Microsoft Word Frances H Bur Renato(1)

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Frances H. Burnett

O Pequeno Lorde


Infanto-Juvenil

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Mem Martins – Sintra para a EDITORIAL PUBLICA, com sede na Avenida
Poeta Mistral, 6-B - 1000 Lisboa Maio de 1987

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Uma grande surpresa


Cedric ignorava a sua própria história. Quando o pai morreu, ainda ele

não tinha completado cinco anos. Sabia que era filho de um inglês, porque a
mãe lho dissera, e lembrava-se, apenas, de que o pai era um senhor muito alto,
com olhos azuis e grandes bigodes loiros. Recordava-se também de que o pai
costumava escarranchá-lo no ombro, andando assim, com ele, em volta da sala
de jantar, e rindo, os dois, cheios de alegria.

Um dia, o capitão Errol adoeceu e Cedric foi levado de casa. Quando

voltou, algum tempo depois, tudo tinha mudado. A mãe não parecia a mesma:
toda vestida de preto, estava magra, pálida e triste - ela que fora tão alegre!

Com os lindos olhos escuros sempre cheios de lágrimas. Passava os dias

sentada junto do fogão ou em frente da janela, fitando o espaço.

- Querida! - exclamou Cedric. (Era assim que o capitão Errol chamava

sempre à mulher, e o pequenito habituara-se também a dar-lhe esse doce
tratamento. ) - Querida, o paizinho está melhor?

A mãe apertou-o muito de encontroao coração, e não respondeu.
A pobre senhora mal podia reprimir os soluços.
Cedric ergueu para ela a cabecita toda cheia de caracóis dourados e

insistiu:

- Como está o paizinho, Querida?
O seu coraçãozinho dizia-lhe que a única coisa que tinha a fazer era

deixar-se ficar no colo da mãe e lançar-lhe os braços em volta do pescoço,
beijando-a com toda a ternura de que era capaz. E a mãe, já sem poder dominar-
se encostou a cabeça ao ombro do pequenito e chorou con vulsivamente,
apertando-o mais ainda, como se tivesse medo de o perder. Por fim, disse:

- O paizinho já não sofre mais, meu amor! Mas nós ficámos para sempre

sozinhos. Não temos mais ninguém no mundo.

Apesar da sua pouca idade, Cedric percebeu que o pai tinha morrido,

como já ouvira dizer de outras pessoas. Como fora possível?! Era tão alto, tão
forte e belo! A palavra morte tinha um sentido que ele não podia compreender.
Sabia somente que o pai nunca mais voltaria. Mas como a mãe chorava sempre
que se referiam a ele, Cedric resolveu não falar tantas vezes no pai, e pensou
também que a mãe não devia passar tanto tempo imóvel, sentada junto do

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fogão ou em frente da janela, a contemplar o céu, sem fazer nada, sem
pronunciar uma palavra, em tão triste solidão.

A Sr. a Errol e o filho viviam muito isolados, quase sem relações, na

grande cidade de Nova Iorque; mas Cedric só notou isto muito mais tarde,
quando conheceu o motivo pelo qual só raramente recebiam visitas. Soube
então que sua mãe era orfã, sem ter ninguém, quando o pai casara com ela.

Conhecera-o em casa de uma senhora já velha e muito rica, junto de quem

ela desempenhava o lugar de dama de companhia. Era linda, e o capitão Cedric
Errol, ao encontrá-la, por acaso, na escada, notara- lhe uma tal expressão de
tristeza e doçura, que nunca mais pôde esquecê-la. Procurou tornar a vê-la.
Apaixonaram-se um pelo outro e acabaram por casar, apesar da oposição feita a
esse casamento.

O conde de Dorincourt, pai do capitão Errol, foi quem mostrou maior

descontentamento. Era um velho fidalgo inglês, da mais antiga linhagem, muito
rico e de génio violento. Tinha uma especial aversão à América e aos
americanos.

O capitão Errol era o mais novo dos seus três filhos. Conforme a lei e a

tradição britânicas, o filho mais velho era o único herdeiro dos bens paternos.
No caso da sua morte ou desaparecimento, a herança cabia ao segundo. Era,
pois, pouco provável que o capitão Errol, pertencendo embora a uma família
riquíssima, viesse a ser senhor de uma grande fortuna.

Mas, em compensação, era ele o mais bem dotado pela natureza; possuía

as mais nobres qualidades morais; era decidido, inteligente, generoso e bom; o
seu aspecto elegante e simpático tornava-o querido e amigo de quantos o
conheciam.

Com os irmãos sucedia exactamente o contrário; nenhum deles dera

provas de inteligência ou bondade. No colégio de Eton, onde foram educados,
nunca souberam con quistar a estima dos professores nem dos colegas. Eram
maus estudantes e maus camaradas, causando grandes desgostos ao pai, que
não podia deixar de reconhecer a inferioridade dos dois filhos mais velhos.

O orgulhoso fidalgo sofria profundamente ao pensar que o herdeiro da

sua fortuna e do seu título viria a ser um homem insignificante, egoísta e
mesquinho, sem nenhuma das qualidades nobres e viris que convinham à sua
elevada posição social. Não se conformava com a ideia de o terceiro filho,
destinado a uma vida apagada e medíocre, ser o único que possuía dons
intelectuais e beleza física capazes de o fazerem brilhar na sociedade. No
entanto, lá bem no íntimo do seu inflexível coração, não podia deixar de sentir
um “fraco” pelo mais novo dos três rapazes.

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Receando, talvez, deixar-se dominar por essa preferência instintiva, um

dia, num acesso de altivez, mandou-o para a América. Parecia-lhe ser aquela a
melhor maneira de evitar comparações com os irmãos, cada vez máis
antipáticos e malcomportados.

Pouco depois, ainda não tinham passado seis meses, já o conde de

Dorincourt estava cheio de saudades do filho. Sentia-se só e resolveu escrever-
lhe, dizendo que regressasse a Inglaterra. Esta carta cruzou-se no caminho, com
outra do capitão Errol, contando ao pai o seu amor por uma linda americana
com quem tencionava casar.

Ao receber esta notícia, o conde ficou cheio de cólera, a tal ponto que os

criados recearam que ele enlouquecesse.

Resolveu então escrever novamente ao filho, proibindo-o de voltar à casa

paterna e de se dirigir, mesmo que fosse só por carta, ao pai e aos irmãos. Não
contente com isso, acrescentou, ainda, que nunca mais, fosse em que
circunstâncias fosse, o capitão Errol poderia esperar qualquer ajuda da família.

Esta resposta causou a maior mágoa ao capitão Errol, que estimava

profundamente o pai, apesar do seu génio irascível, e tinha grande afeição à
casa em que nascera. Sabia perfeitamente que nunca mais podia contar com o
velho conde. No primeiro momento, sentiu-se completamente desorientado,
pois não estava preparado para uma vida de trabalho e não sabia nada de
negócios. Era, porém, corajoso e persistente; pediu a demissão de oficial da
marinha inglesa e, depois de vencer muitas dificuldades, conseguiu, finalmente,
arranjar um emprego em Nova Iorque. Em seguida casou.

O jovem passou a viver modestamente numa rua tranquila dos arredores

da grande capital americana. Havia uma grande diferença entre a existência que
Errol agora levava e aquela a que estava habituado em Inglaterra.

Mas a esposa era tão gentil, tão carinhosa e boa, que ele nunca teve

motivo para se arrepender de haver casado com uma simples dama de
companhia. Pelo contrário, sentia que a felicidade presente o compensava
generosamente de tudo quanto tinha perdido. A casinha onde habitava era
alegre, primorosamente arranjada, com simplicidade e bom gosto.

Quando lhes nasceu um filhinho, o simpático casal Errol considerou-se o

par mais venturoso do mundo. Realmente, era difícil imaginar criança mais
encantadora que o pequenino Cedric.

Parecido, ao mesmo tempo, com o pai e com a mãe, tinha os cabelos muito

loiros e encaracolados, os olhos de um castanho muito claro, com longas
pestanas e uma expressão cheia de inteligência e bondade. Saudável, sempre
bem disposto, desenvolvia-se de dia para dia, e cativava toda a gente com o seu

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lindo sorriso e maneiras afáveis. Parecia um principezinho, apesar da modéstia
em que era criado.

No bairro onde viviam, todos gostavam dele; até mesmo o Sr. Hobbes,

dono da mercearia que ficava ao fim da rua, e que era conhecido como
incorrigível maldizente, não se cansava de elogiar aquele menino tão simpático
e bem-educado, como ele nunca vira outro.

À medida que ia crescendo, mais atraente se tornava o pequeno Errol. A

sua beleza física correspondia às boas qualidades morais que o distinguiam. A
maneira agradável como falava a qualquer pessoa, era um dos seus maiores
encantos; todo o seu empenho era ver felizes aqueles que o rodeavam, e
satisfazer-lhes os desejos.

O ambiente de delicadeza e ternura em que era criado, desenvolvia ainda

mais as suas naturais tendências para a cortesia e para a bondade. Nunca ouvira
pronunciar uma palavra grosseira ou dura; ouvia o pai dizer “Querida”,
sempre que se dirigia à mãe, e aquela intimidade afectuosa enchia a sua
alminha de sentimentos generosos e ternos.

- Querida, minha querida! - foram também as primeiras palavras que ele

soube pronunciar.

Por isso, quando compreendeu que o pai nunca mais voltaria, e o motivo

por que a mãe chorava tão amargamente, prometeu a si próprio fazer tudo
quanto fosse possível para a consolar e lhe tornar mais suave a sua grande dor.
Tomou esta resolução naquele mesmo dia em que, ao regressar a casa, a mãe o
abraçou a chorar, escondendo o rosto entre os seus caracóis doirados. Era ainda
muito criança, mas o seu coraçãozinho afectuoso não podia conformar-se com a
tristeza da mãe.

Ocorreu-lhe então uma ideia: mostrar-lhe todos os seus brinquedos e

livros com gravuras. Assim fez, e, ao mesmo tempo que lhos colocava, um a
um, diante dos olhos, murmurava com infinita meiguice:

- Ora vê, Querida, vê!
No rosto doloroso da infeliz senhora passou rapidamente um sorriso que

era a expressão do maior amor humano.

“Meu adorado filhinho!” - pensava ela.
- Tenho a certeza de que ele me compreende! - dizia a viúva de Errol para

a criada Maria, que a servia desde que casara e trouxera Cedric ao colo. - Olha
para mim com tanta ternura e tão preocupado como se adivinhasse tudo quanto
me aflige. É um homenzinho!

Cedric passou a ser o companheiro constante da mãe. Passeavam juntos;

conversavam e brincavam como se tivessem a mesma idade. Logo que soube
ler, era ainda muito novinho, Cedric passava horas estendido sobre o tapete, em

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frente ao fogão, lendo em voz alta, não só histórias infantis, como outros livros,
revistas e até o jornal. A mãe escutava-o enlevada, quase feliz, e a velha Maria
ouvia muitas vezes, na cozinha, o riso da Sr. a Errol, perante as inesperadas
observações que o pequenino fazia acerca do que ia lendo.

A criada gostava de conversar com o Sr. Hobbes, e sempre que podia,

demorava-se na mercearia a contar coisas extraordinárias do “seu menino”.

- Palavra! Nunca vi uma criança como aquela! Tem modos e falas de

pessoa crescida. No dia da eleição do Presidente entrou pela cozinha dentro,
parou em frente do fogão, com as mãos atrás das costas, sério que nem um juiz,
e disse-me assim: “Olha lá, Maria, que te parece isto da eleição? Eu sou e hei-de
ser sempre republicano. A Querida também é da minha opinião. E tu, qual é o
teu partido?” Respondi-lhe que não percebia nada de política, e ele, então,
mostrou-se todo ofendido e disse que todos deviam saber o que convinha ou
não convinha ao país. Só queria que o visse, Sr. Hobbes! Ficava de boca aberta.
E de então para cá, todos os dias, vai à cozinha falar-me de política.

Maria adorava aquela criança e tinha tanto orgulho nela como se lhe

pertencesse. Depois da morte do patrão, a boa mulher passara a fazer, sozinha,
o serviço de cozinheira e criada de fora. Era saudável e trabalhava com gosto,
ajudando ainda a Sr. a Errol a confeccionar os seus vestidos e as roupinhas de
Cedric.

- É tal qual um príncipe! - costumava ela dizer, ao pentear os lindos

cabelos loiros, que lhe desciam, em caracóis, até aos ombros. - Sempre gostava
que me mostrassem uma criança da Quinta Avenida, mais bonita e distinta do
que o “nosso” menino. Toda a gente olha para ele, quando vai com o fato de
veludo preto e a cabeleira a brilhar ao sol. Parece mesmo um pequeno lorde!

Para Cedric, porém, tudo isto era indiferente. Não lhe importava ter ou

deixar de ter o ar de um lorde. Nem mesmo sabia o que vinha a ser um lorde!

O seu amigo predilecto era o merceeiro da esquina, que, apesar de

embirrar com toda a gente, se mostrava sempre amável para ele, e, verdade se
diga, o estimava deveras. Para o pequenito, o Sr. Hobbes devia ser uma pessoa
muito rica e importante, pois tinha a loja cheia de coisas boas - ameixas, figos;
laranjas, conservas e bolos - possuindo, além disso, uma carroça e um cavalo,
para levar as compras a casa dos fregueses.

Cedric também gostava do leiteiro, do padeiro e da mulher da hortaliça,

mas preferia, a todos, o seu amigo Hobbes, que visitava todos os dias e com
quem tinha grandes conversas acerca das notícias publicadas nos jornais.
Falavam de tudo, até mesmo de política. Um dos assuntos mais discutidos era o
Quatro de Julho, festa nacional comemo rativa da independência dos Estados
Unidos. Cedric não se cansava de ouvir o merceeiro descrever-lhe episódios

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dessa época. E quando regressava a casa, com o olhar brilhante e a cabeleira em
desalinho, esperava ansiosamente a hora do jantar, para contar tudo à mãe.

Foi, sem dúvida, o sr. Hobbes, contando-lhe constantemente o que se

passava em Washington e dizendo-lhe a sua opinião sobre o próprio Presidente,
quem fez nascer no espírito do pequeno Errol o gosto pela política. Pouco
tempo depois de uma eleição presidencial deu-se um inci dente que
transformou por completo a existência de Cedric. Tinha ele então oito anos de
idade.

Nesse dia, Hobbes conversara com ele acerca da Inglaterra e da rainha

Vitória, que governava então o Império Britânico, aproveitando a ocasião para
censurar asperamente a aristocracia inglesa, e, em especial, os condes e os
duques.

Fazia um calor sufocante e Cedric, depois de ter brincado aos soldados

com outros rapazes seus conhecidos, resolveu entrar na mercearia para
descansar um pouco. Encontrou o merceeiro a olhar atentamente, com ar de
reprovação, para as gravuras de uma revista londrina, que reproduziam uma
cerimónia da corte inglesa. Ao vê-lo exclamou:

- Aqui está no que eles se entretêm! Mas isto não pode durar muito! Mais

dia, menos dia, vai tudo pelos ares: condes, duques, lordes e toda essa tropa
fandanga! Não escapa nem um! Pode ter a certeza.

Como de costume, Cedric sentou-se sobre um caixote, com o chapéu

atirado para trás e as mãos nas algibeiras, tal como o dono da loja. De repente,
perguntou muito sério:

- O Sr. Hobbes conhece muitos duques e muitos condes?
- Não! Felizmente não conheço! - respondeu o outro, todo exaltado. - Até

hoje nenhum se atreveu a passar desta porta para dentro. Tinha que ver, eu
permitir que gente dessa se encostasse às minhas latas de bolacha!

Ao dizer isto, o homenzinho sentiu-se tão importante, que olhou em volta

da sua pessoa, com orgulho, e limpou o suor da testa.

- Talvez sejam condes por não poderem ser outra coisa
- observou Cedric, com instintiva simpatia por aqueles que o merceeiro

acusava tão severamente.

- Eles?! Está enganado! Até sentem vaidade de ser o que são. Está- lhes na

massa do sangue - respondeu Hobbes.

E continuou a proclamar a superioridade da república sobre a monarquia,

dos republicanos sobre os aristocratas, com tal entusiasmo, que o pequenito
olhava para ele, es pantado, ansioso por contar à Querida tudo quanto estava
ouvindo. A cada pergunta que Cedric fazia, respondia Hobbes com novas
exclamações de indignação, muito vermelho e congestionado.

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A meio desta conversa entrou na loja a criada Maria. O pequeno pensou

que ela viesse fazer compras, mas não era disso que se tratava. A boa mulher
estava pálida e agitada.

- Venha, meu amor. A mãezinha mandou-o chamar.
Cedric saltou para o chão, despediu-se de Hobbes e acompanhou a criada.
- A Querida vai sair? - perguntou ele.
Maria não respondeu, mas olhou de tal maneira para o pequenito, que ele

sobressaltou-se.

- Aconteceu alguma coisa, Maria?
- Esta vida é cheia de surpresas! - murmurou ela.
- Mas que foi?!
- Quem havia de pensar! - balbuciou a criada, sem responder directamente

ao pequeno.

- A Querida está doente?
- Não, menino, não é nada disso.
- Então que é? - insistiu ele, já impaciente. Mas a criada não havia meio de

responder. Ao chegar a casa, Cedric viu uma carruagem parada em frente da
porta. A mãe estava na sala do primeiro andar, com um senhor que ele não
conhecia. Que queria dizer tudo aquilo?

Apressadamente, Maria levou-o ao quarto e vestiu-lhe o fatinho de verão,

de flanela creme com gola cor-de-rosa. Penteou-lhe cuidadosamente os cabelos
e, por fim, disse, quase a medo:

- Um lorde! Nem mais nem menos! Um lorde! E também é conde! Quem

havia de dizer!

Cedric, cada vez mais intrigado, já nem se atrevia a interrogar a criada. A

mãe, com certeza, lhe explicaria tudo. Por isso não perguntou mais nada. Mas a
boa mulher não se calava, repetindo sempre:

“Um conde! Tem que ser tratado por senhoria!”
Logo que se viu pronto, Cedric, desceu as escadas, a correr, e entrou na

sala. O senhor que falava com a mãe estava sentado numa poltrona; era velho,
alto e magro, com a barba inteiramente rapada. A mãe estava de pé, muito
pálida; tinha os olhos cheios de lágrimas!

Quando o viu, correu para ele e, apertando-o entre os braços, exclamou:
- Meu filho! Meu querido filho!
O senhor, então, levantou-se e fitou Cedric demoradamente. Depois

passou a mão pelo queixo. A criança causara-lhe boa impressão.

Com um ligeiro sorriso, inclinou-se, como se fizesse uma reverência, e

disse lentamente:

- Sua Senhoria o pequeno Lorde Fauntleroy!

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Os amigos de Cedric


A surpresa de Cedric não pode descrever-se. Durante a semana que se

seguiu, tudo lhe pareceu estranho e irreal. Por mais que pensasse, não
conseguia decifrar o que significavam as palavras do velho que
inesperadamente os visitara.

Depois de ele sair, a mãe contou-lhe uma história extraordinária, que ele

ouviu atentamente, mas que não compreendeu bem... Foi preciso repeti-la, para
o pequenito se convencer.

O avô, que ele nunca tinha visto, era conde, e o mais velho dos tios seria,

também, conde, um dia, se não tivesse morrido em consequência de uma queda
que dera de um cavalo. Depois desse desastre, o título pertencia ao outro tio;
mas também esse morrera, repentinamente, durante uma viagem a Roma. Se o
pai de Cedric fosse vivo, seria, por morte dos irmãos, o herdeiro do título. Mas,
como ele também já não pertencia ao número dos vivos, era Cedric quem viria a
ser conde, quando o avô morresse. Entretanto, era, desde já, Lorde Fauntleroy.

Ao saber isto, o pequeno empalideceu e, abraçando a mãe, exclamou:
- Oh! Querida, eu não quero ser conde! Nenhum dos rapazes que eu

conheço é conde. Não me podem dispensar disso?

A mãe explicou-lhe que não era possível. E, enquanto anoitecia, mãe e

filho conversaram longamente, junto da janela, donde se avistava a modesta
rua em que moravam. Cedric, sentado num banquinho, como era seu costume,
tinha uma expressão de espanto, e corava com o esforço que fazia para reflectir.

Soube, então, que o avô mandara à América o Sr. Havisham - aquele

mesmo que ele encontrara na sala, e que era uma pessoa da intimidade e
confiança do velho conde - encarregando-o de levar Cedric para Inglaterra.

A mãe achava que ele devia ir, e dizia-lhe, com uma tristeza muito doce:
- Tenho a certeza de que seria esse o desejo de teu pai. Ele adorava a sua

pátria! Além disso, há outras razões que um menino da tua idade não pode
ainda compreender bem. Eu seria muito egoísta se não te deixasse ir. Quando
fores um homem, compreenderás tudo.

O pequenito, porém, estava profundamente triste.
- Tenho muita pena de me separar da mamã! - murmurou ele. - Também

tenho pena do Sr. Hobbes! Ele vai sentir a minha falta... E eu vou sentir a falta
de todos, todos...

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O Sr. Havisham voltou no dia seguinte, e Cedric soube ainda mais coisas

extraordinárias: o enviado do conde de Dorincourt disse-lhe que ele seria muito
rico e possuiria castelos, grandes parques, minas, vastas propriedades e
numerosos empregados. Isto, porém, não conseguiu modificar a disposição de
Cedric, que não se conformava com a nova situação. Pensava no seu amigo
Hobbes e preocupava-se com a opinião dele acerca de tudo o que, tão
inesperada mente, estava sucedendo.

Depois do almoço, o seu primeiro cuidado foi procurá-lo, e dirigiu- se

para a mercearia com o espírito muito perturbado.

O pequenito encontrou o Sr. Hobbes a ler o jornal da manhã, e aproximou-

se dele com ar grave.

Adivinhava que a notícia da transformação que acabava de dar-se na sua

vida não podia deixar de impressionar o seu amigo; por isso procurava a
maneira mais agradável de lha dar.

Quando ele apareceu, o Sr. Hobbes exclamou:
- Bom dia!
- Bom dia! - respondeu Cedric.
Não saltou, como era seu costume, para cima de um caixote. Sentou-se

sobre uma caixa de bolachas e, juntando as mãos sobre os joelhos, deixou-se
ficar silencioso. Estranhando aquela atitude, o merceeiro levantou os olhos do
jornal e fitou o pequeno com ar interrogador.

- Que há? - perguntou.
Cedric reuniu toda a sua coragem e respondeu:
- Lembra-se da conversa que tivemos ontem de manhã?
- Deixe-me ver. Parece-me que foi acerca da Inglaterra.
- Sim - disse Cedric. - Mas eu refiro-me ao que nós dizíamos quando a

Maria veio chamar-me, lembra-se?

Hobbes coçou a cabeça e disse:
- Falávamos da rainha Vitória e da aristocracia inglesa.
- Isso mesmo... - concordou Cedric, com uma certa hesitação. - E... também

falámos nos condes... não foi?

- Exactamente! Dissemos o que pensávamos de todos eles, creio eu.
Cedric corou até à raiz dos cabelos. Nunca, na sua vida, se sentira tão

embaraçado, e parecia-lhe que a situação era igualmente embaraçosa para o Sr.
Hobbes. Depois de uns instantes de silêncio, o pequeno continuou:

- O senhor disse que não lhes permitiria que se sentassem nas suas caixas

de bolachas...

- Disse e repito! - exclamou Hobbes, com energia. Que experimentem, se

querem ver...

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- Sr. Hobbes - disse, então, Cedric -, neste momento está um conde sentado

nas suas caixas de bolachas.

- O quê?! - gritou o merceeiro sobressaltado.
- É assim mesmo - confirmou Cedric, com ar modesto. - Eu sou conde... ou

por outra, hei-de sê-lo, mais tarde. Não quero enganá-lo.

Hobbes estava agitadíssimo. Levantou-se e foi ver o termómetro.
- O calor subiu-lhe à cabeça! - exclamou, voltando-se para o seu jovem

amigo e observando-lhe o rosto. O dia está muito quente. O menino sente-se
mal? Dói-lhe alguma coisa? Quando foi que o menino adoeceu?

Ao dizer isto, o homem punha a mão, carinhosamente, sobre os cabelos do

pequenito. A situação tornava-se cada vez mais embaraçosa.

- Estou bem, muito obrigado - respondeu Cedric. Não me dói nada. Tenho

muita pena de que seja verdade, Sr. Hobbes, mas foi exactamente por causa
disso que a Maria me veio chamar. O Sr. Havisham estava lá em casa a explicar
tudo à mamã, e o Sr. Havisham é advogado, conhece perfeitamente a lei.

Hobbes deixou-se cair sobre a cadeira e enxugou o suor que lhe cobria a

fronte.

- Um de nós apanhou sol na cabeça... - exclamou ele.
- Não se trata disso, está enganado. Acredite o que lhe digo, Sr. Hobbes: o

Sr. Havisham veio propositadamente de Inglaterra para nos explicar isto. Foi o
meu avô que o mandou.

O merceeiro olhou com ar perfeitamente desorientado para o rostozinho

grave e ingénuo que estava na sua frente.

- Como se chama o seu avô? - perguntou ele. Cedric meteu a mão na

algibeira e tirou de lá, cuidadosamente, um bocado de papel, sobre o qual tinha
escrito qualquer coisa, com a sua caligrafia irregular.

- Como é difícil de decorar, escrevi aqui o nome - disse ele. E leu em voz

alta, lentamente: - “John Arthur Molinex Eol, Conde de Dorincourt. Aqui tem o
nome dele. Vive num castelo - creio mesmo que vive em dois ou três castelos - e
o meu pai era o seu filho mais novo. Se o meu pai não tivesse morrido, eu não
seria lorde. E o meu pai não seria conde se os dois irmãos mais velhos, que ele
tinha, não tivessem morrido também. Mas como morreram todos, e eu fiquei
sendo o único homem da família, sou obrigado a ser conde e o meu avô
mandou- me buscar pelo Sr. Havisham, que me levará com ele para Inglaterra.

Hobbes, cada vez mais vermelho, transpirava abundantemente, e

enxugava a testa e a calva, respirando com força. Começava a compreender
que, na realidade, tinha sucedido qualquer coisa extraordinária. Porém, ao
olhar para o pequenito, sentado sobre a caixa de bolachas, que o olhava também
com uma expressão inquieta no rosto infantil, e ao verificar que ele tinha o

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mesmo aspecto e era, tal qual, o mesmo rapazinho gentil, que tinha visto na
véspera, vestido de preto e com uma gravata vermelha, toda esta his tória de
títulos e nobreza lhe parecia fantástica. O que o desorientava ainda mais era a
maneira simples e ingénua como Cedric lhe fazia semelhante revelação, sem
perceber, ele próprio, o que havia de prodigioso em tudo aquilo.

- Como. como disse o menino que era o seu nome? - perguntou Hobbes,

por fim.

- Cedric Errol, Lorde Fauntleroy - respondeu a criança. - Foi assim que o

Sr. Havisham me chamou.

- Muito bem! Sim senhor! Demónios me levem!
Era uma exclamação que Hobbes empregava sempre nos momentos de

grande surpresa. E, naquela ocasião, não encontrou mais nada que dizer para
exprimir o seu espanto.

Cedric achou que a exclamação se adaptava bem à situação. Tinha tanta

admiração pelo Sr. Hobbes, que aprovava tudo o que ele dizia, sem perceber,
ainda, que a linguagem do seu amigo nem sempre era elegante. Evidentemente,
achava que o Sr. Hobbes era muito diferente da mamã, mas a mamã era uma
senhora e ele achava que as maneiras das senhoras eram diferentes das dos
homens. Olhou para o merceeiro com ar sonhador e perguntou:

- A Inglaterra é longe daqui, não é?
- Fica no outro lado do oceano Atlântico - respondeu Hobbes.
- Isso é que me aborrece mais - disse Cedric. - Talvez passe muito tempo

sem o ver, Sr. Hobbes; é o que mais me custa.

- Quantas vezes os melhores amigos são obrigados a separar-se! -

observou Hobbes.

- E nós já somos amigos há muito tempo!
- Desde que o menino nasceu. Tinha seis semanas, pouco mais ou menos,

quando atravessou a rua, pela primeira vez, ao colo da criada.

- Quem me diria então que eu me veria obrigado a ser conde! - exclamou

Cedric, suspirando.

- E não há maneira de evitar que isso suceda?
- Creio que não - respondeu Cedric. - A mamã diz que o papá teria

gostado muito que isto acontecesse. Mas, visto que é forçoso eu ser conde, há
uma coisa que posso fazer: ser um conde bom. E se alguma vez houver o perigo
de uma guerra entre a Inglaterra e a América, procurarei evitá-la.

A conversa entre Cedric e Hobbes foi longa e séria. Passado o espanto dos

primeiros momentos, o merceeiro não se mostrou tão descontente como seria de
esperar. Achou preferível tirar partido da situação e fez muitas perguntas a
Cedric. Como o pequenito não estava à altura de responder a todas, Hobbes

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procurou responder ele próprio, e uma vez lançado no capítulo dos condes,
marqueses e lordes, explicou várias coisas de uma forma que teria, certamente,
surpreendido deveras o Sr. Havisham, se o digno procurador do conde de
Dorincourt o pudesse ouvir.

Na realidade, o Sr. Havisham já se sentia bastante admirado. Vivera

sempre em Inglaterra e não estava habituado aos costumes americanos. Havia
quarenta anos que tinha relações com a família Dorincourt. Conhecia a fundo
tudo o que dizia respeito aos seus vastos domínios, à sua grande fortuna e ao
lugar de relevo que ocupava na alta sociedade inglesa. Embora conforme a sua
maneira de ver, fria e fleumática, interessava-se deveras por aquele pequenito
que seria, mais tarde, senhor de todos os bens e conde de Dorincourt. Sabia
quantas humilhações os outros filhos haviam causado ao velho conde, e a cólera
que o casamento do mais novo lhe provocara. Sabia também como o conde
continuava a odiar a jovem viúva, a quem se referia sempre com palavras
duras, afirmando que ela não passava de uma intrigante vulgar, que tivera artes
de levar ao casamento o comandante Errol, porque o sabia filho de gente nobre.

O próprio Havisham estava também convencido disso. Habituara-se a

encontrar, ao longo da sua carreira de advogado, pessoas interesseiras e
egoístas. Além disso, tinha, acerca dos americanos, uma opinião pouco
lisonjeira.

Logo que a sua carruagem entrara na rua banal onde morava a Sr. a Errol,

e parara em frente da casa, tão modesta, que ela habitava, Havisham sentira-se
surpreendido. Era-lhe doloroso pensar que o futuro senhor dos castelos de
Dorincourt, de Wyndham Tomers, de Chorlworth e de tantas outras
maravilhas, tinha nascido e fora criado naquela insignificante habitação,
perdida num bairro popular. Perguntava a si próprio como poderia ser a
criança, e que espécie de pessoa seria a mãe. A perspectiva de ir travar
conhecimento com aquelas duas criaturas não lhe causava o menor prazer.
Sentia-se orgulhoso da nobre família, cujos negócios dirigia há tantos anos, e
ser-lhe-ia muito desagradável ter que tratar com uma pessoa vulgar e
interesseira, sem consideração pela pátria de seu marido, nem respeito pelo seu
nome.

Quando a criada o introduziu na pequena sala, examinou tudo o que o

rodeava.

O mobiliário era simples, mas a casa tinha um ar de conforto e intimidade.

As poucas gravuras que guarneciam as paredes eram de muito bom gosto, e
havia também bonitos bordados executados, sem dúvida, por mãos de mulher.

“Por agora não há nada a dizer” - pensou ele. - “Isto deve ter sido ainda o

gosto do marido”.

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No entanto, quando a Sr. a Errol entrou na sala, ele disse, de si para si, que

talvez fosse, afinal, o gosto dela.

Se Havisham não fosse um velho bem senhor de si, certamente não teria

podido dominar um gesto de surpresa ao vê-la aparecer. Com o seu vestido
preto, muito simples, justo ao corpo, parecia mais uma rapariguinha do que a
mãe de um rapaz de oito anos.

Os seus grandes olhos escuros tinham uma expressão terna e ingénua, e

no rosto transparecia-lhe aquela doce melancolia, que nunca mais perdera
depois da morte do marido.

A experiência pessoal do advogado ensinara-lhe a decifrar o carácter das

pessoas com quem falava, e, logo que viu a mãe de Cedric, compreendeu que o
conde cometera um grande erro, ao considerá-la uma mulher vulgar e
interesseira.

Havisham não era casado, nem estivera nunca apaixonado; no entanto, ao

ver aquela encantadora criatura, de olhar triste, sentiu que ela se tornara esposa
do capitão Errol unicamente porque o amava, sem qualquer ideia de ambição.
Compreendeu também que não lhe levantaria dificuldades e, além disso, teve a
impressão de que o pequeno Lorde Fauntleroy, apesar de tudo, talvez não
deslustrasse a sua nobre família. O capitão Errol fora um belo homem; a mãe
era, realmente, muito bonita; havia, portanto, probabilidades de o pequeno ter
um físico agradável.

Quando Havisham disse à Sr. e Errol o motivo da sua visita, ela tornou-se

muito pálida e exclamou:

- Oh! vem então buscar o meu filho? Ele é toda a minha felicidade! Não

tenho mais ninguém no mundo! E é tão meu amigo! Tenho feito tudo para lhe
dar uma boa educação.

A sua voz tremia, ao pronunciar estas palavras, e os olhos encheram-se-lhe

de lágrimas.

- Não pode imaginar o que esta criança representa para mim! - murmurou

ela.

Havisham tossiu, para aclarar a voz.
- Devo dizer-lhe - continuou ele - que o conde de Dorincourt não está

muito bem disposto a seu respeito. É um velho de carácter violento, fortemente
agarrado às suas ideias. Nunca gostou da América nem dos americanos, e o
casamento do filho desgostou-o em extremo. Lamento estar encarregado de
uma comunicação tão desagradável, mas é meu dever dizer-lhe que ele não
quer vê-la, a si. O seu desejo é que Lorde Fauntleroy seja educado sob a sua
direcção e que viva junto dele. O conde afeiçoou-se à sua residência de
Dorincourt, onde passa a maior parte do ano. Sofre de ataques de gota e não

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gosta de viver em Londres. Por consequência, Lorde Fauntleroy viverá
principalmente em Dorincourt. O conde oferece-lhe a si, minha senhora, como
residência, Court Lodge, um bonito pavilhão agradavelmente situado nas
proximidades do castelo. Oferece-lhe, além disso, uma mesada em harmonia
com a sua situação. Lorde Fauntleroy irá visitá-la muitas vezes. A única
imposição do conde é esta: a viúva do capitão Errol não poderá, sequer,
transpor os portões do parque. Como vê, não ficará verdadeiramente separada
do seu filho. Afirmo-lhe que esta proposta não é tão dura... como poderia ser.
Tenho a certeza que avaliará bem as vantagens enormes, de meio e educação,
oferecidas a Lorde Fauntleroy.

A mãe de Cedric afastou-se um pouco, voltou-se e ficou uns momentos em

frente da janela, como se contemplasse a rua. Porém, Havisham compreendeu
perfeitamente que ela procurava dominar a sua comoção, e admirou
sinceramente a serena coragem daquela jovem mulher, disposta a sacrificar-se
pelo bem do filho.

Minutos depois, a Sr. a Errol veio novamente para junto de Havisham e

fixou nele um olhar pensativo. Depois continuou:

- Sim, o desejo de meu marido era que o filho fosse educado em Inglaterra.

Estou convencida de que o conde não terá a crueldade de o separar de mim, e
mesmo que o tentasse, sei que o meu Cedric é muito parecido com o pai e não
mudaria. Ainda que estejamos separados, continuará a querer-me com toda a
sua ternura. Por meu lado, desde que possa vê-lo, não me queixarei.

Enquanto ela falava, o advogado ia pensando: < <Só pensa no filho. Para

ela não impõe condições”. Depois, erguendo a voz, disse:

- Minha senhora, rendo homenagem à sua abnegação em favor de seu

filho. Ele próprio lhe agradecerá, mais tarde, a sua atitude de agora.

- Espero - murmurou a mãe, com a voz ligeiramente trémula - que o avô

de Cedric seja carinhoso para ele. O pequeno tem uma natureza afectiva e viveu
sempre rodeado de ternura.

Havisham tornou a tossir. Não acreditava que o velho conde, gotoso e

irascível, se afeiçoasse fosse a quem fosse.

Mas estava convencido de que ele procuraria mostrar-se bom, à sua

maneira, para o herdeiro do seu nome e da sua fortuna. E também sabia que, se
o pequeno se mostrasse à altura da sua condição, o avô teria orgulho nele. Por
isso respondeu:

- Lorde Fauntleroy será muito bem tratado, pode ter a certeza, minha

senhora.

Quando a Sr. a Errol mandou chamar Cedric, o enviado do conde de

Dorincourt sentiu um ligeiro choque, ao ouvir a criada dizer:

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- Não terei muito trabalho a procurá-lo. A esta hora deve ele estar na

mercearia, sentado nalgum caixote, a discutir política com o Sr. Hobbes, ou a
brincar com o sabão, as velas e as batatas.

Os receios de Havisham aumentaram. Em Inglaterra, os filhos dos fidalgos

não costumam conviver com merceeiros. Seria lamentável que a criança tivesse
adquirido hábitos ordinários, em semelhante companhia.

Lembrou-se, então, de que os filhos mais velhos de Lorde Dorincourt

sempre haviam gostado de conviver com gente grosseira, e fora essa uma das
mais amargas humilhações que o conde sofrera, por causa deles. Quem sabe se
aquele pequenito herdara as más inclinações dos tios, em vez das nobres
qualidades do pai?

Esta ideia atormentava-o, enquanto continuava a conversa com a Sr. a

Errol. Quando a porta se abriu, Havisham hesitou um momento antes de olhar
para Cedric; mas, logo que os seus olhos pousaram no rapazinho, que correu a
abraçar a mãe, todos os receios desapareceram. Verificou imediatamente que
era uma das crianças mais belas que tinha visto; desenvolvido para a idade,
forte e esbelto, tinha um rosto encantador, de expressão franca, decidida, e
erguia a cabeça, muito direita, com natural distinção. A semelhança com o pai
era evidente. Tinha os cabelos loiros do capitão Errol e os olhos escuros da mãe,
mas no seu olhar, confiante e sereno, não havia a menor sombra de tristeza.
Dava a impressão de não ter medo de coisa alguma.

“Nunca vi um rapazinho tão gentil e com tão boa apresentação” - pensou

Havisham, mas em voz alta disse apenas:

- Sua Senhoria o pequeno Lorde Fauntleroy!
A partir desse momento, o enviado do conde de Dorincourt encontrou-se

muitas vezes com Cedric, que o surpreendia cada vez mais.

Havisham não estava habituado a conviver com crianças, embora

conhecesse muitas. A verdade é que não interessavam ao seu feitio cerimonioso
e rígido de homem de leis. Com Cedric, porém, não sucedia assim. Talvez o
interesse que lhe merecia o destino do pequeno Lorde Fauntleroy o levasse a
observá-lo mais de perto. Fosse qual fosse a razão, o que é certo é que o
pequeno despertara extraordinariamente a sua atenção e a sua curiosidade.

Cedric, sem perceber que estava sendo objecto de minucioso exame,

conservava toda a sua naturalidade. Apertava a mão que Havisham lhe
estendia e respondia às suas perguntas com a mesma espontaneidade com que
responderia ao Sr. Hobbes. Não era tímido nem atrevido, e Havisham reparou
que, quando ele próprio conversava com a Sr. a Errol, o pequenito seguia a
conversa com o mesmo interesse de uma pessoa crescida.

- Tem o ar de um homenzinho muito ponderado - disse Havisham à mãe.

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- Em muitas coisas, sim. Mostrou sempre uma grande facilidade em

aprender, e como tem vivido principalmente com pessoas mais velhas, tem uma
maneira engraçada de empregar palavras e expressões complicadas, que ouve
em conversas ou encontra nos livros. Mas também gosta de se distrair. Julgo
que é bem dotado sob o ponto de vista de inteligência, o que não o impede de
ser um rapazinho alegre e brincalhão.

No dia seguinte, Havisham teve ocasião de observar que esta afirmação da

mãe era verdadeira.

Quando ele se dirigia de carruagem, como de costume, a casa da Sr.a

Errol, ao dobrar a esquina, viu um grupo de rapazes que pareciam muito
excitados. Dois, dentre eles, preparavam-se para fazer uma corrida, e um dos
pequenos campeões, aquele que tinha peúgas vermelhas, era, exactamente, o
jovem Lorde Fauntleroy, que gritava e se entusiasmava tanto como o mais
ruidoso dos seus amigos. Estava colocado a par do outro concorrente, com a
perna direita para a frente.

- Um... Preparem-se! - gritou o árbitro. - Dois... Atenção! Três... Partida!
Havisham debruçou-se na portinhola, cheio de interesse. Não se lembrava

de ter visto coisa alguma semelhante ao espectáculo oferecido por esse pequeno
lorde, lançado em corrida, a devorar terreno com toda a velocidade das ágeis
pernas, os punhos cerrados, a cabeça direita, o rosto contraído.

- Coragem, Ced Errol!. - gritavam os outros garotos, agitando os braços,

num entusiasmo louco, próprio da sua idade.

- Coragem, Billy Williams. Vá, Ced. Vá, Billy. “É ele quem vai ganhar” -

pensava Havisham. A rapidez com que as pernas de peúgas vermelhas
avançavam, os gritos dos rapazes e os esforços desesperados das pernas
morenas do outro concorrente, que era também um bom corredor, excitavam o
grave advogado inglês, mesmo sem ele dar por isso.

“Realmente. oxalá que ele ganhe!“ - dizia Havisham, de si para si, tossindo

levemente como se quisesse desculpar-se a si próprio.

Nesse mesmo instante, o grupo dos pequenos espectadores da corrida

agitou-se freneticamente e ouviam-se exclamações ainda mais selvagens que as
precedentes: num arranco magnífico, o futuro conde de Dorincourt tinha
chegado ao ponto onde a corrida terminava, dois segundos antes de Billy.

- Viva Ced Errol! - aclamavam os rapazes, como loucos. - Hurrah por Ced

Errol!!

Havisham retirou a cabeça da portinhola e murmurou: Bravo, Lorde Fau

ntleroy “

Quando a carruagem parou em frente da casa da Sr. a Errol, Havisham

avistou o vencedor e o vencido, caminhando juntos, seguidos pelo grupo

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ruidoso dos outros pequenos. Cedric falava com Billy. O seu rosto estava muito
vermelho e tinha uma expressão excitada. Os caracóis doirados colavam-se-lhe
à fronte húmida de transpiração, e trazia as mãos metidas nas algibeiras.

- Sabes? - dizia ele ao outro, com evidente intenção de lhe adoçar a

sensação da derrota. - Estou convencido de que ganhei porque as minhas
pernas são um pouco mais compridas do que as tuas. Foi por isso, com certeza.
E, além disso, sou mais velho três dias do que tu, o que é também uma
vantagem.

Esta maneira de apreciar as coisas devia ter agradado a Billy, porque

principiou a sorrir e tomou um ar quase tão triunfante como se, na realidade,
tivesse ganho a corrida, em vez de a ter perdido.

Cedric Errol sabia, maravilhosamente, consolar as pessoas; no entusiasmo

da vitória, pensava que o seu concorrente não devia estar tão satisfeito como
ele, e achou que, certamente, daria prazer imaginar que, noutras condições,
poderia, talvez, ter ganho.

Nesse mesmo dia, Havisham teve com o jovem campeão uma conversa,

durante a qual sorriu por mais de uma vez, e passou a mão pelo queixo, como
era seu costume, quando alguma coisa o impressionava deveras.

A Sr.a Errol, a quem a criada veio chamar, teve que sair da sala, para

resolver qualquer assunto que requeria a sua atenção, e Havisham ficou só com
Cedric.

A princípio, o advogado perguntou a si próprio o que diria ao pequeno.

Sem dúvida, devia ir preparando Cedric para o encontro com o avô, e também
para a mudança que ia dar-se na sua vida. Já notara que o pequenito não fazia a
menor ideia do que ia encontrar em Inglaterra, nem do género de existência que
ali o esperava. Ignorava igualmente que ia viver separado da mãe. Tanto ela
como Havisham haviam achado preferível informá-lo disso mais tarde.

O advogado e Cedric estavam sentados em confortáveis poltronas, um a

cada lado da janela. Com a cabeça encostada ao estofo, as pernas cruzadas e as
mãos muito enterradas nas algibeiras, à maneira de Hobbes, Cedric olhava para
Havisham. Observara-o atentamente, enquanto a mãe se conservara na sala, e
continuava a fitá-lo agora, com uma expressão de respeitoso interesse.

Quando ficaram a sós, houve um breve silêncio, durante o qual o

advogado e a criança pareciam querer estudar-se mutuamente. Havisham
perguntava a si próprio qual seria a melhor maneira de um velho falar a um
rapazinho de calção e peúgas vermelhas, cujas pernas não chegavam ainda ao
chão, quando ele se enterrava numa espaçosa poltrona. Mas Cedric, como se
adivinhasse, livrou-o de embaraços, tomando, de repente, a palavra.

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- Sabe uma coisa, Sr. Havisham? - disse ele. - Não faço a menor ideia do

que venha a ser um conde!

- Isso é verdade?
- É! - respondeu Cedric. - E parece-me que uma pessoa que há-de vir a ser

conde um dia, deve saber o que isso é. Não acha?

- Com certeza que sim! - respondeu Havisham.
- Importa-se de me explicar - perguntou Cedric, delicadamente - que é,

afinal, um conde?

- A princípio - explicou Havisham - o título de conde era concedido por

um rei ou por uma rainha, em reconhecimento por serviços prestados ao
soberano, ou em recompensa de qualquer acção heróica.

- Nesse caso é como para ser presidente! - exclamou Cedric.
- Ah! Sim? É assim que o presidente é eleito?
- Pois é! - respondeu o pequenito, com ingenuidade. - Quando um homem

é muito bom e muito sábio, nomeiam-no presidente. Há marchas luminosas,
bandas a tocar, e toda a gente faz discursos. Eu até já tinha pensado que podia,
mais tarde, vir a ser presidente; o que nunca me passou pela cabeça foi que
ainda havia de ser conde. É verdade que nunca ouvira falar em condes... -
apressou-se ele a explicar, receando que esta indiferença pudesse parecer
indelicada.

- Ser conde ou presidente não é bem a mesma coisa!
- observou Havisham.
- Não? - exclamou Cedric. - E qual é a diferença? Não há marchas

luminosas?

Havisham cruzou as pernas, ajustou cuidadosamente os dedos da mão

direita aos da mão esquerda e tentou dar uma explicação.

- Um conde é uma pessoa... muito importante.
- E o presidente também! - interrompeu Cedric. As marchas luminosas têm

quase duas léguas de comprimento, toca a música e deitam foguetes. O Sr.
Hobbes levou-me, uma vez, a ver tudo isto.

- Um conde - continuou Havisham - é quase sempre de muito antiga

linhagem.

- Que quer isso dizer? - perguntou o pequenito.
- Quer dizer que descende de uma família muito antiga... muito velha.
- Ah! - exclamou Cedric, enterrando ainda mais as mãos nas algibeiras - é

como a vendedeira de maçãs que está ao pé do parque. Pode-se dizer que é de
muita antiga linhagem. É tão velha, tão velha, que ninguém sabe como ela pode
conservar-se de pé. Tem mais de cem anos, com certeza. E, apesar disso, está
sempre na rua, esteja o tempo que estiver. Eu tenho pena dela, e os outros

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rapazes também. Uma ocasião, o Billy Williams tinha quase um dó lar, e eu
pedi-lhe que comprasse todos os dias cinco cêntimos de maçãs, até gastar o
dinheiro todo. Assim chegava para vinte dias. Mas, infelizmente, ele enfartou-se
das maçãs, ao fim de uma semana. Então - foi uma sorte! - um senhor deu- me
meio dólar, e eu pude comprar as maçãs, em lugar do Billy. Faz pena ver
alguém assim tão pobre e de tão velha linhagem. Ela diz que a sente nos ossos e
que, quando chove, ainda é pior!

Havisham olhava para o pequenito, enquanto ele falava, e sentia-se

ligeiramente embaraçado.

- Parece que não me compreeendeu bem! - explicou ele, por fim. - Quando

eu falava de “antiga linhagem” não queria dizer “velhice”. Queria dizer que o
nome dessa família já era conhecido há muitos anos. Durante centenas de anos,
talvez, muitas pessoas usaram aquele mesmo nome, ou desempenharam um
papel na História do seu país.

- É tal como George Washington - disse Cedric. Ouço falar dele desde que

nasci, e é conhecido ainda há mais tempo! O Sr. Hobbes diz que nunca se
esquecerá dele. É por causa da declaração da Independência e do Quatro de
Julho, sabe? É um homem muito valente!

- O primeiro conde de Dorincourt foi nomeado conde há quatrocentos

anos! - disse Havisham, em tom solene.

- Oh! Oh! - exclamou Cedric. - Isso é muito tempo! É preciso dizer à

Querida; deve interessá-la muito. E, depois de ser nomeado, o que faz o conde?

- Muitos ajudaram a governar a Inglaterra. Alguns eram muito valentes e

distinguiram-se nos campos de batalha.

- Também eu gostava de combater! O meu papá era soldado e era muito

valente - tão valente como George Washington. Talvez fosse por ser filho de um
conde. Gosto muito de saber que os condes são valentes. É uma grande
vantagem! Dantes, eu tinha medo da escuridão; mas comecei a pensar nos
soldados da Revolução e em George Washington, e perdi o medo.

- Às vezes, há ainda outra vantagem em ser conde - disse lentamente

Havisham, e fixou no pequenito os seus olhos penetrantes, com uma expressão
particular. E continuou: - Alguns condes têm muito dinheiro.

Tinha curiosidade em saber se o seu jovem amigo conhecia o poder do

dinheiro.

- Deve ser muito agradável - respondeu Cedric ingenuamente. - Eu

gostava de ter muito dinheiro.

- Gostava? - perguntou Havisham. - Porquê?
- Ora! Porque há muitas coisas que se podem fazer com dinheiro. Por

exemplo: à vendedeira de maçãs, se eu fosse rico, havia de comprar- lhe uma

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barraca para ela estar abrigada, um fogão para ela se aquecer, e havia de dar-lhe
um dólar, todos os dias, quando chovesse, para não precisar de sair de casa. E
depois... Oh! também lhe dava um xaile. Bem vê, com o xaile já lhe não doíam
tanto os ossos. Os ossos dela não são como os nossos; doem-lhe quando se
mexe. Deve ser horrível. Se eu tivesse dinheiro, com certeza que ela não sofreria
tanto.

- Bem - disse Havisham. - E que mais faria, Lorde Fauntleroy, se fosse

rico?

- Oh! Muitas coisas! Como é natural, dava os mais lindos presentes à

Querida: carteiras de agulhas, leques, dedais de ouro, anéis, uma enciclopédia e
uma carruagem, para ela nunca mais ter que esperar pelo ónibus. Se ela
gostasse de vestidos de seda cor-de-rosa, também lhe comprava alguns, mas ela
prefere os pretos. Havia de a levar aos maiores estabelecimentos, para ela
escolher o que quisesse. E depois, Dick...

- Quem é Dick? - perguntou Havisham.
- Dick é um engraxador - explicou o jovem lorde, animando-se cada vez

mais, ao fazer tão maravilhosos projectos. - É o engraxador mais gentil que se
possa imaginar. Está a um canto da rua, num bairro central. Já o conheço há
muitos anos. Uma vez, quando eu era pequenino, fui passear com a Querida, e
ela comprou-me uma linda bola, que se podia atirar muito alto. De repente
escapou-se-me das mãos e rolou na calçada, no meio de carruagens e cavalos.
Fiquei tão triste, que comecei a chorar - eu era ainda muito pequeno, só tinha
três anos. - Dick estava a engraxar os sapatos de um senhor. Gritou: “- Espere,
menino!”, e correu por entre os cavalos, até apanhar a minha bola. Limpou-a ao
casaco e veio dar-ma, dizendo: “- Aqui tem! Esta não se parte!” A Querida
achou isto muito gentil e eu também. Depois disso, quando passeamos para
aquele lado, vamos sempre cumprimentá-lo. Ele costuma dizer-me “- Como
está?”, e eu respondo: “- Bem, obrigado!” Conversamos um bocadinho, e ele
conta-me como vão os negócios. Parece que agora correm mal.

- E que desejaria fazer por ele? - perguntou o advogado, coçando o queixo

com um sorriso singular.

- Se eu tivesse dinheiro - disse Lorde Fauntleroy, enterrando-se ainda mais

na poltrona, com um ar de homem de negócios -, compraria a parte de Jack.

- Quem é Jack? - perguntou Havisham.
- É o sócio de Dick; e, pelo que Dick me conta, é o pior sócio que há no

mundo! Não honra o negócio; não é honesto. Até o senhor ficaria raivoso se
engraxasse calçado, o melhor que pudesse, mostrando-se honesto e leal em
negócios, e, entretanto, o seu sócio fizesse exactamente o contrário. Os fregueses
gostam do Dick mas detestam Jack, e é por isso que nunca mais voltam. Aqui

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tem a razão pela qual, se eu fosse rico, compraria a parte de Jack e mandaria
fazer uma bonita tabuleta para o Dick. Ele diz que não há nada para atrair
fregueses como uma bonita tabuleta. Também havia de lhe comprar escovas e
fatos novos, para o ajudar a “lançar-se”. A única coisa que ele deseja é
exactamente poder “lançar-se”.

Cedric contava a sua historiazinha, citando, ao mesmo tempo, certos ditos

em calão, usados pelo seu amigo Dick, com a maior ingenuidade e confiança. A
ideia de que o respeitável Sr. Havisham podia não se interessar pelo que ele
contava, nem sequer lhe passou pela cabeça. Efectivamente, Havisham
começava a mostrar-se vivamente interessado, mas não era, talvez, tanto pelo
engraxador e pela vendedeira de maçãs, como por aquela encantadora criança,
cujo cérebro trabalhava tão activamente, fazendo planos a favor dos seus
amigos e esquecendo- se completamente de si próprio.

- E para si, que compraria, Lorde Fauntleroy, se fosse rico? - perguntou

ele.

- Muitas coisas! - respondeu logo Lorde Fauntleroy. - Mas, primeiro, daria

algum dinheiro à Maria, para a Brígida. A Brígida é uma irmã dela que tem
doze filhos e o marido desempregado. Costuma vir cá a casa e chora. Então, a
Querida dá-lhe coisas, numa cesta, e ela torna a chorar e a dizer: “-Deus a
abençoe, minha rica senhora!”. Também penso que o Sr. Hobbes haveria de
gostar de ter um relógio e uma corrente de ouro, como recordação minha, assim
como um cachimbo de espuma. E depois... gostaria de me alistar num
regimento!

- Um regimento? Para quê? - exclamou Havisham.
- Para fazer como na festa nacional - explicou Cedric, que se entusiasmava

cada vez mais. - Teria archotes, uniforme e insígnias para mim e para os meus
camaradas. Faríamos marchas, exercícios, reconhecimentos... Aqui tem o que eu
queria, se fosse rico.

A porta abriu-se e a Sr.a Errol entrou.
- Peço desculpa de me ter demorado tanto, mas tive que atender uma

pobre mulher, que tem uma vida muito amargurada e costuma vir visitar-me
de vez em quando.

- Lorde Fauntleroy tem estado a falar-me de alguns dos seus amigos, e do

que desejaria fazer por eles, se fosse rico - disse Havisham.

- Brígida faz parte dos seus amigos - respondeu a Sr.a Errol - e foi com ela,

exactamente, que eu estive a conversar. Neste momento, a situação dela é
angustiosa, porque, além de tudo o mais, o marido está com um ataque de
reumatismo articular.

Cedric desceu apressadamente da cadeira e disse:

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- Vou cumprimentá-la e desejar as melhoras do marido. Gosto muito dele

porque, um dia, fez-me uma espada de madeira. É muito habilidoso!

O pequeno saiu, a correr. Havisham levantou-se e ficou, um momento a

reflectir. Depois de uma breve hesitação, olhou para a Sr.a Errol e disse:

- Antes de deixar Dorincourt tive, com o conde, uma longa conversa,

durante a qual recebi instruções, em relação a Lorde Fauntleroy. O conde deseja
ardentemente que o neto aceite, com alegria, a ideia de ir viver em Inglaterra e
conhecer o avô. Recomendou-me que lhe explicasse bem que a mudança
operada na sua vida lhe dará, além da riqueza, tudo o que as crianças apreciam.
Desde que Lorde Fauntleroy manifeste um desejo, devo satisfazê-lo e dizer-lhe
que o avô lhe dará tudo quanto ele quiser. Estou convencido de que o conde
não imaginou que o neto tivesse desejos desta ordem, mas, se Lorde Fauntleroy
se sente feliz socorrendo essa pobre mulher, estou certo de que o conde ficaria
zangado ao saber que eu não satisfizera a sua aspiração.

A verdade, porém, é que a generosidade do conde não tinha uma intenção

elevada. Se o pequeno Lorde Fauntleroy não fosse, de sua natureza, um carácter
bondoso e recto, o resultado dessa generosidade poderia ser terrível. Quanto à
Sr. a Errol, era incapaz de qualquer suposição má. Pensava que um velho
solitário e infeliz por ter perdido os filhos certamente desejaria mostrar-se
generoso para o neto, a fim de conquistar a sua confiança e afeição.

Alegrava-a a ideia de que Cedric poderia ajudar Brígida, e sentia- se feliz

ao pensar que a primeira consequência daquela extraordinária mudança de
sorte, era o filho poder praticar um acto caridoso. Fez-se corada e exclamou:

- Oh! Que grande bondade, da parte de Lorde Dorincourt. Como Cedric

vai ficar contente.

Havisham tirou uma carteira do bolso interior do casaco. O seu rosto tinha

uma expressão singular. Na verdade, perguntava a si próprio o que diria o
conde, ao saber qual fora o primeiro desejo expresso pelo neto. Que pensaria o
velho fidalgo, irritável, egoísta e tão profundamente agarrado aos bens deste
mundo?

- Não sei se já compreendeu bem que o conde de Dorincourt tem uma

enorme fortuna e pode satisfazer seja que fantasia for - disse ele. - Julgo que
ficará contente, ao saber que todos os desejos de Lorde Fauntleroy foram
satisfeitos. Quer ter a bondade de o chamar?! Se me autoriza, dar-lhe-ei
dinheiro suficiente para ajudar os seus protegidos.

- Cinco libras! Vinte e cinco dólares! - exclamou a Sr. a Errol. - Para aquela

pobre gente é uma verdadeira fortuna? Será possível?

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- Absolutamente possível - respondeu Havisham, com o seu discreto

sorriso. - Deu-se uma grande transformação na vida do seu filho, minha
senhora; vai ter nas mãos um grande poder.

- Oh! - protestou a Sr. á Errol. - Mas ele é ainda uma criança! Uma criança!

Como poderei ensiná-lo a fazer bom uso desse poder? Sinto- me quase
assustada. Meu adorado filho, meu amor...

O advogado tossiu ligeiramente, para aclarar a voz. O seu velho coração,

seco e indiferente, comoveu-se com a expressão de ternura e receio que viu nos
olhos da jovem mãe. E disse:

- Pela conversa que tive com Lorde Fauntleroy, estou convencido de que o

futuro conde de Dorincourt saberá pensar primeiro nos outros do que em si
próprio. É ainda uma criança, mas creio que se pode confiar nele.

A Sr. a Errol foi buscar Cedric. Quando se aproximavam, Havisham ouviu

o pequeno dizer:

- Parece que é um reumatismo muito mau! Ainda não pagaram a renda da

casa, e isso ainda os faz mais doentes.

Quando entraram na sala, Cedric trazia uma expressão apoquentada.

Dirigindo-se a Havisham, disse:

- A Querida disse-me que o senhor quer falar-me. Eu estava a conversar

com a Brígida.

Havisham fitou-o um momento. Era, na realidade, uma criança

encantadora!

- O conde Dorincourt... - começou ele. Olhou para a Sr. a Errol. A mãe de

Lorde Fauntleroy ajoelhou junto do filho e enlaçou-o nos braços. Depois disse:

- Cedric! O conde é teu avô, pai do teu pai. É muito bom, gosta muito de ti

e quer que tu gostes também muito dele, porque os filhos que ele tinha
morreram todos. Deseja que sejas feliz e faças os outros felizes. É muito rico e
quer que te deem tudo o que tu desejares. Disse isto ao Sr. Havisham e
entregou-lhe muito dinheiro para ti. Podes dar uma parte a Brígida - o
necessário para ela pagar a renda da casa e comprar remédios para o marido.
Que dizes a isto, Cedric? Como o teu avô é bom!

Ao terminar, beijou carinhosamente as faces do filho que o espanto

tornara coradas.

O olhar de Cedric ia da mãe para Havisham. De repente, perguntou:
- Posso ter o dinheiro já? Posso dá-lo imediatamente? A Brígida vai- se

embora.

Havisham estendeu-lhe a mão com dinheiro - um belo maço de notas de

banco, muito novinhas.

Cedric, sem esperar mais nada, saiu da sala, a correr. Ouviram-no a gritar:

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- Brígida! Brígida! Espera um instante! Aqui tens dinheiro para pagar a

renda da casa. Foi o meu avô quem mo deu! É para ti e para o teu marido.

- Oh! menino Cedric! - exclamou Brígida, com a voz alterada. - São vinte e

cinco dólares! Onde está a senhora?

Ouvindo isto, a Sr. a Errol disse a Havisham:
- Tenho que ir explicar-lhe.
Saiu também da sala, e Havisham ficou só, um momento. Foi até à janela e

olhou para a rua, com ar pensativo. Imaginava o conde de Dorincourt sentado
na biblioteca do castelo, uma sala esplêndida mas triste; imaginava o velho
fidalgo gotoso e solitário cercado de luxo e esplendor, mas sem ter a estima de
ninguém; porque, durante toda a sua vida, só gostara verdadeiramente de si
próprio.

Sempre se mostrara egoísta, arrogante e violento; toda a sua fortuna e a

sua influência, todas as vantagens que lhe vinham do seu nome e da sua
elevada categoria social, apenas tinham servido para lhe proporcionar, a ele
próprio, distracções e satisfação. Nunca pensara nos outros. E agora, que a
velhice chegara, toda esta vida agitada e unicamente consagrada ao prazer,
tinha, como consequência, a falta de saúde, a má disposição, um génio irascível
e o desdém pela vida de sociedade, que já não conseguia interessá-lo!

Apesar de toda a sua magnificência, não havia fidalgo menos popular do

que o conde de Dorincourt, nem velho mais isolado.

Podia, sem dúvida, encher o palácio de hóspedes escolhidos, dar grandes

recepções e esplêndidas caçadas. Mas ele próprio não ignorava que todas essas
pessoas que acei tavam os seus convites, no íntimo, temiam as suas palavras
mordazes e sarcásticas, os seus modos desabridos, porque ele sempre gostara
de ferir a susceptibilidade dos outros, ou vexá-los, principalmente se eram
tímidos.

Havisham conhecia melhor do que ninguém os modos desagradáveis do

conde. E era em tudo isto que ele pensava, enquanto olhava para a rua, estreita
e tranquila.

Depois, em vivo contraste, surgiu no seu espírito a figura do encantador

rapazinho sentado na sua frente, a contar a história de Dick e da vendedeira de
maçãs, com tanta candura e generosidade.

Havisham pensou nos imensos rendimentos, nas magníficas propriedades

e no poder de fazer bem ou mal, que se encontrariam, um dia, naquelas mãos
que o pequeno Lorde Fauntleroy costumava meter nas algibeiras.

E pensou: “Vai ser muito diferente, muito diferente!” Pouco depois Cedric

e a mãe voltaram à sala. O pequeno estava excitadíssimo. Sentou-se entre a mãe

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e o advogado e tomou uma das suas atitudes predilectas: as mãos sobre os
joelhos. Estava radiante, ao pensar na alegria e no alívio de Brígida.

- Imagine que começou a chorar! - contou ele a Havisham. - Disse que

chorava de alegria. Foi a primeira vez que vi chorar alguém de alegria. O meu
avô é muito bom! No fim de contas é mais agradável ser conde do que eu
pensava. Estou quase satisfeito... quase satisfeito ao pensar que, mais tarde, o
serei também.

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A partida


A opinião favorável que Cedric começava a ter acerca das vantagens de

ser conde, aumentou ainda no decorrer da semana seguinte.

Custava-lhe até a acreditar que podia fazer tudo quanto queria.
Depois de algumas conversas com Havisham, compreendeu, pelo menos,

que era possível realizar os seus mais caros desejos, o que ele procurou fazer
imediatamente, com um entusiasmo tão grande, que divertiu bastante o velho
inglês.

E assim, nas vésperas da partida para Inglaterra, Havisham viu-se forçado

a desempenhar missões singulares.

Nunca mais poderia esquecer aquela manhã em que Cedric o levou a

visitar Dick, num bairro central de Nova Iorque, e a tarde em que anunciaram à
vendedeira de maçãs que ia ter uma barraca, um fogão, um bom xaile e uma
quantia, em dinheiro, que pareceu, à pobre mulher, verdadeiramente fantástica.

- É porque eu vou para Inglaterra, para ser lorde - explicou Cedric, com

doçura. - E nos dias de chuva eu sofreria, ao pensar nos seus ossos. Agora,
espero que se sentirá melhor.

Quando se afastaram, deixando a boa mulher tão espantada, que lhe

custava a acreditar na sua felicidade, Cedric ia dizendo a Havisham:

- É muito bondosa e gentil, esta velha de linhagem. Um dia, em que eu caí

e esfolei um joelho, ela ofereceu-me uma maçã. Nunca mais me esqueci. Como é
natural, nós lembramo-nos sempre de quem foi bom para nós.

Aquele rapazinho; de alma simples e bem formada, não supunha que

houvesse alguém capaz de esquecer os benefícios recebidos.

A visita a Dick foi de palpitante interesse. Dick acabava de ter uma grave

questão com Jack, e estava muito abatido quando chegaram os dois visitantes.
Ao ouvir Cedric afirmar-lhe, com a maior naturalidade, que todos os seus
aborrecimentos iam acabar, anunciando-lhe, ao mesmo tempo, que resolvera
oferecer-lhe tudo quanto ele precisava, o honesto Dick ficou tão surpreendido
que, por uns momentos, nem pôde falar.

Quanto a Havisham, ficou impressionado pela maneira clara, simples e

precisa como Lorde Fauntleroy expôs ao jovem engraxador o fim da sua visita.

Ao saber que o seu amiguinho se tornara lorde e que viria a ser conde,

Dick abriu muito os olhos e ficou tão sobressaltado, que o boné caiu-lhe ao

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chão. Ao apanhá-lo, soltou uma exclamação, que pareceu estranha a Havisham,
mas que Cedric já lhe tinha ouvido mais vezes:

- Que grande patranha!
Como não podia deixar de ser, Cedric não gostou e respondeu logo, muito

senhor de si:

- Toda a gente pensa que é mentira: o Sr. Hobbes até imaginou que eu

apanhara sol na cabeça. Eu próprio, a princípio, não acreditei, mas já me
convenci. Agora, quem é conde é o meu avô, e ele quer que eu faça tudo o que
me der prazer. É muito bom, apesar de ser conde, e mandou-me muito dinheiro
pelo Sr. Havisham. Foi desse dinheiro que tirei a quantia que te dou para te
desembaraçares de Jack e comprares tudo o que te faz falta.

Tal como a velha vendedeira de maçãs, Dick mal podia acreditar na sua

boa sorte. Parecia-lhe um sonho e chegava a ter medo de acordar!

À despedida, Cedric estendeu-lhe a mão e disse- lhe:
- Desejo-te boa sorte nos negócios! Escreve-me a dar notícias. Não te

esqueças de que somos bons amigos. Aqui tens a minha direcção. (Ao dizer isto,
deu-lhe um bocado de papel onde estava escrita a sua nova morada. ) Já não me
chamo Cedric Errol; sou Lorde Fauntleroy! Até à vista, Dick!

O engraxador tinha lágrimas nos olhos. Queria falar e não podia. Só a

custo conseguiu dizer:

- Tenho muita pena de que se vá embora!
Depois, voltando-se para Havisham, levou a mão ao boné e acrescentou:
- Muito obrigado!
Quando os dois se afastaram, Dick ficou imóvel, a segui-los, com os olhos

rasos de água e a garganta apertada, até que eles desapareceram.

Nos dias que antecederam a partida, o pequeno Lorde Fauntleroy passou

todos os momentos que pôde com o seu amigo Hobbes. O pobre homem estava
profundamente triste e abatido. Quando o seu amiguinho lhe entregou, com ar
triunfal, um relógio e uma corrente de ouro, como presente de despedida,
Hobbes mal soube agradecer. Colocou o estojo sobre o balcão e assoou-se
ruidosamente várias vezes.

- Tem umas palavras escritas - disse Cedric. - Veja no interior da tampa.

Fui eu mesmo quem disse ao relojoeiro o que devia escrever: “Lembrança de
Lorde Fauntleroy ao seu velho amigo Hobbes. Para se lembrar do seu amigo”.
Não quero que se esqueça de mim!

Hobbes tornou a assoar-se e respondeu, com voz enrouquecida pela

comoção:

- Nunca me esquecerei de si! Talvez suceda o contrário, e o menino se

esqueça de mim, lá no meio da sua aristocracia inglesa!

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- Está enganado! - exclamou Cedric. - Esteja onde estiver, nunca o

esquecerei. Tenho até esperança de que me vá visitar um dia. O meu avô ficaria
encantado. Talvez ele próprio lhe escreva, a convidá-lo. E se assim for... não
recuse, não! Lá pelo convite vir de um conde...

- Com certeza! Se ele me convidar, irei imediatamente!
- respondeu Hobbes.
Chegou finalmente o momento da partida. As malas foram transportadas

para o vapor e a carruagem que devia conduzi-las parou em frente da porta.
Nesse instante, uma estranha melancolia invadiu a alma do pequenito. A mãe
fechara-se, durante alguns minutos, no quarto. Quando desceu a escada, tinha
os olhos húmidos e os lábios trémulos. Cedric correu para ela. Abraçaram-se e
beijaram-se. A criança sentia que qualquer coisa os entristecia, mas não sabia
explicar o quê. De repente, teve uma ideia e exclamou:

- Nós gostávamos muito da nossa casinha, não é verdade, Querida? E

havemos de gostar sempre dela, não é verdade?

- Sim... sim respondeu a mãe, em voz baixa e muito doce. E repetiu: - Sim,

meu tesouro!

Na carruagem, Cedric sentou-se muito encostado à mãe e enquanto ela se

debruçava na portinhola, para lançar um derradeiro olhar para tudo o que
deixava, o pequenito pegou-lhe na mão e acariciou-lha ternamente.

Depois, sem transição, sem quase saberem como, encontraram-se a bordo,

no meio de um movimento enorme e de um ruído ensurdecedor.

Cedric reparava interessadamente em tudo o que o rodeava: viajantes que

chegavam, outros que procuravam as bagagens; malas, cestos, caixotes,
guindastes, cordas, oficiais que davam ordens; gente que se despedia - uns
choravam, outros acenavam com lenços brancos. Olhava também para os salva-
vidas, os mastros muito altos, que parecia tocarem no céu, e fez logo projecto de
conversar com os marinheiros e pedir-lhes que lhe contassem histórias de
piratas e ilhas desertas.

No último instante, quando se debruçava na ponte superior, para observar

as manobras finais, percebeu que alguém pretendia atravessar por entre um
grupo de pessoas que estava a seu lado. Essa pessoa queria chegar junto dele.
Era um rapaz que trazia uma coisa vermelha na mão. Foi então que o pequeno
Lorde Fauntleroy reconheceu Dick.

- Vim a correr - disse o engraxador. – Queria desejar-lhe boa viagem. O

negócio “vai de vento em popa”! Comprei este presente para si, com o dinheiro
que ganhei ontem. Perdi o papel do embrulho quando me “esgueirei” por entre
esses “tipos” que não me queriam deixar passar. É um lenço de seda. É para
fazer boa figura lá no meio dessa “gente da alta”.

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Disse tudo isso sem parar, como se fosse uma só frase. Ouviu-se uma

campainha e, antes que Cedric pudesse pronunciar uma única palavra, Dick foi-
se embora, gritando com toda a força:

- Tenho que me “pôr a andar!” Até à vista! Não se esqueça de usar o lenço!
Atravessou a ponte como uma flecha, exactamente no último instante

antes da partida. Depois, no cais, parou, tirou o boné e agitou-o no ar. Cedric, lá
em cima, segurava na mão um lenço de seda vermelha, guarnecido de
ferraduras cor de violeta.

O barulho era cada vez maior.
- Até à vista! Adeus! Até à vista! - parecia que todos gritavam, ao mesmo

tempo.

- Não se esqueça! Escreva- me! Até à vista! Até à vista!
O pequeno Lorde Fauntleroy, muito debruçado, agitava o lenço vermelho

e gritava com quanta força tinha:

- Até à vista, Dick! Muito obrigado! Até à vista!
Então, o navio principiou a afastar-se, e os seus clamores redobraram. A

multidão agitava-se no cais. A Sr.a Errol puxou o véu para os olhos. Mas Dick
viu apenas um claro rosto de criança, uma cabeleira loira que brilhava ao sol, e,
no meio de todo aquele ruído, só ouvia uma voz infantil que gritava: “- Até à
vista, Dick!” - enquanto o navio se movia lentamente, levando o pequeno Lorde
Fauntleroy para longe da terra onde nascera, para a pátria dos seus
antepassados.

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Em Inglaterra


Foi mesmo durante a viagem que a mãe de Cedric lhe explicou que não

viveriam juntos, na mesma casa, e esta notícia causou-lhe uma tal tristeza, que
Havisham compreendeu como o conde fizera bem em decidir que a mãe
habitasse perto do filho e pudesse vê-lo muitas vezes.

Era evidente que, noutras circunstâncias, a criança não suportaria a

separação. Mas a mãe soube convencê-lo com tanta ternura, de que estaria
muito perto dele, que pouco tempo depois Cedric deixou de estar atormentado
com a ideia de se separarem.

- A casa em que eu viverei não é longe do castelo
- repetia ela, sempre que falavam no assunto. - Poderemos ver-nos todos

os dias, e tu terás sempre muitas coisas para me contar. A casa para onde tu
vais viver é muito bonita. O teu pai falava-me dela muitas vezes. Gostava muito
dela, e tu também hás-de gostar!

- Mas, gostaria muito mais, se a Querida lá vivesse também - respondeu o

jovem lorde, com um fundo sus piro.

Não podia compreender por que razão a mãe devia viver numa casa e ele

noutra.

A Sr.a Errol achava preferível não lhe explicar as razões desta resolução e

dissera a Havisham:

- Se lhe disser a verdade, isso far-lhe-á muita impressão. Tenho a certeza

de que se afeiçoará mais facilmente ao avô se ignorar que ele tem por mim uma
tal aversão. É preferível não lhe dizer nada, pois, de contrário, pode cavar-se
uma barreira entre o conde e ele, apesar de Cedric ser ainda uma criança.

Ficou, então, combinado que Havisham diria apenas a Cedric que uma

forte razão misteriosa, que ele era ainda muito pequeno para compreender,
impedia a mãe de viver com ele e com o avô, no castelo. Mais tarde saberia
tudo.

A verdade é que, apesar de todas as explicações da mãe, o pequeno lorde

não se conformava com aquela ideia.

- Desagrada-me muito, muito! - disse um dia ao advogado. - Ninguém

pode imaginar quanto me desagrada que a Querida viva numa casa à parte.
Mas, enfim, há muitas coisas desagradáveis na existência e é preciso suportá-
las. Ouvi dizer isto à Maria e ao Sr. Hobbes. Além disso, a Querida quer que

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viva feliz ao pé do avô, porque ele perdeu todos os filhos que tinha. Tenho
muita pena dele!

Uma das coisas que encantava toda a gente que convivia com o pequeno

Lorde Fauntleroy era o ar atento com que seguia todas as conversas. Este ar, as
observações, próprias de pessoas crescidas, que fazia frequentemente e a
expressão ao mesmo tempo grave e ingénua do seu rosto infantil, eram
irresistíveis. Havisham gostava cada vez mais de conversar com ele.

- Está, então, disposto a gostar muito do conde de Dorincourt? -

perguntou-lhe um dia.

- Estou. É da minha família e nós gostamos sempre da nossa família. Além

disso, foi muito gentil para mim, e quando alguém é assim tão gentil para nós,
devemos estimá-lo, mesmo que não seja da nossa família. Ora, sendo meu avô,
devo estimá-lo ainda mais.

- Parece-lhe que ele gostará também de si, Lorde Fauntleroy? - insistiu

Havisham.

- Oh! Sem dúvida! Bem vê, eu também sou da sua família e sou o filho do

seu filho. Tenho mesmo a certeza de que já gosta de mim, senão não me
mandaria buscar e não satisfaria todos os meus desejos.

- Realmente... - concordou Havisham.
- Sim - repetiu Cedric -, é natural que um avô goste do neto. Não é da

minha opinião?

Os passageiros simpatizavam, todos, com o pequeno Lorde Fauntleroy,

como se conhecessem a sua romântica história. Viam-no correr de um lado para
o outro, passear com toda a seriedade entre a mãe e Havisham, ou conversar
animadamente com os marinheiros, e todos lhe queriam bem. Mas era entre os
marinheiros que ele tinha os seus melhores amigos. Contavam-lhe histórias
maravilhosas de ilhas desertas, de piratas e naufrágios, ensinavam-lhe a
entrançar cordas, a aparelhar barquinhos de madeira, e explicavam-lhe
minuciosamente as manobras de bordo. Cedric aprendia termos náuticos,
empregando-os depois nas suas conversas com os passageiros, que lhe achavam
imensa graça.

Jerry, um velho “lobo do mar” que, segundo ele dizia, já fizera duas ou

três mil viagens, contava-lhe as peripécias mais extraordinárias da sua vida,
aumentadas agora pela sua própria imaginação. A acreditar no que dizia, Jerry
já tinha sido parcialmente assado, comido e escalpelizado pelos canibais, uma
boa dúzia de vezes.

- É por isso que ele é calvo - explicava Lorde Fauntleroy à mãe. - Quando

se é escalpelizado muitas vezes, os cabelos nunca mais tornam a nascer. Jerry
tinha uma bonita cabeleira, mas o rei dos canibais arrancou-lha, para ele

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próprio a usar. E como Jerry estava a tremer de medo, os cabelos puseram-se-
lhe em pé e nunca mais tornaram a ficar macios. E agora, o rei dos canibais usa
a cabeleira de Jerry, toda espetada, como uma escova. Nunca ouvi histórias tão
extraordinárias! Quem me dera contá-las ao Sr. Hobbes!

Nos dias em que fazia mau tempo, os passageiros, reunidos no salão,

pediam a Cedric que contasse histórias de Jerry, e o pequenito, sentado no meio
deles, encantava-os com a ingenuidade e a graça das suas narrativas.

Por seu lado, Cedric costumava dizer à mãe:
- As histórias de Jerry agradam a toda a gente! É pena ele já não se lembrar

bem e confundir, às vezes, umas histórias com outras. Também não admira!
Quando se foi escalpelizado várias vezes, é natural perder-se a memória.

Onze dias depois de terem embarcado, chegaram a Liverpool. No dia

seguinte, ao anoitecer, a carruagem que os conduzia parava em frente do
pavilhão de Court Lodge. Como estava escuro, a casa distinguia-se mal. Cedric
viu apenas que havia uma alameda com grandes árvores, uma porta aberta e
um raio de luz que viriha de dentro. A fiel Maria, que os havia acompanhado,
chegara a Court Lodge primeiro que eles. Quando saltou da carruagem, Cedric
avistou-a logo com mais duas criadas que os esperavam no vasto vestíbulo.

Lorde Fauntleroy correu para ela, com uma exclamação de contentamento:
- Chegaste bem, Maria? Querida, a Maria está aqui! E, ao dizer isto, beijou

as faces vermelhas da velha criada.

A Sr. a Errol também se mostrou satisfeita. A presença de Maria fazia- lhe

bem. Parecia-lhe, assim, que estaria menos só. Estendeu- lhe a mão, que a criada
apertou afectuosamente, como se adivinhasse o que lhe ia na alma.

As criadas inglesas observaram mãe e filho com viva curiosidade. Tinham

ouvido as coisas mais disparatadas acerca deles; sabiam que o conde não
gostava da nora e que, por isso mesmo, ela ficaria vivendo no pavilhão, ao
passo que a criança iria para o castelo. Também sabiam que o pequenito era o
herdeiro da imensa fortuna do conde, e conheciam perfeitamente, por
experiência própria, o irascível fidalgo, os seus ataques de gota e as suas fúrias.

- Não te invejamos a sorte, pequeno - diziam elas. Mas ignoravam

absolutamente a personalidade de Lorde Fauntleroy, a sua maneira de ser e o
seu carácter.

O futuro conde de Dorincourt observava tudo: o vestíbulo espaçoso, com

numerosos quadros, as cabeças de veado e todos os objectos curiosos que o
ornamentavam. Era diferente de tudo quanto ele tinha visto, até então.

- É uma casa muito bonita, não achas, Querida?
- disse ele. - Gosto que fiques a viver aqui! É uma grande casa.

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Era, realmente, uma grande casa, comparada com aquela onde haviam

vivido em Nova Iorque. Maria conduziu-os ao primeiro andar, a um quarto de
cama forrado de tecido claro, onde ardia um belo fogo. Uma gata persa, branca
de neve, dormia regaladamente perto do lume.

- Foi a governante do castelo que a mandou para a senhora. Diz que

sempre é uma companhia - explicou Maria. - A governante é boa pessoa e veio,
pessoalmente, preparar tudo, aqui. Ela disse-me que estimava muito o capitão
Errol, e que teve imensa pena dele. Contou-me que o capitão, em criança, era
lindo, e que depois, quando se fez homem, tinha sempre uma palavra agradável
para toda a gente. Então eu disse- lhe: “- Pois saiba, minha senhora, que o
capitão Errol deixou um filho que é tal qual como ele “.

Pouco depois, mãe e filho desceram e dirigiram-se a uma grande sala,

muito bem iluminada e com mobiliário sumptuoso. Em frente do fogão estava
estendida uma grande pele de tigre e, de cada lado, havia uma poltrona.

A linda gata branca, sensível às festas de Lorde Fauntleroy, seguiu-o

quando voltaram para o rés-do-chão. Cedric estava encantado com ela e
estendeu-se no tapete, deixando- se ficar assim, com a cabeça encostada à dela,
a acariciá-la, sem prestar atenção ao que a mãe e Havisham diziam.

Falavam em voz baixa e a Sr. a Errol, um pouco pálida, parecia comovida.
- É forçoso que ele vá hoje? - perguntou ela.
- Não, não é necessário ir já hoje - respondeu Havisham. - Irei eu,

pessoalmente, logo que acabemos de jantar, prevenir o conde da nossa chegada.

A Sr. a Errol contemplou o filho, e depois sorriu tristemente, dizendo:
- O conde não avalia, com certeza, o que me leva. Depois, fitando

Havisham, acrescentou:

- Quer fazer-me o favor de lhe dizer que eu prefiro não receber este

dinheiro?

- Este dinheiro?! - exclamou Havisham. - Quer dizer, a mesada que ele

resolveu conceder-lhe?

- Exactamente - respondeu ela, com simplicidade. Prefiro não a receber.

Aceitarei a casa, para viver, porque não pode ser de outra maneira, e fico muito
grata ao conde de Dorincourt, pois, assim, tenho possibilidade de ficar perto do
meu filho. Mas eu possuo algum dinheiro - o suficiente para levar uma vida
simples. O conde tem tal aversão por mim, que eu teria um pouco... a impressão
de lhe vender Cedric. Cedo-lhe, sim, mas unicamente porque é para bem do
meu filho e porque o pai gostaria que ele fosse educado aqui.

Havisham coçou o queixo.
- A sua resolução é muito estranha - disse ele. - O conde de Dorincourt vai

ficar descontente e não compreenderá a sua maneira de ver.

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- Se reflectir, compreenderá. Para o necessário, não preciso de dinheiro. E

porque havia de aceitá-lo, para o supérfluo, da parte de um homem que me
detesta, a ponto de me tirar o meu filho. o filho do seu filho?

Havisham ficou silencioso durante um momento. Depois respondeu:
- Transmitir-lhe-ei o que deseja.
Serviram o jantar. A gata instalou-se numa cadeira ao lado de Cedric, e ali

se conservou até se levantarem da mesa.

Quando, mais tarde, Havisham se apresentou no castelo, foi logo

introduzido nos aposentos do conde, que encontrou comodamente instalado
numa grande poltrona, junto do fogão.

O velho fidalgo fixou em Havisham o olhar penetrante e o advogado

compreendeu que, apesar da sua aparência impassível, o conde estava nervoso
e intimamente agitado.

- Ei-lo de volta, Havisham. Que notícias me traz? - perguntou ele.
- Lorde Fauntleroy e sua mãe chegaram a Court Lodge
- respondeu Havisham. - Fizeram boa viagem e estão de perfeita saúde.
O conde teve um gesto impaciente e disse, bruscamente:
- Tanto melhor! Até aqui tudo vai bem. Ponha-se à vontade, Havisham;

tome um cálice de Porto e sente-se. Tem mais alguma coisa para me dizer?

- O jovem lorde passará esta noite com a mãe. Acompanhá-lo-ei amanhã

ao castelo.

O conde tinha o cotovelo apoiado ao braço da poltrona. Levantou a mão

até aos olhos, como se quisesse ocultá-los. Depois disse:

- E então? Continue. Recomendei-lhe que não me escrevesse; portanto

ignoro tudo. É um rapaz de que género? A mãe não interessa. Como é o rapaz?

Havisham bebeu um gole de vinho do Porto e respondeu, com o cálice na

mão, muito ponderadamente:

- É difícil apreciar o carácter de uma criança de oito anos.
Lorde Dorincourt estava fortemente apreensivo. Olhou para Havisham

com expressão dura e deixou escapar palavras desagradáveis:

- Nesse caso, é um parvo? Ou um malcriado? Adivinha-se-lhe logo o

sangue americano, não é assim?

- Creio que o sangue americano não o prejudicou! - respondeu o

advogado, no seu tom frio e calmo. - Tenho pouca experiência de crianças, mas
esta causou-me excelente impressão.

Havisham exprimia-se sempre com uma grande serenidade, mas, naquela

noite, a sua maneira de falar era ainda mais reservada. Parecia-lhe preferível
que o conde formasse, por si próprio, a sua opinião acerca do neto, sem
qualquer influência estranha.

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- É saudável e bem desenvolvido? - perguntou ainda o avô.
- Tem uma aparência absolutamente saudável e está muito desenvolvido.
- Boa figura e com um físico aceitável?
Nos lábios finos de Havisham passou um imperceptível sorriso.
- Parece-me uma linda criança, mas talvez eu não seja bom juiz no

assunto... - respondeu. - Em todo o caso, vai achá-lo um pouco diferente da
maioria das crianças inglesas.

- Não duvido... - resmungou o velho fidalgo. - As crianças americanas não

passam de um bando de malucos e atrevidos. Têm-mo dito muitas vezes.

- Não notei que ele fosse uma coisa nem outra - observou Havisham. - Não

sei bem explicar a diferença que acho entre ele e os nossos jovens compatriotas.
É uma espécie de mistura de infantilidade e ponderação.

- É mas é o atrevimento americano. - protestou o conde. - Há muito tempo

que sei isso... Chamam-lhe precocidade. franqueza. Cá por mim chamo-lhe
impertinência, grosseria e maneiras ordinárias!

Havisham bebeu mais uns goles de Porto. Evitava sempre discutir com o

seu nobre cliente, principalmente quando ele estava com um ataque de gota,
como agora sucedia. Nessas ocasiões era preferível não o contrariar. Por isso,
houve uns minutos de silêncio. Por fim, Havisham disse:

- A Sr.a Errol encarregou-me de lhe transmitir um desejo...
- Não tenho nada a ver com os desejos de semelhante criatura - exclamou

Lorde Dorincourt, irritado. - Quanto menos ouvir falar nela, melhor.

- Trata-se de uma coisa importante - explicou o advogado. - Ela prefere

não aceitar a mesada que Vossa Senhoria tenciona dar-lhe.

O conde teve um sobressalto.
- O quê? - gritou ele. - Que quer isso dizer? Havisham repetiu o que

dissera e acrescentou:

- Ela pensa que não necessita desse dinheiro, e como não existem entre ela

e Vossa Senhoria relações... como direi?. relações amigáveis.

- Amigáveis! - respondeu o velho fidalgo, cada vez mais exaltado. - Com

certeza que as nossas relações não são amigáveis! Essa mulher é- me odiosa!
Uma americana ambiciosa e barulhenta! Nem a quero ver!

- Senhor conde - disse Havisham -, não tem o direito de lhe chamar

ambiciosa. Ela não pediu nada. Não aceita, mesmo, o dinheiro que lhe oferece.

- É tudo uma comédia! - replicou asperamente o fidalgo. - O que ela quer é

convencer-me do seu desinteresse. Mas não me convence! Não consentirei que
ela viva, como uma pobre qualquer, à porta do meu parque. Desde que é a mãe
de Lorde Fauntleroy, tem uma situação a manter e há-de mantê-la. Receberá o
dinheiro quer queira, quer não!

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- Não o gastará! - respondeu Havisham.
- Isso pouco me importa. Mas há-de recebê-lo. Não poderá contar, a quem

lhe apetecer, que leva uma vida miserável porque eu a abandono. O que ela
quer é impressionar mal o filho a meu respeito. A estas horas já o indispôs
contra mim.

- Não! - exclamou Havisham. - Tenho ainda mais alguma coisa para dizer

a Vossa Senhoria, que lhe provará não ser verdade o que pensa.

- Não quero ouvir mais nada! - gritou o conde, com a voz alterada pela

cólera, pela comoção e pela gota.

Apesar disso, o advogado continuou:
- A Sr. a Errol pede a Vossa Senhoria que não deixe perceber a Lorde

Fauntleroy a aversão que tem por ela. A criança adora-a, e esse ódio levantaria
uma barreira entre avô e neto. Ela explicou a Lorde Fauntleroy que era ainda
muito pequeno para compreender a razão pela qual viveria separado da mãe,
mas que, mais tarde, compreenderia tudo. Ela deseja que não haja nenhuma
sombra entre Vossa Senhoria e Lorde Fauntleroy.

O conde de Dorincourt recostou-se na poltrona. Pelos seus olhos, de

expressão dura, muito enterrados sob as fortes sobrancelhas, passou um rápido
clarão.

- Quer, então, convencer-me de que a mãe não explicou a Lorde

Fauntleroy o motivo desta separação? - exclamou, com voz um pouco trémula.

- Não lhe disse uma única palavra - respondeu Havisham. - Posso afirmá-

lo! Lorde Fauntleroy considera Vossa Senhoria o avô mais amável e carinhoso
do mundo.

Ninguém lhe disse nada, absolutamente nada, que possa fazê-lo duvidar

da bondade e da perfeição do conde de Dorincourt. Além disso, como eu lhe
satisfiz todos os desejos que manifestou antes de deixar Nova Iorque, conforme
as instruções de Vossa Senhoria, ele considera o avô um prodígio de
generosidade.

- Está convencido disso?
- Afirmo, sob a minha palavra de honra, que a impressão de Lorde

Fauntleroy acerca do avô depende unicamente de Vossa Senhoria. E, se me
permite ser inteiramente franco, dir-lhe-ei que acho preferível não lhe falar da
mãe com desdém.

- Hum! Hum!. . - resmungou o conde. - O pequeno só tem oito anos.
- Mas viveu esses oito anos junto da mãe, que ele adora acima de tudo no

mundo - respondeu Havisham.

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O castelo de Dorincourt


A carruagem que conduzia Lorde Fauntleroy e Havisham dirigiu-se ao

castelo, no dia seguinte, quando principiava já a entardecer. O conde de
Dorincourt ordenara que lhe levassem o neto antes do jantar; e recomendara,
também, que o introduzissem, sozinho, na sala onde ele próprio o receberia.

Enquanto a carruagem subia a avenida, o pequeno Lorde Fauntleroy,

confortavelmente recostado em luxuosas almofadas, olhava atentamente para o
que o rodeava. Tudo lhe parecia maravilhoso, desde a paisagem aos soberbos
cavalos, de arreios reluzentes, que puxavam o carro, ao cocheiro e ao
trintanário, vistosamente fardados. A coroa que estava pintada nas portinholas
intrigara-o imenso, e não resistira ao desejo de perguntar a um criado o que
aquilo significava.

Quando a carruagem chegou frente das grandes portas do parque, Cedric

debruçou-se para ver melhor os enormes leões de pedra que estavam à entrada.
O portão foi aberto por uma mulher nova e gentil que saiu de uma casinha
coberta de hera. A seguir vieram duas crianças, a correr, e olharam para ele com
os olhos muito abertos. A mãe fazia reverências, a sorrir, e, a um sinal seu, os
pequenitos fizeram também o mesmo.

- Ela conhece-nos? - perguntou o pequeno lorde. Naturalmente pensa que

já me viu em qualquer parte.

E, ao dizer isto, Cedric sorriu-lhes e, tirando a sua boina de veludo, disse:
- Bom dia! Como passou?
A mulher parecia contentíssima, porque o seu sorriso tornou-se ainda

mais amável e os seus olhos azuis iluminaram-se, com uma expressão de
reconhecimento.

- Que Deus o abençoe, milorde! - exclamou ela - Sentimo-nos muito felizes

por poder dar-lhe as boas-vindas!

Lorde Fauntleroy agitou a boina e dirigiu novos sinais amigáveis à

simpática mulher quando a carruagem passou.

- Esta criatura agrada-me. Deve gostar de crianças - declarou ele. - Hei-de

vir brincar com os filhos dela.

Quantos serão? Gostava de saber se chegarão para formar uma

“companhia”.

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Havisham não se atreveu a dizer-lhe que havia poucas probabilidades de

o autorizarem a brincar com os filhos da porteira. O advogado pensou que ele
tinha tempo de saber todas estas coisas.

A carruagem continuava por entre as belas árvores que marginavam a

avenida, sobre a qual estendiam os seus ramos, formando como que uma
abóbada.

Cedric nunca vira árvores semelhantes; ignorava ainda que o castelo de

Dorincourt era um dos mais sumptuosos de Inglaterra, que o seu parque
figurava entre os mais belos e que aquela avenida, com as suas árvores
frondosas não podia comparar-se a nenhuma outra. No entanto, admirava a
beleza de tudo quanto avistava e sentia-se encantado.

Por entre as árvores distinguia longos prados, campos de fetos

surpreendentes, outras árvores igualmente belas.

De vez em quando, tinha um sobressalto e ria, despreocupadamente, ao

ver um coelho sair de um maciço de verdura e fugir, depois, assustado,
agitando o rabito branco. E quando um bando de perdizes levantou voo,
inesperadamente, fazendo um ligeiro ruído com as asas, Cedric bateu as palmas
e soltou gritos de alegria.

- Como isto é bonito! - disse ele a Havisham. Nunca vi nada tão

maravilhoso. É ainda mais bonito do que o Parque Central de Nova Iorque!

A extensão da avenida espantava-o.
- Que distância há entre o portão do parque e o castelo? - perguntou ele.
- Um pouco mais que quatro quilómetros - respondeu o advogado.
- É esquisito habitar assim tão longe do portão de entrada!
De momento a momento, a sua admiração aumentava. Quando avistou

veados, por entre a verdura, o seu entusiasmo não teve limites.

- Também aqui há um circo? - perguntou ele. - A quem pertencem estes

animais?

- Vivem cá e pertencem ao conde de Dorincourt - explicou Havisham.
Pouco depois surgiu o castelo, erguendo na frente deles a sua fachada

imponente, com numerosas janelas, em cujos vidros se reflectiam os últimos
raios de sol. De um lado e de outro havia torres com as suas ameias e seteiras e
grandes muralhas revestidas de hera. Em volta, sucediam-se os terraços, os
campos de relva, os canteiros floridos e ao longe o parque.

- É a casa mais bela que se pode imaginar! - exclamou Cedric, com as faces

coradas de prazer. - Parece o palácio de um rei. Vi alguns parecidos nas
gravuras dos contos de fadas.

Em frente da porta da entrada perfilavam-se duas filas de criados. O

pequeno admirou as librés e perguntou o que faziam ali aqueles homens.

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Ignorava que toda a criadagem do castelo se reunira para fazer a guarda do
futuro proprietário de todos aqueles esplendores: o magnífico castelo, parecido
com os palácios dos contos de fadas, o parque maravilhoso, as árvores
centenárias, os vales cobertos de flores, onde havia lebres, coelhos e veados de
grandes olhos meigos, deitados sobre a verdura.

Quinze dias antes, o pequeno Lorde Fauntleroy passava as manhãs a

conversar com o merceeiro Hobbes, entre sacos de batata e caixas de conserva.
Quando ele se sentava em cima dos caixotes, com as pernas penduradas e as
mãos nas algibeiras, estava bem longe de imaginar que passaria a viver no meio
de tal magnificência.

À frente dos criados estava uma senhora já de certa idade, vestida de seda

preta. Quando os recém-chegados entraram no vestíbulo, a senhora aproximou-
se e Cedric adivinhou, pela sua expressão, que ela ia falar- lhe. Havisham, que
dava a mão ao pequeno, parou e disse:

- Eis Lorde Fauntleroy, Sr. e Millon. Lorde Fauntleroy, apresento-lhe a Sr.

a Millon, governante do castelo.

Cedric estendeu-lhe a mão; os seus olhos brilharam e exclamou:
- Foi a senhora que mandou a gata à minha mãe, para eu brincar?

Agradeço-lhe muito.

O simpático rosto, já envelhecido, da Sr. a Millon, teve uma expressão tão

feliz como o da porteira pouco antes, quando por ela passara e cumprimentara.

- Teria reconhecido Lorde Fauntleroy fosse onde fosse
- disse ela a Havisham. - Tem as mesmas feições e maneiras que o falecido

capitão. Hoje é um grande dia para todos nós!

Cedric perguntou a si próprio por que razão era “um grande dia”, e fitou a

Sr. a Millon com curiosidade. Pareceu-lhe ver lágrimas nos seus olhos e, no
entanto, percebia-se perfeitamente que não era infeliz, pois sorria
carinhosamente para ele.

- A gata deixou lindos gatinhos aqui no castelo - explicou ela. - Mandá-

los-ei levar aos aposentos de Vossa Senhoria.

Havisham disse-lhe algumas palavras em voz baixa e ela respondeu:
- Está na biblioteca. Lorde Fauntleroy deve ser introduzido sozinho junto

do conde.

Alguns minutos mais tarde, o imponente criado que acompanhava Cedric

até à biblioteca, abriu a porta e anunciou em voz solene:

- Lorde Fauntleroy.
Embora fosse apenas um criado, compreendia toda a importância que

tinha a chegada ao castelo do futuro herdeiro do título e da fortuna do conde de
Dorincourt, e a sua apresentação ao velho fidalgo.

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Cedric entrou. A sala era muito vasta e bela, com móveis de madeira

esculpida e numerosas estantes cheias de livros. O mobiliário era escuro, os
reposteiros pesados e as janelas, com vidros em losango, tinham vãos muito
fundos, de maneira que, àquela hora, havia na biblioteca muito pouca luz, o que
dava ao ambiente certo ar de austeridade e tristeza.

A princípio, Cedric julgou que não estava ali ninguém, mas logo

distinguiu uma grande poltrona colocada junto do fogo que ardia na vasta
chaminé.

Nessa poltrona encontrava-se alguém sentado - alguém que nem sequer

voltou a cabeça para o ver entrar.

Em compensação, Cedric tinha despertado a atenção de outra

personagem... Junto da poltrona estava deitado um cão - um soberbo animal de
pêlo acastanhado, quase do tamanho de um leão, que olhou para ele e se
levantou lentamente, com majestade, para ir ao seu encontro.

Então, a pessoa que ocupava a poltrona ordenou:
- Venha aqui, Dougal!
Porém, no coração do pequeno Lorde Fauntleroy, não havia medo, tal

como não havia maldade. Fora sempre um rapazinho corajoso.

Pôs a mão na coleira do enorme cão, com o ar mais natural deste mundo, e

foram os dois, assim, até junto do conde. Este levantou, então, a cabeça. Cedric
viu um robusto velho, com as sobrancelhas e os cabelos brancos e espessos, um
nariz bico-de-águia, olhos duros e muito enterrados.

Por seu lado, o conde de Dorincourt viu uma criança graciosa, vestida de

veludo preto, com uma gola de rendas, uma farta cabeleira loura, encaracolada,
e um rosto expressivo, cujos olhos encontraram os seus, fitando-o com ternura e
confiança.

Se o castelo fazia lembrar um palácio de contos de fadas, era inegável que

o pequeno Lorde Fauntleroy parecia um verdadeiro príncipe, embora ele
próprio não desse por isso. No coração do irascível fidalgo acendeu- se uma
chama de triunfante alegria, ao verificar que o seu neto era aquela criança
vigorosa e encantadora, tão parecido com o pai, que olhava para ele com
firmeza, segurando o cão pela coleira. O orgulhoso velho ficou satisfeito ao
notar que o pequenito não mostrava o menor receio do enorme cão nem dele
próprio.

Cedric continuava a fitá-lo com a mesma expressão carinhosa com que

fitara a governante e a porteira. Dando mais alguns passos e dirigindo- se ao
conde, disse, com naturalidade:

- O senhor é que é o conde? Eu sou Lorde Fauntleroy, o seu neto, que o Sr.

Havisham foi buscar à América.

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Estendeu a mão, delicadamente, e continuou, com o ar mais afável:
- Desejo que tenha passado bem! Sinto-me muito feliz em conhecê-lo.
O conde apertou-lhe a mão e, nesse momento, os seus olhos tiveram um

brilho singular. Estava tão surpreendido, que não sabia que dizer. Contemplou
demoradamente a gentil figurinha do neto, olhando-o da cabeça aos pés, e por
fim, disse:

- Sentes-te, realmente, feliz em me conhecer?
- Oh! sim, muito feliz! - exclamou Lorde Fauntleroy. Havia uma cadeira

perto do conde. Cedric sentou-se. Era uma cadeira de espaldar e, depois de
sentado, os pés do pequenito não chegavam ao chão.

Apesar disso, ele tinha o ar de se sentir perfeitamente à vontade, e olhava

para o avô com uma expressão ao mesmo tempo modesta e atenta.

- Durante a viagem perguntava a mim próprio como seria o avô - disse ele.

- E pensava: será parecido com o papá?

- E achas que me pareço com ele? - perguntou o conde.
- Bem sabe - respondeu Cedric - eu era ainda muito pequenino quando o

meu pai morreu e já não me lembro bem. Mas creio que não se parece...

- E tens pena! - observou o velho.
- Oh! não! - respondeu Cedric, amavelmente. - É claro que é sempre

agradável ver alguém parecido com o nosso pai; mas é natural gostarmos das
feições do nosso avô, mesmo que não sejam parecidas com as do nosso pai. Nós
achamos sempre bem as pessoas da nossa família, não é verdade?

O conde agitou-se um pouco na poltrona e ficou silencioso, desviando a

vista do neto. Não se podia dizer que ele estimasse muito as pessoas da sua
família. Passara a maior parte da vida em questões com os parentes, a expulsá-
los de casa e a dirigir-lhes insultos. Por isso, no íntimo, todos o detestavam.

- Todas as crianças gostam dos avós - continuou Lorde Fauntleroy -,

principalmente quando eles são tão bons como o avôzinho foi para mim.

Os olhos do velho fidalgo tornaram a brilhar.
- Oh! Fui realmente bom para ti? - perguntou ele.
- Muito bom! - respondeu o pequeno lorde, com entusiasmo. - Eu estou

gratíssimo ao avô pela Brígida, pela vendedeira de maçãs e por Dick.

- Brígida!. Dick!. A vendedeira de maçãs. - exclamou o conde.
- Sim - explicou Cedric. - Todos aqueles a quem o avô deu dinheiro. Quero

dizer, o dinheiro que o avô deu ao Sr. Havisham, para satisfazer os meus
desejos.

- Ah! referes-te ao dinheiro para gastares como te apetecesse? E que

compraste tu, afinal? Gostava de saber.

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Franziu as espessas sobrancelhas e olhou atentamente para a criança.

Estava intimamente curioso de saber a que fantasia se entregara o neto.

- Talvez o avô nunca tenha ouvido falar em Dick, nem na vendedeira de

maçãs, nem na Brígida - explicou o pequeno Lorde Fauntleroy. - Esqueci-me de
que o avô tem vivido sempre muito longe deles. Eram meus amigos, sabe? E
como o Miguel estava doente.

- Quem é o Miguel?
- É o marido da Brígida. Estavam os dois muito aflitos. O avô pode

calcular o que é um homem ter filhos e não poder trabalhar, por estar doente.
Por isso, a Brígida vinha muitas vezes a nossa casa. Um dia, estava lá o Sr.
Havisham, a Brígida apareceu, a chorar, porque não tinham que comer e não
podiam pagar a renda da casa. Estava eu justamente a falar com ela, na cozinha,
quando o Sr. Havisham me mandou chamar, para me dizer que o avô lhe dera
dinheiro para mim. Então eu fui, a correr, dar dinheiro à Brígida e tudo se
remediou. A Brígida nem queria acreditar! Aqui tem a razão por que eu lhe
estou muito reconhecido.

- Oh! oh! - exclamou o conde, com a sua voz um pouco rouca. - Foi nisso

que gastaste o teu dinheiro? E em que mais?

Dougal instalara-se ao lado da cadeira. Escolhera aquele lugar quando

Cedric se tinha sentado e voltava repetidas vezes a cabeça, a olhar para a
criança, como se se interessasse pelo que ela dizia. Dougal era um cão solene,
que tomava a vida a sério. O velho conde, que o conhecia bem, começou a
observá-lo com interesse. Dougal não costumava familiarizar-se facilmente com
qualquer pessoa e o fidalgo admirou-se de o ver conservar-se tão dócil e
tranquilo, quando o pequenito o acariciava com a sua delicada mãozinha.

Justamente na ocasião em que o conde o observava, o enorme cão olhou

de novo para Lorde Fauntleroy e depois, vagarosamente, com ar digno, deitou a
grande cabeça nos seus joelhos.

A mãozinha de Cedric continuava a fazer festas ao seu novo amigo, ao

mesmo tempo que explicava ao avô:

- Depois, havia Dick. O avô com certeza que vai gostar muito dele. É um

rapaz “às direitas”!

O conde não estava habituado a expressões populares; por isso, não

compreendeu e perguntou:

- Que quer isso dizer?
Lorde Fauntleroy fez uma pausa para reflectir. Não sabia bem o

verdadeiro sentido da palavra, mas tinha a certeza de que “às direitas” queria
dizer qualquer coisa boa, visto que Dick costumava empregá-la muitas vezes.
No entanto, explicou como pôde:

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- Às direitas, quer dizer que o Dick não engana ninguém, nem é capaz de

bater num rapaz mais pequeno do que ele e engraxa o calçado dos fregueses o
melhor que pode, dando-lhe lustro com toda a força. Sim, porque Dick é
engraxador.

- E é das tuas relações? - perguntou o conde.
- É um velho amigo meu. Não tão antigo como o Sr. Hobbes, mas, apesar

disso, um bom amigo. Deu-me um presente, antes da partida do navio.

Ao dizer isto, o pequeno lorde meteu a mão na algibeira e tirou uma coisa

vermelha, que desdobrou com ar enternecido. Era o lenço das ferraduras roxas.
Depois, continuou:

- Aqui tem o que ele me deu. Hei-de guardá-lo sempre. Serve para atar ao

pescoço e para trazer na algibeira. Comprou-o com o primeiro dinheiro que
ganhou sozinho, depois de eu lhe ter dado escovas novas e dinheiro para
comprar a parte do Jack. É uma lembrança. Eu também mandei escrever umas
palavras por dentro da tampa do relógio que ofereci ao Sr. Hobbes. São assim:
“Para se lembrar do seu amigo”. Sempre que vejo este lenço, lembro-me do
Dick.

Seria difícil de descrever todas as impressões sentidas pelo muito nobre

conde de Dorincourt, ao ouvir o neto. Não era uma pessoa que se perturbasse
com facilidade, mas o que estava observando naquele momento, era de tal
forma novo para ele; que mal podia respirar. Nunca gostara de crianças. Os
próprios filhos, quando eram pequenos, não o interessavam. Considerara
sempre os rapazes como pequenos animais egoístas, gulosos e barulhentos,
desde que não estivessem sujeitos à mais rigorosa disciplina. Nunca pensara
que poderia vir a gostar do neto; mandara-o buscar porque o seu orgulho assim
o exigia. Desde que Cedric estava destinado a ser o seu herdeiro, não queria que
o nome de Dorincourt fosse manchado por um homem vulgar e sem educação.
Estava convencido de que um rapaz educado na América não poderia deixar de
ter maneiras detestáveis. Não havia, no seu interesse pelo neto, nenhum
sentimento carinhoso. O seu maior desejo era que ele tivesse uma aparência
agradável e uma suficiente dose de bom senso. Os filhos mais velhos haviam-
lhe causado bastantes decepções; o casamento do capitão Errol irritara-o
profundamente e não acreditava que da união do filho com uma americana
pudesse resultar alguma coisa boa.

No primeiro momento, quando o criado anunciara Lorde Fauntleroy, o

conde nem se atrevera a olhar para o neto, receando que fosse como ele próprio
o tinha imaginado.

Foi exactamente por isso que deu ordem para o pequeno ser introduzido

sozinho junto dele. Não queria que pessoas estranhas presenciassem a sua

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decepção. O seu velho e altivo coração bateu-lhe mais apressado no peito
quando viu o neto aproximar-se dele com desembaraço, segurando o cão pela
coleira. Mesmo que as suas previsões fossem muito optimistas, o conde nunca
poderia esperar que o pequeno Lorde Fauntleroy tivesse uma figura tão gentil e
demonstrasse tal confiança.

Chegava a duvidar! A criança que ele receara ver, filho daquela mulher

tão odiada, seria realmente aquele rapazinho que se apresentava com tanta
graça e aprumo?! Tão inesperada descoberta perturbava deveras o velho
fidalgo.

Depois, quando principiaram a conversar, o conde sentiu-se cada vez mais

surpreendido e desconcertado.

Em primeiro lugar, estava tão habituado a ver gente tímida ou

embaraçada diante dele, que esperava ver o neto também com um certo
acanhamento e apreensão. Mas Cedric não mostrara mais receio de Lorde
Dorincourt do que do próprio Dougal. Não era atrevido; era apenas
ingenuamente amável, e estava convencido de que coisa alguma poderia
assustá-lo ou causar-lhe embaraço.

O conde compreendeu logo que o pequeno o considerava um amigo e o

tratava como tal, sem ter a mais pequena dúvida sobre a sua estima. Sentado na
sua cadeira, Lorde Fauntleroy conversava com gentileza, absolutamente
convencido de que o avô, apesar da sua expressão severa, estava encantado
com a sua presença. Era igualmente evidente que, à sua maneira infantil, o
pequeno lorde procurava agradar ao avô e despertar-lhe interesse sem
quaisquer outros interesses ocultos.

Por muito reservado, duro e orgulhoso que fosse, o conde não pôde deixar

de sentir um íntimo prazer, inteiramente novo para ele, ao verificar a natural
distinção do neto e aquela encantadora confiança com que lhe falava.

Afinal, confessava a si próprio que não era desagradável encontrar alguém

que não tremesse diante dele, alguém que parecesse não lhe ver o seu lado mau,
e o fitasse confiadamente - embora esse alguém fosse apenas um rapazinho.

Lorde Dorincourt recostou-se na poltrona e continuou a conversar com o

seu jovem companheiro, que foi contando várias coisas da sua vida e das
pessoas que conhecia. O conde observava-o sempre, cada vez com mais atenção
e curioso, e os seus olhos brilhavam de forma singular.

Lorde Fauntleroy respondia a todas as perguntas, com a sua habitual

simplicidade. E lá foi contando ao avô toda a história de Dick e de Jack, da
vendedeira de maçãs e do Sr. Hobbes. Descreveu-lhe o cortejo republicano, com
todas as suas maravilhas e, no decorrer da conversa, falou no Quatro de Julho e

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na revolução americana. De repente, quando estava no maior entusiasmo,
lembrou-se de qualquer coisa e calou-se.

- Então que é isso? - perguntou o avô. - Porque não continuas?
Lorde Fauntleroy agitou-se na cadeira, com ar indeciso. Depois explicou:
- Pensei que talvez o avô não goste de ouvir falar neste assunto. Talvez

alguém da sua família ou alguma pessoa querida estivesse na América durante
a guerra da Independência. Esqueci-me de que o avô é inglês.

- Podes continuar - disse o conde. - Ninguém da minha família estava na

América nessa ocasião. Mas tu também és inglês.

- Oh! Eu, não! Eu sou americano.
- És inglês como eu e teu pai - repetiu o conde, com um sorriso.
Cedric ficou preocupado. Nunca tinha pensado em semelhante coisa.

Sentiu-se corar até à raiz dos cabelos. Por fim, exclamou:

- Eu nasci na América, e quem nasce na América é americano. Peço

desculpa de contradizer o avô - acrescentou, delicadamente, com um modo
encantador -, mas o Sr. Hobbes disse-me que, se houvesse outra guerra, eu...
devia bater-me pelos americanos.

O velho fidalgo teve um riso breve e irónico. A verdade, porém, é que

aquele riso era quase um milagre, pois havia muito que ele não ria.

- E é o que tencionas fazer, não é verdade? - perguntou ele.
O conde de Dorincourt detestava a América e os americanos, mas o ar

sério e convicto daquele pequeno patriota divertia-o imenso. Pensava que um
tão bom americano poderia tornar-se, quando fosse um homem, num excelente
inglês.

Não tiveram tempo de voltar a falar na revolução
- Lorde Fauntleroy, apesar de tudo, sentia escrúpulo de o fazer -, porque o

criado veio anunciar que o jantar estava servido.

Cedric desceu da cadeira e aproximou-se do seu nobre avô. Olhou para o

pé doente e perguntou com uma delicadeza cativante:

- Quer que eu o ajude? Pode apoiar-se em mim. Uma vez que um saco de

batatas caiu em cima do pé do Sr. Hobbes, ele encostava-se a mim, para andar.

O criado teve grande dificuldade em conter o riso. Era um criado

aristocrático, que estivera sempre ao serviço das mais nobres famílias, e que
nunca tinha sorrido, sequer, no exercício das suas funções. Na realidade, ficaria
desacreditado se, por um momento só que fosse, tivesse desmanchado a sua
máscara impassível. Mas desta vez, o caso foi difícil... Teve que desviar o olhar,
por não poder dominar-se.

O conde examinava o seu valente neto da cabeça aos pés.
- Parece-te que és capaz? - perguntou ele, com ar quase irritado.

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- Sim, avô. Eu sou forte. Já tenho oito anos, sabe? Pode apoiar-se, de um

lado, à bengala, e do outro, a mim. Dick acha que eu já tenho muitos músculos
para a minha idade.

Ao dizer isto, fechou a mão e dobrou o braço para que o avô pudesse

apalpar-lhe os músculos. Fez isto com um ar tão sério, que o criado viu-se
novamente obrigado a olhar para os retratos que estavam nas paredes.

- Muito bem - disse o conde. - Podemos experimentar.
Cedric deu-lhe a bengala, e julgou-se no dever de o ajudar a levantar-se.

Habitualmente, era o criado quem o ajudava e, nessa ocasião, ouvia as mais
violentas expressões, se, por acaso, o conde sentia alguma dor. Havia dias em
que chegava a ser indelicado e tão brusco, que os criados tremiam. Mas,
daquela vez, o velho fidalgo não disse uma palavra, embora o pé doente o
fizesse sofrer. Quis fazer uma experiência. Levantou-se da poltrona e pousou a
mão sobre o ombro que se lhe oferecia de tão boa vontade.

O pequeno Lorde Fauntleroy deu, prudentemente, um passo, sempre a

olhar para o pé doente.

- Encoste-se a mim - disse ele, como se quisesse dar coragem ao avô. - Irei

devagarinho.

Se o conde fosse amparado pelo criado, apoiar-se-ia menos à bengala e

mais ao braço dele. Com o neto, fez o mesmo, porque isso fazia parte da sua
experiência. O peso era de respeito, sem dúvida; depois de alguns passos, o
rosto do jovem lorde tornou-se vermelho e o coração bateu-lhe com mais força.
Mas o pequenito reuniu toda a sua energia, pensando no elogio que Dick fizera
aos seus músculos.

- Não tenha medo de se encostar - disse ele, com voz um pouco alterada. -

Posso muito bem ajudar o avô, se... se... se não for muito longe.

A sala de refeições não ficava distante, mas, apesar disso, Cedric achou o

caminho um pouco longo, até chegar junto da cadeira, colocada à cabeceira da
mesa. A mão apoiada sobre o seu ombro parecia-lhe cada vez mais pesada;
sentia o rosto afogueado e custava-lhe cada vez mais a respirar, mas nunca
pensou em desistir de ajudar o avô. Retesava os pequeninos músculos,
endireitava a cabeça e encorajava o conde, que ia andando, a coxear.

- Dói-lhe muito o pé, quando o põe no chão? - perguntou Cedric. - Já

experimentou metê-lo num banho de água quente com mostarda? O Sr. Hobbes
fazia isso. Disseram-me que a arnica também faz muito bem.

O corpulento cão avançava ao lado deles, com lentidão e majestade. Atrás,

seguia o criado que, mais de uma vez, olhou com espanto para aquela criança
que suportava corajosamente o peso do velho fidalgo.

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Também o conde olhava, disfarçadamente, de lado, para o neto, com uma

expressão muito diferente da que lhe era habitual.

Ao entrarem na sala de refeições, Cedric notou que era vasta e sumptuosa,

e que o criado que se conservava atrás da cadeira, colocado à cabeceira da mesa,
os fitava com ar espantado.

Finalmente, chegaram ao lugar do dono da casa. O conde retirou a mão do

ombro do neto e instalou-se comodamente na sua cadeira.

Cedric tirou da algibeira o lenço que Dick lhe oferecera e enxugou a

fronte.

- Está calor, não é verdade? - observou ele. - Naturalmente, o avô precisa

de lume no fogão por causa do seu pé. Mas eu sinto algum calor...

A delicadeza com que tratava o avô era tal, que não queria dar a entender

que, qualquer coisa, ali dentro, estava a mais!

- Acabaste de fazer um grande esforço - disse o conde.
- Oh! Não! - respondeu Cedric. - O esforço não foi assim tão grande. No

verão tem-se calor facilmente.

E, ao dizer isto, esfregou os caracóis da fronte com o vistoso lenço.
O lugar de Lorde Fauntleroy era na outra cabeceira da mesa, em frente ao

avô. Era uma cadeira brasonada, grande de mais para ele. De resto, tudo quanto
tinha visto até então - salas vastíssimas de altos tectos e grandes móveis; os
imponentes criados; o enorme cão e o próprio conde tudo tinha dimensões que
pareciam destinadas a fazer-lhe sentir que era, realmente, muito pequeno. Isso,
porém, não o perturbava. Nunca se considerara uma grande pessoa, nem se
julgara importante, e estava disposto a adaptar-se às circunstâncias, por muito
esmagadoras que lhe parecessem.

Certamente, nunca parecera tão pequeno como quando se instalou na sua

vasta cadeira, numa das cabeceiras da mesa. Embora levasse uma vida solitária,
o conde de Dorincourt dava a maior importância ao conforto e esplendor da sua
maneira de viver. O serviço das refeições, principalmente o do jantar, era
sempre feito com grande cerimónia e requinte. Cedric via o avô através de
cintilações de cristais e de pratas, e os seus olhos, que não estavam habituados a
tanto brilho, sentiam-se deslumbrados e extasiados.

Se um estranho pudesse entrar ali, não deixaria de sorrir, ao contemplar

semelhante quadro; a sala enorme e magnífica, os imponentes criados de libré,
as luzes, as pratas, os cristais, o velho fidalgo, de fisionomia severa, a presidir à
mesa e, lá ao fim, em frente dele, aquela encantadora criança.

Geralmente, o jantar representava um grave problema para o cozinheiro,

porque o conde era exigente e não se dava por satisfeito, mesmo com os pratos
mais requintados, principalmente quando não tinha apetite. Naquele dia,

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porém, a sua disposição parecia melhor do que de costume talvez porque os
seus pensamentos estavam ocupados noutra coisa diferente do sabor das
“entradas” e da apresentação dos molhos.

O neto absorvia por completo a sua atenção. Não desviava o olhar

profundo da criança sentada na sua frente do outro lado da mesa. Falava pouco,
mas arranjava as coisas de maneira a obrigar o pequeno a falar.

- Não costuma usar sempre a sua coroa, pois não? - perguntou

respeitosamente Lorde Fauntleroy.

- Não - sorriu o conde, com um sorriso irónico. Só me convém usá-la de

vez em quando.

- O Sr. Hobbes julgava que o avô a trazia sempre na cabeça - continuou

Cedric -; mas, depois de ter reflectido, disse-me que, naturalmente, devia tirá-la
para pôr o chapéu.

- Sim, tiro-a algumas vezes.
Um dos criados voltou-se bruscamente para a parede e tossiu, com a mão

em frente da boca.

Cedric foi o primeiro a acabar de jantar. Então, encostando-se às costas da

cadeira, observou atentamente tudo o que estava sobre a mesa.

- O avô deve ter muito orgulho na sua casa - exclamou ele. - Nunca vi

nada tão maravilhoso, tão grandioso! Mas, naturalmente, como eu só tenho oito
anos, ainda não vi muitas coisas.

- Achas, então, que eu devo ter orgulho na minha casa? - repetiu o conde.
- Acho que qualquer pessoa, fosse ela quem fosse, se orgulharia. Até eu, se

ela me pertencesse. Tudo, aqui, é tão belo!

Ficou silencioso durante um momento, e depois disse:
- É uma casa muito grande só para duas pessoas.
- Realmente, é bastante grande! - concordou o velho Lorde Dorincourt.
E concluiu:
- Achas que é grande de mais?
O jovem lorde hesitou um instante, antes de responder:
- Penso, simplesmente, que, se viverem nesta casa duas pessoas que não se

entendam muito bem, devem sentir-se, algumas vezes, um pouco tristes.

- E parece-te que te entenderás bem comigo? - perguntou o conde.
- Oh! Com certeza! - respondeu Cedric. - Eu entendia-me perfeitamente

com o Sr. Hobles. Era o meu melhor amigo depois da Querida.

O conde ergueu vivamente as sobrancelhas e perguntou:
- Quem é a Querida?
- É a minha mãe - respondeu Lorde Fauntleroy, baixando a voz.

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O pequeno sentia-se, talvez, um pouco fatigado, e a hora habitual de se

deitar aproximava-se. Também era natural que a fadiga fizesse nascer na sua
alminha um vago sentimento de saudade ao pensar que, naquela noite, não
dormia na sua casa, sob o olhar carinhoso daquela a quem ele chamava a sua
Querida. Tinham sido sempre os melhores amigos do mundo, Cedric e a sua
jovem mãe. Não podia deixar de pensar nela e, quanto mais pensava, menos lhe
apetecia falar. Quando se levantaram da mesa, Lorde Dorincourt viu que uma
ligeira sombra entristecia o olhar do neto. No entanto, o pequeno Lorde
Fauntleroy portou-se corajosamente e, quando voltaram para a biblioteca, o
conde, apesar da presença do criado, apoiou-se ao seu ombro, menos
pesadamente, porém, do que o fizera a primeira vez.

Depois do criado sair, Cedric sentou-se no tapete, em frente do fogão, ao

lado do Dougal. Durante alguns minutos acariciou as orelhas do cão e olhou
para o lume, sem dizer nada.

O velho conde observava-o. O olhar da criança estava grave e sonhador;

por uma ou duas vezes, o pequenito soltou um leve suspiro. O conde, imóvel,
não tirava os olhos do neto.

- Em que estás a pensar? - perguntou-lhe por fim. Lorde Fauntleroy

ergueu a cabeça e fez o máximo esforço para sorrir. Depois disse:

- Penso na Querida; e. creio que me faria bem um pouco de movimento.
Levantou-se, meteu as mãos nas algibeiras e começou a andar de um lado

para o outro. Tinha os olhos brilhantes e os dois lábios cerrados, mas
conservava a cabeça direita e andava com um passo sempre igual.

Dougal voltou vagarosamente a cabeça a fim de olhar para ele; depois,

levantou-se também, foi ter com a criança e principiou a acompanhá-la, com ar
ansioso. Lorde Fauntleroy tirou uma das mãos da algibeira e pousou-a na
cabeça do cão.

- É um bom animal - disse ele. - É meu amigo e compreende o que sinto.
- E que é que tu sentes? - perguntou o conde.
O orgulhoso fidalgo estava um tanto comovido, ao verificar a luta que se

travava no espírito do neto, contra aquela primeira sensação de nostalgia; mas
sentia-se satisfeito, ao ver que ele procurava, corajosamente, reagir e apreciou a
sua coragem infantil.

A certa altura, o pequeno lorde aproximou-se dele e disse-lhe, com um

olhar triste:

- Até agora nunca estive longe da minha casa. Faz-me impressão pensar

que vou dormir num castelo, que pertence a outra pessoa, em vez de ficar em
minha casa. Mas a Querida não está muito longe de mim. Ela recomendou-me

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que não me esquecesse disso. E depois... e depois, já tenho oito anos... e posso
ver o retrato que ela me deu.

Meteu a mão na algibeira e tirou um pequeno estojo forrado de peluche

lilás.

- Está aqui - continuou ele. - Vê? Carrega-se nesta molazinha, a tampa

abre-se, e pronto.

Cedric estava junto do conde; enquanto abria o estojo, tinha-se encostado a

um braço da poltrona e, ao mesmo tempo, a um braço do avô, com tanto
abandono e confiança, como se estivesse habituado a fazê-lo desde sempre.

- Aqui está o retrato da Querida! - disse ele, olhando a sorrir, para a

miniatura.

O conde franziu as sobrancelhas; não queria ver o retrato, mas, apesar

disso, olhou para ele. Diante dos seus olhos surgiu um rosto jovem a fitá-lo -
um rosto tão encantador e tão parecido com o da criança que estava junto de si,
que o velho estremeceu.

- Gostas muito dela? - perguntou.
- Muito! - respondeu Lorde Fauntleroy, com simplicidade. - Gosto dela

mais do que tudo no mundo. O Sr. Hobbes é meu amigo, e Dick e Brígida
também; mas a Querida é a minha melhor amiga. Dizemos tudo um ao outro. O
meu pai deixou-ma para que eu olhe por ela, e quando eu for homem hei-de
trabalhar e ganhar o dinheiro de que ela precisar para viver.

- Que pensas tu fazer, quando fores homem? - perguntou ainda o avô.
O pequeno lorde deixou-se escorregar no tapete e sentou-se, conservando

o retrato na mão. Reflectiu profundamente, antes de responder, e depois disse:

- Penso que talvez possa associar-me ao Sr. Hobbes. Mas o que eu preferia

era ser Presidente da República.

- Veremos isso, mais tarde, na Câmara dos Lordes - respondeu o avô.
- No fim de tudo, se eu não puder vir a ser Presidente, e se isso em que o

avô falou é uma boa situação, eu não me importo de aceitar - declarou o
pequeno.

Ficou muito quieto, a olhar para o lume, como se reflectisse no que

acabava de dizer.

Lorde Dorincourt não falou mais. Recostado na poltrona, olhava para a

criança. No cérebro do velho fidalgo havia agora novos pensamentos.

Dougal, estendido no tapete, tinha adormecido, com a cabeça entre as

enormes patas. Houve um longo silêncio.

Meia hora depois pouco mais ou menos, Havisham foi introduzido na

biblioteca. A vasta sala estava silenciosa, quando ele entrou. O conde

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continuava sentado na poltrona. Ao ver Havisham, levantou a mão a
recomendar-lhe que não fizesse ruído - num gesto quase involuntário.

Dougal dormia ainda e, estendido junto dele, com a cabeça encaracolada

repousada sobre um braço, dormia também o pequeno Lorde Fauntleroy.

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O conde e o neto


Quando Lorde Fauntleroy acordou na manhã seguinte (ele não tinha

sequer aberto os olhos quando, na véspera, o haviam levado para o leito), os
primeiros ruídos que percebeu foram o crepitar do lume na chaminé e palavras
pronunciadas em voz baixa.

- Deve ter a maior cautela em não falar nisso, Dawson - murmurou

alguém. - Lorde Fauntleroy ignora a razão pela qual ela não vive com ele no
castelo, e é preciso que a não saiba.

- Obedecerei, Sr.a Millon, visto ser uma ordem de Sua Senhoria. Mas aqui

entre nós, desculpe-me a franqueza, sempre lhe direi que acho uma coisa
bárbara separar aquela jovem viúva, tão bonita e simpática, do próprio filho,
que é a sua carne e o seu sangue - um rapazinho encantador, que já tem ares de
fidalgo! James e Tomás disseram ontem à noite, na cozinha, que nunca tinham
visto maneiras tão delicadas e gentis como as do pequeno Lorde Fauntleroy,
que conversava e se interessava por tudo, como se estivesse jantando com o seu
melhor amigo. É bom como um anjo! Quando nos chamaram à biblioteca, ao
Jàmes e a mim, para o trazer para o quarto, e que James lhe pegou ao colo,
estava tão bonito, com a carinha muito corada, que até ficámos comovidos. Ia
jurar que o próprio Sr. Conde estava enternecido, porque recomendou a James:”
Tem cuidado Não o acordes “

Cedric mexeu-se na cama; voltou-se e abriu os olhos. Estavam duas

mulheres no quarto, que era grande, alegre, com as paredes forradas de cor
viva. Havia lume na cha miné e o sol entrava, a jorros, pelas janelas
emolduradas de hera.

As duas mulheres aproximaram- se. Uma delas era a governante, a Millon;

a outra, mais nova, também era simpática e tinha uma expressão alegre e
amável.

- Bom dia, milorde - disse a Sr. a Millon. - Dormiu bem?
O pequeno lorde esfregou os olhos e sorriu.
- Bom dia - disse ele. - Já me não lembrava onde estava!
- Trouxeram milorde para o quarto, já adormecido. Aqui está Dawson que,

fica ao seu serviço.

Lorde Fauntleroy sentou-se na cama e estendeu a mão a Dawson, como

havia estendido à Sr. Millon, e ao conde.

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- Como está, minha senhora? - disse ele. Agradeço-lhe que se ocupe de

mim.

- Pode chamar-lhe Dawson - explicou a governante.
- É assim que lhe chamam sempre.
- Menina, ou Sr. Dawson? - perguntou o pequeno lorde.
- Simplesmente Dawson, milorde - respondeu Dawson, com ar

amabilíssimo. - Nem menina, nem senhora! Quer, agora, levantar-se, para que
eu o vista, e ir, depois, tomar o pequeno-almoço à nursery?

- Agradeço-lhe muito, mas sei vestir-me sozinho, já há muito tempo -

respondeu Lorde Fauntleroy. - Foi a Querida que me ensinou. Querida é minha
mãe. Nós tínhamos a Maria para fazer o serviço da casa, lavar a roupa e tudo o
mais. É claro que não podia sobrecarregá-la de trabalho. Também sei fazer a
minha toilette. Se quiser, pode apenas verificar se estou bem, quando eu tiver
acabado.

Dawson e a governante trocaram um rápido olhar.
- Dawson fará tudo o que milorde quiser - disse a Sr. a Millon.
- Certamente! - confirmou Dawson, com o seu modo gentil. - Vestir-se- á

sozinho, se quiser, e eu ficarei aqui para o ajudar, se precisar de alguma coisa.

- Obrigado! Realmente - sabe? - ás vezes há coisas difíceis de abotoar. E

então tenho de pedir a alguém que me ajude.

Lorde Fauntleroy achou Dawson muito amável e, antes de terminar o

banho e a toilette, já eram excelentes amigos. Já sabia que ela fora casada com
um soldado, morto numa batalha verdadeira, e que o filho era marinheiro.
Numa das suas longas viagens, o filho de Dawson tivera ocasião de ver piratas,
canibais, chineses e turcos. Trouxera conchas e bocados de coral que Dawson
prometeu mostrar a Lorde Fauntleroy, visto ter alguns na sua mala. Como tudo
aquilo era interessante!

Quando Cedric entrou na sala vizinha, para tomar o pequeno- almoço, viu

que era muito espaçosa. Dawson explicou-lhe que comunicava com outra, que
também fazia parte dos seus aposentos. Apoderou-se dele novamente a
impressão de ser muito pequeno, e não pôde deixar de dizer isto mesmo a
Dawson, quando se sentava à mesa, onde estava disposto um lindo serviço de
almoço.

- Sou muito pequeno para viver num castelo tão grande e ter tantas salas

para mim. Não acha? - perguntou ele, com ar pensativo.

- Vamos, Vamos! Milorde sente-se um pouco estranho, agora, ao princípio.

Mas isso há-de passar depressa, e acabará por gostar muito de estar aqui. É um
castelo tão bonito! - respondeu Dawson.

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- É realmente um castelo maravilhoso - disse Lorde Fauntleroy, com um

suspiro. - Mas eu gostaria muito mais de aqui viver se a Querida não me fizesse
tanta falta. Tomava sempre o meu pequeno-almoço com ela, deitava o açúcar e
o leite no seu chá, e punha-lhe manteiga nas torradas. Era bem mais agradável
do que almoçar sozinho.

- Tem razão - respondeu Dawson, a querer consolá-lo. - Mas bem sabe que

pode ver a sua mãe todos os dias e, assim, terá muitas coisas para lhe contar,
principalmente quando tiver passeado um pouco e visto os cães e as
cavalariças, com todos os cavalos. Há lá um que lhe interessará especialmente,
sei eu!

- Sim? - exclamou Cedric. - Gosto muito de cavalos! Gostava imenso de

Jim, o cavalo do Sr. Hobbes, que puxava a carroça da distribuição das compras.
Era um belo animal, quando não coxeava.

- Pois bem! - repetiu Dawson. - Espere um pouco e verá os que estão nas

cavalariças do castelo. Mas, parece-me que milorde não reparou ainda na sala
do lado.

- Que tem ela? - perguntou o pequeno lorde.
- Iremos ver, quando tivermos acabado de almoçar.
A curiosidade de Cedric ficou excitada, e o pequeno almoçou num

instante.

A avaliar pelo ar importante e misterioso de Dawson, devia haver na tal

sala alguma coisa muito interessante.

- Já acabei - exclamou ele, poucos minutos depois, descendo da cadeira. -

Posso ir ver?

Dawson fez que sim com a cabeça e dirigiu-se para a porta com um ar

mais importante e misterioso do que nunca.

Cedric começava a sentir-se intrigado. Dawson abriu a porta e esperou; o

pequeno parou, maravilhado.

Não disse uma palavra. Apenas meteu as mãos nas algibeiras e, vermelho

como uma cereja, ficou imóvel, a olhar. A surpresa e o contentamento é que o
tinham feito corar. O espectáculo era tal que surpreenderia qualquer criança.

A sala também era de grandes dimensões, e pareceu a Cedric ainda mais

bela do que as outras, embora fosse diferente. Os móveis não eram antigos e
pesados, como os da biblioteca e da sala das refeições. As paredes, os
cortinados, e tapetes eram de cores alegres.

Havia estantes cheias de livros e, sobre as mesas, estavam dispostos

brinquedos de todos os géneros - brinquedos engenhosos, semelhantes àqueles
que Cedric tinha contemplado, com deslumbramento, nas montras das grandes
lojas de Nova Iorque.

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- Que bela sala de jogos! - exclamou ele, quando pôde falar. - De quem são

todos estes brinquedos?

- Pode mexer-lhes! Pertencem a milorde.
- A mim?! - exclamou ele. - A mim?! São meus, com certeza? E quem mos

deu?

Correu para a frente, num impulso de alegria. Parecia-lhe belo de mais,

para ser verdadeiro.

- Foi o avô, com certeza. - disse, de repente, com os olhos brilhantes como

estrelas. - Ia jurar que foi o avô!

- Sim! Foi Sua Senhoria - respondeu Dawson. – E se Lorde Fauntleroy for

um menino ajuizado, gentil e contente, o senhor conde dar-lhe-á tudo quanto
lhe pedir.

A manhã passou num encantamento. Cedric tinha tanta coisa para

examinar, tantas experiências para fazer! Cada brinquedo novo era tão belo,
que a criança tinha pena de o deixar, para admirar os outros.

O que achava mais extraordinário era que tudo aquilo tivesse sido

preparado unicamente para ele e que, ainda mesmo antes da sua partida de
Nova Iorque, tivessem vindo pessoas de Londres arranjar os seus aposentos,
trazer livros, brinquedos e todas aquelas outras coisas maravilhosas que
poderiam interessá-lo.

Foi Dawson quem lhe explicou tudo isto. E ele, então, perguntou:
- Já conheceu alguém melhor do que o meu avô?
O rosto de Dawson teve uma expressão de dúvida. Chegara ao castelo

havia pouco tempo, mas tivera tempo suficiente para ouvir o pessoal contar as
singularidades do velho conde.

“- De todos os patrões velhos, desagradáveis e de mau modo, que eu

tenho tido a desgraça de servir - tinha declarado o chefe dos criados - este é o
mais difícil e o mais violento”.

E o outro criado, que se chamava Tomás, tinha repetido uma das

instruções que o conde dera a Havisham, exactamente acerca dos aposentos do
neto:

“- Deixe-o fazer o que ele quiser e encha-lhe a sala de brinquedos - dissera

Sua Senhoria. - Ofereço-lhe tudo quanto possa agradar-lhe; será a melhor
maneira de esquecer rapidamente a mãe. Se o soubermos distrair e levá-lo a
pensar noutra coisa, não nos causará aborrecimentos. As crianças são assim. “

Tendo imaginado as coisas sobre este aspecto, o conde devia ter ficado

contrariado, ao verificar que o neto não era assim. O velho fidalgo passara a
noite mal, e não saiu dos seus aposentos durante toda a manhã. Depois do
almoço, mandou buscar Cedric.

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O pequeno apressou-se a obedecer. Desceu as escadas quatro a quatro e o

conde sentiu-o atravessar o vestíbulo a correr. A porta abriu-se e Cedric entrou
com as faces coradas e o olhar brilhante.

- Eu estava à espera de que o avô me mandasse chamar! - exclamou ele. -

Já estou pronto há muito tempo.

Agradeço-lhe muito todos aqueles brinquedos! Deram-me tanto, tanto

prazer! Brinquei toda a manhã!

- Ah! Então os brinquedos que encontraste lá em cima, agradaram-te? -

perguntou o conde.

- Muito! São tão bonitos e engraçados! - respondeu o pequeno lorde, com o

rosto iluminado de alegria. - Há um jogo que parece um “base- ball”, mas os
ingleses jogam com peões brancos e pretos, e contam os pontos com bolas, que
escorregam numa prancha. Quis ensinar à Dawson como se joga, mas ela não
compreendeu lá muito bem. Como é uma senhora, nunca jogou o “base-ball”, e
eu, naturalmente, não lhe expliquei bem as regras do jogo. Mas o avô conhece o
“base-ball”?

- Parece-me que não. É um jogo americano, não é? Qualquer coisa

parecida com o “cricket”?

- Nunca vi jogar o “cricket” - respondeu o pequeno -, mas Hobbes levou-

me muitas vezes a ver desafios de “base-ball”. É um jogo magnífico, que
entusiasma. O avô quer que eu vá buscar o meu jogo, para lhe mostrar? Talvez
o distraia e lhe faça esquecer as dores dos pés. Doeu-lhe muito, esta manhã?

- Mais do que desejaria...
- Então talvez não possa esquecer as dores - disse o pequeno, com ar

inquieto. - E talvez eu o aborreça com a explicação do jogo. Que lhe parece?

- Vai buscá-lo, apesar de tudo - respondeu o conde. Não havia dúvida de

que a companhia do neto era, para ele, uma distracção como nunca tivera.
Aquela ideia de lhe explicar jogos que ele não conhecia, divertia-o. Quando
Cedric voltou, no rosto do avô havia a sombra de um sorriso.

- Posso puxar esta mesa pequenina para ao pé da sua poltrona? -

perguntou o pequeno.

- Chama o Tomás para ele a trazer - respondeu o conde.
- Oh! Eu posso com ela sozinho. Não é pesada!
- Está muito bem!
Nos lábios do conde, o sorriso desenhou-se mais, enquanto ia observando

o neto a fazer os seus preparativos com entusiasmo. A mesa foi puxada para
junto da poltrona, o jogo tirado da sua caixa, preparado e disposto sobre a
mesa.

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- Depois de se ter compreendido é muito interessante - disse Lorde

Fauntleroy. - O avô pode ficar com peões pretos, e eu com os brancos. Os peões
representam os jogadores, compreende? Cada vez que os seus peões dão uma
volta ao campo e chegam ao alvo, o avô conta ú ponto. Os peões do seu
adversário, que sou eu, colocam-se aqui. Aqui está a primeira base, a segunda e
a terceira aqui está o alvo.

Explicou todos os pormenores da regra do jogo, com grande animação.

Fazia gestos correspondentes a todos os jogadores e descreveu um esplêndido
desafio a que tinha assistido com Hobbes. Dava prazer contemplar aquele
rapazinho de corpo vigoroso e movimentos ágeis, e ver o seu alegre
entusiasmo.

Quando chegou ao fim das explicações, principiaram a jogar, e o conde

interessou-se sinceramente. O seu jovem companheiro estava animadíssimo. As
suas gargalhadas quando ganhava, a alegria imparcial com que verificava a sua
sorte ou a do adversário, tornavam interessante fosse que jogo fosse.

Se alguém, oito dias antes, tivesse dito a Lorde Doricourt que, naquela

tarde, esqueceria a sua gota e a sua má disposição, graças a um jogo de crianças,
jogado com peões brancos e pretos sobre um cartão colorido, em companhia de
um pequenito de calção, ele próprio teria ficado irritado. Entretanto, não havia
dúvida de que esquecera o seu sofrimento e os assuntos que o contrariavam,
quando Tomas abriu a porta e anunciou um visitante: o reverendo Mordaunt.

Entre todas as obrigações do seu cargo, a mais penosa de todas, para o

reverendo Mordaunt, era, na realidade, a visita que fazia, de tempos a tempos,
ao nobre fidalgo do castelo de Dorincourt. Deve dizer-se que, por seu lado, o
conde fazia tudo quanto podia para tornar essas visitas desagradáveis.
Detestava as obras religiosas e de caridade, encolerizando-se sempre que
alguém vinha pedir-lhe auxílio para doentes ou desgraçados.

Nos dias em que a gota o fazia sofrer mais, o conde declarava, sem

cerimónias, que não queria ser importunado com todas essas histórias que não
lhe diziam respeito.

Quando se sentia um pouco mais aliviado, dava dinheiro ao sacerdote,

mas não deixava de lhe dirigir palavras ásperas e de mandar para o inferno a
paróquia inteira. De qualquer maneira discutia sempre com o reverendo
Mordaunt, que ficava furioso e com vontade de lhe atirar com a primeira coisa
que lhe viesse à mão, se esse gesto não fosse incompatível com a sua dignidade
eclesiástica e a caridade cristã.

O reverendo Mordaunt exercia o seu ministério em Dorincourt há longos

anos, e não se lembrava de ter visto Sua Senhoria mostrar espontaneamente,

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por um acto de caridade, que se preocupava com alguém que não fosse ele
próprio.

O padre vinha, naquele dia, falar-lhe, exactamente, de um caso muito

urgente; e, enquanto subia a avenida, a ideia da visita que ia fazer assustava-o
ainda mais que de costume. Em primeiro lugar sabia que Lorde Dorincourt
estava com um dos seus ataques de gota, já há bastantes dias, e andava com tão
má disposição, que toda a aldeia tinha conhecimento disso, por intermédio de
uma criada do castelo, cuja irmã era dona de uma lojazinha, onde ganhava
honestamente a vida, a vender linhas, agulhas, rebuçados, e a contar novidades.
O que esta mulher não soubesse acerca do castelo e dos seus habitantes, das
quintas e dos caseiros, da aldeia e da população, não tinha, com certeza, a
menor importância. É claro que não ignorava absolutamente nada do que se
passava no castelo, porque a irmã, que se chamava Joana, era uma das melhores
criadas ao serviço do conde, e entendia-se perfeitamente com outro criado, o
Tomás.

- Não se pode fazer ideia do mau génio de Sua Senhoria! - contava a irmã

de Joana, encostada ao balcão. E a sua linguagem? O próprio Tomás costuma
dizer à minha irmã que ninguém pode suportar uma coisa assim! Imaginem
que o conde, há dois dias, atirou com a travessa do assado à cabeça do Tomás.
Se o lugar não fosse vantajoso e o pessoal tão escolhido, o Tomás tinha-se
despedido imediatamente.

O padre estava ao corrente de tudo isto, pois o conde era considerado uma

espécie de tirano naqueles arredores, e toda a gente falava das suas cóleras e da
sua crueldade.

A outra razão, pela qual o reverendo Mordaunt temia, ainda mais que

habitualmente, as palavras desabridas do conde, era a chegada do neto.

Todos sabiam que o velho fidalgo ficara furioso quando o filho casara com

uma americana.

Todos sabiam que ele fora implacável para com o jovem capitão, que era,

afinal, o único homem simpático e amável da família, o único de quem toda a
gente gostava, e que morrera longe da pátria, pobre e sem obter o perdão do
pai.

Todos sabiam que ele detestava a viúva do capitão, e como o contrariava

que ela tivesse um filho, a ponto de só querer ver o neto depois de os filhos
mais velhos terem morrido, e, ainda assim, só porque ele viria a ser o seu
herdeiro.

Todos sabiam que ele esperava, com frieza, a chegada do neto,

convencido de que era uma criança ordinária, capaz de escurecer o brilho do
seu título.

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Embora o orgulhoso e irascível velho imaginasse que ninguém podia

adivinhar os seus pensamentos e, ainda menos, discutir os seus sentimentos e
acções, a verdade é que os criados observaram-no e sabiam ler na sua
fisionomia o que se passava no seu íntimo. E enquanto o conde se julgava ao
abrigo de todas as curiosidades, Tomás contava a Joana, ao cozinheiro, ao
criado de mesa, aos criados e criadas, que o velho andava mais preocupado do
que nunca, por causa do neto, pois temia que ele não honrasse a família.

Caminhando ao longo da formosa avenida, o reverendo Mordaunt

pensava que o pequeno americano chegara ao castelo exactamente na véspera à
noite. Se os receios de Sua Senhoria se tinham realizado, ele corria o risco de ser
ainda mais mal recebido e tratado pelo irascível conde do que habitualmente.

Imagine-se, pois, o espanto do sacerdote, quando Tomás abriu a porta e

um riso alegre, de criança, chegou aos seus ouvidos.

- Estão dois fora de jogo! - exclamou uma vozinha clara. - Vê, avô? Estão

dois peões fora de jogo!

O conde também lá estava, sentado na sua poltrona, com os pés sobre uma

almofada. Tinha ao lado uma pequena mesa, sobre a qual se encontrava um
jogo. E, junto do velho, encostado ao seu braço e ao seu joelho válido,
encontrava-se um rapazinho com a carinha corada e os olhos brilhantes de
alegria.

- Dois peões fora de jogo! - repetiu a criança. - O avô, desta vez, não teve

sorte!

Foi então que o avô e o neto repararam ao mesmo tempo, que tinha

entrado alguém na biblioteca.

O conde voltou a cabeça, franzindo as sobrancelhas segundo o seu

costume, e o reverendo Mordaunt ficou todo surpreendido ao notar-lhe uma
expressão menos carrancuda do que era costume. Realmente, o velho fidalgo
parecia ter esquecido a sua rudeza especial.

- Seja bem aparecido, Mordaunt! - disse ele, estendendo-lhe a mão com

bom modo. - Como vê, descobri uma nova ocupação.

Pousou a outra mão no ombro de Cedric. Adivinhava-se que, no íntimo do

seu coração, sentia orgulhoso prazer em apresentar um tal herdeiro, e os seus
olhos tiveram como que um lampejo de alegria, enquanto empurrava
ligeiramente o pequenito na direcção do padre:

- Apresento-lhe o novo Lorde Fauntleroy - disse ele. - Fauntleroy, este é o

reverendo Mordaunt, o prior da paróquia.

O pequeno olhou o padre e estendeu-lhe a mão.

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- Estou encantado por tê-lo conhecido! - disse ele, lembrando-se dos

termos que ouvia Hobbes empregar uma vez ou duas, ao cumprimentar
cerimoniosamente um novo cliente.

Cedric sabia que se devia ser especialmente delicado, quando se

cumprimentava um eclesiástico.

O reverendo Mordaunt conservou, por um momento, aquela mãozinha na

sua, fitando o rosto da criança, com um sorriso. O pequenito agradara-lhe
imediatamente, como agradava a toda a gente. Não era a sua beleza que o
encantava, mas a natural gentileza que dava às suas palavras, tão pouco
infantis, num tom de amável sinceridade. Ao fitar Cedric, o sacerdote esqueceu
completamente o conde. Não há, no mundo, maior influência do que um
coração generoso.

A simples presença daquela criança parecia tornar mais clara e alegre a

atmosfera da grande sala.

- Também eu estou encantado, por travar conhecimento com Lorde

Fauntleroy - respondeu. - Fez uma longa viagem para chegar junto de nós! Toda
a gente daqui vai ficar contente quando souber da sua vinda!

- Oh! sim, fiz uma longa viagem - respondeu o pequeno lorde. - Mas,

como a Querida vinha comigo, não me aborreci. Nunca nos aborrecemos,
quando a nossa mãe está connosco. E, depois, o navio era muito bonito.

- Sente-se, Mordaunt - disse o conde.
O padre sentou-se e os seus olhos foram de Lorde Fauntleroy ao avô.
- Vejo que posso felicitá-lo, senhor conde - disse ele, com entusiasmo. Mas

o velho, evidentemente, não estava disposto a revelar os seus sentimentos
acerca do neto.

- Parece-se com o pai - disse por fim, com modo brusco. - Esperaremos

que, no futuro, saiba conduzir-se de maneira mais satisfatória. - E acrescentou
logo: - Que há de novo, Mordaunt? Quem precisa de auxílio?

A conversa principiava muito melhor do que o padre supusera. No

entanto, hesitou um momento, antes de responder.

- Trata-se de Hugues - disse ele. - O Hugues da Herdade de Cima. Tem

tido pouca sorte, ultimamente. Esteve doente no Outono, e os filhos tiveram
agora a escarlatina. Tudo lhe corre mal. O que o apoquenta mais é a renda.
Newick disse-lhe que, se ele não pagar, terá que deixar a herdade. Isto será uma
verdadeira desgraça. A mulher está doente e ele veio, ontem, pedir-me que
obtivesse de Vossa Senhoria uma espera. Ele pensa que, se essa espera lhe for
concedida, poderá depois pagar tudo.

- É o que eles dizem todos! - observou o conde, com ar aborrecido.

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Lorde Fauntleroy deu um passo para a frente. De pé, entre o avô e o

sacerdote, escutara atentamente o que eles diziam, e interessara-se
imediatamente por Hugues. Perguntava a si próprio quantos filhos teria ele e se
a escarlatina teria sido muito grave. Os seus olhos fixaram-se no reverendo
Mordaunt com vivo interesse.

- Hugues é um homem bem intencionado - continuou o padre, esforçando-

se por encontrar argumentos a seu favor.

- É um mau rendeiro - replicou o conde. - Anda sempre atrasado, segundo

me disse Newick.

- Ele está muito apoquentado neste momento! - disse ainda o padre. - É

muito amigo da mulher e dos filhos e, se lhe tiram a herdade, não terão
absolutamente nada que comer. Duas crianças ficaram muito fraquinhas com a
escarlatina e o médico prescreveu-lhes uma alimentação forte e cuidada, que
Hugues não pode, de forma alguma, dar-lhes.

O pequeno lorde exclamou:
- É tal qual como o Miguel!
O conde teve um ligeiro sobressalto.
- Esqueci-me de ti! - disse ele. - Não reparei que tínhamos aqui um

filantropo. E quem vem a ser o Miguel?

Ao dizer isto, os olhos do velho voltaram a ter um brilho estranho.
- É o marido da Brígida, como eu já contei ao avô
- respondeu Cedric. - Estava doente, não podia pagar a renda da casa, nem

comida, nem remédios, quando eu lhe dei o dinheiro que o avôzinho me
mandou.

Lorde Dorincourt franziu as sobrancelhas, mas desta vez não se mostrava

irritado. Olhou para o reverendo Mordaunt e disse:

- Não faço ideia nenhuma do que virá a ser este futuro proprietário.

Encarreguei Havisham de lhe dar tudo quanto lhe apetecesse e, afinal, creio que
ele preferiu dar o dinheiro a mendigos.

- Oh! não eram mendigos - exclamou vivamente Fauntleroy. - Miguel é

um excelente pedreiro! E os outros também trabalham.

- Nesse caso, enganei-me - observou o conde, em tom divertido. - Eram

excelentes pedreiros, excelentes enBraxadores e excelentes vendedeiras de
maçãs!

Fitou o neto durante alguns segundos, sem falar. Acabava de ter uma ideia

e, embora não fosse inspirada pelos mais nobres sentimentos, nem por isso era
uma ideia má. Por fim, disse:

- Vem cá!

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O pequeno lorde aproximou-se do avô, tanto quanto era possível, sem

tocar no pé gotoso.

- Que farias neste caso? - perguntou Sua Senhoria. O reverendo Mordaunt

experimentou uma sensação muito singular. Aquele homem, bondoso e
prudente, que vivia há muitos anos no domínio de Dorincourt, conhecia todos
os rendeiros, ricos e pobres, todos os habitantes da aldeia, trabalhadores ou
preguiçosos, honestos ou desonestos; avaliava perfeitamente o poder, para o
bem e para o mal, que viria a ter aquele rapazinho de olhar decidido, que estava
ali na sua frente, muito direito, de mãos nas algibeiras.

Pensou que o velho conde, orgulhoso e autoritário, podia muito bem ter o

capricho de dar, desde já, uma parte desse podér ao pequenito. Se Lorde
Fauntleroy não fosse generoso e simples, essa resolução teria consequências
detestáveis para os outros e para ele próprio.

- Sim, que farias tu neste caso? - insistiu o conde.
Fauntleroy aproximou-se ainda mais do avô, e pousou-lhe a mão sobre o

joelho, num gesto seguro e cheio de confiança.

- Se eu fosse rico - respondeu ele - e não fosse apenas uma criança,

autorizaria Hugues a continuar na herdade e dar-lhe-ia aquilo de que ele
precisa para os filhos. Mas assim, como sou ainda muito pequeno...

Calou-se, durante uns momentos, e o seu rosto iluminou-se de alegria.
- Mas o avô pode fazer tudo quanto quiser, não é verdade? - exclamou ele.
- Hum! - murmurou o conde, olhando-o fixamente - É essa a tua opinião?
Em todo o caso, não parecia zangado.
- Quero dizer que o avô pode dar o que quiser seja a quem for - disse

Fauntleroy. - Quem é Newick?

- É o meu administrador, e há alguns rendeiros que não gostam dele.
- O avô pode escrever-lhe agora mesmo? - perguntou o pequeno lorde. -

Quer que eu lhe vá buscar o tinteiro e a caneta? Posso tirar o jogo de cima da
mesa?

O avô continuou a fitá-lo, sem responder. Por fim, perguntou:
- Sabes escrever?
- Sei - respondeu Cedric -, mas ainda não escrevo muito bem.
- Tira tudo o que está sobre a mesa - ordenou o conde - e vai à minha

secretária buscar uma caneta, papel e tinta.

O reverendo Mordaunt estava cada vez mais interessado.
Lorde Fauntleroy obedeceu rapidamente. Instantes depois estava sobre a

mesa tudo quanto o conde pedira e era preciso para escrever.

- Pronto! - exclamou o pequenito. - O avô já pode escrever.
- Eu, não. Tu é que escreves.

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- Eu? - exclamou Cedric, tornando-se corado como um morango. - Mas,

então, não é a mesma coisa! E quando não tenho dicionário, dou alguns erros,
nas palavras difíceis.

- Não tem importância - respondeu o avô. - Hugues não terá que se

lamentar das tuas faltas de ortografia. Escreve.

Fauntleroy pegou na caneta, molhou-a no tinteiro e colocou-se em posição

de escrever.

- E agora, que escrevo eu? - perguntou.
- Podes dizer: - “Não se ocupe de Hugues por enquanto”. E assina:

“Fauntleroy” - disse o conde.

O pequeno lorde começou a escrever.
Foi uma operação séria e lenta, mas a criança aplicou-se a ela de todo o

coração.

Momentos depois a carta estava pronta e Cedric estendeu-a ao avô, com

um sorriso um tanto inquieto, perguntando:

- Parece-lhe que pode ir assim?
O velho fidalgo pegou na carta e esboçou um sorriso.
- Pode! - respondeu ele. - Hugues achará muito bem.
Depois deu a carta ao sacerdote, que leu o seguinte:

“Caro senhore Newick
“Se faz favore, não se ocupe de Hugues por encuanto. Com os meus

agradecimentos.

“Respeitosamente seu
Fauntleroy”

- O Sr. Hobbes assinava sempre assim as cartas - explicou Fauntleroy - e

pareceu-me melhor dizer “se faz favor”. Acha que tenho muitos erros?

- Alguns. - concordou o conde.
- Eu logo disse! Faltava-me o dicionário...
- Não faz mal - continuou o avô. - Eu corrijo os erros e tu copias

novamente a carta.

Assim foi.
- A ortografia é muito complicada - disse Cedric, ao concluir. - Há palavras

que se escrevem de uma maneira muito diferente daquela que se espera. Mas
eu hei-de aprender.

Quando se retirou, o reverendo Mordaunt levou a carta. E levou, além

disso, uma impressão agradável e cheia de esperança, como nunca tivera, até
então, quando regressava das suas visitas ao castelo.

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Lorde Fauntleroy acompanhou-o à porta e, depois, voltou para junto do

avô.

- Agora, posso ir ver a Querida? - perguntou ele. Ela deve estar à minha

espera.

O conde ficou silencioso.
- Primeiro, tens que ir ver uma coisa à cavalariça - respondeu ele, por fim.

- Toca a campainha.

- Agradeço-lhe muito, meu avô - disse o pequenito, tornando-se muito

corado -, mas parece-me que era melhor guardar isso para amanhã. A Querida
deve ter saudades minhas.

- Está bem! - respondeu o avô. - Vamos mandar vir a carruagem.
Depois, acrescentou secamente:
- O que eu queria mostrar-te era um “poney”. Fauntleroy abriu muito os

olhos.

- Um “poney”? - exclamou ele. - De quem é ele?
- É teu!. .
- Meu? - gritou Cedric. - Meu? Tal qual como os brinquedos que estão lá

em cima?

- Sim! - confirmou o avô. - Queres vê-lo já? Posso dar ordem para o

trazerem defronte do castelo.

As faces de Fauntleroy tornavam-se cada vez mais coradas.
- Nunca pensei que havia de ter um “poney”! Nunca! Nunca! - repetia ele.

- Como a Querida vai ficar contente! O avô tem-me dado tantas coisas!

- Tens muito desejo de ver o “poney”?
Fauntleroy respirou fundo.
- Sim, tenho um desejo muito, muito grande, de o ver! - respondeu ele. -

Tenho tanto desejo, que não sei se não me faltará a coragem para esperar. Mas
penso que não é agora a melhor ocasião.

- É indispensável que vás visitar a tua mãe esta tarde? - perguntou o

conde. - Achas que não podes guardar a visita para amanhã?

- Oh! não! - exclamou Fauntleroy. - Ela deve ter pensado em mim toda a

manhã, como eu também pensei nela.

- Ah! Nesse caso, toca a campainha - disse o avô. Enquanto desciam a

avenida, de carruagem, o velho falou o menos possível. Outro tanto não sucedia
com o neto, que não se cansava de falar no “poney”. De que cor era ele? De que
tamanho? Que comia ele? A que horas deveria levantar-se, na manhã seguinte,
para o ver?

- A Querida vai ficar tão contente! - repetia. - Ela sentir-se-á

reconhecidíssima ao avô, por ser tão bom para mim. A Querida sabe

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perfeitamente que eu sempre gostei muito de “poneys”, mas nunca pensámos
que eu poderia ter um. Havia um menino da Quinta Avenida que tinha um
“poney”. Montava-o todas as manhãs, e nós costumávamos dar um passeio por
esse lado para o vermos.

Encostou-se às almofadas e ficou uns momentos a contemplar o avô, em

silêncio. Depois exclamou:

- Não há ninguém no mundo melhor do que o avô, tenho a certeza. O avô

passa a vida a fazer bem: não pensa em si, mas sim nos outros, não é verdade?
A Querida costuma dizer que a melhor maneira de ser bom é exactamente
pensar mais nos outros do que em nós próprios. É assim que o avô faz sempre,
não é?

Lorde Dorincourt ficou tão surpreendido, ao ver-se retratado com tão

belas cores, que não encontrou palavras para dizer. Precisava de reflectir. Era
extraordinário veri ficar como a sua maneira de ser egoísta se ia transformando
em impulsos bons e generosos, pela influência de uma criança ingénua e boa.

Continuando a fitar o avô com um olhar leal e inocente, cheio de

admiração, Fauntleroy prosseguiu:

- O avô tem feito muita gente feliz! Primeiro Brígida, Miguel e os filhos;

depois a vendedeira de maçãs, Dick, Hobbes e agora Hugues, a mulher e os
filhos. E também o reverendo Mordaunt, porque ele, com certeza, ficou muito
contente. Assim como a Querida e eu, por causa do “poney” e de tudo o mais.
Contei pelos dedos: são vinte e sete pessoas que o avô fez felizes. Vinte e sete
pessoas é muito.

- E tens a certeza de que fui eu quem lhes deu a felicidade?
- Pois foi! O avô fê-los felizes! - Hesitou um instante e depois continuou: -

O avô sabe que algumas pessoas têm umas ideias esquisitas acerca dos condes,
quando não os conhecem? Por exemplo, o Sr. Hobbes. Vou escrever a contar-lhe
tudo.

- E qual é então a opinião do Sr. Hobbes acerca dos condes?
- É preciso dizer que ele não conhece nenhum - respondeu Cedric. - O que

ele sabe, foi o que leu nos livros. Ele julga - mas o avô não se aflija por causa
disso! - que os condes são maus, têm o sangue alterado; e dizia que não os
queria nem ver à porta da sua loja. Mas, se ele conhecesse o avô, tenho a certeza
de que pensaria de outra maneira. Hei-de falar-lhe no avô.

- E que vais tu contar-lhe?
- Digo-lhe que o meu avô é o melhor homem do mundo, o mais generoso

que eu tenho visto! - exclamou Lorde Fauntleroy, cheio de entusiasmo. - E
também que pensa sempre nos outros, para os fazer felizes e que... eu espero,
mais tarde, ser tal qual como o avô.

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- Tal como eu?! - replicou o conde, olhando o rostozinho, muito corado, do

neto.

Sem saber porquê, sentiu-se ele próprio corar um pouco e, desviando

bruscamente os olhos, contemplou longamente a paisagem.

- Tal qual como o avô! - repetiu Fauntleroy. E acrescentou, com modéstia: -

Se eu for capaz! Talvez não seja, mas hei-de experimentar.

A carruagem descia a imponente avenida, sob os ramos das belas árvores,

por onde espreitava a luz do sol.

Lorde Fauntleroy tornou a ver os campos floridos que o tinham encantado

na véspera. Avistou, novamente as gazelas e os veados, as perdizes e os
coelhinhos, e tudo lhe pareceu ainda mais encantador. A beleza que o rodeava
enchia-lhe o coração de alegria. Por seu lado, o velho fidalgo, embora parecesse
contemplar os campos e as árvores, via e entendia coisas muito diferentes. Via
uma longa existência sem pensamentos generosos e actos de bondade; via anos
e anos, durante os quais um homem, que fora jovem e rico, tinha empregado a
sua força e a sua mocidade, o seu poder e a sua riqueza a dar unicamente
satisfação aos seus próprios desejos; via este mesmo homem tornar-se velho,
levar uma existência triste e solitária no meio dos seus imensos domínios; via
pessoas que o detestavam ou o temiam, e outras que o lisonjeavam ou se
curvavam diante dele, mas nem um único daqueles que o rodeavam se
preocupava com a sua vida ou a sua morte, a não ser pelo que tivessem a
ganhar ou a perder com isso. O conde olhava os vastos terrenos que lhe
pertenciam e pensava em coisas que o pequeno Lorde Fauntleroy ignorava: a
extensão daquele domínio, a riqueza que representava e o grande número de
famílias que ali viviam. E sabia uma coisa que Lorde Fauntleroy também
desconhecia: que entre todas essas famílias, humildes ou abastadas, não havia
uma única pessoa que, embora invejando a sua fortuna, o seu título e grandeza,
fosse capaz de classificar de bom o dono de todos aqueles bens, ou desejar
parecer- se com ele, como acabava de fazer aquela criança de alma pura.

Ora, isto não era um assunto de agradável meditação, mesmo para um

velho egoísta e céptico que, durante setenta anos, não tivera outra preocupação
que não fosse a sua própria pessoa, sem ligar a menor importância à opinião
dos outros, a não ser quando se tratava do seu próprio conforto e distracções.
Nunca pensara nisso; fora o neto, ao manifestar o desejo de imitar o seu
exemplo, quem o levara a fazer a si próprio esta pergunta: “Sou eu, realmente,
uma pessoa a quem se possa tomar como modelo?

Ao ver o avô franzir as sobrancelhas, Fauntleroy pensou que ele,

naturalmente, sentia dores no pé. Por isso, achou que era melhor não o
incomodar e contentou-se em admirar em silêncio a vista lindíssima que os seus

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olhos abrangiam. Mas a carruagem, tendo transposto o portão do parque e
rolado suavemente sobre terrenos relvados, parou pouco depois; tinham
chegado ao pavilhão de Court Lodge e, mal o trintanário abriu a portinhola,
Lorde Fauntleroy saltou para o chão.

O conde despertou da sua meditação e perguntou:
- O quê? Já chegámos?
- Já, sim, avô. Vou dar-lhe a sua bengala. Pode apoiar-se a mim, para

descer.

- Eu não saio da carruagem - respondeu Sua Senhoria, bruscamente.
- O avô. não vem ver a Querida? - exclamou o pequenino, muito

espantado.

- Pede à Querida que me desculpe! - respondeu secamente o conde. -

Conta-lhe que nem mesmo para veres o teu “poney” desististe de a visitar.

- Ela vai ter muita pena. Com certeza que deseja muito conhecer o avô.
- Talvez não... - replicou o conde. - À volta, a carruagem tornará a passar

por aqui, para te levar.

Depois, ordenou ao cocheiro que seguisse.
O trintanário fechou a portinhola.
O pequeno Lorde Fauntleroy, depois de ter mostrado uma cara muito

surpreendida, subiu, a correr, a alameda que conduzia ao pavilhão.

Tal como sucedera a Havisham, na América, o conde teve, então, ocasião

de ver umas belas pernas, ágeis e sólidas, transporem aquele espaço com
admirável rapidez. Evidentemente, o dono daquelas pernas não desejava
perder tempo.

A carruagem afastou-se, mas o conde não se recostou nas almofadas;

continuou a olhar pela portinhola. Um espaço maior entre as árvores permitia-
lhe ver a porta da casa. Estava aberta. A pequena silhueta infantil subiu os
degraus; uma outra silhueta, jovem e delgada, vestida de preto, correu ao seu
encontro. Fauntleroy lançou-se nos braços da mãe, pendurou-se-lhe ao pescoço
e cobriu-lhe de beijos o jovem e doce rosto.

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Na igreja


No domingo seguinte, havia, na igreja, uma bela assistência. O reverendo

Mordaunt não se lembrava de outro domingo assim, com tão grande
concorrência.

Estavam presentes pessoas que só muito raramente iam escutar os seus

sermões.

Algumas eram, até, de Hazelton, a paróquia vizinha.
Viam-se robustos camponeses, com as mulheres e os filhos. A mulher do

médico estava lá também com as quatro filhas. O senhor e a senhora Kimsey,
donos da drogaria, que preparavam pílulas e pós para algumas léguas em
redor, encontravam-se nos seus bancos, assim como a irmã de Joana, a mudista
e a costureira. O ajudante do médico e o caixeiro do droguista também não
faltaram. A verdade é que quase todas as famílias da região estavam ali
representadas.

No decorrer da semana anterior, tinham constado coisas maravilhosas

acerca de Lorde Fauntleroy. Os criados do castelo, principalmente Joana, não se
cansavam de contar tudo quanto se relacionava com o jovem lorde, desde a sua
chegada ao castelo.

- É uma criança que não sabe o que é ter medo - diziam. - Logo que entrou,

principiou a falar com o avô perfeitamente à vontade, como se sempre tivessem
vivido juntos. O próprio avô estava admirado e não sabia o que lhe havia de
dizer.

A história de Hugues também já era conhecida. O reverendo Mordaunt

contara-a à criada, que logo o espalhara por toda a região. O próprio Newick
mostrara a duas ou três pessoas a carta assinada “Fauntleroy”.

Havia uma coisa que indignava toda a gente: o pequeno Lorde Fauntleroy

viver separado da mãe. Era uma crueldade.

Em resumo, a chegada do pequeno lorde ao castelo era o assunto das

conversas de todas as pessoas, não só da aldeia, como de toda a região de
Dorincourt. E, no domingo seguinte, nenhum rendeiro faltou à igreja, com
curiosidade de conhecer o jovem Lorde Fauntleroy, que seria, mais tarde, o
proprietário da terra que eles cultivavam e de que tanto dependiam.

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O conde frequentava pouco a igreja, mas naquele domingo decidiu assistir

ao serviço religioso, porque desejava mostrar-se, no grande banco senhorial,
com Lorde Fauntleroy ao seu lado.

Em frente da porta da igreja tinham-se formado grupos, que discutiam a

possibilidade de o conde também vir. No meio da discussão, uma mulher
exclamou:

- Reparem! Lá vem a mãe, com certeza! Que bonita que ela é!
Todos se voltaram para ver a jovem senhora, vestida de preto, que

avançava no caminho. O véu, puxado para trás, deixava-lhe ver o rosto e a
cabeleira brilhante encaracolada como a do pequenito, sob o pequeno chapéu
de viúva.

A Sr. a Errol não pensava nas pessoas aglomeradas à porta da igreja;

pensava em Cedric, nas visitas que ele lhe fazia, na alegria que tivera com o
“poney” montado no qual a fora ver, na véspera, radiante de contentamento.
Mas não tardou a notar que toda a gente olhava para ela e que a sua chegada
causava sensação.

Uma velha de xaile vermelho fez-lhe uma reverência e disse:
- Deus a abençoe, minha senhora!
Uma outra mulher imitou-a e os homens tiraram os chapéus e barretes à

sua passagem.

A princípio, a Sr. a Errol não compreendeu; depois percebeu que aquelas

saudações lhe eram dirigidas, por ser a mãe de Lorde Fauntleroy.

Então, toda corada, cumprimentou também sorrindo, e agradeceu com a

sua voz muito doce à mulher que lhe desejara as bençãos do céu.

Aquelas manifestações rústicas, de deferência, eram absolutamente novas

e um pouco embaraçosas para quem tinha vivido sempre numa grande cidade
americana, ruidosa e movimentada. Mas a mãe de Cedric não pôde deixar de
ficar sensibilizada com os sentimentos de cordial estima que aquelas
homenagens significavam.

Apenas ela entrou na igreja, deu-se o grande acontecimento do dia. A

carruagem do castelo apareceu ao longe, no caminho.

- Lá vem eles! - disseram os curiosos, u uns aos outros. A carruagem

parou. Tomás desceu, abriu a portinhola e um rapazinho loiro, vestido de
veludo preto, saltou para o chão.

Todos - homens, mulheres e crianças - olharam para ele com enorme

curiosidade.

- É tal qual o patrão, quando partiu! - murmuravam os que ainda se

lembravam. - É o retrato do pai!

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O rapazinho parou um instante, em plena luz, de olhos erguidos para o

conde, com uma expressão de afectuoso interesse, enquanto Tomás ajudava o
velho fidalgo a descer da carruagem. Logo que julgou poder ser-lhe útil,
estendeu a mão ao avô e ofereceu-lhe o seu ombro, como de costume. Toda a
gente se convenceu, então, de que, ao contrário do que se passava com as outras
pessoas, o conde de Dorincourt não inspirava o menor temor ao neto.

- Encoste-se a mim, avô! - ouviram-no dizer aqueles que estavam mais

próximos. - Como toda esta gente se mostra contente por ver o avô!

- Tira o teu boné! - disse o conde. - Eles estão a saudar-te!
- A mim?! - exclamou o pequeno lorde. E tirando rapidamente a boina,

voltou-se para os camponeses, com os olhos brilhantes e procurando saudar
todos ao mesmo tempo.

- Que Deus abençoe Vossa Senhoria - disse a mesma velha de xaile

vermelho que dirigira a palavra à mãe. - E que Ele lhe dê uma longa vida muito
feliz!

- Muito obrigado, minha senhora - respondeu Fauntleroy.
Entraram na igreja; todos os olhares se fixaram neles, enquanto o avô e

neto se dirigiram para o grande banco quadrado, guarnecido de almofadas e
reposteiros vermelhos, situado ao alto da nave. Logo que se instalou, Lorde
Fauntleroy fez uma descoberta que o deixou encantado: no outro lado da igreja,
num sítio onde ele podia vê-la perfeitamente, estava a mãe a sorrir-lhe.

Cedric gostava muito de música.
Quando o órgão principiou a tocar, ele levantou-se e fitou a mãe.

Costumavam cantar os dois, juntos, muitas vezes. A sua voz, muito pura e
fresca como a de um passarinho, ergueu-se, em coro, com a dos outros fiéis e,
no prazer de cantar, esqueceu tudo o mais.

Sentado a um lado do grande banco, e um pouco encoberto pelo

reposteiro, o conde distraiu-se também dos seus próprios pensamentos, ao
contemplar o neto. Com o livro dos cânticos aberto na sua frente, Cedric
cantava com toda a alma, erguendo um pouco a cabeça. Um raio de sol,
passando através do vidro amarelo de um vitral, fazia resplandecer a sua
cabeleira doirada.

A mãe, que o contemplava de longe, sentiu um estremecimento no

coração, donde se erguia uma ardente prece: pedia a Deus que a inocente
alegria do filho fosse duradoira e que a espantosa fortuna que lhe coubera em
sorte, não fosse, para ele, origem de desgostos e perigos.

- Oh! meu Cedric! - tinha-lhe ela dito na véspera. Eu queria ser capaz de te

dar os melhores conselhos! Dir-te-ei apenas que sejas sempre bom, corajoso e
leal! Nunca faças mal a ninguém; procura fazer todo o bem que puderes, e este

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vasto mundo será um pouco melhor, graças a ti, meu filho! É isso o que
importa, acima de tudo! Tornar o mundo melhor - por muito pouco que seja.

Ao regressar ao castelo, Cedric repetira ao conde as palavras da mãe e

acrescentara:

- Quando a Querida me disse isto, pensei no avô e respondi-lhe que tornar

o mundo melhor, era exactamente o que o avô fazia, e que eu procuraria imitá-
lo.

- Que respondeu ela? - perguntou o conde, um pouco contrariado.
- Disse que estava muito bem, e que devíamos sempre ver o que havia de

bom nos outros, para seguir os seus bons exemplos.

Era, talvez, nisto mesmo que pensava o conde, enquanto contemplava o

neto, na igreja. Mais de uma vez olhou também para o lugar onde estava a mãe
de Cedric, e pôde ver o claro rosto que o filho tinha amado - esse filho que
morrera sem obter o perdão paternal - e os olhos escuros, tão parecidos com os
da criança que estava ali, junto de si.

Os pensamentos do conde estariam ainda cheios de ódio, ou haveria neles

uma vaga doçura? Seria difícil responder.

Quando saíram da igreja, a maior parte das pessoas que tinham assistido

ao serviço religioso, esperavam fora, para os ver passar.

No momento em que o avô e o neto se aproximavam da porta do

cemitério, um homem tirou o chapéu e avançou um pouco. Depois parou, com
ar hesitante.

- Bom dia, Hugues! - disse o conde.
Fauntleroy voltou-se vivamente, para ver o homem.
- Oh! - exclamou ele. - Este é que é o Hugues?
- Sim! - respondeu o conde - e suponho que ele veio aqui para travar

conhecimento com o seu novo senhorio.

- É verdade, Sr. Conde! - confirmou o homem, com ar embaraçado. - O Sr.

Newick disse-me que Sua Senhoria se interessou por mim; eu gostava, se o Sr.
Conde mo permite, de lhe dizer uma palavra de agradecimento.

É natural que o pobre homem ficasse surpreendido, ao ver que, quem lhe

tinha feito um tão grande favor, era, afinal, uma criança.

Cedric olhava para ele, com a cabeça levantada, tão simplesmente como o

faria um dos próprios filhos de Hugues, sem fazer a menor ideia da sua própria
importância.

- Vossa Senhoria, fez-me um grande favor - começou ele -; um grande

favor!

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- Oh! - exclamou Lorde Fauntleroy. - Eu apenas escrevi uma carta. Quem

lhe fez o favor foi o meu avô. O senhor bem sabe que ele é sempre bom para
toda a gente! A sua mulher, agora, está melhor?

Hugues ficou ainda mais embaraçado. Nunca tinha ouvido dizer que o

conde era bom.

- Sim. muito obrigado, milorde. Ela está melhor, desde que não tem tantas

apoquentações. Os cuidados é que a faziam doente.

- Ainda bem; fico muito satisfeito. O meu avô preocupou-se muito,

quando soube que os seus filhos tinham escarlatina. Ele também teve filhos. Eu
sou filho de um dos seus filhos. Já vê.

Hugues não sabia que dizer. Achou mais prudente não olhar para Lorde

Dorincourt, pois ninguém ignorava que os sentimentos dele para com os filhos
tinham sido pouco carinhosos. Contentava-se em vê-los uma vez por ano. E
quando eles estavam doentes, o seu primeiro cuidado era partir para Londres, e
evitar assim encontros com os médicos e as enfermeiras. Devia ser aborrecido
para o conde, cujos olhos brilhavam mais, ouvir dizer que se interessara pela
escarlatina dos filhos de Hugues.

- Afinal, Hugues - disse o conde, com um sorriso sarcástico -, vocês todos

estão completamente enganados a meu respeito. Quem me conhece é Lorde
Fauntleroy. Quando quiserem saber o que hão-de pensar de mim, dirijam-se a
ele. Vamos, Fauntleroy!

Subiram para a carruagem.
Quando chegaram à estrada, depois da volta do caminho, o conde

continuava a sorrir, da mesma forma enigmática.

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Primeiras lições de equitação


O sorriso sarcástico voltou a aparecer várias vezes nos lábios do conde,

durante os dias seguintes.

Efectivamente, à medida que ia conhecendo melhor o neto, aquele sorriso

repetia-se, sucedendo, até, tornar-se quase suave. Deve dizer-se que, antes da
chegada do pequeno lorde, o conde principiava a sentir-se cansado da solidão
em que vivia, da sua gota e dos seus setenta anos. Depois de uma vida de
agitação e prazer, não era agradável passar os dias sozinho, ainda que fosse nos
mais luxuosos aposentos, com um pé sobre uma almofada e sem outra dis
tracção que não fosse ralhar com o criado de quarto, aterrorizado que, no seu
íntimo, o detestava.

O velho fidalgo era muito inteligente, e não tinha a menor ilusão acerca

dos sentimentos dos criados a seu respeito. Também sabia que as poucas
pessoas que ainda o visitavam, não sentiam por ele nenhuma simpatia, embora,
às vezes, se distraíssem com as suas reflexões desabridas e picantes, que não
poupavam ninguém. Enquanto fora vigoroso e saudável, o conde viajara por
todo o mundo, tentando distrair-se, mas sem, na realidade, o conseguir. Depois,
quando a saúde começara a faltar-lhe, desgostara-se de tudo e encerrara-se em
Dorincourt, com a sua gota, os seus jornais e os seus livros.

No entanto, não podia ler constantemente, e o conde aborrecia-se cada vez

mais.

Foi então que Lorde Fauntleroy chegou, e felizmente para o pequenito, o

orgulho do avô sentira-se satisfeito desde o primeiro instante em que ele
apareceu.

Se Cedric não fosse belo, certamente Lorde Dorincourt teria sentido por

ele uma antipatia que não lhe deixaria ver as boas qualidades do neto.

Assim, observou-o com interesse e achava engraçado conceder-lhe o poder

de prestar um favor ao desgraçado Hugues. Pessoalmente, o rendeiro não lhe
interessava nada, mas a ideia de que falariam do neto, na aldeia, e que, desta
forma ele principiaria a tornar-se popular e amado pelos rendeiros, agradava-
lhe.

Sentiu prazer em ir à igreja com Cedric e verificar a curiosidade e o

interesse que a sua vinda causara. Imaginava os comentários que fariam acerca
do pequeno lorde - a sua beleza, o seu aspecto vigoroso, a sua distinção, a sua

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cabeleira doirada e o seu ar agradável. Tinha a certeza de que diriam, como ele
próprio ouvira a uma mulher segredar a outra:

“- É um verdadeiro lorde, da cabeça aos pés”!
O velho conde de Dorincourt era um fidalgo arrogante, orgulhoso do seu

nome e da sua categoria social. Sentia-se satisfeito por mostrar ao mundo que a
casa de Dorincourt tinha, finalmente, um herdeiro digno, sob todos os pontos
de vista, da sua situação futura.

Na manhã em que Cedric experimentou o “poney”, Lorde Dorincourt teve

uma satisfação tão grande, que quase esqueceu a sua gota. Quando Wilkins, o
“groom” especialmente contratado para lhe ensinar equitação, trouxe o belo
animal que arqueava o pescoço castanho e lustroso, e sacudia, ao sol, a fina
cabeça, o conde instalara-se, junto de uma das janelas da biblioteca, para ver
Fauntleroy tomar a sua primeira lição. Perguntava a si próprio se o pequenito
teria medo; o “poney” não era muito pequeno e o conde vira, muitas vezes,
crianças que desanimavam, assustadas, à primeira lição.

Lorde Fauntleroy saltou para a sela, com desembaraço. Nunca montara

um “poney” e sentia-se feliz como um rei. Wilkins fez passar várias vezes o
animal em frente das já nelas da biblioteca, segurando-o pelo freio.

Mas, isto de se conservar bem direito sobre um cavalo, conduzido pelo

freio, não bastava para o entusiasmo de Cedric. Ao fim de alguns minutos,
dirigiu-se ao avô, que estava lá em cima, na janela e perguntou:

- Não posso andar sozinho? Não posso andar depressa? O pequeno da

Quinta Avenida andava a trote e a galope!

- Parece-te que és capaz de trotar e galopar? - perguntou o conde.
- Gostava de experimentar - respondeu Fauntleroy. O conde fez sinal a

Wilkins, que foi buscar outro cavalo, montou-o e segurou nas rédeas do
“poney”.

- Agora, fá-lo trotar! - ordenou Lorde Dorincourt. Os minutos que se

seguiram foram violentos, para o aprendiz de cavaleiro.

Reconheceu que o trotar não era tão fácil como andar a passo, e que,

quanto mais depressa o “poney” trotava, mais difícil se tornava.

- Isto saco... de bas... tante, não é verdade? - gritou ele a Wilkins. -

Também lhe sucede o mesmo?

- Não, milorde. Há-de habituar-se, com o tempo. Erga-se nos estribos.
- Er... go-... me tan... to quan... to posso!
Erguia-se e baixava irregularmente, com muitas sacudidelas e pancadas. O

conde observava tudo da janela. Quando os cavaleiros passaram novamente ao
alcance da sua voz, depois de terem desaparecido uns instantes por trás das
árvores, Fauntleroy tinha perdido a boina, cerrava os

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lábios, e as suas faces estavam vermelhas como papoilas, mas continuava,

corajosamente, a trotar.

- Parem um instante! - disse o avô. - Onde está a tua boina?
Wilkins respondeu, com vísivel satisfação:
- Voou, senhor conde! Quis apear-me para a ir buscar, mas Lorde

Fauntleroy não mo consentiu.

- Teve muito medo? - perguntou o conde, baixando a voz.
- Medo Quem? Lorde Fauntleroy? - exclamou Wilkins. - Creio mesmo que

não sabe o que isso é! Tenho ensinado a montar muitos jovens, mas nunca
encontrei nenhum com tão boa vontade e decisão.

- Estás cansado? - perguntou ainda o conde dirigindo-se ao neto. - Queres

apear-te?

- Isto sacode mais do que se imagina - confessou o pequeno lorde, com

franqueza - e cansa um bocado! Mas ainda não tenho vontade de me apear.
Prefiro continuar. Logo que esteja fatigado, irei buscar a minha boina.

Se tivessem ensinado a Fauntleroy o que ele devia fazer para agradar ao

avô, não poderia ter feito nada melhor.

Quando o “poney” tornou a afastar-se, a trote, na avenida, o rosto do

velho fidalgo corou um pouco e, sob as espessas sobrancelhas, os olhos
brilharam-lhe de um prazer, que ele próprio não julgava poder experimentar.
Aguardou, com impaciência, que o ruído das ferraduras anunciasse o regresso
dos cavaleiros. Quando voltaram, desta vez num andamento mais rápido,
Fauntleroy não tornara a pôr a boina que Wilkins trazia na mão; as faces do
pequeno lorde estavam mais coradas do que nunca e tinha os cabelos em
desordem. Mas voltava a galope!

- Avô! - exclamou ele, ofegante, logo que pararam em frente da porta. -

Galopei! Não galopei tão bem como o rapaz da Quinta Avenida, mas galopei e
não caí!

Depois disto, Wilkins e o “poney” passaram a ser seus grandes amigos, e

todos os dias os viam trotar juntos, na estrada, ou ao longo dos caminhos
verdejantes.

As crianças da região saíam de casa para ver passar o elegante “poney”

castanho, com o seu gentil cavaleiro, muito direito na sela.

E o jovem lorde, tirando a boina, dizia: - “Olá, bom dia!” - com um ar

muito pouco senhorial, mas cheio de cordialidade. Às vezes, parava para
conversar com os garotos, e um dia, ao regressar ao castelo, Wilkins contou que
Lorde Fauntleroy quisera descer do cavalo junto da escola da aldeia para fazer
montar no seu lugar, e conduzir a casa, um pequenito coxo, que parecia
fatigado.

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- Palavra! - dizia Wilkins, ao contar a história aos criados. - Não há

maneira de o contrariar! Também não quis que eu pusesse o garoto no meu
cavalo, porque - dizia ele - podia o rapazito ter medo de um cavalo tão grande.
“- Repare bem, Wilkins - disse-me ele - este pequeno é coxo, e eu não sou. Além
disso, apetece-me conversar com ele. “ E não houve remédio, senão fazer-lhe a
vontade, montar o garoto no “poney”, enquanto milorde caminhava ao lado,
com as mãos nas algibeiras e a boina para trás, falando ou assobiando sem mais
cerimónia que qualquer de nós. Quando chegámos à choupana e a mãe do
rapaz apareceu, toda inquieta, para saber o que se passava, Lorde Fauntleroy
descobriu-se e disse-lhe: “- Trago-lhe o seu filho, minha senhora, porque lhe
doía a perna. Creio que esta bengala não é suficiente para ele se apoiar. Vou
pedir ao meu avô que lhe mande fazer umas muletas”. Vocês calculam como a
mulher ficou espantada! Por meu lado, julguei que estava a sonhar. Nunca
imaginei uma coisa assim!

Wilkins receava que o conde se zangasse, ao saber o que sucedera. Mas,

pelo contrário, o velho fidalgo soltou uma

gargalhada e mandou chamar Fauntleroy, para que ele lhe contasse tudo,

do princípio ao fim. Depois, riu novamente, e a verdade é que, alguns dias
depois, a carruagem do castelo parava em frente da casa onde morava o
pequeno coxo.

Lorde Fauntleroy saltou para o chão e bateu à porta da casa; levava ao

ombro, à maneira de uma espingarda, um par de muletas novas, sólidas e leves.
Entregou-as à mãe do pequenito, e disse:

- O meu avô manda-lhe cumprimentos e pede-lhe que aceite estas muletas

para o seu filho. Espero que ele se cure depressa.

Ao subir para a carruagem, Cedric explicou ao avô:
- Apresentei cumprimentos do avô à mãe do pequeno. O avô não me tinha

dito nada, mas pensei que, naturalmente, foi por se ter esquecido. Fiz bem, não
é verdade?

O conde riu e não fez qualquer observação. De dia para dia, apertavam-se

mais os laços que uniam avô e neto, e a confiança de Cedric na bondade e nas
virtudes do conde era cada vez maior. O pequeno estava convencido de que
não havia ninguém mais amável e generoso do que o avô. Sabia que todos os
seus desejos seriam satisfeitos, muitas vezes ainda antes de os manifestar, e
tinha tantos brinquedos e distracções, que chegava a sentir-se confundido à
vista da sua própria riqueza. Este sistema, aplicado a outras crianças, seria
perigoso, mas com o jovem lorde não dava mau resultado. No entanto, apesar
da sua natureza bondosa e simples, Cedric ter-se-ia tornado uma criança um
pouco amimada e caprichosa, se não fossem as horas que passava em Court

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Lodge, com a mãe. Felizmente, a sua “melhor amiga” velava por ele com
imensa ternura. Conversavam muito, os dois, e Cedric, ao regressar ao castelo,
além dos beijos carinhosos que a mãe lhe dava nas faces, levava sempre no
coração algumas palavras puras e nobres, que mereciam ser guardadas para
sempre.

Havia, porém, uma coisa que intrigava profundamente o pequeno lorde:

o tal mistério em que lhe tinham falado e no qual reflectia cada vez mais. A
própria mãe ignorava a que ponto o seu espírito andava preocupado, e Lorde
Dorincourt supunha que ele nunca mais pensara em semelhante coisa.

Dotado de um espírito vivo e observador, o pequeno lorde não podia,

porém, deixar de perguntar a si próprio por que motivo o avô e a mãe nunca
estavam juntos. Quando a carruagem do castelo parava em frente de Court
Lodge, o conde nunca descia, e nas raras vezes que o avô o acompanhava à
igreja, deixava-o sempre sozinho, à porta, nos dias em que ele devia
acompanhar a mãe. E, no entanto, todos os dias eram enviados para Court
Lodge cestos com flores e frutos dos jardins e pomares do castelo. Porém, o que
acabava de elevar o conde no conceito do neto, fora um facto sucedido pouco
depois do primeiro domingo em que a Sr. a Errol voltara a pé, da igreja para
casa. Uma vez que Cedric se preparava para ir visitar a mãe, viu, em frente da
porta, não a grande carruagem do castelo, com os seus dois cavalos fogosos,
mas uma bonita “vitória”, com um belo cavalo baio.

- É um presente para tu ofereceres a tua mãe - disse-lhe o conde,

bruscamente. - Ela não pode andar a pé, precisa de uma carruagem. O cocheiro
que a vai levar ficará também ao seu serviço. Tu é que lhe ofereces este
presente.

A alegria de Fauntleroy não se pode descrever. Mal pôde conter-se, até

chegar a Court Lodge. A mãe estava no jardim, a colher flores. Cedric saltou da
pequena “vitória” e precipitou-se nos braços da mãe, gritando:

- Querida, quer saber? Esta carruagem é para si! O avô disse que era eu

quem lha oferecia. É a sua carruagem, para a levar aonde a Querida quiser!

Cedric mostrava-se tão feliz, que a mãe não sabia que dizer. Não se sentia

com coragem de lhe perturbar a alegria, recusando-se a aceitar a oferta de um
homem que continuava a considerar como seu inimigo.

Teve que subir imediatamente para a “vitória”, com as rosas que tinha na

mão, e deixar-se conduzir num passeio, durante o qual o filho não cessou, um
momento, de lhe contar histórias acerca da bondade do avô. Essas histórias
eram, às vezes, tão ingénuas, que a Sr. a Errol não podia deixar de rir; depois,
puxava o pequenito para si e beijava-o, satisfeita por ver que ele apenas
descobria boas qualidades naquele velho que tinha tão poucos amigos.

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No dia seguinte, Fauntleroy escreveu a Hobbes uma grande carta. Quando

o rascunho estava pronto, levou-o ao avô, dizendo:

- Não tenho confiança na minha ortografia. Se o avô quiser fazer-me o

favor de emendar os erros, eu depois torno a copiá-la.

A carta dizia assim:

“Meu caro senhor Hobbes
“ Venho falar-lhe do meu avô. É o melhor conde que existe. Não é verdade

que os condes sejam todos tiranos. Gostava que o conhecesse. Com certeza que
seriam amigos. Ele sofre de gota num pé. É um martírio, mas o meu avô é muito
paciente. Cada vez gosto mais dele, porque ninguém pode deixar de gostar de
um conde assim. Tinha muito empenho em que conversasse com ele. Sabe tudo,
e o Sr. Hobbes podia fazer-lhe todas as perguntas que quisesse. Deu-me um
“poney” e uma “charrete” e ofereceu uma esplêndida carruagem a minha mãe.
Tenho três quartos, e tantos brinquedos, de todas as qualidades, que o Sr.
Hobes ficaria espantado. O castelo e o parque haviam de agradar-lhe muito,
com certeza. É um castelo tão grande, que as pessoas perdem-se lá dentro, como
diz Wilkins. Wilkins é o meu “groom”. Ele diz que há masmorras no castelo. O
par que é maravilhoso, com árvores enormes, veados, coelhos e outra caça, que
corre à vontade pelos campos. O meu avô é muito rico, mas não é altivo e
orgulhoso como o Sr. Hobbes imagina que são sempre os condes. Gosto muito
de passear com ele. Toda a gente o cumprimenta; as mulheres fazem
reverências, e algumas dizem: “Deus o abençoe!” Já sei montar a cavalo. A
principio sentia- me um pouco sacudido, quando trotava. O meu avô permitiu
que um rendeiro, que não podia pagar, continuasse na herdade, e a Sr.a Millon
levou-lhe vinho e outras coisas para os filhos, que estavam doentes.

“Gostava de o ver, e também gostava que a Querida vivesse no castelo.

Quando não sinto muitas saudades dela, sou feliz e gosto muito do meu avô.
Escreva-me depressa, se faz favor.

“Seu amigo dedicado
Fauntleroy “
“P. S. - Nas masmorras não está ninguém. O meu avô nunca fez padecer

ninguém”.

“P. S. - É um conde tão bom, que me faz lembrar o Sr. Hobbes. Toda a

gente gosta dele”.


- Sentes muito a falta da tua mãe? - perguntou-lhe o conde, ao acabar de

ler o rascunho.

- Muito! - disse Fauntleroy. - Tenho sempre saudades dela.

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Aproximou-se do conde, pôs-lhe a mão no joelho, ergueu os olhos para

ele e perguntou:

- O avô não sente a falta dela?
- Não a conheço - respondeu o conde, num tom sacudido.
- Bem sei - retorquiu o pequeno. - É isso que me admira imenso. Ela

recomendou-me que não perguntasse nada ao avô, por isso... por isso não me
atrevo. Mas não posso deixar de pensar neste mistério e de perguntar porquê...
Mas, lá vou eu fazer perguntas! Quando tenho muitas saudades dela, vou até à
janela e fico a olhar para a luzinha que brilha, para mim, todas as noites por
entre as árvores. É longe daqui, mas ela põe a luz na janela, para que eu possa
vê-la brilhar, e eu sei o que ela me diz.

- Então, que é?
- A luzinha diz assim: “Deus te guarde toda a noite!” tal como a Querida

costumava dizer-me, quando estávamos juntos. Ela dizia-me isto todas as noites
e, de manhã, era assim: “Deus te proteja durante o dia!” Por isso, bem vê, não
me pode suceder nenhum mal.

- Nenhum mal, com certeza! - repetiu o conde, em voz baixa.
O avô contemplou-o tão longamente, que o pequeno Lorde Fauntleroy

perguntou a si próprio o que estaria ele a pensar.

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Os casebres da aldeia


Lorde Dorincourt habituara- se, ultimamente, a reflectir em muitas coisas

que nunca o tinham preocupado. E todos esses pensamentos se relacionavam,
de uma forma ou de outra, com o neto.

O orgulho era o traço dominante do seu carácter, e como a criança

satisfazia absolutamente esse orgulho, o velho fidalgo encontrava agora um
novo interesse na vida.

Toda a gente sabia que os filhos lhe haviam causado graves decepções: por

isso, o conde experimentava uma agradável sensação de triunfo, ao apresentar
ao mundo um novo Lorde Fauntleroy que não podia desapontar ninguém.
Desejava que a criança tivesse consciência do seu poder e da elevada situação
que ocupava na sociedade; desejava também que os outros tivessem consciência
disso. Fazia planos para o futuro do neto. Às vezes, lá no íntimo, lamentava que
a sua vida passada não tivesse sido melhor, e que existissem nela passagens que
escandalizariam a alminha pura do neto, se ele conhecesse a verdade.

Ao pensar que aquela criança podia vir a saber que, durante muitos anos,

toda a gente chamava ao avô o “odioso conde de Dorincourt”, sentia-se
profundamente contrariado. Aquele novo interesse pela vida, que despertava
em si, fazia-o, por vezes, esquecer as dores e a gota; o próprio médico, ao fim de
algum tempo, ficou surpreendido, ao verificar que a saúde do seu nobre cliente
melhorara de uma forma absolutamente inesperada.

Uma bela manhã, os habitantes de Dorincourt ficaram espantados, ao

verem passar o pequeno Lorde Fauntleroy, montado no seu “poney”,
acompanhado por uma pessoa que não era Wilkins. Este novo companheiro,
que montava um esplêndido cavalo, era o próprio conde. Aquela ideia fora de
Cedric.

Quando se preparava para montar, o pequenito tinha dito ao avô, com ar

de pena:

- Gostava tanto que o avô viesse comigo! Quando vou passear, faz-me

tristeza deixá-lo sozinho no seu grande castelo. Era tão agradável, se o avô
viesse também comigo!

Minutos depois, havia grande movimento nas cavalariças. O conde tinha

dado ordem para selarem o seu cavalo favorito. Dali em diante, o povo

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habituou-se a ver o velho fidalgo, de perfil severo, passar a cavalo, ao lado do
“poney”, montado pelo jovem lorde.

Pouco a pouco, o conde foi conhecendo muitas coisas acerca de Cedric e

dos seus hábitos. Durante os passeios, o pequeno lorde conversava sempre, e
contou ao avô que a mãe costumava visitar os doentes, e levar donativos
àqueles que estavam na miséria. E acrescentou:

- Calcule, avô, que todos dizem: “Deus a abençoe!”, quando ela passa. E as

crianças também ficam contentes. Há pequenitas que vão a casa da Querida
para aprenderem a coser. A Querida costuma dizer que, se ela fosse rica, havia
de ajudar todos os pobres que a rodeiam.

Lorde Dorincourt ficara satisfeito ao verificar que a mãe de Cedric era

bonita e tão distinta como uma duquesa; de certo modo, não lhe desagradava
saber que ela era tão popular entre os pobres. No entanto, sentia ciúmes do
lugar que ocupava no coração do filho. O velho desejava que o primeiro lugar,
no afecto da criança, fosse para ele.

Naquele mesmo dia, o conde parou o cavalo no alto de uma colina e,

fazendo um gesto que abrangia tudo em volta, disse ao neto:

- Sabes que tudo isto me pertence?
- Realmente?! - exclamou Fauntleroy. - É muito grande, para pertencer a

uma pessoa só!

- Sabes que, um dia, tudo isto, e muitas outras coisas, te pertencerão a ti? -

continuou o conde.

- A mim? - gritou Fauntleroy, cada vez mais espantado. - Quando?
- Quando eu morrer - respondeu Lorde Dorincourt.
- Ah! Então, não quero! - declarou imediatamente Fauntleroy. - Eu desejo

que o avô viva sempre.

- É muito gentil da tua parte - disse o velho num tom ligeiramente irónico.

- No entanto, tudo isto te pertencerá, um dia. E, um dia, serás conde de
Dorincourt.

O pequeno lorde conservou-se silencioso durante alguns instantes. Olhou

os vastos prados, as herdades verdejantes, as belas matas, as casinhas
construídas à beira dos caminhos, a aldeia graciosa e, depois, o seu olhar
dirigiu-se para o lugar onde se erguiam, acima das árvores, as majestosas torres
do castelo.

- Em que estás a pensar? - perguntou o conde.
- Penso que sou apenas um rapazinho; e penso também em tudo quanto a

Querida me tem dito.

- Que te disse ela? - interrogou o velho Lorde Dorincourt.

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- Disse-me que ser rico não é uma coisa muito cómoda; que, muitas vezes,

as pessoas ricas esquecem-se de que há muita gente pobre, e que é isso,
exactamente, o que nunca deviam esquecer. Eu contei-lhe como o avô é bom.
Então, ela disse-me que ainda bem, porque, ser conde, é ter um grande poder, e
se um conde só pensa nos seus prazeres, esquecendo-se das pessoas que vivem
nas suas terras, essa pobre gente sofrerá muitas dificuldades e amarguras, que o
conde poderia perfeitamente evitar-lhe. Mas, quando se possuem propriedades
tão vastas, deve ser muito difícil ocupar-se de toda a gente! Há pouco, quando
estava a olhar para todas essas casas, pensei que, se eu fosse conde, havia de
conhecer todas as pessoas que lá vivem. Como fez o avô para os conhecer a
todos?

O velho Lorde Dorincourt teve bastante dificuldade em responder à

pergunta do neto, pois sabia apenas quais eram os rendeiros que não pagavam
a renda a tempo e horas, para os despedir. Por isso, limitou- se a dizer:

- Quem se ocupa deles é Newick.
Cofiou os grandes bigodes grisalhos e, olhando o neto com um certo

embaraço, acrescentou:

- Vamos regressar ao castelo. Mais tarde, quando tu fores conde,

procurarás ser um senhorio melhor do que eu.

Durante o regresso, o conde não falou. Pensava que, afinal, chegava a

parecer inacreditável que ele - uma pessoa que nunca se dedicara a ninguém -
se sentisse cada vez mais afeiçoado ao neto. Sucedia-lhe dizer, algumas vezes, a
si próprio: “Não passo de um velho tonto, que entrou na segunda infância! Bem
se vê que não tenho mais nada em que pensar”.

Mas ele sabia perfeitamente que a verdade era outra. A verdade é que a

simplicidade, a nobreza de sentimentos do neto e, principalmente, a confiança
que a criança depositava nele, o iam transformando por completo.

Uma semana depois da conversa que o avô tivera com ele, acerca da

vastidão dos seus domínios, Cedric entrou na biblioteca, com a fisionomia um
pouco alterada. Sentou-se na mesma poltrona onde se instalara no dia da sua
chegada e contemplou o lume que ardia na chaminé. O conde observava-o em
silêncio, perguntando, de si para si, o que se passaria. Era evidente que alguma
coisa atormentava Cedric. Por fim, o pequenito ergueu os olhos para o avô e
perguntou:

- Newick está perfeitamente a par de tudo o que se passa na região?
- Pelo menos é o seu dever! - respondeu o conde. Porquê? Mostrou-se

menos diligente?

Por mais extraordinário que pareça, Lorde Dorincourt achava imensa

graça ao interesse que o neto dedicava aos rendeiros. Ele próprio nunca se

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preocupara com essa gente, mas agradava-lhe verificar que, a par das suas
preocupações infantis, e do seu gosto pelas distracções, Cedric mostrava uma
tão decidida disposição para os assuntos sérios!

- Há, ao fim da aldeia, um sítio muito triste. Foi a Querida quem o

descobriu - começou o pequenito, olhando para o avô com uma expressão de
angústia. - As casas estão a cair em ruínas. Lá dentro mal se pode respirar; tudo,
ali, é miserável e horrível. As pessoas que vivem naquelas casas têm febres,
muitas vezes, e algumas crianças morrem. Uma tão grande miséria torna as
pessoas más. Ainda é pior do que o caso da Brígida e do Miguel. A chuva entra
pelos telhados! A Querida foi lá visitar, hoje, uma pobre mulher, e não me quis
beijar antes de mudar de roupa. E, quando me contou isto, tinha os olhos cheios
de lágrimas.

Também Cedric, ao dizer estas palavras, tinha os olhos húmidos; no

entanto, procurava sorrir. E continuou:

- Eu disse-lhe logo que o avô, com certeza, não sabia e que eu próprio lhe

falaria no assunto.

Cedric desceu da poltrona e veio encostar-se à de Lorde Dorincourt.
- O avô pode remediar tudo, como já fez com o Hugues, não é verdade? -

disse ele. - Eu garanti à Querida que o avô não deixaria de o fazer e que, sem
dúvida, Newick se esquecera de lhe contar o que se passa.

O conde olhava para a mãozinha pousada no seu joelho. Na realidade,

Newick não se esquecera de o pôr ao facto do estado em que se encontravam
aquelas casas. Pelo contrário, falara-lhe nisso mais de uma vez. O conde
conhecia perfeitamente as condições miseráveis em que vivia aquela pobre
gente. O reverendo Mordaunt também lhe chamara a atenção para o assunto e
ele respondera-lhe desabridamente. Naquele dia, a gota atormentava-o e, o
velho lorde chegara a dizer que, quanto mais depressa essa gente morresse,
mais depressa o padre a enterraria!

Entretanto, olhando para a mãozinha do neto, e erguendo, depois o olhar

para o seu rosto de expressão tão nobre e leal, o conde envergonhou-se da
miséria daqueles habitantes da aldeia.

- Queres, então, fazer de mim um construtor de casas modelares? - disse

ele.

E, pondo a sua mão sobre a do pequenito, acariciou-a levemente.
- É preciso deitar abaixo as casas velhas - disse Fauntleroy, com calor. - Foi

o que a Querida disse. Vamos mandá-las demolir amanhã, sim? Os aldeãos
ficarão todos contentes, por verem o avô. E ficarão sabendo, imediatamente,
que o avô vai socorrê-los.

Os olhos da criança brilhavam como estrelas no seu rosto corado.

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O conde levantou-se, pôs a mão sobre o ombro de Cedric e disse, com um

sorriso breve:

- Vamos dar uma volta no terraço e, ao mesmo tempo, poderemos falar de

tudo isso.

Enquanto passeavam, para trás e para diante, no grande terraço, como

faziam todas as tardes, quando o tempo estava bom, Lorde Dorincourt, embora
fizesse ouvir, uma ou duas vezes, o seu riso trocista, parecia pensar em
qualquer coisa que não lhe desagradava.

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Uma notícia alarmante


Na realidade, a Sr. a Errol tinha descoberto muitas coisas lamentáveis, ao

visitar os pobres da pequena aldeia que, vista do alto da colina, tinha um
aspecto tão pitoresco.

De perto, as coisas eram diferentes, e a mãe de Cedric encontrara a

preguiça, a ignorância e a miséria, num sítio onde deveriam reinar o bem-estar
e a actividade. Por fim, soubera que aquela aldeia era considerada a mais triste
da região. O próprio padre lhe confessou sentir-se desanimado. Os
administradores que, sucessivamente, se tinham ocupado dos domínios de
Dorincourt, haviam procurado, principalmente, agradar ao conde, e nunca se
haviam inquietado com a miséria material e moral dos rendeiros mais pobres.
Em resultado, tudo ia de mal a pior.

As casas em que o pequeno lorde falara ao avô formavam um bairro, no

extremo da aldeia, e os seus habitantes eram miseráveis e desconfiados.

Quando lá foi a primeira vez, a Sr. a Errol sentiu arrepios. Ao contemplar

as crianças, sujas e desmazeladas, que se criavam ao abandono, pensou no seu
próprio filho, protegido e servido como se fosse um principezinho, vivendo
num castelo magnífico e vendo satisfeitos todos os seus desejos. Nesse
momento, surgiu no seu cérebro uma ideia audaciosa. A Sr. a Errol notara,
como toda a gente, que Cedric obtinha do avô tudo quanto queria. E disse de si
para si que o conde nada lhe recusaria.

O conde não lhe recusa coisa alguma. Porque não há-de Cedric aproveitar

esta condescendência a favor dos pobres?”

Conhecia bem o filho e sabia que podia contar com a sua generosidade.

Contou-lhe o que tinha observado, persuadida de que o pequenito diria tudo ao
avô, esperançada nas boas consequências que daí podiam resultar.

E, efectivamente, não se enganou.
A confiança absoluta que o neto depositava no conde, exercia nele uma

influência extraordinária. Não podia admitir a ideia de o pequenito descobrir
que ele nunca fora bom nem generoso. Por isso, depois de ter reflectido,
mandou chamar Newick, teve com ele uma conversa acerca do miserável
bairro, e resolveu mandar demolir todas aquelas casas, para construir outras
novas.

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- Foi Lorde Fauntleroy quem decidiu isto - disse o conde. - Ele acha que

será um melhoramento para Dorincourt. Pode dizer aos rendeiros que a ideia
foi dele.

Olhou para o neto, que brincava com Dougal, sobre o tapete. O grande cão

tornara-se o seu fiel companheiro, seguindo-o para toda a parte, quer passeasse
a pé, a cavalo ou de carruagem.

A notícia das obras espalhou-se rapidamente pela região. A princípio,

muitos não acreditaram; mas, quando chegou uma turma de operários para
demolir as casas velhas e nojentas, os aldeões começaram, então, a compreender
que Lorde Fauntleroy lhes prestava um novo serviço, e que aquele vergonhoso
bairro ia, finalmente, desaparecer. Cedric estava longe de imaginar como os
rendeiros falavam dele, elogiando-o e profetizando-lhe um futuro maravilhoso!
Mas o pequeno lorde não pensava em elogios nem em agradecimentos. Vivia
despreocupadamente, brincando nos prados e jardins do castelo, lendo livros
de histórias, acerca dos quais conversava com o avô; passava horas

deliciosas com a mãe, escrevia a Hobbes e a Dick, que lhe respondiam

cada um à sua maneira; dava grandes passeios a cavalo, com o avô ou
acompanhado por Wilkins.

Quando atravessava a aldeia com o avô, Cedric notava que toda a gente se

voltava para os ver passar, e que lhes sorriam, tirando os chapéus; mas julgava
que era por causa do conde.

- Como eles gostam do avô! - disse ele, um dia, com uma expressão de

contentamento no olhar. - Já reparou como ficam contentes, quando o vêem?
Queria que, mais tarde, gostassem também de mim! Deve ser muito agradável
ser adorado por toda a gente!

Ao dizer isto, o pequenito sentia-se orgulhoso de ser neto de uma pessoa

tão estimada.

Quando começou a construção das novas casas, o pequeno lorde e o avô

habituaram-se a ir muitas vezes passear, a cavalo, para aquele lado, a fim de
observarem os trabalhos, pelos quais Fauntleroy se interessava imenso.

Descia do “poney” para conversar com os operários; fazia-lhes perguntas

sobre a construção das casas e contava-lhes coisas da América. Depois de duas
ou três conversas deste género, Cedric já sabia explicar ao avô como se faziam
os tijolos.

- Gosto de aprender estas coisas - dizia. - Ninguém sabe o que terá que

fazer, mais tarde.

Por seu lado, quando o pequeno lorde se retirava, os operários falavam

acerca dele, achando graça às suas observações originais e ingénuas. Todos
gostavam muito dele.

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- Não há outro assim! - repetiam. - É um belo rapazinho, sem nenhum

orgulho! Não sai à família...

Depois, em casa, falavam no pequeno lorde às mulheres; por sua vez, as

mulheres falavam nele umas com as outras. Desta maneira, o pequeno Lorde
Fauntleroy tornou-se popular e querido em toda a região.

E toda a gente acabou por saber que o “odioso conde Dorincourt” se

interessara, finalmente, por alguém, e esse alguém era uma criança, que soubera
tocar-lhe ternamente o coração.

O que ninguém sabia era a que ponto o coração do velho fidalgo se sentia

reconfortado, nem a ternura cada vez maior que o prendia àquele rapazinho - a
única pessoa, no mundo, que confiava absolutamente nele. Às vezes,
surpreendia-se a pensar no neto quando já fosse um homem, com uma bela
existência na sua frente, mas conservando um coração generoso e o mesmo dom
de tornar seus amigos todos aqueles que o conheciam, e perguntava a si próprio
o que faria Cedric dessa existência. Ao contemplar o neto, estendido no tapete,
em frente da chaminé, muito interessado na leitura de um livro, com os cabelos
loiros iluminados pelas chamas, os olhos do conde brilhavam mais, a sua
expressão animava-se e ele pensava:

“Este rapaz poderá chegar a ser tudo o que quiser! Tudo “
Embora o conde de Dorincourt não exprimisse a ninguém os seus

sentimentos pelo neto e continuasse a sorrir com ironia, quando falava nele,
Lorde Fauntleroy sabia perfeitamente que o avô se lhe afeiçoara e gostava de o
ter sempre junto de si.

- Lembra-se, avô, de eu lhe ter dito, no dia em que cheguei, que nos

podíamos entender muito bem? - perguntou-lhe Cedric, uma vez. - Por mim,
acho que não é possível haver um avô e um neto que se entendam melhor. Que
lhe parece?

- Realmente, somos bons amigos! - respondeu o conde. - Ora vem cá!
Lorde Fauntleroy aproximou-se.
- Desejas alguma coisa? - perguntou o conde de Dorincourt. - Alguma

coisa que tu não tenhas?

Os olhos escuros da criança fixaram-se no avô, com uma expressão

sonhadora.

- Há uma só! - disse ele por fim.
- Qual é?
Fauntleroy conservou-se silencioso durante alguns instantes. Não era em

vão que tinha reflectido sozinho, durante muito tempo, em certos assuntos.

- Qual é? - repetiu o conde.
Desta vez Lorde Fauntleroy respondeu:

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- É a Querida!
O velho fidalgo teve um leve estremecimento.
- Mas tu vais visitá-la todos os dias - observou ele. Não é suficiente?
- Eu estava habituado a tê-la sempre junto de mim. Ela beijava-me, à noite,

antes de eu adormecer, e de manhã, quando acordava, era a primeira pessoa
que eu via. Além disso, podíamos contar muitas coisas um ao outro, sem
esperar pelo dia seguinte.

Os olhos do conde fixaram-se um instante nos da criança. Houve uns

minutos de silêncio. Depois, o fidalgo franziu as sobrancelhas.

- E nunca te esqueces da tua mãe? Nunca? - perguntou ele.
- Não! - respondeu Fauntleroy. - Nunca! E ela também nunca se esquece

de mim. E também não me esqueceria do avô, mesmo que não vivesse consigo.
Parece-me que ainda pensaria mais no avôzinho.

- Acredito! - respondeu o conde, continuando a fitar o neto.
O ciúme que ele sentia quando o pequenito falava da mãe, fazia-o sofrer

agora ainda mais, porque o seu afecto por aquela criança era cada vez maior.

Mas não passaria muito tempo sem que o conde experimentasse outros

tormentos mais duros de suportar, exactamente quando quase esquecera que
odiara a mulher do filho.

E isso aconteceu de uma forma estranha e inesperada. Uma noite, pouco

antes de as casas novas da aldeia estarem concluídas houve um grande jantar
em Dorincourt. Havia muito tempo que não se realizava no castelo uma reunião
assim. Alguns dias antes, Harry Lorridaile e sua mulher, que era a única irmã
do conde, tinham vindo visitá-lo - acontecimento que fez sensação na aldeia e
nos arredores. Toda a gente sabia que Constança Lorridaile viera ao castelo uma
única vez, depois do seu casamento, realizado havia trinta e cinco anos. Era
uma senhora de cabelos brancos, com duas covinhas no rosto ainda fresco, e
imensamente rica. A sua opinião acerca do irmão não era melhor que a das
outras pessoas e, como ela própria tinha muita energia e não receava dizer com
franqueza a sua maneira de pensar, muitas vezes discutira com o conde, e
desde a mocidade que não tornara a vê-lo.

Durante todo esse tempo, ouvira dizer do irmão muitas coisas que a

desgostavam. Ouvira contar como ele fora desabrido e sem carinho para a
mulher, que morrera ainda muito nova; a sua indiferença pelos filhos; e sabia
também que o mau carácter e os graves defeitos dos dois mais velhos não
tinham honrado o nome da família. Não conhecera estes dois filhos do irmão,
mas, um dia, chegara a Lorridaile Park um belo rapaz de dezoito anos, que se
apresentara como seu sobrinho: Cedric Errol. Passara ali perto - explicara ele - e
aproveitara a ocasião para conhecer a sua tia Constança, de quem a mãe lhe

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falara muitas vezes. O coração afectuoso de Constança Lorridaile enternecera-
se. O sobrinho ficou uma semana com ela, que procurou, por todas as formas,
tornar-lhe esses dias agradáveis. Cedric Errol agradara-lhe imenso, com o seu
feitio alegre, vivo, amável. Quando ele partiu, a tia pediu-lhe que

voltasse mais vezes. Porém, o destino fizera com que nunca mais o

tornasse a ver.

O conde, ao saber desta visita, mostrara-se muito descontente e proibira o

filho de voltar ao castelo de Lorridaile. No entanto, Constança conservava uma
terna lembrança daquele sobrinho encantador, e indignara-se, ao saber que o
pai cortara relações com ele e que ninguém, na família, sabia onde e como ele
vivia. No íntimo, também ela receava que o sobrinho tivesse feito um mau
casamento. Um dia, teve conhecimento da sua morte, e bem assim do fim
desastroso dos outros filhos de Lorde Dorincourt.

Soube depois que o capitão Errol deixara um filho na América e que o avô

o mandara buscar, para fazer dele o novo Lorde Fauntleroy.

- Naturalmente, para lhe estragar a vida, como fez aos outros! - dissera ela

ao marido. - A não ser que a mãe do pequeno tenha bastante valor e energia
para velar, ela própria, pelo filho.

Mas, ao saber que a mãe do pequeno lorde estava separada dele, Lady

Lorridaile ficara indignadíssima.

- É uma vergonha, Harry! - exclamara ela. - Imagina, uma criança daquela

idade, arrancada ao carinho da mãe, para viver em companhia de um homem
como o meu irmão! De duas, uma: ou o conde trata a criança com dureza, ou
lhe satisfaz todos os caprichos, fazendo dela um monstro. Se eu soubesse que
conseguiria alguma coisa escrevendo a meu irmão.

- Não servirá de nada! - respondeu Lorde Lorridaile.
- Bem sei - continuou ela. - Conheço perfeitamente Lorde Dorincourt. Mas

é revoltante!

Não eram só os rendeiros e a gente humilde que falavam do pequeno

Lorde Fauntleroy; outras pessoas conheciam a sua fama de gentileza e bondade.

Mesmo nas reuniões e chás das senhoras dos arredores, Lorde Fauntleroy

era o assunto de muitas conversas.

Contava-se já a influência que ele tinha no avô e causara sensação o facto

de acompanhar o pequenito nos seus passeios a cavalo.

Mesmo aqueles que o não conheciam, falavam na beleza do pequeno

lorde, indignando-se por ele viver separado da mãe.

Também Lady Lorridaile ouvira contar coisas maravilhosas de Fauntleroy;

sabia a história de Hugues, do pequenito coxo e dos casebres da aldeia, e
desejava vivamente conhecê-lo. Enquanto pensava na maneira de o conseguir,

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teve a enorme surpresa de receber uma carta do conde de Dorincourt,
convidando-a, a ela e ao marido, a passarem um tempo no castelo.

- É prodigioso! - exclamou ela. - Ouvi dizer que esta criança conseguiu

milagres, e começo a acreditar que é verdade. Dizem que o meu irmão adora o
neto e não pode passar sem a sua companhia. Deve ter orgulho nele e quer, por
isso, que o conheçamos.

O convite foi imediatamente aceite. Quando Constança Lorridaile e o

marido chegaram ao castelo era quase noite e ela dirigiu-se directamente ao
quarto que lhe era destinado, antes de ver o irmão. Depois de vestida para o
jantar, desceu ao salão. Encontrou ali o conde, de pé, junto do fogão; tinha um
ar imponente, com a sua alta estatura e os seus cabelos brancos. A seu lado
estava um rapazinho, vestido, como de costume, de veludo preto, com um
grande cabeção de renda - um rapazinho, cujo rosto sorridente era lindo, e que
fitava nela os seus olhos castanhos, tão meigos, que Lady Lorridaile mal pôde
reprimir uma exclamação de surpresa e prazer.

Apertou a mão do conde, tratando-o pelo nome próprio - o que não o fazia

desde o tempo de rapariga.

- Como estás, Eduardo? - disse ela. - É este o teu neto?
- Sim, Constança - respondeu ele -, é o meu neto! Fauntleroy, esta senhora

é tua tia, Lady Lorridaile.

- Como está, minha tia? - disse amavelmente o pequeno lorde.
Constança Lorridaile pôs a mão no ombro da criança e, depois de

contemplar durante alguns momentos o rostozinho que se erguia para ela,
beijou-o ternamente.

- Sou a tua tia Constança! - disse ela. - Gostava muito do teu papá, e tu

pareces-te com ele.

- Fico sempre muito contente, quando oiço dizer isso!
- respondeu Fauntleroy. - Creio que toda a gente gostava do meu pai,

assim como gosta da Querida...

Lady Lorridaile estava encantada. Curvou-se para beijar novamente o

pequenito e, desde esse instante, ficaram sendo excelentes amigos.

- Felicito-te, Eduardo! - disse ela ao irmão, logo que se encontraram a sós. -

Não podias esperar melhor!

- Realmente! - respondeu o conde. - É um rapazinho encantador!

Entendemo-nos maravilhosamente! Ele julga-me o melhor dos homens, e eu
confesso-te, Constança - de resto não era necessário confessar-to, porque o
compreenderias imediatamente -, que estou quase a tornar-me ridículo por
causa dele.

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- E a mãe, o que pensa de ti? - perguntou Lady Lorridaile com a sua

habitual franqueza.

- Nunca lho perguntei - respondeu o conde, franzindo ligeiramente as

sobrancelhas.

- Pois bem, vou dizer-te imediatamente a minha opinião - replicou

Constança Lorridaile. - Não aprovo a tua forma de proceder e previno- te de
que tenciono visitar a viúva do capitão Errol, o mais depressa possível. De
maneira que, se tencionas censurar-me por isso, podes fazê-lo imediatamente.
O que tenho ouvido dizer dessa jovem senhora, dá-me a convicção de que o
filho lhe deve tudo. Já consta em Lorridaile que ela é adorada pelos rendeiros
mais pobres de Dorincourt.

- É a ele que toda a gente adora - observou o conde, designando o neto

com um movimento de cabeça. Quanto à Sra Errol, é realmente uma mulher
nova e formosa. Estou-lhe agradecido por ter dado um pouco da sua beleza ao
filho, e tu podes visitá-la se quiseres. Tudo quanto eu desejo é que ela continue
em Court Lodge e que tu não me peças que te acompanhe.

Ao dizer isto, o conde franziu novamente as sobrancelhas.
Mais tarde, conversando com o marido, Lady Lorridaile diss: Ele não a

detesta tanto como dantes. Isso é evidente! Não há dúvida de que o meu irmão
está um pouco mudado! Ainda bem!

No dia seguinte, Lady Lorridaile foi visitar a Sr. e Errol. Ao regressar,

disse ao conde:

- É a mulher mais adorável que tenho visto. Tem uma
voz de cristal e podes agradecer-lhe ter feito de Lorde Fauntleroy o que ele

é. Deu-lhe mais e melhor do que a beleza, e tu cometes um grave erro em não a
persuadires a vir viver junto de ti. Por minha parte, vou convidá-la a ir a
Lorridaile.

- Não deixará o filho - respondeu o conde.
- Espero receber a visita do filho, também! - observou Lady Lorridaile,

rindo.

Mas ela sabia como seria difícil o avô separar-se do neto! Notava, dia a

dia, como aqueles dois entes estavam ligados um ao outro, como o orgulhoso e
terrível velho tinha concentrado a sua afeição, as suas esperanças e ambições,
naquela criança, e como, por seu lado, o pequenito lhe retribuía com todo o seu
coração ardente e ingénuo, dedicando-lhe imensa ternura, com uma fé e
confiança absolutas.

Sabia também que a razão principal do grande jantar projectado, era o

desejo que o conde sentia de mostrar o neto, herdeiro do seu nome, e de deixar
verificar às pessoas das suas relações que o pequenito, tão discutido, era ainda

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mais belo e atraente do que diziam. Chegou, final mente, o dia em que Lorde
Fauntleroy se encontrou ao lado do avô, para receber os numerosos
convidados. Todos se mostravam encantados e queriam falar com ele. Faziam-
lhe perguntas acerca da viagem, da vida a bordo e de tudo quanto ele tinha
visto. A criança não percebia bem porque se riam tanto com as suas respostas,
mas estava tão habituado a ver as pessoas com ar divertido, quando ele próprio
falava a sério, que não se inquietou.

O serão deslumbrou-o; as grandes salas estavam todas iluminadas e havia

flores por toda a parte. Os homens conversavam animadamente, e as senhoras
pareciam-lhe todas lindas, com os ombros nus e jóias maravilhosas nas orelhas,
nos braços e no pescoço. Havia uma, particularmente, de quem Cedric não
podia desviar os olhos. Era uma jo vem, elegante, com a cabeça um pouco
altiva, cabelos escuros, grandes olhos aveludados, faces e lábios frescos como
pétalas de rosa. Havia sempre em volta desta jovem tantos homens, todos
parecendo desejosos de lhe agradar, que Fauntleroy concluiu que ela devia ser
qualquer coisa como uma princesa.

Sentia-se instintivamente impelido para ela, e foi-se aproximando, sempre

com os olhos fitos no seu rosto adorável. Por fim, a jovem compreendeu a
intenção do pequenito e disse, sorrindo:

- Venha cá, Lorde Fauntleroy, e explique-me porque está, há tanto tempo,

a olhar para mim dessa maneira.

- É porque a acho muito bela! - respondeu ele.
A estas palavras, todos os homens que ali se encontravam riram com

gosto; a jovem também riu, e as suas faces tornaram-se mais coradas.

- Ah! Fauntleroy! - exclamou um dos convidados, que parecia muito

divertido. - Quando for homem, não se atreverá a falar dessa maneira.

- Como é possível deixar de dizer o que se sente? - observou Fauntleroy. -

O senhor é capaz disso? Não acha também que ela é muito bonita?

- Não estamos autorizados a dizer o que pensamos - respondeu o outro,

enquanto, em roda, as gargalhadas continuavam.

Mas a encantadora rapariga, que se chamava Viviana Herbert, estendeu a

mão e puxou Cedric para junto de si com o ar mais encantador que é possível.

- Lorde Fauntleroy pode dizer-me tudo quanto pensa - exclamou ela. - Isso

dá-me prazer. Tenho a certeza de que pensa realmente o que diz.

E beijou a face do pequenito.
- Nunca vi outra senhora tão bonita como a Viviana, a não ser a Querida! -

disse o pequeno lorde, olhando-a com uma expressão de deslumbramento. -
Como é natural, eu penso que nenhuma senhora pode ser mais bonita do que a
Querida! Creio mesmo que ela é a pessoa mais bonita do mundo.

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- Também creio! - respondeu Viviana, a rir, beijando-o novamente.
Viviana conservou Fauntleroy junto de si durante uma grande parte da

noite, e o grupo que os rodeava mostrava-se animadíssimo. Sem saber como,
Cedric principiara a contar- lhes a sua vida na América, falando-lhes do cortejo
republicano, de Hobbes, de Dick e acabando por tirar orgulhosamente da
algibeira o lenço vermelho.

- Meti-o hoje na algibeira, porque era uma grande recepção - explicou ele.

- Pensei que Dick gostaria que eu o usasse numa festa assim.

Mas, por mais extravagante que o lenço vermelho parecesse, a verdade é

que o pequeno lorde tinha uma expressão tão séria e enternecida, que os
convidados não se atreveram a rir francamente.

- Gosto imenso deste lenço - continuou ele - porque Dick é meu amigo.
Embora toda a gente lhe falasse e lhe dispensasse atenções, Lorde

Fauntleroy não se mostrava impertinente. Sabia calar-se e escutar, enquanto os
outros falavam, e ninguém o achou indiscreto.

De vez em quando, vinha ao pé da poltrona do avô e sentava-se a seu

lado, num banquinho, escutando-o atentamente, como se quisesse beber- lhe as
palavras. E o avô olhava-o com um carinho que surpreendia todas aquelas
pessoas, habituadas a conhecer o conde sob um aspecto muito diverso.

Havisham também devia comparecer àquela festa; esperavam-no à tarde,

mas, coisa estranha, chegara tão atrasado, que o jantar já estava servido e os
convivas dirigiam-se para a sala das refeições, quando ele apareceu.

Este facto fora muito notado, porque Havisham era uma pessoa metódica

e de uma pontualidade impecável. Frequentava o castelo de Dorincourt havia
muitos anos, e nunca sucedera chegar mais tarde que a hora marcada.

Quando ele chegou junto do conde, este olhou-o com espanto, porque o

advogado tinha as feições alteradas.

- Demorei-me - disse, em voz baixa. - Demorei-me... por uma circunstância

extraordinária.

Via-se que estava atormentado. Comeu pouco, ao jantar e, quando lhe

falavam, ficava sobressaltado, como se tivesse o espírito muito longe dali.

Quando Lorde Fauntleroy entrou na sala, pela altura da sobremesa,

Havisham fitou-o com o olhar ansioso e preocupado.

Lorde Fauntleroy deu por isso e ficou surpreendido. Havisham e ele eram

bons amigos e costumavam sorrir, quando olhavam um para o outro.

Ora, nessa noite, o advogado tinha o ar de quem não sabia sorrir.
Efectivamente, tudo se lhe tornara indiferente, excepto a dolorosa notícia

que devia comunicar ao conde naquela mesma noite - notícia que produziria
uma terrível sensação e mudaria o aspecto das coisas. Olhando os salões

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esplêndidos onde se encontravam reunidas tantas pessoas de categoria;
olhando toda essa gente que ali fora para reconhecer o pequenito de cabelos
doirados, que estava graciosamente encostado à poltrona do avô, Havisham,
embora fosse um homem de negócios, prático e endurecido pela vida, não
podia deixar de sentir uma forte emoção, perante a notícia que recebera nessa
tarde.

O longo e sumptuoso jantar terminou sem quase dar por isso. O seu ar

preocupado era tal, que o conde olhou mais de uma vez para ele, admirado.

Depois, no grande salão, encontrou Fauntleroy instalado num sofá, ao

lado de Viviana Herbert.

O pequenito tinha-se divertido tanto e recebera, naquele dia, tantas

impressões novas, que não podia mais. Enquanto, à sua volta, a conversa
continuava animada, as pálpebras começaram a pesar-lhe e os olhos fecharam-
se-lhe, por duas ou três vezes. Ele não queria dormir! Mas, pouco a pouco, a
cabecita foi-se-lhe enterrando numa almofada, e os olhos tornaram a fechar-se,
não se abrindo, nem quando Viviana lhe deu um beijo, antes de partir, ao
mesmo tempo que lhe dizia docemente:

- Boa noite, Lorde Fauntleroy! Durma bem!
No dia seguinte, de manhã, não se lembrava de ter murmurado, com a

voz ensonada:

- Boa noite. Gostei. muito. muito de a ter conhecido. É tão bonita.
Tinha apenas uma vaga ideia de ter ouvido risos e de ter perguntado a si

próprio porque riam assim.

Mal o último convidado se despediu, Havisham aproximou-se do sofá

onde dormia o pequeno lorde. Ao contemplá-lo, tinha um ar acabrunhado,
cofiando o queixo com a mão.

- Que tem Havisham? - perguntou, por detrás dele, o conde. - Que se

passa? Que coisa extraordinária foi essa em que me falou?

Havisham voltou-se, sem deixar de passar a mão pelo queixo. Por fim,

disse:

- Uma má notícia... Uma notícia desoladora, senhor conde! A pior das

notícias. Custa-me muito ser eu a comunicar-lha.

Lorde Dorincourt ficara logo mal-disposto ao notar a perturbação de

Havisham. Por isso, perguntou com impaciência:

- Porque está a olhar assim para a criança? Olhou toda a noite para ela

como se... Vamos, Havisham, para que se inclina para ele, como uma ave
agoirenta? A tal notícia tem alguma coisa que ver com Lorde Fauntleroy?

- Senhor conde - respondeu Havisham -, não perderei tempo com palavras

inúteis. A notícia que lhe trago diz particularmente respeito a Lorde Fauntleroy.

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E se lhe dermos crédito, não é Lorde Fauntleroy quem dorme neste sofá, mas
simplesmente o filho do capitão Errol. O verdadeiro Lorde Fauntleroy é o filho
do seu filho Bevis, que se encontra, neste momento, em Londres.

O conde apertou tão fortemente os braços da poltrona, que as veias das

mãos incharam-lhe. As veias da fronte dilataram-se igualmente, e o rosto do
velho fidalgo tornou-se lívido, com uma expressão terrível.

- Que quer dizer? O senhor está bom? Que mentira é essa? - exclamou ele.
- Se é mentira - respondeu Havisham -, tem, infelizmente, toda a aparência

de ser verdade. Esta manhã, apresentou-se no meu escritório uma mulher e
disse-me que o vosso filho Bevis casou com ela, em Londres, há seis anos. Ela
mostrou-me a certidão de casamento. Ao fim de um ano zangaram-se e o
marido deu-lhe uma determinada quantia para ela partir. Tem um filho de
cinco anos. É uma americana, pertencente, sem dúvida, a um meio ordinário!

- uma mulher ignorante, que só agora compreendeu a categoria social do

filho. Consultou um advogado e descobriu que a criança é, realmente, Lorde
Fauntleroy, herdeiro do nome e do domínio de Dorincourt e, como é natural,
ela pretende fazer valer os seus direitos.

A cabeça encaracolada fez um movimento. Um longo e doce suspiro

escapou-se dos lábios entreabertos e o pequenito mexeu-se um pouco, mas sem
excitação. O seu sono era o mais tranquilo possível. Voltou um pouco a cabeça,
como se quisesse que o avô o visse melhor.

O rosto severo do conde de Dorincourt contraiu-se num sorriso amargo.
- Recusar-me-ia a acreditar uma única palavra de toda essa história - disse

ele - se não reconhecesse em toda a sua baixeza a falta de carácter do meu filho
Bevis. É bem uma coisa dele! Foi sempre a vergonha da família. Um bruto, um
vicioso, sem energia nem vontade, aqui tem o que era o meu filho mais velho,
Lorde Fauntleroy. Diz que essa mulher é ignorante e vulgar?

- Absolutamente. Não tem a menor educação e deve ser uma interesseira.

Só o dinheiro, conta para ela. É uma bela mulher, no seu género - um género
muito ordinário.

O velho advogado calou-se subitamente, como se lhe repugnasse

continuar a descrever semelhante criatura.

O rosto do conde estava cada vez mais alterado. Tinha a testa coberta de

suor. Enxugou-a, com um lenço, e a sua expressão tornou-se ainda mais
amarga.

- E eu que me recusei a reconhecer como nora... a outra... a mãe desta

criança! - e designou, com um gesto, o pequenito adormecido no sofá.

De repente, levantou-se e principiou a passear na sala, pronunciando

palavras furiosas e terríveis. A cólera subia nele como uma tempestade. Fazia

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impressão vê-lo. Havisham observou que, mesmo nos momentos de maior
indignação, o conde nunca tinha o ar de se esquecer da criança que dormia no
sofá, falando sempre em voz baixa, como se receasse acordá-la.

- Eu devia desconfiar! - disse ele. - Foram sempre a minha vergonha, ele e

o irmão! Nunca pude suportá-los e eles odiavam-me! Mas, apesar de tudo,
ainda duvido! Lutarei até ao fim Mas é bem uma coisa do Bevis. É bem uma
coisa digna dele!

Cada vez mais indignado, fez novas perguntas acerca da tal mulher e

sobre as provas que ela apresentava, sem deixar de andar de um lado para o
outro, ora vermelho, ora pálido, mal podendo conter a sua ira.

Havisham, depois de ter posto o conde ao corrente de tudo, fitou-o com ar

inquieto. O velho fidalgo tinha um ar sucumbido, profundamente alterado. Os
grandes acessos de cólera eram-lhe sempre prejudiciais; mas aquele fizera-lhe
ainda pior, porque não era só cólera o que ele sentia.

Por fim, dirigiu-se lentamente para junto do sofá e disse em voz baixa,

rouca e trémula:

- Se me tivessem dito que eu havia de afeiçoar-me a uma criança, não teria

acreditado. Tinha horror às crianças... e aos meus filhos mais do que às outras.
Adoro este pequeno e ele adora-me! - Ao dizer isto sorriu com amargura. -
Ninguém gosta de mim; nunca fui estimado. Mas ele adora-me! Nunca me
temeu e teve sempre confiança em mim. Mais tarde, ele ocuparia o meu lugar
melhor do que eu. Tenho a certeza! E honraria o nome de Dorincourt!

Inclinou-se e ficou um momento a contemplar o rosto sorridente da

criança adormecida. As suas sobrancelhas estavam contraídas, mas ele não
tinha ar de uma pessoa enfurecida. Avançou a mão para afastar os cabelos
loiros que haviam tombado sobre a fronte da criança, e depois voltou-se, para
tocar a campainha.

Quando o criado apareceu, o conde indicou-lhe o sofá e disse:
- Pegue. (a voz quebrou-se-lhe um pouco). pegue com cuidado em Lorde

Fauntleroy e leve-o para o quarto.

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Inquietações na América


Logo que Cedric se separou de Hobbes, a fim de ir para o castelo de

Dorincourt e tornar-se Lorde Fauntleroy, e quando o merceeiro se convenceu de
como era grande a distância que os separava, começou a sentir-se muito só.

Deve dizer-se que Hobbes não era muito inteligente, nem possuía uma

grande vivacidade de espírito. Era um homem gordo, pesado, para quem o
mundo se resumia aos fregueses é à loja, e que não tinha outras distracções
além das contas e da leitura dos jornais. As somas representavam para ele uma
tarefa difícil e, às vezes, levava dias a acertá-las. Antes de partir para Inglaterra,
Cedric chegara a experimentar ajudá-lo. De resto, o pequeno fazia-lhe tanta
companhia e ouvia com tanta atenção tudo quanto ele dizia acerca da política e
das eleições, que não admira que o merceeiro sentisse muito a sua falta. A
princípio, Hobbes tinha a impressão de que Cedric não partira para muito
longe. Pensava que, depois de algum tempo, ao levantar os olhos do jornal,
veria o pequeno ali mesmo, na sua loja, com o fato branco, as peúgas vermelhas
e o chapéu de palha posto para trás, como era seu costume, a dizer: “- Bom dia,
Sr. Hobbes! O dia, hoje, está quente!” Mas o tempo ia passando e Hobbes
começou a sentir-se triste e deprimido. Já nem achava prazer na leitura do
jornal, e passava horas a olhar pensativamente, para os caixotes e latas de
bolacha.

Havia um banco que ainda conservava a marca dos pés de Cedric, que

costumava baloiçar as pernas e bater ali com os tacões. Hobbes olhava
melancolicamente para essas marcas; depois tirava da algibeira o relógio de
ouro, abria-o e lia a inscrição que havia no interior da tampa: “Para se lembrar
do seu amigo”. Contemplava aquelas palavras, fechava a tampa, com um
suspiro, ia e vinha até à porta, para disfarçar as saudades que sentia. À noite,
depois de fechar a loja, acendia o cachimbo e seguia, lentamente, pelo passeio,
até à casa onde Cedric tinha habitado e que estava agora para alugar. Parava
em frente, abanava a cabeça, tirava algumas fumaças do cachimbo e, por fim,
voltava tristemente para casa.

Passaram assim duas ou três semanas, antes que uma ideia surgisse no seu

espírito. Lento e pesado por natureza, precisava sempre de muito tempo para
acolher qualquer pensamento novo. Por fim, nasceu no seu espírito um
projecto, que amadureceu lentamente: ir visitar Dick. Sabia por Cedric quem era

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Dick e tudo quanto lhe dizia respeito; a sua ideia era que talvez pudesse
encontrar alguma consolação conversando com o engraxador acérca de tudo
quanto o trazia preocupado.

Um dia, quando Dick se ocupava activamente em engraxar os sapatos de

um cliente, um homem gordo e baixo parou em frente da tabuleta, onde estava
escrito em grandes letras:

O Mestre Dick Tipton não pode ser batido por ninguém


O homem gordo ficou tanto tempo a contemplar a tabuleta, que chamou a

atenção de Dick e, logo que termieéreceu-me todo o material que tenho. É um
rapazinho como há poucos! A esta hora está na Inglaterra, onde vai ser lorde,
creio eu.

- Realmente! - exclamou Hobbes, com ar meditativo. - Lorde. Lorde.

Fauntleroy, talvez?. E mais tarde conde de Dorincourt?

Dick ia deixando cair as escovas.
- Como, patrão, o senhor também o conhece?!
- Conheço-o desde que ele nasceu - respondeu Hobbes, enxugando a

fronte luzidia. - Ele e eu somos velhos amigos. Aqui tem o que nós somos um
para o outro.

Comovido com a conversa, tirou o relógio, que nunca abandonava, da

algibeira e mostrou a Dick as palavras que estavam gravadas na tampa: “Para
se lembrar do seu amigo”.

- Foi o seu presente de despedida. “Não quero que se esqueça de mim” -

foram as suas próprias palavras. Mesmo que ele não me tivesse oferecido coisa
nenhuma e eu nunca mais ouvisse falar no seu nome, não o esqueceria jamais. É
uma criança tão gentil, que não se pode esquecer.

- Eu nunca vi rapazinho mais simpático - declarou Dick. - E “direito”

como poucos! Agradava-me, o garoto.

Ficámos logo amigos, desde o primeiro dia em que o vi. Não há dúvida! É

um rapaz “fixe” como não há outro, e quando as coisas me corriam tortas, fazia-
me bem conversar um bocado com ele!

- Exactamente como eu! - disse Hobbes. - Foi pena fazerem-no conde!

Teria feito uma carreira brilhante no comércio de mercearia. Sim...
positivamente brilhante!

Tinham, os dois, tanto que dizer, que uma só conversa não podia ser

suficiente. Combinaram, então, que o próximo encontro seria na loja de Hobbes.
Este plano encantou Dick.

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Tinha sido, quase toda a vida, um pobre rapaz abandonado, mas nunca

fora um mau rapaz, e aspirava, no seu íntimo, a uma existência melhor.

Desde que trabalhava sozinho, por sua conta, ganhava dinheiro suficiente

para poder dormir debaixo de telha, em vez de ficar em qualquer vão de porta,
e esperava ainda atingir um nível superior. Por isso, aquele convite para ir
visitar um homem gordo e respeitável que tinha uma mercearia e possuía uma
carroça e um cavalo, produziu- lhe o efeito de um acontecimento
importantíssimo, a não perder por nada.

- Sabe alguma coisa a respeito dos condes e das pessoas que vivem em

castelos? - perguntou Hobbes. - É que eu gostaria de me informar um pouco
sobre a sua maneira de viver.

- Há, justamente, uma história de condes numa revista que eu conheço.

Chama-se “A Coroa Sangrenta ou a Vingança da Condessa May”. Uma história
espantosa! Juntámo-nos uns poucos de colegas, para comprar a revista, para
seguirmos essa história.

- Leve-a quando me for visitar - disse Hobbes - e eu pagar-lhe-ei os

números. Traga todas as histórias sobre condes, que puder encontrar. Se não
houver histórias de condes, os duques e marqueses também servem, embora o
pequeno nunca me falasse neles. Falámos algumas vezes de coroas - as coroas
que os condes usam na cabeça -, mas nunca vi nenhuma. Creio que não se
vendem aqui.

- Só se for na joalharia Tiffanny - disse Dick. Mas, naturalmente, mesmo

que visse alguma, eu não a saberia reconhecer.

Hobbes concordou, com um sinal de cabeça. Assim terminou a conversa,

que foi o início de uma boa e prolongada amizade.

Quando Dick apareceu na mercearia, Hobbes recebeu-o da maneira mais

amável. Ofereceu-lhe uma cadeira e, logo que o jovem visitante se instalou,
indicou-lhe um cesto de maçãs que estava a seu lado, e disse:

- Sirva-se!
Depois, passou a vista pelos jornais e revistas que Dick trouxera, e

começaram a discutir acerca da aristocracia britânica.

Hobbes tirava grandes fumaças do cachimbo e acenava frequentes vezes

com a cabeça. A certa altura, mostrou a Dick os sinais que existiam no banco:

- São as marcas dos seus pés! - explicou ele, comovido. - Passo horas a

olhar para elas. Tudo muda de pressa, neste mundo! Ainda não há muito tempo
que ele estava aí, sentado nesse banco, a comer bolachas dessas caixas e maçãs
desse cesto, deitando as pevides para a rua. Agora, está longe, em Inglaterra,
feito lorde e, um dia, esses sinais serão as marcas dos pés de um conde! Digo
muitas vezes: “O demónio me leve, se eu tinha previsto uma coisa destas “

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Hobbes ficou muito reconfortado com a visita de Dick e com as

confidências que lhe fez. Antes do engraxador se retirar, cearam os dois no
armazém, que ficava nas traseiras da loja. Comeram bolachas, queijo, sardinhas
e outros petiscos. Hobbes abriu duas garrafas de cerveja e, enchendo os copos,
propôs um brinde:

- À saúde do nosso jovem amigo! - disse ele, levantando o copo. - Para que

ele possa dar uma lição a esses condes, marqueses, duques e a toda a fidalguia!

Depois desse dia, Dick e Hobbes encontraram-se muitas vezes, e o

merceeiro recuperou um pouco a sua boa disposição.

Leram, juntos, a tal história da “Coroa Sangrenta ou a Vingança da

Condessa May”, e muitas outras coisas interessantes, adquirindo, assim,
conhecimentos e noções acerca da nobreza, que teriam surpreendido fortemente
as pessoas pertencentes a essa classe, por eles tão desprezada.

Um dia, Hobbes foi a uma livraria, com a intenção de enriquecer a sua

comum biblioteca. Dirigiu-se a um empregado e, encostando-se ao balcão,
disse:

- Queria um livro sobre condes.
- O quê? - exclamou o empregado.
- Um livro sobre condes - repetiu Hobbes.
- Receio não saber o que o senhor deseja! - disse o empregado, bastante

admirado.

- Não tem livros desses? - continuou Hobbes, desapontado. - Nesse caso,

pode ser sobre marqueses ou duques.

- Não conheço nada desse género! - confirmou o empregado.
Hobbes, desanimado, fitou o chão e depois tornou a erguer os olhos,

perguntando:

- E sobre as mulheres dos condes, também não tem?
- Creio que não... - respondeu o outro, sorrindo.
- Nesse caso - exclamou Hobbes -, que os leve o demónio!
No momento em que ele saía da livraria, o empregado chamou-o, para lhe

perguntar se lhe serviria uma história, na qual as personagens mais
importantes pertencessem à nobreza.

Hobbes respondeu que, à falta de melhor, aquilo devia servir. Então, o

empregado foi buscar um volume com este título: A Torre de Londres, e
Hobbes comprou-o e levou-o para casa.

Logo que Dick apareceu, começaram a leitura. Era uma história

impressionante, passada no tempo da famosa rainha Maria Tudor, a quem
chamam, algumas vezes, “Maria, a sanguinária”.

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Quando Hobbes soube quem era Maria e o costume que ela tinha de cortar

a cabeça aos seus súbditos, de os condenar às maiores torturas ou de os mandar
queimar vivos, ficou impressionadíssimo. Tirou o cachimbo da boca, fitou Dick
com os olhos muito abertos e limpou a testa com o lenço.

- Ele não está em segurança! - exclamou o honrado merceeiro. - Não pode

estar em segurança! Quem sabe o que poderá acontecer-lhe!

- Não há dúvida! - disse Dick, que se sentia também um pouco inquieto. -

Mas a rainha que governa agora, em Inglaterra, é diferente. Chama-se Vitória e
a outra, do livro, chamava-se Maria.

- Sim, isso é verdade - observou Hobbes, continuando a limpar a

transpiração da testa. - E os jornais não dizem nada acerca dessas histórias de
torturas e fogueiras. Em todo o caso, não me parece que ele esteja muito seguro
em Inglaterra. Tenho quase a certeza de que nem festejou o Quatro de Julho.

A verdade é que Hobbes andou muitos dias preocupado, tranquilizando-

se, somente, quando recebeu a primeira carta de Fauntleroy. Leu-a primeiro
sozinho e depois com Dick. E leu igualmente a carta que Dick recebeu, pouco
mais ou menos na mesma ocasião, e que trouxe para lhe mostrar. Ficou então
mais sereno. Sentiam-se, os dois, encantados com as cartas de Cedric. Leram-
nas e releram-nas, conversando acerca do que elas diziam, e saboreando até as
mais pequenas palavras que ele escrevera. Depois, passaram horas e horas a
compor as respostas.

Para Dick, foi um verdadeiro trabalho escrever a sua.
Mal sabia ler e escrever, e o que sabia aprendera-o no pouco tempo em

que frequentara a escola. Tinha-lhe valido ser inteligente e aplicado, pois de
contrário ficaria sem saber nada.

Pouco a pouco, o engraxador contara toda a sua vida a Hobbes: falou-lhe

em seu irmão Ben, que se mostrara bom para ele, depois da morte do pai, era
Dick ainda pequeno. Ben tinha-o sustentado como podia, até ele chegar à idade
de fazer recados e vender jornais. Tinham vivido muito tempo juntos e Ben,
quando chegou a homem, encontrou um bom lugar num armazém.

- Mas, depois - exclamou Dick, num tom de desgosto - teve a ideia de

casar! Apaixonou-se por uma rapariga qualquer, chamada Mina, e casou. Mas
teve pouca sorte, porque ela - palavra! - era uma verdadeira selvagem! Quando
se zangava, partia tudo quanto lhe vinha à mão. E, a bem dizer, estava sempre
zangada! Tinha um filho que era tal qual ela: gritava de dia e de noite. Ela
queria que eu fosse criado dele, e, quando o outro se zangava mais, atirava-me
as coisas à cabeça. Um dia, atirou-me com um prato, mas eu baixei-me e quem
apanhou com ele foi o outro “miúdo”. Ficou com os queixos quebrados e o
doutor disse que lhe deixaria cicatriz para toda a vida. Não há dúvida! Uma

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bela mãe! Não pode imaginar os maus bocados que ela me fez passar e também
ao Ben e ao petiz!

Como ela ralhava constantemente, porque o meu irmão não ganhava o

dinheiro suficiente para ela gastar à vontade.

Ben, um dia, partiu para Oeste, com um amigo, na intenção de se

empregar em qualquer “rancho”. Ainda não tinha passado uma semana,
quando uma noite, ao voltar da venda dos jornais, não encontrei Mina em casa.
Contaram-me que tinha embarcado como criada de uma senhora, que também
tinha um filho. Depois, nunca mais ouvi falar nela e Ben também nunca recebeu
notícias. No lugar dele, eu teria dito: “Que alívio”! - e creia que foi o que ele
pensou, por fim. Mas, a princípio, era capaz de se pôr de joelhos diante dela.
Era, realmente, bonita! Tinha olhos escuros e uns cabelos pretos que lhe
chegavam aos joelhos, e que usava entrançados, em volta da cabeça. Diziam que
era meio italiana e que a mãe viera lá dessas terras. O que eu sei é que ela era
doida... positivamente doida!

Dick contava muitas vezes a Hobbes a história de Mina e de Ben, que lhe

escrevera algumas cartas do Oeste. A sorte não o tinha favorecido.

- Aquela mulher, levando-lhe o filho, roubou-lhe toda a coragem! Quando

penso nisto, até se me aperta o coração - exclamou Dick.

Estavam os dois na loja de Hobbes, que, como de costume, fumava o seu

cachimbo.

- Ele não se devia ter casado - observou o merceeiro, gravemente,

levantando-se para ir buscar um fósforo. Nunca percebi a utilidade das
mulheres!

Quando acendia o fósforo, olhou para o balcão e disse:
- Uma carta! Ainda a não tinha visto. Naturalmente, o correio deixou- a

aqui ficar sem eu dar por isso, e pôs-lhe o jornal em cima.

Pegou-lhe e examinou-a atentamente.
- É dele - exclamou. - É dele, com certeza! Esqueceu-se completamente do

cachimbo e veio para junto de Dick. Enquanto abria a carta, ia dizendo:

- Que notícias nos dará ele?
- E leu o seguinte:

“Castelo de Dorincourt
“Meu caro Sr. Hobbes
“Escrevo-lhe com muita pressa porque tenho uma coisa extraordinária

para lhe contar e calculo que o meu amigo ficará muito admirado quando
souber. Enganaram-se, eu não sou lorde e nunca serei conde. Há uma senhora,
que foi casada com o meu tio Bevis e que tem um filho. Ele é que é Lorde

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Fauntleroy, porque, em Inglaterra, é assim: o filho do filho mais velho de um
conde, é também conde, quando os outros tiverem morrido - quero dizer, o pai
e o avô. O meu avô é vivo, mas o meu tio Bevis morreu e, por isso, o filho dele é
que é Lorde Fauntleroy, e eu não posso ser, porque o meu pai era o filho mais
novo, e eu chamo-me apenas Cedric Errol, como quando estava em Nova
Iorque, e todas as coisas pertencem ao outro rapaz. Julguei que também tinha
que dar o meu “poney” e a minha “charrete”, mas o avô disse-me que não era
preciso. O meu avô está muito zangado e creio que não gosta nada da tal
senhora. Naturalmente pensa que a Querida e eu estamos tristes por eu já não
ser conde. Eu gostava, realmente, de ser conde, mais do que me pareceu a
princípio, porque o castelo é muito bonito e eu gosto de todos que aqui vivem,
e, quando se é rico pode fazer-se muita coisa. Agora já não sou rico, e tenho que
aprender a trabalhar para tomar a Querida a meu cargo.

Consultei Wilkins sobre a maneira de aparelhar os cavalos. Talvez possa

ser cocheiro.

“A senhora trouxe ofilho ao castelo, mas o meu avô não quis falar com ela.

Creio que ela estava zangada, porquefalava muito alto, e o meu avô também
estava zangado. Nunca o tinha visto assim. Espero que tudo isto não os faça
endoidecer. Quis preveni-lo imediatamente, a si e ao Dick, porque tenho a
certeza de que isto lhes interessará. Depois contarei o resto.

“Seu velho amigo, Cedric Errol (e não Lorde Fauntleroy) “

Hobbes deixou-se cair numa cadeira, a carta caiu-lhe nos joelhos e o

sobrescrito escorregou para o chão.

- Ora esta! - exclamou ele. - Que o demónio me leve! Estava tão

perturbado, que pôs na sua exclamação favorita ainda mais energia do que de
costume.

- Nesse caso, está tudo perdido! - exclamou Dick.
- Tudo! - repetiu Hobbes. - Mas eu sou de opinião que esta trapalhada foi

arranjada pelos aristocratas ingleses, para lhe tirarem a fortuna, só por ele ser
americano. Nunca mais gostaram de nós, depois da Revolução, e, agora,
vingam-se nele. Bem dizia eu que não estava em segurança!. Veja lá o que
aconteceu! Não é nada de espantar que o próprio Governo se tenha metido
nisto, para lhe tirar tudo o que legitimamente lhe pertence.

Hobbes estava extremamente agitado. A princípio, a transformação que se

dera na vida de Cedric Errol não lhe agradara; mas, depois, habituara-se a
pensar que havia um lorde entre as pessoas das suas relações, e acabara por
sentir um certo orgulho com a opulência do seu jovem amigo.

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Hobbes podia não ter uma opinião lisonjeira sobre os condes; mas,

mesmo na América, o dinheiro tem uma grande influência, e se o dinheiro e o
esplendor da vida de Cedric deviam desaparecer com o título, Hobbes pensava
que era, realmente, para lamentar.

- Querem roubá-lo - repetiu ele. - Não há dúvida! E todos aqueles que

possuem fortuna deviam juntar-se para o proteger!

Dick demorou-se mais do que habitualmente, porque Hobbes não se

cansava de falar naquele sensacional assunto.

Quando se retirou - era já tarde -, o merceeiro acompanhou-o até à esquina

da rua.

Ao voltar para a loja, Hobbes parou em frente da casa desabitada e

contemplou, durante alguns minutos, a tabuleta, que dizia: Aluga-se - sem
deixar de fumar o seu cachimbo. Mas tinha o espírito profundamente
perturbado.

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Os dois pretendentes


Poucos dias depois da recepção dada pelo conde de Dorincourt, quase

todos os ingleses souberam, pelos jornais, do acontecimento, verdadeiramente
teatral, que acabava de dar-se no castelo.

Era uma história das mais interessantes, para quem a conhecia em todos

os seus pormenores. As personagens eram: o rapazito que tinham ido buscar à
América, para o fazer Lorde Fauntleroy - uma criança adorável, que conquistara
o coração de toda a gente; o conde, seu avô, que se sentia orgulhoso de tal
herdeiro; a jovem e encantadora mãe, a quem o conde não perdoava o ter
casado com o capitão Errol; e havia também a viúva de Bevis, uma estrangeira
de quem ninguém sabia nada e que aparecia assim, de repente, com um filho,
afirmando que era ele o verdadeiro Lorde Fauntleroy, e exigindo que
reconhecessem os seus direitos.

Espalhou-se também a notícia de que o conde de Dorincourt estava

furioso com a vinda inesperada da quela gente, mostrando-se disposto a levar o
caso para os tribunais, o que daria, certamente, um processo sensacional.

Nunca em todo o condado de Dorincourt sucedera uma coisa que causasse

tanta emoção. Falava-se do assunto em toda a parte: no mercado, nas lojas, nas
casas particulares, e toda a gente lamentava que Cedric não fosse, realmente,
Lorde Fauntleroy. Ninguém via com simpatia o aparecimento daquele que
vinha ocupar o lugar e que, aliás, ninguém conhecia.

No castelo todos andavam impressionadíssimos. O conde tinha longas

conversas com Havisham; Tomás, o chefe da mesa, os outros criados, homens e
mulheres, trocavam impressões e faziam comentários; nas cavalariças, Wilkins
sentia-se abatido, tratava do “poney” ainda com mais cuidado do que
habitualmente e dizia, em tom desesperado, que “nunca vira uma criança
aprender tão facilmente e tão bem a montar a cavalo e que era um prazer
acompanhar um cavaleiro tão belo e destemido”.

No meio de toda esta confusão havia uma pessoa que se conservava

calma: o pequeno Lorde Fauntleroy, que diziam não ser o verdadeiro.

Ao explicarem-lhe o que se passava, ficara um pouco inquieto, mas não

era por um sentimento de ambição ferida.

Quando o avô acabou de falar, o rosto de Cedric tomou uma expressão

muito grave, e disse apenas:

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- Isto causa-me uma impressão esquisita. sim, esquisita.
O conde olhava para a criança. Também ele sentia uma impressão que

nunca tinha experimentado em toda a sua existência. Essa impressão acentuou-
se quando viu o ar de tristeza que velava a fisionomia do neto, habitualmente
tão alegre.

- Eles tiram a casa à Querida. e também a carruagem dela? - perguntou

Cedric, com a voz inquieta.

- Não! - respondeu vivamente o conde. - Não podem tirar-lhe nada.
- Ah! - exclamou Cedric, visivelmente aliviado. Não podem tirar-lhe

nada?!

E olhando para o avô, com olhar interrogador, em que havia também

ansiedade, perguntou ainda com voz trémula:

- E o outro. vai ser o companheiro do avô. como eu tenho sido até agora?
- Não! - respondeu o conde, em voz tão irritada e forte, que Cedric

sobressaltou-se.

- Não? - repetiu a criança muito admirada. - Eu julgava.
Saltou subitamente para o chão e aproximou-se do avô, com as faces

coradas de emoção.

- Nesse caso, eu continuo a viver com o avô, e a ser o seu companheiro,

mesmo se não for conde, mais tarde? O avô continua a ser meu amigo, como
dantes?

O olhar em que o conde de Dorincourt envolveu o neto, não pode

descrever-se. Tinha as sobrancelhas muito contraídas e os olhos brilhavam-lhe
de forma estranha e diferente.

- Meu filho - murmurou ele, e a sua voz parecia mudada, um pouco

trémula e rouca. - Sim, serás o meu companheiro, enquanto eu viver! Tenho, às
vezes, a impressão de que tu és o único filho que eu tive!

Cedric tornou-se vermelho até à raiz dos cabelos, mas era de alegria e

alívio. Meteu as mãos nas algibeiras e fitou o avô bem de frente.

- Isso é verdade? - exclamou ele. - Então já não me importo de não ser

conde!

O conde de Dorincourt pôs a mão sobre o ombro do neto e disse, cada vez

mais comovido:

- Ninguém poderá tirar-te nada daquilo que eu tenho o direito de reservar

para ti. Além disso, eu não posso acreditar que eles te tirem seja o que for! Tu
estavas destinado a viver junto de mim, como meu herdeiro, e não posso
admitir a ideia de seres substituído por outro.

Falava com um ar solene, não como se se dirigisse a uma criança, mas

como se tomasse um compromisso para consigo próprio.

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Cedric parecia-lhe mais belo e nobre do que nunca. E o conde estava

disposto a lutar até ao fim, para defender os direitos dele.

Alguns dias depois de ter procurado Havisham, a mulher que dizia ser

Lady Fauntleroy apresentou-se no castelo, acompanhada pelo filho. O conde
não quis recebê-la e mandou-lhe dizer que, quem tratava do assunto, era o seu
advogado.

Foi Tomás quem transmitiu o recado do conde; depois, contou aos outros

criados a sua opinião acerca da visitante.

Disse que estava muito habituado a servir em casas de famílias nobres e

que sabia conhecer as verdadeiras senhoras. Aquela não podia ser uma “lady”!
E se o era, tinha descido muito.

- Não se compara com a que vive no pavilhão de Court Lodge -

acrescentou ele. - Americana ou não americana, essa é uma senhora como deve
ser!

Entretanto, a visitante retirara-se com uma expressão de cólera e de receio,

ao mesmo tempo.

Durante as conversas que teve com ela, Havisham principiou a notar que,

apesar dos seus modos desabridos e palavras insolentes, ela estava muito
menos segura do seu papel do que pretendia demonstrar. Houve um momento
em que se mostrou, mesmo, bastante embaraçada. Percebia-se que ela não
esperava encontrar uma oposição tão forte.

- Sem dúvida, é uma criatura vinda de um meio muito ordinário - disse,

um dia, Havisham, à Sr. Errol. - Não tem educação nenhuma e não está
habituada a conviver, em pé de igualdade, com pessoas da nossa classe. Está
desconcertada. A sua visita ao castelo diminuiu a arrogância com que se
apresentava. O conde não a recebeu, mas eu aconselhei-o a avistar-se com ela
no Hotel do Escudo, onde se hospedou. Eu assisti ao encontro. Quando o conde
entrou, ela empalideceu, mas isso não a impediu de falar nos direitos do filho, e
fazer ameaças. A verdade é que o conde entrou na sala do Hotel do Escudo com
o seu porte majestoso e o seu ar de grande senhor, fitando a viúva de Bevis com
um olhar severo. Limitou-se a observá-la dos pés à cabeça, como se ela fosse
objecto curioso e repugnante, deixando-a expor demorada e atabalhoadamente
as suas pretensões, sem a interromper. Quando ela se calou, ofegante, declarou:

“- A senhora pretende ser a viúva do meu filho mais velho. Se for verdade,

e a prova que apresenta for autêntica, tem a lei por si. Nesse caso, o seu filho é
Lorde Fauntleroy. A questão vai ser estudada a fundo, pode ter a certeza. Se as
suas reivindicações forem justas, receberá uma mesada. Mas não quero tornar a
vê-la, nem ao seu filho! Bem basta que o castelo e a população de Dorincourt

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sofram a vossa presença depois da minha morte! A senhora é bem o género de
mulher capaz de se entender com o meu filho Bevis.

“Dito isto, voltou-lhe as costas e saiu, com o mesmo ar majestoso com que

havia entrado. “

Alguns dias depois, a Sr. a Errol foi prevenida da chegada de uma visita.

A criada que a anunciou tinha os olhos muito abertos, de espanto.

- É o Sr. Conde, em pessoa! - exclamou ela, com ar embaraçado.
Quando a Sr. a Errol entrou na sala, viu um velho de grande estatura e

aspecto altivo, em pé, junto do fogão. Tinha um belo rosto severo, um perfil de
águia, grandes bigodes brancos e um olhar duro.

- A Sr. a Errol? - perguntou ele.
- Sou eu.
- Eu sou o conde de Dorincourt.
Sem quase dar por isso, o conde fez uma pequena pausa, para fitar os

olhos que se erguiam para ele. Eram tão parecidos com os do neto, quee
experimentou uma estranha sensação.

- A criança parece-se consigo disse ele, bruscamente
- Têm-mo dito muitas vezes, milorde - respondeu ela -, mas sinto-me feliz

ao pensar que se parece também muito com o pai.

Tal como Lady Lorridaile tinha contado ao conde, a viúva Errol possuía

uma voz muito doce, maneiras simples e distintas ao mesmo tempo. A visita do
conde parecia não a perturbar.

- Sim - disse o conde de Dorincourt -, também se parece... com o meu filho.
Levou a mão ao bigode, que puxou violentamente. Depois, continuou:
- Sabe porque estou aqui?
- O Sr. Havisham falou-me de reivindicações... - começou a Sr. a Errol.
- Venho dizer-lhe - interrompeu o conde - que essas reivindicações vão ser

estudadas e que serão contestadas, se for preciso. Farei tudo para defender a
situação de seu filho. Esta mulher impossível...

- Talvez ela ame o filho tanto como eu amo Cedric, milorde! - observou a

Sr. a Errol com a sua voz tão doce. - E se ela foi casada com o seu filho mais
velho, Cedric não é Lorde Fauntleroy.

Mostrava-se tão serena e confiante como Cedric. A presença do conde não

lhe causava o menor receio, tal como sucedera com o pequenito. E o velho
fidalgo, que apresentava, naquele momento, a sua expressão mais
desagradável, sentia-se intimamente satisfeito.

- Suponho que a senhora prefere que o seu filho não venha a ser o conde

de Dorincourt? - disse ele, franzindo as sobrancelhas.

As faces da viúva Errol tornaram-se rosadas.

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- É uma coisa magnífica ser conde de Dorincourt - disse ela. - Tenho a

certeza disso. Mas o que eu desejo, acima de tudo, é que o Cedric seja como era
o pai: que seja, como ele, justo e leal, e que possua a mesma nobreza de carácter.

... E que faça um verdadeiro contraste com o avô, não é verdade? -

observou Sua Senhoria, em tom brusco e irónico.

- Não tenho a honra de conhecer intimamente o avô - replicou a Sr. e Errol

-, mas sei que o meu filho o considera.

Interrompeu-se, de repente, olhou calmamente para o conde e continuou:
- Sei que Cedric o adora!
- Parece-lhe que ele o estimaria da mesma forma, se a senhora lhe tivesse

explicado o motivo por que não foi recebida no castelo? - perguntou o conde,
friamente.

- Não! - respondeu a Sr. ' Errol. - Creio que não. Foi por isso que eu não

quis que ele soubesse.

- Pois bem! - disse bruscamente o conde. - Poucas mulheres seriam

capazes de proceder assim.

Principiou, então, a andar de um para o outro lado da sala, puxando

sempre o bigode. E continuou:

- Sim, ele adora-me e eu adoro-o! Posso dizer que nunca, na minha vida,

me dediquei a ninguém. Mas tenho por ele uma grande afeição. Agradou-me
desde o primeiro instante. Sou velho e estou fatigado da existência. Ele deu-me
uma nova razão de viver. Tenho orgulho nele e sentia-me feliz ao pensar que
seria, mais tarde, o chefe da casa de Dorincourt.

Aproximou-se da Sr. a Errol, e ficou de pé, na sua frente.
- Sou muito infeliz - disse ele. - Muito infeliz!
Via-se perfeitamente que era verdade. Apesar do seu orgulho, a voz não

era firme, e as mãos tremiam-lhe. Durante um momento, dir-se-ia que havia
lágrimas nos seus olhos.

- Foi, talvez, por me sentir infeliz, que vim procurá-la! - continuou,

fitando-a com um olhar profundo. Detestei-a, depois tive ciúmes do afecto que
Cedric lhe consagra. Esta desgraçada questão, porém, mudou tudo. Depois de
ter visto a mulher repugnante que se diz viúva de Bevis, senti que seria,
realmente, um conforto para mim, vê-la a si. Sou um velho imbecil, teimoso nos
meus erros, e reconheço que fui muito injusto para consigo. A senhora parece-se
com a criança que se tornou o maior interesse da minha vida. Sentindo-me
infeliz, vim procurá-la, unicamente porque a senhora se parece com o
pequenito, porque ele a adora, e eu o adoro a ele. Por amor dele, seja boa para
mim!

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Estas palavras foram pronunciadas numa voz rouca, quase rude, mas com

um ar tão abatido, que a Sr. a Errol sentiu-se profundamente comovida.
Aproximou-se do conde e disse docemente:

- Gostava que se sentasse. Tem-se atormentado tanto, que deve estar

muito fatigado. E agora, justamente, precisa de toda a sua energia.

Esta maneira simples e delicada de lhe falar e de se ocupar dele, era uma

coisa tão nova para o conde, como o aparecimento da viúva de Bevis. Pensou
em Cedric e fez o que a Sr. a Errol lhe pedia. Começava já a sentir-se menos
abatido, sob a suave influência daquela encantadora criatura, que ele odiara
tanto.

- Suceda o que suceder, a situação do pequenito será assegurada no

presente e no futuro - disse ele.

Antes de se retirar, o conde percorreu a sala com o olhar.
- Gosta desta casa? - perguntou ele à Sr. a Errol.
- Muito! - respondeu ela.
- Esta sala é muito agradável - observou Lorde Dorincourt. - Posso voltar

de vez em quando, para conversarmos acerca de todas estas coisas?

- Sempre que quiser! - respondeu a mãe de Cedric. Pouco depois, o conde

saiu, instalou-se na carruagem e regressou ao castelo.

O cocheiro e Tomás, que acompanhava sempre o conde, estavam mudos

de espanto, pelo aspecto imprevisto que as coisas iam tomando.

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Dick vem em socorro do seu amigo


Os jornais ingleses não podiam deixar de se ocupar de um assunto tão

sensacional, e os jornais dos Estados Unidos da América fizeram o mesmo.

A história era realmente interessantíssima e cada um a contava a seu

modo, a tal ponto que Hobbes, ao ler tudo o que diziam, quase perdia a cabeça.

Um jornal dizia que Cedric era uma criancinha, outro apresentava-o como

um estudante de Oxford, que obtinha distinções em todos os exames e
compunha poemas gregos; outro informava os seus leitores de que ele estava
noivo da filha de um duque, extraordinariamente formosa; havia ainda um que
noticiava que ele casara havia pouco.

Enfim, diziam as coisas mais disparatadas, chegando a afirmar que não

existia o menor parentesco entre Cedric e o conde Dorincourt e que se tratava
de um garoto que vendia jornais nas ruas de Nova Iorque.

Quanto ao novo Lorde Fauntleroy e sua mãe, tanto diziam que ela era

uma actriz, como uma boémia. Outros afirmavam que era espanhola, mas todos
concordavam num ponto: o conde era seu inimigo mortal e só lhe reconheceria
o filho se fosse obrigado a isso. Falavam também numa pequena irregularidade
descoberta nas certidões apresentadas pela mãe, e calculavam que isso daria
motivo a longo e complicado processo.

Hobbes lia os jornais do princípio ao fim; depois, à noite, conversava com

Dick sobre as últimas notícias.

Convenceram-se, assim, de que o conde de Dorincourt era, realmente,

uma personagem muito importante e que possuía enorme riqueza, vivendo
num castelo sumptuoso, tal como Cedric lhes contara nas suas cartas.

E quanto mais se convenciam de tudo isso, mais preocupados ficavam.
- A minha opinião é que temos de fazer qualquer coisa por ele - disse um

dia Hobbes. - Conde ou não conde, não se pode ficar indiferente a uma coisa
destas.

Mas, na realidade, a única coisa que eles podiam fazer era escrever a

Cedric, a afirmar-lhe a sua amizade. E assim foi. A carta de Dick, cheia de erros
de ortografia, dizia assim:


“Caro amigo

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“Recebi a sua carta e o Sr. Hobbes também recebeu a que lhe mandou, e

estamos muito aborrecidos com o que lhe aconteceu. É preciso não deixar que
outro lhe tome o seu lugar. O que eles querem é roubá-lo. Tenha cautela Mas eu
quero, principalmente, dizer-lhe que não esqueço o que fez por mim. Os
negócios correm agora melhor e eu o protegerei, se for preciso. Quem quiser
fazer-lhe mal tem que se haver primeiro com o mestre Dick Tipton. Não tenho
mais para lhe dizer, por agora.

Dick,

Quanto à carta de Hobbes, era como segue

“Caro senhor
“Recebi a sua prezada carta e acho que as coisas não caminham bem.

Estou convencido de que é uma `partida ' que lhe querem fazer, e é preciso ter
cuidado com a gente que preparou toda esta complicação. Escrevo-lhe para lhe
dizer duas coisas. Vou ocupar-me do seu assunto. Não se inquiete; consultarei
um advogado e farei tudo quanto puder. Se não conseguirmos resolver
favoravelmente toda esta história, tem sempre um lugar de sócio na minha loja
à sua espera, logo que tenha mais idade, bem como uma casa e um amigo.

“Sou, com muita consideração, seu amigo
Hobbes”

- Se ele deixar de ser conde - disse Hobbes -, nós dois sempre havemos de

lhe assegurar a existência. Não acha?

- Com certeza! - respondeu logo Dick. - Por mim, nunca o abandonarei. É o

garoto mais gentil que eu conheço.

No dia seguinte, um cliente de Dick teve uma surpresa. Este cliente era um

jovem advogado, no princípio da sua carreira; não tinha dinheiro, mas era
inteligente, activo, com um espírito vivo e um carácter amável.

O seu modesto escritório estava situado próximo do lugar onde Dick

trabalhava, e era ele quem lhe engraxava os sapatos todas as manhãs. Os ditos
sapatos nem sempre estavam em bom estado... Mas o jovem advogado nem por
isso deixava de ter sempre uma palavra agradável para dizer a Dick.

Naquele dia, quando o engraxador terminou o seu trabalho, o advogado

estendeu-lhe o jornal e disse:

- Aqui tens, para te entreteres, à hora do almoço. Traz a fotografia de um

castelo inglês e o retrato da nora de um conde! - uma bela mulher, com uma
esplêndida cabeleira - que tem cara de quem é capaz de bater o pé a todos
aqueles senhores da fidalguia inglesa! Precisas de te pôr ao corrente do que se

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passa no grande mundo! Começa, portanto, pelo nobre conde de Dorincourt e
Lady Fauntleroy. Mas. Que é isso?

As fotografias de que ele falava estavam na primeira página, e Dick, de

olhos muito abertos, pálido de espanto, observava atentamente uma delas.

- Vamos, Dick - insistiu o advogado. - Que foi que te causou tanta

impressão?

Na realidade, a expressão de Dick demonstrava que alguma coisa

prodigiosa tinha sucedido. O engraxador apontou para o retrato que tinha esta
legenda: Lady Fauntleroy, a mãe do novo pretendente”.

A gravura mostrava uma formosa mulher, com grandes olhos escuros e

grossas tranças enroladas em volta da cabeça.

- Mina! - exclamou ele. - Afirmo-lhe que é ela! Conheço-a melhor do que a

si!

O advogado começou a rir.
- Onde a encontraste? - perguntou ele. - Em Newport? Ou na Ópera, a

última vez que foste a Paris?

Mas Dick não estava disposto a rir nem a brincar. Começou

imediatamente a arrumar as escovas e todo o material, como se alguma coisa
urgente o obrigasse a interromper o trabalho.

- Pode dizer o que quiser - afirmou ele. - A verdade é que a conheço muito

bem. E, por hoje, não trabalho mais.

Ainda não tinham passado cinco minutos, já ele corria em direcção à

mercearia de Hobbes.

Quando entrou, muito vermelho e ofegante, com o jornal na mão, Hobbes

não sabia o que pensar.

Antes de poder falar, Dick atirou com o jornal para cima do balcão. Estava

tão cansado, que só uns minutos depois é que pôde exclamar, numa voz
alterada:

- Veja. Aí. na primeira página. olhe para essa cabeça de mulher... Essa não

é da “alta” tenho a certeza - disse ele com desprezo. - Não é mulher de um
lorde. Pode comer-me vivo, se essa mulher não é Mina... sim, Mina! Era capaz
de a reconhecer entre mil. E o meu irmão também. Pode perguntar-lhe, se
quiser.

Hobbes deixou-se cair na cadeira.
- Bem dizia eu que era uma traição que lhe faziam! Eu bem sabia! E

fizeram tudo isto por ele ser americano.

- Mas, foi ela! - exclamou Dick, com desespero. Foi ela quem preparou

tudo! Sempre teve a mania de escândalos e mistérios. Desde que vi o retrato
dela, parece-me que nem estou em mim! Há um jornal que fala do filho e diz

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que tem uma cicatriz no queixo. Junte tudo isto. Mina, o filho, a cicatriz! Tenho
a certeza de que esse rapaz é tanto lorde como eu ou o Sr. Hobbes. É o filho de
Ben... o garoto que ela feriu, quando me atirou com um prato à cabeça.

Dick Tipton tivera sempre um espírito vivo, e o facto de ganhar a vida

trabalhando nas ruas aumentara ainda a sua vivacidade. Aprendera a ver as
coisas com clareza e a não se desorientar. Aquele acontecimento inesperado,
após o espanto, chegava a causar-lhe alegria. Se o pequeno Lorde Fauntleroy
pudesse entrar, naquela manhã, na mercearia do Sr. Hobbes, teria achado a
conversa interessante, mesmo que os planos que eles faziam dissessem respeito
a outra pessoa.

Hobbes sentia-se esmagado pela sua responsabilidade, e Dick não parava,

cheio de ardor e actividade. Começou por escrever uma carta a Ben, juntando-
lhe o retrato recortado do jornal. Por seu lado, Hobbes escreveu uma carta a
Cedric e outra ao conde.

Estavam os dois ocupados na sua correspondência quando Dick teve,

subitamente, uma ideia.

- Quem me mostrou o jornal foi um advogado! - disse ele. - E se nós lhe

perguntássemos o que devemos fazer? Os advogados conhecem todas estas
artimanhas.

Esta lembrança produziu uma grande impressão em Hobbes e fê-lo

admirar, sem reservas, a esperteza de Dick.

- Tem razão - disse ele. - Um assunto como este não dispensa um

advogado.

Pediu a um vizinho que lhe tomasse conta da loja, vestiu o casaco e pôs-se

a caminho, ao lado de Dick. Pouco depois apresentavam-se os dois no escritório
do advogado Harrison, que ouviu, muito espantado, aquela estranha história.

Se Harrison não fosse tão novo e tivesse mais trabalho, certamente não

tomaria a sério o que eles lhe contavam, pois era, realmente, muito estranho e
fantástico. Mas, por sorte, o jovem advogado desejava ardentemente ocupar-se
de qualquer questão interessante, que pusesse à prova a sua energia e
competência; além disso, conhecia Dick, e este expunha o assunto com tal
vivacidade e convicção, que o advogado resolveu estudar o problema.

“Se as coisas correrem bem - pensou ele - será uma causa sensacional, e o

resultado será quase tão interessante para mim, como para Lorde Fauntleroy.
De qualquer forma, porém, não perco nada em investigar. A primeira coisa a
fazer é escrever ao irmão de Dick e ao procurador do conde de Dorincourt”.

Assim fizeram. As cartas seguiram naquele mesmo dia. Uma foi para

Inglaterra e outra para a Califórnia.

A primeira era dirigida a Havisham e a segunda a Benjamim Tipton.

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À noite, depois de fechar a loja, Hobbes demorou-se ainda bastante tempo,

no armazém, a conversar com Dick.

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Descobre-se a mentira


É espantoso como, em tão pouco tempo, podem suceder coisas tão

extraordinárias! Bastaram poucos minutos para mudar o destino do pequenito
que costumava sentar-se sobre os caixotes da mercearia de Hobbes,
transformando esta criança, que levava uma vida simples numa das ruas mais
calmas de Nova Iorque, num jovem fidalgo inglês, herdeiro de um título de
conde e de uma fortuna magnífica. Da mesma forma, alguns minutos haviam
bastado para que este jovem lorde passasse a ser considerado sem direito algum
aos esplendores que principiara a gozar.

E foi necessário ainda menos tempo para que a mulher que se apresentava

como Lady Fauntleroy, caísse em várias contradições, que levantaram
imediatamente suspeitas no espírito do advogado Havisham.

Aquela mulher era, sem dúvida, mais perversa do que inteligente.
Ao perceber que se comprometera, ficou de tal forma perturbada, que

cada vez se contradizia mais.

Afirmava ela que casara com Bevis, Lorde Fauntleroy, e que, depois,

tendo-se zangado um com o outro, ele lhe dera dinheiro para se desembaraçar
dela. Dizia que o filho tinha nascido em determinado bairro de Londres. Mas
Havisham descobriu que era falso. Foi nesta altura que chegaram as cartas de
Hobbes e do jovem advogado americano.

Não é possível descrever o alvoroço que essas cartas causaram no castelo!

O conde e Havisham fecharam-se na biblioteca e conversaram longamente.

O advogado expôs a Lorde Dorincourt as suas suspeitas. A criança parecia

mais velha do que a mulher dizia e, exactamente, ao referir- se à data do
nascimento do filho, ela caíra em várias contradições. A história contada nas
cartas vinha reforçar essas suspeitas. Chegaram, por isso, à conclusão de que o
melhor que havia a fazer era telegrafar para a América, mandando vir os dois
irmãos Tipton, para os apresentar, inesperadamente à mulher.

- Ela não é bastante esperta. - afirmou Havisham.
- Estou convencido de que perderá a cabeça e confessará tudo.
Aquele plano foi posto em prática. Para que a mulher não desconfiasse de

coisa alguma, Havisham continuou a avistar-se com ela, afirmando- lhe que as
investigações continuavam. A verdade é que ela voltou a estar mais senhora de
si, convencida do seu triunfo, e tornou- se mais insolente do que nunca.

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Uma bela manhã, estava ela nos seus aposentos do Hotel do Escudo,

certamente a fazer projectos magníficos, quando Havisham se fez anunciar. O
advogado entrou, mas não ia só. Acompanhavam-no três pessoas: um rapaz de
fisionomia inteligente; outro, um homem novo e robusto; o terceiro era o conde
de Dorincourt em pessoa.

Ao vê-los, aquela que se fazia passar por Lady Fauntleroy pôs-se de pé e

soltou um grito de terror. Poderia esperar tudo, menos ver aparecer-lhe ali
aquelas duas criaturas que ela supunha na América, e que julgava nunca mais
encontrar.

Dick não pôde conter-se e começou a gracejar:
- Viva, Mina! Como vai isso?
O outro homem, que era Ben, olhava para ela em silêncio.
- Reconhecem-na? - perguntou Havisham, que os observava.
- Sim, reconheço-a, e ela também me reconhece - disse Ben.
Depois de pronunciar estas palavras, voltou-lhe as costas e foi até à janela,

como se a vista daquela mulher lhe causasse horror. Vendo-se desmascarada,
teve um dos tais acessos de fúria que Ben e Dick haviam presenciado muitas
vezes. Ao ouvir as injúrias e as ameaças violentas que ela dirigia a todos, Dick
continuou a troçar, mas Ben nem se voltou.

- Posso jurar, perante qualquer tribunal, que é ela! - declarou Ben a

Havisham. - E posso apresentar dezenas de outras testemunhas, se for preciso.
O pai é um simples operário, mas é um homem honesto. A mãe era tal como
ela. Já morreu, mas o pai ainda vive e envergonha-se de ter semelhante filha.
Ele pode dizer-lhes quem ela é, e se casou, ou não, comigo.

Depois, cerrando os punhos, voltou-se subitamente para Mina,

perguntando:

- Onde está a criança? Quero levá-la comigo!
Mal ele tinha pronunciado estas palavras, a porta que comunicava com o

quarto abriu-se, e o pequenito espreitou, certamente admirado de ouvir falar
tão alto.

Não era uma criança bonita, mas possuía uma cara engraçada e parecia- se

muito com Ben. No queixo, tinha uma cicatriz triangular.

Ben foi até junto dele, pegou- lhe meigamente na mão e declarou:
- Sim, posso também jurar que o reconheço. Tom - disse ele ao garoto -, eu

sou o teu pai. Venho buscar- te. Onde está o teu chapéu?

O pequeno não fez a mais leve observação. Via-se que lhe agradava a ideia

de partir. Levara, até então, uma existência tão extraordinária, que já não se
admirava de coisa alguma, nem sequer de ouvir aquele desconhecido dizer que
era seu pai. Sentia tão pouca afeição pela mãe, que fora buscá-lo, poucos meses

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antes, ao lugar onde ele fora criado desde pequenino, que não lhe custou
absolutamente nada aceitar aquela nova mudança na sua vida, passando a ir
viver com o pai. Ben dirigiu-se tranquilamente para a porta, com o filho pela
mão. Antes de sair, disse a Havisham:

- Se precisar de mim sabe onde me encontrará. Em seguida saiu com a

criança, sem tornar a olhar para a mulher, que continuava a mostrar- se furiosa,
enquanto o conde a observava com calma.

- Vamos! Vamos! - disse Havisham. - A sua cólera não serve para coisa

nenhuma. Se não quer ser presa, é melhor calar-se.

Isto foi dito num tom tão frio e positivo, que Mina compreendeu que o

melhor que tinha a fazer era ir-se embora e, lançando ao advogado um olhar
selvagem, dirigiu-se para o quarto atirando com a porta.

- Não voltará a incomodar-nos! - disse Havisham. Ele tinha razão, porque,

nessa mesma noite, Mina deixou o Hotel do Escudo e tomou o comboio para
Londres. Depois, nunca mais ouviram falar nela.

Terminada a entrevista, o conde dirigiu-se imediatamente à carruagem

que o esperava.

- Para Court Lodge! - ordenou ele a Tomás.
- Para Court Lodge! - disse Tomás ao cocheiro. E pensou:
“Vamos assistir a coisas que ninguém espera... “ Quando a carruagem

parou em frente do pavilhão, Cedric estava na sala com a mãe.

O conde entrou sem se anunciar. A sua figura parecia mais alta, e dir-se-ia

que tinha menos dez anos. Os seus olhos brilhavam de satisfação.

- Onde está Lorde Fauntleroy?
A Sr. a Errol foi ao seu encontro, muito corada.
- Cedric é, realmente, Lorde Fauntleroy? - perguntou ela.
- Sim - respondeu o conde, estendendo-lhe a mão.
- É, realmente, Lorde Fauntleroy.
Depois, pousou a mão no ombro de Cedric e disse, na sua voz autoritária:
- Fauntleroy, queres perguntar a tua mãe quando virá ela instalar-se junto

de nós, no castelo?

O pequeno lorde lançou os braços em volta do pescoço da mãe e

exclamou:

- Para viver connosco! Para viver connosco, sempre, sempre?
O conde olhava para a Sr. a Errol e a Sr.a Errol olhava para ele. O velho

fidalgo tinha um ar perfeitamente sério. Decidira não perder um minuto para
resolver aquele assunto. A ideia de se reconciliar com a nora não lhe
desagradava.

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- Tem a certeza de que precisa de mim? - perguntou a mãe de Cedric, com

a sua voz doce e o seu encantador sorriso.

- A certeza absoluta! - respondeu ele, bruscamente.
- Precisámos sempre de si, mas não tínhamos dado por isso. Esperamos

que aceitará.

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O aniversário do pequeno lorde


Ben voltou, com o filho, para a Califórnia. Antes da sua partida, Havisham

comunicou-lhe que o conde de Dorincourt resolvera fazer qualquer coisa pela
criança que estivera para ser Lorde Fauntleroy e, por isso, colocara algum
capital num “rancho”, cuja administração seria confiada a Ben, em condições
especialmente vantajosas para ele e para o filho. O futuro da criança estava,
assim, assegurado.

Na realidade, alguns anos depois, Ben tornou-se o proprietário definitivo

desse rancho. Tom cresceu e tornou-se um rapaz simpático, forte e muito
dedicado ao pai. Trabalhavam os dois juntos, e tiveram dias tão felizes, que Ben
costumava dizer que o filho lhe fizera esquecer todas as misérias passadas.

Quanto a Dick e a Hobbes - porque o merceeiro quisera acompanhar os

dois irmãos a Inglaterra, para verificar se tudo corria bem - não voltaram logo
para a América. O conde decidiu assegurar também o futuro de Dick, e
principiou por lhe mandar dar uma sólida instrução. Quanto a Hobbes, como
tinha confiado a mercearia a uma pessoa amiga, pensava que podia
perfeitamente ficar algum tempo em Inglaterra, para assistir às festas do
aniversário de Lorde Fauntleroy.

Todos os rendeiros e suas famílias foram convidados; haveria um

banquete, jogos e danças no parque de Dorincourt.

À noite acenderiam fogueiras e queimariam fogo de artifício.
- É tal qual como o Quarto de Julho - dizia Lorde Fauntleroy. - É uma pena

que o aniversário não seja nesse dia, não acha, Sr. Hobbes? Festejaríamos as
duas datas juntas.

É preciso dizer que o conde e Hobbes não se tornaram amigos tão íntimos,

como Cedric esperava. A verdade é que o conde nunca conhecera nenhum
merceeiro, e Hobbes nunca tivera convivência com condes. Por isso, nas suas
raras entrevistas, a conversação não fora animada. Deve dizer- se, também, que
Hobbes se sentira esmagado com os esplendores que Lorde Fauntleroy julgava
de seu dever mostrar-lhe.

Logo que chegara, à entrada do portão, os leões de pedra e a avenida,

tinham-lhe causado uma impressão enorme. E quando viu o castelo, as torres,
os jardins, os prados, os terrenos, os pavões, as prisões subterrâneas, as
armaduras, a escadaria de honra, as cavalariças, os criados de libré, ficou

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perfeitamente confundido. Mas, o que acabou de o deslumbrar, foi a galeria dos
quadros.

- É como um museu - observou ele a Lorde Fauntleroy, quando este o

introduziu no enorme e sumptuoso salão, cujas paredes estavam cobertas de
quadros.

- Não... - respondeu Fauntleroy, com ar indeciso. Parece-me que não é um

museu. O meu avô diz que são os meus antepassados. os avós dos meus avós. -
explicou ele a Hobbes, com ar interrogador.

- Os avós dos seus avós - exclamou Hobbes, espantado. - Nunca imaginei

que se pudesse ter tantos. Como pôde o pai deles criar uma família tão
numerosa?!

Sentou-se numa cadeira e olhou em volta de si, com ar perturbado, até que

Lorde Fauntleroy conseguiu explicar- lhe que aqueles retratos pertenciam a
muitas gerações de Dorincourt.

Mas, para falar dos seus antepassados, Lorde Fauntleroy achou que era

melhor recorrer à Sr. a Millon, que sabia tudo quanto dizia respeito àqueles
retratos.

As histórias da Sr.a Millon cativaram Hobbes; depois de as ter ouvido,

Hobbes veio muitas vezes da aldeia, onde se hospedara no Hotel do Escudo, até
ao castelo, só para passar alguns minutos na galeria dos retratos. Contemplava
um e outro, abanava a cabeça, e repetia: - “Dizer que todas estas pessoas foram
condes e condessas, e que ele virá também a ser conde, como eles, e possuirá
tudo isto!” No fundo, Hobbes não estava tão indignado com os condes e a sua
maneira de viver, como seria de esperar. Pode mesmo dizer-se que os seus
princípios republicanos haviam ficado um pouco abalados, desde que se
famíliarizara com os condes, os castelos, os antepassados e tudo mais. E um dia,
teve uma ideia notável e absolutamente inesperada.

“- No fim de contas, não me importava de ser conde!” - exclamara ele, o

que representava, da sua parte, uma grande concessão.

O dia do aniversário do pequeno Lorde Fauntleroy foi verdadeiramente

maravilhoso. O conde sentia-se feliz como nunca fora! O parque estava lindo: os
rendeiros, com os seus trajes de festa; as bandeiras que esvoaçavam sobre as
barracas e nas torres do castelo; tudo, naquele dia, parecia mais belo, enchendo
o ar de alegria. Nenhum convidado faltou, porque toda a gente estava
encantada pelo facto de o pequeno Lorde Fauntleroy continuar a ser o pequeno

Lorde Fauntleroy, futuro senhor daquele domínio.
Todos queriam vê-lo de perto, e também a sua linda mãe, que estimavam

profundamente. Além disso, toda aquela gente se sentia mais bem-disposta em
relação ao conde, principalmente desde que se tinha reconciliado com a Sr. a

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Errol, passando a tratá-la com todas as atenções. Diziam, mesmo; que o conde
tinha pela nora uma verdadeira simpatia e que, na convivência dela e do
pequeno lorde, ele viria a tornar-se, com o tempo, o mais amável dos fidalgos, o
que era motivo de satisfação para todos.

Sob as árvores, nas barracas e nos campos arrelvados, aglomeravam-se os

habitantes da aldeia e os camponeses.

No castelo estavam os amigos que tinham vindo felicitar o conde e Lorde

Fauntleroy, e também para conhecer a Sr. A Errol. Lady Lorridaile e o marido
não faltaram, bem como Havisham. A linda Viviana Herbert lá estava também,
com uma vaporosa “toilette” branca e uma sombrinha de renda, rodeada por
um grupo de rapazes. Mas ela preferia o pequeno Lorde Fauntleroy a todos os
seus admiradores reunidos. Este, logo que a viu, correu para ela, lançando-lhe
os braços ao pescoço.

A jovem fez o mesmo, e beijou-o com tanto entusiasmo e carinho como se

Cedric fosse seu irmãozinho muito querido.

- Meu pequeno Lorde Fauntleroy! - exclamou ela. Querido amiguinho!

Estou muito contente, muito contente!

Depois, passearam juntos pelo parque, e Cedric sentia-se feliz por fazer as

honras do castelo. Quando passaram no sítio onde se encontravam Hobbes e
Dick, o pequeno lorde disse à sua gentil companheira:

- Este é o meu velho amigo Hobbes, e aquele o meu também velho amigo

Dick, a quem eu disse que a Viviana era muito bonita, e que desejavam imenso
conhecê-la.

Ela apertou a mão aos dois e demorou-se uns momentos a conversar com

eles da maneira mais amável. Enquanto ela lhes fazia perguntas acerca da
América e das suas impressões de Inglaterra, o pequeno Lorde Fauntleroy, de
cabeça erguida para ela, não deixava de a fitar, corando de alegria ao ver que
Hobbes e Dick se sentiam felizes.

- Palavra de honra! - disse Dick, quando ela se afastou. - É encantadora!

Ninguém pode dizer o contrário.

Por onde ela passava, todos a seguiam com o olhar, assim como ao

pequeno lorde, que se apresentou, nesse momento, de calça comprida,
colarinho de goma e laço preto.

O sol brilhava, as bandeiras esvoaçavam no ar e as danças estavam no

auge da animação. Lorde Fauntleroy sentia-se imensamente feliz. O mundo
inteiro parecia-lhe magnffico. Mas havia outra pessoa que sentia uma felicidade
nova, como nunca experimentara em toda a sua longa vida: um velho fidalgo,
cuja existência agitada e faustosa jamais lhe dera uma hora de verdadeira
alegria.

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Cada dia se sentia mais afeiçoado ao neto e à Sr. a Errol. Já não podia

dispensar a voz doce e a presença encantadora da jovem viúva. Sentado na sua
grande poltrona, passava horas a conversar com ela e com Lorde Fauntleroy.

Habituou-se, então, a ouvir expressões afectuosas, que nunca ouvira. E

compreendeu, também, como um rapazinho nascido e criado numa rua
modesta de Nova Iorque, convivendo com merceeiros e engraxadores, podia ter
maneiras tão delicadas e uma alminha tão nobre e corajosa, que não
envergonharia ninguém, mesmo tendo-se ele tornado, inesperadamente, o
herdeiro de um grande nome, destinado a viver num dos mais sumptuosos
castelos.

A razão era simples: Cedric vivera junto de uma mãe de coração afectuoso

e delicado, que o ensinara a ter somente pensamentos generosos e a mostrar-se
sempre bom para os seus semelhantes.

Ao chegar à Inglaterra, Cedric ignorava o poder da riqueza, mas possuía

uma alma confiante e recta, e isto vale todos os tesouros do mundo.

Naquele dia, vendo Lorde Fauntleroy andar de um lado para o outro, no

parque, para fazer, a todos, as honras da festa, o velho conde de Dorincourt
sentia-se verdadeiramente orgulhoso do neto. E a sua satisfação aumentou
ainda, quando ele e o pequenito se dirigiram, juntos,

a um lindo toldo sob o qual os rendeiros de Dorincourt estavam reunidos

num grande banquete.

Começaram, nessa altura, a fazer os brindes e, depois de terem bebido à

saúde do conde, com um entusiasmo que o altivo fidalgo nunca calculara,
propuseram uma “saúde” a Lorde Fauntleroy.

Se ainda fosse possível alguém duvidar da popularidade do pequeno

lorde, essas dúvidas teriam desaparecido naquele momento. Que ruído de
vozes! Que estrondosos aplausos! Aquela boa gente, de coração leal, tinha uma
tal adoração pelo pequeno lorde, que, sem se preocupar com a presença dos
convidados do castelo, gritaram quanto puderam, para melhor exprimirem o
seu entusiasmo: “Viva Lorde Fauntleroy! Viva!” As mulheres, com expressão
maternal, olhavam enternecidamente para o pequenito que se conservava de
pé, muito direito, entre a mãe e o avô, e diziam umas para as outras:

- Que Deus abençoe o nosso querido Lorde Faunterey!
Por seu lado, o pequeno lorde estava deslumbrado! Sorria e fazia gesto de

saudações para todos os lados, muito corado de prazer.

- Eles gostam de mim, Querida? - perguntou à mãe. - É por isso que estão

assim contentes? Oh! Querida como eu me sinto feliz!

- Agora, Lorde Fauntleroy - disse o conde, pousando a mão no ombro do

neto -, é preciso dirigir-lhes algumas palavras a agradecer!

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Fauntleroy ergueu os olhos para o avô e depois para a mãe.
- Acham que é preciso? - perguntou, levemente intimidado.
Mas a mãe sorriu-lhe, Viviana também, e as duas inclinaram a cabeça.

Então, Cedric deu um passo para a frente e falou o mais alto que pode. A sua
voz infantil ressoou, vibrante e clara, no silêncio que se estabeleceu
repentinamente, enquanto todos os olhos se fixavam nele.

- Agradeço-lhes de todo o meu coração. Espero que tenham passado

alegremente o dia do meu aniversário. Por mim, tenho-me sentido muito
satisfeito. A princípio julguei que não me agradasse ser conde, mas agora estou
muito contente. procurarei ser tão bom como o meu avô.

E, entre bravos e palmas, o pequeno Lorde Fauntleroy recuou com um

suspiro de alívio, deu a mão ao avô e encostou-se a ele, sorrindo.

Esta história deveria terminar aqui se não houvesse ainda uma curiosa

informação para dar aos leitores. Essa informação diz respeito a Hobbes. A vida
do castelo e a convivência com fidalgos encantaram de tal forma o honrado
homem, que trespassou a mercearia que tinha em Nova Iorque e instalou-se na
aldeia de Dorincourt, onde abriu uma loja, que prosperou admiravelmente,
ajudada pela clientela do castelo.

Embora nunca convivesse intimamente com o conde, o bom Hobbes

tornou- se um defensor da fidalguia, ainda mais ferrenho que o próprio conde
de Dorincourt. Lia todas as manhãs as notícias da corte e seguia, assiduamente,
os debates da Câmara dos Lordes.

Alguns anos mais tarde, quando Dick terminou os seus estudos e resolveu

ir à Califórnia visitar o irmão, perguntou a Hobbes se não desejava voltar aos
Estados Unidos da América; o merceeiro abanou a cabeça e respondeu:

- Para lá viver, não. Prefiro ficar aqui. como direi?. a velar por ele. A

América é um bom país para os novos e os audaciosos. Mas nem tudo, lá, é
perfeito... Não sabem o que é um conde... nem têm antepassados.


FIM


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