Microsoft Word Francisco Colo Renato

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OS CONQUISTADORES

DA ANTÁRTIDA

FRANCISCO COLOANE



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Tradução de Jacqueline Medeiros

Digitalização e Arranjo: Agostinho Costa

1999

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Aqui, segundo parece, não há nada que chame a atenção - disse o

sargento Ulloa ao ver o desencanto dos seus companheiros. - Mas ainda

ninguém sabe o que se esconde por detrás e por debaixo destas terras;

assim como nem o próprio Colombo sabia o mundo maravilhoso que

descobria ao chegar às Antilhas. Além disso, é um enorme prazer ver

terras desconhecidas. Quanto mais distantes e afastadas da civilização

estiverem, melhor; e quando se sabe que se é o primeiro, ou um dos

primeiros, a ali pôr o pé, uma alegria especial compensa todos os

sacrifícios.

Alguém disse que por vezes a beleza não está nas coisas mas sim

nos olhos daquele que as vê.

Deixando as terras a bombordo, o Agamaca seguiu navegando

ao largo da costa. [...]

A noite crepuscular começava a cair e a arrastar-se ao longo dos

contornos, e os limites do mar e da praia tornavam-se imprecisos. Ao

longe, a obscura fileira de animais confundia-se também com as

sombras do anoitecer.

O Agamaca tentou por três vezes atravessar a zona de algas e não

conseguiu.




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ÍNDICE

CAPÍTULO 1.

S.O.S

CAPÍTULO 2.

O naufrágio do Flora

CAPÍTULO 3.

A ABORDAGEM da Gaviota

CAPÍTULO 4.

A caverna do desterrado

CAPÍTULO 5.

O pinguim fantasma

CAPÍTULO 6.

Em memória de um Presidente

CAPÍTULO 7.

As baleias azuis

CAPÍTULO 8.

A angustura do abismo

CAPÍTULO 9.

O vale misterioso

CAPÍTULO 10.

O fim do Agamaca

CAPÍTULO 11.

Dois fantasmas que regressam

CAPÍTULO 12

Últimos rastos

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CAPÍTULO 1

S.O.S.

Os relâmpagos cruzavam os seus raios de luz sobre a casa da

estação de rádio de Walaia; enquanto, no seu interior, passeava

inquieto o sargento Ulloa diante da mesa de transmissões,junto à qual o

rádio-operador Alejandro Silva permanecia com os auscultadores na

cabeça numa atitude desesperada.

- Só isso? - perguntou o sargento.

- Só isso! - respondeu Silva, desenhando com o lápis azul, com

que

costumava

escrever

directamente

as

suas

recepções

radiotelegráficas, três grandes letras impressionantes sobre o papel:

S.O.S.

Um trovão ribombou como se bem longe se tivesse desmoronado

uma gigantesca pilha de mesas e, depois afastou-se, com um vaivém

sonoro, para outro lado distante.

- Ésse-ó-ésse! - repetiu o sargento Ulloa como se fosse um gemido

do trovão. - Ésse-ó-ésse! - repetiu como um eco o rádio-operador,

apertando os auscultadores sobre os ouvidos com uma expressão

preocupada, e acrescentou, voltando a pegar no lápis e escrevendo de

novo com nervosismo sobre as três letras já intensamente gravadas a

azul sobre o papel:

- Só isso! S.O.S.!

S.O.S., as três letras internacionais que significam Socorro para

todos os ouvidos do mundo, sem distinção de raças ou idiomas, foi a

única mensagem que conseguiu captar a estação de rádio de Walaia, no

meio da tormenta, quando, de súbito, um raio destroçou a antena,

interrompendo a angustiada comunicação.

A estação de rádio de Walaia, da Marinha do Chile, está situada

numa das paragens mais agrestes, solitárias e austrais do mundo: na

desembocadura da Angostura Murray, em frente ao cabo Horne.

Esta desembocadura, ou canal, é um verdadeiro corte curto e

profundo entre cordilheiras, que dá saída às águas do canal Beagle na

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direção do cabo Horne. Nessa região do fim do mundo, a natureza é

hostil e tempestuosa. As costas não possuem praias porque as

montanhas se precipitam a pique no mar; a vegetação está aí

representada pelos carvalhos de ramos horizontais e alguns pastos e

líquenes que trepam nas partes baixas, e também os arbustos

espinhosos que se erguem em amontoados, como se fossem a pele

gretada de colossais paquidermes.

Entre estas terras, na margem leste da Angostura Murray, e

aproveitando a suave superfície de uma enseada, fica a estação de rádio

de Walaia, uma bonita casa de dois pisos que contrasta estranhamente

com a solidão daquelas paragens.

O rádio-operador Alejandro Silva estava de guarda quando se

desencadeou a tormenta durante a qual o receptor começou a receber o

S.O.S. vindo de um barco que não conseguiu comunicar a sua posição

porque um raio destroçou uma das antenas, interrompendo a recepção.

- Um barco em perigo! Mas onde, em que sítio? - proferiu o

sargento Ulloa, um homem moreno, alto e escanzelado que quando

andava balouçava como o mastro de um navio.

- Apenas nos resta esperar! - disse Alejandro, pousando os

auscultadores,já inúteis, sobre a mesa de transmissões.

- O suboficial Poblete disse-me que dentro de uma hora poderia

estar tudo arranjado; está a trabalhar para resolver o problema com o

mecânico Frias e o rádio-operador Sagredo - disse ainda Ulloa.

- Vamos lá ver se não cai outro raio aqui!

- Sim; é perigoso manter a corrente elétrica com esta tempestade;

mas o nosso dever é tentar a todo o custo comunicar com o barco que

está a pedir auxílio - disse o sargento.

Os dois homens aproximaram-se das janelas da casa cujo teto era

inclinado como uma viseira, dando-lhe o aspecto de um posto de

observação elevado no meio das montanhas. De vez em quando um raio

de luz iluminava o seu interior e pouco depois um trovão começava a

troar de um lado ao outro. Lá fora, o horizonte, pesado, negro e

próximo, apenas era atravessado pelas riscas amarelas, encarnadas ou

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azuis dos relâmpagos ou pelo dilacerante brilho leitoso de algum raio

celeste que palpitava por instantes no espaço para depois cair

estrondosamente sobre a encosta de pedra de um monte. Parecia que as

enfurecidas forças atmosféricas se tinham concentrado naquele ponto

da terra a fim de a ferir e despedaçar!

- Esta tempestade elétrica é muito estranha - disse Ulloa.

- Há quatro anos que estou nesta estação e é a primeira vez que

isto acontece.

- O diário do posto apenas refere três tormentas em dez anos;

mas uma delas despedaçou um monte - respondeu Alejandro.

- Aqui termina a cordilheira dos Andes - continuou Ulloa - e

sempre achei que essa enorme montanha, que atravessa as Américas e

que termina precisamente aqui, deve produzir algum mal-estar

atmosférico pelo fato de a Terra rodar no espaço. É como se o globo

terrestre tivesse gerado uma costela, interrompendo a sua forma

redonda.

- E o Chile está sobre a borda dessa costela - disse Alejandro -, e

talvez seja por isso que sofreu tantos terremotos.

- Não sei se aquilo que digo poderá ser considerado de caráter

científico mas é a idéia que tenho - disse o sargento Ulloa, que, apesar

de ser um estudioso e uma pessoa culta, preferia opinar como um

camponês, com raciocínios simples e pessoais.

- Deve ser assim - respondeu Alejandro, que sempre achava sábia

e interessante a conversa do sargento, e continuou, regressando ao

tema que mais o preocupava. - E no cabo Horne deve ser ainda pior.

Quando era grumete no Baquedano passamos uma vez por ali, mas

assim que avistamos o seu nariz viramos para trás e fugimos a toda a

velocidade. Se calhar é dali que o navio em perigo está a pedir auxílio.

- De certeza que deve ser por aqueles lados - respondeu Ulloa. - O

Cabo Horne é o pior lugar que existe na Terra. Os barcos desaparecem

ali sem deixar rasto. Há dois anos, o navio-escola da armada alemã

Almirante Karlfanger desapareceu com os seus trezentos cadetes a

bordo sem que se tenha encontrado um único destroço. Foi engolido

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pelo mistério. Uma tarde comunicou a sua posição pela última vez,

dizendo ainda que navegava sem novidades, e depois nunca se soube

mais nada dele até ao dia de hoje.

Nesse instante um raio serpenteou por entre o espaço negro e

espesso até junto da janela: tão perto que Alejandro recuou

instintivamente, fechando os olhos, e o sargento cerrou os lábios

contendo o medo; mas o tortuoso raio de luz lançou-se contra o solo a

uns metros do edifício com um som agudo semelhante àquele produzido

pela água quando cai sobre gordura a ferver.

- Este sim é que podia ter sido grave! - exclamou Alejandro.

- Foi como se tivessem pisado a cauda do Diabo! - disse

sorridente o sargento.

- Está finalmente tudo resolvido! - gritou enquanto subia a escada

com grandes passadas, o pequeno e ágil suboficial Poblete.

- Tudo pronto? - inquiriu Ulloa.

- Tudo pronto, os dínamos já começaram a funcionar! -

respondeu Poblete.

A corrente elétrica foi ligada, isso apesar do perigo que

representava a tormenta, e o rádio-operador Alejandro Silva colocou de

novo os auscultadores, e ao mesmo tempo começou a manipular o

transmissor, mas o espaço estava mudo e surdo.

De repente uns prolongados tüique..., tüique..., tüique..., como o

canto de alguns pequenos pássaros que habitam nos lugares sombrios

dos bosques, reproduzidos pelo receptor de Alejandro.

A estranha chamada foi-se tornando cada vez mais fraca. O rádio-

operador inclinou a cabeça para a frente, segurando no fonógrafo com

as duas mãos, num gesto que mostrava que tentava aguçar ao máximo

a sua sensibilidade, todo o seu ser, para poder captar o entrecortado

ruído.

O sargento Ulloa, apoiado na mesa de transmissões, também

se inclinava, ansioso por conhecer o mistério que se aproximava e

afastava dos ouvidos do rádio-operador até ao infinito do espaço.

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De súbito, um gesto de chamada de atenção feito por Alejandro

indicou que recebia novamente sinais. Os dois homens mantiveram-se

em suspenso por uns instantes, sustendo a respiração. De imediato, o

rádio-operador agitou-se nervosamente na cadeira, como se tivesse sido

atacado por uma força estranha. O sargento inclinou-se sobre a mesa

como se quisesse arrancar a mensagem que chegava aos ouvidos de

Alejandro, e este, balbuciando as palavras e gravando-as ele mesmo no

formulário, como se receasse que estas pudessem escapar, começou a

traduzir diretamente do morse: “S.O.S., S.O.S., S.O.S., embarcação

Flora desmastrada frente cabo Horne ponto Temporal força doze ponto

Mantemo-nos flutuar graças óleo fervido à volta ponto O Capitão”.

- É o navio alemão Flora, de quatro mastros; o temporal deve tê-

los quebrado. Retransmita a mensagem para o Gabinete Marítimo de

Punta Arenas - ordenou o sargento Ulloa.

A mensagem foi retransmitida. Mais ou menos uma hora

mais tarde, a estação de rádio de Walaia recebia o seguinte despacho do

Gabinete Marítimo de Punta Arenas: “Vapor Antártico zarpou a toda a

velocidade salvamento barco Flora”; mas a estação de rádio de Walaia,

apesar de todos os esforços que fez, não conseguiu saber se a

mensagem enviada ao Flora tinha sido por este escutada porque ao seu

emocionante pedido de auxílio seguiu-se o mais profundo dos silêncios.



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CAPÍTULO 2

O Naufrágio do Flora

- Nós cumprimos o nosso dever - disse o suboficial Poblete, a cujo

cargo estava todo o pessoal de Walaia, e continuou: - Agora cabe ao

Antártico cumprir o seu.

- Talvez o Flora se tenha mantido a flutuar no meio do óleo, isso

se tinham o suficiente para resistir a um temporal no cabo - disse Ulloa.

- O óleo tem muita influência? - perguntou o rádio-operador.

- Sim - respondeu Poblete -, o óleo e o petróleo bruto lançados à

volta de um barco durante um temporal, amortecem muito a força das

ondas.

Quase todo o pessoal descansava nos cadeirões da sala de leitura

da casa de Walaia, a qual possuía todo o conforto moderno para poder

suportar a vida naquela Angostura que parecia o último ponto de

desaguamento do mundo. Mesmo dois dias depois da tormenta, o

tempo continuava bastante picado sobre o mar; ninguém sabia como é

que este podia estar junto ao cabo Horne e se o Antártico teria ou não

chegado a tempo de salvar o Flora, pensamentos estes que muito

preocupavam os homens de Walaia.

Após um longo silêncio, o sargento Ulloa disse com uma

certa parcimónia:

- Bem, vejamos, meu suboficial de posto, no final deste

mês espero que me conceda a licença dos dois meses que correspondem

aos meus quatro anos de serviço em Walaia, licença essa que já foi

concedida pelo Alto Comando!

- Vai até Punta Arenas, Valparaíso ou Santiago? - inquiriu o

suboficial Poblete.

- Não; vou até à Antárctida!

- Antárctida? - repetiu com grande assombro o suboficial, e

continuou: - Mas isso é uma lenda; nunca ninguém conseguiu chegar à

Antárctida!

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- E se lá chegaram não voltaram! - disse o cabo mecânico Frias

que era um pouco irónico.

- Não é uma lenda - respondeu calmamente o sargento Ulloa -

, visto que há um ano Dom Pedro Aguirre Cerda, o nosso presidente,

lançou um decreto no qual assinala a Antárctida como o limite sul do

Chile, baseando-se no facto de há muitos anos atrás o Governo do

nosso país ter feito uma concessão nessas terras a uma empresa

baleeira e atendendo também a muitas outras razões jurídicas e

geográficas.

- Isso quer dizer que as suas férias de Verão correspondentes aos

quatro anos irá passá-las na Antárctida, como se não se tivesse

refrescado o suficiente em Walaia, meu sargento - acrescentou o rádio-

operador.

Silva parecia distante e à margem da conversa; mas, na realidade,

era aquele que mais profundamente comovido estava com as palavras

de Ulloa, por quem sentia uma grande admiração e respeito. Alto,

escanzelado, maciço, calmo, era uma estranha personagem no meio do

pessoal de Walaia. Passava a maior parte do seu tempo livre a ler e a

estudar ou então ensaiando com um receptor radiotelefónico, invenção

sua.

Os seus pensamentos surpreendiam pela clareza e simplicidade e

também pela sua raridade, o que por vezes fazia que parecesse que

estava um pouco fora da realidade quotidiana.

- Quero conhecer todo o meu país e, quando os meus

ossos estiverem fartos do frio, pedirei a transferência para os voltar a

aquecer nesse paraíso que nós, os radiotelegrafistas da Marinha do

Chile, temos na Quinta Normal de Santiago - disse como se respondesse

àquilo que tinha dito o rádio-operador.

- E assim já não dirá: conheço o meu país desde Arica até

ao estreito de Magalhães ou ao cabo Horne, mas sim desde Arica até à

Antárctida ou ao pólo Sul - disse Poblete.

- Exactamente - replicou Ulloa -, creio que o Chile é como um

continente; embora isso possa parecer um pouco estranho, para mim é

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um continente. Vejamos: a norte chega até à zona subtropical; a sul

enterra os pés nas neves do pólo; a leste embrenha-se no estreito de

Magalhães, com as ilhas Lennox, Picton e Nueva até ao Atlântico, e a

oeste temos a nossa ilha de Páscoa, essa mão estendida em plena

Oceania.

Ficaram todos estarrecidos, sem saber o que dizer, perante

a exactidão da descrição do sargento; mas o cabo Frias reagiu, como

sempre, rápido e trocista, juntando à descrição:

- E por cima chegamos até à ponta do Tacora.

Todos os companheiros sorriram perante aquela saída, todos

menos o sargento Ulloa, que ergueu o rosto que parecia o de um orador,

e com um gesto ambíguo, mais como forma de inspiração do que como

uma réplica ao brincalhão, proferiu:

- Não! Por cima chegamos mais além do que o cume do vulcão

Tacora; por cima limita a Cruz do Sul, em cuja luz pousam todas as

noites os olhos dos chilenos.

O tom com que Ulloa proferiu aquelas palavras inspirou respeito,

e os ouvintes mantiveram o silêncio, até que o sub-oficial Poblete

perguntou:

- E como pensa ir até lá?

- Na escuna de Geban, que será arrendada por Manuel, o

Chefe Branco dos yaganes que vivem no Paraíso das Lontras -

respondeu Ulloa.

- E por que será que Manuel não me contou nada? -

perguntou vivamente Alejandro Silva.

- Queríamos manter em segredo até ao dia da partida. Para

o Chefe Branco, tal como para mim, é apenas uma questão de

curiosidade: conhecer a misteriosa Antárctida; mas Geban, que é um

ambicioso, não nos quer arrendar a escuna sem certas condições de

base: que lhe apresentemos amostras dos metais que possam existir

naquelas paragens.

- E o Agamaca? - perguntou Alejandro, referindo-se ao veleiro do

seu irmão Manuel, o Chefe Branco dos índios yaganes.

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- Com o Agamaca seria um risco atravessar a zona mais

tempestuosa do mundo - respondeu o sargento Ulloa e acrescentou: -

Entre o cabo Horne e as costas da Antárctida está o mar de Drake, o

mais desolado que existe. A luta dos dois oceanos é titânica e as ilhas

Diego Ramírez não são mais do que uns quantos rochedos inóspitos que

se erguem em metade desse abismo de água.

Um intenso uivo proveniente do mar sobressaltou de imediato o

grupo de homens.

- O Antárctico! - disse o suboficial Poblete, levantando-se para ir

espreitar à janela.

O apito do barco prolongou-se e o seu eco foi-se perdendo e

transformando como o grito de um monstro ferido nas profundidades

desses desfiladeiros e cordilheiras.

Por entre as paredes de rocha surgiu de imediato, como

um grande cetáceo negro a deslizar sobre a superfície do mar, o

Antárctico, com as suas treze milhas de viagem. Aproximou-se da ilha,

situada como um cone gigantesco em frente à estação de rádio, e entrou

nas águas de Walaia, aproximando-se da costa.

O pessoal da estação, que tinha saído para a rua,

presenciou então um emocionante e curioso espectáculo: uma

tripulação, que não era a do barco, estava formada sobre a ponte,

à maneira dos navios de guerra quando estes são revistados, e no

momento em que as correntes lançavam a âncora no mar, três ”hurras!”

e um “Viva o Chile!” troaram no tranquilo ambiente da baía.

- É a tripulação do Flora, foram salvos! - disse um deles quando

após os hurras o grupo em formação pegou nos gorros atirando-os três

vezes ao ar, em saudação.

O barco apenas se deteve em Walaia por algumas horas.

Aproveitando essa estada, o capitão convidou o pessoal

da estação de rádio e a tripulação do Antárctico para um coctel em

honra dos marinheiros que tinham sido salvos: estes eram quase na

sua totalidade alemães. Havia entre eles um piloto sueco, um

marinheiro grego, e o contramestre era das ilhas de Chiloé.

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A celebração decorreu no salão do barco. Num aparte, o

contramestre narrou de forma breve os factos a um grupo de

compatriotas seus.

O navio Flora tinha partido há mês e meio da costa ocidental da

África do Sul, dirigindo-se ao norte do Chile, onde todos os anos

recolhia um carregamento de salitre para as plantações de um

fazendeiro sul-africano. Era um navio um pouco velho que o fazendeiro

contratava especialmente com este objectivo em Cabo, onde se

encontrava fundeado como pontão durante a maior parte do ano.

Tinha atravessado umas vinte vezes o cabo Horne; em cada

uma dessas vezes, o cabo Teso deixava as suas marcas nas velas

rasgadas, mastros quebrados, um ou dois marinheiros feridos, mortos

ou arrastados pelas ondas desse tempestuoso mar. A viagem desde

África até à costa do Chile era a pior. O oceano Atlântico era sulcado

por uma grande lagoa de mares tranquilos e ventos favoráveis; mas já

nas cercanias do cabo Horne, o Atlântico, manso, terminava e

começavam a reinar as fúrias do Pacífico, traidor e enganador, tal como

o seu próprio nome, que seguramente lhe foi atribuído num dia em que

a calma tinha sucedido à tempestade.

O vento que reina constantemente nesse imenso mar, que possui

três mil léguas de largura só de Valparaíso até à Austrália, é o do oeste,

e os veleiros provenientes do Atlântico são obrigados a andar à bolina

durante dias, semanas e até meses, a fim de o atravessarem no seu

extremo sul, onde o vento sopra de frente. Há vezes em que as milhas

navegadas durante semanas de penúria são roubadas ao navegante

numa única noite de tempestade em que o Pacífico mergulha o

barco, com um único sopro, para além do cabo, de volta ao Atlântico.

Todo este demorado batalhar se transforma numa única

corrida vertiginosa quando os barcos estão de regresso. Percorrem a

costa chilena de uma só vez e dobram o cabo para leste, com o vento de

popa e as velas todas desfraldadas.

O Flora esteve duas semanas à bolina para conseguir passar do

Atlântico para o Pacífico. Não cessava de voltear dia e noite, em grandes

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ziguezagues que pareciam levá-lo de um extremo ao outro desse mundo,

até que, numa das suas reviravoltas, foi apanhado pela tempestade que

lhe quebrou os mastros e o desmantelou totalmente.

Só então pediu auxílio. O capitão fê-lo mais por uma questão de

procedimento do que pela esperança de ser salvo, pois o cabo Horne

dista três ou quatro dias da rota mais próxima sulcada por barcos, o

estreito de Magalhães.

No entanto, a tripulação lutou por esse barco como um náufrago

que se agarra com unhas e dentes a uma frágil tábua no meio do mar.

Alguns dos mastros foram cortados pela base, caindo sobre a

coberta com velame e tudo; outros, de pinho, rasgaram como se fossem

talos fibrosos, e os cabos e as velas formaram um tal emaranhado no

meio da tempestade que chegou um momento em que os homens

cruzaram os braços, resignados à espera da morte; mas o capitão, que

era um lobo-do-mar, não quis desistir assim sem mais nem menos e

ordenou que despejassem os barris de óleo à volta do barco, óleo esse

que, em parte, deteve o ímpeto das vagas.

- Dois dias e uma noite esteve o Flora, como um amontoado de

destroços, flutuando no meio daquela terrível imensidão.

Depois apareceu o Antárctico e essa parte já não nos compete a

nós contar, mas sim a vocês - terminou o contramestre, dirigindo-se ao

terceiro piloto do Antárctico, que escutava no meio do grupo.

- A nossa história começou quando navegávamos por alturas do

canal Magdalena - continuou o terceiro piloto.

Ali, o Antárctico recebeu ordens para se dirigir a toda a velocidade

para o salvamento do Flora.

Quando estávamos em Brecknock, a caminho do cabo Horne, a

tempestade estava no seu auge. O barco preparou-se para manobrar a

cem por cento e começou a sua luta contra o mar, em direcção ao ponto

onde o barco tinha comunicado a sua última posição.

Mais de metade da tripulação enjoou pela primeira vez na sua

vida; de tal forma estava mau aquele mar.

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Na zona das máquinas foi necessário substituir os fogueiros

acidentados por dois homens da coberta. Em mais de uma ocasião, o

navio esteve prestes a afundar ao descer pela vertente de uma

montanha de água, e apenas as suas reconhecidas condições

marinheiras, utilizadas com a perícia do capitão Barria, lhe permitiram

chegar ao seu destino. Ao longe, no meio da bruma, o Flora subia e

descia nas lombas do mar, esgotado, semidestruído pela tempestade.

O capitão chamou a tripulação.

- São necessários doze voluntários para tripular os botes salva-

vidas que terão de resgatar os náufragos! - disse, olhando para os

tripulantes.

Todos deram um passo em frente; então houve necessidade de

tirar à sorte os que deviam ficar.

Os botes começaram a descer com os seus cinco remadores e

timoneiro, no preciso momento em que a crista de uma onda cresceu

quase ao ponto de tocar nas roldanas que sustinham as embarcações.

Todos dizem que nunca presenciaram semelhante espectáculo.

Os dois botes, com os seus doze valentes homens a bordo, subiam

e desciam entre aquelas montanhas de água como duas cascas de noz.

Os remadores tinham-se amarrado aos bancos e o patrão ao leme, isso

a fim de perecerem ou sobreviverem com a sua embarcação.

Firmando os pés nos respectivos bancos da frente, remavam com

todas as suas forças, enquanto na popa, a cada remadela, o patrão

levantava uma mão com um gesto enérgico e exclamava:

“Vamos, rapazes!”, o que dava nova energia aos cinco remadores.

De vez em quando perdiam-se durante bastante tempo entre duas

paredes de água; depois, sustinham a respiração, mas os botes

voltavam a aparecer junto à base de uma dessas ondas, depois

transpunham o cume, uma vez mais, vitoriosos naquele movediço

mundo de água. Ali no cume, por breves instantes, os remadores,

segurando vigorosamente nos remos, pareciam os donos do mundo;

mas apenas por uns segundos, porque voltavam a cair, como uma

planta devorada pela vertigem do abismo.

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Entre onda que sobe e onda que desce, quando se aproximaram

do costado, foram resgatando um a um os tripulantes do Flora.

Cada bote efectuou duas viagens desde o barco naufragado até ao

Antárctico, até que ficaram todos a salvo, menos um: o capitão.

Esse foi o último a abandonar o barco. Quando se preparava para

saltar para o bote, no momento em que uma onda subia, parou, fez um

gesto ambíguo com a mão, um gesto que podia ser uma ordem de

partida para o bote ou uma saudação de despedida, deu meia volta e

desapareceu por uma escotilha da popa. Os marinheiros acharam que

ele tinha ido buscar o seu cão, um cão-polícia que era a mascote do

barco, mas ele nunca mais voltou.

Duas enormes vagas inclinaram o Flora a estibordo, depois outras

e outras foram-no afundando, até que o fizeram desaparecer como algo

insignificante no fundo do oceano.

Não existe marinheiro que não ame o seu barco. A bordo, os

tripulantes do Flora começaram a chorar como crianças quando o viram

afundar-se. O barco tinha lutado valentemente contra o mar; este

último tinha vencido; mas, já quase morta, a embarcação manteve-se a

flutuar, como uma tábua inerte, até que todos os seus homens

estivessem a salvo, menos um, que, para salvar o seu cão ou para

cumprir uma velha tradição do mar, se afundou com ele.

- Nunca me esquecerei - concluiu o piloto -, da impressionante

imagem daquele barco desmantelado no meio da tempestade. Ainda me

parece que estou a vê-lo, destroçado, debatendo-se no meio das ondas,

envolto pela bruma produzida pelas vagas a chocarem contra o seu

casco. Parecia um ser, de braços amputados, com os cotos estilhaçados,

mantendo as forças até ao derradeiro instante em que poderia ser

útil àquelas almas!

A meio da tarde, o Antárctico levantou âncora e abandonou

Walaia em direcção a Punta Arenas, com a sua preciosa carga de vidas

resgatadas ao mar.

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CAPÍTULO 3

A abordagem da gaivota

O Agamaca avançava a mais de sete nós por hora, volteando entre

os altos paredões do canal Beagle em busca da Angostura Murray.

De pé sobre a coberta da popa e segurando a roda do leme, o

índio yagane Félix dirigia as operações; à bujarrona estava Alejandro

Silva, e com os cotovelos pousados sobre a amurada do convés, Manuel,

o Chefe Branco, vigiava o mar.

O Agamaca era um veleiro de mais ou menos doze metros de

comprimento, com uma vela grande, bujarrona e traquete; além disso,

possuía um motor auxiliar a parafina. Não era um veleiro de linhas

vulgares porque o Chefe Branco o tinha retirado do interior do

transatlântico Monte Cervantes, que, encalhado entre umas rochas do

canal Beagle, tinha adornado e quase totalmente afundado. Como perito

marinheiro que era, a partir de um gigantesco barco salva-vidas, com

telhado, construído à prova de grandes temporais, tinha criado uma

embarcação de coberta corrida que, apesar de não possuir a agilidade

de manobra de um bom navio, podia resistir e rodar como uma bóia no

meio das grandes tempestades.

Era o Agamaca, digno do nome que usava: o da lendária lagoa na

qual, após um dilúvio, se salvaram três canoas de yaganes que voltaram

a povoar essa parte da terra que confina com a Antárctida.

O forte vento do oeste soprava contra a rota do Agamaca, pelo que

este, a cada reviravolta, apesar da velocidade com que navegava, pouco

conseguia avançar.

Essa lentidão começava a exasperar o Chefe Branco, que

mantinha o olhar fixo sobre as duas ilhas Picapedreros, localizadas à

entrada da Angostura Murray, como se não quisesse perder o momento

em que por entre aquelas rochosas ilhas surgisse algo que esperava

com ansiedade.

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O vento despenteava a cabeleira das ondas e o mar parecia um

jardim selvático de flores brancas e verdes, agitado sob o radiante sol do

meio da tarde de Primavera.

- Aproar ao vento! - gritou de repente da amurada o Chefe Branco

enquanto fixava os olhos num ponto distante.

O índio Félix abanou o corpo, deu um golpe de leme, o Agamaca

inclinou-se mergulhando quase todo a bombordo, como se fosse dar

uma volta, e o pequeno veleiro ficou parado, com as velas flutuando

frente ao vento.

Nesse mesmo instante, uma bonita escuna branca surgia de velas

desfraldadas por detrás das ilhas Picapedreros.

O Chefe Branco, um homem de estatura regular, corpulento,

de barba castanha eriçada, começou a observar cautelosamente a

manobra que a escuna pensava efectuar. Esta estava muito carregada e

o seu movimento era um pouco lento, apesar de estar a favor do vento

que a fazia deslizar suavemente.

A escuna saía das ilhas Picapedreros em direcção ao presídio de

Ushuaia, ou seja, ao encontro do navio que vinha daquela direcção.

Pouco depois, aperceberam-se de que alava as escotas e mudava de

rumo, tentando evitar o navio.

- A estibordo! - ordenou o Chefe Branco, e o Agamaca inclinou-se

como um fiel animal na direcção determinada por Félix. Corria mais ou

menos à mesma velocidade que a escuna e, embora esta pudesse ter

alguma vantagem, a posição mais distante favorecia também o

Agamaca. A escuna, que ia na direcção em que vinha o veleiro, ao

efectuar aquelas manobras demonstrava claramente que pretendia

evitá-lo, e este, pelo contrário, aproximar-se; tudo dependia, pois,

da habilidade com que cada tripulação iria manejar o respectivo barco.

- Dá-me o leme e fica com a escota! - disse o Chefe Branco,

pegando no leme e afastando a proa da direcção do ângulo possível em

que as duas embarcações se poderiam encontrar.

A escuna avançava com todo o seu velame aberto, mas sem

grande inclinação, devido ao lastro e a um determinado e estranho

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cuidado que atribuía à direcção das suas velas. Em contrapartida, o

veleiro avançava audaciosamente encostado às ondas.

- Já sei por que razão os velhacos não se atrevem a alar mais as

escotas! - disse o Chefe Branco dirigindo-se de forma significativa a

Félis. Este respondeu através de um enigmático e silencioso sorriso.

Alejandro, sem conseguir conter a sua curiosidade perante a

estranha forma de manobrar da escuna, perguntou:

- Por que razão não alam mais as escotas?

- Porque levam animais em pé, carga essa muito perigosa que

pode voltar a embarcação se esta se inclinar muito - respondeu o Chefe

Branco.

- Os animais de Cauquenes - disse o índio.

- Sim, do pobre Cauquenes: roubados pelo pirata do Geban -

acrescentou o Chefe Branco.

O mar, em flor, parecia estar a gostar da regata que decorria à

sua superfície, e o Sol de a contemplar e iluminar as velas inchadas

pelo vento.

À medida que o ângulo se ia fechando, a perseguição tornava-se

mais interessante; até que, de repente, a escuna, em vez de virar pela

frente, deu mais velame, virou a sotavento e continuou a sua corrida de

vento em popa e a toda a vela.

A princípio, o Chefe Branco ficou surpreendido com aquela

inesperada manobra da escuna que, aproveitando ao máximo o seu

velame, pretendia ultrapassar o veleiro; mas, assim que a entendeu,

virou o barco e dirigiu-se para ela para lhe cortar o caminho.

As duas embarcações corriam agora ao encontro uma da

outra, formando um ângulo recto. Para ambas, as intenções da outra

eram desconhecidas e tão emocionante era a regata entre o veleiro e a

escuna que ainda com mais emoção era esperado o vértice fatal daquele

ângulo recto que as duas embarcações traçavam sobre a superfície do

mar.

Via-se nitidamente que a escuna já não tentava evitar o veleiro e

navegava a todo o velame, disposta a levar pela frente quem se

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interpusesse no seu caminho. Em caso de choque entre as duas

embarcações, não havia a menor dúvida de que a única que se iria

afundar seria o Agamaca, cujo tabuado sobreposto seria incapaz de

resistir à pancada da pesada escuna.

Avançavam cada vez mais e melhor, sem que nenhum deles

desse sinais de temor perante a colisão, prestes a produzir-se.

Já escutavam mutuamente o fragor do vento nas velas e no cordame e o

rumor da água ao ser rasgada pelas proas, quando a amura da escuna

avançou, soberba, imponente; a do veleiro, delicada, veloz. Em ambas

apareceram destacados a letras negras os respectivos nomes: Agamaca,

Gaviota. O choque estava prestes a acontecer quando o Chefe Branco

largou as escotas e deu um vigoroso golpe de leme. O Agamaca deu

meia volta. A escuna chegou a roçá-lo com o gurupés, mas, nesse

mesmo instante, o índio Félix pegou na ponta de uma amarra, agarrou

num cabo de uma cavilha de ferro e o Chefe Branco, para ficar ainda

mais seguro, agarrou-se ao costado da Gaviota com um gancho grande.

As duas embarcações continuaram a navegar lado a lado.

- Que se passa, amigo? - disse Geban, um homem de rosto

quadrado, avermelhado e desagradável, aproximando-se da amurada.

- O que é que se passa? - respondeu o Chefe Branco -, Consigo é

que se deve passar algo para querer evitar encontrar-se comigo!

- Cada um segue o seu caminho, amigo, e eu aquele que quero!

- Sim; mas a última vez que nos vimos você comprometeu-se a

tratar comigo do arrendamento da Gaviota para a expedição a

Antárctida com o sargento Ulloa!

- Sim! E depois? - respondeu Geban, desafiador.

- É por isso que venho ao seu encontro - disse o Chefe Branco,

não com menos firmeza.

- Larga esse cabo! - ordenou Geban a Félix; mas este, imutável,

agarrou o cabo ainda com mais força.

- Corta o cabo! - voltou a ordenar Geban, desta vez a um dos seus

homens.

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Mas nesse mesmo instante o Chefe Branco trepou de um salto

pela amurada da escuna e ficou parado frente a Geban. Ao saltar, por

precaução, levou a mão atrás das costas e agarrou na sua faca de mato,

gesto que não passou desapercebido ao pirata.

- Não mande cortar o cabo, Geban - disse o Chefe Branco. - Tenho

de falar consigo.

Ao ver a atitude decidida do Chefe Branco, Geban fez um

movimento de cabeça para o marinheiro, que deixou sem efeito aquela

ordem quando, de navalha na mão, já se dispunha a cortar o pedaço de

cabo que habilidosamente tinha conseguido agarrar o yagane.

- Que é que você quer de mim, homem? - perguntou

Geban, aborrecido.

- Isto! - proferiu o Chefe Branco enquanto, com a rapidez de um

raio, com uma mão levantou a ponta de uma lona tapa-cargas e

descobriu uma fileira de chifres de bovinos recém-arrancados e carne

salgada de animais recentemente mortos.

No momento em que executava aquele movimento, Geban levou

a mão atrás das costas e tentou sacar o revólver; mas o Chefe Branco,

se tinha sido rápido a levantar o tapa-cargas, mais veloz foi ainda a

desembainhar a sua faca com a mão direita e colocar a ponta da mesma

na barriga do seu adversário.

- Quieto, Geban! - disse ele. - Se te mexes tiro-te as tripas cá para

fora!

- Por que te estás tu a meter nos meus assuntos? -

perguntou Geban, mais calmo.

- Não me estou a meter nos teus assuntos, Geban; estou a meter-

me nos assuntos de Cauquenes, que não tem quem o defenda das tuas

garras.

- Queres ver o que levo na adega? - sorriu com ironia ao ver-se

descoberto.

- Não! - respondeu o Chefe Branco. - Já sei o que tens lá; pela

maneira de navegar sabia que eram animais vivos!

E acrescentou:

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- Vim confirmar os factos, não bisbilliotar. E o yagane Félix e o

rádio-operador também são testemunhas porque estão neste momento

a ver aquilo que roubaste.

- Não é um roubo! - replicou Geban, indignado.

- É o quê?

- São baguales (1) da península Dumas. Estes animais não têm

dono.

(1) Baguales: animais selvagens. (N. do A.)

- Têm dono, sim, são de Cauquenes. Esse pobre homem a

quem exploraste durante a maior parte da sua vida sem lhe pagares um

centavo; primeiro enganaste-o e agora roubas-lhe os animais! Mas eu

vou contar isto à justiça e receberás aquilo que mereces!

- A justiça está muito longe, em Punta Arenas! - disse Geban,

rindo.

- Não te esqueças de que também existe uma justiça muito

próxima, a das próprias mãos, Geban!respondeu com ar sentencioso o

Chefe Branco enquanto abandonava a coberta da escuna com uma

certa cautela e de um salto passava para o veleiro.

- Isso ainda está para se ver! - proferiu Geban, com ar trocista;

mas este de imediato mudou, como se de repente tivesse sido assaltado

por um estranho pensamento. - Escuta! - disse, aproximando-se

cordialmente da amurada. - Já não te interessa a viagem à Antárctida?

- Sim. Por quê? - perguntou o Chefe Branco.

- Porque te empresto a escuna e tudo aquilo que queiras.

- Não, obrigado! - disse o Chefe Branco e, virando-se para o

yagane: - Larga o cabo, Félix.

O Agamaca afastou-se, deu meia volta e começou de novo

a voltear sobre o jardim de ondas e espuma, enquanto a Gaviota, a toda

a vela, corria pesadamente, como aquelas aves de rapina, brancas e

enganadoras, após terem devorado, até se fartarem, algumas das suas

pequenas vítimas.

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CAPÍTULO 4

A caverna do desterrado

O Agamaca escalou no porto Navarino, pequena feitoria na ilha

chilena com o mesmo nome, onde residem o subdelegado marítimo que

é a autoridade máxima em toda aquela região austral, um casal de

carabineiros e um colono cuja casa faz as vezes de hospedaria quando

alguém consegue chegar àquelas paragens desoladas. No total são três

ou quatro casas, como se fossem objectos estranhos refugiados no

fundo de uma baía pitoresca em cujas traseiras se ergue o alto paredão

de rocha que constitui a ilha e, à sua frente, umas bonitas ilhotas com

vegetação que lhe conferem um aspecto edénico e que contrasta com a

ferocidade do resto da região.

- É muito pouco aquilo que posso fazer! - disse-lhe o subdelegado

marítimo quando o Chefe Branco o informou de que Geban estava a

roubar animais da península Dumas. Animais esses que pertenciam ao

velho Juan Carrasco, apelidado de Cauquenes pelo facto de estar

sempre a falar dessa cidade do centro do Chile de onde era oriundo.

- Geban explorou Cauquenes durante quarenta anos sem lhe

pagar pelo seu trabalho de tratador dos animais - explicou o Chefe

Branco. - Depois vendeu-lhe os animais, mudou de residência para

Ushuaia, para uma das casas desse presídio, e enganou-o dizendo-lhe

que lhe deixava uma parte dos animais.

Agora, a escuna de Geban, de tempos a tempos, passa ao largo

e de noite frente a Navarino, dirige-se à zona posterior da península

Dumas, os homens dele cercam os animais, os que não conseguem

laçar caçam-nos à bala e embarcam-nos rumo a Ushuaia. E o velho

Cauquenes já quase que não consegue sair da sua cabana com a sua

índia.

- O que dificulta qualquer acção - explicou o subdelegado - é que

Geban é argentino e reside na Argentina.

- Também é chileno, senhor...

- Como?

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- Sim; ele nacionalizou-se tanto no Chile como na Argentina.

Não se sabe de onde veio. Uns dizem que fugiu do presídio de

Ushuaia, que mudou de nome, comprando a Polícia.

Uma vez vi-o arriar a bandeira argentina cortando o cabo com

uma faca, isso é o mesmo que afirmar que não tem nem pátria nem

bandeira.

- Eu aconselharia que Carrasco tentasse resolver a bem o assunto

com ele.

- Isso não é possível, senhor.

- Então ele que faça a denúncia. Eu enviarei os antecedentes ao

Tribunal de Trabalho de Punta Arenas, que é a entidade que deve

intervir neste caso, e dali receberei instruções.

- Isso demorará meses, senhor, entretanto Geban continuará a

roubar os animais.

- Que podemos nós fazer? A justiça demora, mas chega sempre! -

sentenciou o subdelegado, um homem com um certo ar de cansaço ou

aborrecimento estampado no rosto coberto por uns espessos bigodes.

Ao entardecer, o Agamaca chegou a uma pequena enseada

formada no ponto de encontro da cordilheira com o mar; era um

pequeno recanto com um pedacinho de praia, de laje, com um degrau

comprido ao longo da margem das fundas águas, rodeado por um

espesso carvalhal. O lugar era um verdadeiro esconderijo de lontras,

acolhedor e bonito, no meio daquela natureza austera. Ao fundo, aberta

na rocha viva, encontrava-se a humilde cabana de Cauquenes; era uma

espécie de cova que se fundia pela pedra dentro e em cuja frente,

dissimulada, perdida no meio da folhagem, se erguia uma tenda em

pele de lobo estendida à maneira yagane, sobre arcos de vime

entrecruzados.

Um homem alto e encurvado pelos anos saiu para receber o Chefe

Branco, o rádio-operador e Félix. Todos se agacharam para entrar na

tenda; mas todos tiveram uma surpresa quando chegaram ao seu

interior: não era uma tenda, era uma enorme caverna, como uma casa,

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no fundo da qual ardia uma fogueira, à beira da qual uma mulher

yagane, já idosa, tecia umas meias de lã.

A caverna era um daqueles caprichos da Natureza criado perto da

colossal fenda que atravessava a montanha. Cauquenes, que media

mais de um metro e oitenta, andava livremente no seu interior e em

algumas partes podia esticar o braço para cima sem conseguir tocar no

tecto de pedra. A fenda da montanha tinha deixado blocos de granito

sobrepostos por entre os quais se abria um interstício como se fosse um

ponto de luz; junto a este estava situada a fogueira, pelo que o fumo

saía por ali como por uma chaminé natural. Cauquenes tinha

construído, com troncos de árvore trabalhados, um sistema de canais

que lhe permitia resguardar-se da entrada da chuva e da neve

e aproveitar a água doce guardando-a num tanque natural que parecia

uma verdadeira fonte lavrada na pedra. O chão era suavizado com uma

areia fina e branca e em tudo havia harmonia entre a mão do homem e

a da Natureza, ao ponto de não se distinguir onde terminava uma e

começava outra.

Tudo aquilo estava escondido no meio de carvalhos e até no

exterior da caverna trepavam carvalhos anões, murteiras e trepadeiras

ao longo das paredes.

De um ramo de vime que estava pendurado, junto ao local por

onde passava o fumo da fogueira, Cauquenes retirou um robalo

conservado em sal, que o fumo já começava a cozer, e colocou-o num

espeto sobre o assador para o oferecer aos seus hóspedes.

Assim que o saboroso peixe ficou cozido e depois de o comerem, o

Chefe Branco contou a Cauquenes o encontro com a escuna de Geban e

a sua conversa com o subdelegado marítimo de Navarino.

- Não há tempo a perder, amigo Cauquenes! - disse o Chefe

Branco. - O colono Gil, de Navarino, elaborou na sua máquina de

escrever um relato no qual se denunciam ao juiz todas as maldades que

Geban cometeu contra si. Por isso trouxe comigo o documento, para

que o assine e para que, quando estiver bom tempo, atravesse a

Angostura Murray com o seu escaler e, pelos atalhos que você tão bem

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conhece, atravesse o extremo da ilha e vá entregá-lo pessoalmente ao

senhor subdelegado, que o mandará na primeira embarcação que passe

pelo juiz de Punta Arenas.

Cauquenes levantou a cabeça, uma cabeça nobre, coberta de fios

prateados e de traços amplos, no meio dos quais ainda brilhavam com

certa energia os seus olhos cinzentos.

- Eu não vou assinar essa petição - disse.

- Tem algum compromisso com Geban?

- Não; aqueles que tenho são comigo mesmo!

- É algo que não lhe permita assinar o documento?

- Não, a verdade é que não necessito daqueles animais!

- Mas deve assinar este documento!

- Bom, já que você se deu a todo este trabalho, assinarei o

documento e amanhã atravessarei o Murray no escaler para o entregar

ao subdelegado. A única coisa que me preocupa é a minha pobre

velhota. Faço-o exclusivamente por ela e não por mim.

A velha índia ergueu os seus olhos escuros e olhou com amor

para Cauquenes. Este também olhou para ela e depois pousou os olhos

com especial atenção sobre o rádio-operador Alejandro.

- E este moço? - perguntou.

- É o meu irmão Alejandro, da estação de Walaia. - respondeu o

Chefe Branco e acrescentou: - Quando era miúdo embarcou como

penetra no veleiro Baquedano. Fez um cruzeiro até ao cabo Horne e foi

até ao Paraíso das Lontras para me ver. Depois seguiu a carreira de

comunicações e foi destacado para a estação de rádio de Walaia.

- Tão jovem e já com uma história tão comprida. - disse

Cauquenes. - Não é de estranhar; todos nós que estamos nestas

paragens, fora os yaganes, não nascemos aqui e fomos para aqui

arrastados por alguma história.

- Assim é - disse o Chefe Branco. - Já conhece a minha; vim à

aventura e fiquei aqui para sempre.

- E a minha - respondeu Cauquenes - que nunca contei a

ninguém, à excepção de Geban, que por isso sabe com quem está a

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lidar, carece de importância. É por aquilo que me trouxe até aqui que

não faço nada contra ele: parece que toda a penúria, todo o castigo, é

pouco para mim. Nem mesmo a velhota sabe a história, porque é feia,

muito feia para um homem... Ah... mas você trouxe-me recordações do

Norte do Chile; há mais de dez anos que não me cruzava com um

homem de lá! - Dirigiu-se ao rádio-operador e semicerrando os olhos

prosseguiu com uma certa emoção nostálgica na voz. - Ah, meu querido

Cauquenes, recanto de terra mais pródiga e mais bela não deve existir

no mundo inteiro!

- Fica em pleno centro do Chile e no interior. Ali dá-se tudo, é um

jardim, e as pessoas são boas como o pão. O único mal que dali saiu

sou eu; foi por isso que eu mesmo me desterrei, para não manchar o

nome daquela terra.

- Ninguém é só mau nem só bom - interrompeu o Chefe Branco.

- Mas existem maldades que só podem ser castigadas pelo

próprio. E não existe lei mais dura do que aquela que o homem exerce

sobre si mesmo quando se dá conta do seu mal e é capaz de se castigar!

- Isso perdoa tudo - disse o Chefe Branco.

- Não; a minha condenação é a cadeia perpétua, e irei cumpri-la

até morrer. Se a cumpri até agora é porque assim o impus a mim

mesmo, e só Deus a irá levantar quando a terra me receber.

Um silêncio seguiu as palavras do velho. Lá fora a noite tinha

caído. Dentro da caverna, a fogueira agitava-se como um pássaro de

fogo que fazia dançar as silhuetas humanas que a rodeavam, como

fantasmas inverosímeis que subiam e desciam ao longo das paredes

negras de pedra. No recanto onde se encontravam os canais, uma gota

de água caía de tempos a tempos no espelho da fonte e a sua nota

estrangulada media por alguns instantes a profundidade desse silêncio.

A voz do velhote voltou a romper o silêncio, mas desta vez elevou-

se num tom suave, como a apagada música de outra gota de água ou de

uma cascata que passasse murmurando em surdina pelo seio da terra.

Do seio da terra parecia emanar a voz daquele homem, curvado pelos

anos e moldado nesse recanto da montanha pelos dois únicos

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elementos que foram penetrando no seu ser através da solidão: a pedra

e a água. Desses dois extremos elementares, o mais duro e o mais

suave, estava impregnada a voz e, talvez, a alma de Cauquenes.

- Aqui nesta caverna - disse ele -, podemos escutar pela primeira

vez aquilo que temos dentro de nós. E foi por isso que aqui fiquei; se

não a tivesse encontrado, ainda andaria a errar pelo mundo, sem

descanso. O homem tem de estar vazio como esta caverna, limpo de

todas as coisas, para que possa escutar algo que soa muito depressa,

como esta gota de água, dentro de si. Esta mulher yagane veio um dia

fazer-me companhia; mas não perturbou a minha vida; é silenciosa,

forte como a pedra e suave como a gota de água. Vocês vão pensar que

eu matei. Não, não matei; mas impus o sofrimento durante vidas

inteiras. Os meus antepassados fizeram-no durante gerações inteiras.

Foram encomendeiros durante o colonialismo, caçadores de índios.

Logo donos da terra e dos seus servos, os inquilinos. Um dia herdei o

bom e o mau de tudo isso. Tinha vinte anos e era imensamente rico.

Entreguei-me ao luxo, aos prazeres, ao jogo e à bebida. Fui membro do

Clube da União de Santiago, o sócio que possuía os melhores cavalos de

corridas do Clube Hípico, o jogador de roleta, tiro e banca mais famoso.

Tudo isto acontecia enquanto nas minhas costas os meus inquilinos

comiam uma bolacha de má qualidade por dia e os seus filhos

trabalhavam como bestas de carga desde os doze anos de idade. A

bebida e o jogo foram minando a minha saúde e a minha riqueza até

que uma noite, enlouquecido, coloquei tudo no tapete verde e tudo

perdi.

No dia seguinte acordei sem um único centavo; outros eram agora

donos dos meus fundos, das minhas bestas e dos meus inquilinos.

Pobre como o mais pobre, dirigi-me às casas do fundo em busca de

algumas roupas. Não sabia trabalhar. Não sabia para onde ir. Foi então

que se deu aquele maravilhoso acontecimento que transformou toda a

minha vida. No momento em que saía das casas do fundo, como um

miserável estranho, aproximou-se de mim Nicasio, um velho inquilino

que me tinha visto crescer desde criança. “Tome estas poupanças, disse

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ele, ”para que possa partir!” Olhei o velho nos olhos: eram claros,

transparentes. Olhavam-me com serenidade, sem deixar transparecer

nem lástima nem servilismo. Peguei no dinheiro e apertei-o nas minhas

mãos. Olhei para os olhos do inquilino como seguramente se olha para

os olhos de Deus e não consegui expressar-lhe nem o sentimento nem o

pensamento que naquele momento estremeciam angustiosamente todo

o meu ser. Se nesse instante fosse dono de todas as minhas riquezas,

tê-las-ia repartido todas entre eles; mas, em vez de as repartir, tinha

vendido sofrimentos quem sabe para quantas gerações mais! Não me

atrevi a dizer-lhe nada. Voltei-lhe as costas e parti, vacilante, como

devem ter saído os nossos primeiros pais do jardim do Éden, depois de

terem visto o rosto de Deus pela última vez.

Cauquenes calou-se e duas grossas lágrimas rolaram pela

sua velha face. Um tronco crepitou na fogueira, o pássaro de

fogo ergueu-se no ar fazendo dançar as sombras e na fonte caiu

uma gota de água, com um suave e musical rumor, desprendido

do mistério.

- Nunca mais quis saber de dinheiro - disse o velhote,

recompondo-se -, e foi por isso que aqui fiquei, quando encontrei esta

caverna aos pés da montanha e pedi a Geban que me permitisse servi-lo

em troca de apenas alguns víveres.

Depois ele partiu da península e deixou-me um grupo de animais,

para o meu trabalho, disse, e para me alimentar.

Muitos deles subiram até ao alto da cordilheira e foram-

se reproduzindo de forma selvagem até se converterem nas manadas de

baguales que hoje em dia povoam a península e que dizem representar

uma grande riqueza.

A mim não me interessa essa riqueza. Também não me importaria

se Geban a tivesse levado se não tivesse renunciado à sua

nacionalidade chilena. Esta terra é chilena, os animais brotaram dela,

assim como os pastos, os carvalhos, e devem pertencer àqueles que não

renegam o seu solo, àqueles que gostam dela e a povoam. A única coisa

que me interessa são os dias que a minha pobre velhota viva depois de

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eu morrer - terminou Cauquenes acariciando com a mão a grisalha

cabeleira da velhota yagane.

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CAPÍTULO 5

O pinguim fantasma

- Depois de ter pernoitado na pequena enseada de Cauquenes, o

Agamaca subiu com o seu motor auxiliar pela Angostura Murray em

direcção ao canal Beagle, com o objectivo de o rádio-operador Alejandro

Silva entregar um despacho telegráfico para o colono Carlos Martínez,

que habitava nas bonitas praias de Kanasaka.

Ao dobrar o pequeno cabo, pararam o motor, içaram a vela maior,

a bujarrona e a vela de estai, e o Agamaca começou a navegar ao largo

da costa sul do Beagle. A brisa refrescava; um sol brilhante reluzia

sobre o mar, e os homens, sentados na popa, consolavam-se com a

esplêndida navegação.

O yagane Félix tinha abandonado a sua característica

atitude silenciosa e, sempre com o leme nas mãos, assobiava uma

estranha e monótona melodia. O Chefe Branco, com a sua barba

castanha eriçada flutuando ao sabor do vento, percorria com o olhar

bonacheirão os contornos da costa; de vez em quando esfregava as

mãos com uma alegria que apaziguava a energia que fervilhava na sua

vitalidade e aspirava a brisa marítima, dilatando as abas do nariz como

um lobo-do-mar.

O rádio-operador, que contemplava a figura poderosa do

seu irmão, disse de imediato, olhando para as águas:

- Já vi de tudo aqui, menos uma coisa!

- Que coisa? - perguntou o Chefe Branco.

- A santola, que é tão grande e tão abundante no estreito

de Magalhães e nos canais, parece que não existe no Beagle!

- Exactamente, não existe! - confirmou o Chefe Branco. - E por

que?

- Ah... essa é uma história muito comprida e muito triste e que

não é apenas sobre a santola! Queres sabê-la? Bem, vou contar-ta

exactamente como a ouvi dos lábios de um velho yagane.

- Um monstro passou semeando a morte pelos mares do Beagle.

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Milhares de santolas foram arrastadas para terra pelas vagas.

A olho nu pareciam intactas mas quando os yaganes lhes

pegavam descobriam que uns tentáculos subtis tinham devorado a

delicada carne, misteriosamente, através dos interstícios das carapaças,

que, como grandes flores de madeira, flutuavam vazias ao longo das

margens do canal. O sopro fatal subiu desde o leito do mar até mais

além da superfície das águas. Primeiro desapareceram os peixes; depois

as manadas de focas esfomeadas fugiram pelos braços do canal até

ao Atlântico e ao Pacífico; de seguida, os pinguins e outros pássaros,

não tendo que comer, emigraram para outras regiões.

Tudo desapareceu com esta desvastação e anos mais tarde,

quando os mares e os ares se repovoaram, apenas uma espécie nunca

mais voltou a decorar o fundo do Beagle: a santola, tão grande e

suculenta, que uma só dava para alimentar toda uma família yagane!

- Chegou a saber-se o que tinha sido? - interrompeu Alejandro o

seu irmão Manuel enquanto o veleiro virava a estibordo.

- Nunca se soube! - respondeu o Chefe Branco e acrescentou:

- Existem algumas versões yaganes que afirmam ter sido

vista uma coisa escura debaixo do mar, como uma onda negra

submarina que passou pelo canal na direcção do oceano Atlântico;

outras que foi um polvo monstruoso que avançou lançando a morte

no fundo do mar. Enfim, eu não quis contradizer essas versões; mas

creio que, como a cordilheira dos Andes se afunda aqui, poder-se-á ter

destapado a cratera de algum vulcão submarino e durante a sua

erupção ter vomitado lavas, gases e outras matérias que provocaram a

morte nas águas.

- E os yaganes? - perguntou Alejandro.

- Ah... os yaganes! Era precisamente isso que te ia contar. - disse

o Chefe Branco e, apontando com a mão para uma rocha que se via ao

longe, continuou: - Vês aquela pedra?

- Sim - respondeu o rádio-operador.

- E em cima dela não estás a ver nada?

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Alejandro colocou a mão em viseira sobre os olhos, aguçou

a vista, ficou a olhar fixamente para o rochedo e de imediato exclamou:

- Sim; quando a onda rebenta, forma-se uma coisa sobre a pedra,

como um penacho branco ou um pássaro que se prepara para voar!

- Aquilo - disse o Chefe Branco - é o pinguim fantasma. E a lenda

é a seguinte: desaparecidas as santolas, os robalos, os lobos e os

pinguins do Beagle, a morte avançou terra adentro e começou a dizimar

as tribos yaganes que naqueles tempos constituíam um povo pacífico e

alegre. Sempre que morre alguém nas tribos yaganes, enterram o

cadáver, acendem sobre este uma grande fogueira onde queimam os

objectos que pertenciam ao morto, recolhem as tendas de pele de foca

que lhes serve de abrigo, embarcam nas suas canoas e vão estabelecer-

se noutro lugar. Naqueles tempos as tribos navegavam como que

enlouquecidas de uma costa à outra, fugindo da morte; já não restava

nem enseada nem recanto que não tivesse o seu cadáver.

Foi assim que veio refugiar-se nesta costa, frente à qual estamos

agora a passar, uma tribo de yaganes guiados pelo seu chefe, um

homem valente e vigoroso.

A fome começou a aumentar e a família yagane foi-se convertendo

numa família de esqueletos vivos que olhavam famélicos uns para os

outros, concentrando as suas últimas forças no olhar que lançavam

através do canal, naqueles tempos mais tormentoso do que nunca. Uma

manhã os seus olhos abriram-se de assombro ao contemplarem um

pássaro-carneiro(1) que pousou numas rochas que estavam no mar.

Era quase tão grande como um condor; mas era negro, tão negro como

a morte.

(1) Pássaro-carneiro: albatroz do cabo. N. do A.

Mas o pássaro foi-se embora e a morte ficou a rondar os yaganes

que, de tão fracos, se iam confundindo cada vez mais com os tons

cinzentos do meio que os rodeava. Ao cair de uma tarde triste e

desolada, o jovem chefe yagane tomou uma decisão heróica. Os yaganes

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praticam uma maneira de caçar pinguins muito curiosa: quando a noite

começa a cair dirigem-se às rochas onde costumam pernoitar os

pinguins, deitam-se ao longo das fendas, tapam o corpo com sargaço,

cochayuyo e outras algas, para se camuflarem, e esperam imóveis a

chegada dos pinguins que, como não voam, sobem para o rochedo

gateando.

Ali ficam a dormir dobrando o pescoço e deixando a descoberto a

parte mais delicada da garganta. É então que o yagane desliza

silenciosamente por entre as algas, aproxima-se do pássaro como se o

fosse beijar na parte branca do pescoço e, com uma precisão certeira,

crava aí os dentes, especialmente os caninos. Até que a ave morre

silenciosamente, sem produzir um único som. Assim os vai matando

um a um, até completar a provisão de que necessita.

“Vou ver, disse o jovem chefe, se algum pássaro como o

desta manhã pousa entre os rochedos.” Levaram-no numa canoa. De

um salto trepou para a pedra mais alta, a que tinha a forma de uma

pequena meseta, e ali se sentou, numa fenda, tapando-se com um

amontoado de sargaços. A canoa regressou à costa e a noite caiu sobre

o canal; entre as rochas havia uma que guardava no seu seio de algas o

jovem mais valente da tribo: o yagane que, fraco e esfomeado, dava o

último esforço da sua vida para manter a dos velhos, mulheres e

crianças da tribo.

Para além da monstruosidade que por ali passou semeando

a morte, essa região, que é como a ponta da comprida cauda onde

termina a América, foi também açoitada nesses dias por fortes

tempestades. Uma delas, desencadeada sobre o canal, impediu que a

canoa conseguisse aproximar-se dos rochedos no dia seguinte e nos

dias subsequentes.

O mar bravo golpeava as costas do Beagle como se as

águas tivessem aumentado extraordinariamente o seu caudal e

quisessem quebrar as altas cordilheiras que as aprisionavam.

Luta de elementos que, desde que o mundo é mundo, se

desenrolam nesta terra destroçada pelos cataclismos e pelos vendavais!

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Assim esteve a tribo yagane tremendo de frio, fome e

terror enquanto esperava que aquela tempestade amainasse. Os

seus olhos estavam postos no rochedo durante o dia e à noite ficavam

húmidos de pesar pensando na agonia horrorosa que o jovem yagane

estava a sofrer. Só ao quarto dia, como se uma mão divina tivesse dado

o sinal para terminar o combate dos elementos, uma calma cristalina se

espalhou pelas águas e sobre os céus do canal. A canoa apressou-se e

dirigiu-se às pedras onde tinha ficado o jovem yagane. Os quatro

tripulantes que iam a bordo levavam os corações palpitantes de

emoção perante a incógnita de encontrar morto ou ainda vivo o chefe da

tribo. Mas, quando a canoa atracou junto à rocha grande, uma enorme

alegria invadiu os tripulantes: um pinguim real, desses que de vez em

quando aparecem vindos da Antárctida, estava morto sobre a pequena

meseta da pedra; era gigantesco, pois tinha quase o tamanho de um

homem, e luzia a sua plumagem brilhante, de peito branco, costas

negras e um tufo tornassoi na cabeça. O instinto de conservação ou a

fraqueza, a fome ou a alma primitiva dos yaganes que seguiam a bordo

da canoa fez com que a princípio apenas vissem a cobiçada presa

que salvaria toda a família.

Mas, passado esse primeiro impulso, uma onda de tristeza foi-se

reflectindo nos seus rostos: o jovem índio não estava sobre o rochedo!

“Deve ter morrido, disse um deles, após ter caçado o pinguim e depois

uma onda deve tê-lo arrastado para o mar. Mas também teria arrastado

o pássaro, disse o outro. Seguramente, Anakai deve ter-se aproximado

da borda do rochedo para recolher o sargaço e continuar a caçar e

acabou por cair ao mar, interveio o terceiro. Vamos ver se chupou o

sangue do pinguim”, disse o mais velho e aproximou-se do grande

pássaro estendido sobre a rocha; mas o pinguim estava intacto.

Carregaram-no na canoa e regressaram à costa, confundindo-

se as suas almas entre a alegria de terem algo para comer e a dor de

terem perdido tão valente chefe. Essa situação afectou também a

pequena tribo; mas... a vida pertence aos vivos..., e comeram o pinguim

até se sentirem saciados. Satisfeitos e sonolentos, guardaram a

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saborosa carne do pássaro real por debaixo de uma pele de lobo junto à

pequena fogueira. “Estava delicioso!”, disse um rapazito yagane. “Como

teria sabido bem a Anakai!”, exclamou de imediato com profunda

tristeza a viúva do índio morto entre os rochedos. “E se o papá

tivesse regressado sob a forma de pinguim para nos dar de comer?”,

perguntou de novo, sorrindo, com um sorriso inocente, o rapazito e

acrescentou: “Uma vez ele disse-me que podia ser aquilo que quisesse,

pinguim, lobo, pato, lontra e até baleia, como aquela que ficou na lagoa

de Agamaca e que dizem ter dado de comer ao mundo inteiro.” As

ingénuas palavras do miúdo, que recordavam os contos com que o seu

pai o costumava entreter, ou a menção da lagoa de Agamaca, o lago

sagrado dos yaganes e que fica no interior da costa sul da Terra do

Fogo, e na qual, segundo rezam as tradições, após um dilúvio ficou

presa uma baleia que deu de comer às três únicas canoas de índios que

se salvaram do cataclismo, que graças a ela se reproduziu de novo a

raça como as flechas que se transformaram nos canaviais que hoje em

dia circundam o lago; tudo isso, talvez, comoveu aquelas consciências

supersticiosas porque pouco a pouco as caras dos adultos foram

ficando muito sérias e os seus olhos reflectiam o espanto. Olharam uns

para os outros, como se tentassem encontrar um culpado entre eles. O

culpado por um crime abominável. As caras tornaram-se cada vez mais

sérias; as crianças olhavam para os adultos sem perceberem o que

se estava a passar; uma anciã começou a ulular e um velho a lançar

gemidos. Então, as crianças começaram a chorar; o pânico apoderou-se

de toda a tribo e toda a tenda de couro gemia e ululava estremecendo

de horror e bulício. O pinguim real que tinham devorado era o valente

jovem que se tinha convertido naquele pássaro para salvar da morte a

sua tribo!

À meia-noite, os alaridos de terror debaixo da tenda

foram diminuindo até que um silêncio de morte se abateu sobre a

mesma. E termina a lenda - concluiu o Chefe Branco dizendo que na

manhã seguinte foram saindo da tenda, um atrás do outro, uma família

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de pinguins reais, desde o mais novo ao mais velho, e dirigiram-se ao

mar, dispersando-se no mesmo, em direcção às regiões do pólo.

São uns pinguins que possuem um tufo de plumas amarelas na

cabeça e aqueles que maiores parecenças têm com os seres humanos.

Quando em alguma rara ocasião chegam até estas paragens, os

yaganes respeitam-nos, não permitem que os cacem e muito menos se

atrevem a comê-los, porque isso faria com que caísse sobre eles a

maldição que os transformaria, por sua vez, na raça dos grandes

pinguins polares.

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CAPÍTULO 6

Em memória de um Presidente

Naquela radiante manhã do mês de Novembro, o Agamaca

dobrava a ilha que, como um troço de cordilheira encravado no mar,

está situada na entrada norte de Walaia.

O rádio-operador tinha cumprido as suas comissões e o Chefe

Branco adquirido diversas mercadorias para os yaganes que viviam com

ele no Paraíso das Lontras; além disso, ia bastante satisfeito com o acto

de justiça que tinha realizado no assunto de Cauquenes e Geban.

As altas montanhas que ladeiam a entrada de Walaia projectavam

as suas grandes sombras sobre as águas translúcidas do canal, rota

obscura e silenciosa que era agora apenas quebrada pelo ruído do

motor de querosene.

Ao dobrar a quadra da última ponta, os olhos dos três tripulantes

viraram-se com agrado para a costa que anunciava a planície onde se

erguia a estação de rádio. Ali esperavam-nos os bons amigos, o

descanso e algum mimo para o paladar.

Pouco a pouco foi aparecendo a suave planície onde está situada

a casa que, embora seja um edifício grande, de dois pisos, parece um

pombal no meio das ciclópicas montanhas. Mas, quando esta surgiu, os

olhos do Chefe Branco e do rádio-operador encheram-se de assombro,

como se não acreditassem naquilo que viam; depois, perante a

evidência, olharam um para o outro de sobrolho franzido, entristecidos

e preocupados: em frente à casa, no mastro da bandeira. Esta estava a

meia haste, com um pano negro atado sobre o azul que às vezes, batido

pelo vento, ofuscava a brancura da estrela.

- Pode ter morrido algum companheiro - disse o rádio-operador, e

acrescentou: - O marinheiro da cozinha sofria de alguns problemas

cardíacos.

O Chefe Branco nada respondeu, deslizou ao longo da amurada e

acelerou o motor do veleiro para full.

Pouco tempo depois largavam a âncora frente à casa.

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Desembarcaram e dirigiram-se apressados à estação; mas ao

chegarem lá não notaram nada de estranho,à excepção da bandeira que

se agitava a meia haste.

Na porta principal esperava-os, de pé, o sargento Ulloa.

- Que se passou, meu sargento? - perguntou Alejandro enquanto

lhe estendia a mão.

- O presidente da República morreu - respondeu o sargento com

um tom grave.

- Dom Pedro Aguirre Cerda, Don Pedrito, como lhe chamam?

- Dom Pedro? - perguntou o Chefe Branco.

- Sim; Don Pedrito, que era o nome por que todo o Chile o

chamava carinhosamente - respondeu o sargento Ulloa.

- Triste notícia; era um presidente do povo - interveio o suboficial

Poblete, aproximando-se do grupo, e acrescentou: - Conheci-o

pessoalmente quando viajou até Punta Arenas no Araucano, o navio-

mãe dos submarinos. Era um homem simples, querido por toda a gente.

Às vezes viam-no descer até aos compartimentos dos marinheiros e

falar com eles e até sentar-se à sua mesa e compartilhar com a

tripulação o modesto rancho.

- Representava uma nova época no Chile, e quem sabe se existe

alguém que consiga estar à altura da obra que começou, a fim de a

continuar - acrescentou o sargento Ulloa.

O cabo Frias e o rádio-operador Solzona aproximaram-se do

grupo; notava-se em todos que a notícia os tinha afectado

profundamente.

- Morreu ontem às 13,37 horas, na Casa da Moeda.

- Era o comandante-chefe das Forças do Mar, Terra e Ar - disse

outro.

- Era um homem popular. - frisou o sargento Ulloa e continuou: -

A melhor homenagem que se lhe pode prestar não é a tristeza, mas sim

a acção. Ele engrandeceu a alma e o corpo do Chile. A ele se fica a dever

o decreto que alarga os limites do nosso país até à Antárctida. Se antes

a minha viagem tinha um objectivo, agora tem outro ainda mais

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importante; irei até essas terras e cravarei ali a nossa bandeira sem

fumo negro e em memória do seu nome. Vou adiantar a minha viagem e

partir quanto antes, se possível hoje mesmo, até à Antárctida!

- Não podemos contar com a escuna de Geban para a nossa

viagem - interveio o Chefe Branco.

- E por acaso não existe o Agamaca? - replicou o sargento,

indicando com um gesto o veleiro ancorado na baía.

- Sim; mas seria necessário fazer-Lhe uma revisão.

- Que lhe falta?

- Um pouco de calafetagem na coberta.

- Só isso?

- Só isso!

- Isso não é nada, podemos fazê-lo durante a viagem! - E,

acompanhando as palavras com a acção, o sargento dirigiu-se ao andar

de cima em busca das suas roupas. - Eu apenas vou levar isto! - disse,

voltando a descer com um saco de lona nas mãos.

- Atreve-se a navegar até àquela perigosa região naquele pequeno

veleiro? - perguntou o suboficial Poblete a Ulloa enquanto olhava para

ele com uma certa atenção.

- Não é possível? - perguntou o sargento ao Chefe Branco.

- Se não se atrever!... - respondeu este. - Por mim, iria no

Agamaca até ao fim do mundo.

- Já estamos no fim do mundo! - advertiu outro. - Não há mar que

o afunde a pique!

Do grupo destacou-se um homem cujo rosto denotava uma

grande preocupação. Era o rádio-operador Alejandro Silva.

A aventura sempre o tinha atraído, por ela tinha sido o último

grumete que o veleiro General Baquedano tinha formado para a Armada

antes do seu desmantelamento; pela aventura estava naquela distante

região, e agora, que lhe surgia a aventura mais maravilhosa da sua

vida, via-se obrigado a ficar a vegetar na estação de rádio.

Mas de imediato uma esperança o iluminou. Chamou à parte o

seu companheiro de curso, o rádio-operador Solzona, falou por breves

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momentos com ele, e depois apresentaram-se os dois perante o

suboficial Poblete.

- Eu farei as guardas do Silva - disse Solzona e acrescentou: -

Chegamos a um acordo porque é necessário que ele acompanhe o

irmão, o Chefe Branco, na expedição à Antárctida.

- Embora isto não seja regulamentar - disse o sub-oficial Poblete

com uma expressão não muito complacente - assumirei a

responsabilidade e dou a minha autorização.

Nessa mesma tarde carregaram o veleiro com algumas provisões,

armas, tendas e tudo o que era necessário para uma demorada

travessia.

Despediram-se

dos

companheiros

da

estação e

empreenderam a viagem até ao Paraíso das Lontras para terminarem os

preparativos. Depois passaram pela casa de Cauquenes, que os

aprovisionou com vários fardos de carne de vaca salgada, o alimento

mais nutritivo, duradouro e fácil de transportar ao longo de toda a

expedição.

No Paraíso das Lontras embarcaram um trenó leve em madeira de

cipreste, o barril de água e um escaler recém-construído.

Uma manhã, em finais de Novembro, a melhor época para

a navegação nos mares austrais, o Agamaca saiu do Paraíso das

Lontras e partiu rumo à distante Antárctida.

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CAPÍTULO 7

As baleias azuis

O Agamaca navegava há seis dias através desse outro

tempestuoso oceano formado pela confluência do Atlântico com o

Pacífico a sul do cabo Horne. Tinham passado pelas ilhas Diego

Ramírez, essas desoladas ilhotas colocadas por uma mão caprichosa e

estranha no meio daquela imensidão de água e céu.

A infinidade desse horizonte sem limites, daquele solitário mundo

de águas insondáveis, não desanimava os intrépidos navegantes.

Sabiam que o seu mundo era o Agamaca e que este poderia desaparecer

tanto a uma milha da costa como no meio de toda aquela imensidão. As

suas naturezas estavam habituadas ao mar, e a única coisa que os

preocupava era não saber com exactidão a situação em que se

encontravam, pois a pequena barquilha com que mediam a velocidade

do veleiro tinha sido comida por um peixe maior do que um peixe-serra

e com uma pele tão lisa como este e cujos dentes tinham cortado o

cabo.

Exceptuando os dois temporais por que tinham passado

quando se afastavam das costas do cabo Horne, o resto da

navegação tinha sido boa e durante horas não tinham reduzido

a velocidade de oito milhas por hora, empurrados por um vento

de oeste.

Apesar do cuidado com que tinha orientado o leme, o

Chefe Branco calculava que deviam ter derivado um pouco para leste.

A bordo das quatro tábuas do Agamaca, a vida tinha

adquirido um ritmo especial. Pouco a pouco, tinha desaparecido da

alma daqueles homens a inquietação que produz o desaparecimento

da terra e adaptaram-se à situação como se o mar tivesse sempre sido o

único elemento das suas existências.

As guardas ao leme foram mais calmas e à medida da vontade de

cada um. A navegação ao largo não exigia mudanças nas manobras e à

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noite, que apenas durava três horas naquela época e naquela latitude,

faziam turnos de um a um cada quatro.

Uma noite em que a Lua se erguia como um globo vermelho

num céu transparente e o Agamaca cortava o mar como uma navalha

a rasgar uma peça de seda, o Chefe Branco, de guarda ao leme, foi

surpreendido por uma maravilhosa visão das águas.

Milhares de luzinhas azuis, vermelhas e verdes nadavam

entre duas águas, ofuscando o olhar. A princípio julgou tratar-se de

pirilampos ou reflexos daquela Lua tão avermelhada que se

decompunha debaixo de água noutros matizes; mas de imediato

percebeu que não eram nem pirilampos nem reflexos, mas sim um

vasto e denso cardume de peixes e pequenos camarões.

O Chefe Branco pensava que os pequenos peixes deviam vir do

Atlântico perseguidos por algum cardume de baleias, isso porque aquele

tipo de peixes não era comum naquelas águas.

Ao vê-los surgiu-lhe uma ideia e, como diversão, resolveu pô-la

em prática.

Como a brisa do oeste corria sobre o mar, amarrou a roda do leme

com um rumo fixo e, com cautela, para não perturbar o sono dos seus

companheiros, desceu até à pequena camarata que servia de dormitório

com os seus quatro beliches encostados aos costados, e, pegando num

grande carreto de linha, no extremo do qual estava pendurado um

poderoso anzol, regressou à coberta.

Ali estendeu uma pequena rede de arrasto e lançou-a ao mar pela

popa do veleiro. Ao fim de pouco tempo recolheu-a cheia de peixes que

saltavam como pedacinhos de luz sobre a coberta.

De seguida arriou a vela maior, a bujarrona e a vela de estai e o

barco foi diminuindo a sua velocidade até ficar garrado.

O mar estava em completa calma, mas não deixava de existir um

movimento latente de grandes ondas alargadas que se erguiam

lentamente como um peito gigantesco que inchara com uma leve

respiração interior. Era a respiração daquele mar imenso adormecido

sob os astros e descansando talvez por uma só noite da sua

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tempestuosa e agitada vida. Sobre o peito dilatado, o Agamaca era uma

planta embalada por aquela lenta respiração.

O Chefe Branco, com a sua barba a flutuar ao vento, alto

e envolto no seu belo traje em pele de lontra, no meio dos pequenos

peixes que brincavam à volta das suas botas como graciosas línguas de

luz, procurou um dos maiores, agarrou-o pela barbatana da cauda,

introduziu nela o anzol do carreto e atirou-o ao mar, parando junto à

amurada para desenrolar a linha para que o peixe nadasse com maior

facilidade; este mergulhou quase na vertical até ao fundo do mar.

O carreto já se tinha quase todo desenrolado quando a linha se

deteve entre os dedos do pescador. O Chefe Branco sentou-se à espera

sobre o tabuado, sorrindo, com a esperança de poder entregar a sua

guarda de madrugada, com uma grata surpresa para o paladar dos

seus companheiros que já há três dias não provavam ração fresca.

A ideia que lhe tinha passado pela cabeça era aventurosa, mas

tudo podia acontecer... Se aqueles peixes apareciam à superfície do

mar, por que razão não poderia existir alguma vidriola naquelas

profundidades? Só era possível pescar aquele saboroso peixe das

profundidades usando como isco aquele tipo de peixes vivos. Peixes

esses que também tinham as suas manhas, pois apenas afloravam à

superfície nas noites de lua muito brilhante ou quando eram atraídos

por uma lanterna. O facto de serem necessárias todas estas

coincidências, fazia com que a pesca da vidriola fosse uma das

aventuras mais tentadoras.

E o Chefe Branco tentou. Dispunha-se a recolher o anzol quando

de repente a linha se soltou dos seus dedos. Tinha tomado a precaução

de a passar pelo punho da sua mão esquerda e por isso voltou a agarrá-

la e começou a esticá-la pouco a pouco; pelos puxões percebeu que não

se tratava de um animal muito grande.

Começou a recolher a linha e estranhou a facilidade com que o

peixe se deixava puxar suavemente, mas, quando uma forma prateada

surgiu à superfície, o esticão que deu foi de tal forma violento que, para

não ter de cortar a linha, teve de ceder. Passando a linha à volta de um

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pequeno gato, foi-a esticando pouco a pouco até que o peixe voltou a

surgir à superfície: agarrou-o pelas guelras e içou-o para a coberta.

Não, não era uma vidriola.

Ao contemplar o peixe estendido sobre a coberta sob a luz da Lua,

surpreendeu-se com a curiosa estrutura do animal que tinha pescado:

tinha mais de três metros e meio de comprimento, esguio, com tantas

guelras e com formas tão curiosas que parecia um fantástico bibelot

vestido com as mais extraordinárias rendas e pedrarias.

Recuou um pouco espantado ao ver a sua cabeça: era uma

cabeça que fazia pensar em algo diabólico, envolta num retorcido casco

cartilaginoso e transparente. A transparência chegava até ao interior

dos ossos e das massas obscuras que existiam entre estes.

Quando os seus olhos se cruzaram com os olhos verde-claros, o

Chefe Branco rangeu os dentes num gesto de desagrado.

Aqueles olhos tinham uma vaga e inquietante expressão humana!

Pendurou-o no garfo do mastro maior, mais pela curiosidade de o

mostrar aos seus companheiros do que pelo desejo de provar a sua

carne. Ainda se mexeu durante uns momentos à luz da Lua; com as

suas vestes de pedrarias, prata e verde, parecia um fantástico disfarce

de uma festa de Carnaval que ali tivesse ido parar.

“Não vale a pena continuar a pescar este tipo de monstros”,

pensou o Chefe Branco, e com a mesma rapidez com que tinha arriado

as velas, içou-as e o Agamaca retomou o seu andamento na direcção da

Antárctida.

Mas, mal tinha acabado de se sentar ao leme quando notou

que os milhares de pequenos camarões e peixes rutilantes, entre cujos

reflexos abria caminho a proa do veleiro, se começaram a juntar e a

saltar para fora da água de uma maneira inusitada.

Um vago pressentimento acelerou o ritmo do seu coração.

Olhou à volta e os seus olhos quase rebentaram de espanto;

ao longe, um cardume de enormes baleias azuis, o tipo maior de

baleias, avançava com as suas gargantas abertas à tona da água,

apanhando os pequenos camarões.

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Era um cardume de ondas negras que inchava o mar como se

fosse um ameaçador rolo gigantesco que fazia desaparecer tudo aquilo

por onde passava; talvez fosse assim que a morte por ali passasse,

durante os grandes cataclismos.

O Chefe Branco não quis chamar os companheiros que dormiam

na paz da noite porque achou mais bondoso deixá-los passar de uma

única assentada do sono da vida para o da morte.

Agarrou-se com força à roda do leme; mas de imediato um

pensamento-relâmpago lhe surgiu na mente, e saiu a correr até à

cabina do motor e as explosões deste quebraram o silêncio da noite.

Mas ao mesmo tempo o veleiro agitou-se como se o tivessem

erguido no ar. Os que estavam a dormir foram lançados dos seus

beliches e o Agamaca deu uma queda tão grande como se tivesse caído

no mar vindo do vazio. Ninguém percebeu o que tinha acontecido.

- Graças a Deus! Já passaram! - exclamou o Chefe Branco

quando, ainda atordoado, chegou de um salto à coberta.

- Que se passou? - gritaram os outros, surgindo pela portinhola

dos dormitórios.

- Um enorme cardume de baleias azuis que seguia um

cardume de camarões! - respondeu o Chefe Branco, olhando à sua

volta.

Os outros três homens olharam por momentos o incerto horizonte

rodeado pela noite, receando vagamente que o perigo voltasse a surgir.

- E que é isto? - perguntou Ulloa quando os seus olhos

tropeçaram com o estranho peixe pendurado no mastro maior.

- Lancei um isco para ver se havia por aqui uma vidriola e saiu-

me esta extravagância.

Olharam todos para o peixe, e Félix, o yagane, abriu

desmesuradamente os olhos e, sem pensar nas palavras, num estranho

arrebatamento, correu até ao mastro, soltou o peixe e lançou-o ao mar,

com um gesto onde se misturavam a repulsa e o horror. E, olhando

para o Chefe Branco, num certo tom de advertência e reprovação,

proferiu a meia voz:

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- Mau, mau, muito mau! Desgraça.

O mar tornou a ficar calmo; a noite, silenciosa, e a Lua, a dourar

as tranquilas superfícies; no entanto, algo flutuava no ambiente, como o

hálito do mistério depois de passar por um sítio.

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CAPÍTULO 8

A angustura do abismo

À medida que a época ia avançando e iam navegando para sul, as

noites iam encurtando extraordinariamente. Para falar verdade, já não

eram bem noites, mas sim um prolongado crepúsculo onde as últimas

luzes do entardecer se confundiam com as do amanhecer.

Durante as guardas já não se tinha em conta a noite, e para

poderem dormir bem tapavam as clarabóias da pequena camarata.

Uma madrugada, após vários dias de navegação, foi surgindo no

horizonte uma fina linha branca que, ao fim de algumas horas, se foi

tornando mais nítida como uma terra de costas nevadas.

Era uma terra como qualquer outra, mas coberta de neve nos

cumes e com um ar um pouco derretido na base devido à influência do

mar e ao avanço da Primavera.

- A Antárctida! - disse o Chefe Branco que ia ao leme.

- A Antárctida! - repetiu o sargento Ulloa, reflectindo a alegria no

seu rosto.

Alejandro e Félix dormiam. O sargento desceu até à camarata e

abanou-os no beliche.

- Que se passa? - perguntou o rádio-operador.

- Subam até à coberta para ver a Antárctida. Já estamos a

chegar.

Félix e Alejandro levantaram-se e subiram até à coberta

esfregando os olhos ainda adormecidos.

- Bah..., parece que regressámos ao Norte! - disse este ao ver que

a costa era mais suave e acolhedora do que a da própria região do

Beagle.

Félix olhava indiferente para a paisagem e como dizendo no seu

íntimo: “Bah, e foi para isto que viemos!”

- Aqui, segundo parece, não há nada que chame a atenção - disse

o sargento Ulloa ao ver o desencanto dos seus companheiros -, mas

ainda ninguém sabe o que se esconde por detrás e por debaixo destas

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terras; assim como nem o próprio Colombo sabia o mundo maravilhoso

que descobria ao chegar às Antilhas. Além disso, é um enorme prazer

ver terras desconhecidas.

Quanto mais distantes e afastadas da civilização estiverem,

melhor; e quando se sabe que se é o primeiro, ou um dos primeiros, a

pousar o pé ali, uma alegria especial compensa todos os sacrifícios.

Alguém disse que por vezes a beleza não está nas coisas mas sim nos

olhos daquele que as vê.

Deixando as terras a bombordo, o Agamaca seguiu navegando

ao largo da costa.

- Se seguirmos para sul - disse o Chefe Branco -, devemos tomar

uma rota afastada da terra porque, como não conhecemos estes

lugares, não saberíamos proteger-nos de uma tempestade que nos

poderia empurrar contra a costa e despedaçar-nos contra o gelo.

- Vamos reconhecer um pouco mais a costa - disse o sargento

Ulloa - e se não descobrirmos algo que valha a pena partimos ao largo.

Nesse momento, o veleiro começava a dobrar um cabo cuja ponta

entrava pelo mar dentro como uma agulha. Para o contornar foi

necessário agarrar a escota e descair o máximo possível para

barlavento.

Depois de ultrapassada a ponta, surgiu aos olhos dos navegantes

uma extensa praia; era uma praia pedregosa que um pouco acima da

maré alta estava rodeada por uma estranha vegetação que, como uma

faixa acinzentada, corria ao longo de toda a sua extensão.

- Que curiosa vegetação! - disse o sargento Ulloa.

- É parecida com a poa, aquela espécie de cactos peludos que

abundam em certas ilhas do Atlântico - disse o Chefe Branco

aproximando directamente o veleiro da costa com a finalidade de fazer o

reconhecimento.

Mas esse reconhecimento foi surpreendendo a todos. As tais poas,

à medida que o veleiro se ia aproximando, foram-se transformando

nuns montículos pisciformes, cujo córtex pardacento se movia em

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alguns deles superficialmente pela acção de uma energia própria

interior e não devido à brisa que agitava o mar.

- Ah!... - exclamou o Chefe Branco ao distinguir melhor os

montículos cinzentos. - São leões do mar!

- Leões do mar? - repetiu assombrado o rádio-operador.

- Sim; e aquilo que parecia poa são as suas jubas - explicou o

Chefe Branco.

A aproximação do veleiro fez com que alguns deles levantassem as

cabeças e sacudissem as jubas, não muito compridas, mas tão

imponentes como as dos seus congéneres africanos ou asiáticos, dos

quais, segundo alguns homens da ciência, descendem. Eram aos

milhares.

O Agamaca continuou ao largo da costa e a fileira de

leões marinhos deitados na praia permanecia sempre igual.

A lenta tarde austral aproximava-se e o Chefe Branco, com a sua

habitual perícia e prudência, começou a afastar-se da costa; mas não

pôde avançar muito água adentro porque uma espessa mata de algas

marinhas lhe impediu a passagem; virou e, por entre as algas,

continuou à procura de uma clareira através da qual pudesse sair.

Não a encontrou e compreendeu que se tratava da famosa

alga antárctica cujas folhas têm mais de quinhentos pés de

comprimento. Decidiu então seguir pela via límpida que lhe restava

entre a praia e a selva marítima.

A noite crepuscular começava a cair e a arrastar-se ao longo dos

contornos, e os limites do mar e da praia tornavam-se imprecisos. Ao

longe, a obscura fileira de animais confundia-se também com as

sombras do anoitecer.

O Agamaca tentou por três vezes atravessar a zona de algas e não

conseguiu.

- Se não há mal que dure cem anos, como diz o refrão,

também não existem algas que durem mais de cem léguas; sigamos,

pois, em frente! - disse o sargento Ulloa.

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O Chefe Branco acenou com a cabeça e o Agamaca não

procurou mais saídas e durante bastante tempo continuou a sua

navegação.

As sombras estreitaram mais o horizonte e a terra e a água

avivaram a sua fantasmagórica corporiedade.

- Convém fundear - disse o Chefe Branco e acrescentou:

- Noto que há uma corrente mais forte a meio da rota que fica

entre a costa e o banco de algas; de certeza que este está localizado

sobre um cordão de recifes ou no começo de uma cordilheira submarina

que forma um canal que não sabemos onde poderá terminar. É preciso

atravessá-lo com boa luz e precaução.

O veleiro começou a procurar uma zona para ancorar. Félix pegou

na sonda e lançou-a pela proa a fim de medir a profundidade do mar;

mas os seus dedos foram passando os nós que assinalavam as braças

de água até que desenrolou todo o cordel sem encontrar o fundo.

- É um barranco de mar! - exclamou o Chefe Branco.

Por fim, o veleiro encontrou o fundo muito perto da praia onde as

águas eram tranquilas porque o mar de algas absorvia completamente o

impacte das ondas que vinham do mar.

- Aqui deve haver peixe! - disse o Chefe Branco, observando o

mar. - Os leões nunca estão muito longe do lugar onde está a sua

comida!

O Chefe Branco e Félix desceram o escaler, embarcaram

o tresmalho no mesmo e começaram a estender as redes junto ao

veleiro. As bóias de cortiça da rede de três malhas foram formando um

cordão circular de pontos suspensos à superfície do mar, à medida que

Félix impulsionava a embarcação com os remos e o Chefe Branco

atirava as braçadas de rede à água.

Depois desta operação, os quatro tripulantes do Agamaca

sentaram-se tranquilamente sobre a coberta a jantar a panela de

farinha e carne salgada que o sargento Ulloa tinha preparado.

Ainda mal tinham acabado de comer quando se ouviu nas

proximidades da costa o rugido de um leão marinho; pouco depois

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ouviram outro e depois outro e outros, até que estes se juntaram num

só e continuaram o rugido como um coro mugidor cujo eco ecoava ao

longo do mar.

O Chefe Branco e Félix correram rapidamente para o escaler,

remaram até às redes e começaram a recolhê-las rapidamente; apesar

do pouco tempo que estas tinham estado no mar, mais de vinte grandes

peixes desconhecidos tinham ficado enredados entre a malha tripla.

Como se tivessem transmitido entre si uma ordem, os leões

deixaram de rugir e um rumor surdo, entre as pedras, de massas que

se arrastavam sobre as mesmas, invadiu o silêncio; seguiu-se de

imediato um formidável chapinhar na água e depois outro silêncio

suavemente rasgado pelo nadar daqueles animais.

O mar costeiro encheu-se de vultos cinzentos que nadavam nas

águas. Alguns deles aproximaram-se do veleiro mas passaram ao largo

em busca das suas presas.

- São inofensivos - disse o Chefe Branco. - Só atacam quando os

incomodam ou em defesa das suas pequenas crias, das quais cuidam e

que vigiam com um zelo formidável.

Apesar daquela explicação, Alejandro, que se manteve de guarda

durante a noite, não se sentia muito tranquilo quando via passar pela

popa mais de um leão lutando com algum peixe que se debatia como

um braço brilhante que dava murros na garganta que o aprisionava

pela cauda.

Toda a breve noite crepuscular durou a pesca dos leões,

que, conhecendo o caminho percorrido pelos cardumes, se interpunham

naquele curioso desfiladeiro submarino a fim de os caçar.

No dia seguinte, o Agamaca retomou a sua rota entre as algas e a

costa e os leões marinhos a sua ascensão pela vertente pedregosa em

busca de uma boa sesta.

O Chefe Branco não quis içar o velame. O motor auxiliar quase

não tinha sido utilizado com o objectivo de poupar o combustível na

previsão de contratempos; mas agora o banco de algas começava a

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estreitar-se de tal forma junto à costa que não permitia um bom

governo e por isso tiveram mesmo de recorrer ao motor.

Durante a navegação as algas começaram a diminuir de

quantidade; mas um novo fenómeno veio piorar a situação: começaram

a aflorar à superfície os cantos aguçados de uma fileira de recifes que

corria da mesma forma que o banco de algas, paralela à costa.

À medida que iam avançando, os recifes foram saindo do mar

e formando o começo de uma terra que pouco a pouco se ia erguendo e

adquirindo a forma e a altura da outra que estava a bombordo do

veleiro. A praia pedregosa desta última começou a transformar-se

também numa escarpa e o veleiro foi penetrando num canal estreito e

cheio de correntes.

- É preferível avançar a voltar para trás - disse o Chefe Branco. -

Primeiro foram as algas, a seguir os bancos de algas, depois os recifes e

por fim esta terra que se ergue a estibordo e que tem forçosamente de

ser uma ilha devido ao tipo de corrente marítima que aqui existe.

O sargento Ulloa não quis perguntar a razão pela qual essa

corrente marítima determinava que a terra a estibordo tinha

necessariamente de ser uma ilha. Confiava tanto nos conhecimentos

como numa certa intuição especial que o Chefe Branco possuía em

relação a todas as coisas do mar. Além disso, se aquilo, em vez de um

canal, se transformasse num caminho sem saída que ia até ao coração

da terra, isso tinha para ele tanta importância como outro resultado

qualquer porque no final daquela corrente também existiria algo para

ver.

Pouco a pouco as paredes dos montes começaram a cair

verticalmente, a prumo, nas águas do canal e a adquirir uma estranha

cor.

- Isto é pior do que o Paso del Abismo dos canais de Magalhães! -

disse o rádio-operador.

O sargento Ulloa começou a olhar com curiosidade para as

escuras paredes coroadas de gelo e ao ver o seu polimento exclamou,

apontando com a palma da mão virada para a frente:

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- Mas isto é basalto; aqui existe uma grande riqueza!

- O que é basalto? - interrompeu Alejandro.

- É uma rocha preta que possui a dureza do ferro e aqui existe

uma enorme cordilheira deste valioso material.

Depois as negras paredes estreitaram tanto que parecia que se

iam unir nos cumes e a corrente aumentou de tal forma que o veleiro

perdeu o governo e foi levado como um tronco à deriva.

O Chefe Branco agarrou-se ao bicheiro e, intrepidamente,

manteve-se na proa enfrentando o perigo. Agarrando-se aos remos do

escaler, Ulloa e Alejandro fizeram a mesma coisa em cada costado da

embarcação. Na popa, tenso como o gatilho de uma arma pronta a

disparar, Félix tentava governar em vão o barco; mas não foi necessário

realizar a manobra para a qual os homens se tinham preparado; como

por milagre, o Agamaca correu durante bastante tempo entre os

gigantescos paredões e de seguida o funil abriu-se e um amplo canal

voltou a normalizar a corrente e a navegação.

O rádio-operador e Ulloa pegaram nos seus lenços para limparem

o suor que lhes escorria pela testa. Tinham escapado sãos e salvos de

um grande perigo.

- Acho que lhe devemos chamar Angustura do Abismo! - disse o

sargento já refeito do susto.

Ao fim de duas horas de navegação, o Chefe Branco pôde

confirmar a sua explicação: aquela terra era uma ilha e o Agamaca saiu

para o mar aberto.

Pararam o motor e içaram o velame, felizes com a liberdade do

mar, que, mesmo quando escondia grandes perigos, permitia enfrentá-

los numa luta mais leal do que a traiçoeira encruzilhada pela qual

acabavam de passar.

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CAPÍTULO 9

O vale misterioso

Durante mais de uma semana navegaram ao largo da Antárctida,

reconhecendo as suas costas, entrando nas suas enseadas em busca de

pinguins e focas com que variavam a sua alimentação.

Assim foram descobrindo os exemplares mais extraordinários da

fauna que povoa aquela região.

O lobo de dois pêlos e de um pêlo, a foca peluda(1), tão procurada

tanto pelo seu óleo como pela sua pele, a morsa, o elefante e o leopardo

marinhos, duas curiosas espécies de animais do mar cujos nomes lhes

foram atribuídos devido às semelhanças que têm com os seus

congéneres terrestres, e dos quais descendem segundo explicam alguns

naturalistas, e depois de se terem ido adaptando pouco a pouco às

condições do mar.

(1) A foca caranguejeira ou de Weddell, que é a melhor. (N. do A.)

O elefante era o maior de todos visto que em algumas

praias encontraram exemplares com mais de cinco metros de

comprimento. De cor cinzenta e às vezes branca, com pele grossa, e

apenas com o rudimento de uma comprida tromba que caracteriza o

seu semelhante terrestre, habita preferencialmente as praias arenosas

ou cobertas de líquenes, e sempre reunidos em grandes manadas.

Possuem um pouco da docilidade do seu homónimo e apenas abrem a

sua bocarra quando são perturbados por algum imbecil.

Em contrapartida, o leopardo marinho é um animal às

manchas, magro e ágil, que, pela maneira de agarrar as suas presas,

a sua rapina e a sua habilidade pode competir com o felino terrestre.

Num

dia

de

calmaria,

o

sargento

Ulloa

e

o

rádio-

operador Alejandro, aproveitando a paragem do Agamaca numa

enseada

onde o

Chefe

Branco

iria

aproveitar

para

efectuar

algumas reparações, saíram de escaler para explorar as redondezas.

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Navegavam há pouco tempo quando encontraram um braço de

mar que penetrava como um rio tranquilo pela terra dentro. Uma costa

arenosa assinalava a desembocadura e nas margens superiores viram

um líquen verde-escuro. Atraídos pela sugestão da paisagem e com a

ideia de poderem encontrar ovos de cerceta e de pomba do cabo que

naquela época estavam em, plena postura, foram entrando pelo braço

de mar adentro.

A uma milha da desembocadura, os seus desejos começaram a

realizar-se; das margens ergueram-se pequenos bandos de cercetas e

pombas. Atracaram o escaler e recolheram uma boa provisão de ovos.

Era um meio-dia de sol e regressavam braço de mar abaixo,

satisfeitos com o achado quando um rebanho de elefantes marinhos

começou a nadar ao seu encontro.

O tamanho e o aspecto daqueles animais inquietaram um pouco

os remadores que ergueram os remos como precaução quando o

rebanho se aproximou do escaler: mas os enormes animais passaram

ao lado da embarcação nadando Pausadamente e erguendo de tempos a

tempos as suas cabeças para a contemplarem com os seus

inexpressivos olhos.

Perto da desembocadura, um curioso espectáculo chamou-lhes

a atenção. Um leopardo do mar efectuava a sua caça diária entre as

algas. Assomou a sua estreita cabeça de réptil, de olhar vivo e

observador, traidor e antipático e, dando um salto no ar desapareceu

nas águas, Pouco depois voltou a surgir, também de um salto, trazendo

na boca um pinguim branco que foi devorado com grandes tragos. Os

suaves e elegantes movimentos com que deslizava nas águas, a forma

airosa como levantava a cabeça fora de água e olhava à sua volta

demonstravam a energia e voracidade de um felino audaz.

O escaler passou ao lado do leopardo. Este parou a sua caçada e

ergueu a cabeça fora de água olhando atentamente para o escaler que

ali passava; o seu olhar era muito diferente do dos elefantes: parecia

olhar para a embarcação e para os homens, diferenciando-os e

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estranhando a curiosa visão que os seus olhos de animal selvagem

contemplavam pela primeira vez.

Terá por acaso julgado o leopardo que os dois homens e o escaler

formavam algo assim como o corpo de um animal? Mexeu a cabeça

como se hesitasse perante uma decisão e, lançando-se velozmente a

nado, começou a perseguir a pequena embarcação. O sargento Ulloa,

que estava a remar, impulsionou vigorosamente o escaler com todo o

poder das suas forças; este adquiriu maior velocidade, mas o leopardo,

ao ver que a presa ou o objecto da curiosidade lhe escapava, pareceu

enfurecer-se, deu um salto e mergulhou nas águas.

O rádio-operador ergueu-se com o gancho nas mãos e, vigilante,

começou a observar os contornos da embarcação, mas nada aparecia

rompendo as águas; mas, de repente, a cabeça de olhar penetrante e

mal intencionado surgiu à popa do escaler e cravou os seus aguçados

caninos na borda do mesmo, ao mesmo tempo que o rádio-operador

descarregava o gancho sobre o animal. Este lançou um rugido e

mergulhou de novo nas águas.

Pelo abanão, o sargento percebeu que um novo assalto pelo

costado poderia fazer afundar o escaler e, largando os remos,

desembainhou o revólver e esperou o outro assalto. Este não se fez

esperar; o leopardo saltou para fora de água e caiu sobre a borda da

embarcação, com a parte posterior do corpo pousada na madeira.

Alejandro inclinou-se na direcção do outro costado para que o escaler

não se voltasse; o sargento fez o mesmo movimento mas ao mesmo

tempo disparou três tiros com o seu Colt sobre a bocarra aberta. O

leopardo escorregou para o mar como um peso morto.

- Estes ovos saíram-nos caros! - disse o sargento embainhando de

novo o revólver e recomeçando a remar na direcção do veleiro.

Apesar da perigosa aventura, o sargento ficou interessado com a

forma como aquele braço de mar entrava terra adentro e com a atraente

paisagem das suas margens, e convenceu o Chefe Branco da

necessidade de efectuar uma exploração através daquilo que ele julgava

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ser um braço de mar pela forma como as suas margens demonstravam

a passagem das marés.

Terminadas as reparações, levantaram âncora e, com a ajuda do

motor auxiliar, o Agamaca foi penetrando naquela espécie de ria.

As margens baixas continuavam. No entanto, não eram

muito largas e as escarpadas montanhas começavam a erguer-se

muito perto com as suas neves a meia altura, tudo demonstrando

que aquilo poderia ter sido o gigantesco leito de um glaciar

desaparecido.

Só junto à desembocadura encontraram algumas manadas de

elefantes e alguns pequenos grupos de inquietos leopardos.

Após umas sete milhas de navegação, o braço abriu-se de repente

e um pequeno mas largo golfo surpreendeu os navegantes com as suas

tranquilas águas.

O Chefe Branco continuou no mesmo rumo que trazia e cujo

ponto de referência era um vale que aparecia do outro lado do golfo e no

qual corria um pequeno rio. O braço de mar chegava até ali.

O sargento Ulloa, tocando no cotovelo do Chefe Branco, apontou

para as montanhas que se erguiam a pique nas margens do golfo a

estibordo.

O Chefe Branco olhou naquela direcção e os seus olhos

aguçaram-se por debaixo das sobrancelhas franzidas: grandes filões

dourados reluziam ao sol e desciam ao longo de toda a altura da

montanha, pintando-a como os anéis de uma zebra.

O Agamaca deu uma volta de um quarto de grau e foi-

se aproximando dos curiosos paredões.

- Parece ouro! - disse o rádio-operador.

- É cobre! De qualquer forma é uma grande riqueza - respondeu o

sargento.

As águas do golfo chegavam até àquelas margens com grande

profundidade, de maneira que não houve necessidade de baixar o

escaler e, atracando a popa contra as pedras, extraíram com um cinzel

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pedaços do brilhante metal. Depois, o veleiro retomou o seu caminho na

direcção do vale mais à frente.

Os navegantes estranharam o profundo silêncio que reinava

no golfo cujas águas pareciam mortas, assim como a ausência de vida

que se notava por todos os lados. O veleiro atravessou o golfo com o seu

lento navegar até que chegou à margem do vale e não pôde continuar

porque o braço de mar terminava ali; o rio tinha apenas uns cinco

metros de largura e a olho nu parecia pouco profundo devido à forte

corrente em que desembocava.

Ao largar a âncora, o ruído da corrente a passar pela pequena

roldana de ferro rasgou o silêncio e, perante os olhos assombrados dos

tripulantes, uma enorme debandada de pássaros amarelos, do tamanho

de pombas, ergueu-se nos ares; ao mesmo tempo, do outro lado do vale

ergueu-se um outro bando azul e outro pardo.

- Os primeiros não sei o que são - disse o Chefe Branco -, os

outros são patos, dos guinchadores, e de alguma outra espécie.

Os pássaros não fugiram; parecia que tinham sido pela primeira

vez perturbados nos seus domínios, e os bandos amarelos, azuis e

pardos descreveram um círculo à volta do veleiro e voltaram a pousar,

perdendo-se entre as margens.

- Isto é um paraíso! - disse o sargento Ulloa com os olhos

brilhantes de emoção enquanto contemplava outra bonita novidade:

pastagens vermelho-claras sobre a neve, uma espécie de líquen em flor.

No entanto, um facto curioso chamou a atenção do Chefe Branco:

aquela bonita vegetação não chegava até às águas do rio e este corria

por entre duas margens áridas, gretadas e nuas, como se por ali tivesse

passado uma ceifeira destruindo até as próprias raízes.

Devido à sua beleza, aquele vale convidava-os a desembarcar sem

tardar! O Chefe Branco, o sargento e o rádio-operador embarcaram no

escaler e remaram para terra, na direcção da desembocadura do rio. Ao

chegarem perto deste, um forte cheiro sulfuroso entrou-lhes pelas

narinas e algo como uma leve onda de vento envolveu-os por momentos.

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Um quetro verde surgiu das águas e encetou o seu característico voo

frustrado, sem conseguir soltar-se da superfície.

- Hoje teremos estufado de pomba amarela e assado de quetro

verde - exclamou o rádio-operador carregando a escopeta de calibre

doze.

A morna e sulfurosa língua de vento envolveu de novo o escaler

quando este penetrou na corrente do rio.

O Chefe Branco agachou-se e, ao enfiar a mão na água, retirou-a

exclamando:

- Está quente! - Elevando os dedos à boca acrescentou: - Que

amarga! Sabe a enxofre!

- É um rio de águas vulcânicas ou termais - disse o sargento

Ulloa -, e deve nascer muito perto daqui porque as suas águas chegam

ainda quentes até ao fim deste vale; no entanto, também é estranha

aquela cor verde-amarelada das pedras do leito - terminou, olhando

intrigado as pedras lisas e redondas sobre as quais deslizava, fervente,

o rio.

- Se as pombas amarelas são de enxofre - disse, sorrindo, o rádio-

operador -, teremos de partir daqui sem guisado. Teremos de cozinhar

com a água que trazemos a bordo.

No entanto, os curiosos pássaros amarelos, que eram uma

espécie de cerceta, eram saborosos, e o rio uma boa piscina temperada,

o melhor banho quente que jamais tinham tomado nas suas vidas.

Teriam ficado ali durante mais algum tempo, gozando

daquela espécie de paraíso antárctico, se a curiosidade em descobrir

o segredo daquele rio não os tivesse levado até ao macabro achado que

tornou um pouco desconfortável a permanência no vale; especialmente

para Félix, cujo estado de espírito foi profundamente afectado pelo

achado sensacional.

Um dia em que este, o rádio-operador e o sargento Ulloa subiam

rio acima, a perseguição de uma curiosa pegada de mamífero afastou-os

do seu caminho. Tratava-se de um mamífero cuja passada media mais

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ou menos um pé e tinha unhas semelhantes às do huemul, o bonito

veado que decora o escudo do Chile.

Ao fim de pouco tempo, as pegadas desapareceram no meio

do pasto. procuraram em vão nos arredores e dispunham-se a seguir o

seu caminho quando numa clareira do pasto descobriram uma anan(1)

de grandes dimensões.

(1) Anan: canoa dos índios yaganes. N. do A.

O rosto dos três homens reflectia espanto porque não percebiam

como é que aquela embarcação poderia ter chegado até ali.

A canoa, recostada sobre o lado de onde eles se aproximavam,

estava vazia. Aproximaram-se para a examinar. O tempo, desde que

tinha sido abandonada, incalculável, tinha gravado o seu leve mas

inconfundível rasto na madeira.

O grupo avançou para a observar do outro lado; mas, ao fazê-lo, o

yagane Félix lançou um grito apavorado que fez com que o rádio-

operador e o sargento se agachassem instintivamente.

No outro costado, encostados à embarcação, estavam três

esqueletos sentados como se das órbitas das suas caveiras

contemplassem a paisagem circumpolar.

Como é que aquela embarcação tão pequena para atravessar

aqueles mares e tão grande para ser arrastada por aquele pedregoso rio

teria chegado até ao interior daquele aprazível vale?

Algumas lendas diziam que a raça yagane provinha de uma canoa

que, em tempos imemoriais, foi levada por uma onda desde o fundo

distante e misterioso do Pacífico até ao último e destroçado recanto do

canal Beagle.

Que aventura teria então levado aqueles três descendentes

yaganes de forma tão estranha até tão estranho lugar e a sofrerem uma

morte também tão estranha?

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Os dois homens brancos e o yagane deram meia volta e,

sem dizerem uma única palavra, abandonaram o rasto do misterioso

mamífero.

Quando narraram ao Chefe Branco, que tinha ficado a tomar

conta do veleiro, o encontro com a canoa e com as três ossadas, este

também não conseguiu encontrar uma explicação para o curioso

fenómeno.

- Já ouvi falar - disse o sargento Ulloa - de embarcações

encontradas à deriva no alto mar, e sem uma alma a bordo.

Inclusivamente,

existe

uma

bonita

história,

que

se

generalizou entre os homens do mar, sobre um grande barco que foi

encontrado em pleno oceano sem um único ser vivo a bordo e com toda

a sua aparelhagem e instrumentos de manobra, demonstrando que

tinha sido abandonado poucos momentos antes. Por curiosidade, um

marinheiro levou consigo um papel impresso de um fardo que

encontrou na adega. Tempos depois, num porto do Oriente pegou de

novo no papel que era um bilhete impresso num exótico país: O barco

transportava uma imensa fortuna de cujo destino nunca mais ninguém

ouviu falar. Mas o mistério desta anan é ainda maior porque é uma

realidade que ali está, nessa canoa de estranhas dimensões que

ninguém consegue explicar como e porquê está varada no meio deste

vale.

Depois de efectuar algumas provisões de caça, o Agamaca saiu de

novo para o alto-mar.

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CAPÍTULO 10

O fim do Agamaca

À medida que o Agamaca avançava para sul, a temperatura ia

descendo e os sopés de neve das montanhas aproximavam-se cada vez

mais do mar.

Novos descobrimentos enriqueceram a rota. Encontraram

casualmente uma montanha de mica no dia em que o rádio-operador,

deitado sobre uma colina, ouviu a terra vibrar como se estivesse a

receber uma mensagem radiotelegráfica.

Efectivamente, ao pousar o ouvido sobre uma espécie de laje de

cor sépia, apercebeu-se com clareza das pancadas do alfabeto morse.

Quando o sargento Ulloa acompanhou o rádio-operador até ao

local do fenómeno, este tinha desaparecido, mas pôde confirmar que se

tratava de uma mina de mica, aquele delicado mineral escamoso cujas

folhas são utilizadas na indústria radiotelefónica.

As extensas guaneiras criadas durante milhares de anos pelos

excrementos de milhões de pinguins, gaivotas, pássaros carneiros,

patoliles, adelies e outras aves que povoam a Antárctida, foram outras

das riquezas que assombraram os olhos dos navegantes.

Na região onde a Antárctida começava a confundir-se com

os gelos continentais do pólo, apareceu uma montanha coberta

de neves eternas até ao mar, em cuja encosta duas intermináveis faixas

escuras se mexiam como as correias de uma roldana mecânica ou a

corda do corrimão dos barcos que num dos lados subia lentamente e do

outro descia com uma velocidade vertiginosa.

Muitas coisas os tinham surpreendido durante aquela aventurosa

expedição, mas nenhuma os tinha deixado tão confusos e intrigados

como aquela que agora estavam a ver.

A confusão foi-se transformando numa sensação cómica ou

humorística, como se tivessem sido ludibriados por algo de que não

suspeitavam. Tinham-se rido com ganas de uma foca raivosa que

coçava a nuca com as suas barbatanas; tinham-se divertido ao verem

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um pássaro bobo puxar as orelhas da fémea que resistia à ideia de o

acompanhar no voo por cima dos rochedos; mas aquilo que agora viam

ultrapassava os limites de todas aquelas coisas.

A correia sem fim, que subia e descia ao longo da encosta, era

composta por pinguins que, apertando as suas pequenas asas

rudimentares contra o corpo, se lançavam de barriga sobre a neve e,

levantando as patinhas, deslizavam como se fossem um tobogã ao longo

da encosta polida, barranco abaixo, até ao mar. Por outro carreiro

lavrado na parte mais suave da encosta, outra fileira de pinguins subia

com passos penosos e lentos até ao cume.

Ao vê-los descer e subir daquela forma, com as suas

figuras comicamente humanizadas, pareciam crianças vestidas de preto

com peitorais brancos, entretidas com uma absurda seriedade num

gracioso jogo.

Mas para eles era mais do que um jogo. Era a solução do

mais grave dos problemas: o da conservação da espécie. Chocavam os

seus ovos nas partes mais inacessíveis para que os seus inimigos do

mar não os comessem.

Tinham criado uma só rampa de deslizamento e lavrado um único

carreiro de ascensão que mantinham constantemente ocupados, porque

na alta planície havia milhares esperando a sua vez no começo da

rampa, e no mar outros tantos que lutavam para conseguir o primeiro

degrau na direcção dos ninhos, depois de terem conquistado a sua

alimentação.

- Se o homem tivesse tanta sabedoria como eles e fizesse tantos

sacrifícios para conservar a sua espécie, - disse o sargento Ulloa,

comovido perante as caravanas de pinguins que desciam e subiam -, há

muito tempo que teriam terminado todos os males e guerras da

humanidade! Mas o homem coloca a sua inteligência e espírito de

sacrifício mais ao serviço da guerra, da sua própria destruição, do que

em qualquer outra coisa!

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O Agamaca chegou a uma zona de mar tão coberta de

pequenos troços de gelo que, embora estes não oferecessem perigo,

diminuíam consideravelmente o seu avanço.

- Estamos nos limites da esfera polar! - exclamou o sargento.

- Então chegamos ao fim da Antárctida - disse o Chefe Branco.

- De certo modo sim - respondeu Ulloa -, e de certo modo não. As

terras da Antárctida são uma coisa e a Antárctida chilena outra; esta

última chega até ao próprio pólo, ou seja, onde terminam os meridianos

que a limitam.

- Acha prudente avançar mais?

- A noite desapareceu já quase totalmente, temos uma luz

constante, e julgo que poderíamos continuar até onde permitir este

canal que se abre à nossa frente - respondeu o sargento.

O veleiro continuou a abrir caminho por entre os pedaços de gelo.

Depois, estes desapareceram das águas e o canal, entre as duas

paredes de gelo, tornou-se mais navegável.

Os quatro homens sobre a coberta começaram pouco a pouco

a ficar intimidados com a grandeza da imensidão branca onde iam

penetrando. Apesar de estarem acostumados a ver neve, glaciares e

solitárias paragens brancas, nunca tinham imaginado uma paisagem de

semelhante solidão e grandiosidade.

Desolação e brancura por todos os lados, mas uma desolação

e brancura de tal forma infinita e magnífica que fascinava

profundamente!

A paisagem era fascinante, omnipresente. A luz era decomposta

em múltiplas cores pelos cristais de gelo e as fantasmagorias mais

impressionantes surgiam entre o céu e o horizonte. O Sol, distante,

parecia não pertencer àquela paisagem.

Tinham navegado um dia inteiro, se possível fosse falar de dias

naquele imenso e solitário dia do pólo que dura seis meses no Verão,

quando começaram a notar que o canal entre os gelos se ia tornando

mais estreito.

- Deve estar a chegar ao fim - disse o sargento.

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- Julgo não ser conveniente avançar mais - respondeu o Chefe

Branco com uma certa gravidade no tom de voz, e, dando uma olhadela

para as paredes de gelo, disse num tom ainda mais grave: - Parece-me

muito suspeito esta aproximação dos gelos.

E, unindo a palavra à acção, virou o leme e o veleiro começou a

sair da rota até aí percorrida; mas já tinham virado muito o veleiro

quando se deram conta de que a parte do canal por onde tinham vindo

também tinha estreitado.

O Chefe Branco e o sargento Ulloa olharam um para o outro: um

mesmo pensamento os assaltava. No entanto, apesar de nenhum gesto

se ter reflectido nos seus rostos, através desse olhar compreenderam-se

plena e tragicamente: as paredes de gelo, por uma causa que nesse

momento desconheciam, estavam a aproximar-se uma da outra!

O Chefe Branco dirigiu-se à cabina e acelerou o motor a full. O

Agamaca aumentou a sua velocidade mas, inexoravelmente também, as

massas de gelo iam-se aproximando de forma quase imperceptível.

Paulatinamente, aquilo foi-se convertendo numa angustiosa

corrida contra a morte. Calculavam que teriam de navegar a todo o

vapor durante doze horas para voltarem a sair do mar dos pedaços de

gelo!

O semblante do Chefe Branco foi-se tornando cada vez mais

pesado.

- O melhor é trazer todo o equipamento para a coberta como

precaução daquilo que poderá acontecer! - disse num tom de voz que os

seus companheiros jamais lhe tinham escutado.

Após quatro horas de navegação, o espanto começou a reflectir-se

no rosto de Félix e do rádio-operador. A tragédia parecia inevitável;

àquela velocidade, nunca conseguiriam chegar ao mar sem gelo, a

menos que acontecesse um verdadeiro milagre.

Mas não aconteceu. Às oito horas, os gelos encaixaram de

tal forma o veleiro que o Chefe Branco deteve o motor e, aproveitando

um recanto que existia na parede a estibordo, amarrou a embarcação

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ao gelo e desembarcaram o equipamento e os víveres mais

indispensáveis, especialmente o trenó de cipreste.

- Conseguimos salvar-nos de todas menos desta! - disse o

sargento Ulloa quando saltou do veleiro para a escarpa de gelo.

- Acho que esta viagem terminou - exclamou o Chefe Branco num

estranho tom.

Pouco depois, os gelos começaram a apertar o casco e o veleiro

começou a ranger.

O rosto do Chefe Branco ficou triste. Félix e Alejandro

aproximaram-se da borda do canal. Os gemidos aumentaram, como se

a embarcação, pressentindo o seu fim, se estivesse a lamentar.

O Chefe Branco lançou um olhar intenso para o Agamaca,

pela última vez, e com uma voz destroçada disse:

- Vamos embora daqui! A partir de agora qualquer coisa poderá

suceder!

E, carregando tudo no trenó, pegou nas rédeas e partiu a toda a

velocidade. Ocultava o rosto, denunciador de um profundo pesar.

O Agamaca voltou a ranger com um gemido prolongado.

Os outros três homens também o olharam pela última vez e,

cabisbaixos, seguiram o trenó. Iam todos silenciosos. O índio Félix

chorava.

A caravana foi penetrando lentamente na planície branca e

desolada. O Chefe Branco seguia na frente, sempre com a cabeça baixa,

segurando nas rédeas. Atrás, o sargento Ulloa, Alejandro e Félix

ajudavam a empurrar o veículo, mantendo uma prudente distância

para deixar o chefe, cuja dor respeitavam, sozinho.

Era o fim do Agamaca. Aquele homem intrépido tinha-o arrancado

ao mar e agora o mar tirava-lho das mãos.

A caravana embrenhou-se gelo adentro, sob um sol que no céu

parecia uma lágrima avermelhada e imóvel.

Com a morte do Agamaca, a extraordinária aventura da

Antárctida também chegava ao fim.

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CAPÍTULO 11

Dois fantasmas que regressam

Num dia em que o vento tempestuoso varria as superfícies

geladas levantando uma poeira de neve como um sinuoso mar cinzento,

dois homens famélicos, como dois fantasmas que surgiam daquele mar

impreciso, aproximaram-se de uma fábrica baleeira do lado oriental das

terras da Antárctida.

A poucos metros de uma das pequenas casas de material ligeiro

do acampamento, um deles caiu de bruços. O outro ergueu-o e, como

podia, arrastou-o até à porta da casa, mas ao levantar a mão para bater

na mesma também caiu junto ao seu companheiro.

Lá dentro, um baleeiro norueguês que assentava as suas contas

num caderno gorduroso, ouviu o golpe surdo do corpo que tinha caído.

Levantou-se e, ao abrir a porta, viu, mudo de espanto, dois corpos

dobrados como massas inertes a seus pés.

Dominado pela surpresa, agachou-se para auscultar-lhes o

coração.

Pousou o ouvido no peito de um deles e o seu rosto largo coberto

por uma barba ruiva distendeu-se num alegre sorriso.

Este desapareceu no momento em que tentou escutar o coração

do outro; mas este também estava vivo e o sorriso voltou a florescer-lhe

no rosto.

Ali mesmo acomodou os corpos para que descansassem melhor e

dirigiu-se a correr a outra das casas a fim de ir buscar o médico da

fábrica.

Atendidos pelo especialista, só no dia seguinte recuperaram a

consciência e, após alguns dias de tratamento, o homem de mais idade

conseguiu, sem ficar esgotado, fazer o seguinte relato, cuja primeira

parte parecia trazer à mente daquele homem imagens passadas que

recordava com agrado e colocavam na sua voz notas alegres e exaltadas.

No entanto, na segunda parte, o rosto daquele homem quebrou como a

lisa superfície do gelo quando um peso superior à sua resistência o

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rasga até às suas fibras mais profundas e cristalinas. A nota alegre

que tinha vibrado na sua primeira evocação transformou-se numa

hesitação cansada, como se aquela mente e aquela língua resistissem a

recordar aquele imenso e doloroso dia branco.

Após o desaparecimento do Agamaca, que assinalou o fim

da viagem pela Antárctida, os expedicionários iniciaram uma

desesperada peregrinação através daquele casco polar.

As penúrias que tiveram de suportar foram minando a saúde de

alguns deles. O primeiro a sucumbir foi o yagane Félix.

Depois o sargento Ulloa foi caindo numa espécie de loucura.

Entre os seus bens conservou sempre uma bandeira que

pensava cravar no pólo em nome da Pátria. Até que um dia, julgando

ter concretizado o seu sonho, cravou-a na parte mais elevada de

um promontório, e não se sabe se daí resvalou ou se se atirou para um

escarpado precipício. Morreu ao pé da bandeira do seu Chile austral.

Foi então que se tornou mais dolorosa para os dois sobreviventes

a rota sem rumo através daquele deserto branco.

Construíram uma vela quadrada que, com um mastro,

encaixaram no trenó, e com este curioso meio percorreram durante

semanas as extensas planícies, impulsionados por todos os ventos

e furacões, sempre para leste e a vertiginosas velocidades.

Subiram penosamente aos cumes e deslizaram por encostas

que pareciam abismos, dispostos a encontrar uma morte súbita, em vez

de continuarem a suportar o castigo implacável infligido por aquela

caminhada sem esperança.

Mas, após cada etapa percorrida, algo vago mas poderosamente

forte impulsionava-os a seguir em frente, acendendo de novo a esgotada

chama das suas energias, embora no final de cada jornada voltassem a

ser confrontados com o branco infinito.

A provisão de carne salgada foi racionada ao mínimo e alguns

caranguejos congelados que conseguiram desenterrar ajudaram

providencialmente a mantê-los de pé.

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Os seus cérebros não caíram na loucura como o do

malogrado sargento; mas esvaziaram-se de tal forma de todas as ideias

e pensamentos que, durante dias e dias, vaguearam como entes daquele

deserto gelado, apenas impulsionados pelo vento e por um instinto

pertinaz.

Sem saberem quanto tempo andaram assim, chegaram ao fim

de uma meseta, cuja borda iniciava uma encosta de grande altura que

descia com uma certa suavidade, atenuando-se cada vez mais até

chegar a uma planície baixa, no fundo da qual os seus olhos febris

viram pela primeira vez algo que parecia o mar e, como se se tratasse de

uma miragem, um grupo de pequenas casas espalhadas sobre a neve.

Há três dias que tinham terminado as provisões e o rádio-

operador tinha cegado de um olho.

Perante a visão que se lhes apresentou da borda da

meseta, julgaram que estavam a sonhar ou que há muito tinham

morrido e que aquele era outro mundo ao qual estavam a chegar,

outra realidade ou outra loucura como a do sargento.

Mas, sonho ou realidade, loucura ou morte, fecharam os olhos e,

como bólides, lançaram-se sobre o trenó encosta abaixo.

Como dois fantasmas perdidos na imensidão, tentavam

chegar até às casas, quando a fome e a emoção quebraram finalmente

a resistência de um deles, o irmão do Chefe Branco, que, apelando às

suas últimas forças, continuou a avançar arrastando-o com ele. No

momento em que ia erguer a mão para bater na porta, o último clarão

da sua mente fê-lo compreender que aquilo era um sonho, que estava

louco ou morto, que era tudo menos a realidade, e caiu também, por

sua vez, definitivamente, perante aquela que era na verdade a porta

da pequena casa do baleeiro.

No dia seguinte a este relato, a estação de rádio da fábrica pôs-se

em contacto com Walaia e relatou os acontecimentos.

Horas depois, um despacho do Departamento Marítimo de Punta

Arenas informou-os de que um hidravião da base aérea da baía

Catalina partia rumo à fábrica baleeira.

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Entre dois crepúsculos, um trimotor amarou frente ao

acampamento baleeiro, embarcou os dois sobreviventes, já refeitos, e

retomou o rumo até às ilhas austrais do Beagle.

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CAPÍTULO 12

Últimos rastos

Numa manhã do mês de Fevereiro, no edifício da rádio-estação de

Walaia,

o

rádio-operador

Alejandro

Silva Cáceres

transmitia

pessoalmente o seguinte radiotelegrama:

“Maria Cáceres. Talcahuano. Abraçam-te sãos e salvos os teus

filhos Manuel e Alejandro.”

A essa mesma hora, o Chefe Branco conversava com o colono

Carlos Gil em frente às tranquilas águas do porto Navarino.

Uma escuna branca, que vinha volteando mar fora, deu uma

última bordada e, de velas desfraldadas, entrou na baía.

Baixando o velame e aproveitando a viada, veio largar a âncora

muito perto da praia, com alarde de perícia marinheira.

- Que bonito! O peixe veio cair na boca do lobo! - disse Gil e

correu na direcção da casa dos carabineiros.

Dois polícias saíram com as suas carabinas a tiracolo,

embarcaram num escaler e dirigiram-se à escuna. Subiram até à

coberta e por uma portinhola desapareceram debaixo desta.

Pouco depois, voltaram a aparecer com um homem entre eles.

Embarcaram com ele no escaler e regressaram a terra.

Da praia dirigiram-se à casa da Subdelegação Marítima.

Gil convidou o Chefe Branco para ir até à Subdelegação.

Naala principal, o subdelegado marítimo leu a Geban,

que escutava entre os dois polícias, a sentença do juiz de Trabalho de

Punta Arenas, pela qual ordenava que pagasse a soma de cento e vinte

mil pesos a Juan Carrasco, por salários devidos ao serviço de Geban.

Declarava ainda que todos os animais existentes na península Dumas

pertenciam ao velho pastor.

Geban assinou a notificação e retirou-se, sempre acompanhado

pelos polícias.

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O subdelegado entregou uma cópia da sentença ao Chefe Branco

para que a levasse a Cauquenes e, quando este se preparava para sair,

disse-lhe com parcimónia:

- A justiça chega tarde; mas chega!

Com um escaler que lhe foi facilitado por Gil, o Chefe Branco

atravessou o Murray e começou a procurar a caverna de Cauquenes,

contente com a notícia que lhe levava.

Desembarcou na pequena praia de laje, estendida como um

degrau na borda do canal, atracou o escaler, amarrou o cabo a umas

ervas e penetrou no bosque de carvalhos.

Pareceu-lhe estranho que Cauquenes não viesse ao seu encontro

como tinha feito em outras ocasiões e a sua estranheza transformou-se

em inquietação quando viu que a tenda em pele de lobo, com a qual o

velhote dissimulava a entrada, estava caída no chão com a armação de

vime derrubada.

Dominado por um pressentimento, entrou violentamente na

caverna. A alteração da luz exterior para a escuridão no interior cegou-o

e por momentos avançou às apalpadelas. Também não viu a fogueira

que a velha yagane mantinha sempre acesa ao fundo, e respondeu-lhe o

silêncio mais profundo quando disse em voz alta:

- Está aí alguém?

Quando os seus olhos se acostumaram à escuridão, descobriu

sobre um catre do fundo o cadáver de Cauquenes. Aproximou-se e na

penumbra viu no seu rosto uma serenidade que não tinha conseguido

reflectir em vida.

Permaneceu uns instantes parado e depois estremeceu, apanhado

de surpresa por um som vago, cujo rumor quase musical ficou a flutuar

na espessura do silêncio: uma gota de água tinha caído do canal para o

seio da fonte.

Por momentos ficou estático e uma emoção confusa invadiu-

o lenta e profundamente, e, sem saber porquê, ajoelhou-se junto ao

cadáver e tentou balbuciar algo que não conseguiu. Fez então o sinal da

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cruz em silêncio. Refeito, fechou os olhos do cadáver, e ao abandonar a

caverna lembrou-se da velha yagane.

Não estava em nenhuma parte e na busca apenas encontrou

um papel cravado num tronco de cipreste com uma faca de mato.

Soltou-o, levou-o para fora da caverna e leu:

“Amigo Chefe Branco: a minha velhota morreu e está

sepultada no mesmo lugar onde vou morrer. Julgo que isso irá

acontecer muito em breve e gostaria que a caverna também fosse o

meu túmulo. Se aquela tal justiça chegar, os animais e tudo aquilo que

me pertence deixo-os a si; isto é, não a si, porque não aceitaria, mas

sim aos yaganes a quem quer tanto como eu queria à minha velhota e

para que se realize o sonho de toda a sua vida: colonizar parte da terra

que foz deles, fundar-lhes uma escola e torná-los mais felizes. Obrigado,

amigo, e adeus.

Juan Carrasco ou, melhor ainda, Cauquenes.”

O Chefe Branco dobrou o papel e guardou-o no bolso interior do

casaco, olhou para o esconderijo de lontra criado naquela fenda da

natureza árida e agreste, soltou o escaler da branca praia de laje, saltou

lá para dentro e, pegando nos remos, partiu remando ao longo do canal.

De entre as algas surgiu de repente a cabeça reluzente de um lobo

de um pêlo que continuou a nadar atrás do escaler. O Chefe Branco

continuou a remar imperturbável, e o lobo, nadando calmamente atrás

do sulco deixado pela embarcação, acompanhou-o até à outra margem

e, quando o homem desembarcou, o lobo deu uma volta como se fosse

um cão que aguarda uma ordem ou uma chamada, e, como esta não

chegou, desapareceu de novo nas águas.

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Obras publicadas na colecção

“Aventura e Viagem”

1. De Bengala às Terras de Laca I, H. Capelo e R. Ivens

2. De bengala II, H. Capelo e R. Ivens

3. She Rainha de Kôr, Rider Haggard

4. Peregrinação I, Fernão Mendes Pinto

5. Peregrinação II, Fernão Mendes Pinto

6. Manual de Viagens para Amantes da Natureza, Dominique le

Brun e François le Guern

7. Os Revoltosos de Libertália, Daniel Vaxelaire

8. O Último Veleiro, Fracisco Coloane

9. Como Eu Atravessei a África I - A Carabina Dél Rei, Serpa

Pinto

10. Como Eu Atravessei a África II - A Família Coillard,

Serpa Pinto

11. Majâbat al-Koubrâ O Fascínio do Deserto, Théodore Monot

12. Noa-Noa - Estrada em Taiti, Théodore Monot

13. De Angola à Contracosta I, H. Capelo e R. Ivens

14. De Angola à Contracosta II H. Capelo e R. Ivens

15. O Explorador do Absoluto, Théodore Monot

16. A Rota da Seda, Luce Boulnois

17. O livro dos Viajantes, Eric Newby

18. Os Navegantes do Deserto, Théodore Monot

19. Os Conquistadores da Antárctida, Francisco Coloane

Outro volume deste autor na mesma colecção

O Último Veleiro

Data da Digitalização

Amadora, Outubro de 2001

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