhas?
— A esposa ficou seriamente ferida em um acidente de carro há
alguns meses atrás e não pode mais andar. Sou fisioterapeuta e
posso assim ajudá-la diariamente com exercícios especiais.
— Não poderia ser uma fisioterapeuta colombiana?
— Sim, mas Mônica Angel não podia ou não queria cooperar com
as do hospital. Ela também é inglesa e nascemos na mesma cidade.
Sua mãe veio visitá-la logo após o acidente e ficou logicamente
preocupada com a condição em que sua filha se encontrava,
decidindo encontrar alguém da mesma nacionalidade para poder
ajudá-la. Vi o anúncio no jornal e como sempre tive vontade de
conhecer a América do Sul, além de falar um pouco de espanhol, fui
recomendada para o señor Angel.
— Você fala um bom espanhol. Onde aprendeu? — perguntou.
— Com minha mãe. Ela é de ascendência espanhola. Seu pai era
inglês e trabalhava na Espanha como engenheiro de minas, e lá se
casou com uma moça da Andaluzia.
— Humm! Cabelos ruivos e olhos quase pretos é uma mistura
pouco comum — disse ele. Sorrel percebeu que ele estava
confortavelmente recostado na cadeira, olhando-a fixamente.
— Você tinge o cabelo ou é peruca?
A colher esbarrou no prato de sopa, agora vazio, fazendo barulho.
A irritação quase fez Sorrel jogá-la dentro do prato.
— Esta mistura é tão inusitada quanto cabelos negros e olhos
cinza — disse ela. — O seu cabelo é seu mesmo ou é um aplique
escondendo a calvície, señor... señor?... – Ela cortou o assunto
propositalmente e levantou as sobrancelhas, esperando que com essa
atitude ele lhe dissesse o próprio nome.
— Você tem uma língua afiada — comentou secamente, e levou a
mão até o cabelo, puxando alguns chumaços, que ficaram caídos na
testa. — Você vê, não sai. — Ele inclinou a cabeça para a frente e
acrescentou: — Por favor, sinta-se à vontade, pode fazer o teste.
Ela olhou para o denso cabelo e percebeu que estava com suas
mãos no colo, num esforço tremendo para resistir à tentação de
passar os dedos por entre eles.
— Não, muito obrigada — respondeu. — Você ainda não me disse
seu nome.
— Pode me chamar de Domingo — respondeu indiferente,
sentando-se novamente.
— Mas Domingo em espanhol significa dia da semana — reclamou
Sorrel.
— E daí? Nasci num domingo e minha mãe... — o sorriso
zombeteiro tomou conta de seu rosto. — Você deve saber como são
as mães, quando decidem dar nomes aos filhos. É algo parecido aos
pais dando nome às filhas.
— Mas meu nome é realmente Sorrel — disse ela protestando.
— E o meu é realmente Domingo — replicou.
— Você mora aqui por perto?
— Bem perto.
— Acho que você não quer me falar nada a seu respeito.
— Já lhe dei um nome.
— Um nome inventado por você.
— Não, eu juro, señorita, Domingo é um nome muito comum
neste país.
— Sim, tão comum que nada significa sem o nome de família.
Domingo de quê? — inquiriu Sorrel.
— Do que você quiser. Dizendo-lhe meu nome completo, onde
moro e o que faço, não me fará nem um pouco melhor. Você sabe
disso. Eu poderia lhe encher de mentiras a meu respeito e você
nunca saberia a verdade.
Tinha de admitir que ele estava certo. Falando sobre ele mesmo,
não ganharia maior confiança.
Franzindo as sobrancelhas, Sorrel estudou-o curiosamente. A
cicatriz na face, os olhos expressivos e brilhantes, a boca firmemente
delineada, que parecia estar sempre zombando de alguém, e a
protuberância do queixo lhe davam uma impressão de rudeza.
Parecia que vivia e trabalhava perigosamente.
— Nunca julgue um homem pela aparência e por suas roupas.
Julgue-o por suas ações
— disse ele jocosamente.
— O que o faz pensar que o estou analisando? – replicou Sorrel.
— A maneira pela qual você está me olhando.
— Eu o estou olhando da mesma maneira que você me olhou
durante toda a noite — disse ela na defensiva.
— Não posso concordar com você. Você está me observando,
tentando julgar que tipo de homem eu sou. Mas eu estava e ainda
estou tendo um grande prazer em admirá-la. Veja, não é sempre que
tenho uma companhia tão agradável como você.
— Eu não posso acreditar em você — disse ela fazendo pouco. —
Você me disse primeiramente que eu era uma pessoa que você
pensava conhecer...
— Eu não disse que nunca havia tido a companhia de uma mulher
— disse ele, interrompendo-a delicadamente. Agora havia uma
pequena mudança na maneira de olhar para ela. Seus olhos cinza não
mais a olhavam de maneira dura. Pareciam, sim, acariciá-la, à
medida que examinavam cada detalhe de seu rosto.
— Eu disse uma mulher como você — acrescentou. — Nunca
ninguém lhe disse que você é de uma beleza exótica, fora do comum,
Sorrel?
A expressão de seus olhos acalmou-a e ela desviou seu olhar do
dele. A sala estava pouco iluminada e os únicos sons perceptíveis
eram o da lamparina, o farfalhar do fogo e o vento que uivava lá fora.
Ela estava a sós em uma cabana com um estranho que havia
acabado de admitir que gostava de olhá-la. E neste exato momento o
olhar dele era tão intenso que a deixou terrivelmente apreensiva.
Olhou furtivamente em direção à porta. Mesmo que ela a alcançasse,
antes de ele detê-la, o que adiantaria fugir?
Lá fora continuava a nevasca e ela não tinha a mínima idéia de
que direção tomar. Seria enterrada pela neve rapidamente. Não, teria
de ficar onde estava e torcer para que, se ele tentasse alguma coisa,
ela tivesse forças suficientes para se defender.
Desconfiadamente deu uma olhadela para onde ele estava. Ele
ainda a observava, densos cílios pretos, quase escondendo por
completo o cintilar dos olhos, e outra vez ela teve a mesma
impressão anterior de que os músculos dele estavam tensos e firmes,
prontos para se soltarem a qualquer movimento feito por ela.
— Você se sente bem estando aqui sozinha comigo? — perguntou.
— Será que você preferiria que a tivesse deixado se congelar, lá fora
na neve?
— Oh, o que posso fazer? — murmurou Sorrel, com dor e
desconfiança. — O que posso fazer?
— Acho que você deve ir para cama e dormir — disse ele
carinhosamente.
— Onde?
— Na cama de campanha, onde você descansou antes. Eu a trarei
para mais perto do fogão, assim você ficará aquecida, e porei mais
lenha para que o fogo agüente a noite toda. Aqui tem os cobertores.
Acho que você terá conforto.
Ela estava vagamente consciente dos movimentos feitos por ele,
enquanto ela se sentou novamente, apoiando os cotovelos na mesa e
segurando a cabeça dolorida entre as mãos. Entretanto, um toque
suave em seus ombros assustou-a e ela esquivou-se violentamente.
Ao olhar para cima, viu-o de pé a seu lado.
— Sua cama está pronta.
Para sua tranqüilidade, não a ajudou a levantar.
Conseguiu chegar até a cama, sem muito cambalear, e sentiu-se
feliz ao se deitar e fechar seus olhos.
Percebeu quando ele a cobriu com um macio cobertor e o viu
afastar-se dela. Quase imediatamente seus músculos se relaxaram,
dando-lhe a sensação de cair cada vez mais profundamente em um
poço negro, enquanto o sono a dominava.
CAPÍTULO II
Sorrel acordou vagarosamente e espreguiçou-se ao olhar a luz do
amanhecer que vinha pela pequena janela sem cortinas. Onde
estava? Alarmada por não reconhecer imediatamente o ambiente,
sentou-se e observou toda a sala. Paredes vazias, revestidas de
madeira; estas rústicas, sustentando um teto inclinado e escuro; um
fogão no meio da sala; um conjunto de mesa e cadeiras grosseiras e
uma estante embutida, onde via uma vasilha e um jarro antigo. Seu
olhar voltou-se imediatamente para a outra cama de campanha
paralela à sua, porém do outro lado do fogão. Tudo o que podia ver
da outra pessoa, que parecia dormir pesadamente, era uma mecha
de cabelo, liso e preto. O resto estava coberto por um cobertor
indígena muito colorido, igual ao que a estava cobrindo. A mecha de
cabelos negros foi que lhe reviveu na memória toda a aventura da
noite anterior. Cautelosamente, tocou na parte posterior de sua
cabeça. Havia uma protuberância. Balançou-a de um lado para o
outro. Não estava mais dolorida, e a exaustão que havia sugado toda
a sua energia havia desaparecido. Sentiu-se muito melhor e muito
mais capaz de enfrentar o perigo que o homem deitado na outra
cama pudesse oferecer.
Enquanto permaneceu sentada ali, o colorido da luz que avançava
pela janela começou a mudar. O cinza-pálido estava rapidamente se
dispersando, dando lugar a uma luz com nuances de amarelo à
medida que o sol nascia. Sorrel afastou o cobertor que a cobria e
levantou-se. Não sentia nenhuma tontura, somente as pernas e os
braços estavam um pouco doloridos pelo esforço extenuante que
havia feito, esquiando no dia anterior. Na ponta dos pés, atravessou
a sala e foi ao banheiro, voltando em seguida para o aposento
principal. A seguir dirigiu-se à janela para ver como estava o tempo.
A neve havia cessado e, sob a reluzente luz do sol, os declives das
montanhas oscilavam entre amarelo e rosa, contra o pálido azul do
céu. Sorrel tremeu um pouco por causa do ar frio e virou-se para
pegar sua jaqueta de esqui da cadeira onde a havia colocado,
vestindo-a rapidamente. O fogo havia se apagado, mas as brasas
ainda brilhavam. Ela pegou alguns gravetos da caixa ao lado do fogão
e colocou-os sobre as brasas. Logo pegaram fogo, que aumentou
quando pôs alguns troncos.
Após uma busca na estante, Sorrel encontrou um vidro de café
instantâneo e outra panela. Encheu a panela com água da torneira e
colocou-a no fogão. Em seguida, dobrou seu cobertor e sentou-se na
cama à espera da água ferver. Com os cotovelos apoiados nos
joelhos, e segurando o rosto, olhava fixamente para o homem na
outra cama. Ele havia virado de costas e a luz do dia iluminava a
cicatriz em seu rosto. A curiosidade tomou conta de seus
pensamentos. Como? Por quê? Quando? Onde? Ela inclinou-se para
ver melhor a cicatriz, deslizou na cama, ficou de joelhos e curvou-se
sobre ele, como se, estudando detalhadamente sua face, pudesse
encontrar respostas para suas perguntas. Como eram grossos e
negros seus cílios, e como era provocante a curva de sua boca, como
se estivesse sorrindo por algum estranho pensamento! Como deveria
ter sido belo, antes de ter sido tão violentamente machucado! Não,
ainda era belo. Sua figura era dura e máscula.
Ele abriu os olhos e imediatamente olhou para ela. Sorrel tentou
levantar-se, mas ele foi mais rápido do que ela. O braço esquerdo
moveu-se rápido e a segurou pelo pescoço. A força do seu braço
levou a cabeça de Sorrel até bem próximo de seu rosto e ela sentiu
lhe roçarem os fios da barba. Então os lábios quentes tocaram os
dela num beijo rápido e estonteante.
— Buenos dias, señorita — murmurou ele. — Eu queria ter feito
isto ontem à noite, mas você estava cansada demais. E agora vou
repetir a dose outra vez.
— Não. — Sorrel puxou firmemente a cabeça para trás, tentando
safar-se dele. — Deixe-me ir.
— Ainda não.
Ele a pressionou mais ainda. Com as mãos contra o peito dele, ela
tentava se soltar, mas não conseguia. No momento em que os lábios
dele tocaram os seus, ela quis mantê-los fechados, tentando soltar-
se. Mas os braços a seguravam como se fossem tornos mecânicos e
ela não pôde escapar das lentas carícias em sua boca feitas pela dele
e gradualmente sentiu o desejo de corresponder aos movimentos
sensuais dos lábios do homem.
Os lábios dela descontraíram-se por fim e seu corpo relaxou-se. Ao
invés da dureza dos braços contra seu pescoço, a mão lhe acariciava,
provocando sensações deliciosas ao longo de sua espinha e
espalhando-se por todo o seu corpo numa estonteante corrente de
prazer. Logo após, tocava levemente sua cintura e aos poucos a mão
se insinuou por dentro de sua jaqueta até chegar aos seios.
Pânico, taquicardia e suor frio deixaram-na tensa. Mais uma vez
tentou libertar-se e conseguiu.
— Por que você fez isso? — disse ela ofegante, ajeitando a blusa
para dentro da calça de esqui.
— Por que quis — replicou ele simplesmente.
— E você sempre faz o que tem vontade? — disse Sorrel com a
voz entrecortada.
— Quase sempre e quando existe oportunidade.
Sorrel levantou-se, segurando a cabeça com a mão. Receosa de
que a agarrasse novamente, afastou-se dele, que ainda estava de
joelhos. Suas sobrancelhas juntaram-se e ele franziu a testa.
— Que tiene? O que aconteceu de errado? — perguntou.
— Não dá para você adivinhar? — disse Sorrel enraivecida. — Você
aproveitou-se de mim e é isto que está errado.
— Aproveitei? — disse ele, levantando suavemente as
sobrancelhas. — Você praticamente me estimulou a beijá-la.
— Eu não! — disse ela, ofegando furiosamente.
— Não? — Sua boca moveu-se e as maçãs de seu rosto tornaram-
se mais salientes, enquanto ele estalava a língua. — Acho que você
me estimulou sim. Eu acordei e a encontrei curvada sobre mim, aí
então disse para mim mesmo, a señorita pelo que vejo está se
sentindo muito melhor esta manhã e quer me agradecer por tê-la
salvado da nevasca de ontem, dando-me um beijo.
— Eu não queria beijá-lo e nem ser beijada por você. Não gostei
de ter sido beijada por você — disse Sorrel tempestuosamente,
tremendo, e arrependida de ter levantado mais cedo.
De uma maneira ou de outra, aquele tórax e os ombros nus, suas
curvas e saliências, deliciosamente marcadas pela fina camiseta de
algodão, reforçaram em Sorrel a certeza de que ele a atraía
fisicamente.
— Por causa disso? — perguntou ele, e seus dedos tocaram na
cicatriz. — Eu tenho mais cicatrizes, só que em outras partes do
corpo, e que não estão à mostra agora, mas se você quiser posso
mostrar.
— Não, não! — respondeu rapidamente e meio desconcertada,
pensando que talvez ele tivesse entendido que ela achava a cicatriz
chocante. Preocupava-se também com a possibilidade dele resolver
tirar a roupa, mostrando-lhe as outras marcas. — Eu nem pensei
nisso — acrescentou Sorrel apressadamente.
— Então por que você não gostou de ser beijada? E por que você
está agindo como se disse interrompendo as palavras, e esfregando o
rosto, como se estivesse procurando um modo melhor para dizer o
que pensava. Estalou então os dedos. — Agindo como se fosse uma
virgem ultrajada — concluiu jocosamente.
— Não estou fingindo — protestou Sorrel, apertando os lábios e
tentando controlar a fúria que se apoderou dela.
— Eu não faço questão alguma de ser beijada... por um tipo de
homem igual a você
— afirmou.
— E que tipo de homem sou eu?
— Julgando-o por sua última atitude, — replicou amargamente —
você é um tipo que já encontrei muitas vezes. Você acredita que
mulher só serve para uma coisa e está tentando se aproveitar da
minha situação, do acidente, para... para me possuir, não é verdade?
— A idéia não é de todo má, e passou pela minha cabeça, — disse
ele — mas do jeito que você está me tratando, já entendi que não
está nem um pouco interessada.
— Não, realmente não estou. Afinal, quem você pensa que eu sou?
— Acho você uma mulher agradável e muito desejável — disse em
espanhol, e a adorável cadência da língua espanhola fez essa simples
frase soar como uma canção de amor. — Que pena — disse ele
laconicamente. — Que pena que você tenha gelo nas veias ao invés
de sangue. A julgar pelo seu tipo ruivo, pensava que fosse mais
quente, mais passional. — Seus lábios moveram-se num amargo
sorriso, enquanto continuava a falar. — Você vê. Eu agi da mesma
maneira que lhe disse para não agir. Julguei-a pela aparência —
lamentou ele, enquanto a amargura tomava conta de seu rosto. —
Então que tipo de homem lhe interessa? E onde está ele? Por que ele
não está aqui protegendo-a e evitando assim que você caia nas mãos
de um homem como eu?
— Eu... eu não preciso de homem nenhum para me proteger,
posso me virar sozinha — disse ela baixinho e realmente enervada,
pela mudança de rumo na conversa. Deu meia volta e foi às cegas
para o fogão. — Vou fazer um café.
— Bueno — foi o que ele falou, e ela ouviu a cama de campanha
ranger no momento em que ele se levantou e o som de seus passos
indo para o banheiro.
As mãos de Sorrel tremiam tanto que o café instantâneo
esparramou-se pela mesa e a colher que estava segurando bateu na
borda da xícara.
Por que estaria tremendo tanto? Por que um estranho tinha
fraquejado sua defesa? Por que foi abraçada e beijada de uma
maneira tão especial, o que não acontecia desde o tempo de Martin?
...
Recordando-se do toque delicado e sedutor do estranho, e a
possessividade de sua boca, Sorrel, oscilando, fechou os olhos
fortemente. Não. Martin nunca a havia beijado assim. Se ele a tivesse
beijado daquela maneira, não estaria ali, agora, do outro lado do
mundo para onde fugira, tentando esquecer o amor que Martin nunca
lhe havia oferecido.
Se tivesse se entregado àquele abraço, não teria resistido a tanta
tentação, teria esquecido, mesmo se fosse por um só momento,
quem ela era e onde estava, entregando-se apenas às delícias
daquele momento...
— Pensei ter ouvido você dizer que ia fazer café — disse ele atrás
dela, repreendendo-a. Acordada bruscamente de seu devaneio, Sorrel
abriu os olhos, pegou a panela, onde a água borbulhava e derramou-
a nos flocos de café.
— Gostaria de ir para o hotel o mais rápido possível – disse ela
delicadamente, ao mesmo tempo que entregava a ele a xícara cheia
de um cheiroso e borbulhante café.
Pegou a xícara, sem dela desviar os olhos negros e brilhantes, e
disse:
— Seu desejo de deixar este lugar não me é muito lisonjeiro. Você
aqui está a salvo, e você sabe disso, eu não a tocarei, a menos que
você me incite a isso.
— Não é por causa disso tentou explicar, mas não pôde conter as
lágrimas, cobrindo o rosto com as mãos. — Oh, por favor —
sussurrou — será que não poderíamos esquecer o que se passou
entre nós?
— Que parte você gostaria de esquecer? — perguntou ele
zombeteiramente. — A maneira pela qual você reagiu favoravelmente
ou o pânico e fuga da realidade?
Ela descobriu o rosto e pegou uma xícara de café. Teve que
segurá-la com as duas mãos, até conseguir levá-la à boca. Enquanto
tomava um gole, lançou-lhe um olhar rápido e desconfiado. Ele
também estava bebendo e olhando-a! Será que era imaginação de
Sorrel, ou ele estaria realmente observando-a com uma certa pena?
Ela tomou outro gole e colocou a xícara na mesa.
— Tudo — respondeu.
— Não acho que poderei esquecer tudo, e nem quero — replicou
ele.
— Mas, mas... você não vai querer me dizer que o que aconteceu
entre nós tenha um significado importante — zombou Sorrel.
Ele a olhou novamente, com aquele olhar pesaroso, terminou o
café, pondo a xícara na mesa.
— Quem fez isso com você? — ele perguntou rapidamente.
— Fez o quê?
— Quem a machucou tanto? Creio que foi algum homem que a
feriu emocionalmente.
Ela tentou esconder sua consternação diante daquela descoberta,
agindo agressivamente.
— Olhe aqui, señor, qualquer que seja o seu nome, só porque
você não conseguiu imediatamente o que você queria desta mulher,
você acha que algo errado ocorre com ela. Você está enganado. Não
há nada de errado comigo. Eu só não gosto de ser tocada por
qualquer homem que esteja por perto de mim e é só isso!
Ele nada disse, mas continuou a observá-la fixamente até que
Sorrel, não conseguindo agüentar aquele olhar meio pesaroso e meio
cético, virou-se exasperada, olhando para fora da janela, para os
montes de neve cintilando à luz do sol.
— Eu quero ir embora, porque estou preocupada com o señor
Angel e com o que ele possa estar pensando — disse ela, e virou-se.
— Por favor, tente compreender. Esta minha atitude não tem nada a
ver com o que aconteceu.
— Talvez eu a entenda melhor do que imagina — disse ele. — É
bem possível que quando você lhe disser que passou a noite sozinha
numa cabana com um estranho, ele decida que você não é a
companhia ideal para as filhas dele. Sua boca mexeu-se num
movimento cínico.
— Ele tem sido muito bondoso comigo — afirmou ela com
lealdade. — Este é o motivo por que não quero causar-lhe mais
ansiedade. — Sorrel mordeu o lábio inferior preocupadamente,
sabendo que talvez o homem tivesse razão.
Ramón Ángel poderia compreender aquele pernoite. — Espero que
ele compreenda que não pude fugir à nevasca — acrescentou.
— Então você lhe.contará a verdade?
— Lógico; pelo menos o quanto for necessário. — Ela sentiu um
leve rubor ao vê-lo olhá-la ironicamente.
— Então desejo-lhe sorte — disse ele. — Bueno, vamos nos
aprontar para partir. Com as boas condições do.clima desta manhã,
tenho certeza que daremos uma boa esquiada. Vamos juntos
aproveitar as condições, heim?
Fora, o cortante ar frio atingiu Sorrel no rosto, parecendo ferir
suas narinas e, cada vez que ela respirava, sua garganta doía,
ressentindo-se do ar frio. Sob seus esquis, a neve zunia enquanto
escalava a rampa atrás do refúgio, pisando para os lados e para
cima, mantendo os esquis paralelamente e fincando as varas
especiais nas camadas densas e brancas de neve. Várias vezes Sorrel
parava para recuperar a respiração e admirar a ofuscante beleza fria
das montanhas. Todas as vezes que ela parava, Domingo, que estava
bem mais acima, a aguardava.
Sem fôlego e arquejando, Sorrel alcançou o topo do declive, onde
ele a esperava.
— Foi aqui que nossos caminhos se cruzaram ontem – disse ele. —
Ao invés de ir por aquela trilha, — continuou, apontando uma rampa
do lado direito — você me seguiu. Veja, ali está o final do teleférico,
logo acima daquele cume. Se não estivesse nevando, você o teria
visto e teria ido em direção a ele — olhou-a significativamente — e
nunca me teria conhecido.
Estaria ele dizendo que o encontro deles lhe significou algo? Ele
tirou os óculos protetores, como ela também o fizera, levantando-os
até o alto da cabeça e seus olhares se encontraram. Sorrel sentiu um
tremor no corpo, numa reação involuntária ao convite que cintilava
nos olhos dele.
Quase imediatamente ela desviou o olhar. Ele não era nada mais
nada menos do que um outro Don Juan latino-americano, que se
julgava a resposta a todos os sonhos femininos. Estava querendo
dar-lhe uma cantada, pois sabia que ela era inglesa e
consequentemente uma presa fácil, mais livre do que as mulheres do
seu próprio país.
Ela recolocou os óculos de proteção, agarrou as varas de esqui,
pronta para continuar.
— Acho que já posso encontrar o hotel. Você não precisa me
acompanhar — disse Sorrel firmemente, e partiu.
Ele a seguiu e em poucos segundos a alcançou. Sorrel tinha que
admitir que estava feliz por tê-lo perto, dividindo assim com ele a
sensação maravilhosa de esquiar pelas montanhas naquela manhã
ensolarada. Não que ela conseguisse fazê-lo sem cair algumas vezes,
mas quando isso acontecia ele estava sempre por perto para ajudá-
la, para rir com ela, para limpar a neve de sua roupa e ensinar-lhe
como fazer para evitar tantos tombos.
Finalmente, eles chegaram ao topo e lá estavam os teleféricos, os
cabos de aço das cadeirinhas, e lá bem embaixo do declive, o hotel,
com as janelas brilhando sob a luz do sol e inúmeros carros
estacionados à sua frente, que de longe pareciam brinquedos.
Havia um grupo de esquiadores no mastro mais alto do teleférico.
Eles estavam à volta de um guarda da montanha, com seu uniforme
vermelho, todos esquiadores exímios e recrutados pelas estações de
esqui para encontrar algum esquiador perdido.
Domingo parou e olhou pra o grupo. Sorrel virou-se e parou ao
lado dele. Ele levantou os óculos de proteção e olhou para ela.
— Agora, você pode ir sozinha — disse ele secamente.
— Obrigada por... por me trazer e por ter me salvado ontem à
noite — disse ela rapidamente, e percebendo só então o quanto lhe
era grata. Ele talvez tivesse lhe salvado a vida!
— De nada. Foi um prazer, señorita — respondeu educadamente.
Domingo desviou o olhar do grupo de esquiadores e recolocou seus
óculos novamente. Olhando o grupo novamente, voltou-se para
Sorrel e disse: — Sorrel, escute-me. Se você tiver qualquer tipo de
problema com o seu patrão, por favor me avise. está bem?
— Como? Eu nem sei seu sobrenome, ou onde você mora —
reclamou Sorrel.
— É possível que você descubra mais cedo do que pensa — disse
ele sorrindo abertamente, enquanto olhava o grupo de esquiadores já
diante dela. Nesse exato momento, uma voz estridente de criança
cortou o ar.
— Oh, Sorrel, estávamos tão preocupados com você! Por onde
você andou? Quem era essa pessoa que estava com você?
Sorrel olhou em redor. Domingo já havia partido e ela o viu
esquiando desfiladeiro abaixo em direção ao hotel. Ela o observou
atentamente, admirando a perfeição com que esquiava, e sentiu uma
pontinha de decepção, porque havia partido sem lhe dizer adeus.
Logo, porém, o sentimento de mágoa desapareceria. Por que
deveria se magoar? Deveria estar contente por ele ter ido embora,
assim poderia se explicar com o patrão, sem sua presença. Ela
voltou-se para Gabriela e quase imediatamente se achou rodeada por
um grupo de esquiadores, todos se dirigindo a ela curiosamente,
falando em espanhol.
— O que aconteceu? Onde passou a noite? — O rosto fino e pálido
de Ramón Angel estava marcado por severas linhas.
— Eu caí e vocês não me viram -começou ela a explicar, mas
novamente o burburinho dos esquiadores a impediu de continuar
.Ramón atalhou irritadamente.
— Nós não podemos conversar aqui — disse ele em inglês, quase
gritando, para assim superar as vozes dos outros. – Eu avisarei o
guarda para parar a busca e então desceremos até o hotel. Acho que
você está com fome!
Ela balançou afirmativamente a cabeça e, em menos de vinte
minutos, Sorrel estava sentada, na confortante e alegre sala de café,
explicando a Ramón e às meninas como se perdeu na nevasca,
enquanto um garçom lhe servia o café.
— Quando você percebeu que tinha tomado o caminho errado?
perguntou Ramón.
— Quando vi uma pequena mata e uma luz. A neve estava caindo
pesada mente e fiquei contente em achar abrigo — continuou Sorrel,
preferindo omitir a queda e abatida na cabeça.
— Onde fica a cabana? — perguntou ele suspeitosamente.
— Ao sul daqui, a mais ou menos uns dez quilômetros.
— Já sei — disse Gabriela excitada, tentando ajudar. – É aquela
em que passamos a noite uma vez, com... ai! Laura, por que você
está me cutucando por baixo da mesa?
— Tinha mais alguém lá com você? — perguntou Ramón.
— Sim. Um homem. Ele também se abrigava da tempestade de
neve. Não havia mais nenhuma alternativa a não ser ficar lá. Nunca
poderia achar o caminho de volta para o hotel, no meio de toda
aquela neve. Espero que você compreenda — disse ela
desesperadamente, sentindo-se perdida ao perceber os olhos de
Ramón se apertarem com suspeita novamente.
— Era aquele homem que estava com você quando eu a vi? —
perguntou Gabriela com voz esganiçada.
— Sim. Ele veio comigo para me mostrar o caminho do hotel.
— Onde está ele agora? Por que não ficou com você até
chegarmos? — perguntou Ramón.
— Eu... eu não sei. Ele partiu, quando Gabriela me chamou. —
Sorrel olhou ao redor da saleta, esperando ver o rosto com a cicatriz
entre as pessoas sentadas às mesas ao lado. Só então percebeu que
Laura e Gabriela estavam discutindo baixinho furiosamente.
— Será que vocês sempre têm que discutir? — disse Ramón.
— Gabriela está dizendo que sabe quem é o homem que estava
com Sorrel — respondeu Laura. — Eu acho impossível. Ele estava
com os óculos protetores.
— Foi a sua roupa que eu reconheci — disse Gabriela
violentamente.
— Quem você acha que pode ser? — perguntou Ramón.
— Juan Renalda — replicou Gabriela, olhando desafiadoramente
para sua irmã, que agora se mostrava muito infeliz.
— Renalda? — exclamou Ramón. — El torero?
— Sí — concordou Gabriela.
— Acho que você está errada, Gabriela — disse Sorrel
delicadamente. — Ele me disse se chamar Domingo.
— Era El Valiente, o Bravo, tenho certeza que era ele! — insistiu
Gabriela.
— E como é que você conhece tão bem esse El Valiente e o
reconhece a distância?
— perguntou Ramón asperamente.
— Pelo que eu saiba, você nunca foi assistir a uma tourada, a
menos que tenha ido sem meu consentimento. Você foi? Alguma de
vocês me desobedeceu?
As duas se olharam nervosamente, ambas parecendo culpadas.
— Sí, nós fomos a uma, há uns dois anos atrás, durante o festival
em Copaya — relutou Laura.
— Sua mãe estava com vocês?
— Sí, señor — disse Laura assustada.
— E você conheceu Renalda lá?
— Sí.
— Então deve ter sido a noite anterior ao dia em que ele foi
atingido pelo touro — disse Ramón pensativo. E imediatamente seus
olhos se voltaram para Laura. — Quem convidou vocês e sua mãe
para irem à tourada?
— Tia Isabella. Ela é cunhada de Diego Cortez, aquele que
promove as corridas para os festivais.
— E foi um show — disse Gabriela repentinamente, incapaz de se
controlar por muito tempo.
— Quando a tourada terminou, El Valiente veio em nossa direção, e
fez sua saudação, voltado para o nosso camarote, onde estávamos
junto ao señor Cortez. Logo em seguida fomos apresentadas a ele.
— E ele estava usando o traje de esqui, por acaso? — inquiriu
Ramón.
— Não, lógico que não — respondeu nervosamente Gabriela à
pergunta jocosa feita por seu pai. — Ele estava com o traje de
matador. O colete era riquíssimo, todo bordado com lantejoulas
vermelhas e pretas. Estava muito bonito. Eu ainda o acho bonito,
pena que ele tenha aquela cicatriz no lado direito do rosto, bem no
lugar em que levou a chifrada.
Sorrel quase se engasgou com a comida e Ramón outra vez a
olhou suspeitosamente.
— Mas o que eu ainda não entendi é que o fato de você ter visto
Renalda tourear na arena com a muleta não explica como você sabe
que tipo de roupa de esqui ele usa — disse Ramón visivelmente
nervoso, olhando novamente para Gabriela.
— Eu sei, porque nós o vimos bem de perto esta manhã, aqui na
sala de café. Não é verdade, Laura? Nós freqüentemente o víamos
quando costumávamos vir com mamãe e tivemos até que nos abrigar
de uma nevasca no mesmo refúgio em que Sorrel ficou ontem, junto
com ele e outras pessoas.
— Então a única coisa que falta ser esclarecida é perguntar a
Sorrel se o homem com o qual ela passou a noite na cabana tinha
uma cicatriz do lado direito do rosto — disse Ramón.
Seus olhos brilhavam com raiva, enquanto fitava Sorrel.
— Ele tinha a tal cicatriz, Sorrel? — perguntou Gabriela, sem saber
o problema que estava causando. — Daqui até aqui? — disse ela,
desenhando com os dedos na sua face direita uma cicatriz que ia da
parte inferior da orelha até o canto da boca.
— Ele não é alto, com cabelos pretos, e os olhos não são cinza-
claros? Ele não sorria assim? — perguntou Gabriela, tentando imitar o
vasto sorriso de Domingo. — Eu sei também que ele usava uma
jaqueta preta impermeável, com tiras brancas nas mangas.
Sorrel somente concordava o tempo todo, balançando a cabeça.
Gabriela batia palmas numa atitude vitoriosa. — Eu estava certa! Viu?
— Eu estava certa!
— Então por que ele teria dito a Sorrel que se chamava Domingo?
— perguntou Laura preocupada.
— Esta é uma boa pergunta. Por que señorita Preston? — insistiu
Ramón.
Sua voz fria e cortante e a repentina formalidade alarmaram
Sorrel. Parecia que ele a havia visto cometer um pecado, voltando-se
contra ela.
— Não sei por quê. Suponho que não quisesse que eu descobrisse
sua verdadeira identidade — replicou.
Puxando a cadeira para trás, Ramón levantou-se, olhando-a
furiosamente .
— Você acha que um toureiro seria tão modesto, tão sem vaidade?
Por Dios, eu não engulo essa, e pelo pouco que sei sobre Renalda, é
um dos toureiros mais vaidosos da região. Não é de admirar que para
suas fãs, ele seja como uma cria da casa, um herói folclórico, nascido
aqui na Colômbia e não importado da Espanha ou do México. Como a
maioria de seus colegas de profissão, é um convencido até não poder
mais. — Seu olhar a fulminava. — Deve haver algum outro motivo
por você chamá-lo Domingo, e eu vou descobrir — disse Ramón.
Rapidamente virou-se para as meninas e lhes disse: — Vão e peguem
seus equipamentos. Vamos para Medellín imediatamente.
— Mas ainda não é meio-dia e o tempo está perfeito para agente
esquiar — disse Laura, ousando contradizer o pai.
— Eu não quero ir embora ainda — disse Gabriela com os olhos
lacrimosos.
— Señor Angel, eu não tinha a menor idéia... — começou Sorrel.
— Fiquem quietas todas vocês! — disse ele, levantando-se. —
Vocês farão o que mandei, e não voltarão mais aqui, nenhuma de
vocês. Não posso me dar ao luxo de deixar minhas filhas se
envolverem com esse tipo de gente. Agora vão e peguem suas
coisas.
Voltaram pela mesma estrada tortuosa, passando pelas encostas
repletas de pinheiros, pela imensa floresta com árvores de todos os
tamanhos até chegarem ao vale, onde o sol da tarde fazia os pés de
café cintilarem.
Comparando com a ida para a estação de esqui, a volta foi
aborrecida. Laura e Gabriela, num silêncio mortal, não abriram a boca
durante todo o caminho. Ramón parecia alheio a tudo, tentando
esconder seu descontentamento em relação às filhas e a Sorrel,
prestando atenção na estrada. Dirigia rápido, fazendo curvas
fechadas, cantando os pneus, ultrapassando tudo o que estivesse à
sua frente.
Chegaram a uma cidadezinha, onde não se viam montanhas. O
cenário então mudou' para Sorrel, que se entreteve observando as
ruas estreitas e as casas amontoadas umas nas outras, construídas à
beira de um abismo. Duas torres de uma igrejinha de barro
avançavam contra o céu azul e a praça em frente à igreja parecia
viva e colorida no momento em que as portas do templo se abriram e
os fiéis saíram, depois de assistir à missa dominical. Finalmente
ultrapassaram a aldeia e as negras silhuetas voltaram afazer parte do
cenário novamente.
"Um toureiro." Ela deveria ter adivinhado pela gingada dele ou
mesmo pelo modo com que ele a olhava, assim como ele espreitaria
o touro, aguardando seus movimentos na arena. Deveria ter
adivinhado pela cicatriz no rosto! E agora que sabia quem ele era, era
mais fácil imaginá-Io com o chapéu preto de dois bicos usado pelos
toureiros, com o culote justo, meias rosa e sapatos pretos,
provocando o touro com os movimentos do pano vermelho. Ela
estremeceu. Nunca assistira a uma tourada e nem havia sentido o
desejo de ver um homem ferindo mortalmente um touro. Sorrel
sempre considerara o sacrifício do touro uma exibição de extrema
crueldade com os animais, sem nunca ter pensado, até aquele
momento, que não o era apenas para o animal mas também para o
homem envolvido em cena tão repugnante.
"Mas por que não me disse seu nome verdadeiro? Por que teria
mentido? E por que Ramón estava tão preocupado com tão breve
relacionamento? Por que Ramón era contra toureiros. e queria
impedir suas filhas de irem a lugares onde pudessem entrar em
contato com esse tipo de gente?"
Medellín é considerada o maior centro industrial da Colômbia, mas
uma coisa era certa, ao invés de mostrar sua prosperidade por meio
de chaminés cuspindo fumaça ou pelos seus prédios manchados pelo
desgaste, fazia-o, singularmente, por suas flores.
Ramón era milionário. Sua casa era grande e luxuosa, localizada
em meio a um gramado verde, e escondida atrás de imponentes
ciprestes e delicadas acácias.
Nem bem Ramón chegou ao portão, viu uma mulher aparecer nos
degraus brancos à entrada da casa.
Era pequena e magra, tinha cabelos pretos e usava um vestido de
jérsei branco e preto.
— Olá, lsabella, que bom ver você! — disse Ramón, abraçando-a
calorosamente no momento em que ela descia os degraus em sua
direção. — Você veio para fazer companhia a Mônica?
— Sí — seus grandes olhos castanhos sorriram para ele, antes de
se voltarem curiosamente para Sorrel, que naquele momento saía do
carro. — Ela me ligou, dizendo que se sentia muito solitária, sem
você e as meninas. E mandou Pedro ir me buscar de carro. Você
voltou muito antes do que prevíamos. Por quê? Aconteceu alguma
coisa?
— Sim, algo aconteceu. Entre, eu lhe contarei tudo. — E,
abraçando-a, entraram na casa.
— Não entendo — explodiu Gabriela, franzindo a testa enquanto
olhava seu pai e Isabel Ia entrarem.
— Por que será que papai ficou tão bravo?
— Por que você falou o que não devia falar, especialmente sobre
Juan Renalda! — disse Laura aborrecida, enquanto ajudava Sorrel a
tirar os esquis do bagageiro do carro. – Será que você não poderia
ter ficado calada pelo menos uma vez na vida?
— O que eu fiz foi reconhecê-lo. O que tem de errado?
— Tudo. Teria sido melhor que isso não tivesse acontecido. Agora
estamos numa grande enrascada. Tia lsabella será repreendida por
nos ter vendido os convites da tourada. Mamãe não vai ter como se
desculpar por nos ter levado ao espetáculo sem o consentimento de
papai. E nós duas nunca mais esquiaremos.
— Mas eu não vejo por que tudo isso. O que há de errado em ir a
uma tourada, ou mesmo o que há de errado em conhecer um
toureiro?
— Segundo papai, tudo está errado — replicou Laura, fazendo um
ar exageradamente paciente, como se já estivesse cansada de ter
que dar tantas explicações à irmã caçula e tão ignorante. — Papai
sempre diz que as touradas são nada mais nada menos do que uma
triste exibição de brutalidade, e que deveriam ser proibidas.
— Não acho nada disso — objetou Gabriela. — Eu as acho
emocionantes, dramáticas e...
— E papai sempre diz — continuou Laura, falando mais alto que
sua irmã — que os toureiros não são homens bons; que são rudes e
imorais e que pessoas de nossa posição social não devem se misturar
com essa gente.
— Ah, que monte de besteira! Acho os toureiros muito corajosos e
os touros também
— afirmou a incontrolável Gabriela. — E acho ainda que Juan Renalda
é o mais corajoso de todos, e eu gosto muito dele, mesmo que ele
não tenha... o que foi mesmo que você disse que os toureiros não
têm ?
— Moral. Por favor, Gabriela, não diga que você não sabe o que
isso significa!
— É lógico que eu sei, e não ligo nem um pouco, se ele não tem
isso aí. Eu vou entrar para contar tudo o que aconteceu à mamãe.
Venha junto comigo, Sorrel, tenho certeza que mamãe vai querer
saber tudo sobre sua aventura.
— Logo que eu trocar a roupa, irei. Tenho que devolver a roupa de
esqui para sua mãe.
Meia hora mais tarde, depois de um banho, com um vestido de
linho verde, golinha canoa, e usando uma echarpe de seda
estampada, Sorrel entrou no ensolarado e vasto aposento, no andar
térreo da casa, que haviam transformado num quarto para a inválida.
Mônica, como sempre, estava sentada na cadeira de rodas, na
qual se locomovia pela casa, e Gabriela, sentada na banqueta aos pés
de sua mãe, conversava.
— Obrigada por ter me emprestado suas roupas de esqui. Parecem
ter sido feitas para mim. Posso guardar em seu armário? —
perguntou Sorrel.
— Sim, por favor — Mônica sorriu suavemente. Ela tinha cabelos
loiros, presos num coque, um rosto redondo, delicadamente moldado,
e grandes olhos azuis. Estivera na Colômbia pela primeira vez quando
tinha dezoito anos, acompanhando seu pai, que viera a serviço,
chefiando uma missão comercial. Foi naquela época que conheceu
Ramón, quando visitava uma exposição têxtil e o mercado de flores
em Medellín. Logo após um curto período de namoro, casaram-se.
Agora, com trinta e quatro anos, ainda possuía alguns traços da
beleza de sua juventude, apesar de haver momentos em que a
tristeza fazia sua boca ficar caída, e a dor provocava uma ruga
profunda no meio da testa bem feita.
— Você gostou de esquiar, Sorrel? As montanhas não são
maravilhosas? — perguntou despreocupadamente, tal como Gabriela.
— Nossa! Como eu adorava esquiar, e como eu gostaria de poder
fazer isso outra vez! — Sua voz estremeceu um pouco e sua boca
crispou-se. Mônica teve que fazer um grande esforço para sorrir
novamente. — Mas, aproxime-se e me conte tudo. Gabriela, vá trocar
essa roupa.
A menina deu um salto, abraçou a mãe com muito carinho e saiu
do quarto, deixando a porta entreaberta.
— Gabriela estava me contando que você teve de passar a noite
no refúgio com um homem — disse Mônica inclinando-se levemente,
os olhos azuis brilhando de curiosidade. — Ela estava acabando de
me dizer quem era o homem, quando você entrou. É verdade? Era
Juan Renalda?
— Pode ter sido, creio eu. Mas ele não disse quem era.
Mônica recostou-se, os olhos ainda brilhando, e moveu a cabeça
como se houvesse compreendido por que o homem não quis revelar
sua identidade.
— Como ele era? — perguntou.
Sorrel
descreveu-o
rapidamente.
Mônica
ouviu
atenta
e
novamente moveu a cabeça.
— Era Juan mesmo — disse ela quase sem fôlego. — Você
conversou com ele alguma coisa sobre você ou sobre nós?
— Sim, eu conversei.
— E o que ele disse? Ele fez algum comentário? — perguntou
Mônica, inclinando-se, curiosa. — Diga-me Sorrel, ele me mandou
algum recado?
Sorrel ficou paralisada por alguns segundos, surpreendida pela
pergunta.
E estava quase dizendo que Juan não mostrou interesse algum
quando ela mencionara Mônica, quando teve a estranha sensação de
que estava sendo observada por alguém. Voltou-se para a porta e
teve certeza de que alguém estivera do outro lado, ouvindo-a.
— Sorrel, ele disse alguma coisa? — insistiu Mônica. – O que há?
Por que você não me conta?
— Tem alguém atrás da porta nos escutando – replicou Sorrel.
— Gabriela? É você que está aí? — perguntou Mônica.
— Não, sou eu. — A porta abriu-se por completo e Isabella Cortez
entrou. — Vocês se importam que eu entre? Ou estão novamente
contando segredos.
— Não, de maneira nenhuma. — O sorriso de Mônica era
visivelmente falso. — Nós conversamos muito, temos muitos
assuntos, afinal nascemos no mesmo país, falamos a mesma língua.
Sorrel estava apenas me dizendo como ela foi surpreendida pela
nevasca lá nas montanhas ontem, como se perdeu e não achou o
caminho de volta para o hotel.
— Deve ter sido uma horrível aventura para você – disse Isabella,
mostrando-se realmente chateada com tudo o que acontecera a
Sorrel.
— Você devia estar se sentindo perdida para o resto da vida!
Desculpe interrompê-las, mas tenho que lhe dizer, Mônica, algo muito
importante antes de eu ir embora. É sobre o que aconteceu ontem
nas montanhas.
IsabelIa dava um tom confidencial à sua maneira de falar, que
fazia as pessoas pensarem que estava intensamente preocupada com
elas, e tudo faria para ajudá-las, pensou Sorrel enquanto se
levantava.
— Por favor, me dêem licença. Sei que preferem ficar sozinhas, já
vou indo — disse educadamente.
— Volte mais tarde, Sorrel — insistiu Mônica. – Gostaria que você
me fizesse um pouco de massagem antes de dormir . Senti muita
falta de suas atenções especiais nestes dois dias. Vê se não vai
esquecer, está bem?
— Não, não me esquecerei.
— Sorrel, você é tão compreensiva — murmurou lsabella, com o
seu sorriso mais bondoso possível, enquanto segurava a porta para
Sorrel passar e para ter certeza de que a porta ficaria fechada, antes
que ela começasse a conversar com Mônica.
Andando vagarosamente pelo corredor, Sorrel estava pensativa
até chegar à janela do pátio que havia sido aberta para ventilar o
ambiente. Abrindo a porta de tela para evitar insetos, avançou em
direção ao jardim. Andando pelas vastas trilhas cheias de arbustos,
Sorrel passeava, pensando em lsabella. O que sabia sobre Isabel Ia é
que era viúva de Aurélio Cortez, que se interessava demais por
esportes e que morrera havia três anos em acidente de avião nos
Andes. Desde então, Sorrel sabia que Isabel Ia começara a
freqüentar mais assiduamente o lar dos Angel, tornando-se amiga
íntima de Mônica. Mas todo o tempo que ela ficava na casa dos
Angel, Sorrel percebeu que conversava com Ramón no estúdio tanto
quanto ficava com Mônica.
Será que essa mulher era a causadora dos problemas conjugais de
ambos?, pensou Sorrel, aborrecida com a direção que seus
pensamentos estavam tomando. Não era de sua conta e ela jamais
deveria se deixar envolver com os problemas que sua paciente
pudesse ter. Isto era uma questão de ética profissional. No entanto
havia momentos em que Sorrel sentia pena de Mônica, sentindo até
vontade de ajudá-Ia no que fosse possível. Sorriu pesarosamente,
recordando-se que fora desta maneira que se deixara envolver por
Martin. Ele era um paciente do hospital, em sua cidade natal, onde
Sorrel se aperfeiçoara e trabalhava como fisioterapeuta. Ela o havia
ajudado a aprender a andar do mesmo modo que ajudava Mônica.
Durante esse processo, apaixonou-se por ele ou, pelo menos,
pensava assim.
Ouvia suas desilusões matrimoniais e tinha a esperança de que,
quando ele estivesse pronto para enfrentar o mundo novamente, ele
pedisse o divórcio e se casasse com ela. Até que um dia a esposa de
Martin foi buscá-lo e ele simplesmente a acompanhou. O amor que
Sorrel. sentia transformou-se em revolta.
Exasperada por ter deixado seus pensamentos virem à tona,
Sorrel deu meia volta e partiu em direção à casa. Esquecer Martin foi
o motivo que a levara a aceitar esse emprego, bem longe da
Inglaterra. Estava tendo a chance de recomeçar uma nova vida e não
iria estragar tudo, pensando como os homens eram desonestos e
decepcionantes. Poderia viver muito bem
sem eles.
— Gostaria de falar com você. Por favor venha até o estúdio.
— Sí, señor.
Ela desceu e seguiu-o até o estúdio, onde ele passava a maior
parte do tempo quando estava em casa. Era um local escuro e sério,
muito parecido com Ramón, pensava Sorrel, enquanto o abajur era
aceso, iluminando o rosto fino de seu patrão.
— Sente-se — disse ele, mostrando-lhe uma grande cadeira de
couro. Sorrel sentou-se e esperou, enquanto ele andava de um lado
para o outro. Obviamente estava muito agitado com alguma coisa,
mas finalmente parou em frente a ela e falou em seu inglês perfeito:
— Decidi que é impossível você continuar trabalhando conosco.
Você partirá amanhã cedo.
— Mas por quê? O que fiz de errado? — perguntou Sorrel. — Ah, o
senhor não está satisfeito com os progressos conseguidos por sua
esposa? Mas, entenda, esse tratamento não é rápido, demora um
pouco até que suas pernas se movam outra vez...
— O progresso ou não de minha mulher não tem nada a, ver com
sua demissão. Pagarei sua passagem de volta para a Inglaterra, bem
como seu ordenado até o fim deste mês. Isso é tudo que tenho para
lhe dizer. Pode ir.
— Não, isto não é tudo! — Sorrel estava em pé, seu coração batia
descompassadamente, enquanto a raiva lhe subia à cabeça, diante
daquela atitude ilógica e arrogante de Ramón.
— O senhor poderia me dizer por que eu estou sendo despedida?
Tenho o direito de saber.
— Não lhe devo nenhuma explicação — respondeu Ramón,
contraindo seus lábios à medida que se enraivecia. — Sou o dono
desta casa e a última palavra é sempre a minha. — Ele respirou
profundamente e foi até a janela, abrindo a pesada cortina de
brocado. — Acredite-me, é com muito pesar que estou tomando esta
atitude, pois você nos foi altamente recomendada, não só pelo
hospital, como também pela mãe de Mônica, que, segundo me
disseram, é muito amiga de sua mãe. Você tem feito muito por
Mônica e eu lhe agradeço, mas não posso arriscar que tudo aconteça
outra vez.
— Arriscar o quê? — perguntou Sorrel atônita.
Ele lhe dirigiu um olhar impaciente e recomeçou a andar.
— Então você pretende fingir que não tem nada a ver com o caso?
— disse Ramón, impedindo Sorrel de continuar. — Não estou
surpreso. Até que encaixa com a pretensa ignorância do nome do
homem com quem você passou a noite no refúgio.
— Eu não lhe menti — respondeu irritada. — É por isso que o
senhor está me despedindo? Por que pensa que menti?
— Sí. E também descobri que não posso confiar em você, pois sei
que Mônica e você estão conspirando alguma coisa.
— Uma conspiração? — disse Sorrel, sem acreditar no que ouvia.
— E quem lhe disse tamanha besteira?
Por um instante ele parecia desconcertado pela pergunta, e Sorrel
percebeu que ele não estava acostumado a ter suas ordens
contestadas, muito menos por uma mulher. Mas Ramón voltou
rapidamente ao normal e tomando sua altiva pose habitual, olhou-a
com ar de superioridade.
— Não preciso que ninguém me diga nada — retorquiu. Estou
ciente de que minha mulher lhe fez confidências. Deveria imaginar
que isso fatalmente aconteceria quando Mônica me pediu uma
fisioterapeuta inglesa — disse ele. Por Dios! — exclamou ele
nervosamente. — Como pode ela me trair todo esse tempo?
— Não tenho a mínima idéia do que o senhor está falando —
respondeu Sorrel calmamente. — Mas não lhe menti sobre o homem
do refúgio. Não sabia quem ele era e ele também não quis me dizer.
Tudo o que me disse é que poderia chamá-lo de Domingo. E, se
Gabriela não o tivesse reconhecido, nenhum de nós estaria nesta
confusão, nem saberíamos quem ele era de verdade.
— E é justamente por isso que eu não posso arriscar que você seja
mandada para encontrá-lo novamente — respondeu Ramón.
— Mas ninguém me mandou encontrá-lo. O encontro foi acidental.
Já lhe disse que me perdi e...
— E ele convenientemente a encontrou. E ele a reconheceu por
algo que você usava, o traje de esqui que Mônica lhe havia
emprestado — murmurou amargamente. Sorrel suspirou ao lembrar-
se de que o homem a tinha confundido com outra mulher. — É, tudo
foi muito bem planejado — continuou Ramón. — Ele viu a todos nós
no barzinho, seguiu-nos até o topo da rampa de esqui e, quando você
caiu, praticamente a arrastou para a cabana. E ninguém sabe induzir
as pessoas melhor que Renalda! É um especialista em touros e em
mulheres! Pergunte a qualquer pessoa que freqüenta as corridas.
— Gostaria de saber o que está acontecendo — reclamou Sorrel.
— Primeiro, sua esposa me pergunta se o homem lhe mandou algum
recado e agora o senhor...
— Ah! — gritou Ramón triunfante. — Então estou certo. Eles a
usaram realmente!
— Quem me usou? — perguntou nervosa.
— Minha esposa e Renalda.
Ela o olhou sombriamente, percebendo que tudo o que dissera
poderia ser verdade. Ela poderia ter sido usada como intermediária
sem saber.
— Mas por quê? Por favor, me diga, por quê? Tenho o direito de
saber.
— Não posso. É uma questão de honra — replicou Ramón. Sorrel
conhecia-o suficientemente bem para saber qual era o código de
honra espanhol e no qual alguns colombianos acreditavam. Ele não
lhe diria nem mais uma palavra. — Aqui está seu cheque. O total
cobrirá não só a passagem de volta, mas o restante do seu salário.
Por favor, aceite-o. Amanhã, Pedro a levará até o aeroporto e você
pegará o primeiro avião de volta para a Inglaterra — disse ele.
Sorrel pegou o cheque. Não adiantava fazer o contrário. Mesmo
que ela não voltasse para a Inglaterra, ainda necessitaria do dinheiro.
— Está certo, vou porque sei que nada mais posso fazer para que
o senhor acredite em mim. Não fiz conspiração alguma com sua
mulher, nem servi de mensageira entre ela e Juan Renalda. E acho o
senhor muito tolo, por acreditar nisso tudo!
Ele virou-se para ela e seus olhos fuzilaram-na.
— Como você ousa me criticar?
— Eu o critico sim. Como pode ver não tenho medo do senhor,
como sua esposa e filhas têm, e ouso chamar-lhe de tolo, porque o
senhor não consegue ver nada adiante do orgulhoso nariz espanhol.
Não percebe que sua esposa o ama e a mais ninguém? Buenas
noches, señor.
CAPÍTULO III
Sorrel jantou, como de costume, com Laura e Gabriela, em uma
pequena sala de jantar perto da cozinha, usada somente pela família.
Manuela, a empregada, serviu-as e quando Sorrel pediu licença para
sair da mesa, dizendo que iria ver a sra. Ángel, ela acabava de
recolher os pratos sujos da mesa e disse rapidamente: — Ela não
estava se sentindo bem e foi se deitar mais cedo. Pediu-me para lhe
avisar que não gostaria de ser perturbada.
Sorrel subiu vagarosamente as escadas em direção a seu quarto,
sentindo que sua única esperança fora destruída. Se não pudesse
contar a Mônica como tinha sido injustamente demitida, a quem ela
poderia contar?
"Se você tiver qualquer problema com o seu patrão, procure-me."
O homem dizia chamar-se Domingo, sabia que ela estaria em
dificuldades se Ramón descobrisse sua real identidade. Será que isso
não indicava que ela havia servido de intermediária mesmo? Por que
será que precisavam de uma intermediária? Prendeu sua respiração,
à medida que respondia sua própria.pergunta. Juan Renalda fora
quem abalara o casamento dos Angel. Ele e Mônica provavelmente
tiveram um caso antes do acidente e agora tentavam revivê-lo. Foi
por isso que Mônica sugerira que Sorrel fosse esquiar naquele fim de
semana, pois sabia que Renalda estaria lá e transmitiria a ela algum
recado. Só havia uma dúvida, Juan Renalda não havia mandado
nenhuma mensagem para Mônica. Nem sequer havia se referido a
ela. Pelo contrário. havia tentado seduzir Sorrel.
Finalmente foi para a cama e passou a noite toda sem conseguir
dormir, pensando na confusão em que tinha se metido. Mas sem a
ajuda de Mônica seria impossível esclarecer o que estava
acontecendo! Finalmente adormeceu. sem chegar a nenhuma
conclusão.
Acordou com um toque de Manuela nos ombros.
— Señorita, señorita, já é tarde e a se nora Angel quer vê-la
imediatamente!
Sorrel sentou-se na beira da cama e perguntou: — O que
aconteceu? Ela está se sentindo mal? Está doente?
— No, no, está cansada apenas. Não dormiu nada esta noite.
— O señor Ángel está em casa?
— No. Foi para o escritório e mandou avisá-la que Pedro a levará
ao aeroporto quando a senhorita quiser. Sinto muito sua partida. pois
a señora Angel melhorou muito desde sua chegada — disse Manuela
docemente.
— Obrigada. Manuela. Ainda não parti — disse Sorrel e saiu do
quarto.
Mônica estava recostada em seu travesseiro de seda, enfeitado de
renda. Beliscava o café da manhã trazido pela empregada. Havia se
maquilado exageradamente para disfarçar seus grandes olhos
vermelhos e a palidez de uma noite mal dormida.
— Graças a Deus você ainda não partiu! Ramón disse que iria
despedi-la. Eu lhe implorei para que não o fizesse, mas ele
simplesmente me ignorou. Não dormi nada esta noite — disse Mônica
sorrindo languidamente. — E uma coisa lhe digo: uma consciência
culpada estraga com a beleza de qualquer um.
— Sua consciência está lhe aborrecendo? — perguntou Sorrel,
sentando-se na beira da cama.
— Sim. Foi minha culpa você ter sido despedida – disse Mônica.
com um sorriso triste.
—
Ramón
pensa
que
lhe
mandei
ir
para
El
Sombrero
deliberadamente, para entrar em contato com Juan.
— E não é verdade?
— Não. Bem, eu tinha esperanças de que Juan estivesse lá e
reconhecesse uma das meninas, mas não foi nada planejado.
— No entanto me perguntou se ele havia mandado algum recado.
— Só porque soube que você tinha falado de mim para ele. E
pensei, boba como sou, que ele ao menos tivesse se preocupado,
perguntando sobre minha saúde — disse Mônica, soluçando
incontrolavelmente. — Mas acho que ele nem liga.
— Não, ele não me perguntou nada. Para falar a verdade, nem
demonstrou que conhecia você.
Mônica encolheu-se, como se a tivessem ferido, e fechou seus
olhos, recostando-se nos travesseiros.
— É, é esse o recado, creio eu — murmurou. — Para ele, tanto faz
que eu esteja morta ou não. Meu Deus, como fui boba! — disse ela,
abrindo seus olhos e fitando Sorrel. — E ainda por cima a envolvi na
confusão. Perdoe-me, Sorrel. Queria poder ajudar-lhe de alguma
maneira.
— Você poderia falar com seu marido, mostrar seu erro e dizer-lhe
que não me mandou encontrar com Juan Renalda.
— Já falei mil vezes, mas ele não acredita em mim. Acha que eu o
traí — disse Mônica, amargurada.
— E você o traiu?
— Somente na imaginação. Nunca em atos, pois não tive chance.
Mas ninguém vai acreditar, sobretudo com a reputação de Juan. E o
pior é que Ramón sabe que eu estive num rancho perto de Ibara para
vê-lo e na volta sofri o acidente. Não sei quem contou a Ramón, pois
só ontem à noite ele mencionou o fato, ao me informar que havia
despedido você, e disse que se eu continuasse tentando ver Juan
entraria com pedido de divórcio.
Sorrel dirigiu-se até a janela, olhando o jardim pensativamente.
Pedro estava cortando a grama, e o cheiro da grama podada
penetrou pelo quarto adentro.
— Por que você foi ver Renalda? O que havia entre vocês dois? —
perguntou Sorrel.
— Meu Deus, como posso explicar? Tudo é tão complicado. Havia
alguma coisa ao mesmo tempo nada — respondeu Mônica em voz
alta.
— Você poderia ao menos me falar sobre os fatos relevantes.
Sei que você o conheceu depois de uma tourada. E foi Isabella
quem os apresentou, não é?
— É isso mesmo. Isabella me apresentou Juan. E foi idéia dela nos
levar para assistir à corrida em Copaya. Mas depois disso nunca mais
o vi, por um período de nove meses, pois foi gravemente ferido numa
outra tourada em Manizales e levou muito tempo até se recuperar.
— E daí, o que aconteceu quando vocês se encontraram?
— Eu me apaixonei por ele, creio eu — disse Mônica aborrecida, e
Sorrel a olhou fixamente. — Sei que na minha idade isso parece
ridículo, mas você nem imagina o quanto eu estava aborrecida
naquela época. Ramón estava sempre ocupado naquela fábrica de
tecidos. As crianças na escola o dia todo e eu não tinha nada para
fazer: ou ficava em casa olhando o teto ou jogava bridge e golfe ou
esquiava. — A voz de Mônica tremeu um pouco. — E desde que
perdemos nosso menino, ainda bebê, Ramón e eu nos afastamos.
— Que bebê é esse?
— Nosso filho. Morreu uns dias após ter nascido. Ramón sempre
quis ter um filho, e isso tem a ver com o machismo dos latino-
americanos. Se não tiverem um filho, não são homens de verdade,
ou qualquer coisa sem sentido como essa. Quando os médicos
disseram que eu não poderia ter mais filhos, ele... — Mônica sacudiu
os ombros e fez uma expressão patética
— perdeu o interesse por mim. Desde então temos vivido na mesma
casa, mas separados. Acho que você pode imaginar qual era meu
estado
de
espírito
quando
conheci
Juan,
necessitando
desesperadamente de amor e companhia. Ele tinha começado a
esquiar para se distrair depois do acidente. Era completamente
diferente de todas as pessoas que eu conhecera, sua personalidade
era agradavelmente rude. Você entende? Disseram-me que um
matador é sempre assim. Eles sempre têm uma aura romântica,
talvez porque estejam freqüentemente próximos da morte!
Mônica sorriu laconicamente.
— Tenho que admitir que me comportei como uma adolescente
apaixonada por um artista de cinema ou por algum cantor de rock.
Eu o seguia. E ia aos lugares onde sabia que ia encontrá-lo.
— Ele sabia de seu sentimento? — perguntou Sorrel.
— Acho que sim. Pelo menos nunca me deu o fora. Costumávamos
esquiar juntos, mas nunca tive a sorte que você teve, nunca o tive só
para mim. Depois deixei de vê-lo por algum tempo e o desejo de
encontrá-lo começou a tomar conta de mim. Sabia onde ele morava,
IsabelIa havia me dito, então peguei o carro e fui.até lá. Olhando
para trás, vejo que deixaria Ramón e as garotas, se Juan me
quisesse.
— O que aconteceu?
— As vezes me arrependo de ter ido — murmurou Mônica, com os
olhos abertos e parados na distância, lembrando obviamente o que
acontecera entre ela e o toureiro. De repente escondeu o rosto com
as mãos e começou a balançar o corpo para a frente e para trás. —
Oh, meu Deus, foi horrível e humilhante, e no entanto acho que
mereci. Não posso lhe dizer o que me aconteceu, mas só sei que me
acordou de uma maneira ou outra, me fez ver o que eu estava
fazendo. Saí correndo daquela casa e entrei no carro. Minha única
esperança era chegar rapidamente aqui, onde estava minha
segurança, minha vida monótona e Ramón. Corria demais, saí da
estrada e avancei contra uma cerca. Quando voltei a mim no hospital,
fingi que não me lembrava de onde vinha, nem onde estivera durante
o dia. Tinha esperança de que Ramón nunca descobrisse. Mas ele
sabia de tudo o tempo todo. Estava certo que eu tinha um caso com
Juan e agora pensou que estávamos tentando revivê-lo. E não
estamos. É verdade! Mas as evidências são todas contra mim, Sorrel,
e não há nenhuma maneira de provar o contrário, de provar que ele
está errado.
— Só existe uma maneira — disse Sorrel pensativamente.
— Qual é? — perguntou Mônica, inclinando-se para melhor prestar
atenção.
— Peça para Juan Renalda vir até aqui e desmentir tudo.
— Mas como? Como posso fazer isso?
— Ora, escreva para ele. Ou talvez você pudesse lhe telefonar.
— Não, eu não poderia. Depois do que aconteceu no rancho, eu
não poderia. Seria por demais humilhante.
— Escute, — falou Sorrel impaciente — se você quer realmente
salvar seu casamento, vale a pena o risco da humilhação. Com a
ajuda de Renalda, você poderá provar a Ramón que está errado, não
só em relação a você, mas também a mim.
— Então você vai fazer isso! Peça para ele vir aqui falar com
Ramón — retorquiu Mônica, mostrando uma animação antes nunca
demonstrada. Vá até o rancho dele e veja qual a recepção que a
aguarda!
Sorrel levantou-se da cama, enfiando as mãos nos bolsos de seu
robe. Desafio era tudo que ela precisava.
— Está bem, irei — replicou calmamente – mas você tem que me
explicar como chegar até lá.
Mônica fitou-a atentamente e então perguntou: — Quer dizer que
você vai?
— Lógico. Afinal fui injustamente despedida do meu emprego e
não posso aceitar este fato calada. Tenho que fazer alguma coisa
para limpar meu nome e ao mesmo tempo ajudá-Ia a salvar seu
casamento, mostrando a Ramón que ele não deve acreditar em tudo
que escuta por aí.
— Mas... eu não tenho muita certeza, Sorrel, se deveria deixá-la
ir.
— Você não tem como me impedir! De qualquer maneira se você
já foi até lá, por que não posso ir?
— Deveria ter pensado melhor antes de ir – murmurou Mônica. —
Não estamos na Inglaterra, você sabe disso. Este país é vasto e
selvagem e seu povo nem sempre se comporta de uma maneira
civilizada. Suponha que algo aconteça a você. O que eu diria a sua
mãe e a seus parentes?
— O que poderia acontecer? — perguntou Sorrel.
— Você poderia ser raptada, roubada e até violentada.
— Aconteceu alguma dessas coisas?
— Não, mas fui em meu próprio carro. Você vai ter que tomar um
avião até Manizales e lá pegar algum transporte local para ir até o
rancho. — Mônica mordeu seu lábio inferior. — Bom, quando você
chegar lá, espero que não se decepcione se Juan não a receber muito
bem. Se isso acontecer, você terá que achar um meio de voltar...
— Faça o favor de parar de se preocupar — protestou Sorrel. —
Nada acontecerá comigo, e agora que já sei por onde começar estou
certa de que me sairei muito bem. Pedirei a Pedro para me levar até
o aeroporto como se fosse embora para a Inglaterra e, em vez disso,
rumarei para Manizales. Descobrirei o caminho até o rancho e
amanhã tentarei estar de volta. Pode ser até que consiga convencer o
señor Renalda a vir até aqui hoje à noite.
Em menos de uma hora, depois de suas malas serem guardadas
no bagageiro do aeroporto, Sorrel partiu para Manizales. Levou uma
pequena sacola com uma muda de roupas, caso tivesse que passar a
noite em Ibara ou Manizales, depois de falar com Juan. Tudo ia correr
bem, pensou Sorrel. Com certeza o toureiro esperava limpar seu
nome daquelas acusações falsas.
Já em Manizales, informou-se como poderia ir para Ibara de
ônibus. Foi-lhe dito que o ônibus saía às duas horas da plaza central
da cidade.
Tomou um táxi e foi até lá. Logo se instalou num ônibus
desbotado e se viu cercada de índias, que voltavam a Ibara, depois
de um cansativo dia de trabalho no mercado local.
Ibara era uma cidade pequena, repleta de casas construídas de
argila, com seus tetos de tijolos já gastos pelo tempo. De um lado da
pequena plaza havia uma igreja com duas torres, toda decorada com
pedras de vários tipos, e do lado oposto estava o hotel, um prédio
baixo e longo, com janelas em forma de arcos. O motorista disse a
Sorrel que ela deveria perguntar na portaria do hotel como chegar
até o rancho de Renalda e, após alguns minutos de hesitação e um
pouco de surpresa com a precariedade da construção, ela dirigiu-se à
recepção do hotel.
— Em que posso ajudá-Ia, señorita? — A pessoa que lhe falou era
uma mulher roliça, com negros cabelos espetados e pele oleosa.
Fumava uma cigarrilha e carregava uma bandeja cheia de pratos.
— Eu estou procurando alguma condução que me leve ao rancho
de Renalda — disse Sorrel, tentando suportar o cheiro desagradável
que impregnava o lugar.
— Pancho, — chamou a mulher e virou a cabeça para alguém que
estava parado atrás de Sorrel — uma passageira para você. — A
mulher olhou Sorrel, através da fumaça de sua cigarrilha e disse: —
Pancho a levará. Você estará segura com ele. Ele trabalha para
Renalda.
Cinco minutos depois, Sorrel já estava abrindo a porta de um
caminhão pesando pelo menos meia tonelada, que logo se pôs a
caminho do rancho.
— Por que a señorita está indo para o rancho? — perguntou.
— Tenho um assunto a tratar com o señor Renalda.
— Ele a está esperando?
— Sim. — Não era exatamente a verdade, mas em todo caso Juan
Renalda dissera-lhe que, se tivesse algum problema com Ramón, o
procurasse.
— A señorita é americana?
— Não, sou inglesa.
— Por Dios! — exclamou Pancho, dando um sorriso amarelo. — É
bem longe daqui! Pensei que fosse amiga da señora. Ela morava nos
Estados Unidos.
Señora? Que señora? Seria a esposa de Renalda? Lógico, por que
não tinha pensado nisso antes? Agora entendia por que Mônica falara
sobre algo que a humilhara em sua ida ao rancho. Ela deve ter se
encontrado com a esposa dele.
Feliz por ter tido essa informação antes de chegar ao rancho,
sentiu um pouco de carinho pelo jovem que guiava o caminhão.
— O que você faz no rancho? — perguntou Sorrel.
— Trabalho com os touros e aprendo com El Valiente como ser um
matador. Por enquanto, sou apenas um picador. Finco as picas no
touro para provocá-lo na primeira parte da lide. A señora entendeu?
— Pobre touro! — exclamou Sorrel, sem se controlar. — Você não
tem medo de se machucar como o señor Renalda?
— Já levei duas chifradas e tenho medo, mas ser toureiro é uma
grande prova de coragem para qualquer homem. Todos dizem que o
señor Renalda perdeu a coragem em sua última tourada, quando foi
quase mortalmente ferido, mas não acredito — disse Pancho baixinho
em tom dramático. — Eu estava lá na luta e o vi sendo carregado;
seu rosto era só sangue e sua roupa ficou totalmente rasgada,
praticamente em tiras.
— Oh, por favor, pare. — O enjôo de Sorrel não era causado
apenas pelo balanço do caminhão. — Acho que qualquer um ficaria
com medo, após levar uma chifrada.
— Menos Juan Renalda, filho de Rodrigo Renalda, e um dos
membros da mais famosa família de toureiros da Espanha. Tenho
muita sorte de aprender com o filho corajoso de um pai também
corajoso. Mas veja, señorita, estamos chegando à sede do rancho.
Não é lindo?
Realmente era. Grande, térrea e cheia de janelinhas decoradas
com grades de ferro.
— Aqui estamos — disse ele com seu olhar alegre. — Eu a deixo
aqui. — Inclinou-se para a frente e abriu a porta para deixá-la sair. —
Vá em direção àquela porta. A empregada avisará o señor Renalda
que a señorita chegou. Adiós!
Vagarosamente se voltou em direção à casa, sentindo o forte sol
atingir em cheio seu pescoço. Depois de atravessar um arco, chegou
à varanda, cujo piso se assemelhava ao de conventos antigos.
A pesada porta de madeira era decorada com enormes dobradiças
de ferro batido. A maçaneta era gigantesca. Sorrel estava fazendo
menção de bater na porta quando esta foi aberta.
— Madre de Dios! — exclamou a jovem que veio abrir a porta.—
Ufa! Que susto você me deu! Quem é você? E o que você quer aqui?
Ela era alta e forte, vestia uma saia pregueada marrom e botas de
cano longo da mesma cor; uma blusa de seda creme e um colete do
mesmo tecido da saia. Seus cabelos, presos num rabo-de-cavalo,
eram castanhos e caíam na testa em forma de franja, cobrindo-lhe
parcialmente os olhos acinzentados. Na mão que segurava a
maçaneta tinha diversos anéis, a maioria de esmeraldas e diamantes.
Cintilavam de tal forma que paralisaram Sorrel, tanto era seu
fascínio. Junto a um dos anéis, Sorrel percebeu uma grossa aliança
de ouro.
— Está bem, — disse a jovem com um forte sotaque norte-
americano — se você não entendeu, vou tentar novamente. Quem é
você? O que deseja?
— Sou Sorrel Preston — respondeu. — Vim ver o señor Juan
Renalda. Ele está?
Ela arregalou os olhos e mediu Sorrel de alto a baixo.
— Mãe de Deus! — disse a jovem. — O que foi que ele aprontou
com você agora? — Então, endireitando-se, olhou Sorrel diretamente
nos olhos, e acrescentou: — Não, não está. Deve estar perseguindo
touros pelo rancho. Os touros têm que ser levados para a corrida
amanhã. Posso mandar chamá-lo ou, se você quiser, pode entrar e
esperá-lo.
— Obrigada — disse Sorrel.
— Como você adivinhou que falo inglês?
— Pelas suas roupas — disse ela suavemente. — Siga-me por
favor.
— Como você chegou até aqui? — perguntou a Sorrel, enquanto
mostrava o caminho até uma sala longa e larga.
Após a explicação de Sorrel, ela balançou a cabeça.
— Ouvi o barulho do caminhão — disse, encostando-se na ponta
de uma linda escrivaninha.
— Por isso é que fui atender a porta. Eu estou aguardando um carro
que vem de Copaya para me apanhar. Já me enchi deste lugar —
disse ela, gesticulando violentamente. Estou de partida. Já estava
pensando em ir embora há muito tempo, mas só falei para Juan
ontem à noite. Há quanto tempo você o conhece?
— Bem... nós nos conhecemos no sábado!
A jovem arregalou novamente seus olhos castanho-acinzentados e
soltou uma gargalhada.
— Puxa, Juan é rápido mesmo — disse ela, dando um olhar um
tanto significativo. — Seu gênio acompanha a tonalidade do seu
glorioso cabelo? Se a resposta for afirmativa, Juan está perdido. E
bem feito! Já está na hora de ele ser domesticado. Bem. com licença,
preciso acabar de fazer minhas malas — disse ela. Direi a um dos
rapazes que avise Juan. Adios, señorita, e boa sorte! Já estou aqui
pelo menos há uns seis meses e tenho certeza de que você ficará por
muito mais tempo!
E saiu da sala deixando Sorrel completamente pasma. Será que
ela havia chegado no momento em que um casamento se havia
desfeito? Apesar de a jovem não ter se apresentado, Sorrel tinha
certeza de que ela era a esposa de Juan, a tal señora a que Pancho
se referira e que viera dos Estados Unidos.
Pelo menos a jovem tinha sotaque americano, usava uma aliança
e dissera que já estava cheia de viver no rancho. Seis meses! Há seis
meses Mônica Angel tinha vindo até esta casa maravilhosa e sido
terrivelmente humilhada. Teria sido pela mesma mulher que acabara
de deixar aquela sala? Provavelmente sim. Será que tudo se passara
nesta mesma sala decorada em couro e veludo vermelhos, madeiras
escuras, ornamentos de prata e ouro, plantas bem tratadas e muitas
fotografias?
A porta se abriu e Sorrel ficou tensa ao pensar que pudesse ser
Juan, mas era apenas uma pequena mestiça carregando uma bandeja
com café.
— A señora Inês pediu que eu lhe servisse o café – disse ela, e
colocou a bandeja numa mesinha perto de onde Sorrel estava. — Ela
já mandou chamar o señor Juan.
— Muchas gracias.
— De nada! — A mestiça virou-se em direção à porta.
— Espere, por favor. Espere um momento — disse Sorrel
rapidamente e a moça a olhou. — Eu gostaria de falar com a señora
outra vez.
— Agora é tarde. Ela já foi embora. — E, dizendo isso, saiu tão
rapidamente como entrou. Sorrel, sentindo necessidade de
espairecer, serviu-se de café e beliscou uma das tortas de coco,
enquanto esperava por Juan Renalda.
Logo depois servia-se de mais uma xícara de café, e um pedaço da
torta. Para passar o tempo começou a passear pela sala, admirando
os maravilhosos trabalhos indígenas feitos em metal, expostos em
uma estante rosada, com pequenas portas de vidro transparente.
Muitas das cópias feitas em cobre e bronze eram perfeitas réplicas de
sólidos objetos de ouro puro que Sorrel admirara em uma visita feita
ao Museu do Banco de Ia República, em Bogotá. Em outro
compartimento da estante havia uma coleção de prata antiga que
deveria valer milhões.
Passou, então, a observar as fotografias que cobriam todo o
espaço vazio das paredes. Cada uma delas mostrava uma cena
diferente de tourada, além de uma ou duas outras onde se via um
homem que Sorrel concluiu fosse Rodrigo Renalda. Ele tinha olhos
duramente expressivos e uma boca meio caída, mas muito sensual.
Seu rosto era frio e severo. Ao lado dessa fotografia havia uma outra
de uma mulher loira, olhos alegres e esverdeados. Seria sua mulher?
Ao olhar para outra foto, Sorrel percebeu que estava escurecendo e
imediatamente olhou para seu relógio. Já eram seis horas. O sol já se
punha e pela janela ela pôde ver o campo, cintilando como ouro sob a
luz dos raios que cortavam o céu em meio a nuvens cada vez mais
densas. A chuva não demoraria a cair. Além do mais já era hora de
voltar para Ibara e até agora Juan Renalda não havia aparecido. Foi
tomada de desânimo. Será que Gabriela não se enganara? Será que o
homem do refúgio não era o notório toureiro? Ela faria simplesmente
o papel de boba, tendo que explicar a um estranho por que estava ali
a sua procura.
Começou então a procurar por entre as fotografias algumas que
pudessem assegurar-Ihe estar na casa certa. Uma foto de Juan...
Incapaz de enxergar direito, pois a sala estava em penumbra, ligou
um abajur e olhou para outra parede, onde as fotografias pareciam
mais recentes. Não havia mais fotografias de pessoas, apenas cenas
de touradas. Numa delas via-se um touro, com a cabeça baixa,
preparando-se para atacar o matador, vestido com todos os aparatos
necessários e segurando a capa, colada a seu corpo. Era impossível
ver o rosto do matador, mas o jeito dele lhe parecia familiar. Todas
as outras fotos eram semelhantes, até que chegou na última e
estremeceu, pois o touro estava levantando o homem para o ar. Será
que era essa a fotografia de Renalda em sua última luta? Sorrel
continuou a olhar para mais algumas fotografias, quando percebeu
que a casa estava mergulhada no mais profundo silêncio. Juan não
viera, pois talvez não tivesse se lembrado de seu nome ou porque
não era o mesmo homem com quem passara aquela noite na cabana.
Ela agora só queria ir embora dali, antes que o homem chegasse.
Virou-se então, pegou sua maleta e, quando caminhava em
direção à porta em forma de arco que a levaria ao vestíbulo, deu um
salto de surpresa e tapou sua boca para abafar um grito. Alguém
estava parado na penumbra, quieto, observando-a sem se mover.
Enquanto ela olhava, a figura vagarosamente se materializou, graças
à luz do abajur, transformando-se num homem bem feito, vestindo
uma calça escura e brilhante e um colete de couro, em cima da pele.
Seus olhos eram cinzentos e sua face direita marcada por uma
grande cicatriz.
— Buenas noches, Sorrel — disse ele. — Desculpe-me por lhe
fazer esperar, mas pensei que Inês estivesse aprontando mais uma
de suas brincadeiras, quando me deram o recado de que havia uma
mulher inglesa de cabelos vermelhos querendo falar comigo. Por isso
não vim imediatamente. – Juan deu um largo sorriso e acrescentou:
— Ela tem um estranho senso de humor.
— Eu estava justamente pensando em ir embora – disse ela com
uma tranqüilidade forçada, tentando revidar o olhar que ele lhe
dirigia. Mas não conseguia tirar os olhos de sua pele lustrosa,
iluminada pela luz, e de seu peito coberto de negros pêlos! Era
estranho que um colete acentuasse tanto seu corpo, fazendo Sorrel
ficar ainda mais consciente da poderosa masculinidade de Juan, como
se ele estivesse completamente nu.
— Eu vi você olhando as fotografias de corrida — disse ele
enquanto passava por ela, indo sentar-se no canto da escrivaninha.
— Eu?... Nunca vi uma — admitiu com honestidade.
— Você gosta de touradas? — Essas fotografias na parede são
todas suas?
— Si, quase todas tiradas na minha última tourada profissional.
— Acho que nunca pensei que uma tourada fosse tão ruim para o
homem como para o touro. É cruel e degradante!
— Você acha? Acho menos degradante para o homem do que uma
luta de boxe, ou uma luta livre, e menos cruel para os touros do que
as corridas de obstáculos são para os cavalos!
— Ele sorriu. — Mas sei que você não veio aqui para discutir sobre
corridas. Sente-se, por favor, fique à vontade e permita-me oferecer-
lhe um drinque.
Ele levantou-se e foi até o barzinho, abrindo-o. — Você gosta de
guarupo? É suave, agradável e de baixo teor alcoólico. — Abriu a
garrafa e serviu um pouco do pálido licor em dois copos.
— Por favor, não se preocupe — disse rapidamente Sorrel. — Eu
tenho que ir embora.
— Mas não antes de me dizer por que veio até aqui — disse ele, ao
mesmo tempo que lhe oferecia um dos copos. — A muchacha
Gabriela me reconheceu ontem de manhã, não é?
— Sim. As mãos de Sorrel apertavam o copo. Esperava que ele
não chegasse mais perto dela, pois alguma coisa nele estava
devastando seus sentidos.
— Que pena! Então deu confusão, não é?
Ela concordou com a cabeça e tomou um gole do drinque,
esperando que não a embriagasse, pois não tinha comido nada desde
a hora do café.
— Então ponha sua maleta no chão, sente-se perto de mim e me
conte tudo — sugeriu ele delicadamente. Juan pegou a maleta das
mãos dela, colocou-a no chão e levou Sorrel até uma confortável
poltrona.
— Agora me diga, o que aconteceu?
— Fui despedida de meu emprego — disse ela, aborrecida e
tentando permanecer neutra ao vibrante calor que vinha do corpo
dele.
Ele xingou em espanhol e Sorrel lançou-lhe um olhar,
impetuosamente. — É linguagem de toureiro — disse Renalda
franzindo as sobrancelhas — Qual motivo Ramón lhe deu para
despedi-la?
— O señor Ángel disse que menti para ele deliberadamente, que
sabia a sua verdadeira identidade, que fingia ao dizer que seu nome
era Domingo. Disse ainda que não confiava em mim e que eu estava
envolvida numa conspiração junto com sua mulher. Assim sendo, não
poderia mais viver naquela casa. Por que não me disse seu nome
verdadeiro? Por que você mentiu para mim?.
— Não é fácil explicar. Logo que descobri que você trabalhava para
Ramón Ángel, sabia que você se veria em encrenca se descobrissem
que você tinha passado a noite comigo. — Ele parou, tomou um gole
de seu drinque e continuou com uma voz cheia de amargura: — Meu
sucesso como matador significa que a maioria de minhas atitudes
tem sido motivo de publicidade. Basta eu olhar para uma mulher e já
a apontam como minha amante — disse Juan, olhando-a por sobre os
ombros. — Você me entende?
— Eu... acho que sim.
— Bem, talvez agora você entenda por que achei melhor você não
saber meu nome verdadeiro, pois, não sabendo, você não o
mencionaria a seu patrão. — Ele tomou o resto de sua bebida e olhou
para o copo vazio. — Meu plano falhou... Sinto muito que você tenha
perdido seu emprego por ter passado aquela noite comigo. — Virou-
se então em direção a Sorrel e pôs seu braço no encosto da poltrona.
Seus olhos brilhavam entre os densos cílios e seus lábios sorriam
como se estivessem fazendo troça. — Quando nos separamos ontem,
não sabia que iria vê-Ia novamente tão depressa.
Ela sentiu um visível sinal de perigo. Ele estava próximo, próximo
demais, tão perto que ela podia sentir o calor que emanava de sua
pele queimada do sol. Ela estava dividida entre dois desejos; um era
o de tocá-lo para sentir a firmeza de seus músculos nas pontas dos
dedos, inclinar-se e tocar seus lábios nos dele e entregar-se ao
convite feito pelo brilho de seus olhos. O outro era levantar-se e sair
correndo da sala, fugindo daquela casa, voltar para Medellín o mais
rápido possível e conseqüentemente para... O que Mônica havia dito?
Voltando para a segurança e a monotonia.
Mas ela não fez nada do que pensou. Evitando o olhar de Juan,
fitou o copo que segurava e disse:
— Eu não teria vindo se Mônica não tivesse insistido tanto. Ela
concordou que era injusto eu ter sido despedida por algo que não
tinha culpa. — O que Sorrel dizia não era totalmente verdade, mas
pelo menos o colocaria em seu devido lugar, deixando-lhe claro que
não fora ao rancho apenas para vê-lo.
— Concordo também — disse ele. afastando-se dela. – E eu
gostaria de ajudá-la.
— E você pode — respondeu Sorrel ansiosamente, interrompendo-
o. — Você pode ajudar indo comigo até Medellín e dizendo
diretamente a Ramón Ángel que não havia acordo nenhum entre você
e Mônica e que vocês não me usaram como intermediária.
— Perdón? Desculpe-me, mas não estou entendendo o que você
está falando. — Ele afastou-se ainda mais e o pulso de Sorrel voltou
ao normal.
— Foi idéia de Mônica que eu fosse esquiar com as meninas —
explicou — e agora o señor Ramón acha que o meu encontro com
você foi deliberada mente planejado. Pensa que sua esposa me
mandou a seu encontro para receber uma mensagem sua para ela e
transmitir alguma coisa dita por ela para você.
— Mensagem? Que espécie de mensagem? – perguntou Renalda.
Seus olhos haviam perdido aquele brilho característico, tomando-se
duros e frios como granito.
— Nunca estive envolvida em nada parecido em toda minha vida e
acho que não posso saber do que se trata — respondeu Sorrel
prontamente. Agora se sentia segura, pois ele tinha ido até o bar
para se servir de outra dose. — Tudo o que sei é que o señor Ramón
acredita que você e a esposa dele tiveram um caso e agora tentam
reviver o romance que aconteceu antes do acidente.
— Ela é aleijada? — perguntou Juan. com uma cruel expressão em
sua face, saindo do barzinho com o copo na mão.
— Ela logo voltará a andar — disse Sorrel. — estou
supervisionando seus exercícios e fazendo-lhe massagens regulares,
senti que fez muitos progressos.
— Sei. — Ele a olhou indiferente, levantou seu copo e sorveu todo
o licor que havia dentro. Colocou o copo na mesa e, cruzando os
braços, atravessou a sala indo para perto dela, a largas passadas. —
E você realmente acreditou que, se eu for ver Ramón Ángel e dizer a
ele que não pretendo reviver caso nenhum que eu possa ter tido com
Mônica, você terá seu emprego de volta e ele confiará na esposa
outra vez?
Estremecendo levemente pela descrença de Renalda, Sorrel se
endireitou na cadeira e devolveu o olhar irônico dado minutos antes
por ele.
— Eu não teria vindo, se não acreditasse. Por favor, você volta
comigo? Vamos a Medellín juntos e diga a Ramón Ángel que ele está
equivocado.
— Não! — O som surdo da negativa soou definitivo. — Não posso.
— Mas você disse que queria me ajudar.
— Sim, ajudar você a não perder o emprego e não aquela
vagabunda, que se meteu na confusão sozinha, agindo de uma
maneira tola. Para onde você vai agora?
Enfurecida com a atitude dele, Sorrel levantara-se, apanhando sua
maleta e dirigindo-se à porta de saída. Estava quase saindo quando
sentiu que ele foi mais rápido do que ela, postando-se à sua frente,
bloqueando a passagem.
— Vou voltar a Ibara — disse ela fitando Juan.
— Você está brava comigo? — perguntou suavemente.
— Sim, pela atitude que você teve em relação a Mônica. Creio que
toda culpa no caso é dela. Você não tem nada com isso, certo?
— É verdade. Nunca corri atrás de nenhuma mulher em toda
minha vida.
— Você está querendo dizer que as mulheres é que sempre correm
atrás de você? Meu Deus, como pode ser tão convencido!
— Falar a verdade é ser convencido? Eu não pedi a Mônica Ángel
para ir esquiar em El Sombrero todas as vezes que eu estava lá. E
também nunca lhe pedi que viesse aqui, invadir minha vida privada.
— Mas você deve ter feito alguma coisa. A culpa não pode ser só
dela.
— Mas foi. Ela não é o tipo de mulher que me atrai, e se Ramón
estivesse desempenhando, de verdade seu papel de marido, sua
esposa não estaria por ai andando atrás de um amante.
— Ele moveu os lábios num leve sorriso e seus olhos suavizaram-se.
— Existem vários modos de satisfazer uma mulher, tomando-a feliz,
e dentro de casa todos eles são agradáveis.
— Então por que você não os aplica com sua própria esposa? —
disse Sorrel, fulminando-o com um olhar.
Juan descruzou os braços e a olhou surpreso.
— Que esposa? Eu não tenho esposa nenhuma!
— Realmente você é demais! Está certo, então você não tem mais
uma esposa, ela acabou de deixá-lo...
— Em nome de Deus, sobre o que você está falando agora? —
perguntou Renalda.
— Sua esposa estava aqui hoje à tarde. Foi ela quem me recebeu
quando cheguei e foi ela também quem lhe mandou chamar,
avisando-o de que eu estava aqui. O nome dela é Inês.
De braços cruzados, balançava seu corpo para frente e para trás,
firmando-o em seus pés, e a olhava com uma divertida expressão no
olhar .
— Ah, sim, Inês, ela é bonita, não acha? Mas não é minha esposa.
Sorrel sentiu-se como uma idiota. Então quando imaginou o que
Inês era de Renalda, sentiu um rubor tomar conta de seu rosto e
tentou sair daquela casa o mais rápido possível.
— Eu deveria estar mais bem informada, antes de ter vindo aqui
— murmurou, lembrando-se de que Mônica a havia avisado do
perigo. Juan continuava lá, bloqueando a passagem.
— Em todo caso, estou feliz por você ter vindo — disse Juan
carinhosamente. — E agora, já que você está aqui, espero que fique.
— Ficar? — Ela estava tão furiosa que sentiu a voz entrecortada
pela falta de ar. O que esse homem pensa que é? Como ousou pedir-
lhe para ficar ali! — Você só pode estar brincando!
— Vou voltar imediatamente a Ibara e pernoitar no hotel da cidade.
— E como você acha que chegará lá? — perguntou
provocativamente.
— Vou andando. Agora, se você me dá licença.
Ela tentou escapar por trás dele, mas todas as vezes ele a
bloqueava. Era um jogo que ela não poderia ganhar, pois ele era
rápido demais. Completamente frustrada, perdeu todo seu controle e
gritou. — Oh, será que você poderia parar de me tratar como se eu
fosse um de seus touros e me deixar passar?!
— A comparação é boa — disse ele, rindo. — Você se parece
realmente com um tourinho, vermelho e genioso, e sei bem que
gostaria de me chifrar. Você sabia que nós temos uma dança aqui na
Colômbia que se chama chichimaya? Nela, a mulher é um touro,
tentando chifrar seu acompanhante. Então, tente outra vez, tourinho
vermelho, e verá o que lhe acontece!
Pegando-o de surpresa enquanto fazia troça dela, Sorrel lançou-se
em direção a ele pois seu caminho estava completamente livre. Mas
não foi muito longe. Foi puxada contra aquele corpo rijo e bem feito e
retida firmemente. Os braços enlaçavam seu corpo, fazendo-a sentir
a aspereza dos pêlos de seu peito em seu rosto.
— Deixe-me ir, deixe-me ir. — gritou Sorrel, ao mesmo tempo que
batia com sua maleta nas pernas dele, tentando machucá-lo para que
pudesse soltá-la.
— Não — respondeu. — Agora que você está aqui, vou mantê-la
junto de mim, você vai viver aqui.
— Viver com você? Você esta completamente louco! — Levantando
a cabeça para poder vê-lo melhor, continuou: — Agora posso
perceber por que Ramón Ángel não quer que suas filhas se
relacionem com toureiros. Vocês, além de imorais, são loucos
também. Não quero viver com você.
— Você vai mudar de idéia, depois de ficar aqui uns tempos. Agora
você está tão furiosa que não sabe o que quer.
— Não vou ficar. E você não pode me forçar — afirmou ela,
reagindo violentamente à idéia de ser mantida presa.
— Posso. Posso levá-la até um quarto, trancá-la a chaves e deixá-
la passar fome até que você se renda! — Por um momento, o sangue
espanhol revelou-se na finura de seus lábios e no estranho brilho de
seus olhos, prevenindo-a para ser mais cuidadosa.
— Quem você pensa que é? O Barba Azul? — retorquiu Sorrel,
sentindo suas pernas tremerem, ao ver que ele sorria com sua
comparação.
— Não tenho a menor vontade de me encarnar naquele monstro.
Prefiro muito mais usar persuasão do que força. — Juan então
inclinou sua cabeça, chegando seus lábios vacilantes até os de Sorrel.
— Você estará mais segura e confortável aqui do que naquele hotel
barato!
— Oh! Posso ver que ficarei bem instalada. Você realmente está
cercado de luxo por todos os lados. Mas será que estarei segura? —
disse ela, desvencilhando-se dos braços dele e dando uma risada
sarcástica. — Com você? Duvido. Duvido muito!
— Eu passei o dia imaginando como poderia vê-Ia de novo, e
como trazê-la até aqui — disse ele, como se Sorrel não houvesse dito
nada. — Enfim, você veio porque quis, por isso não vou deixá-la ir
embora! — As mãos de Juan subiram pelas costas de Sorrel indo
parar no seu pescoço, passando pela cortina sedosa de seus cabelos
ruivos. Sem mais explicações ele a puxou para si. Ela virou o rosto, e
ele a beijou no canto da boca; seus lábios moviam-se lentamente até
que Sorrel não resistiu mais. Beijaram-se suavemente e Sorrel sentiu
um delicioso arrepio pela espinha.
— Te quiero, Sorrel — sussurrou Juan, ainda beijando-a. — Quero
você para mim!
— No lugar de Inês? — disse ela suavemente. Sentiu que havia
ganho um ponto de vantagem, pois ele se afastou bastante nervoso.
— E nunca ninguém lhe disse que você não pode ter tudo o que quer?
— Sí, muitas vezes, quando criança, porém não surtia efeito
algum. Pelo contrário, apenas me fazia mais determinado a ter o que
queria e a procurar meios para conseguir. Mas o que é mesmo que
você estava falando sobre Inês?
— Estou falando que não sou igual a ela — retorquiu Sorrel,
afastando-se mais ainda dele.
— Isto é verdade. E nem eu iria querer você, se assim fosse.
— Quero que você entenda que eu não sou o tipo de mulher que
se deixa comprar por roupas caras e jóias — prosseguiu.
— Eu não compreendo — disse ele, gesticulando de uma maneira
confusa. — Explique, por favor .
— Tenho a impressão de que você me entende tanto quanto eu,
ou seja, somos pólos opostos não só em nossas atitudes, mas em
tudo mais. É por isso que não fico aqui com você. Buenas noches,
señor.
Sorrel virou-se e atravessou altivamente aquele chão brilhante em
direção à porta de saída. Esperava ser seguida por ele, embora não
soubesse como agir. Mas ele não a seguiu. Nem sequer a chamou.
Assim pôde abrir a porta e sair da casa sem problemas. Uma vez lá
fora, correu pelo pátio iluminado, passando pela porteira e dirigiu-se
até a estrada que a levaria até Ibara.
CAPÍTULO IV
A maleta de Sorrel batia em sua perna enquanto ela corria pela
estrada. A noite estava escura como breu. Não se via nenhuma casa
iluminada nem estrelas, pois o céu estava coberto de nuvens.
Começou a chover, uma fina garoa que logo molhou os cabelos de
Sorrel e sua leve roupa de verão. Finalmente, teve que parar para
respirar melhor. Além das batidas de seu coração e de sua respiração
ofegante, ouvia somente os pingos da chuva caindo nas folhas e o
barulho da água pelas corredeiras. Parecia que ninguém a seguira.
"Nunca corri atrás de nenhuma mulher em toda minha vida".
Parecia ouvir a voz de Juan em sua cabeça! Sorrel apertou os lábios
nervosamente. Não havia necessidade de correr mais, pois ninguém a
seguira. Se ao menos não chovesse e não estivesse tão escuro! Se ao
menos conhecesse melhor aquele lugar! As pedras na estrada faziam-
na tropeçar e podiam fazê-la acabar torcendo o tornozelo. Estava
pingando e tremendo de frio, apesar de a noite estar agradável.
A que distância estaria de Ibara? Mais ou menos uns dez
quilômetros? Devia estar louca, como dissera Juan.
Deveria ter ouvido Mônica e aprendido assim com a experiência
dos mais velhos. Por que viera? Por que acreditara na sinceridade de
um homem conhecido por Domingo! Acreditara que ele a ajudaria a
ter seu emprego de volta. Entretanto, descobrira que ele só pensava
em seus próprios interesses. Deveria saber que não podia confiar em
homem nenhum, principalmente nesse tipo de homem, sem moral
alguma e vivendo segundo suas próprias leis.
De repente, tropeçou e se viu no meio de uma poça, lamentando
não ter prestado atenção por onde ia.
Ela havia chegado no cruzamento com a estrada principal. Que
direção deveria tomar para ir até Ibara? Esquerda ou direita? O
pânico tomou conta de Sorrel, quando descobriu que não tinha a
menor idéia de que caminho Pancho tinha tomado para chegar ao
rancho. Talvez ela devesse voltar, mas como Renalda veria a sua
volta pedindo abrigo? Como uma vitória? E sua estada no rancho não
seria considerada, por ele, permanente? Ela tinha certeza que sim.
Não, teria que seguir em frente, torcendo para que Ibara fosse para a
esquerda e que algum carro passasse por ali e lhe desse carona.
Não andara muito, quando percebeu o ruído de um motor. Vinha
de trás e logo ouviu o barulho dos pneus derrapando na terra
encharcada. Iluminada pelos faróis a chuva parecia cintilar. Sorrel
virou-se ansiosamente e o farol iluminou-a em cheio. O carro passou
por ela vagarosamente e ela o reconheceu esperançosa. Era o mesmo
caminhão em que viera da cidade com Pancho. O caminhão parou um
pouco à frente dela e, aliviada, correu até ele certa de que o
simpático Pancho lhe daria carona até Ibara.
No momento em que ela chegava perto da porta, esta se abriu,
destrancada por dentro. Entrando no caminhão, ela só podia ver o
desenho do chapéu raso de abas largas e em forma de coroa, que
Pancho usava.
— Pancho? — perguntou ansiosamente.
— Uhuh!
— Você está indo para Ibara ?
— Mmm.
— Ainda bem — murmurou, puxando sua maleta para frente do
assento. — Estou feliz por revê-lo — disse Sorrel.
Ele nada respondeu, mas deu a partida e engrenou. Foram
adiante. Em uma curva fechada fez cantar os pneus e tomou a
direção oposta.
— Ei, eu não estava indo na direção certa? – perguntou Sorrel,
tremendo um pouco apesar do calor da cabine.
— Acho que não — respondeu uma voz multo familiar, e os
ombros dela se curvaram.
— Ah, é você! — disse Sorrel. — Creio que é demais imaginar que
possa me levar a Ibara.
— Realmente — respondeu tranqüilamente. — Da maneira como
gosto de agir, nunca a levaria à Ibara, deixando-a sozinha naquela
porcaria de hotel. Você passará a noite em minha casa e será bem-
vinda. O mínimo que posso fazer é oferecer hospitalidade para quem
não tem para onde ir.
— Se eu ficar esta noite, você me leva para Ibara amanhã cedo?
— Amanhã! — disse Juan rindo. — Você realmente acha que um
colombiano pensa tão longe como no amanhã? Quem sabe o que
acontecerá entre agora e daqui a pouco? Nenhuma condição foi
imposta para você ficar esta noite comigo, mas de uma coisa pode
estar certa: não há outra alternativa.
Então tomaram a pequena estrada, que os levaria de volta ao
rancho. Quando entraram no pátio e pararam em frente da casa, ela
não se moveu, até que a porta de seu lado fosse aberta.
— Você vai entrar voluntariamente ou vou ter que arrancá-la e
carregá-la nos ombros até dentro da casa?
Ela desceu finalmente. Com uma mão ele bateu a porta do carro e
com a outra conduziu-a até a porta de entrada, aberta
silenciosamente pela mulher baixa, de rosto escuro, que trouxera
café para Sorrel, horas antes.
— Por Dios, como você está molhada! — disse Juan, enquanto
tirava o chapéu de aba larga e a ruana carmim que vestia. — Vá com
Jovita, ela mostrará onde você pode tomar um banho morno!
Por seu corpo inteiro estar implorando um banho de água quente,
Sorrel seguiu imediatamente a empregada pelo corredor iluminado
por lampiões presos na parede em fortes suportes de ferro.
— Tire sua roupa molhada, señorita — disse ela. — Pode usar este
robe.
A empregada deixou o robe em cima da cama e voltou para o
banheiro. Vagarosamente Sorrel tirou a blusa totalmente molhada e
as sandálias encharcadas.
A suntuosidade do quarto era mais ou menos chocante e o toque
de feminilidade em sua decoração, em se tratando da casa de um
solteiro, fazia Sorrel suspeitar de tudo. Teria sido aquele quarto todo
mobiliado e decorado para Inês?
Sorrel pegou o robe. Era enorme e não deixava nenhuma dúvida a
quem pertencia. Ela, puxou as lapelas de veludo bem juntas para
proteger seus seios e apertou bem justo na cintura o cinto de veludo
dourado e preto.
— Señorita, o banho está pronto. Venha, por favor! — disse Jovita,
pela porta entreaberta do banheiro.
O que será que Jovita estava pensando disso tudo? O que será que
se passava naquele rosto inexpressivo e olhos que pareciam piscar?
Estaria surpresa por seu patrão ter encontrado uma nova mulher? Ou
será que Já estava tão acostumada com sua maneira de viver, que
nem sequer ligava para tudo que estava acontecendo?
— Entre na banheira agora, señorita — disse Jovita, começando a
desamarrar-lhe o cinto.
— Oh, não, não até você sair — disse Sorrel aborrecida, dando
passos para trás, pois não estava acostumada com essas gentilezas
especiais, principalmente na hora do banho.
— Não vou sair. Vou ficar e ajudá-la. Eu lavo suas costas e seus
cabelos. Aí se sentirá melhor e ficará mais bonita! — disse Jovita,
sorrindo e surpreendentemente mostrando bonitos dentes. — Eu
sempre faço assim para a señorita Inês!
O nome de Inês significava para Sorrel o mesmo que um pano
vermelho para o touro.
— Não, obrigada. Eu me arrumo sozinha — disse ela com
determinação. Não queria ajuda e, principalmente, não queria ser
tratada como amante de Juan Renalda.
— Mas, señorita — a voz de Jovita implorava — o señor Juan me
ordenou que olhasse pela señora e que a fizesse se sentir confortável
durante sua estada em seu rancho, e se eu não cumprir suas ordens
ficará bravo comigo!
— Eu me banharei e lavarei meus cabelos sozinha — insistiu
Sorrel. — E se o señor Renalda perguntar alguma coisa, diga a ele
que posso cuidar de mim mesma. — Como esperava, o jeito
autoritário com que falou surtiu o efeito necessário. Ainda que
parecendo
preocupada,
Jovita
deixou
o
quarto
acenando
humildemente com a cabeça. Sorrel fechou a porta, tirou o robe e
entrou na banheira.
O jato d'água foi desligado. Mãos fortes juntaram seus cabelos e,
apertando-os, tirou-lhes a água em excesso. Uma toalha macia foi
amarrada em sua cabeça. Pegando a ponta da toalha, Sorrel secou a
água dos olhos e ao virar para o lado sentiu seu coração pular como
se tivesse levado um choque.
Em vez do limpo vestido marrom de Jovita, viu calças pretas de
camurça, modeladas por coxas musculosas e quadris estreitos, uma
fivela de prata num lindo cinto de couro, e uma camisa creme de
linho, meio abotoada, e finalmente o rosto marcado e aqueles olhos
estreitos e cinza do toureiro.
— Como você ousa entrar no banheiro enquanto estou tomando
banho? Saia já daqui!
Ignorando Sorrel completamente, ele sentou-se à beira da
banheira, bem perto dela.
— Eu vim para saber se você precisa de alguma coisa — disse
calmamente. — Jovita ficou magoada por você não a deixar ajudá-la
com o banho. Por que você não quis que ela lhe desse banho?
— Porque não estou acostumada a ser servida — replicou,
sentando-se ereta, e olhando para baixo para ter certeza de que a
espuma estava cobrindo suficientemente, escondendo seu corpo do
olhar arrogante e observador de Renalda.
Quase como se tivesse adivinhado seus pensamentos, ele pegou
com a mão um pouco de espuma bem perto de seus seios. A ponta
de seus dedos tocaram levemente sua pele e ela pulou como se
tivesse sido chamuscada por uma agulha bem quente. Seu coração
batia loucamente e ela encarou-o com firmeza. O olhar dele era
tranqüilo e ao mesmo tempo insolente. Continuou fitando-a enquanto
soprava a espuma de seu dedo, que voou por todos os lados.
— Você é uma pessoa muito complexa. Num momento você é
segura e independente, a típica mulher liberada, noutro você é
tímida. Eu acho essa mistura fascinante, igual a sua cor ruiva.
Ele tocou levemente nos ombros dela, e Sorrel controlou-se
terrivelmente para não mostrar a emoção que sentia.
— Sua pele é da cor de marfim, seus cabelos têm uma tonalidade
de carmim e seus olhos são quase negros, minhas cores favoritas —
acrescentou Juan, respirando bem perto do rosto de Sorrel.
— Eu já tinha percebido. — Ela tentou falar sem revelar a emoção
que sentia, mas sua voz saiu trêmula e Sorrel estremeceu quando o
sentiu segurar seu queixo, enquanto brincava gentilmente com seus
dedos ao redor de seu rosto.
E ela estava à mercê de Juan, pois qualquer movimento que
fizesse a espuma descobriria seu corpo. Mantendo seus olhos baixos
evitaria que ele percebesse o pânico que a dominava. Sentada como
estava, ficou aguardando o beijo que fatalmente viria, imaginando
como conseguiria evitá-lo.
— Por que você está com medo? Não vou machucá-la. — Seus
dedos desceram suavemente pelo pescoço de Sorrel, num toque
sugestivo e sensual. Então ele levantou-se. Desconcertada e
desapontada por ele não a ter beijado, ela o viu pegar uma grande
toalha carmim de uma pilha de toalhas. Segurando-a em frente de
seu corpo como se fosse uma muleta ele voltou para perto dela.
— Você está pronta para sair do banho agora? A água já deve
estar fria. Balançou a toalha como se estivesse balançando a capa e
atiçando o touro. — Eu lhe enxugarei — disse ele, fitando-a ao
mesmo tempo que franzia as sobrancelhas.
— No! — Em pânico, Sorrel deslizou na banheira. — Saia, por
favor. Eu mesma me enxugo.
— Por que tanta objeção? — perguntou. — Eu só estou lhe
ajudando no lugar de Jovita. É gostoso que alguém nos seque.
Venha, pois se você continuar sentada aí, vai sentir frio!
— Eu não posso deixá-lo fazer isso. Você nem deveria estar aqui
agora — disse ela.
— Eu não deveria estar aqui? E por que não, este banheiro é meu!
— Sim, eu sei, mas nós não somos casados, e... — ela parou um
pouco de falar, tentando achar uma maneira de explicar por que ele
não deveria estar ali, não deveria secá-la, enfim uma maneira de
fazê-lo entender que seus valores eram diferentes dos dele.
— Você está tentando me dizer que você não se sentiria tão
envergonhada se fôssemos casados. — perguntou com muito
interesse.
— Sim, acho que sim!
— Você gostaria de se casar comigo? — perguntou Juan, jogando
a toalha no chão e sentando-se na beirada da banheira novamente.
— Eu... eu, oh! Saia daqui e pare de me atormentar! — disse ela
desesperada, cobrindo seu rosto com as mãos. — Eu não quero nada
com você, eu não queria ter lhe conhecido nunca!
Esta explosão soou infantil até para os ouvidos dela mesma, mas
expressou tudo o que ela sentia naquele momento. Aquele homem
significava perigo para ela, e quanto mais rápido saísse de perto dele,
seria melhor.
— Mas nós nos encontramos e vamos nos encontrar novamente,
quer você queira ou não
— disse ele. Ouviu-o levantar-se e sair do banheiro. — Acabou a
suerte de banderilhas, tourinho vermelho — disse ele ao fechar a
porta. Sorrel começou a levantar-se cautelosamente. A toalha
carmim jogada no chão parecia uma poça de sangue, no marfim do
mármore. Ela tremeu um pouco enquanto pensava. Carmim, marfim
e preto, as cores preferidas do toureiro.
Pôs-se finalmente de pé, enrolando-se na maciez da toalha e não
querendo admitir que teria sido realmente uma delícia se alguém
secasse seu corpo depois de um tão demorado banho. Mas não queria
ser enxugada por Juan Renalda!
Deixando-se secar por ele era o mesmo que convidá-lo para fazer
amor. Ele não tinha o menor escrúpulo em relação a suas vontades e
inibição era coisa que não conhecia. Juan era completamente livre.
Talvez por conviver na arena por demais com a morte, aprendera a
agarrar tudo que lhe desse prazer.
Sorrel parou de secar-se repentinamente e observou num dos
espelhos seu corpo esguio, seus cabelos ruivos, praticamente
envoltos na toalha carmim, e seus negros olhos, agora receosos com
um novo pensamento. Era bem possível que Juan Renalda pensasse
que viera até o rancho para se oferecer a ele.
Rapidamente acabou de se secar, vestiu o robe de brocado e foi
para o quarto. De algum modo tentaria fugir outra vez, nesta noite,
preferivelmente antes de um novo encontro com o toureiro. "Acabou
a suerte de banderillas", tinha dito ele. Sim, o primeiro ato da
tourada quando as banderilhas são fincadas no touro para atormentá-
lo. Ele realmente a atormentara por umas duas horas pelo menos e
só Deus sabia o que estava preparado para o segundo ato! Assim
deveria partir antes que este começasse.
No quarto, Jovita esperava pacientemente.
— Onde estão minhas roupas? — perguntou Sorrel.
— Eu as levei para lavar. A señorita não podia usá-las do jeito que
estavam.
— Mas não posso usar este robe o tempo todo. É muito grande.
Veja! Deixei minha maleta no caminhão e nela tem uma muda de
roupa. Será que você poderia ir pegá-la para mim?
Jovita mexeu sua cabeça negativamente, de um lado para o outro.
— Eu não sei de maleta nenhuma — replicou. — Venha e sente-se
aqui, señorita, em frente aos espelhos. Eu secarei seus cabelos e os
escovarei. — Mordiscando os lábios com impaciência, Sorrel sentou-
se em frente à penteadeira, pensando que talvez conseguisse mais
cooperação de Jovita, se concordasse com o que ela pedia. Foi nesta
banqueta que Inês se sentara várias vezes para deixar enxugar seu
cabelo, e quem sabe quantas mulheres antes de Inês! Sentindo-se
mal, com um ciúme incontrolável, Sorrel franziu as sobrancelhas.
— Estou machucando, señorita? — Perguntou Jovita, preocupada.
— Não — respondeu ela, sorrindo. — Eu só estava imaginando de
quem seria este quarto.
— Era de la señora!
— Señora Inês?
— Não, señora Joan, a esposa do señor Rodrigo e a mãe do señor
Juan. Muitas vezes sequei seus cabelos, como estou secando os seus,
señorita. Ela era alta, tinha cabelos loiros e pele dourada; era
bondosa e sempre estava sorrindo. Podia cavalgar como um homem
e sabia tourear também! — Jovita parecia triste. — Todos nós
choramos muito quando ela foi morta!
— Morta? Como?
— Ela estava domando um cavalo. E foi jogada fora da sela,
quebrando o pescoço.
— Que horror!
— Sí, foi mesmo. O señor Rodrigo ficou terrivelmente chocado.
Nunca se recuperou do choque. Ele era bem mais velho do que ela,
você compreende, não é? Ele era uns vinte anos mais velho do que
ela, e só se casaram quando ele parou de tourear. A família da
señora Joan tem um rancho muito grande na Califórnia. Ela entendia
bem de como cuidar de ranchos!
— disse Jovita, parando de secar os cabelos de Sorrel. — Posso
escovar seus cabelos agora? Eles vão parecer seda!
— Há quanto tempo você trabalha aqui, Jovita?
— Desde que o señor Juan nasceu. Eu vim para cá como uma
espécie de enfermeira. Eu dava banho no señor Juan, vestia, levava
para passear e o fazia dormir. Logo depois, fiz as mesmas coisas pela
irmã dele e para o irmão caçula também. Depois que a señora Joan
morreu, fiquei para ajudar o señor Rodrigo, que estava muito doente
e que morreu há sete anos. Depois disso tudo fui para Ibara morar
com minha irmã, mas voltei para ajudar o señor Juan, quando foi
seriamente ferido, naquela tourada, a última feita por ele. — Jovita
balançou sua cabeça novamente de um lado para o outro. – Ele levou
muito tempo para se recuperar, e depois que os ferimentos
cicatrizaram nunca mais foi o mesmo.
— Como assim?
— Parecia que o señor Renalda que nós conhecíamos morrera, e
que seu corpo fora tomado por outro espírito. Ele perdeu o
entusiasmo, não queria ver seus velhos amigos e ficava aqui no
rancho o tempo inteiro.
— Você acha que ele ficou com medo?
— Medo das touradas? Não, acho que não, pois ele continua
toureando aqui no rancho, ensinando Pancho e outros rapazes a
serem matadores. Mas não foi nada bom ele querer se isolar do resto
do mundo. Por isso fiquei feliz quando o señor Cortez veio até aqui e
o persuadiu a ir com ele para a abertura da nova estação de esqui. —
Jovita levantou o pesado cabelo de Sorrel e o prendeu no alto da
cabeça. — Você gosta de seu cabelo assim? — perguntou — Eu
costumava fazer o mesmo penteado para señora Inês.
— Não, obrigada! — respondeu imediatamente Sorrel. Apesar de o
penteado fazê-la parecer mais altiva e elegante, só o fato de saber
que Inês se penteara assim algumas vezes fez com que ela não o
quisesse. — Prefiro meu cabelo solto e repartido no meio.
— Bueno! — Jovita o penteou da maneira sugerida por Sorrel e
colocou a escova na penteadeira. — A señorita está pronta para
jantar com o señor Juan agora?
— Ainda não. Gostaria que pegassem a minha maleta no
caminhão. Não posso jantar com ele vestida do jeito que estou. Não
tenho nada por baixo do robe — prosseguiu Sorrel firmemente,
imaginando, ao mesmo tempo como seria a cena dela sentada à
mesa, de frente para Juan, com aquele robe, aberto e largo do jeito
que era, e ele a devorando avidamente com os olhos.
— Tenho que estar vestida adequadamente, antes de jantar com
ele. E, se quiser, você pode dizer isto ao señor Renalda!
Um brilho de surpresa ia e vinha nos negros olhos de Jovita, mas
ela nada disse.
— Por favor, Jovita, peça ao señor Juan para pegar minha maleta
no carro. Eu a deixei no banco. Ele sabe qual é.
Ela começou a se convencer de que Inês realmente não tinha
ocupado aquele quarto. Por uma razão muito estranha, Sorrel sentiu-
se mais sossegada, pelo menos não estava sendo uma substituta.
Sentou-se em frente à penteadeira e olhou-se criticamente. O
veludo preto da lapela do robe que usava acentuava a suavidade de
sua pele e, na penumbra do quarto, seus cabelos, agora limpos e
bem escovados, cintilavam como se fossem um rubi gigante. Estava
imersa em seus pensamentos, quando um ruído vindo da porta
colocou-a na defensiva. Mas era Jovita, voltando com uma bandeja
repleta de pratos dos mais variados. Colocou-a na penteadeira, bem
em frente a Sorrel.
— Achei melhor trazer sua comida aqui, pois sei que tem vergonha
de ir até a sala de jantar vestindo robe — disse a velha mulher, com
uma atitude tão delicada que a fez agora definitivamente querida por
Sorrel.
— Aqui tem ensopado de carne, uma pequena porção de salada de
aguacente, um pouco de mogollas e um copo de nosso delicioso vinho
moriles. Coma bem, señorita.
— Obrigada. — A aparência e o cheiro da comida eram
convidativos. Jovita ia se retirando sem mencionar nada sobre a
maleta, quando Sorrel perguntou: — Espere, Jovita, você falou sobre
a minha maleta?
— Não pude trazê-la, señorita. Alguém saiu com o caminhão, mas
o señor Juan disse que a señorita a terá de volta amanhã. Agora,
coma a comida, que está gostosa. Eu volto para pegar a bandeja.
Então ele não a deixara pegar suas roupas. Sua mente estava
cheia de suspeita, mas mesmo assim Sorrel comeu a deliciosa
comida. Quando Jovita voltasse, pediria que a levasse até Juan
Renalda, e lhe diria tudo o que estava guardado dentro dela. Quando
finalmente Jovita voltou, balançou negativamente a cabeça, em
resposta à pergunta de Sorrel.
— Sinto muito, señorita, o señor Juan saiu. — Ela aproximou-se da
cama, tirou a colcha de damasco, dobrou-a com perfeição, afofando,
em seguida, os travesseiros.
— A señorita pode deitar-se, se assim desejar. Acho que o señor
Juan virá vê-la logo que voltar. Deseja mais alguma coisa?
— Eu... eu... — Sorrel olhou desconfiada para a cama. — Não,
obrigada. Você sabe quando o señor Juan vai voltar?
— Não, señorita — disse Jovita sem mover um músculo sequer. —
Ele não disse nada.
— Você sabe aonde ele foi?
— Não. Tenho que ir, señorita, se não se importa, e desejo-lhe
buenas noches.
— Buenas noches.
Após Jovita sair, Sorrel sentou-se por um instante, pensando como
o seu plano de escapar do rancho pela segunda vez tinha caído por
terra. Sem roupa adequada, não poderia sair e, mesmo se chegasse
até Ibara, não tinha nenhum centavo, nenhum documento, pois tudo
estava em sua bolsa dentro da maleta.
Enquanto estava sentada, pensando, deu-se conta do profundo
silêncio reinante na casa.
— Onde será que ela podia arranjar alguma roupa? A idéia
iluminou sua mente e Sorrel sentou-se enquanto pensava nela. No
quarto de Juan Renalda, lógico! A idéia veio à sua cabeça de
imediato. Uma camisa e uma calça de Juan poderiam ser um pouco
grandes para ela, mas pelo menos era melhor do que nada.
Entretanto, teria que achar seu quarto, antes de mais nada.
Levantando-se, foi até a porta. Virou a maçaneta e puxou, mas a
porta continuava fechada. Tentou abri-Ia várias vezes, pensando que
a porta talvez estivesse emperrada, até que, embora relutando,
acabou aceitando que a porta havia sido trancada pelo lado de fora.
Inclinou-se rapidamente olhando pelo buraco da fechadura. Não
havia nenhuma chave. Virando-se, observou o quarto, tentando achar
um meio de escapar. E foi diretamente à cortina elegantemente
franzida. As janelas eram estreitas, colocadas em vãos profundos, e
pela vidraça podia ver os gradis de ferro que as protegiam do lado de
fora. Mesmo que conseguisse abrir uma janela, não poderia passar
pelos gradis. Sentiu-se numa cela de cadeia. Irritada, correu para o
banheiro. Lá não havia nenhuma janela, mas tinha uma porta.
Alcançando-a, virou a maçaneta e puxou. A porta permaneceu
fechada. Também estava trancada e sem chave pelo lado de fora. —
Miserável, miserável! — Ele fez o que ameaçara fazer. — deixou-a
sem nenhuma roupa para vestir e trancou-a num quarto de onde não
podia fugir. — Ele deve ser louco!
Não havia outra explicação para seu comportamento tão estranho.
Jovita tinha falado que o antigo Juan tinha morrido e que outro
espírito tomara conta de seu corpo, logo após a última luta em que
foi quase mortalmente ferido. Seria um modo diferente de dizer que
ele tinha ficado louco?
Aos poucos sua raiva diminuiu e Sorrel voltou para o quarto,
sentando na beirada da cama e tentando se posicionar melhor.
Nunca, nem em seus sonhos mais selvagens, ela se imaginou presa
por um homem que mal conhecia, um homem com o qual tinha
somente uma coisa em comum, um pouco de sangue espanhol, e que
a queria morando com ele naquele vale colombiano longe de tudo e
de todos.
"Eu quero você, Sorrel." Somente a lembrança dele murmurando
aquelas palavras fazia seu sangue ferver. Deitada na cama, olhou
para o teto e se deixou levar pela imaginação. Como seria se ela
concordasse com o que ele queria e descobrisse que estava gostando
do que tinha imaginado?
Então por que teria fugido? Porque ela pensava que o
envolvimento entre eles fosse temporário, por pouco tempo. Inês
deve ter ficado não mais do que seis meses e Sorrel tinha medo de
ser magoada outra vez, como havia acontecido com Martin.
Mas, para ser magoada IK>r Renalda. teria que amá-lo e não ser
correspondida. Mas ele nem sequer mencionara a palavra amor.
Sorrel não sabia se esse era seu método com relação às mulheres.
A campainha do pequeno e antigo relógio em cima da penteadeira
informou Sorrel que eram dez horas. Ela tivera um dia e tanto e a
cama lhe parecia mais do que confortável. Levantando-se, tirou o
robe, colocando-o na cadeira. E, nua, enfiou-se entre os lençóis .de
seda. Apagou a luz de cabeceira e deixou-se ficar no escuro, meio
amedrontada, meio esperançosa, na expectativa do ruído da chave
na fechadura. Será que viria vê-la quando voltasse? O que
aconteceria? Sentiu uma sensação agradável percorrer seu corpo,
transformando-se numa profunda e desesperada vontade de que ele
viesse. Essa sensação incontrolável chocou Sorrel, que tentou
esquecê-la fechando os olhos e forçando-se a dormir.
Ela acordou com o barulho de uma porta se fechando. A primeira
coisa que pensou foi que Juan Renalda havia voltado. Seu coração
começou a bater descompassadamente e ela permaneceu imóvel,
fingindo que dormia e imaginando como ele a acordaria. Mas nada
aconteceu. Não ouviu mais nenhum ruído, apenas o pingar do
chuveiro. Não havia ninguém no quarto. Sorrel abriu seus olhos e
sentou-se, puxando a roupa de cama para cobri-la.
O quarto estava vazio e já era dia. O robe de brocado não estava
mais na cadeira e em seu lugar estava a maleta.
Quem a teria colocado no lugar do robe? Jovita? Sorrel levantou-
se rapidamente da cama e correu até a porta. Girou a maçaneta e a
abriu. A porta abriu-se facilmente. Não estava mais trancada e a
chave estava colocada na fechadura, do lado de dentro. Ela olhou o
corredor dos dois lados. Estava deserto, banhado pela luz do
amanhecer.
Fechou a porta e abriu a maleta. Em poucos segundos, já havia
colocado outra blusinha de verão, branca, que havia trazido. No
banheiro, bateu na outra porta fechada. Não houve resposta e Sorrel
resolveu entrar. Os espelhos estavam úmidos com o vapor e a água
pingava do chuveiro. A outra porta do lado oposto do quarto estava
entreaberta. Tentada pela porta aberta, ela atravessou o outro
banheiro e a abriu mais ainda, tornando possível seu acesso ao
quarto.
Juan Renalda vestia apenas calça preta e justa nos quadris. Estava
parado em frente ao amplo armário, que ia de parede a parede,
procurando uma camisa dentre as muitas penduradas. Escolheu uma
e virou-se. Percebeu Sorrel entreolhando pela porta e, jogando a
camisa na cama, foi em direção a ela.
— Buenos dias, Sorrel — disse ele. — Você tem alguma coisa para
me dizer? Por isso é que veio tão cedo até meu quarto?
O olhar de Sorrel foi diretamente até a imensa cicatriz abaixo de
suas costelas e, confusa, deu um passo para trás.
— Desculpe-me, não sabia que este era seu quarto. A porta estava
aberta e eu achei que...
— Ela ficou nervosa repentinamente, ao lembrar-se que a porta havia
sido trancada na noite anterior, mas levantando o queixo disse: — O
senhor me deve muitas explicações, señor Renalda.
— Eu lhe devo explicações? Sobre o quê?
— Sobre ontem à noite!
Um estranho brilho tomou conta dos olhos de Juan. Ele
aproximou-se dela e ela tentou esquivar-se. Tarde demais! Ele havia
fechado a porta do banheiro e se postou na passagem. Seu dorso nu
e bronzeado contrastava com a tonalidade branca da pintura. Ele a
fitou com seus olhos cinza, delineados pelo negro de suas
sobrancelhas, e disse:
— Ontem à noite — repetiu, fazendo uma expressão de quem
tentava lembrar-se de alguma coisa. — Ah! Agora sim, me lembro!
Cheguei muito tarde. Você já estava dormindo.
Ele aproximou-se dela, acariciando seu rosto. Ela esquivou-se
fazendo com que as mãos de Juan voltassem a seu devido lugar. —
Você fica linda quando dorme, parece uma estátua de mármore. Não
tive coragem de acordá-la. Você está desapontada por isso?
Ruborizada, Sorrel lembrou-se que havia dormido nua e, pensando
que talvez tivesse se descoberto, não mediu esforços para se
controlar.
— Não, não fiquei desapontada — respondeu. — Só queria saber
por que você me trancou no quarto sem dar minha maleta.
— Você estava trancada? — Falou com um ar tão inocente que
Sorrel teve vontade de avançar para ele. — Por favor, aceite minhas
desculpas. Jovita deve ter trancado a porta antes de sair. Ela não
deixaria uma linda señorita como você sozinha e desprotegida.
— Oh droga! — disse Sorrel irritada, e com força bateu com o pé
no chão. — Se Jovita trancou a porta, foi porque você mandou.
— Que é isso? Por que você acha que faria uma coisa dessas? —
perguntou Juan.
— Porque você não queria que eu fugisse, enquanto estivesse
fora.
— Então eu estava certo, você planejava mesmo fugir outra vez.
Porquê?
— Se você adivinhou que eu iria tentar fugir outra vez, deveria
saber o porquê dessa nova tentativa. Não queria ficar na casa de um
homem que considera as mulheres como... como simples brinquedos
feitos para seu divertimento. Sou uma pessoa livre, acostumada a ir
para onde quero e quando quero. Vim até aqui pedir sua ajuda para
salvar um casamento e, ao invés disso você me tratou como se disse
Sorrel completamente descontrolada. Quando olhou para a porta que
dava para o corredor, viu que estava sendo lentamente aberta. Jovita
apareceu carregando uma bandeja com o café da manhã.
— Buenos dias, señor Juan, disse a pequenina mulher. — A
señorita não estava no outro quarto, por isso trouxe a bandeja do
café até aqui. — Seus olhos negros passaram por Juan indo até
Sorrel, que nesse momento escondia seu rosto, envergonhada. —
Buenos dias, señorita, espero que tenha dormido bem. — Ela colocou
a bandeja na mesa que havia no centro do quarto e saiu.
— O que ela deve estar pensando de mim ? — As palavras
pareciam saltar da boca de Sorrel.
— Quem? Jovita? — perguntou Juan, ao mesmo tempo que se
servia de café. — Você se importa com o que ela pense de você?
— Sim, me importo. Eu não gosto de imaginá-la pensando de mim
aquilo que, na verdade, não sou!
— Por Dios! — exclamou impaciente. — Por que você complica
tudo? O que você não é que Jovita pensa que é?
— Eu não sou uma substituta da mulher que partiu ontem. Eu não
vim até aqui para ser sua amante.
Ele bateu com o pesado bule em cima da bandeja, derrubando a
xícara cheia de café. Em dois passos apenas, Juan estava bem na
frente dela, com uma expressão lívida e ameaçadora. Sorrel deu
alguns passos para trás.
— De que diabo você está falando?
— Inês. A mulher que estava aqui. Se ela não era sua esposa,
como você mesmo disse não ser, só podia ser sua amante!
Ele xingou bastante até se acalmar um pouco. Tudo que Sorrel
pôde fazer foi tampar os ouvidos até que ele terminasse com todos
aqueles impropérios.
— O que é que aquela diabinha lhe disse, para fazê-la pensar que
era minha esposa ou minha amante. Inês e simplesmente minha irmã
e uma irmã bem maluca. Há uns meses atrás ela separou-se do
marido e veio para cá, dizendo-me que ele era muito cruel. Então lhe
disse que ficasse por aqui, até que resolvesse seus problemas. E
assim ela o fez. Mas deixa eu encontrá-la novamente! Vou torcer-lhe
o pescoço por ter dito o que disse... !
— Oh não! – interrompeu Sorrel, preocupada com a raiva de Juan.
Não foi culpa dela. Ela não me disse nada. Foi o que Pancho me falou
que me levou a tirar essas conclusões errôneas e...
— E o que disse Pancho?
— Ele pensou que eu fosse americana e me perguntou se era
amiga da señora. E eu achei que ele se referia a sua esposa e,
quando sua irmã abriu a porta, tive certeza de que se tratava da
señora Renalda. Bem, ela estava usando uma aliança e não se
apresentou, e disse-me que estava indo embora porque não
agüentava mais viver com você — disse Sorrel, defendendo-se
quando viu seus olhos se estreitarem.
— O sentimento era mútuo — acrescentou. — E ela falava inglês
como você, com sotaque americano — continuou Sorrel, determinada
a fazê-lo compreender porque cometera aquele erro em relação a
Inês.
— Bem, ela aprendeu inglês da mesma maneira que eu, com
nossa mãe, que era da Califórnia — explicou ele. – Está certo, eu
concordo. É bem fácil confundi-la com minha esposa, mas o que a fez
pensar que ela poderia ser minha amante?
— Bem, quando você disse que ela não era sua esposa eu... eu —
ela baixou os olhos, diante do olhar acusador de Juan.
— Você achou outra vez, baseando suas suposições no que você
sabe sobre mim e via Ramón Ángel, ou mesmo por aquela sua esposa
faminta de sexo.
— Desculpe-me! — disse ela. Ele permaneceu parado e quieto
diante dela, e estava tão próximo que ela podia ouvir as batidas de
seu coração, sentir a forte pulsação em sua garganta e o cheiro do
sabonete que usara; podia até mesmo sentir o calor de sua
masculinidade, sem precisar tocá-lo.
— Agora sim entendo por que você estava tão brava comigo
ontem — disse ele vagarosamente. -Você não estava gostando da
idéia de ser uma simples substituta.
— Não, não estava mesmo — admitiu Sorrel.
— É compreensível. Mas, agora que esclarecemos todos os fatos,
você acha que devemos começar tudo de novo? Você fica para morar
comigo, Sorrel?
— Eu... — disse ela, segurando a respiração, enquanto sentia as
mãos dele aproximarem-se de seu rosto. — O que você está fazendo?
— Eu sinto uma tentação irresistível de beijá-la. Isso acontece
quando a vejo bem cedo, bonita e descansada, depois de uma noite
de sono. Por isso quero que você fique e viva comigo, então poderei
beijá-la todas as manhãs.
— Mas você não tem direito de me beijar e eu não quero ser
beijada — disse Sorrel tentando fugir dele.
— Ah, Sorrel, como é que você pode falar sobre direitos? — disse
ele, deixando suas mãos descerem até a gola de sua blusa. Um de
seus dedos acariciou seu pescoço gentilmente, provocando um
delicioso arrepio em todo seu corpo. — O que está acontecendo entre
nós dois está acima e além de qualquer argumento, especialmente
esse tipo frio de argumento.
— Nada está acontecendo entre nós dois, nada. Não vou deixar
acontecer nada — protestou Sorrel, tremendo levemente, tentando
ignorar o desejo que tomava conta de todo seu ser.
— Será que você não entende? Você está tão cega pelos
preconceitos, que não consegue enxergar!
— Não sou mulher de programas, especialmente programas com
homens que mal conheço. Não quero, porque não o amo. E sem amar
não posso... — Sorrel não continuou, pois ele a silenciou com um
insolente beijo, que forçou seus lábios a se entreabirem, deixando um
campo aberto para uma exploração mais íntima.
Ainda assim ela tentou se libertar, mas seus lábios continuavam
dominando os dela. Juan pegou-a então pelos quadris, apertando-a
contra ele, como se tentasse imprimir todo seu desejo no corpo de
Sorrel. Ela se sentiu totalmente perdida por ele, ardendo de desejo.
As mãos de Sorrel subiram até as orelhas de Juan, puxando seus
cabelos e deixando seus dedos deslizarem sensualmente por suas
costas. Um som animalesco explodiu da garganta de Juan. Seus
dedos subitamente abriram caminho pelo decote da blusa de Sorrel, e
ele se curvou ao sentir o aroma da pele suave antes escondida. O que
restara do autocontrole de Sorrel desapareceu completamente,
fazendo-a entregar-se àquela sensualidade perigosa.
Então levantou a cabeça repentinamente e, sem sentir o calor dos
lábios de Juan, Sorrel abriu os olhos e viu a enigmática expressão em
seu rosto.
— Então o que é que você me dizia mesmo? Que não me queria,
hein? Acho que você provou justamente o contrário. E chega de fingir
indiferença! Você me quer tanto quanto eu a quero e esta manhã é
uma boa hora para se resolver tudo isso.
— Não! — Vergonha e ódio tomaram conta dela por ter deixado se
trair pelo seu corpo fraco. Desvencilhou-se dos braços dele e
raivosamente deu-lhe uma bofetada. O som do tapa ecoou no quarto
inteiro.
Ele levou sua mão até o rosto e Sorrel, aproveitando a surpresa de
Juan, correu para o quarto onde dormira, batendo e trancando a
porta.
Não havia tempo de fazer planos; tinha que ir antes que a
impedisse de sair, usando a sua força superior. Mesmo que
conseguisse chegar até o pátio, pelo menos estaria do lado de fora e
seria ouvida se gritasse por socorro.
Juntando as coisas que havia derrubado ao tentar pegar um
batom, enfiou tudo de qualquer maneira na maleta e saiu do quarto.
Para sua felicidade, Juan não estava no corredor e então, quase
correndo, conseguiu atravessá-lo. Ao sair da casa, a primeira coisa
que viu foi o caminhão vermelho e branco. O capô estava aberto e
Pancho inclinado sobre ele, arrumando alguma coisa no motor.
— Buenos dias, Pancho! — disse Sorrel, chegando-se a ele. —
Você vai para Ibara hoje? — Ele endireitou-se e, sorrindo
amigavelmente, limpou o óleo de suas mãos, num pano que ele tirou
do bolso e respondeu:
— Buenos dias, señorita! Vou além de Ibara, até Copaya, onde vai
haver o festival.
— E onde é Copaya?
— Não é muito longe, mais ou menos a uns trinta quilômetros
daqui. É uma linda cidade ao lado de um rio, também muito bonito. O
clima é mais quente do que aqui e as casas são antigas e graciosas. E
as mulheres — disse Pancho, virando os olhos e beijando as pontas
dos dedos — são as mais bonitas e as mais carinhosas que existem
na Colômbia. Todos os anos, nesta época, fazem o festival, o primeiro
dos festivais de inverno. Há procissões, danças e logicamente, a
corrida.
Copaya. Sorrel havia ouvido os Ángels mencionarem essa cidade,
comparando-a a Andaluzia, na Espanha. Sendo uma famosa cidade
turística, teria um aeroporto com vôos regulares para Medellín e
Bogotá.
— Você vai demorar para partir? — perguntou Sorrel.
— Vou partir o mais cedo possível. O caminhão grande com os
touros já saiu.
— Então vou com você.
— Bueno. — Seu sorriso alargou-se. — Seja bem-vinda. Entre por
favor. Tem muito espaço, acomode-se.
Feliz e agradecida pela sorte, Sorrel subiu na cabine do caminhão,
sentou-se e fechou a porta. Pancho não parecia nada ansioso em
partir, e ela podia ouvi-lo assobiar uma música e batucar na parte
traseira do veículo.
Então parou de assobiar e ela ouviu uma conversa do lado de fora.
Sentiu-se tensa. A porta de seu lado foi escancarada e ela olhou
ansiosamente para os lados. Juan estava bem ali, com uma vistosa
camisa de seda vermelha e um colete desabotoado de camurça preta.
Por baixo de seu chapéu de toureiro, seus olhos brilhavam
assustadoramente.
Quando falou, sua voz era baixa e suave como veludo.
— Afaste-se, por favor!
— Como...? Seu pedido assustou-a. Esperava ser expulsa dali.
— Você me ouviu, afaste-se, me dê um espaço para sentar a seu
lado. Também vou a Copaya para participar da tourada. Estou
surpreso e ao mesmo tempo feliz por saber que você também quer ir
e assistir a mim.
Rapidamente Sorrel tentou passar por baixo da direção e escapar
pelo outro lado, mas Pancho estava se acomodando no banco.
Sentindo-se como um animal cercado, virou-se novamente para ver
se Juan já havia sentado, mas lá estava ele empurrando-a com seus
quadris, tentando acomodar-se a seu lado. A porta foi trancada, foi
dada a partida e, com um brusco movimento, o caminhão dirigiu-se à
porteira de entrada do rancho
CAPÍTULO V
Pancho guiava a velocidade normal e conversava alegremente com
Juan sobre a corrida. Sentada feito um sanduíche no meio dos dois
homens, Sorrel pensava preocupada em como resolver seu mais
recente problema. Como sair dessa nova armadilha preparada por
Juan? Recebendo como resposta apenas alguns grunhidos, Pancho
resolveu desistir da conversa e começou novamente a assobiar.
Movendo seus olhos, Sorrel tentava olhar Juan. Ele havia se
recostado no banco e colocara seu chapéu negro de abas largas
encobrindo-lhe os olhos. Parecia cochilar.
O caminhão pareceu saltar no ar no momento que bateu numa
pedra. Sorrel umedeceu os lábios e sentiu náusea, acompanhada de
uma profunda dor no estômago. Lembrou-se então que não comera
nem bebera nada naquela manhã. A curta distância ela pôde ver as
torres gêmeas da igreja de Ibara, as cruzes douradas de suas cúpulas
cintilando sob o sol forte, que iluminava os telhados das casas de um
vermelho profundo, já desbotado. A volta da cidade, a terra parecia
sem fim: era um extenso campo, ideal para criação de gado, limitado
no horizonte por uma pequena cordilheira de montanhas, cujos picos
pontudos e prateados avançavam contra o imenso céu azul.
Na única rua principal de Ibara, mulheres índias estavam subindo
no ônibus em que Sorrel viera de Manizales.
Uma idéia iluminou a cabeça de Sorrel. Ela inclinou-se até o
ouvido de Pancho e cochichou
— Por favor, pare aqui e deixe-me sair!
Ele olhou-a de relance, cheio de suspeita, e voltou a olhar para a
estrada, xingando sem parar. Pancho girou a direção, fazendo com
que o caminhão se jogasse violentamente para a direita, evitando
atropelar uma criança que tinha saído da casa correndo diretamente
para a estrada. Sorrel caiu em cima de Juan, que nesse momento se
endireitou e levantou o chapéu dos olhos. Tentou ajeitar-se,
empurrando-a para melhor se acomodar.
— O que aconteceu? — perguntou.
Pancho respondeu-lhe em espanhol e culpou Sorrel pelo acidente.
O caminhão aumentou a velocidade, deixando pedras soltas pelo
caminho, enquanto Ibara ficava para trás.
— Por que você quis fugir? — Juan perguntou a Sorrel em inglês,
evitando assim que Pancho entendesse.
— Estou com fome e sede, e me sinto um pouco enjoada —
replicou Sorrel. Sentada novamente na mesma posição, sentiu-se
infeliz, pois seu plano de fugir num ônibus para Manizales falhara e
tudo por causa de Pancho que, como Jovita, era totalmente devotado
a seu patrão.
— Você pode comer quando chegarmos a Copaya. Na arena tem
um restaurante razoável. Também não tomei café da manhã. Você se
lembra? Estamos fazendo algo mais importante do que comer.
A secura irônica da voz de Juan fez com que ela o olhasse. Acima
do lenço preto e branco que ele usava no pescoço, por dentro do
colarinho de sua camisa de seda vermelha, seu queixo estava tenso e
sua boca sinistra. Abaixo de sua cicatriz, podiam-se notar marcas
vermelhas. Teriam sido feitas por seus dedos? Piscando, tentando
parar de pensar, Sorrel olhou pela janela outra vez. Nem imaginava
que havia batido no rosto de Juan tão violentamente. Sentiu-se
dominada pelo remorso e cada vez mais com fome.
Como poderia ter feito aquilo? Logo ela, que abominava qualquer
ato de violência? E como poderia assistir a uma tourada? Mais uma
vez ela sentiu-se nauseada, só de imaginar o sangue salpicando a
areia branca, o sangue do homem sentado ali a seu lado.
— Não vou à arena — disse ela determinada. — Eu não quero ver
a tourada!
— Então por que você está assim tão deprimida?
— Pensei que talvez Pancho pudesse me dar uma carona até
Copaya onde poderia pegar um avião para Medellín. Não sabia que
você também viria. Pensei que houvesse desistido de tourear
profissionalmente depois do acidente!
— E tinha mesmo, mas ando irritado ultimamente com alguns
comentários, segundo os quais fiquei com medo depois do acidente,
por isso, quando o agenciador das touradas desta cidade me
procurou, aceitei participar da abertura do festival de Copaya. É uma
grande oportunidade de provar a todos que não sou covarde! — disse
Juan amargamente, com um cínico sorriso. — A audiência das
corridas de Copaya tem diminuído de ano para ano; não há
sensações e dramas suficientes para essa audiência faminta. Mas
hoje vai ser diferente, uma multidão vem assistir à volta do El
Valiente, esperançosa de ver acontecer tudo o que se passou na
minha última tourada em Manizales há uns dois anos atrás.
— Ah, não — disse Sorrel emocionada. Pancho até parou de
assobiar para olhá-la e ela entendeu a pergunta dele a Juan sobre o
que estava acontecendo. Juan respondeu, tentando acalmá-lo e
Pancho começou a assobiar novamente.
—
Você
tem
mesmo
que
lutar?
—
perguntou
Sorrel
impulsivamente, esquecendo-se de seus próprios problemas e
fazendo Renalda virar-se e levantar a sobrancelha para ela.
— Você tem certeza de que não está preocupada?
— Sim, estou.
— Pelo touro, lógico.
— Não, por você. Você... você pode levar outra chifrada e ficar
seriamente ferido, como aconteceu da outra vez.
Ele endireitou-se e olhou para fora da janela.
— E daí? — disse com indiferença. — Faz parte do jogo. O touro
tem que ganhar algumas vezes!
— Mas... mas Jovita disse que você quase morreu! Oh, por favor,
Juan, não vá para a arena hoje! — pediu Sorrel impulsivamente.
— Tenho que ir. Já está tudo arranjado — respondeu friamente.
— Mas você pode até morrer! — persistiu.
— E até parece que você se importaria — disse Juan sorrindo e
virando para olhar Sorrel jocosamente. — Se eu morrer pelo menos o
mundo terá um toureiro amenos.
— Como você se sujeita a isso? Como você se deixa usar num
golpe publicitário, para atrair mais público para a tourada? Como
você pode deixar o touro chifrar você outra vez deliberadamente?
Como pode fazer isso consigo mesmo? – Ela começou a soluçar
incompreensivelmente, pois não podia admitir a idéia de Juan ser
ferido ou de ele morrer.
Banhada em lágrimas, pôde vê-lo olhando para ela surpreso e,
uma vez mais, Sorrel percebeu como as atitudes deles eram
diferentes. Juan então, com uma das mãos, limpou gentilmente uma
lágrima sua.
— Guarde suas lágrimas para o touro, esta tarde — disse ele
suavemente. Abaixou a mão e virou-se bruscamente para olhar a
paisagem outra vez. — Por que você quer ir para Medellín?
— Para dizer a Mônica que falhei. Que não pude persuadi-lo a
voltar comigo para dizer a Ramón que não houve nada entre vocês
dois, que Mônica não teve caso nenhum. Prometi que voltava hoje.
— E depois de fazer tudo isso, para onde você vai? — perguntou
Renalda, sem desviar os olhos da janela. — De volta para a
Inglaterra?
— Talvez. Não sei ao certo.
Sorrel encostou-se melhor no banco e limpou as lágrimas que
banhavam seu rosto, tentando descobrir por que chorava tanto por
ele, por que se preocupava tanto com as coisas feitas e ditas por ele,
por que Juan afetava suas emoções de uma maneira tão forte, como
nunca ninguém havia conseguido, por que só perto de Juan Sorrel
fazia e dizia coisas completamente alheias a sua natureza.
Estaria apaixonada por Juan? Sorrel fechou os olhos e recostou-se
no banco. Não era impossível. Não, não poderia estar. Não poderia
deixar um estranho de cultura e vida tão diferentes das suas tomar-
se necessário para ela. Abriu os olhos. O sol forte que iluminava a
estrada machucou seus olhos. Olhando em redor, Sorrel percebeu
que o cenário estava mudando, à medida que faziam curvas e mais
curvas, até chegarem a um vale onde havia um extenso rio. O campo
ali era mais viçoso e cheio de árvores. As casas tinham varandas
enfeitadas com trepadeiras floridas e as videiras pareciam cintilar. A
estrada precária transformou-se num tapete, dividindo-se em duas
vias por uma fileira de grandes palmeiras. Um sinal de desvio fez com
que Pancho entrasse por uma ruazinha estreita, pavimentada por
grandes pedras redondas, entre altas paredes brancas.
Mesmo com o barulho do motor ligado, Sorrel podia ouvir
distintamente uma música, as batidas ritmadas dos tambores e o
som selvagem das flautas indígenas.
Ao atravessar outra rua também estreita, viu um grupo de
pessoas fantasiadas com suas máscaras, rodando em círculos numa
dança, que ia aos poucos indo até a uma rua mais larga. Em outra
ruazinha, passava uma procissão da Virgem Maria, enfeitada com
flores brancas e vermelhas.
Ao chegarem ao próximo cruzamento, Pancho tomou a pista
direita, cheia de casinhas com varandas, e por onde passava um
grupo de crianças, com seus olhinhos vivos e negros, fazendo sua
própria festa. Uma imensa igreja surgiu no fim da pista e ao lado
viam-se as altas paredes do estádio repletas de cartazes dos
toureiros.
Pancho dirigiu-se a um imenso portão e estacionou ao lado de um
grande caminhão de transportar gado, onde se lia: "Rancho Renalda".
Juan abriu a porta e saiu. Quase imediatamente foi rodeado pelos
homens que haviam trazido os touros. Pancho saiu do caminhão indo
se juntar ao animado grupo.
Poderia fugir agora, pensou Sorrel; partir silenciosamente
enquanto estavam ocupados. Pegou a bolsa, escorregou pelo banco
até a porta e estava pronta para pular, quando viu Juan de mãos na
cintura, bloqueando o caminho.
— O restaurante é logo ali — disse. — É um pouco tarde para o
café da manhã, mas talvez você não se importe de almoçar agora.
Não gostaria de vê-Ia desmaiar por falta de comida.
Ela desceu, Juan fechou a porta do caminhão e disse alguma coisa
para Pancho. Então, com uma mão segurando o braço de Sorrel,
atravessaram o pátio ensolarado e entraram no restaurante.
As toalhas das mesas eram de xadrez vermelho e branco; estavam
alinhadas perto das paredes e as cadeiras eram de espaldar longo e
de madeira escura.
Já havia bastante gente almoçando, rindo e conversando, e alguns
dos homens que lá estavam, saudaram Juan ruidosamente, ao
mesmo tempo que olhavam Sorrel, sem poderem controlar sua
curiosidade.
Sentaram-se numa mesa de canto. A garçonete aproximou-se e
obviamente
conheceu
Juan.
Começou,
então,
a
conversar
amigavelmente, enquanto anotava os pedidos: dois churrascos,
batatas-doces e verduras. Trouxe também duas xícaras de café e foi
até a cozinha buscar a comida. Sentindo a tensão crescer dentro
dela, agora que estavam sozinhos à mesa, Sorrel bebericou o café,
forte e quente.
— Por que você bateu na minha cara? — perguntou Juan
subitamente em inglês, deixando-a sem resposta por uns minutos.
— Não gostei do jeito que você falou sobre meu interesse por você
— respondeu sem fitá-lo.
— Você se ofende com a verdade?
— Não era a verdade! — contestou fracamente.
— Então você é uma excelente artista. Você realmente me
convenceu que estava sendo honesta...
— Eu não estava representando — disse Sorrel inflamada,
pigarreando e tapando a boca, ao perceber que tinha acabado de se
contradizer. Os lábios de Juan esboçaram um sorriso sarcástico. —
Foi você quem me levou a falar tudo isso — disse ela furiosa.
— Ah, sim, então sou o vilão de coração negro que a forçou a cair
em meus braços. Mas lembre-se que nunca poderia forçá-la a dizer
tudo o que você disse se não houvesse uma brasa dentro de você,
pronta para virar chama. — Passando os dedos pelos cabelos, Juan
parecia tomado de uma forte emoção. Seu rosto contraiu-se e ele
disse: — Pelo amor de Deus, você é cruel, sabia? Se você não tivesse
me batido no rosto e fugido, teríamos nos amado naquela hora,
naquele mesmo quarto!
— Não, não senhor, nós não teríamos não — protestou,
enrubescendo com a sinceridade dele.
— Sim, teríamos. — Suas palavras soaram como uma brisa
selvagem. — Desde a primeira vez que nos encontramos, nos
sentimos atraídos um pelo outro, mas você simplesmente não quer
admitir isso. Você não se deixa levar por seus instintos naturais, pois,
quando você pára para pensar, chega à conclusão de que não sou o
homem ideal. Não faço as coisas como você gostaria que eu fizesse,
por isso me chama de imoral. Faço touradas para sobreviver e a isso
você chama degradação. Confesso-lhe que você me agrada, então o
que você faz? Me dá um tapa na cara. — Ele encarou-a tão
insolentemente que ela tremeu inteira. — Não deveria ter-lhe dado
uma chance hoje de manhã. Deveria ter calado a boca e aceitado o
que me estava sendo oferecido, mesmo que o oferecimento não fosse
"por amor". — Juan imitou-a, falando e gesticulando tal como ela
fizera naquela manhã.
— Nada lhe foi oferecido — protestou Sorrel violentamente, e
magoada com o jeito dele falar.
— Então continue falando, mas não sou obrigado a acreditar em
você — disse Renalda sorrindo.
A garçonete trouxe a comida pedida. Colocou os pratos diante dos
dois e saiu. Juan começou a comer imediatamente. Sorrel ainda
abobada com a fome de Juan, observava-o com um pouco de inveja.
Aparentemente, ter perdido o controle em nada afetara seu apetite.
Decidiu-se então a comer, sabendo que, se não o fizesse, se
arrependeria mais tarde. Esta seria a última vez que estariam juntos,
pois de tarde, enquanto ele estivesse toureando sob o sol escaldante,
ela estaria a caminho de Medellín. Não havia nada que ele pudesse
fazer para impedi-la, pois tinha que deixá-la sozinha e ir para a
arena.
O silêncio que se fez enquanto comiam tornava cada minuto mais
tenso. Para Sorrel, a comida não tinha gosto de nada. Ela se forçou a
comer, ao pensar na tourada e em tudo o que poderia acontecer
durante a luta, principalmente com o homem que estava sentado à
sua frente. Ele poderia morrer, e como poderia ela separar-se dele
com raiva? Como poderia deixar que este relacionamento curto mas
tão profundo terminasse com palavras amargas?
Incapaz de terminar a comida, cruzou seus talheres, bebeu mais
café, e fitou-o, fixando seu olhar na cicatriz. Será que Juan poderia
transpor tantas diferenças entre os dois?
— Juan, eu... eu sinto muito não poder ser o que você gostaria
que eu fosse — disse Sorrel, pegando na mão dele.
Ele terminou de comer, limpou sua boca num guardanapo de papel
e olhou-a. A fria hostilidade de seu olhar chocou Sorrel.
— Como você sabe o que eu quero que você seja? Você nunca me
deixou lhe dizer. Você passou quase o tempo todo que estivemos
juntos chegando a conclusões erradas e inverídicas, julgando-me. Por
quê? O que você está tentando fazer? Punir-se por alguma coisa
errada, que outro homem lhe fez?
— Não, não estou tentando nada. — Sorrel foi veemente na
negação. Esquecendo por completo seu desejo de separar-se dele
amistosamente, levantou-se, pegou sua maleta e parou ao lado da
mesa, bem próximo dele.
— Onde pensa que vai!?
— Para o aeroporto! — Sorrel respondeu alto e agressivamente. —
Eu vou o mais longe possível de você!
O burburinho das outras mesas parou; ela percebeu as cabeças
virando em direção a eles, bem como os olhares curiosos.
Disfarçadamente olhou em direção à porta, pronta para correr,
mas Juan segurou-a fortemente, forçando-a a olhá-lo de frente.
Apesar da raiva saltar dos olhos dele, Sorrel ficou furiosa por ele ter
ousado segurá-la daquele jeito na frente de todos, sobretudo
daqueles homens ávidos de curiosidade. Tentou como pôde
desvencilhar-se dele.
— Como você ousa encostar em mim? — protestou ela com o
rosto ardendo, como se estivesse pegando fogo.
— Escute, — murmurou ele por entre os dentes — foi você quem
resolveu brincar pesado lá no rancho e vai ser assim de agora em
diante, até eu conseguir domá-la, tourinho. Você pode esquecer
todas as promessas que fez para Mônica. Você vai ficar aqui e assistir
à corrida esta tarde.
— Não, você não pode me obrigar — disse Sorrel, balançando a
cabeça.
— Posso sim, e você vai ficar assistindo do começo até o fim,
sentada no camarote do presidente, com o promotor Diego Cortez e
sua esposa. Estará lá quietinha quando eu fizer minha saudação
depois de matar o touro. Você esperará por mim até eu terminar de
fazer tudo o que tenho de fazer nesta tarde, depois iremos até a
igreja, ao lado da arena, e o padre nos casará. Não tinha planejado
fazer o pedido assim, cheio de gente em volta, mas você me forçou,
com seu comportamento estúpido e teimoso. Agora você já sabe o
que quero que você seja. Eu a quero como minha mulher no melhor e
no pior, na saúde e na doença. Deus me ajude que você não ache
nada imoral neste pedido! — Ele olhou, já meio impaciente com a
situação, para alguns dos homens obviamente seus conhecidos e,
dando amigáveis tapinhas nos ombros, ia pedindo:
— Vamos, abram caminho, precisamos sair daqui.
Ainda segurando o braço de Sorrel, saíram do restaurante. Juan
fazia com que ela se sentisse como um animalzinho de estimação
manipulado pelo dono. Ela deixou-se levar, ainda sem poder acreditar
no pedido de casamento feito por Juan.
Dirigiram-se então para uma porta do estádio que dava para uma
área coberta, embaixo das arquibancadas. Por uma passagem escura
e estreita chegaram até outra porta. Juan bateu na porta de mãos
fechadas e violentamente, e o barulho acordou Sorrel do estado
quase de choque em que se encontrava, após o pedido de Juan. Mais
uma vez tentou desvencilhar-se dele, sem conseguir.
— Você é louco. Só pode ser louco em querer casar com uma
mulher que conhece há apenas três dias!
— Louco não, apenas capaz de tomar decisões rapidamente
quando necessário, isso porque tenho certeza do que quero e tudo
faço para conseguir — respondeu Renalda sarcasticamente. — Se
você quiser posso dizer que minhas experiências com mulheres me
ajudam muito!
Ouvindo uma voz responder do outro lado da porta, girou a
maçaneta, abriu a porta e empurrou Sorrel com violência para dentro
de um espaçoso escritório onde havia duas pessoas sentadas: um
homem descansava preguiçosamente numa cadeira atrás da
escrivaninha e uma mulher estava sentada no sofá.
— Por Dios, onde você estava? — O homem levantou-se e se
aproximou de Juan. Tinha estatura média e ombros largos. Seus
cabelos eram espetados e escuros, as têmporas já grisalhas e os seus
olhos miúdos, escuros e vivos pareciam saltar de suas pálpebras
enrugadas. Usava um temo cinza de verão e uma bonita gravata em
tom escuro. Era o próprio homem de negócios colombiano. Para
completar, segurava com os dentes um charuto grosso e comprido. —
Será que você ainda não percebeu que o desfile dos touros começa
dentro de dez minutos e você ainda nem vestiu sua roupa de
matador?
— Vá com Deus — murmurou Eugênia, abraçando-o e virando-se
para Sorrel logo em seguida e fazendo-a entender que ela deveria ir
para perto de Juan.
-Vá, dê-lhe um abraço e o abençoe. Você não percebe que nesta
tarde ele estará pondo sua vida em jogo?
Não havia jeito de Sorrel dizer "não posso" ou "não quero",
mesmo porque não queria dizer nada disso. Naquele momento em
que ia separar-se de Juan, sua única vontade era de agarrá-lo e
implorar-lhe para não entrar naquela arena. Aproximando-se dele,
colocou suas mãos nos ombros de Juan e, abraçando-o pelo pescoço,
puxou delicadamente sua cabeça para baixo em sua direção.
— Tenha cuidado, por favor — disse ela delicadamente e, tocando
seus lábios nos dele, pretendeu dar-lhe um beijo rápido. Mas os
braços de Juan envolveram-na num forte abraço e, mesmo naquele
momento breve, ele conseguiu mais uma vez mostrar seu forte
desejo sexual.
— Então você vai se casar com meu sobrinho? E só ontem ouvi
falar de você! — disse Eugênia, recostando-se no sofá.
— Diego havia saído atrás de Juan, apressando-o, e as duas
mulheres ficaram sozinhas.
— Seu sobrinho? — exclamou Sorrel.
— Sí. Você não sabia? — disse Eugênia levantando as
sobrancelhas. — Sou a irmã caçula do pai de Juan, Rodrigo Renalda.
Venha, sente-se aqui e conte-me quando e como vocês se
conheceram. Acho que essa decisão repentina de Juan de casar-se,
romântica e excitante, é muito coerente com a tradição dos toureiros.
O casamento, para um toureiro, acontece geralmente depois de uma
rápida decisão, e muitas vezes se realiza num quarto de hospital,
antes de ele morrer. — Eugênia percebeu que Sorrel estremeceu com
o que ela acabara de dizer, por isso segurou-a pelo braço, tentando
reconfortá-la. — Perdoe-me, não deveria ter falado o que falei.
Se Sorrel contasse tudo para Eugênia, talvez ela compreendesse a
impossibilidade desse casamento se realizar, ajudando-a a ir para
Medellín.
— Você disse que Juan falou de mim, quando foi isso?
— Ele veio a Copaya ontem à noite e pediu-nos para que
providenciássemos os papéis para um rápido casamento, logo depois
da tourada. Mas eu já tinha ouvido falar em você antes de Juan me
contar. Foi Inês quem me contou primeiro. Ela me ligou, quando
estava indo para Bogotá. Cheia de mistérios, como é normal, Inês me
disse como havia mandado a mensagem para Juan, dizendo que uma
maravilhosa princesa de cabelos vermelhos queria vê-lo. Ela ficou
muito intrigada com sua chegada, justamente quando estava de
partida. Tinha certeza de que você era amante de Juan e que ele a
convidara para morar lá. É verdade?
— Não. Fui procurá-lo para lhe pedir um favor; para que me
ajudasse a salvar o casamento de Mônica Ángel – disse Sorrel.
Eugênia estava cada vez mais surpresa ao saber como tudo havia
começado.
— E só por isso você foi até o rancho? — perguntou Eugênia. —
Por Dios, como você é impetuosa! Ninguém a alertou contra os
perigos de uma moça só por esses lados? Tanta coisa podia ter
acontecido!
— Bem, nada me aconteceu -prosseguiu Sorrel – pelo menos até
tentar sair do rancho de seu sobrinho e voltar para Medellín.
— E o que aconteceu então?
— Ele não quis me deixar partir. Quando consegui sair, ele foi
atrás de mim e insistiu para que ficasse aquela noite no rancho.
— Ainda bem. Estou contente em ouvir tudo isso. Ele agiu certo.
— Certo! — exclamou Sorrel. — Você acha certo sumir com minha
maleta e me trancar no quarto?
Uma expressão diferente tomou conta daqueles olhos castanhos
que observavam Sorrel.
— Ele estava apenas pensando em sua segurança — disse
Eugênia.
— E nessa manhã ele... ele me beijou e me abraçou de uma
maneira muito liberal
— completou Sorrel.
— Mas é lógico. Mesmo usando esta saia horrível e esta blusinha
de algodão, você está adoravelmente exótica, como se fosse uma das
nossas orquídeas vermelhas e Juan aprecia tudo que é exótico —
disse Eugênia muito compenetrada. — Você não gostou das carícias
dele?
— Eu... eu... bem, eu gostei — admitiu Sorrel, escondendo seu
rosto envergonhada. — Mas está tudo errado. Nunca vou poder ser o
que ele quer que eu seja. Nós quase não nos conhecemos.
— Muitas vezes o conhecimento entre duas pessoas acontece
depois do casamento, não antes — replicou Eugênia.
— Mas nós somos praticamente o oposto um do outro. Somos de
culturas diferentes e tomamos atitudes diferentes diante de uma
mesma coisa.
— E daí? Você acha isso pouco comum? Posso lhe afirmar que não
é. Diariamente se casam pessoas diferentes entre si. As diferenças
tomam o casamento interessante e rico e podem ser resolvidas com o
amor! — Eugênia levantou-se. — Venha, está na hora de irmos para
o camarote a fim de assistir ao desfile dos toureiros.
— Eu não vou — disse Sorrel teimosamente. — Não consigo ver
uma tourada, não posso, não posso! Eu me sinto mal!
Se ao menos ela pudesse fazer Eugênia acreditar que ela se
sentiria enjoada, talvez a deixasse ficar no escritório e eventualmente
Sorrel tentaria fugir pegando um táxi que a levasse até o aeroporto.
— Mas você tem que estar lá. Juan está contando com sua
presença. Agora venha, chegou a hora de você colocá-lo antes de
suas próprias necessidades.
— Que diferença vai fazer se eu estiver lá ou não?
Naquele momento a porta se abriu e Diego entrou na sala.
— Vocês estão prontas para assistir ao desfile? — disse Diego,
olhando alternadamente para as duas.
— Que tien? O que está acontecendo? — perguntou, ao mesmo
tempo que fechava a porta.
— Ela não quer ir ver a tourada. Disse que se sentirá mal —
informou Eugênia aborrecida.
— Diga a ela, Diego. Diga por que ela tem que estar lá, por que não
pode deixá-lo nessa hora.
— Não tenho intenção de deixá-lo em situação difícil — disse
Sorrel defendendo-se.
— Mas você vai deixá-lo em uma hora de capital importância, se
não for assistir à tourada
— falou Diego. — Eugênia, é melhor você ir para ver se os
convidados já chegaram. – Ele abriu a porta para Eugênia e, logo que
ela se foi, fechou-a novamente, encostando-se na porta. Cruzou os
braços e, fitando Sorrel, disse: — É fácil ver uma tourada, señorita.
Você sabe muito pouco sobre touradas e sobre os homens que delas
participam. Sabe como esse nosso esporte começou?
— Não, não sei — respondeu Sorrel, sentindo que estava sendo
repreendida por um professor austero, por ter negligenciado seus
estudos.
— Tudo começou muitos anos atrás, na luta dos homens pela
comida, que era escassa — continuou lentamente Diego. — Tudo
começou quando os homens primitivos caçavam os touros selvagens
e os matavam no campo para comerem a carne. Então, no século II,
quando os touros já estavam mais domesticados, os cavaleiros
espanhóis costumavam competir com os chefes mouros, caçando os
touros ou matando-os nos campos. O cavaleiro montado a cavalo,
com uma lança na mão, avançava para matar os touros alinhados por
homens pagos para isso. Ah! eu percebo que você começou a se
interessar!
Sorrel tinha deixado de olhar suas mãos, olhando agora para
Diego a fim de prestar atenção no que ele dizia.
— O que o povo costumava fazer como esporte no século II não
tem nada a ver com o século XX — disse ela, rebatendo-o. — É um
espetáculo degradante! Nada mais do que isso.
— Então você acha realmente que somos mais civilizados agora do
que no século ll? Nós nos matamos uns aos outros, hoje em dia.
Usamos até bombas! Não, não acredito que sejamos mais civilizados!
A natureza humana não muda tanto assim e o homem ainda reage
frente aos animais selvagens e gosta de testar a força bruta. No
século XVIII, o homem que expunha sua vida, procurando touros,
sem estar montado a cavalo, começou a ter muita importância. Ele se
tomou o herói da tourada, pondo de lado o cavaleiro. Deixou de ser
uma luta para tomar-se uma apresentação dramática em que a
precisão e o talento artístico dos matadores podiam ser comparados
aos de um artista no palco. — Ele parou e olhou para o relógio. —
Mas não há mais tempo para falar. Tudo o que quero lhe dizer agora
é que, como qualquer outro artista, um matador é muito
temperamental, pois, de qualquer maneira, está lidando diretamente
com a morte. Um movimento em falso, um erro, por menor que seja,
e o touro é vencedor. E foi o que aconteceu na última vez que Juan
toureou. Algo, que não posso lhe dizer o que foi, aconteceu antes de
ele entrar na arena, algo que quebrou sua concentração e o fez
cometer um terrível erro. Por isso, acabou sendo chifrado. Hoje em
dia não quero que ele se aborreça com nada. Se ele olhar para o
camarote e não a ver, ficará pensando onde você está e, distraindo-
se, poderá ser chifrado novamente. Você quer que isso aconteça?
Sorrel balançou sua cabeça negativamente. — Não, não quero que
ele se machuque nunca mais, nunca mais, e também não quero que
toureie nunca mais.
— Talvez isso aconteça, se vocês se casarem — disse Diego.— Seu
pai parou com touradas assim que casou. Mas Juan deve essa luta
não apenas a si mesmo, mas também a seus admiradores, pois só
assim ele poderá, saindo-se vitorioso, livrar-se do estigma de
covarde. Agora venha, querida, tenho certeza que o ajudará a
conseguir o que deseja, assistindo à tourada. Prometo que não será
tão ruim assim. Você pode tapar os olhos quando sentir que é demais
para você.
Sorrel lembrou-se da cicatriz que Juan tinha no rosto, da fotografia
do touro jogando-o no ar e decidiu-se a ir.
— Espere, só vou pentear os cabelos — disse ela, levantando-se e
tentando arrumar sua saia amassada — Logo estarei pronta para ir
com você. Gostaria de estar mais bem vestida, mas isto é tudo que
tenho.
— Você está muito bem — disse Diego galantemente, beijando
seus dedos e sorrindo. — Sabia que você poria Juan em primeiro
lugar, quando entendesse o que estaria sendo arriscado nesta
tourada.
Subiram um lance de uma escada de madeira que os levaria
diretamente da sala ao camarote, todo decorado com flores e
bandeiras. O desfile já começara, ouvia-se o som dos tambores, das
flautas e das cometas dos músicos que precediam os picadores e
bandarilheiros, cuja função era instigar os touros com as picas e
pedaços de paus. Atrás vinham os matadores, cada um usando um
costume diferente e ricamente bordado. Vinham saudando a platéia e
acenando com seus chapéus de dois bicos. Quando se aproximaram
do camarote, Sorrel viu claramente os olhos cinza de Juan brilharem
para ela, ao mesmo tempo que a saudava.
Os olhos de Sorrel não o abandonaram nem por um minuto, todo
o tempo que ele desfilou pela arena, com sua capa vermelha nos
ombros, andando daquela maneira que lhe era tão peculiar, gingando
quadris e ombros. Praticamente nem ouviu os nomes dos outros
convidados que estavam no camarote, à medida que Eugênia os
apresentava.
— Agora, você entende por que tinha que estar aqui? — disse
Eugênia, inclinando-se até Sorrel. — Ótimo. Depois de tudo terminar,
eu a levarei até minha casa e acharemos algo mais adequado para
esse casamento do que esta saia e blusa.
— Ela abraçou Sorrel. -Não se preocupe, querida, eu e Diego
faremos as vezes de sua família.
Era como se tivessem lhe tirado o direito de ter sua própria vida,
pensou Sorrel, enquanto se acomodava melhor na cadeira, quando a
multidão começou a gritar excitadamente no momento em que um
touro pequeno e preto entrava na arena, afoito, dando coices no ar e
olhando em volta.
Com uma de suas mãos tapando os olhos para não ver o que os
picadores faziam, imaginava o que poderia ter acontecido antes da
última tourada, que tanto aborrecera Juan.
Estava feliz por Diego Cortez ter arranjado um tempinho para lhe
explicar a importância de sua presença no camarote e por estar lá
quando Juan a olhou. Toda aquela explicação sobre touradas não a
fez gostar mais do esporte mas, pelo menos agora, poderia entender
tudo o que estava acontecendo e apreciar e respeitar mais os homens
que tomavam parte na tourada.
Iniciada a corrida, depois de algum tempo o touro começou a ficar
cada vez mais raivoso. Sorrel arriscou olhar e, mesmo sem querer,
sentiu a tensão se apoderar de seu corpo, tanto que já quase no final
estava sentada na ponta da cadeira, tal qual todos os presentes.
Seus olhos não conseguiam desviar-se da figura pequena e compacta
do terceiro matador que, com graciosos movimentos, convidava o
touro a atacá-lo, saindo de lado somente na última hora, para que os
chifres do animal atingissem o pano vermelho bem junto de seu
corpo. Quanto mais perto, mais a multidão aplaudia.
Gradualmente, o touro foi se cansando. Suas investidas foram
diminuindo e o homem foi se tomando mais e mais confiante. A capa
estava enrolada em seu braço e sua mão protegendo-o. Com a outra
segurava a espada e, vagarosamente, aproximava-se do touro, passo
a passo, chegando cada vez mais perto do animal, agora suado e
exaurido, com a cabeça baixa. Parecia que acabara toda a sua
vitalidade.
A multidão estava muda, todos prendiam a respiração na
expectativa. Sorrel também.
— Oh, por favor, não deixem ele se machucar, não deixem, por
favor — dizia ela seguidamente para si mesma, parecendo não estar
nem um pouco preocupada com o que os outros convidados podiam
pensar dela.
Repentinamente, o touro avançou. Sorrel levantou-se de imediato,
como toda a multidão, convencida de que iria ver o corpo de Juan ser
jogado aos ares pelos chifres do touro e cair ferido na areia. Mas
surpreendentemente ele lá estava, de pé e virando-se para melhor
encarar o touro, enquanto o provocava novamente. A multidão,
mostrando sua aprovação, acenava milhares de lenços brancos.
Logo aconteceu acena final e Sorrel cobriu os olhos. Afundou em
seu lugar, sentindo náusea e uma tensão fora do normal.
Sabia que todos no camarote estavam de pé, aplaudindo, por isso
também se levantou, justamente na hora que Juan se aproximava do
camarote da maneira tradicional.
— Olha aqui — Eugênia colocou nas mãos dela um buquê de
orquídeas vermelhas. — Jogue para ele. Isto quer dizer que você o
quer e a multidão vai delirar.
Inclinando-se para a frente, Sorrel jogou as orquídeas em direção
a Juan. Ele pegou o maço de flores, beijou-o e atirou-o de volta a ela.
A multidão gritava aprovando. Choveram, então, ramalhetes de
flores, sinal de que os espectadores aprovaram totalmente a sua
atuação na arena naquela tarde.
O camarote foi invadido por vários fãs, que tinham ido
cumprimentar Diego por ter apresentado uma tourada tão boa. Na
bagunça toda, Sorrel percebeu que Eugênia havia novamente se
esquecido dela. Agora seria sua única chance de fugir. Rapidamente
desceu o lance de escada, atravessou o corredor até chegar ao
escritório de Diego. Pegou sua maleta e, em poucos segundos, já
estava do lado de fora da arena, misturada a um grupo de
entusiasmados fãs. E lá se foi com eles, pela rua estreita, pensando
que logo chegaria ao centro da cidade, onde seria fácil achar um táxi.
Fazia muito calor e toda aquela caminhada não foi fácil. Logo que
chegou à Plaza Independência com sua estátua de Bolívar, o
Libertador, entre palmeiras e flores multicoloridas, começou a se
sentir cansada. Um velhinho varria os degraus da catedral e ela lhe
perguntou onde poderia achar um táxi.
Por sorte, o homem era gentil e atencioso e levou-a até a rua onde
os táxis faziam ponto. Mas o motorista, que por sinal era gorducho e
bigodudo, não era tão gentil assim e parecia determinado a pegar o
caminho mais longo até o aeroporto. Tensa, por pensar que talvez
naquele momento podia estar saindo o avião para Medellín, Sorrel
sentou-se na beira do banco. Se perdesse o vôo, teria que esperar
horas até o próximo. No banco de trás, o calor era insuportável.
Sentia-se mal e abriu a janela. De nada adiantava. A estrada para
o aeroporto beirava um imenso rio com três ramificações. De longe já
avistava a torre de comando até que finalmente o táxi chegou ao
terminal onde ela embarcaria.
Pegou a maleta e abriu-a para apanhar a carteira e pagar o
motorista. Procurou-a mas não conseguia encontrá-la. Revirou toda a
mala, mas em vão. A carteira definitivamente desaparecera.
Chocada com a descoberta, encostou no banco enquanto o carro
diminuía a velocidade, até parar por completo na entrada do
aeroporto. Será que quando pegara o pente para se pentear havia
deixado cair a carteira, lá no escritório de Diego? Não, ela teria
percebido, e Diego também. Será que fora roubada? Mas quando?
Tinha levado a bolsa para o camarote, deixando no escritório só a
maleta: não havia largado um minuto sequer da bolsa. Ninguém
poderia ter mexido nela sem Sorrel perceber.
Talvez estivesse caída na maleta. Puxando-a para perto mais uma
vez remexeu de novo todas as roupas com a esperança de achar a
carteira; nesse meio-tempo, percebera que o chofer tinha se virado
para trás e a observava. Enquanto recolocava seus pertences na
mala, foi perdendo as esperanças, pois se lembrou de que, na pressa
de sair do rancho, enfiara tudo às pressas dentro da mala e
provavelmente não colocara a carteira dentro.
Sem dinheiro, não poderia ir para lugar nenhum. Teria que pedir
ao motorista que a levasse de volta ao estádio na esperança de que
Juan ainda estivesse lá, e o pagasse. Voltar significaria render-se a
Juan, ela sabia disso.
— Señorita, chegamos no aeroporto. Pode pagar, por favor!
— Gostaria, mas perdi minha carteira com todo o meu dinheiro —
explicou ela. Calou-se, porém, assustada, quando o motorista
começou a xingar. — Mas é verdade! — gritou desesperadamente
quando o viu abrir a porta com violência dizendo que iria chamar a
polícia.
— Não, por favor, não chame a polícia. Me leve de volta para o
estádio onde se realizam as touradas. Alguém que conheço pagará a
corrida.
— Quem? — perguntou, olhando-a com suspeita.
— Juan Renalda. — O nome não surtiu qualquer efeito no homem.
— El Valiente, o toureiro
— explicou Sorrel.
— Ah! Você o conhece? — disse ele rindo. — Você espera que
acredite em você? — Ele voltou outra vez a xingá-la de mentirosa, de
ladrona e outros nomes bem piores.
Nisto, uma grande limusine preta passou pelo táxi, parando bem à
sua frente. A porta de trás foi aberta e um homem usando uma
camisa e calças pretas saiu. Rapidamente Sorrel precipitou-se e,
colocando a cabeça para fora da janela do carro, gritou: — Juan,
Juan, estou aqui!
Ele estava quase entrando no aeroporto, quando parou e olhou
para trás, e veio na direção dela. Olhou-a seriamente, enquanto abria
a porta para que o motorista saísse.
— Saia — ordenou.
Imediatamente o motorista saiu do carro e, gesticulando
violentamente, começou a explicar o que tinha acontecido. Quando
disse tudo o que queria, seus olhos se arregalaram ao reconhecer
Juan. Segundos depois estava dando tapinhas de amizade nas costas
do toureiro e era todo sorrisos. Juan disse alguma coisa para ele
apontando Sorrel, enfiou a mão no bolso, pegou alguns pesos e
pagou-o.
— Muchas gracias, señor, muchas gracias — falou alegremente o
motorista, guardando o dinheiro no bolso. — Perdão, señorita, foi
tudo um mal-entendido, nada mais.
Entrou no táxi novamente e partiu. Sorrel começou a se
movimentar em direção ao prédio terminal. Mas a mão de Juan a
deteve. Fez com que ela girasse para que pudesse encará-la.
— Não, você não vai — disse ele. — Você volta comigo.
Ela olhou para ele. Seu rosto estava com uma expressão dura e
seus olhos brilhavam com uma estranha violência. Sorrel aquietou-se
temerosa.
— Não, Juan, por favor. Tenho que voltar a Medellín, isto é... se
você pagar a passagem!
— Você já perdeu o avião — disse ele enquanto, apertando o braço
de Sorrel, a encaminhava até a limusine.
— Eu posso aguardar o próximo vôo — insistiu, tentando resistir a
sua força.
— Nós vamos a Medellín e falaremos com os Ángel, depois que nos
casarmos, eu prometo
— replicou Juan, enquanto abria a porta do carro. — Agora entre —
ordenou, pegando a maleta das mãos dela.
— Não! Deixe-me ir, por favor, deixe-me ir embora. Será que você
não percebe que não vai dar certo? Não temos nada em comum.
Somos incompatíveis.
— Cale a boca! — disse ele rudemente. — Fique quieta se não eu
lhe dou a maior surra da sua vida, bem aqui, na frente de todos. E
não pense que é só uma ameaça. Eu juro que cumprirei, se
necessário!
Ela o olhou mais uma vez, desanimada, acreditando piamente
nele. Entrou no carro. Ele entrou logo atrás dela, e logo estavam a
caminho da estrada que os levaria de volta a Copaya.
CAPÍTULO VI
Sentada o mais longe possível de Juan, Sorrel olhou pela janela
para o vasto e plácido rio que refletia o colorido do sol. Na outra
margem, além de árvores, viam-se campos verdes envolvidos em
uma neblina arroxeada. Aqui e ali aparecia uma casinha de fazenda,
com suas paredes brancas e seus telha dos vermelhos.
Aquela paisagem calma fez com que ela se sentisse tranqüila de
novo. Suas emoções estavam tumultuadas e ela não sabia o que
fazer ou o que falar. Como o touro, na última parte da tourada, não
tinha mais forças e seu espírito de luta fraquejava.
— O que você achou da tourada? — a voz de Juan soava
melodiosa e bem perto de seu ouvido. — Você não vai alimentar meu
ego, como uma boa esposa faria? Dizer que eu fui maravilhoso na
arena, esta tarde? Há uns dias atrás você não hesitou em elogiar o
modo como eu esquiava.
— Não sou sua esposa — respondeu em voz baixa, evitando o
olhar zombeteiro de Juan.
— Ainda não, mas vai ser — disse ele arrogantemente.
— Não quero ser sua esposa — protestou. — Não posso me casar
com você. Quase não nos conhecemos.
— Por isso mesmo é que devemos nos casar. Assim poderemos
nos conhecer melhor.
Isso a fez olhar para ele. Com os seus olhos bem abertos, estudou
o rosto dele, mas nada concluiu, a não ser que estava se divertindo
com alguma coisa. — Tem que haver motivo — disse ela suspeitosa.
— Não posso acreditar que você queira se casar comigo, só para me
conhecer melhor.
-Você não me deu outra alternativa — retorquiu ele. -
Tenho que fazer alguma coisa para impedir que você continue
fugindo de mim. Já é a segunda vez que tenho que fazer isso. Acho
que essa minha atitude quer dizer alguma coisa, não é Sorrel. — Sua
voz tornou-se suave e ele inclinou-se, aproximando-se dela.
— Sim, que você não pode aceitar o fato de pelo menos uma vez
não ganhar uma parada
— respondeu ela nervosa. — Você não se conforma que exista uma
mulher que não desmaie de emoção quando você joga esse seu
pretenso charme de toureiro para cima dela. Se eu não tivesse
perdido minha carteira, já estaria em Medellín a esta altura.
-Sim, já pensei nisso — disse ele acariciando o rosto de Sorrel,
ajeitando os cabelos dela para trás e tocando com as pontas dos
dedos sua nuca. — Por isso é que não lhe devolvi isto, logo que achei.
— Você... você achou? — Ela quase não conseguia falar. — Onde
você encontrou minha carteira?
— Você deve ter derrubado quando saiu apressada lá dó quarto do
rancho. Encontrei-a de manhã e guardei-a.
— Então me devolva imediatamente. Ah, garanto que você
planejou tudo! — exclamou Sorrel furiosa, ao mesmo tempo que
afastava a mão dele de seu pescoço, pois a suave pressão dos dedos
em sua nuca estava diminuindo sua raiva. Mas Juan simplesmente
segurou a mão dela e levou-a até seus lábios, depois até seu peito,
para que ela pudesse sentir as batidas de seu coração.
— Quando se trata de um tourinho impetuoso como você, tenho
que tentar adivinhar antecipadamente qual será seu próximo
movimento — explicou, olhando fixamente para a boca de Sorrel. —
Sabia que você iria tentar voltar para Medellín hoje, e tinha que fazer
algo para tardar sua ida. Eugênia e Diego ajudaram-me persuadindo
você a assistir à tourada. Fiquei com sua carteira para que você
demorasse mais e eu pudesse alcançá-la.
— Você é o homem mais sem princípios que já conheci em toda
minha vida — disse Sorrel sem forças.
— Só quando eu quero alguma coisa de verdade; e eu a quero
como esposa, Sorrel.
Ela tentou afastá-lo, pressionando-lhe o peito com suas mãos,
mas era a mesma coisa que empurrar uma parede de pedras e,
quando virou a cabeça para evitar aqueles lábios furtivos, as mãos
dele a seguraram firmemente no rosto, forçando-a a encará-lo.
— Você não pode me forçar a casar com você — disse Sorrel
quase sem respiração. — Posso recusar e dar inúmeras razões para
isso. Posso dizer que você me seqüestrou, forçou-me a casar e dizer
ainda ao padre que não devemos nos casar porque não nos amamos.
— Sempre falando de amor – comentou ele zombeteiramente. —
Você só agora está começando a aprender alguma coisa sobre o
amor, mas vou ensiná-la muito mais.
Seus
lábios
encontraram-se
suavemente,
numa
adorável
promessa de beijo, nada mais do que isso, até que os lábios de Sorrel
se movimentaram sensualmente convidando os de Juan. Ainda assim
os dele tentaram soltar-se, mas ela colocou os braços em volta de
seu pescoço, mostrando-lhe claramente que não queria que a
deixasse. Logo o doce beijo transformou-se em um beijo arrebatador,
excitando-a loucamente. O leve toque das mãos dele em seus seios,
suas bocas sôfregas de amor não significavam mais uma ofensa, mas
um prazer incomparável, nunca antes sentido por Sorrel.
Aturdida pela sensualidade do momento, esqueceu-se do mundo a
sua volta. Tudo o que importava era aquele desejo forte de ficar
junto, cada vez mais junto de Juan, de se tornar parte dele, e ele
parte dela, de se unir a ele numa fusão perfeita.
Os lábios de Juan moveram-se, queimando devastadoramente o
pescoço de Sorrel, e descendo cada vez mais até encontrar o espaço
entre seus seios. Gemendo de prazer, juntou-se o mais que pôde a
Juan, envolvendo-o com seus braços, enquanto ele a deitava
suavemente no banco do carro, acomodando-a em seus joelhos.
Deitada com metade de seu corpo no corpo de Juan, Sorrel ofereceu-
lhe os lábios quentes e sedentos, e ele os possuiu, tomado por um
desejo quase selvagem.
Repentinamente, sua mão não a acariciava mais. Parou de beijá-
la, apertando-a muito forte e fazendo-a sentir as batidas aceleradas
de seu coração.
— Acho que agora você percebeu o que iria acontecer entre nós
aqui no banco do carro. -Sua voz estava rouca e ele controlava seu
desejo.
— Sim — murmurou Sorrel.
— Você tentou evitar tudo isso, fugindo. Poderia tê-la deixado
partir e esquecê-la nos braços de alguma mulher. Mas não é isso que
quero, quero ficar com você, Sorrel, fique comigo, seja minha
esposa, se essa é a única maneira de você ficar.
— Oh sim, sim! — falou baixinho, segurando o rosto dele, até
poder beijá-lo na boca novamente. — Ficarei com você, Juan, e serei
sua esposa.
O carro diminuiu a velocidade até parar em frente a uma casa de
estilo colonial. Ainda meio tonta com o que acontecera no carro,
Sorrel percebeu que estava num espaçoso vestíbulo, iluminado por
dois finíssimos abajures. Eugênia Cortez estava lá e, logo após uma
breve conversa com Juan, levou Sorrel pelo braço, escada acima, até
chegar a um quarto adoravelmente decorado com papel de parede
rosa e todo mobiliado com elegantes móveis brancos e dourados.
— Você e Juan ocuparão este quarto enquanto permanecerem em
Copaya — falou Eugênia, enquanto fechava a porta. — O quarto tem
banheiro privativo e tenho certeza que vocês vão achar tudo muito
silencioso. Descobri algo para você vestir. Por sorte, minha filha
Rosina, quando se casou, não levou todas as suas roupas. Vocês são
mais ou menos da mesma altura, apesar de achá-la um pouco mais
magra. Mas não se preocupe que me encarrego de arrumá-la. Agora
vá e tome seu banho, enquanto vou buscar agulha e linha.
A roupa era feita de crepe creme e o modelo era simples. — Este
foi o primeiro vestido de baile de Rosina – disse Eugênia enquanto
ajudava Sorrel a se vestir. — Fiz para ela quando completou dezoito
anos, mas tenho certeza que você não se importará em usá-lo para
casar. Dizem que usar roupa emprestada no casamento dá sorte, não
é?
— Sim, é verdade — disse Sorrel surpresa, ao se ver refletida no
espelho. O vestido a fazia parecer tão diferente do que ela imaginara!
Parecia alguém que tivesse acabado de sair de um livro de contos de
fadas. O vestido tinha um corpete justo, decote redondo e as mangas
eram compridas, terminando em pontas que iam até a parte da
frente de suas mãos. Da cintura para baixo, a saia caía em amplas
pregas até o chão.
Para Sorrel parecia não haver nenhum contraste entre a cor do
vestido e a cor de sua pele e, como resultado, seus cabelos
contrastavam mais ainda, dando-lhe um aspecto exótico. Seus olhos
pareciam duas jabuticabas, de tão escuros que estavam.
— O que você acha? Gostou? — Eugênia já estava ajustando o
vestido em Sorrel.
— Oh sim. É lindo e é muita gentileza sua me emprestar o vestido!
— disse Sorrel polidamente. — Juan colocou você e seu marido numa
situação muito problemática, quando decidiu se casar tão
apressadamente, com uma mulher que mal acabou de conhecer. E,
mesmo assim, vocês não me parecem surpresos.
— Nada que Juan faça me surpreende — explicou Eugênia
sorrindo. — Somos da mesma família, eu e ele. Desde que ele nasceu
tem feito suas próprias leis e possui uma fria determinação para
obter tudo o que deseja, mesmo que machuque outras pessoas para
conseguir seu intento. Vire um pouco. Eu tenho que apertar um
pouco deste lado. Não dá tempo para fazer um serviço melhor .
Obediente, Sorrel virou-se e, ao mesmo tempo que suspirava
preocupadamente, Eugênia disse:
— Pobre menina! Você está exausta, não está? Você não deveria
ter fugido. Isso só fez com que ele tivesse mais vontade de possuí-la.
Juan adora qualquer tipo de desafio. Talvez se não fosse de uma
família de toureiros, arranjaria qualquer outra profissão que o
desafiasse: alpinista, pára-quedista, corredor de automóvel, enfim,
qualquer coisa que o pusesse em risco, desafiando sua habilidade e
coragem de evitar a morte!
Sorrel entregou-se novamente a seus pensamentos. Sentia-se
exausta, sem forças e muito solitária, pois estava se preparando para
casar com um estranho, num país estranho, longe de seus parentes e
amigos. O que estava fazendo? O que tinha acontecido com sua força
de vontade e seu senso de independência? Talvez se não estivesse
tão cansada, não teria se rendido tão facilmente para Juan, mas ele a
tinha vencido com seu fascínio e suas mentiras, tal qual fizera com o
touro naquela tarde. Não desistiu até vê-la submissa e concordando
ansiosamente em ser sua esposa, pois não tinha forças para lutar,
não contra ele, mas contra seu instinto natural, pois não mais podia
negar que o amava. Eugênia cortou a linha com uma tesourinha e,
dando alguns passos para trás, acabou a arrumação que havia feito
no vestido.
— Aqui está, é o melhor que posso fazer. Agora experimente um
destes pares de sapatos. Devem servir. E, para você usar como véu,
tenho esta antiga mantilha de renda de minha mãe.
A mantilha de renda marfim cheirava a lavanda, pois havia sido
guardada com muito carinho e Sorrel colocou-a com prazer,
emocionada por saber que pertencera à avó de Juan.
— Venha, querida, tente sorrir um pouco — disse Eugênia,
procurando animá-la. — É bom casar. É o início e não o fim do amor.
Agora desceremos e Diego lhe dará um bom copo de vinho, para ver
se some o pálido de seu rosto!
Meia hora mais tarde, Sorrel ajoelhou-se com Juan em frente a um
padre de cabelos negros e moreno, tentando concentrar-se em suas
palavras. Num espanhol suave, abençoava a união dos dois e os
instruía nos deveres do matrimônio.
Apesar de ter sido uma cerimônia cristã, Sorrel sentia um pouco
de barbarismo em tudo o que estava acontecendo, especialmente
quando olhou em seu redor e vislumbrou a luz das velas e o cintilar
dourado da igrejinha barroca. A veste do padre pesada mente
bordada, o cheiro do incenso, a ornamentação toda dourada do altar,
a violência das cenas pintadas nas paredes em vermelho forte, os
vitrais azuis e verdes, tudo pertencia a uma cultura totalmente
oposta à sua. Sentia-se participando de um sonho selvagem do qual
logo iria despertar.
As chamas das velas oscilavam ante seus olhos. Ela cambaleou,
levemente tonta com o calor e o incenso que dominavam o ambiente.
Um braço amparou-a pela cintura. Juan ajudou-a a se levantar e,
levantando o véu que lhe cobria o rosto, beijou-a suavemente nos
lábios. Logo, puxando-lhe o braço, junto ao seu, conduziu-a pelo
corredor da Igreja.
Se ao menos tivesse alguém que ela conhecesse, nos bancos
escuros da igreja, um parente, um amigo, esperando que ela
passasse, e lhe sorrisse! Mas só havia Eugênia e Diego, Pancho e os
homens que tinham tomado parte na tourada daquela tarde, e
algumas pessoas da cidade, fãs de Juan, que souberam do
casamento de seu ídolo. Saindo da igreja, sentiram o ar quente da
noite e foram saudados por gritos altos de felicitações da multidão
que estava à porta.da igreja.
Um banho de arroz e confete caiu sobre eles, e segurando na mão
de Sorrel, Juan correu, puxando-a atrás dele até chegarem à limusine
que os esperava. De volta à casa de Cortez, a festa que tinha sido
programada para o festival de touradas transformou-se numa festa
de casamento. Mas que diferença das festas a que Sorrel estava
acostumada! Antes de tudo, vieram as bebidas e a dança. Quando
chegaram, a festa já havia começado, e imediatamente ela foi
agarrada por um jovem e se viu dançando uma movimentada música
colombiana. Meia hora mais tarde, seu rosto já estava vermelho e
seu cabelo todo despenteado, de tanto ter dançado com picadores,
banderillos e matadores. Procurou então por Juan e o viu recostado
numa das entradas da enorme sala de recepção, conversando com
uma mulher cujo penteado, o longo pescoço e o corpo magro lhe
eram muito familiares: Isabella Cortez.
Parecia um sonho exótico, até que o aparecimento de Isabella lhe
revelou que tudo estava chegando ao fim. Logo acordaria e estaria
em seu quarto, na casa dos Angel. Tudo fora um sonho que
acontecera desde que deixara Ramón Ángel em seu estúdio, naquela
noite de domingo.
Começou a andar em direção a Isabel Ia e Juan, esperançosa de
que desaparecessem no ar à medida que se aproximasse. Mas não
desapareceram. Ao contrário, Juan virou-se e dirigiu-se à porta em
forma de arco com a mão levantada, cumprimentando alguém que
chegara. Isabel Ia franziu os olhos, olhando ao redor, quando viu
Sorrel. Dirigiu-se a ela sorrindo significativamente.
— Ah, srta. Preston — disse ela, tocando de leve nos lábios como
se tivesse cometido um erro, e prosseguiu: — Desculpe-me, por
favor, deveria ter dito sra. Renalda. Nós nos reencontramos numa
situação pouco comum, não é mesmo?
— O que você faz aqui? — perguntou Sorrel.
— Estou visitando o meu cunhado Diego e sua esposa, e
aproveitando para ver o festival. Tenho a impressão de que cheguei
tarde demais. — Isabella franziu as sobrancelhas novamente,
parecendo muito ansiosa. — Passei a maior parte da tarde com
Mônica e acabei perdendo o primeiro vôo em Medellín. Só estou
pensando o que Mônica achará desse seu casamento com Juan. —
Isabella olhou ao redor para ter certeza de que ninguém a estava
ouvindo. — Ela ainda hoje me disse que estava muito esperançosa de
se reconciliar com Ramón e que descobrira um modo de convencê-lo
de que ela e Juan não eram mais amantes.
— Mas eles nunca foram amantes — disse Sorrel.
— Como é que você tem tanta certeza? Ela lhe disse isso? —
Isabella parecia muito surpresa. E riu quando Sorrel acenou com a
cabeça afirmativamente. — Mas é lógico que disse, pois queria
ganhar sua confiança. Que melhor maneira podia achar para tê-la
como aliada do que lhe confessando que não era uma pessoa má e
que nunca fora infiel a Ramón? — Isabella achegou-se mais a Sorrel e
prosseguiu: — Sei de tudo o que houve entre ela e Juan. Presenciei o
caso desde o início e o vi crescer aos poucos. Ela lhe pediu que viesse
ao rancho para ver Juan?
— Sim... e... não! — De repente, Sorrel não tinha mais certeza de
algo: a idéia de ir ao rancho tinha partido dela mesma ou de Mônica?
Percebeu que os olhos de Isabella começavam a revelar um certo
brilho de sabedoria e continuou: — Foi minha a idéia de pedir ajuda
a ele, e ela concordou!
— Então você caiu mesmo na armadilha que Mônica lhe preparou!
Ela queria que você viesse, pois assim Juan saberia que Ramón
descobrira tudo. Mônica precisava fazer algo, como jogar um pouco
de poeira nos olhos de Ramón para que ele não pudesse enxergar a
realidade dos fatos.
— Eu não entendo — murmurou Sorrel. O calor e o excitamento
provocados pela dança estavam passando. Sentia frio e a cabeça
confusa.
Isabella balançou a cabeça com uma expressão muito triste e
disse: — Sinto muito não tê-la visto antes de partir. Se isso tivesse
acontecido, eu a teria prevenido contra sua vinda aqui! Você sabe,
conheço Juan muito bem e sei que ele consegue distorcer tudo para
tirar vantagens. Ele usa as pessoas, iludindo-as para chegar até onde
ele quer. Entretanto, tenho que admitir que nunca pensei que ele
fosse tão longe, usando uma coisa tão séria como o casamento para
iludir uma pessoa tão jovem e inocente como você. Mas pode ser a
única coisa que convença Ramón definitivamente de que o caso entre
ele e Mônica tenha terminado, e também a única maneira de Mônica
conservar o marido e o amante ao mesmo tempo. Isso só contribuiu
para que você continue sendo um inocente instrumento nessa intriga
amorosa dos dois.
Havia chegado a hora de acordar, pensou Sorrel, a hora de
terminar esse sonho que rapidamente estava se transformando num
terrível pesadelo. Mas o sonho não terminara e lá estava ela olhando
Isabel Ia e sentindo o desespero e a humilhação tomarem conta de
si. Isabel Ia sorriu um pouco maldosamente e olhou Sorrel dos pés à
cabeça.
— Não lhe ocorreu perguntar o porquê de um casamento tão
repentino? — perguntou. — Não custou muito para que o
considerável charme de Juan a dopasse, não é? Daqui a uns dois
meses você estará carregando uma criança de Juan, Ramón estará
cada vez mais envolvido com seus problemas profissionais e Mônica
estará andando e esquiando novamente.
E aí então você pode imaginar o que vai acontecer. Oh, querida,
me perdoe por ter que lhe dizer tudo isso. Parece que é minha sina
mostrar às pessoas o que elas parecem não enxergar. Até Ramón,
um profissional competente, parece ter sido dopado pela esposa e por
seu marido. Mas o que você vai fazer?
— Eu... eu... eu ainda não decidi. Tenho que pensar. E agora estou
muito cansada -disse Sorrel, esfregando os olhos. — Acho que vou
dormir. Buenas noches, señora!
Levantando um pouco a saia com as mãos, Sorrel virou-se e
começou a abrir caminho por entre as pessoas que conversavam e
riam animadamente. No vestíbulo avistou Juan, que também a viu.
Ignorando o chamado dele, começou a subir as escadas. Lá em cima,
dirigiu-se diretamente ao quarto onde ela havia trocado de roupa,
antes do casamento. Uma vez no quarto, fechou a porta encostando-
se nela, tentando recuperar a respiração. Seus dedos acharam a
chave, girando-a rapidamente. O quarto estava agora trancado.
Estava tudo escuro, e a luz que vinha dos lampiões do lado de fora
iluminava as vidraças. Seu vestido fazia um leve ruído, enquanto se
dirigia até a janela para fechar as vidraças. Virou-se então, acuada
como um animal, quando ouviu alguém tentar abrir a porta.
— Sorrel! — Era a aguda voz de Juan. — Abra a porta, por favor!
Fitando a porta, ela enxugou as mãos úmidas, enquanto as
palavras de Isabella martelavam em sua cabeça. Tinha que pensar
em tudo o que lhe fora dito, tinha que planejar o que haveria de
fazer.
— Sorrel, sei que você está aí. — A voz de Juan agora estava mais
suave. — Abra a porta, por favor!
Umedecendo os lábios, ela se dirigiu até a porta. Suas mãos
tocaram na chave, mas não chegou a girá-la. — Você está me
escutando, Juan? — perguntou.
— Sim, mas preferiria vê-la — disse ele, tentando abrir a porta. —
Vamos, abra. Que tipo de jogo é esse, agora?
— Juan, tente compreender. Eu... eu estou cansada e gostaria de
dormir.
— Então me deixe entrar para dormir junto com você; eu tenho
esse direito! — Ele ainda parecia calmo. — E você, querida, tem o
direito de dormir comigo também.
— Não, ainda não, mais tarde. Será... será melhor para nós dois
se eu descansar primeiro, por favor.
Não houve resposta. Ela estava tensa, esperando alguma reação
violenta de Juan. Mas nada aconteceu. Ele nem tentou abrir a porta.
Alguns segundos se passaram e, preocupada com o silêncio,
perguntou: — Juan, você está aí?
Colocando seu rosto junto à porta, esperava uma resposta
ansiosamente. Nada. Teria ele ido embora? Meio surpresa com aquela
reação, ou melhor, por nenhuma reação dele, foi afastando-se
lentamente de onde estava. Tentava resistir à tentação de destrancar
a porta e ir atrás dele, para enfrentá-lo naquele exato momento,
acusá-lo de forçá-la ao casamento para evitar que Ramón descobrisse
a verdade de seu romance com Mônica. Sentiu-se confusa e
aborrecida, e a dor de seu desapontamento era tão forte que a
machucava por dentro.
Tirou o vestido, jogou-o no espesso tapete e deitou-se. Os suaves
lençóis acariciavam seu corpo nu. Fechou os olhos. O som de baixo
parecia fazer compasso com as batidas de seu coração, embalando-a
pouco a pouco até dormir.
Pensou que estivesse num avião, atravessando o Atlântico, e que
o sonho fantástico tivesse terminado finalmente. Estava chorando,
com o coração em pedaços, pois não queria deixar Juan e não se
importava que ele a tivesse enganado. Queria estar com ele, sentir
suas mãos tocando-a, fazendo-a sonhar. Até em sonhos podia sentir
o calor do corpo de Juan junto ao seu, suas mãos ásperas envolvendo
seus seios. Sentia os lábios dele encostados em sua nuca, fazendo-a
arder de desejo. Sorrel abriu os olhos. Um raio de luz pálida
penetrava pela fresta da janela levemente entreaberta, e ela podia
ver um telhado vermelho lá fora. Não estava em um avião, mas em
Copaya, na casa dos Cortez. Levou as mãos até os seios e sentiu
outra mão, grande e musculosa. Virou sua cabeça no travesseiro e as
mãos escorregaram de onde estavam. Cobrindo-se com o lençol,
sentou-se e olhou para o homem que estava a seu lado. A luz pálida
do alvorecer iluminou a cicatriz daquele rosto.
Como entrara no quarto? Há quanto tempo estaria na cama com
ela? Curiosa, Sorrel inclinou-se para ele. Será que estava dormindo
ou fingindo? Sorrel tocou suavemente a cicatriz, contornando-a com
as pontas dos dedos. Um brilho então apareceu por entre os densos
cílios. Ele estava acordado, olhando-a. Sorrel tirou sua mão do rosto
de Juan e ficou imóvel. O momento que se seguiu foi excitante. Juan
entrou em ação. Seus braços envolveram Sorrel pelo pescoço,
puxando-a para cima dele.
— Buenos dias, señora Renalda! Estava esperando você acordar.
Espero que tenha dormido bem e que não esteja mais preocupada,
pois chegou a hora do beijo novamente.
— Não, Juan, espere. — Ela tentou afastar-se. — Tem uma coisa
que preciso saber de você.
— Você fala demais, mas sei de um jeito muito bom para calar sua
boca.
Estava apertada contra Juan, em contato com seu corpo nu.
Sentiu então um enorme e incontrolável desejo. A violência com que
ele a beijou a fez esquecer de tudo. Juan virou-a, fazendo-a deitar-se
em cima dele. Seus carinhos aumentaram-lhe o desejo de amá-lo,
amá-lo sem barreiras. E assim ambos se entregaram, perdidamente
apaixonados.
Mais tarde, deitada em silêncio ao lado dele, Sorrel estava
completamente aturdida com sua total entrega, quando o ouviu
murmurar em seu ouvido:
— Agora você é completamente minha, e nós somos um do outro,
não pelo matrimônio, mas principalmente por tudo o que aconteceu
nesta hora. Você pensou realmente que podia evitar que eu a
possuísse trancando simplesmente a porta, sua bobinha?
— Como você conseguiu entrar? — Uma lassidão deliciosa tomava
conta de Sorrel, e ela evitou se mover, querendo ficar naquela
posição o dia todo, se pudesse. Deitada junto dele e sendo por ele
acariciada.
— Pelo banheiro. Há uma porta no corredor que dá direto no
banheiro! — disse, rindo e mexendo com os cabelos dela. — Você
devia estar bem cansada para não ter trancado aquela porta
também. Mas será que você trancou a porta só porque estava
cansada? Houve outro motivo, não houve? Você vai me dizer o que é,
querida?
— Bem que quis dizer, mas você não me deixou falar. Tranquei a
porta porque queria pensar melhor no que alguém me falara sobre
você.
— Alguma coisa de que você não gostou? – perguntou Juan
aborrecido.
— Sim, Juan. Sei por que você resolveu se casar comigo.
— Lógico que você sabe. Já tinha dito por que e agora o
demonstrei. — Ele ria e abraçava Sorrel, fazendo-a sentir novamente
seu corpo junto dela. — Casei-me com você para impedi-Ia de fugir
de mim, para tê-la junto de mim, para mostrar a meus amigos e a
minha família o quanto me orgulho de tê-la como mulher!
— E para jogar fumaça nos olhos de Ramón Angel — disse ela em
voz baixa.
— Como? O que é isso de jogar fumaça nos olhos de Ramón? —
perguntou surpreso.
— Você sabe o que quero dizer — retorquiu Sorrel, sentando-se e
puxando o lençol para cobrir-se. — Será que você não pode parar de
fingir? Você mesmo me disse, ontem, que havia outra razão para
você se casar comigo, que não era apenas para me conhecer melhor,
e eu descobri o que é. Você vai usar nosso casamento como desculpa
para ocultar de Ramón seu romance com Mônica, não é verdade?
Juan encarou-a com uma expressão furiosa.
— Quem lhe disse isso? — Apesar de ele não estar gritando, sua
voz fez Sorrel estremecer.
— IsabelIa Cortez.
— Você a conhece? — perguntou surpreso.
— Lógico. Encontrei-a várias vezes na casa dos Ángel. Ela é amiga
da família. Mas você deve conhecê-la bem, pois o apresentou a
Mônica.
— Sério? — disse ele com indiferença, e virou-se para o lado para
se levantar. — Já tinha até me esquecido – continuou Juan,
alcançando suas roupas, que estavam numa cadeira perto da cama.
Vestiu sua cueca e acrescentou: — Sugiro que você também esqueça.
Vendo-o vestir-se, Sorrel roía as unhas apreensiva.
— Não consigo me esquecer — murmurou. Juan voltou a olhá-la,
sacudiu os ombros outra vez, com indiferença, e com uma camisa
limpa nos braços começou a se afastar da cama.
— Juan, aonde você vai? — perguntou ela. Ele parou e virou-se
para ela. — Vou tomar banho e fazer a barba. Apesar de querer
passar o resto da manhã com você, infelizmente tenho que ir até a
arena ver os touros. E com um luminoso sorriso continuou: — Mas
não se preocupe, querida, teremos nossa lua-de-mel, assim que o
torneio terminar.
— Mas você ainda não respondeu à minha pergunta — disse ela.
— Pensei que tivesse respondido. Pedi-lhe que esquecesse tudo.
Qualquer coisa que tenha acontecido antes do casamento não deve
interessá-la.
— Incluindo seu romance com Mônica Ángel?
— Sim, inclusive isso.
— Mas não é o que você tenha feito no passado o que me
preocupa, mas o que venha a fazer no futuro.
Ele riu, levantando as sobrancelhas. — Agora estamos chegando
ao âmago da questão! Você já está com ciúmes de alguma mulher
que eu possa conhecer e olhar mais de uma vez?
— Balançou a cabeça de um lado para o outro e continuou a rir
depois de abrir a porta do banheiro. — Puxa, Sorrel, nunca pensei
que você pudesse ser tão irracionalmente possessiva. Mas o que você
acabou de dizer não acontecerá, enquanto continuar agindo como
uma boa esposa, fazendo-me sentir querido. — A voz de Juan
suavizou-se e Sorrel sentiu o sangue correr mais forte em seu corpo,
com o olhar dele. — Hoje de manhã você me fez sentir assim
— finalizou ele.
— Pare com isso, pare! — gritou Sorrel. — Pare de me enganar,
fazendo-me acreditar que sou a mulher mais importante do mundo
para você!
— Mas é verdade, você sabe disso, querida!
— Sou importante enquanto permanecer submissa e fizer tudo o
que você quiser, não fazendo nenhuma pergunta sobre suas
atividades, não é? Oh, meu Deus, o que fiz? Não deveria ter feito
amor com você! O que é que eu faço agora? O que é que eu faço?
Repentinamente Sorrel estava aos prantos, as lágrimas rolavam,
quando percebeu que Juan não negava nenhuma de suas acusações e
o que isso podia significar. Nessa manhã aproveitara tudo o que lhe
fora oferecido e, apesar das promessas feitas na igreja perante o
padre, ainda pretendia continuar a enganá-la.
— Bem que você poderia tentar confiar em mim — disse ele
rispidamente. E o tom de sua voz fez com que Sorrel destapasse os
olhos e o fitasse. Ele estava pálido.
— Como é que eu posso? Como é que posso confiar em você, se
desde o início você me enganou? Desde nosso primeiro encontro você
mentiu, dando-me um nome falso. Depois você me ofereceu ajuda,
caso precisasse, e eu acreditei; então, quando vim procurá-lo, você
me virou as costas. Você chegou até a roubar minha carteira...
— Não roubei nada. Eu a achei. — Sua voz era firme e enérgica. —
Ela está aí, em cima da mesa-de-cabeceira, e, além do mais, tentei
explicar por que agi dessa maneira; mas se você não entende, acho
que me enganei com relação a você. — Juan descontrolou-se e,
passando as mãos pelos cabelos, foi ao banheiro. — Não adianta
explicar nada a você! Você se decidiu a acreditar em Isabella Cortez e
não em mim; sendo assim, eu não posso negar nenhuma acusação
de sua parte. Tinha esperança de que nosso casamento pusesse um
ponto final nesse assunto todo sobre Mônica e eu.
— Nesse caso, qualquer mulher que estivesse em meu lugar
serviria para o seu plano, não é? — Sorrel não se controlava mais,
levada pela dor que sentia, pela decepção de acreditar agora que o
que Isabel Ia dissera era verdade.
— Você tem tanta certeza! — gritou ele. Sua voz já estava rouca e
seus olhos pareciam saltar das órbitas. — Fui muito burro mesmo,
por ter escolhido uma cretina de sangue frio como você.
— O olhar lúcido de Juan despedaçou Sorrel. — Agora entendo por
que nenhum homem a possuiu antes de mim.
A porta do banheiro bateu atrás dele, e Sorrel, angustiada a mais
não poder, jogou-se no travesseiro, chorando como nunca havia
chorado. Esmurrava o travesseiro, com raiva de si mesma por não se
ter controlado e por tê-lo acusado de tantas coisas. Como queria que
Juan ainda estivesse deitado ali a seu lado, abraçando-a e
sussurrando em seus ouvidos palavras doces em espanhol! Chorou
durante muito tempo, mas aos poucos foi se acalmando, tentando ver
mais claramente a situação em que se encontrava. Casara-se com
um tipo de homem que sempre procurara evitar: arrogante,
convencido, bruto e que, além do mais, praticava um esporte violento
que lhe rendia milhões de dólares, graças ao qual era adorado por
centenas de admiradoras, além de seus familiares e daqueles com
quem trabalhava; um homem que despertava nela desejos antes
desconhecidos e que admitira ter-se casado com ela para evitar
problemas com uma outra mulher!
Não poderia ficar naquela casa e viver com ele, depois de saber de
tudo isso. Tinha que deixá-lo, e quanto mais rápido, melhor, antes...
antes... Sorrel suspirou demoradamente enquanto se convencia de
outra realidade: ela tinha que deixá-lo antes de aprender a amá-lo
demais.
Lentamente chegou até abeira da cama e levantou-se. Foi até a
mesa-de-cabeceira. Lá estava a carteira. Pegou-a e examinou-a para
ver se faltava alguma coisa. Estava tudo em ordem. O dinheiro que
sacara do banco de Medellín estava intacto.
A idéia de ir ver Mônica em Medellín e contar-lhe tudo o que
acontecera
foi
tomando
conta
de
Sorrel.
Vestiu-se
então
rapidamente, usando a mesma saia e blusa do dia anterior. Tinha que
partir enquanto Juan estivesse na arena. Poderia sair agora, pois
estavam todos dormindo.
Quando já.estava pronta, Sorrel pegou seu diário, arrancou uma
folha onde escreveu um bilhete para Juan: Deixei-o. Não posso ficar
morando com uma pessoa que me enganou. Colocou o bilhete em
cima da mesa-de-cabeceira e, pegando sua maleta, saiu do quarto.
Até chegar à porta de saída não viu ninguém e sentiu-se surpresa por
ter conseguido sair tão facilmente, depois de tentar sem sucesso
tantas vezes. Logo chegou à plaza, pois a distância era pequena.
Pegou um táxi e, depois de verificar que o motorista não era o
mesmo da outra vez, acomodou-se e mandou-o seguir para o
aeroporto.
Logo estavam na estrada que beirava o rio. A água estava límpida
e azul, naquela manhã. Nunca mais veria esse rio novamente, pensou
Sorrel, mas sempre se recordaria de sua plácida beleza e sempre o
associaria a Juan beijando-a e abraçando-a no banco traseiro da
limusine.
Não pôde conter as lágrimas que corriam de seus olhos sem parar.
Com que facilidade se convencera, acreditando em suas estórias!
Como caíra fácil em sua conversa! Desde o primeiro encontro se
apaixonara por Juan e percebia agora que todas as suas tentativas de
fuga tinham sido feitas por medo de que ele não a amasse, pelo
menos como ela queria.
O carro diminuiu a velocidade, pois se aproximavam do aeroporto.
Rapidamente Sorrel enxugou suas lágrimas, pagou o motorista e se
dirigiu ao balcão de atendimento. Foi informada de que haveria vôo
para Medellín dentro de dez minutos e que ainda havia lugares.
Comprou a passagem, atravessou o portão de embarque e subiu as
escadas até o avião, olhando o sol que brilhava maravilhosamente.
Finalmente entrou no avião.
O vôo até Medellín transcorreu sem novidades. Passou o tempo
olhando as nuvens à volta dos picos das montanhas andinas e
procurando várias soluções para resolver seus problemas. Chegou à
conclusão de que nunca poderia ficar e ser esposa de Juan. No
entanto, esta conclusão não lhe dava nenhuma satisfação; pelo
contrário, a aborrecia e a fazia sentir vontade de voltar atrás.
Chegando a Medellín procurou o armário do aeroporto em que
havia deixado sua bagagem. Estava tudo intacto. Será que devia
levar tudo para a casa dos Angel? Não, era melhor deixar como
estava. Restava uma outra decisão: será que devia reservar sua
passagem de volta para a Inglaterra? Ficar pronta para partir? Por
uns instantes ficou indecisa, segurando na aliança que Juan lhe havia
dado na noite anterior. Era, por sinal, outra herança da mãe de Juan
que, como a mantilha, Eugênia lhe emprestara. Dentro havia iniciais
gravadas, uma data e as palavras latinas semper fidelis. Sorrel sorriu
ironicamente, lendo tais palavras. Juan não tinha a menor intenção
de lhe ser fiel, por isso deveria fazer a reserva de sua passagem para
a Inglaterra, concluiu.
Já era quase meio-dia quando achou um táxi, pedindo ao chofer
que a levasse até o endereço dos Ángel.
Quando o táxi se aproximou dos rústicos portões de ferro, eles se
abriram dando passagem, e quando chegou bem perto da casa dos
Ángel, Sorrel sentiu-se apreensiva. Contar tudo o que se passara
para Mônica e tentar chegar à verdade não iria ser fácil. Ficou
surpresa ao ver o Cadillac creme de Ramón estacionado em frente à
casa. Qual seria o motivo de ele ainda estar lá? Desceu do táxi,
pagou o motorista e tocou a campainha. Logo em seguida a porta foi
aberta, não por Manuela como era comum acontecer, mas por Laura.
— Laura, por que você esta em casa ainda? — exclamou.
— Sorrel! Oba! Você voltou, você voltou! — Laura pendurou-se no
pescoço de Sorrel, rindo e chorando ao mesmo tempo, abraçando-a e
beijando-a. — Puxa, por onde você andou? Mamãe estava tão triste,
hoje cedo, por você não ter voltado. Ela não parava de chorar, por
isso tive que ficar com ela. Por fim tive que ligar para papai, para que
ele voltasse para casa. Mas venha rápido, vamos vê-Ia. Os dois estão
no quarto de mamãe.
Mônica ainda estava deitada, descansando a cabeça no
travesseiro, pálida e de olhos fechados. Ramón estava em pé,
olhando o jardim pela janela. Quando viu Sorrel entrar, exclamou:
— Ah! Finalmente você voltou!
— Sorrel! Graças a Deus você voltou! — gritou Mônica, chorando
convulsivamente.
— Renalda veio com você? — perguntou Ramón, depois de ter
olhado para a esposa. — Se ele veio, traga-o imediatamente à minha
presença.
— Mas como é que o senhor sabe... — disse Sorrel, olhando em
direção a Mônica.
— Eu contei tudo a Ramón — disse Mônica, enquanto, com um
lenço, enxugava seus olhos.
— Você achou Juan? O que ele disse? Veio com você? — perguntou
ansiosamente.
— Não, não veio — replicou Sorrel. — Negou-se avir. Achou que
nada adiantaria, por isso resolveu casar comigo.
Os dois ficaram surpresos e falaram juntos:
— Sorrel querida, você tem certeza? — perguntou Mônica.
— Renalda casado. Não posso acreditar, deve ser brincadeira! —
exclamou Ramón.
— Bem, eu tenho certeza de que ele se casou comigo — disse
Sorrel com a voz trêmula, ao mesmo tempo que lhes mostrava a
aliança em sua mão. — Mas acho que o senhor está certo. Isso tudo
realmente é uma brincadeira, mas só descobri ontem, quando Isabel
Ia Cortez me disse por que Juan havia se casado tão de repente
comigo.
Fez isso para que o senhor acreditasse que o romance entre ele e
sua mulher havia terminado.
— Mas Juan e eu nunca tivemos romance algum! – gritou Mônica.
— Eu já lhe disse isso! Nunca, nunca! Oh, meu Deus, é tudo culpa de
Isabel Ia! Desde que o marido morreu, ela tem tentado se interpor
entre você e eu, Ramón.
Sorrel sentou-se na cadeira e esperou. Suas emoções estavam
novamente confusas.
— Mônica, escute-me e responda-me com calma — disse Ramón,
sentado na beirada da cama.
— Você me disse por que se sentiu atraída por Renalda, inicialmente,
e acho que a compreendo e até aceito que meu próprio
comportamento seja o responsável por tudo isso. Será que você
poderia nos dizer o que aconteceu com você quando foi ao rancho
dele?
Mônica soluçou, enxugou os olhos novamente e suspirou agitada.
— Ele não estava lá.
— Então você não o viu? — exclamou Ramón, incrédulo.
— Não, mas havia uma jovem, com mais ou menos vinte e oito
anos, muito bonita e elegantemente vestida. Estava com os dedos
cheios de anéis que devem ter custado milhares de dólares.
Sorrel reconheceu Inês imediatamente.
— Ela se apresentou? — perguntou Sorrel.
— Não. Pensando bem, ela não me disse quem era — disse
Mônica. — Mas... mas eu estava tão desnorteada com sua presença,
que nem me lembrei de lhe perguntar o nome. Era muito agressiva,
perguntou-me quem eu era e riu quando lhe respondi. Disse que Juan
havia lhe falado sobre mim e que havia me ridicularizado. — A voz e
o rosto de Mônica expressavam o mesmo desespero que devia ter
sentido ao ouvir de Inês que o homem pelo qual se apaixonara a
tinha ridicularizado com outra mulher. — Disse-me que eu deveria ir
embora, porque ela estava morando no rancho e não haveria lugar
para nós duas. Imediatamente percebi que ela deveria ser amante de
Juan. Eu... eu fiquei desesperada. E só o que fiz foi correr para o
carro. Até agora posso ouvi-la, rindo de mim. Não sabia o que estava
fazendo, por isso dei a trombada. Mas estava voltando para você,
Ramón. Por favor, acredite nisso. Eu estava voltando para você,
porque percebi que o amava. Amava você e a mais ninguém!
— Fique quieta, querida — disse Ramón, abraçando sua mulher e
acariciando seus cabelos enquanto ela soluçava em seus ombros. —
Eu acredito, eu acredito em você.
— E eu não tentei entrar em contato com Juan por meio de Sorrel
— continuou Mônica, falando sem parar, esforçando-se para
convencê-lo. — lsabella estava mentindo, quando lhe disse isso,
naquele domingo. Ela quer que você se divorcie de mim para que se
case com ela, será que você não percebe? Ela está tentando criar
problemas para mim, de tal modo que eu não possa me defender,
pois ela sabe que não seria fácil nos divorciarmos, já que nos
casamos na igreja. — Suspirando, continuou Mônica: — Mas talvez
você prefira ela a mim! Oh, meu Deus, isso seria verdadeiramente
meu castigo por ousar olhar para Juan!
— Não, não quero lsabella — disse Ramón firmemente. — Eu
quero você e sempre a quis, mas estava começando a desconfiar de
que você não me queria mais. Depois que a nossa criança morreu,
você se desligou. Não quis exigir nada de você, pois o médico me
havia alertado de que, se você engravidasse de novo, poderia morrer.
— Ramón sorriu comovido. — Agora percebo que errei por não lhe
dizer como me sentia.
Mônica sorriu para ele com seus olhos azuis cintilando atrás de
suas lágrimas, enquanto segurava as mãos dele entre as suas. —
Sim, você deveria ter-me dito, me diga sempre o que você sente,
amor, senão como poderei compreendê-lo?
— Mas por que Isabella disse que Juan se casou com Sorrel para
me convencer de que nada havia entre vocês dois? — perguntou
Ramón preocupado. — Você acreditou nela, não é verdade, Sorrel? É
por isso que você está aqui em vez de estar ao lado dele.
Sorrel concordou, incapaz de emitir qualquer som, para não deixar
transparecer o tormento que se apossava de seu coração.
— Como pôde lsabella dizer isso? Como pode ser tão má? Só pode
ter sido por despeito que teve a coragem de dizer uma coisa dessas
para alguém que acabou de casar. Mas por que ela teria tanto
despeito assim? — perguntou Ramón.
— Acho que foi pelo que falei a ela ontem — disse Mônica,
pensativa. — Ela estava aqui comigo, como de costume, falando
sobre o que tinha acontecido, e de repente eu não pude mais
agüentar tanto cinismo de sua parte. Então lhe disse algumas
mentiras. Disse que você e eu, Ramón, nos havíamos reconciliado, e
que só estávamos esperando Sorrel voltar do rancho de Juan, com a
notícia de que ele viria aqui, para negar que nós tínhamos tido um
caso. Percebi que ela ficou meio sem jeito. Partiu quase que
imediatamente, dizendo que ia pegar um avião para Copaya, onde
iria visitar seu cunhado e a esposa. — Mônica inclinou-se um pouco,
seu rosto iluminado pela descoberta de tal comportamento. — Já sei!
— exclamou. — Vocês já descobriram? Quando ela chegou lá e viu a
festa do casamento, percebeu que Juan havia desmentido tudo o que
ela havia dito dele e, por ele ter estragado seu plano, resolveu
destruir aquele casamento antes mesmo que começasse. Oh, Sorrel,
você não acredita que Juan tenha se casado com você só por essa
razão, não é?
— É muito difícil não acreditar, pois ele me apressou a chegar a
essa conclusão.
Fez-se um breve silêncio. Sorrel percebeu que estava sendo
observada pelos dois, que esperavam que ela continuasse. Mas ela
não tinha nada mais a dizer. Estava amortecida pela tristeza, seu
orgulho ferido com todas aquelas coisas rudes que Juan lhe dissera
nessa manhã, antes de fechar a porta do banheiro.
Ramón limpou a garganta, como se estivesse aprontando um
discurso, e disse: — Sorrel, vejo agora que, se não a tivesse
despedido, você não estaria nessa terrível situação em que se
encontra. Por isso lhe peço desculpas. Eu estava muito irritado,
naquela noite. Isabella vem me predispondo contra Mônica já faz
algum tempo. Tentei não me deixar influenciar por ela, mas, de
alguma maneira, o que aconteceu sábado e domingo aguçou a minha
suspeita e eu fiquei sem saber que rumo tomar. — Ele pensou um
pouco, franziu as sobrancelhas e continuou:
— Gostaria que voltasse para nossa casa e ajudasse Mônica a andar
novamente.
— Por favor, aceite — implorou Mônica.
Sorrel fitou suas mãos. Voltar a trabalhar novamente foi a única
alternativa em que não havia pensado, no caminho de volta para
Medellín, pois nem imaginava que Ramón e Mônica estivessem
reconciliados e muito menos que tudo não passava de uma grande
mentira de Isabella.
Sobre o romance entre Mônica e Juan, agora chegara a uma
conclusão, ao observá-la ao lado de Ramón, e tentando sorrir disse:
— Volto para cá, pelo menos por alguns dias, mas antes de tudo
tenho que ir apanhar minha bagagem no aeroporto.
— Bueno — sorriu Ramón, enquanto se levantava. Sorrel percebeu
que fora a primeira vez que vira Ramón sorrir. E que diferença fazia!
— Eu a levarei até o aeroporto! — disse ele.
CAPÍTULO VII
O sol salpicava de luz o azul-turquesa da piscina. Era a hora mais
quente do dia, cerca de duas horas, e Sorrel estava contente por
poder se abrigar na sombra gostosa de um guarda-sol de listras
verdes e azuis. Sentiu-se bem quando se instalou numa cadeira de
armar e bebeu um refrigerante bem gelado. Ela e Mônica estavam
descansando depois de uma série de exercícios terapêuticos dentro
d'água.
— Bem, Sorrel, qual é a sua opinião? Não estou melhor? — Mônica
estava alegre.
— Você está muito melhor — concordou Sorrel. Ela realmente
estava surpresa com o progresso feito por Mônica desde que voltara.
Sua atitude em relação à vontade de andar mudara completamente.
Agora parecia ansiosa por consegui-lo, em vez da antiga relutância.
— Tenho certeza de que aquele mal-entendido com Ramón é que
estava me impedindo de andar. Inconscientemente eu devia achar
que, enquanto eu não andasse, ele não me deixaria, por isso não me
esforçava. Você acha que isso é possível?
— Um caso psicossomático, você quer dizer?
— Pode ser — replicou Sorrel, olhando-a.
Era sexta-feira. Mais ou menos umas três horas. Já estava com os
Ángel há uns dois dias. O tempo não passava, ou pelo menos assim
parecia para Sorrel. Talvez se sentisse assim porque os dias que
precederam sua volta tinham sido por demais agitados. Ou talvez
ainda por ela estar constantemente esperando algo acontecer, na
expectativa; esperando a todo instante que a campainha tocasse, ou
o telefone, esperando uma chamada de Juan. Mas por que deveria
procurá-la? Ela havia dito a ele que não a procurasse, e, além de
tudo, ele nunca correria atrás de uma mulher. Sem o perceber,
cochilou. Estava exausta. Era o resultado de duas noites sem dormir.
Atormentada pelo remorso, se virava e revirava na cama, desejando
que não tivesse dito nada do que dissera a Juan sobre o seu
relacionamento com Mônica, desejando que tivesse confiado nele, em
vez de confiar em Isabella.
— Você não para de pensar em Juan, não é Sorrel?
O maiô azul que Mônica usava fazia com que se acentuasse a cor
de seus olhos. Agora que ela havia se reconciliado com Ramón, sua
boca tinha perdido aquele jeito caído e as rugas entre seus olhos
tinham desaparecido quase que por completo. Podia-se ver
claramente como devia ter sido bonita aos dezoito anos, quando vira
Ramón pela primeira vez.
— Como é que você sabe se eu não estou planejando alguns novos
exercícios para você fazer?
— Quando planeja exercícios, você fica no mundo da lua? —
retorquiu Mônica. — Tenho a impressão que não. – Seus lábios se
abriram num sorriso. — Lembre-se, eu também me senti atraída por
ele, por isso posso entender o que você está sentindo.
— Nesse exato momento, eu o odeio — disse Sorrel, com o sangue
subindo-lhe à cabeça.
— Então é quase certo que você se apaixonou por ele —
respondeu Mônica. — Ele conseguiu magoá-la. E se você não o
amasse, isso não teria acontecido.
— Mas quase não o conheço. E o pouco que sei sobre ele não é
nada promissor — afirmou Sorrel com veemência. — Como é possível
eu estar apaixonada por um homem que conheço há apenas uma
semana?
— Você se casou com ele.
— Porque ele não me deu outra opção — replicou Sorrel,
estremecendo um pouco ao lembrar-se do que acontecera entre ela e
Juan, naquela tarde na limusine.
— Ele fez amor com você, creio eu — disse Mônica. Sorrel olhou-a
novamente, mas desta vez diferente. Mônica então prosseguiu: —
Não me interprete mal, mas nunca fizemos amor, e para falara
verdade, todas as vezes que estivemos juntos, ele nem sequer me
olhou, olhava através de mim. Ele não sentia nenhuma atração física
por mim e acho que, para um homem como ele, atração física é
fundamental, num caso de amor! — Mônica sorria. — Será que isso
não a convence de vez que Isabella mentiu sobre Juan, dizendo que
ele se casou com você só para tapar os olhos de Ramón, para que
não percebesse um romance entre ele e eu?
— Eu nunca deveria ter acreditado em lsabella! — disse Sorrel.
— Nunca deveria ter confiado nela, mas ela tem um jeito todo
especial de convencer as pessoas de que está fazendo o melhor para
ajudá-las; finge que só pensa em função de nossos interesses, mas
no fundo só pensa nela.
— Eu sei o que você quer dizer, mas tudo isso não altera o fato de
ele ter admitido, no dia seguinte ao de nosso casamento, que tinha
decidido casar-se comigo para assim evitar toda essa fofoca sobre
vocês dois. Ele mentiu para mim e é por isso que estou magoada.
— Ele mentiu? Você tem certeza? Será que você não se sentiu
magoada porque naquela hora Juan não disse o que você queria
ouvir? Sabe, eu até imagino o que aconteceu. Você começou a acusá-
lo, de uma maneira que lhe é muito peculiar, atacando como se fosse
um touro preso nos portões, louco para conseguir seu intento, e não
pensou nem por um segundo o que ele estava sentindo. Eu espero
que ele não seja diferente de nenhum homem que conheço,
orgulhoso, como todos. O que foi que ele lhe disse?
— Primeiro disse que esquecesse você; depois, que tudo o que
havia feito antes de me conhecer não era da minha conta; acusou-me
de ter ciúmes de algo que não havia acontecido e que isso nunca
aconteceria no futuro, se eu me comportasse e confiasse nele.
— Justamente como imaginei — comentou Mônica. – Ele não falou
o que você queria ouvir. E como você reagiu?
— Eu lhe respondi dizendo que não poderia confiar nele, quando
tudo o que ele tinha feito até então era enganar-me. Ele então não se
controlou mais, ficou nervoso, e eu sei por quê: eu o desmascarei!.
— Você tem certeza de que foi por isso que ele explodiu?
— Não podia ser por outro motivo. Foi aí então que ele admitiu
ter-se casado comigo para evitar as fofocas. — A voz de Sorrel
tremeu incontrolavelmente quando se lembrou de mais uma coisa
que ele dissera. — Não quero falar mais sobre isso! — disse ela a
Mônica.
— Está bem, então não fale. Pensei que, se conversássemos sobre
o assunto, pudesse lhe ajudar de alguma maneira. Você tem que
resolver seus problemas o mais breve possível, resolver toda essa
situação. Você sabe disso, não sabe?
Será que Mônica estava querendo dizer que não precisava mais de
uma terapeuta, já que estava quase curada? — pensou Sorrel. Se
fosse isso, era melhor começar a pensar no que fazer daí por diante.
Poderia voltar para a Inglaterra ou... Oh! Meu Deus, o que se deve
fazer quando se larga o marido no dia seguinte ao do casamento?
Bem, pode-se sentar e esperar que ele venha buscar a gente. Mas se
não vier? E daí? Será que devemos ir procurá-lo e pedir para que nos
aceite de volta?
Mônica sentara-se na espreguiçadeira e tomava banho de sol.
Sorrel bebericava o refresco gelado e tentava imaginar-se procurando
Juan sem conseguir encontrá-lo. Mônica disse que ele, como todos os
homens, era orgulhoso. Bem, ela também tinha o direito de o ser, e
não seria ela, Sorrel, quem iria pedir para Juan aceitá-la de volta.
Se Juan a amasse de verdade, já teria vindo buscá-la. Ele já
correra atrás dela duas vezes para conseguir o que queria. Ela
estremeceu, magoada. Ele a queria e ela fraquejara, dando-lhe a
chance de se aproveitar. Agora, pensando no que ele falara antes de
ela partir é que lhe ficou claro por que não a queria mais. Seu
interesse por ela só existira até o momento em que fizeram amor.
Agora era tarde, ele já conseguira o que queria e se desinteressara.
Será que fora por isso que admitira tê-la enganado? Por que, não a
querendo mais, buscava um jeito de se ver livre dela?
Um som de vozes acordou Sorrel de seus maus pensamentos. Viu
então Laura e Gabriela, que chegavam da escola e vinham direto ver
a mãe. Como sempre, Gabriela tinha muito mais coisas a dizer.
Mostrou sua afeição pela mãe sentando-se na beirada da cadeira,
abraçando-a carinhosamente enquanto falava sem parar. Finalmente
parou um pouco para tomar respiração e prosseguiu:
— Uma menina da escola disse que leu no jornal que Juan Renalda
levou outra chifrada na arena, na quarta-feira passada, na corrida de
Copaya. — Laura olhava diretamente para Sorrel.
Gabriela parecia terrivelmente aborrecida. — Será que nós não
jogamos fora o jornal de ontem?
— Por que você não pergunta a Manuela? — disse Laura.
— Sim, faça isso, Gabriela, seja uma boa menina — incentivou-a
Mônica. — E se você achar o jornal, traga-o aqui. Você sabe se ele se
machucou muito, Laura?
— Minha amiga disse alguma coisa sobre "condição crítica". O que
quer dizer isso?
Sorrel não ouviu a resposta de Mônica. Estava fazendo a maior
força para não mostrar o que sentia, mas começou a sentir náuseas.
Mas só se levantou depois que Gabriela voltou com o jornal. Não
pode ser verdade, dizia Sorrel para si mesma. Ele fez uma última
tourada na terça-feira passada. Deve ser algum erro de imprensa.
Não pode ser verdade! O jornal deve ter imprimido o nome errado.
Oh! Meu Deus, o que eu faço se ele morrer?
Pressionando a mão contra a boca, Sorrel recostou-se na cadeira,
encontrando o olhar preocupado de Mônica.
— Aqui está, aqui está. — Gabriela corria, agitando o jornal no ar.
— Está na seção de esportes.
— Deixe-me ver! — Laura pegou o jornal das mãos da irmã.
— Leia o que diz — ordenou Mônica.
Laura leu vagarosamente e Sorrel sentia que cada palavra era
uma facada em seu coração. — El Valente chifrado numa luta
espetacular — leu Laura. — Logo após ter sido ferido quase no final,
Juan Renalda permaneceu na arena até o fim da tourada, fazendo
com que a multidão de fãs que assistia à luta se levantasse e o
saudasse como nunca, quando ele feriu o touro. Só então desmaiou,
por haver perdido muito sangue. Foi levado imediatamente para
Copaya, ao Hospital St. Joseph, onde informaram que seu caso e
crítico. Há apenas um dia voltara à arena, depois de quase dois anos
ausente! — Laura fez uma pausa e continuou: — Isso só serve para
mostrar como as touradas necessitam de toureiros com suas
encenações e com uma dose de drama.
— Com licença — disse Sorrel, levantando-se. Tapando a boca, ela
atravessou a área da piscina, pela parte de trás, perto dos arbustos,
e correu para dentro da casa.
Foi até o banheiro e, quando se sentiu melhor, deitou-se na cama.
Juan estava ferido e era por sua culpa. Mas ela não sabia que ele iria
tourear outra vez! Ele não tinha falado nada. Por quê? Será que, se
eles não tivessem discutido, teria falado alguma coisa? Em sua
cabeça martelavam tantas perguntas! De repente, levantou-se e
arrumou a mala. Decidira vê-lo em Copaya. Não tinha por que ficar
em Medellín, martirizando-se com perguntas sem respostas. Além de
tudo, ele estava ferido e necessitava de todo seu amor.
Vestiu um terninho leve, verificou se tinha dinheiro suficiente e
abriu a porta para sair, justamente na hora em que Laura ia chamá-
la.
— Mamãe mandou-me aqui para ver se você está bem. Ela contou
para Gabriela e para mim que você e Juan Renalda se casaram.
Gabriela ficou verde de inveja! — Laura olhou para a maleta. — Você
vai vê-lo?
— Sim. Onde está sua mãe?
— Lá no salão. Ela foi sozinha até lá, só usou uma bengala —
contou Laura feliz, enquanto seguia Sorrel escada abaixo. — Não é
genial?
— Sim, eu acho que ela não precisa mais de mim — concordou
Sorrel. Mônica descansava numa das muitas confortáveis cadeiras do
salão. Eram todas forradas de brocado. Mônica já trocara de roupa.
Usava um vestido azul, simples e longo, e os cabelos presos num
coque. Estava bonita e segura, esperando por Ramón.
— Tenho que ir ver Juan — disse Sorrel abruptamente. — Você
entende, não é?
— Sim, mas não seria uma boa idéia ligar para o hospital em
Copaya, primeiro? Ele já pode ter melhorado um pouco e assim você
ficará mais calma — disse Mônica.
— Não. Vou diretamente para o aeroporto!
— Então telefone perguntando sobre os horários dos vôos para
Copaya. Veja o horário certo e faça sua reserva. Não há razão de ir
correndo para o aeroporto e ter que ficar horas esperando o próximo
vôo — disse Mônica acertadamente. – Agora acalme-se, Sorrel. Nem
parece você! Está resolvendo tudo tão emocionalmente! Você é
sempre tão ponderada!
Não desde que conheci Juan, pensou Sorrel, percebendo o tremor
de suas mãos enquanto ligava para o aeroporto. Ele havia tocado
nela o mais profundo possível, nunca mais seria a mesma.
Havia um vôo para Copaya dali a meia hora. O sol se punha
irradiando raios de cor carmim, melancolicamente belos, enquanto o
avião levantou vôo. Quando aterrissou em Copaya, o céu tinha uma
tonalidade roxa, todo salpicado por cintilantes estrelas que mais
pareciam lanterninhas chinesas enfeitando um vasto rio negro.
O Hospital St. Joseph ficava perto da plaza principal. De um dos
lados tinha uma torre muito alta, e todas as janelas eram em forma
de arco. Uma cruz iluminada ficava no topo da torre, indicando que o
hospital era dirigido por uma ordem religiosa. Dentro do hospital,
podia-se sentir uma atmosfera pacata, calma e sem muito
movimento de visitantes. Parecia-se muito com um hospital da
Inglaterra em que Sorrel trabalhara. Dirigiu-se ao guichê de um
pequeno escritório e uma freira informou Sorrel, sem muitos rodeios,
de que o señor Renalda havia saído do hospital naquela manhã.
— Mas... mas para onde ele foi?! — exclamou Sorrel.
— Não sei. — A freira tentou parecer severa. — A condição dele
não era das melhores, mas ninguém conseguiu convencê-lo a ficar.
Isso é tudo o que posso lhe dizer.
— Obrigada.
Mais ansiosa do que nunca, Sorrel saiu do hospital, parando por
alguns segundos no topo da escadaria que levava até a entrada
principal, sem saber o que poderia fazer. Um táxi parou na frente
dela e algumas pessoas saíram de dentro. Imediatamente Sorrel o
pegou, mandando que o motorista seguisse para a rua onde Eugênia
e Diego moravam. Em menos de dez minutos estava parada em
frente à porta deles, iluminada pela suave luz das lanternas,
esperando que alguém abrisse a porta.
Por
sorte,
Eugênia
foi
quem
a
atendeu,
abraçando-a
carinhosamente, e abraçadas entraram na casa.
— Finalmente! — ela exclamou. — Puxa, fico contente com a sua
volta. Diego e eu estávamos jantando. Venha e se junte a nós.
— Juan está aqui? — perguntou Sorrel ansiosa, enquanto seguia
Eugênia pelo corredor até chegarem a uma saleta, elegantemente
mobiliada, que servia como sala de jantar. Lá estava Diego, sentado
à mesa.
— Não. Acreditamos que ele tenha ido para o sítio — respondeu
Eugênia. — Viu, Diego? Eu lhe disse que ela viria logo. — Eugênia
puxou uma cadeira para Sorrel sentar-se, enquanto Diego se
levantava imediatamente.
— Sente-se, Sorrel — insistiu — e coma um pouco de pollo a la
cazador. É uma especialidade da casa.
Apesar de querer ir o mais depressa possível para o rancho, Sorrel
aceitou o convite, achando realmente delicioso aquele frango com
tomates, pimentões e ervilhas.
— Como está Juan? — perguntou.
— O melhor que se pode esperar, numa situação como essa —
disse Diego. — Por sorte, ele só foi atingido no braço esquerdo, mais
ou menos aqui. — Ele mostrou a parte superior de seu braço. — Você
terminou seus negócios em Medellín satisfatoriamente?
— Negócios? — repetiu Sorrel, surpresa, olhando para Eugênia e
para Diego. Parecia que eles a observavam com alguma suspeita.
— Sí, quando você não apareceu na quarta-feira de manhã,
perguntei a Juan onde você estava, logo que ele voltou da arena —
disse Eugênia. — Ele me respondeu que você tinha ido para Medellín
resolver algumas coisas com o señor e a señora Ángel. Disse-me que
você trabalhou para eles e eu imaginei que talvez você tivesse ido
buscar seus pertences na casa deles.
Então ele disfarçara tudo! Não podia admitir para a tia que sua
esposa o abandonara depois da primeira noite.
— Você parece não ter trazido nada de extraordinário, além do
que você carregava naquela mala quando a vi pela primeira vez.
Eugênia parecia confusa e Sorrel percebeu que não lhe tinha
respondido ainda.
— Não, mandei despachar o resto. Deve estar chegando —
respondeu, sem entusiasmo.
— Bueno. Pensei que você voltasse quarta-feira à noite ou quinta
de manhã, e como você não apareceu, quis mandar-lhe um recado
para avisá-la do acidente de Juan, mas ele simplesmente me proibiu.
Disse que você saberia logo e que o recado só iria deixá-la mais
nervosa. Como você descobriu? — perguntou Eugênia curiosa.
— Li no jornal, esta tarde — replicou Sorrel em voz baixa. — Oh,
por favor, me contem a verdade. Ele está bem mesmo? O jornal dizia
que ele estava em situação crítica.
— Exagero — disse Diego. — Provavelmente o editor de esportes
sabia que com essa notícia atrairia mais atenção. Juan realmente
perdeu muito sangue, pois deveria ter deixado a arena logo depois da
chifrada para poder tratar imediatamente do braço. Mas você
conhece Juan. Tinha que encenar o melhor possível para superar sua
fraqueza física e a força do touro. A multidão chorou! — Diego sorria
satisfeito e Sorrel conteve-se para não lhe dizer tudo o que pensava
sobre touradas.
— Ele realmente desmaiou, no final — disse Eugênia. — No
hospital, teve que tomar transfusões de sangue. Mas hoje de manhã
decidiu que não iria mais ficar no hospital, que tinha que voltar para
o rancho. Disse que Jovita o trataria melhor do que aquelas freiras.
Acho que as freiras ficaram muito ofendidas.
— Tenho que ir vê-lo — disse Sorrel, já meio de pé, pronta para
sair.
— Só depois que você terminar a comida e tomar uma xícara de
café — disse Eugênia com firmeza. — Tomás vai levar você de carro
até o rancho.
Pelo caminho, Sorrel ia imaginando qual seria o motivo de Juan
não ter contado a verdade a Eugênia. Por que a escondera? E se
tivesse dito a verdade, será que seria tão bem recebida pelos Cortez
como fora? Será que Eugênia e Diego a culparam pelo acidente? Sem
saber explicar por que, sabia que eles a tinham culpado por tudo.
Luzes brilhavam nas janelas das casas. Chegaram a Ibara. Na
pequena plaza, o ônibus para Manizales estava estacionado em frente
ao hotel e algumas pessoas estavam sentadas nos graus da igreja. A
cidade ficou para trás e os poderosos faróis iluminavam a estrada,
clareando as árvores e arbustos. O enorme carro preto desenvolvia
uma velocidade muito apesar da péssima situação em que a estrada
se encontrava. Dentro de mais ou menos dez minutos estariam no
rancho.
Sorrel estava tensa. O que deveria dizer a Juan? Perdoe-me? Isto
parecia muito fraco e não expressava nem um pouco o que ela sentia
dentro. Será que iria acreditar nela, depois do bilhete que deixara?
Talvez ele nem quisesse mais vê-la mandando Jovita proibir sua
entrada. O carro diminuiu a marcha, transpôs a entrada em forma de
arco, atravessou o jardim e parou perto da porta.
Educadamente, Sorrel perguntou se Tomás não queria tomar um
refresco, descer e descansar um pouco antes de voltar para Copaya.
Ele agradeceu e partiu em seguida.
Finalmente ela estava sozinha na noite, perfumada pelas flores e
acompanhada pelo tranqüilo barulho da água na fonte. Jovita
demorou muito para abrir a porta, e quando o fez, não a abriu
totalmente, verificando primeiro cuidadosamente quem seria. Depois
a abriu por completo e apareceu com o mesmo vestido marrom, com
uma cara totalmente impassível.
— Buenas noches, Jovita — disse Sorrel, nervosa.
— Buenas noches, señorita. — A surpresa tomou conta de Sorrel,
quando ouviu Jovita dirigir-se a ela chamando-a de señorita. Parecia
que Juan não lhe havia dito nada sobre o casamento.
— Posso entrar? — perguntou Sorrel, e Jovita meneou a cabeça
negativamente. — O señor Juan está deitado. Disse que não quer ver
mulher nenhuma. Volte outro dia, señorita.
— Mas eu não sou qualquer uma! — Sorrel começou a se
defender, quando viu Jovita começando a fechar a porta. — Eu tenho
que vê-lo, Jovita. Por favor, me deixe entrar. Deixe-me passar a noite
naquele quarto em que fiquei da última vez e amanhã falarei com ele.
Por favor!
Jovita não fechou a porta. Seu rosto enrugou-se, no esforço de
tentar resolver aquele problema.
— A señorita sabe que ele foi ferido no braço? Está machucado e
precisa descansar.
— A tia dele, a Eugênia, me falou. Ela me mandou vir para ajudá-
la a tratar de Juan — disse Sorrel, forçando a passagem. — Você se
lembra, Jovita, de como ele ficou estranho, na última vez que se
machucou, como queria se esconder de todo mundo? Ele vai ficar
daquele jeito outra vez, se você não me deixar ajudá-la. Juntas o
faremos melhorar. Você vai ver! Vou fazê-lo muito feliz!
Por um instante Jovita pareceu preocupada, sua lealdade e
submissão lutando com o amor e o carinho que sentia por Juan. O
que ela desejava era só que ele sarasse. Então, para alívio de Sorrel,
Jovita abriu totalmente a porta e a convidou para entrar.
Vou deixá-la entrar, se1iorita, porque sei que tem um bom
coração e também está constantemente no pensamento do señor
Juan — disse ela, fechando a porta.
— Como é que você sabe disso? — perguntou Sorrel, surpresa.
— Esta tarde, ele estava descansando, depois da viagem do
hospital para cá. E dormindo ele falou da señorita, e também a
señorita não é como a outra mulher que veio aqui da última vez que
ele se machucou. Ela causou tantos problemas!
— Que outra mulher é essa? — perguntou Sorrel.
— Vamos para o quarto em que vai dormir e lhe direi no caminho.
Ela se chamava Teresa Baena. Ela era de Cali. O señor Juan
conheceu-a quando ainda era jovem. Eles namoraram por pouco
tempo e depois terminaram. Ou melhor, ele terminou tudo. — Jovita
fez uma pausa para abrir a porta do quarto e acender as luzes. —
Mas, para ela, não tinha terminado — concluiu.
Sorrel entrou no quarto e colocou a mala no chão. O ambiente
feminino do quarto não a aborrecia mais. E para falar a verdade, ela
sentiu-se como se estivesse em casa.
— Gostaria de tomar um banho, señorita? — perguntou Jovita,
eficiente como sempre.
— Assim relaxa um pouco, tirando a poeira e a tensão da viagem.
— Será que o barulho da água não vai acordar o señor Juan?
— Creio que não. Ele tomou remédio para acalmar a dor do braço.
Foi o doutor que mandou. Ele vai dormir pesadamente.
— Então aceito o banho, por favor.
— Vou aprontá-lo. — Jovita sorriu levemente, pois seus préstimos
estavam sendo aceitos. — A señorita trouxe seu robe, desta vez? —
perguntou,
apontando
para
a
maleta.
Sorrel
respondeu
afirmativamente.
Quando ela já estava sentada na banheira de mármore negro,
coberta até os ombros pela límpida e perfumada espuma, desistiu,
deixando que Jovita lavasse seus cabelos e esfregasse suas costas.
— Você estava me falando sobre Teresa — disse Sorrel. Era
verdade que Juan havia dito que tudo o que tivesse acontecido com
ele antes de se conhecerem não era da conta dela, mas ela tinha que
saber o que aquela mulher lhe fizera.
— Você disse que o caso tinha terminado para o señor Juan e não
para ela. O que quer dizer com isso?
— Ela ainda o amava, mas como não conseguiu mais nada do
señor Juan, arranjou até um jeito de se aproximar do irmão mais
moço dele — disse Jovita calmamente. — A señorita se lembra de que
eu lhe contei que o señor Juan tinha um irmão caçula?
— Sim, eu me lembro. Como ele se chamava?
— Andrés. Ah, ele foi um bebê maravilhoso, parecia um anjinho.
Tinha o sorriso e os cabelos loiros iguais aos da mãe. Era o preferido
da señora Renalda. Quando ela morreu, Andrés ficou desesperado.
Ele só tinha catorze anos.
— Ele era toureiro também?
— Não. Ele não gostava de touradas. Era gentil e muito
inteligente, estava sempre no meio dos livros. Ia à escola em Bogotá
e sempre dizia que um dia seria um grande escritor. Então Teresa
tomou conta dele — disse Jovita, enquanto esfregava as costas de
Sorrel delicadamente. — Ele era louco por ela. Trouxe-a para o
rancho, para morar aqui. E era justamente isso o que ela queria! Pelo
menos ela poderia ficar mais perto de Juan. Não estava interessada
em Andrés. Só o usava, a señorita compreende?
— Acho que sim — Sorrel estava fascinada pela história — O señor
Juan não se opôs à estada dela aqui no rancho?
— Não. Tente entender, señorita, o señor Juan é um homem muito
generoso. Tem um grande coração. Ele amava seus irmãos demais e
por isso deixava que eles fizessem o que queriam, aqui. A casa é
tanto dos irmãos quanto dele. É o que sempre dizia. Por isso, podiam
trazer para cá todos seus amigos. Sempre havia festas, quando a
señorita Inés morava aqui. Dança e música a noite toda, e o señor
Juan gostava das festas tanto quanto ela. Eles são muito parecidos.
— E o plano de Teresa funcionou? Ela conseguiu Juan por meio do
irmão? — perguntou Sorrel, tentando fazer com que Jovita voltasse
ao assunto.
— Bem que ela tentou. Toda a chance que tinha, flertava com ele!
— Jovita meneou a cabeça enquanto pegava a toalha. — Ele sempre
gostou de flertar, mas quando percebeu que Andrés se aborrecia,
passou a ignorá-la, e isso a deixou nervosa. A señorita já notou como
as pessoas fazem coisas estranhas quando ficam bravas?
— Sim, já notei. Eu mesma fico brava normalmente, e depois me
arrependo do que faço e do que falo nessas ocasiões — disse Sorrel.
— E o que foi que Teresa fez?
— Ela disse ao Andrés que não gostava mais dele, que preferia o
señor Juan. Ela o provocou até que ele ficou com raiva do irmão,
enciumado. Acusou o señor Juan de roubar Teresa dele. No início o
señor Juan riu de tudo e tentou mostrar a Andrés que ela não
prestava. Mas Andrés não o escutava. Ele acabou esbofeteando o
señor Juan. A señorita já deve ter percebido que os homens deste
país têm muito orgulho, e eles defendem a qualquer preço sua honra.
— Sim, já ouvi falar — disse Sorrel. — Eles brigaram?
— Sim. Aí no jardim, e o señor Juan, por ser maior e mais forte,
venceu e jogou Andrés dentro da fonte, para esfriá-lo, como ele
mesmo disse. E foi embora.
Sorrel escondeu um sorriso, ao imaginar a cena, pois ela
percebeu, pela expressão de Jovita, que a história não era engraçada.
Ela começou a perceber que muitas reações que os ingleses
consideram engraçadas nem sempre significam a mesma coisa para
os colombianos.
— O que aconteceu então? — perguntou.
— O señor Juan levou Teresa de volta para Cali e disse a ela que
deixasse seu irmão em paz.
— E o que fez Andrés?
— Ele foi para Cali também, e não ouvimos falar dele por muito
tempo. O señor Juan estava sempre viajando, por causa das
touradas, a irmã já tinha se casado e vivia nos Estados Unidos.
Então, um dia, há mais ou menos dois anos, quando o señor Juan
estava indo para a arena, no final da corrida em Manizales, Teresa
apareceu. Veio só para dizer que Andrés estava morto.
— Não foi suicídio, não é?
— Sí, ela o levou para o mau caminho. Ele tomou uma dose
excessiva de alguma droga. O señor Juan ficou desesperado e se
culpava por não ter-se preocupado mais com seu irmão caçula. Foi
então ferido, na arena. Ay, ay, ay — lamentou-se Jovita, deixando
transparecer uma emoção até então escondida. — Foi uma época
terrível, e aquela mulher ainda teve a coragem de vir visitá-lo aqui,
depois do acidente. Foi ótimo que a señora lnés estivesse aqui,
naquela época. Ela se livrou de Teresa muito rapidamente.
Como fez com Mônica, pensou Sorrel, saindo da banheira e
deixando que Jovita a enxugasse. Mas por que será que ela não
tentou se livrar de mim?
— Obrigada por me contar tudo isso — disse a Jovita, e com a
toalha envolta no corpo, saiu do banheiro em direção ao quarto. —
Tudo isso me esclareceu muitas coisas. E agora eu é que tenho que
lhe contar algo. Eu não sou mais señorita. Eu e o señor Juan nos
casamos terça-feira à noite, em Copaya. Eu não estava na arena
quando ele se machucou porque tive que resolver uns problemas em
Medellín, naquele dia.
Jovita a olhou surpresa e desceu o olhar até a aliança de Sorrel.
Seus negros olhos então se encheram de lágrimas. — Señora —
sussurrou. — Señora Renalda. Eu fico muito feliz. Ele não é meu filho,
mas eu o amo como se fosse. Agora não tenho que me preocupar
mais. Vista-se señora, que eu secarei e pentearei seus cabelos.
Sorrel vestiu-se com uma camisola leve e transparente que havia
comprado e por cima colocou o robe, que fazia conjunto com a
camisola. Sentada em frente ao espelho, lembrou-se da última vez
que estivera lá, na segunda-feira à noite. Como se sentia melhor
hoje! Que diferença! Não queria mais fugir. Queria ficar e viver com
Juan. O problema era que não tinha certeza se ele ainda a queria.
Logo que Sorrel ficou com os cabelos secos e penteados, Jovita disse
boa noite e saiu do quarto. Por uns momentos Sorrel ficou sentada e
pensando em Andrés e Teresa; uma história de violência, paixão e
tragédia. O relógio bateu dez horas. Deveria deitar-se e tentar
recuperar o sono perdido nas duas últimas noites, a fim de, no dia
seguinte, de manhã, estar bonita e descansada para aceitar qualquer
punição de Juan.
Foi até a cama, puxou a coberta e estava tirando o robe para
deitar-se quando lhe veio uma idéia à cabeça. Iria ver se Juan estava
bem. Afinal de contas, Jovita a havia encarregado de cuidar dele.
Dirigiu-se ao quarto de Juan, atravessando o banheiro ainda cheio de
vapor. Abriu a porta cuidadosamente e ficou parada por uns
instantes, olhando em redor. O abajur da mesa-de-cabeceira estava
aceso, dando um tom azulado aos negros cabelos de Juan.
Sorrel entrou no quarto e fechou a porta com o maior cuidado
possível. Apesar de todo o cuidado, porém, fez um mínimo de barulho
e temeu que o tivesse acordado, mas ele não se moveu. Aproximou-
se da cama e parou, olhando-o melhor. Juan estava deitado de
bruços. Seu braço direito estava dobrado no travesseiro, onde
apoiava a cabeça. Sorrel só podia ver um mínimo de seu rosto: seu
queixo e os densos cílios negros que lhe circundavam os olhos.
Estava coberto até a cintura. A parte superior do braço esquerdo
estava enfaixada.
Sorrel procurou a seu redor por uma cadeira, a fim de que
pudesse sentar-se ao lado da cama por uns instantes.
— É você, Jovita? — A voz de Juan estava rouca como se tivesse
acordado naquele momento. A voz se endureceu e num tom
autoritário disse: — Bem, já que você está aqui, você me pode ser
útil. Esfregue minhas costas, por favor. Parece que todos meus
músculos estão coçando.
Ele não abrira os olhos e nem se virara. Sorrel hesitou um pouco,
sem saber o que fazer. Então se deu conta de que aquilo era uma
coisa que poderia fazer bem melhor que Jovita, pois era sua
especialidade. Sabia exatamente onde estava coçando e o porquê
desse incômodo. E mais: sabia como aliviar o sofrimento de Juan.
Começou então a massageá-lo. Uma malícia acordou dentro de
Sorrel, fazendo-a sorrir. Nada diria a ele. Ela o massagearia deixando
que ele mesmo descobrisse quem o fazia.
Inclinando-se sobre ele, abaixou as cobertas e não ficou surpresa
ao vê-lo completamente nu. Sorrel começou seu trabalho bem na
curva das costas de Juan, no início da espinha. Pensou que ele
reagisse um pouco, abrisse os olhos e a visse. Mas Juan não se
moveu. Soltou um longo suspiro e se acomodou melhor na cama.
Sorrel sempre gostara de massagear e era capaz de fazê-lo
misturando um pouco de sua boa vontade com sua habilidade
profissional, o que fazia dela uma ótima massagista. Mas enquanto
massageava Juan, Sorrel foi perdendo todo seu profissionalismo.
Afinal, ele era o homem que amava, a quem ela havia se entregado
por completo. Olhando para o corpo dele, seus ombros largos,
afinando gradualmente até chegar nos quadris, começou a se sentir
excitada e, diminuindo gradualmente o movimento de suas mãos,
começou a acariciá-lo, provocando-o para que se virasse e a puxasse
para si, beijando-a apaixonadamente.
— Para quantos homens você fez isso, Sorrel? — ele perguntou em
inglês, demonstrando uma certa irritação.
— Como você descobriu que era eu? — perguntou ela, quase sem
respiração, não só por estar nervosa, mas também pelo crescente
desejo de estar junto a ele, de sentir todo aquele prazer que só Juan
podia lhe proporcionar.
— Comparadas suas mãos com as de Jovita, as dela parecem
garras de aves. As suas... Bem, mas você não me respondeu.
Quantos homens você já massageou deste jeito?
Ela só massageara mulheres, quando trabalhava no hospital, na
Inglaterra. Massagens em homens eram feitas por terapeutas
masculinos. — Nenhum — disse ela, puxando as cobertas e cobrindo-
o até a cintura.
— Ainda bem! Por Dios, se você tivesse feito isso em outros
homens eu teria que os achar e matar um por um, pois eles teriam
sentido suas mãos antes de mim.
— Por que você tem que ser tão violento? — perguntou Sorrel. —
Violento ou ciumento?
— insistiu ela.
— Ah! Agora sou violento, ciumento, arrogante, sem princípios,
mentiroso, imoral e depravado! Enfim, sou o homem que você
detesta. — Ele se virou e fez um esforço para se sentar. — Então por
que você voltou? — perguntou.
Por baixo da barba por fazer, Sorrel percebeu que ele estava
pálido, com as maçãs do rosto salientes. Seus olhos, porém,
cintilavam, apesar das profundas olheiras, enquanto a olhava sem
parar.
— Foi Eugênia quem mandou você vir, para cumprir a obrigação
de uma boa esposa?
— Não, não foi! — A atitude de Juan confundia Sorrel. Não podia
olhá-lo, pois a vontade de se atirar em seus braços, acariciando-o,
confortando-o, era mais forte do que ela. Engolindo seco, falou sem
entusiasmo: — Por que você não me disse que iria tourear, quarta-
feira passada?
— Porque não sabia até o momento de ir à arena, de manhã. O
matador que ia tourear aquela noite ficou doente e Diego me pediu
para substituí-lo. Voltei para lhe dizer, mas você não estava. — Ele
dirigiu um olhar cínico para Sorrel e disse friamente, sem perceber o
arrepio dela: — Obrigado pelo bilhete. Foi muito claro. Por isso estou
surpreso de vê-la aqui. Pensei que você tivesse me deixado.
Ela balançou a cabeça, atormentada pela estupidez de seu bilhete.
Ele acreditava realmente no que ela havia dito, pois não mentiria,
atordoado como estava pelos remédios.
— Oh, eu quisera ter sabido de tudo antes! — lamentou-se. — Não
teria ido para Medellín, se eu soubesse que você ia tourear. Foi minha
culpa você ter-se machucado.
— Sua culpa? Diabo, o que a faz pensar assim?! — perguntou
Juan.
— Diego me disse que você não poderia ser contrariado de
nenhuma maneira, antes de entrar na arena. Ele disse que foi por
isso que tudo aconteceu, em Manizales.
— Ele disse? — Juan riu sadicamente, fazendo com que Sorrel o
olhasse surpresa. Ele estava recostado nos travesseiros, com aqueles
olhos desconfiados. — E você acha que aquele bilhete me deixou
chateado? Diego sabe contar estórias, quando é preciso.
— O que você quer dizer? — perguntou ela, cheia de dor, ao sentir
tanto cinismo no homem que amava.
— Pedi a ele que fizesse o melhor que pudesse para persuadi-Ia a
ficar e assistir à tourada na terça-feira. Então ele inventou essa
estória para tocar sua consciência. Até que ele não é um mau
psicólogo, não acha? Você ficou não porque não queria me ver
machucado, mas porque sua consciência a incomodava!
— Mas você estava aborrecido, antes de entrar na arena em
Manizales — disse Sorrel, totalmente surpresa. — Jovita me contou
que você ficou muito triste, quando soube do suicídio de seu irmão.
— Por Dios, você deve estar se divertindo, não é? Bisbilhotando
sobre minha vida nas minhas costas, não é? E agora sua pobre
consciência a trouxe de volta aos pés da minha cama! Por quê? Você
tem medo de que eu morra antes de perdoá-la? Bem, então me deixe
facilitar as coisas para você. Foi por minha culpa. Eu estava me
mostrando, me exibindo demais, como sempre, dando um pouco de
emoção para aquela multidão que havia pago para ver um bom
espetáculo; fiz isso em Manizales e em Copaya. Deixei que o touro
chegasse bem perto e não fui suficientemente rápido para escapar.
Em Manizales o touro era grande e estava ainda com muita fibra para
a luta. Na quarta-feira, o touro era pequeno, novo e tímido. Foi uma
coincidência ter acontecido bem no dia em que você resolveu me
deixar. E a outra vez também foi coincidência.
Ele a magoara tanto que talvez fosse melhor ter sido açoitada.
— Não foi sua culpa — Juan continuou. — Agora vá, volte para
Medellín, para a Inglaterra ou para onde desejar. Eu não quero que
você fique comigo só porque sua consciência a incomoda.
Ela olhou para Juan. Ele virou a cabeça para que ela não pudesse
ver seu rosto.
— Eu não estou aqui porque minha consciência me incomoda. Eu
voltei porque eu acho... acho que me apaixonei por você.
Ele a fitou incrédulo.
— Você acha? Você acha que pode estar apaixonada? O que isso
adianta para um homem como eu, que tem sangue quente correndo
nas veias.
— É verdade! — retorquiu Sorrel, sentindo mais uma vez irritação
por não se fazer acreditar.
Ele Virou a cabeça novamente, evitando-a. — Vá embora, deixe-
me sozinho, deixe-me morrer em paz.
— Não, não! — Ela estava desesperada, não sabendo como
convencê-lo. Sem saber o que fazer, levantou as cobertas e deitou-se
ao lado dele, abraçando-o pelas costas.
— Juan, você não vai morrer, não vou deixá-lo morrer porque o
amo e o quero vivo, para poder viver com você. Você uma vez me
disse isso e agora eu também quero que aconteça, pois eu o amo!
Amo! Você está me ouvindo? — Lágrimas corriam pelo seu rosto,
molhando a pele de Juan. — Oh, Juan, o que você quer que eu faça
para se convencer de que o amo? Por favor, diga o quê...
Ele se virou lentamente, até olhá-la de frente.
— Você podia começar me dando um beijo — sugeriu docemente.
— Você não precisa ter vergonha de mim, agora que estamos
casados.
Ela encostou seus lábios nos dele, acariciando-lhe com as mãos o
rosto e os cabelos.
— Te quiero, Sorrel. Eu quero você! Eu a quero agora, com todas
as forças do meu ser!
— Querer não é o mesmo que amar — replicou ela, estremecendo
de prazer quando os lábios de Juan tocaram seu pescoço e desceram
até seus seios, agora completamente à mostra.
— Em espanhol é a mesma coisa — disse ele em inglês. — Escute:
te quiero, te quiero. Te quiero, te amo. Te quiero muchísimo. Amo-a
demais. Se você não sabia, sua mãe não lhe ensinou espanhol muito
bem — disse Juan, brincando. — E eu sempre faço amor em
espanhol, e é isso o que estou falando desde segunda-feira, e você
não me ouve. Eu a amo e a quero, e não consigo ficar assim, tão
perto de você, sem lhe mostrar o quanto a amo.
Juan começou a tirar a camisola que Sorrel usava.
— Você tem que usar isto, entre nós dois? – perguntou. -Não
quero nada mais entre nós dois. Chega de barreiras.
Ela se afastou dele contra sua vontade, mas temerosa de que os
ferimentos pudessem se abrir, com algum movimento mais brusco.
— Eu só vim ver se você estava bem — disse ela. — Posso dormir
no outro quarto.
— Não. — Ele a puxou contra si e por uns momentos Sorrel se
sentiu impotente com o beijo delicioso de Juan. — Você fica aqui e
nós dormiremos juntos, hoje e sempre. Esse será seu castigo por ter-
me abandonado logo depois da primeira noite.
— Que castigo gostoso — disse Sorrel, aconchegando-se mais
perto dele. — Mas, em todo caso, estou feliz por tê-lo deixado; talvez
eu não descobrisse o quanto o amava, se não o fizesse. Você
realmente me amou, desde a primeira vez que me viu?
— Sí. Bem, no início não a amei com minha cabeça. Você entende?
Só com os olhos. Quando eu a vi no refúgio, descobri que fisicamente
você era tudo o que eu procurava. Você se lembra de como eu não
parava de olhá-la?
— Oh, sim, eu me lembro! Mas pensei... pensei que...
— Você pensou mal de mim — ele completou. — E eu comecei a
ver que você era diferente de todas as outras mulheres que havia
conhecido. Apesar de se encontrar machucada e perdida, você era
corajosa, e eu admirei sua independência. Você me respondeu,
quando a provoquei, e até tentou me irritar. Você era um constante
desafio, coisa que antes nunca tinha encontrado em outra mulher, e
comecei a imaginar como deveria ser gostoso viver com você por
algum tempo. Mas eu não consegui derrubar a barreira feita por
você, durante o tempo em que estivemos juntos. Eu não sabia como
encontrá-la de novo, então atirei no escuro e lhe disse que, se
precisasse de mim, que me procurasse. — Ele sorriu triunfante. — E
deu mais certo do que eu pensava. Você veio até aqui. Meu próximo
movimento foi tentar convencê-la a ficar. Tentando isso, percebi
como você era inocente e vulnerável, e fui tomado por uma vontade
irresistível de protegê-la e de tê-la para mim. Aí então me dei conta
de que eu a queria mais do que a uma simples companheira. Eu a
queria como esposa, e não apenas para convencer Ramón de que eu
não tinha nada com a esposa dele. Entretanto, essa idéia me passou
pela cabeça. Casado, seria mais fácil convencê-lo.
— Oh! — Sorrel sentiu-se humilhada ao perceber que Juan queria
dizer que se havia casado com ela também para acabar com as
fofocas entre ele e Mônica. — Eu... eu... não entendi. Oh! Juan, me
perdoe, eu fui tão má com você, naquela manhã.
— Eu também senti muito — concordou ele, com sua habitual
honestidade. — Fiquei muito magoado. Não me lembro de ter sido
tão magoado por uma mulher, em toda minha vida, e foi uma
experiência assustadora. Mostrou o quanto eu estava envolvido por
você, e isso me enervou. Eu lhe disse coisas de que hoje me
arrependo. Não fiquei surpreso quando me deixou, e pensava que
você nunca mais fosse voltar.
— Se não tivesse sido ferido, você teria ido me buscar? —
perguntou ela.
— Talvez sim, talvez não...
— Orgulhoso! — acusou-o Sorrel, delicadamente.
— Sim. Você pode acrescentar mais esse defeito em sua lista —
respondeu ironicamente.
— Mas me responda, querida, você teria voltado se eu não tivesse
me machucado?
— Não sei, mas acho que sim.
— Bem, não vamos mais falar sobre isso, hein? — Ele lhe tirou a
camisola com toda delicadeza.
— Vamos aproveitar o máximo por estarmos juntos aqui e agora.
Vamos nos amar.
— Mas você está fraco, perdeu muito sangue – protestou Sorrel.
— Você acha, é? Então você terá que ajudar, não é? Deixe-me
mostrar o que você deve fazer. Primeiro você tem que me beijar
novamente na boca, e enquanto você estiver fazendo isso, lhe digo o
que fazer depois.
Ele a provocava docemente. Sorrel respondeu-lhe beijando-o com
ardor, ao que ele reagiu de imediato, envolvendo-a naquela pressão
deliciosa de seu corpo, fazendo-a esquecer-se de todas as barreiras,
convencendo-a viver para sempre as delícias daquele doce amor.